Rogério Terra

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Rogério Terra Júnior O Dadaísmo revisitado: formas de hibridação na linguagem audiovisual contemporânea Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção de título de Mestre em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação da UFJF Orientador: Prof. Nilson Assunção Alvarenga Juiz de Fora 2009

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Transcript of Rogério Terra

  • Rogrio Terra Jnior

    O Dadasmo revisitado: formas de hibridao na linguagem audiovisual contempornea

    Trabalho de concluso de curso apresentado como requisito para obteno de ttulo de Mestre em Comunicao Social na Faculdade de Comunicao da UFJF

    Orientador: Prof. Nilson Assuno Alvarenga

    Juiz de Fora

    2009

  • 2

  • 3

    Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol.

    E chegou ao fim da vida jogando xadrez, como se

    fosse um manifesto artstico. Meu av tambm

    terminou num urinol jogando xadrez.

    Bard Holland

  • 4

    RESUMO

    A visualidade contempornea, tanto em produtos destinados ao mercado quanto em obras que

    se pretendem alternativas ou artsticas, tem sido marcada por um fenmeno bastante evidente:

    a presena de signos e elementos oriundos de diversas matrizes, paradigmas e estilos,

    articulados de forma simultnea num mesmo campo visual. Esta estratgia de significao

    possui razes no movimento Dadasta nas artes visuais, surgido num contexto de profundas

    transformaes cientficas e filosficas, e se desenvolveu durante o sculo XX, para ser

    recentemente consolidada e potencializada pelas tecnologias digitais de captao, criao e

    tratamento de imagens. Este hibridismo da imagem, que se manifesta de maneira evidente e

    radical ou dissimulada e sutil, de acordo com a natureza do produto, atende tanto ao ideal

    anrquico de desconstruo do significado, empreendido pelos dadastas no incio do sculo

    XX, quanto construo de significados padronizados e estanques na comunicao visual

    recente ou resignificao dos elementos da imagem na vdeo-arte contempornea.

    Palavras-chave: Comunicao. Dadasmo. Hibridao. Audiovisual

  • 5

    ABSTRACT

    The contemporary visuality, both in products for the marketplace and at work that is intended

    to alternate or artistic has been marked by a phenomenon quite clear: the presence of signs

    and elements from different sources, patterns and styles, articulated simultaneously in the

    same visual field. This strategy of meaning has formsroots in the Dadaist movement, in the

    visual arts, which come to light in a context of profound scientific and philosophical

    transformations, and developed during the twentieth century to be consolidated and recently

    potentiated by digital technologies to capture, creation and processing of images. This

    hybridity of the image, that is manifested so clear and radical or covert and subtle, according

    to the nature of the product, serves as the ideal anarchic deconstruction of meaning,

    undertaken by the Dadaists in the early twentieth century, as the construction of standardized

    meanings and tight in recent visual communication or reframe of the picture elements in

    contemporary video art.

    Keywords: Communication. Dada. Hybridization. Audiovisual

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Imagem 1 As amapolas. Pintura impressionista de Claude Monet ........................... 18

    Imagem 2 Moa com bandolin. Pintura cubista de Pabloicasso ............................... 19

    Imagem 3 Cabea de Mulher. Pintura de Pablo Picasso ......................................... 19

    Imagem 4 Monalisa. Pintura renascentista de Leonardo Da Vinci ........................... 21

    Imagem 5 O rouxinol chins. Colagem dadasta de Max Ernest .............................. 26

    Imagem 6 Da dandy. Colagem dadasta de Hannah Hch ........................................ 27

    Imagem 7 Dada cino. Colagem dadasta de Raul Hausmann ................................... 29

    Imagem 8 O culpado ainda desconhecido. Colagem dadasta de George Grozz ... 29

    Imagem 9 O jardim das delcias. Pintura de Hieronymus Bosch .............................. 37

    Imagem 10 O jardim das delcias (detalhe) ................................................................ 37

    Imagem 11 O inferno. Pintura de Hieronymus Bosch ................................................ 38

    Imagem 12 O inferno (detalhe) ................................................................................... 38

    Imagem 13 Capa de folheto, elaborada por Lester Beal ............................................. 41

    Imagem 14 Design para pgina de revista, elaborado por Bradbury Thompson ........ 42

    Imagem 15 Design da Bauhaus ................................................................................... 44

    Imagem 16 Design da Bauhaus ................................................................................... 44

    Imagem 17 Capa de publicao da escola Bauhaus, elaborada por Herbert Bayer .... 44

    Imagem 18 Fotocolagem de Peter Blake .................................................................... 46

    Imagem 19 Do they know its Christmas ? Colagem de Peter Blake ......................... 47

    Imagem 20 O que que torna o lar dos nossos dias to diferente, to atraente?

    Fotocolagem de Richard Hamilton .................................................................................. 47

    Imagem 21 Mick Jagger. Serigrafias de Andy Warhol ............................................... 48

    Imagem 22 Cena do filme Corao Satnico .............................................................. 80

    Imagem 23 Cena do filme Expresso da meia-noite .................................................... 80

  • 7

    Imagem 24 Cena do filme Cidade de Deus................................................................. 81

    Imagem 25 Cena do filme Cidade de Deus................................................................. 81

    Imagem 26 Quatro imagens do filme Blade Runner................................................... 82

    Imagem 27 Duas cenas do filme Pulp Fiction ............................................................ 83

    Imagem 28 Duas cenas dos filme Kill Bill volume 1 e Kill Bill Volume 2,

    respectivamente. .............................................................................................................. 83

    Imagem 29 Cena do filme X-men ............................................................................... 84

    Imagem 30 Cena do filme Homem Aranha ................................................................ 84

    Imagem 31 Seqncia de fotogramas do filme Hulk .................................................. 85

    Imagem 32 Dois fotogramas do filme Hulk ................................................................ 86

    Imagem 33 Quatro cenas do filme Sin City, justapostas aos desenhos correspondentes dos

    quadrinhos originais ........................................................................................................ 87

    Imagem 34 Pgina da histria em quadrinhos Batman Deathblow ............................ 87

    Imagem 35 Duas cenas do filme Batman Begins ....................................................... 88

    Imagem 36 Tira de Caco Galhardo ............................................................................. 88

    Imagem 37 Dois fotogramas de Corra Lola, Corra. Ao real e desenho animado na mesma

    ao dramtica ................................................................................................................. 89

    Imagem 38 Quatro fotogramas do filme Assassinos Por Natureza. Multiplicidade de

    padres visuais utilizados no filme: ao real, ao real inserida sobre uma pgina de jornal,

    desenho animado e abertura de programa televisivo. ...................................................... 89

    Imagem 39 Seis frames do vdeo Parabolic People, de Sandra Kogut ....................... 95

    Imagem 40 Trs fotogramas de O Livro de Cabeceira (Peter Greeneeay) ................. 96

    Imagem 41 Inciso com a faca de cozinha dada atravs da barriga de cerveja da ltima

    poca cultural weimar alem. Colagem dadasta de Hannah Hch ............................... 106

    Imagem 42 Colagem dadasta de Raoul Hausmann.................................................. 108

    Imagem 43 Quadro i Colagem dadasta de Hans Arp ............................................ 110

    Imagem 44 O elefante das Clebes. Pintura surrealista do dadasta Max Ernest .... 112

    Imagem 45 Isto no um cachimbo. Pintura de Rene Magritte ............................... 113

  • 8

    Imagem 46 O Carnaval de Arlecrim, pintura de Juan Mir...................................... 113

    Imagem 47 Fotograma do filme The Alphabet ......................................................... 115

    Imagem 48 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 115

    Imagem 49 Fotograma do filme The Alphabet ......................................................... 116

    Imagem 50 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 116

    Imagem 51 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 117

    Imagem 52 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 117

    Imagem 53 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 118

    Imagem 54 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 118

    Imagem 55 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 119

    Imagem 56 Seqncia de fotogramas do filme The Alphabet .................................. 119

    Imagem 57 Fotograma do filme The Alphabet ......................................................... 120

    Imagem 58 Dois frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................................. 122

    Imagem 59 Dois frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................................. 123

    Imagem 60 Duas cenas do filme Hulk ...................................................................... 123

    Imagem 61 Seqncia de frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................... 124

