Rogério Rosa - a Relação Afro-Ameríndia Entre o Negrinho Do Pastoreio e o SaciPererê Na...

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ROSA,R. R. GA relação afro-ameríndia entre o Negrinho do Pastoreio e o Saci-Pererê na mitologia

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    Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

    Programa de Ps-graduao em Letras, Cultura e Regionalidade

    Programa de Doutorado em Letras

    ISSN 1984-1921

    A relao afro-amerndia entre o Negrinho do

    Pastoreio e o Saci-Perer na mitologia*

    Rogrio Reus Gonalves da Rosa**

    Resumo

    A partir da etnologia amerndia, este trabalho analisar a paradigmtica

    narrativa O Negrinho do Pastoreio, presente na vida de indivduos, coletivos e sociedades em vrias regies do Brasil, Uruguai e Argentina.

    Diferentemente da perspectiva do folclore, que geralmente a considera

    uma genuna lenda gacha, um episdio exclusivo da escravido sul-rio-

    grandense, este texto realizar o seguinte: inicialmente, uma discusso

    terica acerca da mitologia; logo, uma comparao das diferentes verses

    dessa narrativa, apresentando as personagens Negrinho do pastoreio, Negrito del pastoreo e el Quemadito; a seguir, uma conexo do Negrinho do pastoreio com o simptico Saci-Perer; e, ao final, destacar-se- que esses personagens, a partir das conexes afro-

    amerndias, fazem parte de uma constelao de narrativas mitolgicas.

    Palavras-chave

    Negrinho do Pastoreio; Saci-Perer; narrativa; mitologia; constelao

    Abstract

    This paper will examine, from ethnology, the paradigmatic narrative O negrinho do pastoreio, present in the lives of individuals, collectives and societies in various regions of Brazil, Uruguay and Argentina. Differently

    from the folklore which usually considered as a genuine legend gaucho

    and exclusive episode of slavery south of Rio Grande, this text will

    perform the following: initially, a theoretical discussion of the mythology;

    therefore, a comparison of different versions of this narrative, introducing

    the characters Negrinho do pastoreio, Negrito del pastoreo and el Quemadito; below, a connection of the Negrinho do pastoreio with friendly Saci Perer; and, finally, to emphasize that these characters from

    african-Amerindian connections are part of a constellation of mythological

    narratives.

    Keywords

    Negrinho do Pastoreio; Saci-Perer; narrative; mythology; constellation

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    memria de Oliveira Silveira e Rubinei Silva Machado.

    Para meu av kaingang, Jorge Kagng Garcia.

    A NARRATIVA DO NEGRINHO DO PASTOREIO CLSSICA no Rio Grande do Sul (RS).

    Registrada em livros, peas de teatro, msicas, filmes, vdeos, danas, histrias em

    quadrinhos, pinturas e internet, ela faz parte da vida de indivduos, coletivos e

    sociedades, situados nas cidades e nos rinces do Brasil, Uruguai, Argentina, qui do

    mundo. Eis, ento, a pretenso desse artigo: mostrar as peripcias dessa personagem e

    sua relao com o Saci-Perer, a partir da mitologia.

    Diferentemente da perspectiva de certos folcloristas, que afirmam que O

    negrinho do Pastoreio trata-se de uma genuna lenda gacha e de um episdio

    exclusivo da escravido sul-rio-grandense, este estudo, instigado pela perspectiva da

    mitologia, realizar o seguinte trajeto: de incio, uma discusso terica acerca da

    mitologia; logo, uma comparao das diferentes verses dessa narrativa, por exemplo,

    as de O negrinho do pastoreio, Negrito del pastoreo e el Quemadito; a seguir, ser

    feita uma conexo da personagem do Negrinho com outra personagem muito simptica,

    o Saci-Perer; e, por fim, destacar-se- que esses personagens, a partir das conexes

    afro-amerndias, fazem parte de uma constelao de narrativas mitolgicas.

    Trata-se de um estudo que dar nfase aos aspectos mitolgicos das narrativas

    produzidas acerca desses personagens por autores como Simes Lopes Neto, Nstor

    Ganduglia, Rafael Cano, Monteiro Lobato, Cmara Cascudo, Olvio Jekup e Oliveira

    Silveira. Para tramar essa intriga, eu cruzarei tais contribuies com as posies do

    antroplogo francs Claude Lvi-Strauss e do folclorista brasileiro Cmara Cascudo. De

    imediato, eu apresento uma breve discusso sobre mitologia.

    Uma discusso terica sobre mitologia

    Os mitos so narrativas que indicam a origem, o devir, a eternidade, as trocas simtricas

    e assimtricas, o processo de comunicao e mobilidade de humanos, no-humanos

    (espritos, deuses, divindades, almas) e sobre-humanos (xams, curandores, heris

    mitolgicos, mes-de-santo) em um dado territrio1 (ROSA, 2011).

    1 J a cosmologia refere-se a teorias acerca do mundo, em especial, sobre a forma, o contedo e o ritmo

    do universo (Viveiros de Castro apud Bonte, Izard, 2004).

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    Os sobre-humanos so pessoas/personagens com poderes especiais que realizam

    a mediao possvel entre no-humanos e suas foras do mundo invisvel (espritos,

    divindades, entidades que vivem, por exemplo, em cima/embaixo, cu/subterrneo,

    leste/oeste) e a humanidade na terra; por isso, eles so portadores de um carter

    ambguo (ROSA, 2009).

    As personagens de tais narrativas esto ligadas tanto ao eixo horizontal quanto

    ao eixo vertical da mitologia (LVI-STRAUSS, 1993). Tratando-se do primeiro, pode-

    se citar algum caminhando por uma floresta ou margem de um rio, ou, da mesma

    forma, construindo sua casa em um determinado espao. J do segundo, menciono um

    humano, no-humano ou sobre-humano subindo ao cu ou mergulhando nas guas do

    mar.2

    No semelhante perspectiva da histria, o movimento temporal do mito

    enfatiza a ordem no cronolgica, a qualidade da repetio, a inverso e a reverso,

    alm da no subordinao a uma exigncia de conservao exata3. A partir da

    concepo de Claude Lvi-Strauss, os mitos so incompletos, interminveis, situando-se

    entre culturas, configurando-se em uma constelao de narrativas (1993; 2004; 2011).

    Pode-se dizer que os mitos so narrativas que apresentam um arcabouo comum,

    virtual, em que as variaes constituem-se a partir de uma moldura, a qual se expande,

    se contrai e se atualiza atravs dos acontecimentos da histria. Alm disso, as narrativas

    possuem uma capacidade de reconfigurao, devido relao dos extratos mitolgicos

    com outras narrativas, e, tambm, manipulao dos repertrios orais realizada pelos

    narradores e pelas plateias (LVI-STRAUSS, 2004; GALLOIS, 1993; GOODY, 2012).

    Atravs de artifcios como inverso, reconfigurao e carter coletivo,

    fundamental compreendermos que a mitologia busca uma mediao progressiva de

    certas oposies protagonizadas pelos personagens que figuram em uma narrativa,

    tendo como pano de fundo da intriga a indiscrio, o mal-entendido, o

    esquecimento, a nostalgia. Alm disso, os mitos podem se revelar de forma

    explcita ou implcita. A primeira consiste em relatos com uma consistente organizao

    interna, divididos em captulos, que se sucedem em uma ordem coerente. J a segunda

    2 A incidncia dessa dimenso vertical da mitologia vida das pessoas pode ser observada na trajetria de

    dona Hilda Caetano do Nascimento (ROSA, 2009). 3 Meu texto parte do pressuposto de que mito e histria so formas complementares de interpretaes dos

    fenmenos. Alm disso, entendo que lenda, conto, saga, epopeia, causo e poesia so categorias ocidentais

    e todas originadas da mitologia (GALLOIS, 1993; LVIS-STRAUSS, 2004).

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    no existe seno em estado de notas, fragmentos e remendos de narrativas desconexas

    (LVI-STRAUSS, 1996; 1978; 2011).

    Desse modo, a narrativa literria O negrinho do pastoreio um exemplo

    clssico da primeira modalidade de enunciao do mito, a explcita, tal como veremos

    frente. Por outro lado, a ao isolada de acendermos uma vela para essa personagem

    quando perdemos um objeto, um saber-fazer que transmitido de gerao a gerao na

    regio em que vivo, caracterstica da segunda modalidade, a implcita (LVI-

    STRAUSS, 2011).

    Por sua vez, uma narrativa mitolgica tanto organizada quanto fragmentada

    jamais se encontra isolada. Seja por simetrizao, seja por inverso, enfim, por

    transformao, ela est conectada a uma constelao mitolgica. Portanto, o desafio do

    mitlogo configurar um conjunto de personagens e narrativas e encade-lo em um

    grupo de mitos. Pensando nisso, Lvi-Strauss (2004) estabeleceu uma relao entre

    mitos e conjuntos de estrelas (constelao de Orion, constelao de Touro, constelao

    de Pliades). Quanto a meu texto, este ressaltar, em especial, a unio dos povos afro-

    amerndios da Amrica do Sul em torno de uma constelao em que se sobressaem

    determinadas personagens.

    Desse modo, este texto empenhar-se- em mostrar a relao entre O negrinho

    do pastoreio, Negrito del pastoreo e el Quemadito e Saci-Perer, Saci-ave, Mati-

    taper, xaxim-tarer, Saci-Perer guarani, entre outros, trazendo-nos a possibilidade de

    pensarmos a contribuio de vrios coletivos e sociedades para a constituio dessas

    narrativas.