    Imagem 62 Dois frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................................. 124

    Imagem 63 Seqncia de frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................... 128

    Imagem 64 Seqncia de frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................... 128

    Imagem 65 Seqncia de frames do vdeo clipe Pontes Indestrutveis .................... 129

    Imagem 66 Desenho i. Quadro de Kurt Schwitters .................................................. 130

    Imagem 67 Sem ttulo (maio 191). Colagem de Kurt Schwitters ............................. 131

    Imagem 68 Izabella Sforza. Pintura de Piero Della Francesca ................................. 135

    Imagem 69 Izabella Sforza (segundo Piero Della Francesca). Pintura de Fernando

    Botero ................................................................................................................ 135

    Imagem 70 Anunciao. Pintura de Leonardo Da Vinci. Fonte ............................... 136

  • 9

    Imagem 71 Pormenores de pinturas do Renascimento. Pintura de Andy Warhol .... 136

    Imagem 72 Duas gravuras de Shepard Fairey (Obama e Che Guevara) .................. 136

  • 10

    SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 12

    1 CINCIA, FILOSOFIA, ARTE E VANGUARDAS: PRIMEIRAS RUPTURAS,

    NOVOS CAMINHOS ................................................................................................. 16

    2 RECOLHER, RECOMBINAR E RE-SIGNIFICAR OS FRAGMENTOS DO

    VELHO MUNDO EM RUNAS: ENTRA EM CENA O DADASMO ................ 26

    2.1 VO RASANTE SOBRE ZURIQUE E BERLIM: UM PAINEL AMPLO SOBRE O

    MOVIMENTO.............................................................................................................. 26

    2.2 UM CARNAVAL DE SIGNOS VISUAIS: O DADASMO VISTO ATRAVS DAS

    LENTES DE BAKHTIN .............................................................................................. 30

    3 DO DADASMO MANIPULAO DIGITAL DE IMAGENS: PONTES,

    PROCESSOS, CORRESPONDNCIAS ................................................................. 40

    3.1 DESDOBRAMENTOS DO DADASMO NO SENTIDO DA INTERAO COM O

    PBLICO: BAUHAUS E POP ART ............................................................................ 41

    3.2 DESDOBRAMENTOS DO DADASMO AINDA NO SENTIDO DA RUPTURA:

    MOVIMENTOS DE CONTRACULTURA ................................................................. 49

    3.3 TECNOLOGIA DIGITAL, COMPUTADORES E INTERNET: O CENRIO

    CONTEMPORNEO PS-CONTRACULTURA ...................................................... 54

    3.4 O CENRIO CONTEMPORNEO E SUA RELAO COM A PRODUO DE

    IMAGENS: PRIMEIRA OBSERVAES ................................................................. 58

    3.5 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O DETERMINISMO TECNOLGICO ........ 61

    4 A VISUALIDADE HBRIDA CONTEMPORNEA: ENTRE A OPACIDADE E

    A TRANSPARNCIA ................................................................................................ 70

  • 11

    4.1 O HIBRIDISMO NA CONTEMPORANEIDADE: GLOBALIZAO E AMBIENTE

    URBANO...................................................................................................................... 71

    4.2 A EXTENSO DO FENMENO DO HIBRIDISMO PARA O AUDIOVISUAL . 73

    4.3 O OPACO E A TRANSPARNCIA: HIBRIDAES EVIDENTES E NO

    EVIDENTES ............................................................................................................................ 77

    4.4 O CINEMA NARRATIVO E A HIBRIDAO NO EVIDENTE ....................... 79

    4.5 O HIBRIDISMO EVIDENTE E SUA RELAO COM A VISUALIDADE

    DADASTA .............................................................................................................................. 90

    5 ESTUDO ESPECFICO DE ALGUMAS OBRAS ............................................. 100

    5.1 CATEGORIAS PARA A LEITURA POSSVEL DE UMA HIBRIDAO QUE SE

    EVIDENCIA ............................................................................................................... 101

    5.2 O HIBRIDISMO NA ARTE VISUAL DADASTA: ALGUNS CASOS

    PARTICULARES ....................................................................................................... 105

    5.3 DUAS PEAS DE AUDIOVISUAL CONTEMPORNEO COM HIBRIDAO

    EVIDENTE: ENTRE O BVIO E O INUSITADO, O ESTRANHAMENTO E O

    BELO .......................................................................................................................... 111

    5.3.1 Delrios de Lynch: inusitado e perturbador ..................................................... .. 111

    5.3.2 A viagem ldica e lisrgica do vdeo clipe: leve e belo, apesar das

    Obviedades ......................................................................................................................... .. 121

    5.3.3 ltimas palavras sobre um e outro .................................................................... .. 129

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 132

    REFERNCIAS ................................................................................................................ .. 138

  • 12

    INTRODUO

    Velhas novidades, mesmo que realmente velhas, justo supor, costumam adquirir

    novos significados quando colocadas em novos contextos sociais ou histricos. assim que

    apresentaremos aqui alguns aspectos de uma suposta nova linguagem que no nos parece

    to nova assim, mas que simplesmente dialoga com outros momentos da histria da arte e da

    comunicao de massas, adquirindo outra dimenso quando retirada dos seus contextos

    originais e colocada no cenrio atual. Nos referimos chamada linguagem das novas mdias1

    A tecnologia digital trouxe ao universo da produo de imagens visuais, a

    possibilidade de algumas estratgias de significao, como j dissemos, antes apenas

    vislumbradas ou realizadas de forma muito dispendiosa e extremamente limitada.

    (mdias que tm se relacionado de maneira estreita e intensa com as mdias mais tradicionais:

    o design, o cinema, a TV e as mais diversas formas de visualidade). O impacto da tecnologia

    digital, matriz destes novos meios, tem atribudo aos meios tradicionais caractersticas

    estticas aparentemente novas, antes apenas idealizadas, projetadas ou tangenciadas por

    tcnicas e procedimentos ainda precrios ou insuficientes.

    2 Entretanto,

    algumas associaes que pretendemos estabelecer no decorrer deste trabalho, sugerem

    igualmente uma possibilidade de relativizao dessa afirmao. Destacamos que nosso

    objetivo aqui , simplesmente, lanar um questionamento que no invalida a hiptese

    anteriormente enunciada, mas ao contrrio, procura acrescentar dados de diversas

    bibliografias que contribuam para a ampliao das possibilidades de abordagem de alguns

    aspectos do fenmeno imagem digital, vinculando seus fundamentos estticos (e no

    meramente tcnicos) a processos histricos e momentos artsticos anteriores, o que tornaria a

    tecnologia digital e o ambiente de redes elementos intensificadores de tal fenmeno e no

    fatores geradores preponderantes.3

    1 O termo new media aparece na obra do realizador e crtico Lev Manovich, designando as novas formas culturais que dependem dos computadores para sua distribuio: CD-room e DVD-room, sites da web, jogos de computador e aplicaes de hipertexto e hipermdia. (MANOVICH, 2008a. p2) 2 Veremos adiante o sentido e as implicaes exatas dessa informao quando tratarmos de forma especfica da questo do hibridismo na visualidade contempornea. 3 No pretendemos privilegiar qualquer espcie de determinismo ideolgico em detrimento de um suposto determinismo tecnolgico. Trataremos esta questo de maneira especfica no captulo 3.