    Para darmos incio a essa perspectiva, vamos ao prximo tpico deste artigo.

    Um estudo comparativo entre as diferentes verses do negrinho do

    pastoreio

    A narrativa O negrinho do pastoreio sempre exerceu um grande fascnio sobre mim.

    Alm disso, eu, hoje, habito a cidade de Pelotas, onde viveu o escritor Simes Lopes

    Neto, reconhecido no meio literrio e folclrico como um dos maiores autores a

    registrar essa narrativa. Pelotas tem uma histria peculiar, pois, h pouco mais de um

    sculo, ela notabilizava-se pela produo do charque, pela presena das charqueadas no

    Canal So Gonalo e no Arroio Pelotas e pelo sistema escravocrata, que situavam em

    lados opostos e assimtricos a aristocracia e os negros.

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    Pelotas destaca-se, hoje, pela presena de um centro histrico, cuja arquitetura,

    formada por casares e senzalas, evoca o passado do Brasil Colonial, enquanto, ao

    mesmo tempo, possui uma periferia que marginaliza, principalmente, os

    afrodescendentes que moram em casas precrias, sem acesso a direitos bsicos, como

    saneamento, trabalho, sade, educao e lazer. Outros negrinhos esto agora a sofrer os

    maus tratos tanto por parte de empresrios poderosos quanto por parte do Estado e da

    Justia. Vamos, ento, verso da narrativa de O negrinho do pastoreio escrita por

    Simes Lopes Neto.

    O negrinho do pastoreio, por Joo Simes Lopes Neto

    Joo Simes Lopes Neto nasceu em Pelotas, em 1865, e morreu em 1916, ento com 51

    anos de idade, vtima de uma grave molstia. Ele teve contato com a vida campeira

    somente na infncia, pois, aos treze anos, j estudava no Colgio Ablio, no Rio de

    Janeiro. Posteriormente, fez parte da Faculdade de Medicina, mas, devido a uma

    enfermidade, afastou-se do curso. Em 1886, estava outra vez morando em Pelotas,

    interessando-se cada vez mais pela linguagem regionalista. Em 1912, publicou Contos

    gauchescos, obra que o notabilizou enquanto um dos maiores nomes da literatura do

    Rio Grande do Sul (Silva apud LOPES NETO, 2008).

    A seguir, apresento a narrativa O negrinho do pastoreio escrita por esse autor:

    Em tempos antigos, os campos eram abertos, no havia cercas, a gadaria era

    xucra, os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos. Havia um

    estancieiro dono de muita prataria. Ele era muito mau, no dava pousada a

    ningum. No inverno o fogo de sua casa no fazia brasas, a sua porta no se

    abria. A sombra dos seus umbus somente abrigava seus cachorros. Somente

    para trs viventes ele olhava nos olhos: o filho, o cavalo baio e um escravo,

    pequeno ainda, preto como o carvo. O Negrinho no tinha nem padrinho,

    nem nome. Ele se dizia afilhado de Senhora Nossa. O Negrinho diariamente

    sofria maus-tratos do menino. Um dia, aconteceu uma carreira do estancieiro

    com seu vizinho, uma corrida entre o baio e o mouro. Os cavalos correm e

    Negrinho dizia, valha-me a Virgem Madrinha, Nossa Senhora!, j o outro corredor afirmava, se mouro ganhar, para os pobres. Perdeu o cavalo baio, ganhou o mouro. Quem perdeu que pague. Despeitado e furioso, o

    estancieiro pagou a parada, pagou mil onas de ouro. O ganhador mandou

    distribuir bezerros e leiteiras para os participantes. Ofendido, o estancieiro

    mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe uma surra

    de relho. Depois, deixou Negrinho trinta dias no alto da coxilha pastoreando

    uma tropilha de trinta cavalos negros. Ele comeou a chorar, varado de

    fome! Na escurido da noite o Negrinho tremia de medo, porm de repente

    pensou na sua madrinha Nossa Senhora, sossegou e dormiu. Enquanto o

    Negrinho dormia, os guaraxains soltaram baio e toda a tropilha. O Negrinho

    perdeu o pastoreio. O filho maleva avisou ao pai que os cavalos no

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    estavam. O estancieiro surrou de relho o Negrinho, ordenou ele a campear

    at achar a tropilha. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou

    na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratrio da casa, tomou o coto de

    vela aceso em frente da imagem e saiu para o campo. Por coxilhas e

    canhadas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no

    cho: e de cada pingo nascia uma nova luz, eram tantas que clareavam tudo.

    E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu... Gemendo, o Negrinho

    deitou-se encostado ao cupim e dormiu. Ao clarear o dia veio o filho do

    estancieiro, e enxotou os cavalos. O menino maleva foi dizer ao seu pai que

    os cavalos no estavam l. O negrinho perdeu o pastoreio. E chorou... O

    estancieiro mandou dar-lhe uma surra de relho at ele no mais chorar nem

    bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo. Parece

    que morreu. Para no gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro

    mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro e assanhou

    bem as formigas e elas cobriram todo o corpo do Negrinho e comearam a

    trinc-lo. Ele foi embora sem olhar para trs. Nessa noite, o estancieiro

    sonhou que tinha mil filhos, mil negrinhos e mil baios e mil vezes mil onas

    de ouro e que tudo cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno. E trs

    noites o estancieiro teve o mesmo sonho. A peonada bateu o campo, porm

    ningum achou a tropilha. Ento o estancieiro foi ao formigueiro, quando

    chegou perto viu o Negrinho de p, com a pele lisa, sacudindo de si as

    formigas que o cobriam ainda. Ao lado, o cavalo baio e a tropilha dos trinta

    tordilhos. E, sua frente, a Nossa Senhora pousada na terra, mas mostrando

    que estava no cu. Neste instante o estancieiro caiu de joelhos diante do

    escravo. E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em plo e sem rdeas,

    no baio, chupou o beio e tocou a tropilha a galope. A notcia do milagre do

    Negrinho correu. Posteiros, andantes, tropeiros, mascates, carreteiros deram

    notcia de ter visto passar uma tropilha de tordilhos tocada por um Negrinho,

    gineteando de em plo, em um cavalo baio. Da por diante, quando qualquer

    cristo perdia uma coisa, pela noite velha o Negrinho campeava e achava,

    mas s entregava a quem acendesse uma vela. Ainda hoje, conduzindo o seu

    pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, macegais,

    restingas, banhados, arroios, coxilhas e canhadas procura dos objetos

    perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes

    acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Nossa Senhora,

    madrinha dos que no a tm. Assim, quem perder algo, acenda uma vela

    para o Negrinho do Pastoreio e diga: foi por a que eu perdi! Foi por a que eu perdi! Foi por a que eu perdi!. Se ele no achar... ningum mais.

    Essa narrativa foi publicada por Simes Lopes Neto originalmente em 1907, no

    jornal O Dirio Popular, de Pelotas, e, a seguir, em 1913, na obra Lendas do Sul. Na

    edio da L&PM Pocket (2008), o mito composto por oito pginas, escritas em

    portugus, que foram resumidas acima por mim para fins deste artigo.

    Minha anlise parte do ponto de vista de que essa narrativa trata-se de um mito.

    Porm, o ttulo do livro indica que esse autor a entendia enquanto uma lenda. J defini

    anteriormente o que o mito; mas, do que se trata a lenda? Para o antroplogo Jack

    Goody (2012), trata-se de uma narrativa associada a escritos de santos e semelhantes,

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    encontradas nas culturas orais e de comunidades na forma de histrias de cls,

    chefaturas e dinastias.

    Retomando O negrinho do pastoreio, vemos que imagens dessa personagem

    aparecem no Salo Nobre do Palcio Piratini, a sede do Governo do Estado do RS. Esse

    pequeno escravo est presente, tambm, na forma de esttua em cidades como Alegrete,

    Caxias do Sul, So Francisco de Paula, Pelotas, Porto Alegre, entre outras.

    Devido ao estilo e s formas de construo do escritor Simes Lopes Neto, essa

    narrativa possui um forte trao literrio. De imediato, percebemos uma sucesso de

    episdios que refletem uma linearidade, decorrente das transformaes que se

    desenrolam na sucesso dos acontecimentos. Tratando-se de alguns aspectos da

    mitologia, a mesma coloca a relao do Negrinho do Pastoreio com seus proprietrios, o

    estancieiro e seu filho, ambos malvolos, como sendo uma relao do menino com dois

    humanos. Entretanto, a relao dessa criana pequena, negra, escrava, bondosa e sem

    nome estende-se a alguns no humanos: ao cavalo baio e tropilha, aos guaraxains e a

    Nossa Senhora. A relao do Negrinho com essa divindade, sua madrinha, torna-o um

    sobre-humano, um santo popular para posteiros, andantes, tropeiros, mascates,

    carreteiros e tantos outros.

    Esttua do Negrinho do pastoreio em Pelotas, RS, realizada pelo escultor Vasco Prado. Imagem: acervo pessoal (Outubro/2013).

    No geral, a narrativa apresenta uma relao e uma separao entre o bem e o

    mal, o que caracteriza a nfase judaico-crist dessa intriga, e apresenta tambm a

    transformao da criana Negrinho em uma divindade para as pessoas que habitam o

    pampa gacho, regio essa formada por campos, macegais, restingas, banhados, arroios,

    coxilhas, canhadas.

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    Considerando os elementos literrios dessa narrativa, podemos dividi-la nos

    seguintes episdios: primeiro, acmulo de bens e no socialidade do estancieiro;

    segundo, Negrinho e baio perdem a corrida de cavalos; terceiro, Negrinho perde baio e

    tropilha pela primeira vez, e estancieiro manda aoit-lo; quarto, Negrinho perde baio e

    tropilha pela segunda vez, estancieiro manda aoit-lo at a morte e, aps, jogar seu

    corpo no formigueiro; quinto, sonho do estancieiro com mil filhos, negrinhos, baios e

    mil vezes mil onas de ouro; sexto, aps uma noite de sonho, o reencontro do

    estancieiro com Negrinho vivo, ao lado de Nossa Senhora, o estancieiro se curva aos

    ps de seu escravo; stimo, todos reconhecem que Negrinho tornou-se um santo popular

    e buscam sua ajuda quando perdem algo.

    Nesse sentido, o quinto episdio merece destaque porque ressalta a descida do

    estancieiro ao pequeno formigueiro, junto com mil filhos, mil negrinhos e mil baios e

    mil vezes mil onas de ouro, constituindo, portanto, o eixo vertical da narrativa. Enfim,

    nessa cena, sobrepem-se tanto a ordem da inverso vivida pelo estancieiro no plano

    onrico quanto a lgica da reverso da narrativa, o ponto de virada da intriga, mediada

    por Nossa Senhora pousada na terra, mas mostrando que ela estava no cu.

    Imagens disponveis em:

    http://ritaefrank.blogspot.com.br/2012/08/colorir-e-pintar-lenda-do-negrinho-do.html

    Tratando-se, ainda, da inverso, reparamos que mil filhos, mil negrinhos, mil

    baios e mil vezes mil onas de ouro do estancieiro cabem folgados dentro do

    formigueiro; isto , o grande atravessa o pequeno. Alm disso, aparentemente, no havia

    uma alternativa para a oposio instaurada entre o estancieiro e o Negrinho. Contudo, a

    visita do primeiro ao mundo subterrneo provocar a reverso da narrativa, uma

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    mudana de atitude desse homem para com seu escravo: ele se curva e reconhece a

    injustia cometida a essa criana negra.

    Enfim, a partir desse ponto, pelo efeito casado da inverso e da reverso, a

    narrativa atenuar as oposies entre proprietrio e escravo, ocidental e afro, laico e

    cristo, maldoso e bondoso, tudo isso atravs da mediao representada pela presena

    divina da Nossa Senhora. Isso mostra que nenhuma personagem passa inclume do eixo

    horizontal ao eixo vertical de um mito.

    Em linhas gerais, a narrativa trazida por Simes Lopes Neto condensa em si

    aspectos da ordem scio-histrica de um dado espao, isto , o espao da escravido,

    mais especificamente, nesse caso, o da explorao da mo de obra africana por grandes

    proprietrios de terras no sul do Brasil. A narrativa condensa, tambm, aspectos da

    ordem do pensamento mtico judaico-cristo e afro, nos quais o bem vence o mal e/ou o

    bem e o mal coexistem, revelando, portanto, nessa verso, a fora das matrizes europeia

    e africana.

    Ou seja, estamos diante de uma verso que articula os gneros literrio, lendrio

    e histrico com o mtico, o que nos leva a pensar nas transformaes introduzidas pelo

    autor Simes Lopes Neto em relao s verses mais antigas. Por exemplo, o folclorista

    Antonio Augusto Fagundes (1992) menciona que esse escritor introduziu na passagem

    da publicao dessa lenda do jornal, em 1907, para o livro, publicado em 1913 os

    parelheiros, o baio, o menino maleva, as corujas agourentas, os guaraxains e Nossa

    Senhora. Como foi possvel ver acima, tais mudanas mantiveram intacta a moldura

    formada pelo eixo horizontal e pelo vertical.

    Cabe ressaltar que meu texto empreender esforos no sentido de ressaltar os

    aspectos mitolgicos, ou seja, no sentido de no vincular O negrinho do pastoreio a

    apenas uma cultura/espao. Diga-se de passagem, essa a perspectiva assumida por

    parte dos folcloristas quando estes consideram tal narrativa uma lenda genuinamente

    gacha, circunscrevendo-a em uma regio do pas em detrimento de outras. A proposta

    deste texto a de pensar o Negrinho como uma personagem ligada a outros humanos,

    no-humanos, sobre-humanos e, sobretudo, conectada a um conjunto de narrativas que

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    se atualiza na vida extraordinria e cotidiana, inclusive por meio da memria coletiva4,

    de indivduos e sociedades.

    Esse pressuposto revela que O negrinho do pastoreio est entre culturas5. O

    deslocamento da narrativa da condio de uma cultura para entre culturas requer a

    devida ateno. Portanto, antes de relacionar o Negrinho ao Saci-Perer, vamos leitura

    de outra verso acerca dessa personagem. A seguir, destacarei Negrito del pastoreo,

    de Nstor Ganduglia.

    Negrito del pastoreo, por Nstor Ganduglia

    Nstor Ganduglia um psiclogo social uruguaio que, alm de organizar o Foro

    Latinoamericano de Memria e Identidad, em Montevidu, pesquisa, h mais de duas

    dcadas, as histrias mgicas no Uruguai, na Colmbia e em outros pases da

    Amrica Latina (RIBEIRO, 2012). Para esse intelectual, essas histrias consistem em

    narrativas sobre lugares assombrados, casas encantadas, bruxas, lobisomens e aparies

    de espritos que dizem respeito a uma memria coletiva formulada na Amrica Latina.

    Em suas palavras,

    necessrio buscar novas snteses entre os saberes. No se trata mais de

    estudar a natureza do homem primitivo ou os produtos da ignorncia popular, mas de reconhecer o saber quase clandestinamente oculto, imperceptvel nas entrelinhas de nossas narrativas populares, em uma

    postura de abertura para aprender com o outro (apud RIBEIRO, 2012, p. 26).

    Vejamos, agora, a narrativa Negrito del pastoreo, coletada por Ganduglia, em

    Rivera, departamento uruguaio que faz divisa com o Rio Grande do Sul. Trata-se de

    uma verso de seis pginas, traduzida da lngua espanhola e resumida por mim:

    Mara Auxiliadora agachada procura pela tesoura, ferramenta que pertencer

    a sua av Colata, debaixo de uma cmoda. Enquanto pensava na falecida

    av levantou-se e foi buscar uma pequena vela, pois fora ela que passara

    uma receita infalvel para estes casos: pedir a Negrito que a ajudasse a

    encontrar: Santito, que nunca te falte luz. Negrito nasceu sem nome, sem terra, sem povo e sem nada em uma carreta piolhenta que levava ele, sua

    me e vinte outros escravos ao norte. O pai foi levado por Iemanj, porque

    fora atirado ao mar por quatro marinheiros ingleses quando quis defender

    sua esposa de ser acorrentada; da me, quando Negrito foi comprado em um

    leilo por dois reais por capricho da filha mais nova de um patro brasileiro.

    4 Nesse particular, afilio-me a constatao de Maurice Halbwachs (2006), de que a memria no possui

    apenas uma dimenso individual, mas, tambm, uma dimenso coletiva. Em se tratando das relaes entre

    memria coletiva, imagem e narrativa, ver Eckert e Rocha (2005) e Nunes (2013). 5 Tratando-se dessa noo, partilho da ideia de Eduardo Viveiros de Castro, na qual cultura corresponde a

    um conjunto de estruturaes potenciais da experincia, capaz de suportar contedos tradicionais variados e de absorver novos (2002, p. 208).

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

    185

    Ele nem bem aprendeu a caminhar, e a filha mais nova j se aborrecera dele

    e o mandara ao galpo, junto com os demais negros. Foram eles e os pees

    que o ensinaram as tarefas do campo. Quando tinha oito anos, Don

    Guillermo Mascarea o viu uma tarde pastoreando cordeiros e o

    responsabilizou por cuidar do seu seleto rebanho. Nome nunca teve porque

    no fazia falta. Mas desde aquela tarde todo o mundo comeou a cham-lo

    de Negrito del pastoreo. Ele gostou daquilo, e teria apreciado mais se Don

    Guillermo no gritasse tanto com ele. Mais de um ano a caminhar com os

    cordeiros possibilitou um mtuo carinho e lentamente ele foi aprendendo as

    manhas e o idioma desses animais. Agora Negrito tinha com quem

    conversar. Os melhores momentos ele passava entre o sol e o pasto

    resmungando quando tinha que separar um cordeiro do monte. Uma vez, de

    tardezinha, viu que chegara um negro como ele, porm maior, que havia

    roubado um pedao de carne da cozinha. Ele foi para o palanque que o

    patro tinha atrs do galpo. Don Guillermo reuniu todos, pees e escravos,

    para que aprendessem a lio. Vrios dias o negro ficou penando ao sol. O

    Negrito pensou em desat-lo, porm, o mesmo disse-lhe que no, em uma

    lngua que misturava castelhano e banto, pois iriam agarr-lo. Ele agentou

    toda a semana, e quando o soltaram, escapou. Junto com ele foram outros

    trs. At a negra Accia partiu, e isto que ela tinha melhor condio na

    estncia. Assim foi que Negrito permaneceu sozinho, com apenas seus

    cordeiros na colina. Mais um ano se passou at que chegou o outro inverno,

    uma estao muito brava. Em uma dessas tardes, que melhor que nem

    tivesse amanhecido, comeou a garoar e ameaar a vir o cu abaixo, quando

    Negrito decidiu enquanto escurecia juntar todo o rebanho e separ-lo do

    monte para contar, antes de lev-los ao curral. Assim, deu-se conta que

    faltava um cordeiro. Ele deveria ter retornado ao monte quando Negrito

    distraiu-se. A pintinha negra era a que faltava. Bicho maldito, ele pensou quando se dirigiu para o monte. Esperava sentir medo, como ocorria sempre