  • 13

    De todo o espectro da produo de imagens nas trs ltimas dcadas, marcado pela

    forte presena da tecnologia digital em seus mais diversos formatos, um campo nos interessa

    em particular: a produo audiovisual. Tomaremos, portanto, como objeto de anlise, duas

    peas de audiovisual produzidas em pocas distintas, embora relativamente prximas, que

    guardam entre si semelhanas e diferenas tcnicas, formais e, aquilo que mais nos interessa,

    semelhanas e diferenas em seu processo de construo de significados. No faremos aqui

    uma distino entre produo videogrfica, cinematogrfica e televisiva, pois embora existam

    particularidades observveis em cada um destes meios, nos parece que o processo de

    interseo entre eles, principalmente aps o advento da tecnologia digital, tem rompido as

    fronteiras que ainda existiam e resistiam a cerca de duas dcadas. Alm disso, tal abordagem

    destes meios, embora perfeitamente possvel e profcua, estaria alm dos objetivos deste

    trabalho, constituindo objeto de estudo capaz de gerar uma outra dissertao.

    fundamentalmente no quadro dos movimentos artsticos reconhecidos sob a

    designao geral de modernistas, que podemos reconhecer, de modo particular no movimento

    dadasta, alguns fundamentos formais e estticos que se relacionam de maneira estreita com

    aqueles apontados como definidores da produo de imagens na contemporaneidade. Duas

    questes, portanto, se impe como eixos principais do corpo do presente trabalho. Primeiro, o

    paralelo que nos parece evidente entre as estratgias de construo das imagens e de seus

    significados dentro da arte visual dadasta, do incio do sculo XX, e algumas tendncias

    observadas em boa parte da produo de imagens nos ltimos vinte ou trinta anos, a saber, um

    intenso processo de hibridao entre matrizes de linguagem, paradigmas tecnolgicos, estilos

    artsticos e signos de naturezas as mais diversas. Segundo, em decorrncia mesmo desta

    primeira observao, a constatao de que a tecnologia digital simplesmente (embora

    reconheamos que isso no seja pouco) intensifica ou potencializa tais tendncias da produo

    de imagens na contemporaneidade, mas no seria um fator exclusivo e determinante para sua

    existncia.

    Cabe aqui uma observao no que diz respeito ao termo hibridao. Nosso objeto de

    estudo constituir-se- de duas peas de audiovisual que manifestam de forma evidente uma

    intensa hibridao de elementos visuais e sonoros de matrizes distintas. Estaremos falando,

    portanto, de um processo de hibridao entre signos. Porm, o fenmeno do hibridismo no se

    restringe justaposio ou ao contraponto entre signos de naturezas distintas na produo

    artstica ou na comunicao visual, mas tambm se manifesta na fuso ou justaposio de

    elementos distintos, antes aparentemente inconciliveis, em diversos terrenos relativos a

  • 14

    outras prticas scio-culturais. Nem, tampouco, restringe-se o fenmeno do hibridismo a uma

    poca histrica especfica, mas antes, constitui-se um fenmeno que irrompe ocasionalmente,

    com maior ou menor intensidade e sob determinadas condies, em pocas distintas e, s

    vezes, distantes no tempo e no espao. Por exemplo, possvel falar em multiculturalismo

    ou em culturas hbridas, para se referir hibridao entre identidades culturais ou etnias

    diferentes na contemporaneidade. possvel falar em polifonia, para se referir ao processo

    complexo, dinmico e hbrido (ou intertextual) que se estabelece na interao entre as

    mltiplas vozes presentes no processo dialgico da linguagem verbal.4

    Uma ltima observao a respeito dos objetivos gerais e especficos deste trabalho

    merece ser mencionada, pois acreditamos que isto contribua para a melhor compreenso do

    Faremos meno, no

    curso deste trabalho, a estas e outras categorias conceituais que, embora relativas a objetos

    distintos (imagens visuais, padres de comportamento scio-culturais, formas de linguagem,

    etc.), possuem um denominador comum, segundo nossa compreenso: todas apontam para um

    processo de distenso entre as fronteiras que separam e estabelecem categorias

    supostamente puras, isoladas e definitivas. Distenso que permite a aproximao entre estas

    categorias, que se contrapem e se interpenetram, se transformando mutuamente e gerando,

    no mais das vezes, novas categorias, agora hbridas.

    Cabe ainda uma observao breve sobre o perfil dos captulos 1, 3 e, de forma menos

    problemtica, do captulo 2. So captulos em que prevalece o aspecto descritivo mais geral,

    em relao a contextos histricos que envolvem nuances complexas e, portanto, de difcil

    abordagem especfica ou aprofundamento para os limites de um trabalho que se pretende

    monogrfico. Porm, as temticas ali presentes, por vezes apenas tangenciadas, constituem

    importantes referenciais para a compreenso do fenmeno especfico que nos interessa

    abordar, por comportarem indcios fortes de um vnculo entre o hibridismo nas imagens do

    audiovisual contemporneo e a visualidade dadasta do incio do sculo XX. neste sentido

    que apontamos como necessria, apesar de potencialmente dispersiva, a referncia ostensiva,

    feita no captulo 3, a prticas scio-culturais no diretamente associadas produo

    imagtica, mas que, no entanto, dialogam de forma estreita com o mesmo iderio dadasta que

    tem permeado, mesmo que s vezes de forma diluda ou distorcida, a comunicao e as artes

    visuais contemporneas.

    4 Definiremos oportunamente, de maneira mais precisa, os termos multiculturalismo, culturas hbridas e polifonia.

  • 15

    sentido que tais abordagens comportam. Ao buscarmos um objeto de estudo, colocamos a

    premissa de que tal objeto deveria permitir a sua insero em um processo mais longo e mais

    amplo. Algo que, relacionando-se com as atuais tecnologias da comunicao, fizesse parte

    tambm de um fenmeno mais profundo e estendido no tempo, com fortes razes em alguma

    historicidade, pertinncia para o momento atual e indcios de um no esgotamento imediato.

    Ou seja, um processo menos pontual e fugaz, embora refletido em um objeto bem

    determinado e especfico.

    Tal premissa surgiu como fruto de uma angstia, ou melhor, de uma exasperao com

    a aparente evidncia de que talvez nenhum processo que envolva de forma intrnseca as

    tecnologias contemporneas, possa ter qualquer tipo de permanncia ou sentido histrico mais

    amplo. Procurvamos aquilo que, estando intrinsecamente relacionado tecnologia, estivesse

    ao mesmo tempo alm dela, sem restringir a ela sua existncia. Para alm da idia corrente de

    que, em funo do impacto da tecnologia digital e da rede mundial de computadores, vivemos

    em um mundo absolutamente transformado em relao s formas de pensamento e cognio

    tal como eram concebidas no sculo XX, trabalhamos com a hiptese de que os processos que

    vivenciamos hoje possuem razes e vnculos mais longnquos no tempo e se expandem para

    muito alm do prximo software ou hardware da moda. Dessa forma buscaremos a

    compreenso do hibridismo na visualidade contempornea lanando nosso olhar,

    inicialmente, ao passado, na tentativa de descortinar em meio a mirade de imagens que nos

    invadem nas telas e nas ruas de hoje, todos os dias, algum sentido que projete nosso olhar

    para um pouco alm dessas mesmas imagens. Para iniciar esta viagem, voltemos ao cenrio

    em que foi gerado o Dadasmo, buscando algum significado possvel naquele furaco.

  • 16

    1 CINCIA, FILOSOFIA, ARTE E VANGUARDA: PRIMEIRAS RUPTURAS,

    NOVOS CAMINHOS

    Ao tentarmos vincular uma das tendncias estticas da produo de imagens na

    contemporaneidade, o hibridismo, arte visual dadasta, lanamos tambm as razes dessa

    tendncia esttica no prprio seio do Modernismo e, portanto, do Impressionismo e do

    Cubismo, respectivamente fundados por Monet e Picasso, estes mesmos que Fayga Ostrower

    identifica como contemporneos do surgimento de uma transformao na noo de matria,

    energia, espao e tempo (OSTROWER, 1998. p46-47-48).

    A transformao operada por impressionistas5

    J no impressionismo nos deparamos com um processo de desmaterializao, de crescente abstrao da matria fsica. O mundo tornou-se imaterial e isento de qualidades corpreas identificveis [...]. Paralelamente s transformaes estilsticas na arte, vem surgindo, na metade do sculo XIX, um movimento renovador no mbito da cincia. Conquanto se fortalecesse ainda o paradigma do determinismo, h uma nova noo nas pesquisas cientficas: a noo de energia. [...] A proposta cubista visava investigar e reformular a estrutura dinmica de espaos em movimento. [...] Nas imagens cubistas surge uma realidade composta de fenmenos fragmentrios. Os planos so fragmentados mais e mais, e desintegrados at chegarem a facetas diminutas e quase uniformes, como se fossem uma espcie de tomos de matria. [...] Portanto, os objetos que compem o mundo fsico so apresentados inteiramente descaracterizados em sua corporeidade e configurao, tendo perdido seu peso e sua densidade, e tambm suas cores especficas.

    e cubistas na representao

    pictrica do real, respectivamente, nas duas ltimas dcadas do sculo XIX e duas primeiras

    do sculo XX, esfacelou a materialidade das paisagens em pontos luminosos e desarticulou os

    cnones da perspectiva e do volume dos objetos em sua disposio no espao. Fayga

    Ostrower situa este fenmeno menos como conseqncia do advento da tecnologia da

    fotografia, que teria tornado obsoleta a representao figurativa na pintura (hiptese defendida

    por diversos autores), do que como correspondente artstico de um ambiente cientfico

    (particularmente na fsica) que comeava a mudar seus conceitos de matria, energia, espao e

    tempo.

    5 Alguns autores consideram que o Impressionismo no rompeu com um dos aspectos fundamentais da arte romntica e do Realismo, anteriores: a idia de uma narrativa intrnseca imagem. A prpria Fayga Ostrower chama ateno para este fato: O impressionismo tampouco renega a influncia do realismo ao adotar a temtica e o fiel registro de fenmenos do cotidiano. Portanto, tais mudanas estilsticas ainda no significam rupturas; houve, antes, um desdobramento, uma ramificao que acabou levando a novas propostas. (OSTROWER, 1998. p45). Adiante, porm, a autora pondera: Ainda assim, preciso reconhecer que houve uma radical mudana de enfoque. (OSTROWER, 1998. p45).

  • 17

    Deparamo-nos, no Cubismo, com a viso de um universo como que em processo de criao, a matria atomizada, homognea e ainda indiferenciada. Matria-energia. (OSTROWER, 1998. P.21 46 47)

    Aps as transformaes cientficas e filosficas ocorridas a partir da segunda

    metade do sculo XIX, seria impossvel para alguns indivduos continuar observando e

    reproduzindo aspectos da realidade a partir dos pontos de vista anteriores. O conhecimento

    cientfico e filosfico teria alterado as sensibilidades, mais at do que as transformaes

    tecnolgicas daquele momento, transformaes tecnolgicas que, e isto apenas uma

    hiptese, teriam apenas potencializado tal alterao nas sensibilidades. As descobertas

    relativas ao ncleo do tomo pela fsica quntica, rompendo com diversos fundamentos da

    fsica newtoniana (at ento consideradas verdades absolutas, perenes e universais) operaram

    uma mudana significativa na compreenso dos cientistas e, posteriormente, dos artistas, no

    que diz respeito natureza da matria e da energia (algumas partculas atmicas se

    comportam, sob determinadas condies, ora como energia, ora como matria) e no que se

    refere relatividade das grandezas de espao e tempo. podendo a matria ser convertida em

    energia e a energia convertida em matria. Tal fenmeno ir contribuir de forma decisiva para

    esta virada radical nos modelos de representao nas artes visuais. Uma nova compreenso da

    realidade causar toda uma reformulao na maneira como a matria e as paisagens passam a

    ser representadas. O impacto imediato da noo de que matria e energia so correspondentes,

    se manifesta, se materializa (ou, para fazer um trocadilho, se desmaterializa), num primeiro

    momento, na pintura impressionista. Os impressionistas iro transformar toda materialidade

    em sugestes difusas de variaes luminosas e cromticas. Luz energia. O elemento visual

    de composio pictrica fundamental para o trabalho dos impressionistas passa a ser a luz.

  • 18

    Imagem1: As amapolas. Pintura impressionista de Claude Monet. Fonte:

    http://arteportodaperte.blogspot.com/2008_03_01_archive. Acessado em 24/11/2010.

    Da mesma forma, ocorre uma reestruturao do espao, ou melhor, na maneira

    como o espao percebido e organizado, j que espao e tempo passam a ser relativos, de

    acordo com a posio do observador6

    6Um mesmo fenmeno observado em posies diferentes, por diferentes observadores, pode acontecer em

    tempos diferentes.

    . Toda esta nova maneira de se perceber e de se

    representar a matria e o espao, toda essa ruptura com os cnones da visualidade e das

    relaes espaciais, ter sua expresso mais radical, significativa e influente (inclusive com

    reflexos no prprio Dadasmo) na obra de Picasso. Quase que uma traduo daquele saber

    cientfico, a maneira simultnea como as vrias faces de um mesmo objeto so expostas na

    arte cubista. As trs dimenses passam a ser representadas e reorganizadas num plano

    percebido como bidimensional. Rompe-se de forma radical a perspectiva renascentista.

    Picasso opera novos arranjos para os objetos num espao relativo, como se as diversas faces

    de um objeto fossem observadas a um s tempo, por um mesmo indivduo. A viso de

    diversos ngulos num mesmo plano, como se as percepes de vrios observadores colocados

    em diferentes posies em relao ao objeto, estivessem se manifestando a um s tempo, no

    mesmo espao visual.

  • 19

    Imagem 2: Moa com bandolin. Pintura cubista de Pablo Picasso. Fonte: OSTROWER,

    1997. p106

    Imagem 3: Cabea de Mulher. Pintura de Pablo Picasso. Fonte: OSTROWER, 1997. p98

    No terreno da narrativa literria, podemos estender o impacto destas

    transformaes na mentalidade cientfica, filosfica e artstica a James Joyce e seu romance

    Ulisses, verdadeiro divisor de guas na literatura universal. Em Ulisses, este processo de

    ruptura com os padres anteriores ir se manifestar de forma tambm radical, no sentido de

    que ali negada qualquer concesso a normas, convenes e padres lingsticos e qualquer

    sombra de idealismo romntico. Ulisses talvez seja a ruptura mais radical operada por

    qualquer obra oriunda de tudo aquilo que veio a ser chamado de Modernismo ou de

    vanguarda artstica nas ltimas dcadas do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX.

    No que diz respeito a Joyce afirma Jung, principal herdeiro e revisor das idias de Freud:

  • 20

    Com relao destruio de critrios de sentido e de beleza, vlidos at agora, Ulisses consegue realizar algo extraordinrio. Insulta nossos sentimentos convencionais, brutaliza nossas expectativas de sentido e contedo, um escrnio de tudo o que sntese. [...] Visto pelo lado causal, Joyce uma vtima da autoridade catlica, porm visto atravs da teleologia, um reformador a quem a negao por enquanto satisfaz; um protestante que, por ora, vive de seu protesto. [...] O artista sem querer o porta-voz dos segredos espirituais de sua poca e, como todo profeta, de vez em quando inconsciente como um sonmbulo. Julga estar falando de si, mas o esprito da poca que se manifesta e, o que ele diz, real em seus efeitos. Ulisses um documento espiritual de nosso tempo. (JUNG, 1971. p. 103 106 107)

    Uma frase da citao acima deve ser destacada, pois dela extramos o indcio

    de um sentido para a arte dadasta, que surge alguns anos aps a obra de Joyce: visto atravs

    da teleologia, (Joyce ) um reformador a quem a negao por enquanto satisfaz; um

    protestante que, por ora, vive de seu protesto. Voltaremos a este assunto no final deste

    captulo.

    Ainda nos campos da cincia e da filosofia, duas personalidades que consolidam

    sua atuao no final do sculo XIX e incio do sculo XX devem ser mencionadas: Freud e

    Nietzsche. Suas idias foram tambm, em grande parte responsveis pelas grandes

    transformaes que se operaram no pensamento do mundo ocidental neste perodo, colocando

    em cheque de forma severa o racionalismo cartesiano7 e alguns dos principais fundamentos da

    estrutura daquilo que ficou conhecido como poca Vitoriana8. A divulgao e difuso das

    teorias da psicanlise, e o fato de tais teorias estarem sendo colocadas em prtica, da mesma

    forma que as crticas de Nietzsche ao cristianismo e tpica moral dele decorrente9

    7 Ao contrrio de Descartes, que afirma penso, logo existo, algum minimamente versado em psicanlise poderia afirmar existo onde no penso. 8 A poca Vitoriana a poca da represso, uma obstinada tentativa de conservar artificialmente vivos, atravs do moralismo, os ideais anmicos que estavam de acordo com a compostura burguesa. Estes ideais eram as ltimas ramificaes das representaes religiosas comuns da Idade Mdia que haviam sido pouco antes profundamente abalados pelo iluminismo francs e pela Revoluo que se seguiu. (JUNG, 1971. p.29) 9 A idia da tragdia , pois, esta: a divindade inflige muitas vezes ao homem um sofrimento, sem que haja falta neste ltimo, no arbitrariamente, mas para garantir uma ordem moral no mundo. (...) Chegando ao fim da metafsica e do moralismo e diante do semi-niilismo, ousa Nietzsche dizer: O Deus cristo est morto. (...) Assim, ataca no s o cristianismo, mas tambm todos os ideais que, desde Scrates e Plato, arrancam o homem afirmao do devir sobre qualquer forma, sem xito, pois o homem se vai tornando sempre mais enfermo e at Deus morreu, lanado fora num alm ilusrio. (PENZO, 1981. P.93 114 - 115)

    (colocando em pauta a temtica grega da tragdia dionisaca e j prenunciando a questo,

  • 21

    recorrente durante o sculo XX, do xtase carnavalesco)10, foram decisivas para todo este

    processo, acabando por demolir ou abalar seriamente uma srie de convenes e estruturas

    que funcionavam como pilares de valores morais, religiosos e polticos at ento intocveis.