    que ficava escuro. Porm, no sentiu nada. Saiu apenas com um fio de luz no

    horizonte tapado de nuvens de chuva. Retornando casa com o resto da

    manada, chegou com o sol baixo. O patro o esperava na casa, ao lado da

    cacimba, preocupado com os animais que j deveriam estar seguros no

    curral. Negrito explicou a demora. Ele teve m sorte: Don Guillermo havia

    tido um mal dia, pois uns malandros o haviam enganado e disparado para o

    Brasil, devido tambm os negros cimarron que fugiram, ele estava com

    sangue nos olhos: negro de merda! Para isto te dou a comer?. A seguir, deu-lhe uma trombada que o deixou cuspindo terra: levante!. As mulheres saram para ver que escndalo era aquele, e at elas ficaram espantadas

    quando aquele homem fechou a mo no rebenque que levava ao cinto e o

    bateu. Depois gritou sua filha que a culpa era dela, que ela poderia ter tido

    outro mascote, ao invs daquele negro intil. Depois da surra, Negrito se

    levantou como pode, somente para escutar Don Guillermo a ordem para que

    retornasse ao campo e voltasse somente com a ovelha perdida. Com os olhos

    tapados de lgrimas, ele se deteve ao olhar da filha, que abaixou a cabea em

    gesto de que no poderia fazer nada. Tratou de dizer a seu patro que era

    noite cerrada e sem lua, que havia uma tormenta e que no iria ver nada. O

    patro gritou que era problema dele. O homem arrancou de sua mulher um

    toco de vela que trazia e ironicamente lhe disse: para que te ilumines. Escura e feia estava a noite. E foi Negrito del pastoreo, cuidando para que

    no apagasse a sua vela. H quem diga que o cordeiro no somente retornou

    aos seus braos, mas o levou tambm a uma vida melhor, onde pudesse dar

    uma mozinha gente esquecida como ele. Outros que, na madrugada,

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    Negrito retornou estncia para pedir perdo, porm o patro no lhe deu, e

    que dessa vez a surra foi pior, to grande que o deram por morto e o

    deixaram para que as formigas o comessem. O certo que a av Colata o viu

    uma vez com sua ovelha nos braos, sorrindo, porque agora ele tinha nome:

    Negrito del Pastoreo. E no era qualquer nome, pois era o mais venerado em

    toda a campanha6.

    A passagem do mito, de um coletivo a outro, implica em traduo e rearranjos,

    haja vista as mudanas lingusticas e culturais. Em linhas gerais, a verso de Nstor

    Ganduglia mantm os princpios estruturantes da verso de Simes Lopes Neto, embora

    haja algumas transformaes de uma narrativa para a outra. Por exemplo, de incio, h a

    apresentao da personagem Maria Auxiliadora, que no encontra sua tesoura e que, a

    seguir, lembra-se de sua falecida av Colata, que comentava que quando passava por

    situao similar, pedia socorro ao Negrito del pastoreo.

    Da mesma forma, o Negrito del pastoreo do texto de Ganduglia tem pai e me

    explicitados, embora no nomeados. O primeiro foi jogado ao mar durante o trfico

    negreiro da frica para a Amrica e a segunda foi afastada quando Negrito foi adquirido

    por seu proprietrio. Tampouco Negrito tem nome de nascena. Em contrapartida, dessa

    vez, o estancieiro possui nome e sobrenome: chama-se Don Guillermo Mascarea. Ao

    invs de um filho malvado, Don Guillermo tem uma filha, cujo mascote torna-se

    Negrito. Quando ela se aborrece com seu presente de estimao, deixa-o no galpo

    junto com os demais escravos e pees. De qualquer modo, atenua-se o carter malvolo

    dessa personagem em relao ao menino, assim como trazido por Simes Lopes Neto.

    Por sua vez, o sentimento de Negrito aparece mais humanizado do que na verso

    anterior. Exemplo disso o momento em que ele sente raiva ao falar bicho maldito

    para a ovelha perdida, e, tambm, quando sente medo, relacionado s duras condies

    climticas daquele final de tarde de inverno e ao desaparecimento do cordeiro no monte.

    Da mesma forma, pode-se ver a humanizao do menino quando ele observa os olhos

    da filha do estancieiro e sua impotncia diante da deciso do pai de envi-lo outra vez

    at a colina em busca do animal perdido.

    Em contrapartida, o Negrito del pastoreo aparece com uma perspectiva menos

    judaico-crist do que na verso anterior, sendo que desaparece a figura de sua madrinha,

    representada por Nossa Senhora. Apesar disso, ele renasce em ambas as narrativas, no

    6 Essa verso de Nstor Gandglia muito parecida com a narrativa El Negrito Del Pastoreo, de Serafn

    J. Garca, acadmico e escritor muito conhecido no Uruguai, disponibilizada a mim pelo historiador e

    amigo Oscar Padrn Favre.

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    formigueiro, aps a surra dada pelo estancieiro, como castigo por ele no ter encontrado

    o cordeiro de pintinha negra que fora perdido na escura noite de temporal. Alis, ao

    invs do cavalo, animal que consiste em uma referncia simblico-cultural na

    construo da identidade gacha sul-rio-grandense, dessa vez ser o cordeiro um no-

    humano a criatura com a qual o Negrito mais dialogar durante a narrativa. Esse

    animal, por sua vez, uma importante referncia scio-econmica no Uruguai.

    Na primeira verso, o desaparecimento do cavalo baio e da tropilha origina-se de

    uma atitude nefasta dos guaraxains e do filho do patro, o que faz com que o Negrinho

    do pastoreio no perceba as razes de sua dificuldade, colocando um mal-entendido,

    uma carncia de comunicao entre essa personagem e o seu patro. J na segunda,

    trata-se de um esquecimento ou uma carncia de comunicao do prprio Negrito,

    devido s duras condies em que ele se encontrava durante o temporal. Nesse caso, no

    ocorre a intermediao de outra personagem na relao do escravo com seu dono

    (LVI-STRAUSS, 1993).

    A verso do Negrito del pastoreo de Ganduglia tambm no apresenta nem o

    movimento de inverso/reverso nem a subida/descida de alguma personagem no eixo

    vertical, ambas caractersticas presentes na verso de Simes Lopes Neto. Portanto, essa

    segunda interpretao apresenta-se de forma mais linear e pautada pelo eixo horizontal.

    Por consequncia, seu final surpreende por oferecer duas possibilidades de

    interpretao ao leitor. Na primeira, o cordeiro retornou aos braos de Negrito, passando

    a ajud-lo a ter uma vida melhor e, tambm, a ajudar todos que esquecem algo, selando,

    desse modo, uma aliana. Na segunda, Negrito retorna estncia sem o cordeiro,

    apanha mais forte ainda do estancieiro, morre, devorado pelas formigas aps ser

    jogado no formigueiro e, ento, renasce. Ao final, a narrativa traz o relato da

    personagem Maria Auxiliadora, que diz que sua av Colata viu o menino uma vez com

    um cordeiro nos braos, ao invs de montado em um cavalo, sorrindo porque recebera o

    nome de Negrito del pastoreo, tornando-se o mais venerado em toda a campanha.

    Esse estudo partiu da narrativa de O negrinho do pastoreio escrita por Simes

    Lopes Neto, ilustre autor da cidade de Pelotas; em seguida, apareceu o Negrito del

    pastoreo coletado por Nstor Ganduglia, em Rivera, ligado ao pas co-irmo Uruguai.

    No esforo de pensarmos a incidncia dessa personagem na Amrica Latina, remeter-

    nos-emos, a seguir, para a Argentina, agora em busca do el Quemadito.

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    El Quemadito, por Rafael Cano

    Se no Rio Grande do Sul h o Negrinho do pastoreio e no Uruguai h o Negrito del

    pastoreo, na Argentina, o folclorista brasileiro Lus da Cmara Cascudo (2002)

    apresenta-nos a personagem el Quemadito, da regio de Catamarca, a partir de dados

    de Rafael Cano, extrados do livro Del Tiempo de aupa, publicado em Buenos Aires,

    em 1930.