    Estavam lanadas algumas das bases que faltavam para tudo, ou quase tudo, aquilo que, no

    campo das artes visuais11, veio a significar algum tipo de ruptura com os padres estticos e

    formais anteriores, vigentes desde o Renascimento, quais sejam, as normas de reproduo fiel

    da realidade: perspectiva, volume, materialidade, realismo e naturalismo.

    Imagem 4: Monalisa. Pintura renascentista de Leonardo Da Vinci. Fonte: Enciclopdia dos

    Museus Louvre Paris. So Paulo, Companhia melhoramentos: 1979. 3 ed. p13

    Ao lado de Freud, na psicanlise, e de James Joyce, na literatura, os primeiros

    modernistas trataram de solapar os fundamentos da poca Vitoriana e do racionalismo

    cartesiano. As palavras de Jung, a respeito de Freud, esclarecem um pouco melhor o esprito

    daquele momento:

    10 O embevecimento do estado dionisaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existncia, contm com efeito, enquanto dura, um elemento letrgico, em que submerge tudo o que foi vivido no passado. Assim, por este abismo de esquecimento, o mundo cotidiano e a efetividade dionisaca separam-se um do outro. (...) uma tradio incontestvel que a tragdia grega em sua configurao mais antiga tinha por objeto somente a paixo de dioniso (...). (NIETZSCHE, 1983. P.9) 11 Jung chega a relacionar o Cubismo, movimento das artes visuais, diretamente com a literatura de Joyce, e, portanto com todo este amplo movimento de rupturas, ao afirmar: Ele (Joyce) cubista no sentido mais profundo, ao transformar a imagem da realidade num ilimitado e complexo quadro cuja tnica a melancolia da objetividade abstrata. (JUNG, 1971. p.101)

  • 22

    Ele colocou o dedo em mais de uma ferida. Nem tudo era ouro o que brilhava no sculo XIX, inclusive a religio. Freud foi um grande destruidor, mas a poca da passagem do sculo ofereceu tantas oportunidades de destruio que um Nietzsche no foi suficiente. Freud cuidou do resto, e o fez em profundidade. [...] Tanto nele como em Nietzsche prenuncia-se a luta dos tits dos nossos dias onde se mostra e deve ser demonstrado se os nossos mais altos valores so realmente to verdadeiros que o seu brilho no venha a se extinguir na torrente aquerntica. [...] Muitas vezes se comparou Freud com um dentista que com a broca destruidora escareava, da maneira mais desagradvel, focos de crie. At a vlida a comparao; ela falha porm, quando se espera que, daqui por diante, seja colocada uma obturao de ouro. A psicologia freudiana no oferece substituto para substncias que foram extradas. (JUNG, 1971, p.41-42)

    Jung v na arte moderna (particularmente em Joyce e Picasso), assim como na

    psicanlise, tentativas de solapar de maneira radical, fantica e unilateral (JUNG, 1971),

    algo que ainda se mantinha slido em nossa civilizao, mas ameaava ruir (cristianismo ?

    Racionalismo ? A prpria era medieval que ainda persistia ? 12). Ele v estes fenmenos como

    antecipaes de uma transformao que ainda estaria por se completar, manifestaes de uma

    tendncia de desenvolvimento da psique coletiva13

    12 Estou convencido do seguinte: ainda estamos imersos at o nariz na Idade Mdia. Nada pode abalar esta situao. E por isso necessrio que profetas negativos como Joyce (ou Freud) esclaream os contemporneos medievais, profundamente preconceituosos sobre a outra realidade. (JUNG, 1971. p.105) 13 O termo psique coletiva se refere a extratos da mente humana que seriam compartilhados coletivamente, gerando tendncias a padres de comportamento comuns, o que pode se realizar (ou se concretizar), por exemplo, nas artes: Sempre que o inconsciente coletivo se encarna na vivncia e se casa com a conscincia da poca, ocorre um ato criador que concerne a toda a poca, a obra , ento, no sentido mais profundo, uma mensagem dirigida a todos os contemporneos. (JUNG, 1971. p 86). Neste sentido, o termo desenvolvimento da psique coletiva se refere a um processo que se estende no tempo e envolve uma parcela considervel da humanidade. No caso que aqui abordamos, tal desenvolvimento estaria se dando, segundo Jung, na seguinte direo: Nietzsche, a quem De Chirico cita como autoridade no assunto, deu nome ao vazio terrvel quando disse Deus est morto. Sem referir-se a Nietzsche, escreveu Kandinsk no seu O espiritual na arte: O cu est vazio. Deus est morto. Uma frase deste tipo soa de maneira abominvel. Mas no nova. A idia da morte de Deus e sua conseqncia imediata, o vazio metafsico, j inquietava o esprito dos poetas do sculo XIX, sobretudo na Frana e na Alemanha. Passou por uma longa evoluo que, no sculo XX, alcanou um estgio de discusso livre e encontrou expresso na arte. A ciso entre a arte moderna e o cristianismo foi, afinal, consumada. O Dr. Jung tambm percebeu que este estranho e misterioso fenmeno da morte de Deus um fato psquico de nossa poca. Escreveu, em 1937: Sei e expresso aqui o que inmeras pessoas tambm sabem que a poca atual a do desaparecimento e morte de Deus. Durante anos ele observara como a imagem crist de Deus vinha se enfraquecendo nos sonhos de seus pacientes isto , no inconsciente do homem moderno. (JAFF, 1989. p255 )

    , que ento apenas se iniciava.

    Novamente, devemos destacar uma frase da citao: A psicologia freudiana no oferece

    substituto para substncias que foram extradas.

  • 23

    Pensando a partir desta viso amplificada, podemos questionar: o que acontece

    hoje nas artes, mais de cem anos depois do Impressionismo, do Cubismo, de Freud, da fsica

    quntica e quase cem anos depois do Dadasmo e do Surrealismo ? Em exposies atuais,

    freqente encontrar obras cujas formas no passam da repetio de solues anteriores.

    Alerta Fayga Ostrower (2004. p349). Talvez este texto de Arnaldo Jabor, publicado

    recentemente no jornal O Globo, mesmo considerando o exagero, o carter generalizante e

    pouco (ou nada) cientfico da observao, possa esboar um painel possvel e sinttico, ou

    mesmo preponderante, para este cenrio:

    H dcadas que o establishment artstico composto por escultores de terra, sujeitos furando o corpo, violoncelistas de topless e caixinhas com as prprias fezes. Claro que com as excees do talento individual.

    Os artistas ficaram sem admiradores, saudosos do anos 20 ou 30, quando eram deuses. A morte da aura da arte mais difcil de aceitar do que pensvamos. Hoje, a aura passou para o prprio artista, que se v como um profeta abandonado.

    Sobrou ao artista uma atitude masoquista, fazendo qualquer coisa para reconstruir a aura sua volta, at se mutilando em body art ou em instalaes estapafrdias. O artista atual tpico produz uma obra pequena envolta em muita teoria; poderia dispensar a obra e expor a teoria. (JABOR, 2009)

    A operao de desmonte das possibilidades de representao e significao

    levada a cabo pelas vanguardas modernistas, deixou pouco ou nenhum espao para a

    construo de algo que pudesse ocupar o lugar das estruturas rompidas. Tudo foi quebrado.