    De imediato, verificaremos o pargrafo escrito por Cmara Cascudo:

    Em 1830, durante a guerra civil argentina, o coronel Ache, comandante das

    foras unitrias, acampou em Miraflores e divertia-se num baile quando

    levaram sua presena um rasteador de lachiguanas abelhas negras que

    fabricam deliciosssimo mel. Chamava-se o homem Jos Carrizo e, de

    amedrontado e tmido, nem sabia falar. Os soldados diziam que ele era

    espio do general Quiroga e coronel Ache, sem ouvi-lo, sem atender seus

    soluos, mandou-o fuzilar imediatamente. Para poupar-se munio, tiveram

    a ideia de sacudir o pobre homem numa imensa fogueira que crepitava perto

    do baile. E Jos Carrizo foi queimado vivo, inocente. Seus gritos comoveram

    os assistentes e o coronel Ache, para animar o baile, danou uma cueca

    catamarquea com donaire e desenvoltura moa. Os restos carbonizados do

    malfadado rastejador de lachiguanas foram sepultados entre Miraflores e

    Huillapima (Capayn) e sobre seu tmulo plantaram um cruzeiro. E corre a

    mesma lenda que nimba a silhueta negra do pequenino escravo gacho. [a

    seguir, texto de Rafael Cano] Personas desconocidas, o quizs los deudos de

    la vctima, construyeron posteriormente la cruz de madera que an existe

    clavada al tronco de un quebracho, y desde hace ms de mdio siglo, todos

    los viajeros que pasan frente a la misma, se descubren respetuosamente y

    dejan una limosna para El alma del Quemadito, como Le llamam em la regin. Cuando se extravia un animal em el monte, los camperos acuden a

    pedirle que realice el milagro de encontrarlo, y como nunca les desfrauda,

    dia a dia se acrescienta la fe en el finao. Actualmente es un respeto religioso que tienen por el y sus numerosos devotos Le incienden velas y

    rezan. Jos Carrizo murij quemado y sin confesin, entre ls ridas tierras y jarillales de Capayan. La cruz colocada a la vera del camino,

    constitue una vivida protesta contra el crimen injusto de que fu victima, la

    cual, con el transcurso de los aos, h llegado a convertirse en objeto de

    culto popular (2002, p. 333).

    Ao compararmos essa verso de el Quemadito com a narrativa de Simes

    Lopes Neto, a primeira impresso que temos a de que essa narrativa afasta-se em

    demasia da mitologia, acentuando seu aspecto lendrio e aproximando-se sobremaneira

    da histria, devido presena de dataes cronolgicas, de nominao dos personagens

    humanos e do surgimento da instituio estatal.

    Ou seja, ao invs de relaes estabelecidas em uma estncia gacha ou uruguaia,

    a razo da intriga, agora, uma revoluo civil na Argentina, no sculo dezenove, em

    1830. Tambm o recorte passa do vis tnico para a ordem de uma sociedade divida em

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    classes sociais. De uma criana negra, escrava, sem nome, agora, estamos diante de um

    homem chamado Jos Carrizo, que originar el Quemadito, acusado de espionagem,

    inimigo do Estado argentino.

    Quer dizer, os personagens infantis presentes nas duas verses anteriores em

    O negrinho do pastoreio, o menino malvolo; em Negrito del pastoreo, a menina

    desinteressada desaparecem nessa narrativa. Somente aps o sepultamento de el

    Quemadito e a colocao de uma cruz de madeira sobre seu tmulo que se revelar a

    silhueta negra do pequenino escravo. Por sua vez, o desalmado estancieiro agora

    constitudo pelo injusto coronel Ache, o comandante das foras unitrias argentinas.

    As trs narrativas analisadas acima referem-se a personagens cujos nomes

    variam um em relao ao outro: Negrinho do pastoreio, Negrito del pastoreo e el

    Quemadito. Alm disso, embora transcorram em um perodo histrico relativamente

    prximo, essas narrativas revelam contextos scio-histricos diferentes: as duas

    primeiras remetem escravido sul-rio-grandense e uruguaia; a terceira, a uma

    revoluo civil na Argentina.

    Contudo, se prestarmos ateno ao pano de fundo dessa terceira narrativa,

    ficaremos surpresos ao constatarmos que a estrutura mtica permanece ilesa, revelando-

    nos o quanto mito e histria so complementares (HILL, 1988; GALLOIS, 1993). Um

    exemplo em que se pode perceber isso representado pela dificuldade de comunicao

    com as demais personagens, fato presente tanto em O negrinho do pastoreio e

    Negrito del pastoreo quanto em el Quemadito. Alm disso, os trs protagonistas

    tm alguma vinculao forte com algum animal, um no-humano: o primeiro, com o

    cavalo baio; o segundo, com o cordeiro de pintinha negra; e o terceiro, com as abelhas

    negras.

    Da mesma forma, Negrinho do pastoreio, Negrito del pastoreo e el

    Quemadito so condenados, mortos e considerados no merecedores de um

    sepultamento digno. Assim, o corpo do primeiro e o do segundo so jogados em um

    formigueiro, para no se gastar nem a enxada; enquanto o terceiro queimado vivo na

    fogueira de uma festa, para que seja economizada a munio. Finalmente, os trs

    personagens tornam-se responsveis por buscar os animais perdidos dos camponeses,

    atividade essa a que jamais se furtam, o que aumenta dia a dia a sua f nesses santos

    populares. Como menciona Lvi-Strauss:

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    Todo mito por natureza uma traduo, origina-se em outro mito

    proveniente de uma populao vizinha mas estrangeira, ou num mito anterior

    da mesma populao, ou ainda contemporneo, mas pertencente a outra

    subdiviso social [...] que um ouvinte trata de demarcar, traduzindo-o a seu

    modo, em sua linguagem pessoal ou tribal [...] e assim, sempre, deformando-

    o (2004, p. 7-8).

    A conexo at aqui realizada entre O negrinho do pastoreio, Negrito del

    pastoreo e el Quemadito j amplia a viso de que aquele seria uma lenda tpica do

    estado gacho. Roque Callage, por exemplo, afirma que o esprito verdadeiramente

    rio-grandense ideou apenas uma nica lenda de pura feio local, que a do Negrinho

    do Pastoreio (apud CMARA CASCUDO, 2002, p. 332).

    Conforme observamos, a vinculao de O negrinho do pastoreio a um dado

    local, regio ou pas precisa ser revista. Nesse sentido, ao retomar o objetivo deste texto,

    ou seja, analisar a narrativa dessa personagem a partir da perspectiva da mitologia, trago

    as seguintes questes: que outras narrativas e quais outras personagens conectam-se ao

    Negrinho do pastoreio, situando-o, portanto, em um territrio maior e em uma

    constelao mitolgica? Sob a perspectiva dessa ferramenta terico-metodolgica que

    destaca, por exemplo, a ideia da repetio, inverso e reverso uma primeira

    constatao a ser mencionada a de que a procura por objetos, peas e animais perdidos

    no uma exclusividade do Negrinho.

    Cmara Cascudo (2002) menciona que, em alguns lugares do estado de So

    Paulo e do Brasil, essa atividade atribuda a outra personagem, o Saci-Perer. Porm,

    diferentemente do bondoso e santo popular Negrinho do pastoreio, o Saci, primeira

    vista, irrequieto, moleque, travesso. Como equacionar tamanha disparidade? Vamos,

    ento, a mais um tpico deste trabalho. A partir de agora, o texto deixar de considerar

    as variantes de um mesmo mito e passar a observar um conjunto de dados em uma

    categoria de personagens e narrativas (CRPEAU, 2008).

    O Saci-Perer, por Monteiro Lobato e Cmara Cascudo

    No Brasil, estamos habituados a pensar o Saci-Perer atravs da obra do escritor

    Monteiro Lobato e do estado de So Paulo. Digamos que Simes Lopes Neto est para

    o Negrinho do pastoreio e para o Rio Grande do Sul assim como Monteiro Lobato

    est para o Saci-Perer e para o sudeste brasileiro.

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    De acordo com Monteiro Lobato, a partir de um inqurito realizado sobre essa

    personagem em O Estado de So Paulo, em 1917, o Saci-Perer caracteriza-se por ser

    humano, negro, usar gorro (em que inclusive estaria a sua fora) e roupas de cor

    vermelha, ter somente uma perna, agilidade surpreendente e mos furadas, ser muito

    travesso e brincalho, alm de emitir uma gargalhada assustadora, fumar cachimbo,

    furtar e incomodar as pessoas tanto em casas como na floresta. Nas palavras de Marcia

    Camargos,

    Hbrido e mutante, peo e cavaleiro, com o tempo mudou a colorao da

    pele e foi perdendo os atributos demonacos como rabo, chifres e cheiro de

    enxofre. Ganhou o pito e um gorro vermelho, derivado do barrete frgio

    adotado pelos governos republicanos mundo afora, mas sua estirpe africana,

    enfatizada, permeia a maioria das declaraes (apud MONTEIRO

    LOBATO, 2008, p. 16).

    Em linhas gerais, trata-se de um capetinha de uma perna, que apronta todas as

    travessuras do mundo s pessoas: azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, embaraa

    novelos de linhas, queima o feijo, gora os ovos da ninhada, vira prego de ponta para

    cima, atormenta os cachorros, atropela as galinhas, persegue os cavalos chupando seu

    sangue, enfim, no h maldade pequena que ele no faa. Ou seja, a partir de tais

    caractersticas, parece que estamos a descrever o avesso do Negrinho do pastoreio!

    Porm, seguiremos passo a passo a ideia de pens-los enquanto personagens de uma

    constelao de narrativas mitolgicas.

    Pode-se dizer que tanto o Negrinho do pastoreio quanto o Saci-Perer mantm

    o princpio de relao humano/no-humano/sobre-humano, mencionado acima enquanto

    uma caracterstica da mitologia. Alm disso, se considerarmos a origem de ambos,

    destaca-se, inicialmente, a matriz africana. Tratando-se do segundo, em depoimento de

    um escritor annimo trazido em O Saci-Perer: resultado de um inqurito, obra

    organizada por Monteiro Lobato, aparece o seguinte:

    As primeiras aparies do Saci deram-se no tempo da escravatura, nas

    grandes fazendas, cujos proprietrios eram senhores de muitos cativos. O

    incorrigvel demnio tinha grande predileo pelos monjolos, moinhos,

    engenhos e freqentava, com especialidade, as cozinhas, a senzalas, os

    sambas e batuques dos pretos (MONTEIRO LOBATO, 2008, p. 127).