    Da talvez constatarmos aquilo que se transformou quase em senso comum nas ltimas

    dcadas: um dos principais temas da arte o vazio, ou a impossibilidade de representao, ou

    o prprio processo de representao se torna o tema. Duchamp, considerado um dadasta,

    talvez tenha sido aquele que jogou a p de cal definitiva sobre qualquer idealismo utpico ou

    projeto de sentido na arte. neste ponto que iniciamos a abordagem do Dadasmo.

    A estratgia do movimento dadasta (surgido na dcada de dez do sculo

    XX, portanto em momento ligeiramente posterior a todo o processo que vnhamos

    descrevendo) de inverso e de desconstruo de significados estabelecidos, de cnones

    mantidos e perpetuados, segundo os autores do movimento, por aquilo que eles chamavam de

    sociedade burguesa, remete a este processo mais amplo que vinha se desenvolvendo desde

    o final do sculo XIX, a partir, principal e fundamentalmente, dos questionamentos

    levantados e suscitados pela teoria do inconsciente. O rompimento com o primado da razo e

  • 24

    do pensamento lgico linear comea a se operar dentro das artes visuais a partir, embora no

    exclusivamente, da obra Freud e talvez tenha culminado com a arte surrealista, que surge nas

    dcadas de 20 e 30 do sculo XX, logo aps exploso dadasta, subvertendo a lgica

    cotidiana e introduzindo na representao pictrica a lgica dos sonhos, expresso mais

    evidente e imediata dos processos inconscientes descritos pela psicanlise. O Surrealismo

    filho direto do Dadasmo.14

    Mas no nos interessa tanto aqui o Dadasmo de Duchamp, dos hapennings e da

    poesia sonora (aspectos do movimento aos quais faremos meno apenas de forma breve, a

    seguir. Este Dadasmo, apesar de anrquico, provocador e, por vezes, irnico (aspectos que

    at nos interessariam) possui um carter profundamente niilista

    15

    14 Os artistas do movimento dadasta passaram a fazer parte se j no o faziam de grupos cubistas e expressionistas, ou vieram a formar o surrealismo moderno. Este adotou muitos conceitos dadastas, como, por exemplo, alm da importncia do irracional, o automatismo psquico e as manifestaes do inconsciente, proclamando o mundo dos sonhos como nica realidade verdadeira dos homens. (OSTROWER, 2003. p341) 15 Nas palavras de Nietzsche: (...) a vida no tem sentido. Que significa o niilismo ? Que os valores mais altos se desvalorizaram. Falta a meta. Falta a resposta ao porqu. (PENZO, 1981. p. 114)

    . No prope nada, alm da

    iconoclastia e da negao de qualquer mtodo, qualquer projeto sistematizado e reconhecvel.

    O que mais nos interessa no Dadasmo, sua vertente que trabalhou as artes visuais. Pois,

    embora os prprios artistas no reconhecessem, nesta vertente do movimento que surgiram

    os resultados e desdobramentos, mesmo que este no fosse o objetivo manifesto dos artistas,

    mais profcuos daquele momento, pelo menos para o campo da produo de imagens no

    restante do sculo XX.

    Menos conhecido do pblico que o Cubismo e o Expressionismo, o Dadasmo constitui um ponto de partida fundamental para as vrias tendncias da arte no sculo XX. Movimento verdadeiramente revolucionrio na arte, no sentido de reformular tanto a linguagem como a atitude bsica e os conceitos dos artistas diante de seu trabalho, o Dadasmo marcou indelevelmente as tcnicas, os materiais e as pesquisas deste sculo. Podemos verificar que ainda hoje, na produo artstica de nossos dias, se revelam as repercusses daquela grande exploso que se deu no incio do sculo. (...) Substituindo as matrias nobres e os preparativos artesanais caros e demorados das tcnicas de pintura por montagens ou colagens, combinaes aparentemente feitas ao acaso, introduziam em seus quadros pedaos ou restos de objetos e materiais, cacos e detritos que pareciam ter sido retirados da lata do lixo. (OSTROWER, 2003. p339-340)

  • 25

    Exploso, cacos, colagem. Palavras chave para a compreenso de uma primeira

    hiptese. Neste processo amplo, no tempo e no espao, de desenvolvimento da psique

    coletiva (proposto por Jung), o Dadasmo talvez estivesse dando um passo frente em

    relao aos outros movimentos, quando passa a recolher e colar, intuitivamente ou no, os

    cacos da exploso modernista. Samos agora do ambiente onde nasceu dada, para conhec-

    lo melhor.

  • 26

    2 RECOLHER, RECOMBINAR E RE-SIGNIFICAR16 OS FRAGMENTOS DO

    VELHO MUNDO EM RUNAS: ENTRA EM CENA O DADASMO

    2.1 VO RASANTE SOBRE ZURIQUE E BERLIM: UM PAINEL AMPLO SOBRE O

    MOVIMENTO

    O Dadasmo, nas dcadas de 10 e 20 do sculo XX (em datas posteriores ao

    Impressionismo, ao Cubismo e ao surgimento da psicanlise), tendo surgido como uma reao

    direta de protesto contra a Primeira Guerra Mundial e seus efeitos, tratou de recolher os cacos

    de toda aquela desconstruo operada nos anos anteriores pelos diversos movimentos

    modernistas, articulando recortes fotogrficos, fragmentos de textos e formas abstratas em um

    discurso visual anrquico e mesmo carnavalesco, quase a celebrao ou a intuio de uma

    nova ordem possvel, na impossibilidade de que algo fosse colocado no lugar da antiga ordem

    que havia se quebrado. Os dadastas eram menos inventores do que recicladores de materiais

    (cotidianos) existentes, aos quais davam ento a sua forma esttica (atravs das) tcnicas da

    colagem e da fotomontagem. (ELGER, 2005. p13).

    Imagem 5: O rouxinol chins. Colagem dadasta de Max Ernest. Fonte: ELGER, 2005. p74

    16 O termo re-significao tem sido utilizado de forma ampla e, s vezes, indiscriminada em vrios contextos acadmicos. Portanto, esclarecemos que, para efeitos deste trabalho, entendemos re-significao como a atribuio ou a sugesto de novos ou inusitados significados a um signo de significado convencionalmente reconhecido e consolidado.

  • 27

    Imagem 6: Da dandy. Colagem dadasta de Hannah Hch. Fonte: ELGER, 2005. p42

    ]

    As imagens criadas por artistas plsticos que se vincularam ao movimento dadasta

    sugerem a apropriao de elementos dspares, operando um rearranjo, uma recombinao e,

    portanto uma transformao destes elementos em algo absolutamente inusitado e, por isso

    mesmo, novo. Metaforicamente, podemos dizer que as imagens dadastas se apropriam dos

    estilhaos e escombros deixados pelos furaces anteriores (psicanlise, fsica quntica,

    Impressionismo, Cubismo, etc.) e apresentam ao mundo um painel impressionante e

    perturbador, construdo a partir da colagem de imagens fracionadas, as mais emblemticas

    daquele mesmo mundo que se pretendia solapar: militares, anjos, clrigos, burgueses,

    anncios publicitrios, manchetes de jornais, mquinas, engrenagens, desenhos de estudos

    cientficos de anatomia humana e toda sorte de entulho cultural e civilizatrio.

    O Dadasmo est inserido, como j afirmamos, em um contexto histrico de

    fortes rupturas em diversos campos do conhecimento humano e em especial na arte. A

    chamada ordem burguesa e capitalista instigava a revolta em coraes e mentes. Os alvos

    principais destes coraes e mentes movidos pela necessidade de transformao eram

    exatamente os pilares dessa sociedade: o consumo, a famlia, as instituies religiosas, o

    exrcito, entre outros. Os dadastas compreenderam, quem sabe de forma intuitiva, que o pilar

    dos pilares dessa civilizao talvez fosse exatamente a linguagem verbal, o mais sofisticado

    sistema de smbolos que, pelo menos era o que se pensava naquele momento, devia

    fundamentar o prprio pensamento e, portanto, o racionalismo que, a um s tempo,

    fundamenta a cincia, o desenvolvimento tecnolgico, a lgica das relaes sociais e

  • 28

    econmicas, a guerra, entre outros tantos males e maravilhas. Atacar e subverter o bom uso da

    linguagem verbal, era atacar e subverter a ordem.