    Vejamos, ainda, o testemunho de Casmurro, na mesma obra:

    Mas quem fez o Saci, Si Marinho? fio dessas negras desavergonhadas, que fica grave, dispois fica co medo das sinh, porque s veiz o fio do prprio sinh ou do sinh-moo, e vai

    larg no mato; morre pago e vira Saci. Esse negrinho o diabo, num

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    gente. Quantas veiz ele num distravia caad no mato; incrava a espingarda,

    distravia cachorro, intala cachorro dentro da toca. As veiz os cachorro vai

    numa cocha bonita, de repente some, o Saci que eles tava correndo. Vac

    querendo peg um Saci, quando v um rudimunho, joga um rosrio bento de

    sete padre-nosso, feito de conta da Virge, que t siguro. Querendo agrad ele

    d fumo e pinga, into um cumpanhero (MONTEIRO LOBATO, 2008,

    p. 154).

    Enfim, a ideia de que tanto o Negrinho do pastoreio quanto o Saci-Perer

    vinculam-se ao acontecimento histrico da escravido brasileira mais um passo

    importante para a consolidao da relao dessas personagens em uma mesma

    constelao.

    Imagens disponveis em:

    .

    Assim como o Negrinho, o Saci-Perer no uma personagem que se limita a

    fronteiras nacionais. Pelo contrrio, narrativas acerca dele existem em um vasto

    domnio do Brasil, em pases vizinhos e no velho continente. Por certo, mudam as

    localidades e outras caractersticas so atribudas a ele. Sobre isso, escreve Cmara

    Cascudo: ns conhecemos uma ave e um negrinho gil, com uma perna s, nuzinho, de

    carapua vermelha, amando assombrar o povo, correr a cavalo e desmanchar a alegria

    de quem encontra (2002, p. 122).

    Alis, Cmara Cascudo realiza, na obra Geografia dos Mitos Brasileiros, uma

    genealogia dessa personagem, identificando, entre outras, as seguintes caractersticas:

    Saci ave Tapera naevia, situado no Sul, Centro, Amaznia e Paraguai: uma espcie de demnio, que pratica malefcios pelas estradas, enganando os

    viajantes a partir do seu canto, fazendo-os perder o rumo;

    no nordeste brasileiro, a ave Tapera naevia chamada de Peitica e Sem-Fim e ligada a outra personagem, o Matinta-Perera;

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

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    alm da Tapera naevia, outras aves so associadas ao Saci-Perer: o cuco (Cuculus cayanus), a Marrequinha do Brejo, a Alma do Caboclo (Diplopterus naevius), o Tico ou Tinco, Passaro-feiticeiro, Pssaro-paj,

    uira-paj (2002, p. 122-3).

    A caracterizao do Saci enquanto pssaro evocada no testemunho do senhor

    Fabrcio Jnior, tambm na obra de Monteiro Lobato: Sa... ci... sa... pe... r...?! esse

    pssaro raras vezes era visto. Sentia o Saci prazer em dormir nas porteiras ou pontes,

    tanto que para os nossos caboclos grande ousadia passar pelos stios onde h pequenas

    porteiras ou pontes, afrontando o talzinho (2008, p. 170).

    Nas palavras de Cmara Cascudo:

    o Saci, estende, como um pssaro, suas lendas desde a Argentina at o

    Mxico. No Paraguai o Dromococcyx phasianellus, de Spix, que em Minas

    Gerais tem a denominao de Peixe Frito ou Peito Ferido segundo o professor Baslio de Magalhes. O Saci argentino, uruguaio, paraguaio, etc.

    o Iaci-ater, na Argentina conhecido como sendo o Crispin (2002, p. 123).

    Isto , o Saci-Perer identificado em vrios pssaros, cuja caracterstica

    comum enganar pelo canto, desnorteando as pessoas exatamente por no elas

    conseguirem localizar o lugar onde se encontra. Os ornitologistas comentam que as aves

    que so associadas a essa personagem tm um canto disperso e melanclico, que pode

    ser ouvido de todos os lados (CMARA CASCUDO, 2002).

    Desse modo, comea a se destacar, aqui, uma caracterstica que at ento no

    aparecera: a personagem Saci-Perer, em determinadas regies do Brasil, deixa a

    caracterstica andromrfica para assumir aspectos ornitomrficos. Ou seja, alm dos

    Saci afros, passa-se a ter uma diversidade de Saci aves. E isso nos remete

    imediatamente mitologia, devido qualidade da relao e transformao humano e

    no-humano. No rio Solimes, por exemplo, Cmara Cascudo menciona a seguinte

    narrativa:

    Um tuixaua tinha dois filhos e vivia feliz com eles. O tio odiava os sobrinhos

    e convidou-os para ajud-lo numa derruba de rvores para fazer um plantio.

    Os dois sobrinhos aceitaram. Chegados na floresta, o tio embriagou os dois

    rapazes e matou-os. Depois, um dos assassinados perguntou ao outro: o que

    foi que tu sonhaste? Sonhei diz o segundo que ns nos lavvamos com carajuru. O mesmo sonhei eu. E voltaram para a casa da av. Vendo-os, a velha ia aquecer o jantar, mas os dois netos disseram: Ah! Minha av, ns

    no somos mais gente, e sim s o esprito. Assim seja, minha av, ns te

    deixamos e quando ouvires cantar Tincuan! Tincuan! foge para casa e quando cantarmos Ti... ti... ti ento reconhecers. A cor vermelha que os netos tinham nos olhos era o sangue. Ficaram, desde ento, mudados em dois

    pssaros de agouro, de mistrio e de morte. Um o Uira-Paj, Alma de

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    194

    Caboclo, o Sem-Fim, o Saci. O outro a Mati-taper. Ambos, nascidos

    numa tragdia, espalham desgraas e semeiam pavores (CMARA

    CASCUDO, 2002, p. 124-125).

    A vinculao de Saci-Perer ornitologia e mitologia amerndia aparece em

    outro depoimento trazido por Monteiro Lobato. Agora, trata-se do senhor Renato

    Barros:

    Quanto minha opinio pessoal, tenho para mim que o Saci no outra

    coisa seno um dos muitos mitos indgenas, desvirtuando pelo preto e

    assimilado pelo branco. A forma original hoje evanescente do Saci,

    consoante o mito tupi, era a de uma pequena ave. O Saci atual, o moleque

    peralta, a forma africana do gnio indgena. Do lendrio tupi, o que mais se

    assemelha ao Saci, tal como nos legaram as abuses das nossas adorveis

    mucamas, o Curupira (MONTEIRO LOBATO, 2008, p. 200).

    Velhos cronistas brasileiros tambm relacionam o Saci-Perer (Saci taperer) do

    sul a outras personagens fortemente presentes no folclore brasileiro, como o Caipora, do

    centro, e o Maty-taper, do norte. O Saci-Perer tambm o Mati-taper, o Matinta-

    pereira dos paraenses (CMARA CASCUDO, 2002). Ainda segundo Cmara Cascudo

    (2002), em 1875, Gonalves Tocantins registrou sua presena entre os ndios

    Mundurucu, simbolizando a visita de seus antepassados, uma manifestao de presena

    das almas. Nessa cultura, a Matinta era como a Acau, o beija-flor, o bacau, todos

    portadores do esprito dos mortos. Tambm por fora do pensamento xamnico, alguns

    xams Mundurucu podem se transformar em Matinta, voar durante a noite e espalhar o

    pavor e a vingana.

    Barbosa Rodrigues, por sua vez, menciona que o Saci-Perer era companheiro

    do Caapira e tinha o corpo de um pssaro de somente um p. Alm disso, esse autor

    ainda assinala que o mito do Saci confundiu-se com muitos outros, especialmente com

    aqueles relacionados a aves de canto disperso ou a pssaros que tm o hbito de pousar

    com somente uma perna (CMARA CASCUDO, 2002).

    Pensando, ainda, o Saci-Perer em outros pases, como, por exemplo, no

    Paraguai, vemos que ele no o Negrinho, tampouco usa carapua vermelha. L, ele

    possui uma varinha mgica, atributo de origem europeia. Na Argentina missioneira,

    segundo Juan Ambrosetti, ele anda coberto por um formoso chapu (sombrero) de

    palha, carregando um basto de ouro na mo: o Yasy-yater rapta tambm moas e as

    leva para os montes. O filho desses amores ser yasi-Yater igualmente (CMARA

    CASCUDO, 2002, p. 129). Ainda na Argentina, a personagem Yasi tem atributos que

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    mesclam o Saci-Perer do sul do Brasil com o do Paraguai e da Argentina. Nas palavras

    de Cmara Cascudo, ano, vermelho, usa basto de ouro ou uma varinha encantada

    (2002, p. 129).