    Originalmente, o movimento dadasta concentrou-se, pois, na produo literria e

    nas interferncias irreverentes, anrquicas e perturbadoras em ambientes pblicos e solenes

    (os happenings). Em sua vertente literria, atravs da criao dos famosos poemas sonoros,

    os dadastas visavam subverter a utilizao convencional da linguagem verbal.

    No poema sonoro, a ordem tradicional, a interao entre som e significado, abolida. As palavras so dissecadas em slabas fonticas individuais, esvaziando assim a linguagem de qualquer sentido. Por fim, os sons so re-combinados numa nova imagem sonora. Este processo rouba linguagem sua funo. Porque, segundo a viso dos dadastas, as instituies, comandos, e a transmisso de informao tinham privado a linguagem de sua dignidade. Com estes poemas sonoros, disse Hugo Ball para justificar as suas intenes, ns queramos prescindir da linguagem que o jornalismo tinha tornado desolada e impossvel. Em vez disso, os dadastas procuraram restituir as palavras sua imaculada inocncia e pureza. (ELGER, 2005. p.11)

    Posteriormente, um grupo de artistas plsticos de Berlim (o chamado grupo de

    Berlim) aderiu ao movimento (antes quase restrito a cidade de Zurique), introduzindo a a

    imagem visual como forma de expresso.

    [...] o estado de esprito no seio dos literatos envolvidos era basicamente anti-artstico. Eles estavam preparados para permitir que as artes visuais tivessem algum direito a um espao dentro do movimento dadasta, desde que seus representantes conseguissem provar que eram radicalmente anti-estticos e anti-histricos, e livres de todos os modelos da histria da arte. [...] O grupo de Berlim estendeu a imagem dadasta atravs da utilizao da tcnica da fotomontagem, que, embora desconhecida em Zurique, tinha importantes precursores entre os construtivistas russos e os futuristas italianos. (ELGER, 2005. p13-14)

    Os procedimentos e tcnicas utilizados ostensivamente, e com indito vigor

    expressivo, pelos dadastas na composio de suas imagens foram basicamente o recorte e a

    colagem de fotografias no quadro, associadas a interferncias grficas com materiais e

    texturas diversas, alm da insero de pequenos textos, palavras ou letras isoladas enquanto

    elementos constitutivos da prpria imagem.

  • 29

    Imagem 7: Dada cino. Colagem dadasta de Raul Hausmann. Fonte: ELGER, 2005. p4

    Imagem 8: O culpado ainda desconhecido. Colagem dadasta de George Grozz. ELGER,

    2005 p48

    Inicialmente na forma dos poemas-sonoros, a utilizao do texto como fator de

    subverso pelos dadastas de Zurique, foi tambm assimilada pelos artistas plsticos de

    Berlim que aderiram s hostes dadastas.

  • 30

    Nos seus poemas sonoros, Hausmann destruiu a lngua, isolou slabas individuais, quebrou elementos com sentido em pedaos e reuniu os fragmentos numa ordem diferente. A lngua perdeu a sua funo comunicativa; os sons assumiram vida prpria; nada mais tinham a dizer. [...] Nos seus cartazes-poemas opto-fonticos, Raoul Hausmann ligou esta expresso lingstica com a pictrica. A impresso de textos dos seus poemas sonoros em grandes pedaos de papel de embrulho, deu aos sons uma forma visual. (ELGER, 2005. p.40)

    Tudo isso nos leva a crer que o Dadasmo operou uma mudana radical na

    forma de dilogo com o espectador da arte, com o pblico, a partir da re-significao desses

    destroos, ou pedaos de uma cultura que, para aqueles artistas (ou anti-artistas), estava

    decadente e deveria ser transformada. Mesmo que no se apontasse nenhum significado

    evidente, nenhum objetivo especfico para a compreenso da realidade ou para a reinveno

    da realidade em termos objetivos, est ali, na arte dadasta, o grmen de algo que poderia ser

    talvez colocado no lugar daquilo que estava se quebrando ou tinha se quebrado anteriormente.

    Este algo seria exatamente a recombinao dos fragmentos de todos aqueles cnones e

    emblemas da civilizao capitalista ocidental, de todas as estruturas que vinham sendo

    questionadas e rompidas por este vendaval do incio do sculo XX, expresso neste amplo

    painel de idias e movimentos em que desfilam Freud, Nietzsche, Einstein, Picasso, Joyce.

    etc. No lugar da dureza, da simetria e da assepsia estreis, prepara-se um revolucionrio,

    anrquico e profcuo carnaval de signos. Busquemos entender este carnaval, usando as lentes

    do filsofo russo Mikhail Bakhtin.

    2.2 UM CARNAVAL DE SIGNOS VISUAIS: O DADASIMO VISTO PELA LENTE DE

    BAKHTIN

    Utilizaremos aqui alguns conceitos consolidados pela histria da filosofia para

    compreendermos melhor o sentido e o impacto social e cultural das estratgias de significao

    tpicas da arte visual dadasta. O primeiro deles o conceito de anarquia (ou anarquismo). A

    prpria arte dadasta, em seus fundamentos, 17

    17 questionvel falar em arte Dadasta e seus fundamentos, j que os dadastas idealizavam uma anti-arte sem fundamentos pr-determinados. Mas esta postura anti-artstica visava especificamente agredir o bom

    se vincula, de forma bastante evidente, a uma

  • 31

    srie de procedimentos identificados historicamente, por diversos pensadores, sob a

    denominao comum de anarquismo. Isso se expressa tanto nos manifestos daqueles artistas

    quanto em diversos estudos feitos posteriormente sobre a arte dadasta, ou sobre alguns

    aspectos fundamentais da arte dadasta.18

    No terreno especfico das artes visuais, que o terreno que interessa diretamente

    aos objetivos desse trabalho, a questo especfica do anarquismo no est em primeiro plano,

    ou assim no pretendemos coloc-la, apesar de tal questo estar intrinsecamente vinculada a

    outro tema que muito nos interessa: a carnavalizao. A abordagem de tal temtica,

    acreditamos, pode lanar luz de forma mais profcua sobre os efeitos que as estratgias

    adotadas pelos dadastas nas artes visuais tiveram em fenmenos relacionados tanto s demais

    artes visuais no decorrer do sculo XX (as artes visuais posteriores ao Dadasmo) quanto a

    prpria relao da arte dadasta com o seu pblico, ou com as pessoas s quais os dadastas se

    dirigiam.

    19

    Existem vrias correntes tericas e autores que tratam do tema (ou do problema)

    da carnavalizao e de seus efeitos

    20

    Quando falamos de temas referentes desestruturao anrquica dos cnones ou

    dos pilares da sociedade burguesa (incluindo-se nestes cnones a prpria arte), que era de fato

    . Um pensador, porm, tem sido destacado neste terreno.

    Este pensador o russo Mikhail Bakhtin. Considerado um dos principais pensadores do

    sculo XX, sua obra tem sido resgatada e revista, funcionando como referncia quase

    obrigatria para qualquer reflexo ou qualquer estudo que se faa a respeito do tema da

    carnavalizao.

    senso na arte e seus procedimentos acadmicos, que haviam se cristalizado no seio da sociedade burguesa. Alm disso, a falta de mtodo, em si, j um critrio passvel de ser chamado de fundamento. 18 Manifestao de protesto que rejeitava todos os valores respeitados pelas artes e pela sociedade, o Dadasmo est relacionado com o movimento anarquista, em voga poca da Primeira Guerra Mundial. (HURLBURT, 2002. p22) 19 As atitudes niilistas do Dadasmo estenderam-se arte e ao design atravs da poesia e da pintura. (HURLBURT, 2002. p22) 20 J que citamos a teoria de Nietzsche, no primeiro captulo, a respeito do xtase dionisaco e de sua crtica ao cristianismo, temas que fazem fronteira com a discusso sobre o carnaval, cabe aqui uma nota a este respeito: Como atualmente a noo nietzschiana do dionisaco est na moda, talvez valha a pena esclarecer as semelhanas e diferenas entre as concepes nietzschianas e bakhtiiniana do carnaval. O carnaval de Bakhtin e a festa dionisaca de Nietzsche tm em comum sua natureza enquanto ritos coletivos, nos quais os folies mascarados ficam possudos e se transformam, seja atravs da roupa, seja atravs da atitude, num outro, tudo isso com uma espcie de efeito catrtico. Nietzsche e Bakhtin vem a festa carnavalesca como um alvio da hipocrisia social e do medo do corpo, mas enquanto Nietzsche tende a culpar a religio crist por essa fobia do corpo, Bakhtin prefere culpar a ideologia feudal e a hierarquia de classes. (STAM, 2000. p45)

  • 32

    o objetivo central do movimento dadasta, estamos lidando com idias e conceitos que

    possuem relao ntima com aquilo que Bakhtin identifica como carnavalizao.