    Seguindo o pensamento desse folclorista, agora em direo Europa, nota-se

    que, nesse continente, h uma enorme quantidade de personagens com caractersticas

    similares ao Saci-Perer dos ndios, afros, caboclos e mestizos da Amrica Latina. Na

    Alemanha, aparece o Kodolde, uma espcie de Saci. Trata-se de um diabinho

    irrequieto, bulioso, agitado, atrapalhador do sossego domstico nas residncias onde

    ele se fixa (CMARA CASCUDO, 2002, p. 130). Da mesma forma, as crianas

    portuguesas tambm sentem medo de um negrinho que usa touca vermelha e que faz

    caretas e pilhrias. Tambm h meno a um molequinho de bota vermelha,

    extremamente vivo, inquieto e malicioso, que consome a papa de milho para, depois,

    vomit-la. Alis, em muitas narrativas, h a personagem Chapeuzinho Vermelho,

    destacando-se pelo uso de uma vestimenta de cor vermelha7. J na Escandinvia, existe

    o Troll, um pequeno ano esperto, vadio, que pula com uma perna s, enfim, um

    monstro horroroso e de formidvel poder, considerado o senhor dos bosques e dos

    rochedos (CMARA CASCUDO, 2002).

    Voltando Amrica do Sul, no Chile, entre os ndios Araucanos, h o

    Ketronamun, um duende ano que tem a mesma aparncia do Saci-Perer. Esse mito

    araucano a rplica da regio do Pacfico (CMARA CASCUDO, 2002). Em se

    tratando dos coletivos amerndios que habitam no Brasil, o Saci-Perer faz parte da

    mitologia dos Tupinamb litorneos. Alm desses, o reconhecido etnlogo Egon

    Schaden registrou sua presena em uma pesquisa realizada entre os Nandva e os

    Kayov8. Entre os Nandva, no Ararib, chamavam-no de atsygu, um ser responsvel

    por causar doena ou dor a quem o encontrasse. Os Guarani apenas escutam o seu

    assustador assobio, pois ningum consegue enxerg-lo. Quanto s suas caractersticas

    fsicas, ele pequeno, pretinho, de aparncia humana, provido de duas pernas, no

    fumante (SCHADEN, 1974).

    J nos Kayov, a partir de narrativas colhidas em Benjamin Constant, o nome

    xaxim-tarer. Schaden conclui que isso se deve ao maior contato desses amerndios com

    7 Tambm h a meno ao Ciapodo, personagem unpede e veloz: Ciapodo tinha um p alargado e to

    amplo que deitado de costas e erguida a extremidade contra a luz, adormecia, sombra (CMARA CASCUDO, 2002, p. 131). 8 Sigo a grafia usada pelo etnlogo.

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    a cultura brasileira ou paraguaia. Enfim, para eles, esse ser manifesta-se nos caminhos

    (e no no meio do mato) atravs de um assobio penetrante, que causa arrepios e faz

    estremecer as pessoas que o escutam. Os Kayov afirmam, ainda, que ele uma espcie

    de guarda da noite e que, quando duvidam de sua existncia, ele aparece com um pau, a

    fim de castigar o incrdulo. Trata-se de um meninote, aparentando cinco anos de idade,

    bpede, de cor branca ou preta. A sua fora mgica reside no bastozinho que carrega

    consigo. Nas palavras desse etnlogo, tirando-se-lhe o bastozinho, perde a fora que

    possui. Gosta muito de fumo e de pinga. Se a gente quer v-lo, basta por uma garrafa de

    pinga e um pouco de tabaco no lugar em que se ouve o assobio. Embebedar o xaxim-

    tarer o recurso para lhe tirar o basto (1974, p. 157).

    Em linhas gerais, o Saci-Perer tem uma surpreendente e variada genealogia,

    caracterstica essa que s pode ser compreendida na ordem do pensamento mitolgico.

    Inegavelmente, tais origens nos possibilitam pensar que, talvez, estejamos concebendo o

    Negrinho do pastoreio de modo demasiadamente unilinear, apenas enquanto uma

    criana escrava, pouco falante, crist, bondosa e exclusiva de uma cultura e regio. Por

    isso o esforo de colocarmos o Negrinho do pastoreio, o Negrito del pastoreo e el

    Quemadito junto do Saci-Perer, do Mati-taper, da Matinta-pereira, do xaxim-tarer,

    do Saci ave Tapera naevia, entre outros, como personagens de uma mesma constelao

    de narrativas mitolgicas.

    Porm, se os dados apresentados acima j colocam o Negrinho do pastoreio e

    o Saci-Perer em uma relao, atravs da ordem da inverso simtrica

    bondoso/malvolo, busca objetos perdidos das pessoas/esconde objetos , este artigo

    ainda prescinde de alguma narrativa que estabelea uma mediao entre eles, para alm

    da origem africana e do processo histrico da escravido. Desse modo, prevalecer a

    caracterstica do pensamento mitolgico, que a busca de mediao para termos em

    oposio. Assim, no prximo tpico, eu apresentarei O Saci Verdadeiro, do autor

    Olvio Jekup.

    O Saci-Perer, por Olvio Jekup

    Olvio Jekup neto de uma Guarani-Nhandeva de Piraju e escreve poemas desde os

    treze anos de idade. Ele nasceu em 1965 e, em 1998, iniciou seus estudos em Filosofia,

    na Universidade Catlica do Paran, sendo atualmente professor de Histria e de

    Filosofia e escritor da literatura nativa. Esse amerndio j publicou Iarandu, o co

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    197

    falante; 500 anos de angstia; Ajuda do Saci Kambai; As queixadas e outros cantos

    guarani, entre outras obras.

    O livro escrito por Jekup, intitulado O Saci verdadeiro, divide-se em duas

    narrativas: O ndio s de um brao e O Saci verdadeiro. A primeira narrativa traz a

    intriga de um indiozinho chamado Tup Mirim, que possua somente o brao esquerdo.

    Muitas coisas ele no podia fazer, o que o deixava muito triste: Caramba, por que fui

    nascer sem um brao? [...] Ah, como me faz falta o outro brao. Se eu tivesse o outro,

    eu queria ser um grande nadador, pensou (2002, p. 1-2). O pai desse menino sempre o

    recomendava a no andar sozinho no mato, pois poderia aparecer uma ona ou um

    esprito mau. Porm, ele no se resignava a esse pedido e ia constantemente para a

    floresta. Mal sabia ele que uma personagem sempre o protegia: o Saci-Perer.

    O Saci-Perer de Kekup era um esprito bom, um ndio pequeno, bom ouvinte

    dos pedidos das pessoas, bpede, que se tornava visvel somente quando queria e para

    as pessoas boas de quem gostasse. Seu poder concentrava-se em um colar de nome

    bata9, que ele trazia pendurado em seu pescoo (JEKUP, 2002, p. 6).

    Certa vez, quando Tup Mirim foi para a floresta e l encontrou-se com o Saci-

    Perer, o primeiro fez o seguinte pedido ao bom esprito:

    Eu estou precisando de ajuda, voc quer e pode me ajudar? Sim, eu vou te ajudar. De repente, o Saci usou seu poder e fez com que surgisse um brao em Tup-Mirim, s que este nem percebeu. Comeou a falar o que queria, isto ,

    sem perceber que o que queria, o Saci j tinha feito. De repente o Saci

    comeou a rir e falou:

    Voc no est vendo? O qu? O brao que voc pediu! Quando ele olhou e viu que estava com um brao, a emoo foi tanta que

    comeou a chorar.

    Nossa! Pensei que voc ia rir de alegria e est chorando! Tup-Mirim deu um abrao no Saci e murmurou:

    Vou ficar te devendo pelo resto da vida. No, no tem nada de dever, te ajudei porque voc bom e merece. Obrigado, Saci, serei seu grande amigo. Nisto o pequeno em tamanho, mas grande no poder, falou sorrindo:

    Tambm serei seu amigo! (JEKUP, 2002, p. 7-8).

    Embora o Saci-Perer tenha dado o brao a Tup Mirim, por uma questo de

    discrio, ele diz que os outros no podero enxerg-lo: no quero que os outros vejam

    e nem saibam (JEKUP, 2002, p. 8). A aquisio do invisvel brao direito possibilitou

    9 Palavra guarani para o colar que o Saci usa e lhe d poder (JEKUPE, 2002, p. 8).

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    a Tup Mirim lidar com faco e com arco e flecha, caar, nadar no rio, subir em rvores

    e namorar uma menina guarani recm chegada aldeia, a bela Kerex. Alis, na relao

    de Tup Mirim com Kerex, o Saci-Perer cumpre o papel de um deus do amor

    (JEKUP, 2002). Olvio Jekup (2002) encerra a narrativa informando que, quando

    Tup Mirim precisava falar com o Saci-Perer, ele ia para a mata e logo essa

    personagem aparecia sua frente. Eles conversavam bastante noite, at aparecer o

    sono para Tup Mirim, que, ento, retornava para sua casa, enquanto o Saci ficava na

    mata olhando e cuidando dos animais.

    J na narrativa O Saci verdadeiro, Jekup apresenta a personagem Kara, uma

    criana guarani que adora escutar histrias do Saci-Perer transmitidas pela av e pela

    me. Certo dia, aos oitos anos de idade, ele foi para a escola e l comeou a ouvir

    narrativas muito diferentes das que ouvia sobre o Saci. As histrias que a professora

    contava, que eram as de Monteiro Lobato, conflitavam com os pensamentos de Kara,

    porque, nelas, o Saci aparecia como uma personagem m, negrinho, de uma perna s,

    usando cachimbo preto e carapua vermelha na cabea, assustando a todos.

    Intrigado com tais descries dessa personagem, um dia, na sua aldeia, Kara

    dirige-se para o mato e fala para si mesmo: Se o Saci aparecesse para mim, eu saberia

    de que jeito ele (JEKUP, 2002, p. 32). Logo aps isso, o Saci surge para ele e os

    dois estabelecem um longo dilogo:

    Ento voc sabe da histria que eles contam do Saci negrinho. Sim, eu sei. Ento, quer dizer que no existe nenhum Saci negrinho como eles dizem? No, no existe. E s existe voc? No, eu tenho um irmo. Eu sou protetor dos animais e meu irmo, protetor das aves.

    Pois , eles falam que existem vrios Saci e que eles nascem da taquara. criao deles. [...] A ele [Kara] foi para sua casa e muito contente, porque viu pelos seus

    prprios olhos que ele existe mesmo e que um ndio (2002, p. 33).

    Em linhas gerais, a narrativa de Olvio Jekup aproxima, por muitas razes, o

    Saci-Perer da mitologia guarani com o Negrinho do pastoreio. Nessa verso do Saci,

    essa personagem oportuniza ao Tup Mirim aquilo que ele mais procurava, j que ele

    era diferente das demais crianas na aldeia: seu brao direito. Nesse caso, o Saci-Perer

    uma personagem bondosa, discreta, mais falante, que anda pela floresta e ajuda as

    pessoas.

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    Imagens do livro O Saci verdadeiro.

    Autor: Olvio Jekup.

    A partir dessa narrativa, a oposio inicial entre o Negrinho do pastoreio e o

    Saci-Perer atenua-se totalmente, possibilitando-nos encontrar vrios pontos de

    isomorfismo, de simetrizao entre essas duas personagens: inicialmente, o primeiro

    vinculado a uma matriz africana; o segundo, guarani, tem matriz amerndia. Agora,

    estamos diante de duas personagens generosas, que so boas para aqueles que lhes

    fazem um pedido com brandura.

    A narrativa de Jekup refora a relao do Saci-Perer com as aves, apresentada

    por Cmara Cascudo (2002) e por Monteiro Lobato (2008), na medida em que identifica

    um Saci ligado aos animais e, outro, aos pssaros. Alis, a segunda narrativa de Olvio

    Jekup surpreende ao informar que o Saci-Perer tem um irmo gmeo. Portanto, no

    se trata mais de apenas um Saci, mas de dois, que trabalham em parceria em nome do

    bem. A gemelaridade um fenmeno presente na mitologia de diversas sociedades

    humanas, em especial, na dos amerndios e na dos afros na Amrica.

    Cabe, aqui, um ltimo desafio ao texto por mim delineado: diante do esforo que

    estamos empreendendo para aproximarmos o Negrinho do pastoreio do Saci-Perer,

    poderamos pensar em um irmo gmeo para o primeiro? Vamos ao ltimo tpico deste

    texto.

    guisa de uma proposio: a gemelaridade do Negrinho do pastoreio, por Oliveira Silveira

    Atravs da gemelaridade do Saci-Perer, trazida por Olvio Jekup, ns retornamos ao

    Negrinho do pastoreio, mas, dessa vez, atravs de outro gnero narrativo a poesia.

    Como mencionado no incio deste artigo, diferentemente de outros autores (GOODY,

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

    200

    2012), parto do pressuposto de que a poesia parte da mitologia, nesse caso, da

    mitologia implcita. Trata-se, aqui, de um poema escrito por um intelectual afro, que

    trabalhou como professor estadual durante toda sua vida em Porto Alegre, recentemente

    falecido: Oliveira Silveira.

    No livro pstumo intitulado Obra reunida, organizado por seu amigo Ronald

    Augusto, h uma srie de poemas de Oliveira Silveira em homenagem ao Negrinho do

    pastoreio: Negrinho e variaes, Histria do Negrinho, Negrinho, Negrinho do

    pastoreio e Estria. Vejamos alguns deles:

    Negrinho e Variaes

    O negrinho guarda rebanho

    de ovelhas no esto Oriental.

    (Por meu lado castelhano

    que ele seja o meu zagal.)

    O Negrinho aqui monta o baio

    carreira de cancha reta.

    (Eu sei que no cruzo a raia

    no fim dos quinhentos metros.)

    O negrinho nestes pagos

    guarda a tropilha de um pelo.

    (Vo ficar tordilho-negras

    gruvinhas do meu cabelo.)

    O negrinho perdeu o petio

    o novilho o pastoreio.

    (Pra o destino no tem lao

    no tem bucal no tem freio.)

    Lhe entregou Mao malfazeja

    pras formigas de sua cor.

    (Um dia bendita seja

    mo que me cubra de flor.)

    Toco de pito ou velinha

    naco de fumo oferenda. (Que ache a resposta e diga

    qual de ns dois mais lenda.)

    Negrinho do Pastoreio

    E contam que uma vez

    um fazendeiro grande

    um formigueiro grande

    um negrinho pequeno

    porque a tropilha saiu campo a fora

    virgem nossa senhora!

    Estria

    E da prxima vez lhes contarei a estria dos dois

    negrinhos que depois de dar chutes no mar por t-los

    trazidos para a Amrica comearam a empurrar

    as ondas para leste, a fim de que corressem ao

  • Antares: Letras e Humanidades | vol.5 | n10 | jul-dez 2013

    201

    contrrio, e quando se deram conta estavam nas

    costas dfrica (SILVEIRA, 2009, p. 271).

    Encontramo-nos, ento, novamente, diante do Negrinho do pastoreio, ou,

    melhor dizendo, diante de dois negrinhos, ambos entre dois continentes a Amrica e a

    frica. Isso refora trs aspectos: primeiro, o quanto tornou-se instigante repensar o

    Negrinho do pastoreio a partir da molecagem do Saci-Perer, de Monteiro Lobato;

    segundo, a importncia do Saci-Perer guarani, trazida por Egon Schaden e, em

    especial, por Olvio Jekup; terceiro, o quanto o Negrinho do pastoreio no est

    isolado de outras narrativas mitolgicas e de diversos outros personagens, tanto

    andromrficos quanto ornitomrficos. Pelo contrrio, este trabalho demonstrou que o

    Negrinho do pastoreio, ao lado do Negrito del pastoreo e do el Quemadito

    argentino, e, ainda, juntamente do Saci-Perer negrinho, do Saci ave, do Matinta-Perera,

    do Mati-taper, do Tico, do Yasi-Yater, do Atsygu, do Xaxim-Tarer, do Saci-

    Perer guarani, do Saci-Perer irmo, entre outros, so personagens que formam uma

    constelao mitolgica. E, como os mitos so interminveis, podemos pensar que outras

    narrativas e personagens podero conectar-se a qualquer momento ao Negrinho do

    pastoreio e ao Saci-Perer.

    Levando em conta as narrativas acima mencionadas, considero que os Saci-

    Perer gmeos guarani, em que um protetor dos animais e outro das aves, conforme a

    narrativa de Olvio Jekup, so as personagens que realizam a mediao mitolgica da

    oposio inicial figurada neste texto entre o bondoso Negrinho do pastoreio escravo e

    o sapeca Saci-Perer, tambm negro. Vejamos um esquema dessa mediao:

    O negrinho do pastoreio

    (Simes Lopes

    Neto)

    Negrito del pastoreo (Nstor

    Ganduglia),

    el Quemadito

    argentino

    (Rafael Cano)

    Negrinho do Pastoreio gmeo

    (Oliveira

    Silveira)

    Saci-Perer guarani protetor dos animais e Saci-Perer guarani

    protetor das aves; Saci-Perer

    guarani bondoso

    (Olvio Jekup)

    Atsygu e Xaxim-Tarer

    (Egon Schaden)

    Saci ave de canto

    melanclico

    (Cmara Cascudo)

    Saci-Perer malvolo

    (Monteiro

    Lobato)

    Ketronamun, Troll, Kodolde

    (Cmara

    Cascudo)

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    202

    notvel que os Saci-Perer da narrativa de Olvio Jekup nos possibilitam

    realizar a mediao entre o Negrinho do pastoreio e o Saci-Perer. Enfim, so trs

    personagens oriundas da mitologia amerndia que aproximam duas personagens afro

    colocadas, aparentemente, em oposio, deixando claro que todos elas so parte de uma

    mesma constelao mitolgica. Como nos ensina Beatriz Perron Moiss, cada mito

    pertence a vrios grupos de transformao, tantas quantas podem ser as camadas

    sobrepostas em sua estrutura folhada (2011, p. 873).

    As gemelaridades do Saci-Perer e do Negrinho do pastoreio, recm trazidas,

    abriram uma janela para o aprofundamento da compreenso dessa constelao

    mitolgica e da sua vinculao s pessoas de um dado territrio. Contudo, trata-se de

    um tema a ser abordado em um novo texto sobre a relao entre o Negrinho do

    pastoreio e o Saci-Perer, a partir de um trabalho de campo em coletivos amerndios,

    afros (quilombola) e brasileiros na regio sul do Rio Grande do Sul.

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    * Trabalho recebido em 14/03/2013 e aprovado em 28/11/2013. Este artigo vincula-se ao projeto

    Mitologia, Territrio e Memria Ambiental: um estudo etnolgico com populaes costeiras da bacia hidrogrfica Lagoa dos Patos, Rio Grande do Sul, Brasil, cadastrado na Universidade Federal de Pelotas (Cdigo no COCEPE: 70300011), sob minha coordenao. **

    Professor Doutor no Bacharelado em Antropologia e no Mestrado em Antropologia da Universidade

    Federal de Pelotas; Coordenador do Ncleo de Etnologia Amerndia (NETA/UFPel). Atua nas seguintes

    reas: etnologia amerndia, mitologia, sociedades j, sistemas de metades, xamanismo, descendentes

    Charrua, Minuano, Guarani-missioneiros e Tapes.