    O carnaval, na concepo de Bakhtin, mais do que uma festa ou um festival; a cultura opositora do oprimido, o mundo afinal visto de baixo, no a mera derrocada da etiqueta mas o malogro antecipatrio, simblico, de estruturas sociais opressoras. O carnaval profundamente igualitrio. Ele inverte a ordem, casa opostos sociais e redistribui papis de acordo com o mundo de ponta-cabea. (STAM, 2000. p89)

    A inverso21

    ou a destruio de significados convencionais, a combinao de

    elementos dspares dentro do mesmo espao visual (elementos oriundos de diversas fontes e

    deslocados de seus contextos originais), todo este processo de desestruturao anrquica

    operado pela arte dadasta, nos remete a este conceito desenvolvido por Bakhtin. Estas

    estratgias esto muito prximas de tudo aquilo o que reconhecemos como agentes do

    fenmeno da carnavalizao.

    A carnavalizao, segundo Bakhtin, se d prioritariamente pela inverso da

    ordem vigente. Ao subverter a ordem convencional atravs da inverso de papis, ou atravs

    da ruptura dos padres e da noo sobre as relaes de poder estabelecida pela ordem social, o

    carnaval instaura uma nova ordem (ou uma desordem), no espao e no tempo determinados

    para a sua prtica. As pessoas, ou os personagens, que ali atuam em seus novos papis,

    passam a participar de uma nova ordem. Esta nova ordem propicia o surgimento daquilo que

    Bakhtin chama de corpos de final aberto. Ou seja, corpos que, no momento da celebrao

    carnavalesca, esto absolutamente abertos ao dilogo e interao.

    Como modelo de comunicao, a dinmica do carnaval tema da maior relevncia. (...) Pois o eu carnavalesco no uma entidade totalmente consciente. Seu ideal o corpo irregular de final aberto, que no tem nenhuma necessidade de fantasias de beleza simtrica. (...) Os corpos grotescos, justamente por serem imperfeitos, precisam completar-se e chegar at os outros em um clima de confiana; so, portanto, similares a palavras dialgicas indigentes. (EMERSON, 2003. p.202)

    21 A idia de inverso da ordem convencional e da criao de paradoxos est no s na raiz do carnaval, mas tambm do humor e do riso. (...), no estar dems que hagamos una breve exposicin de las situaciones ms importantes que engloban a casi todas las acciones humorsticas. El siguiente cuadro nos servir de base. Situacin: contraste (desproporcin o incongruencia) / exageracin / repeticin. (ANTONINO, 1986. p.30). Segundo Bakhtin, o riso, a ironia, o deboche no podem estar desvinculados do carnaval.

  • 33

    Esta interao entre os corpos de final aberto se d a partir de um rompimento

    com a razo, com a lgica cartesiana, com o domnio da moral e do pensamento. O espao da

    razo substitudo pelo domnio dos instintos, do prazer, do xtase, dos impulsos mais

    bsicos do ser humano. Rompem-se os limites que determinam o fechamento dos corpos,

    limites que regem as relaes cotidianas, fundamentalmente orientadas pelo exerccio da fala.

    O pensamento linear que rege a linguagem verbal temporariamente suspenso, abrindo

    espao para interaes regidas a partir de mecanismos, rgos sensoriais e sentidos diversos:

    vsceras, pele, abdmen e genitlia. Encontramos aqui uma primeira analogia entre o

    fenmeno aqui descrito como carnavalizao e certos aspectos da arte Dadasta. Como j

    dissemos, o ataque lgica convencional da linguagem verbal (principalmente nos poemas

    sonoros, mas tambm na utilizao de letras e palavras isoladas na composio dos quadros),

    alm do apelo deliberado ao irracional, so estratgias centrais dentro do Dadasmo.

    Neste momento de ruptura, mesmo que relativa e temporria, da ordem pblica e

    da moral, que permite a inverso dos valores coletivos, o corpo de final aberto, regido por

    demandas que se estendem do sexo violncia, passando pelo desregramento dos sentidos

    (quase sempre a partir da ingesto de substncias que alteram a conscincia), permitir

    qualquer forma de dilogo e interao, mesmo que estes resultem, para alm do prazer e do

    xtase, em agresso e morte.

    Pode-se objetar que todo este processo foi descrito e estudado por Bakhtin em

    sua anlise dos escritos de Rabelais, textos que tratam fundamental e especificamente da

    prtica carnavalesca na Frana da idade mdia. Porm, ao analisar o fenmeno do carnaval,

    ou da carnavalizao da realidade, a partir da literatura e de prticas sociais especficas por ela

    descritas, Bakhtin nos fornece subsdios tericos que podem ser transpostos para outros

    campos, que se estendem da arte s mais diversas prticas sociais e processos de produo

    simblica. O mesmo conceito, originado dos estudos literrios, tem sido, como veremos a

    seguir, estendido a outras formas de discursos, provenientes de outras matrizes de linguagem

    (visual e sonora), fundamentalmente no terreno da criao artstica. O princpio polifnico

    no deve ser visto como apenas um mtodo a mais para a anlise das prticas artsticas,

    conclui Gurevich. O dilogo e o polifonismo so as senhas de um novo paradigma cultural

    que com alguma dificuldade e apesar de toda a morosidade, o monologismo e os tormentos da

    comunicao, vai abrindo seu caminho(EMERSON, 2003. p.186).

  • 34

    A compreenso dos termos polifonia e dialogismo tambm fundamental

    para a compreenso do carnaval em Bakhtim. A polifonia pressupes a existncia de diversas

    vozes que se manifestam e interagem, nem sempre em harmonia e concordncia, no interior

    de um discurso ou de um enunciado. O contraditrio, a diferena que dinamiza o dilogo a

    pea chave do processo definido como dialogismo.

    A cultura do riso construda sobre oposies, sobre a unidade de analogias e justaposies contraditrias. Bondarev sugere que esta unidade equivalente embora numa lgica de imagens multiplicidade dialgica inerente s palavras. Uma vez que as inesperadas combinaes em mosaico da imagem grotesca se parecem com as irregularidades de uma conversao em curso, Bondarev levado a concluir que o carnaval e o dilogo, a ontologia e a lgica bakhtinianas formam um par correlativo. Da mesma forma como o carnaval rompe continuamente o espao organizado, o dilogo fervilha de perguntas provocativas, priva seus participantes do conforto espiritual e do bem-estar intelectual, reduz tudo a nada, ridiculariza, desqualifica, aniquila tudo o que foi posto de lado ou armazenado, desfaz todos os argumentos preventivos que at hoje funcionaram to bem. (EMERSON, 2003. p207-208)

    Na citao acima, temos a sugesto de uma correspondncia que existe entre a

    lgica da polifonia no discurso verbal ( que conduz ao dilogo) e uma imagem em mosaico.

    Trata-se menos de estabelecer uma similaridade entre as duas matrizes de linguagem (verbal e

    visual) do que de utilizar tal correspondncia como metfora do processo de significao que

    analisamos. Ao pensarmos nos elementos aparentemente aleatrios que so recombinados no

    interior de toda visualidade tipicamente dadasta, elementos que tm seu significado muitas

    vezes invertido ou de diversas formas alterado atravs de seu deslocamento de seus contextos

    convencionais e atravs de sua recombinao com outros elementos, compondo esta imagem

    em mosaico, podemos dizer que tais elementos, com seus significados alterados, tambm se

    tornam corpos de final aberto, passando a fazer parte de um verdadeiro discurso polifnico

    (aqui, um discurso visual) na medida em que o dilogo, ou a interao entre estes elementos

    visuais passa a no obedecer s leis e normas da representao visual (equilbrio, simetria,

    direes compositivas, pesos visuais, ritmos, contrastes) orientadas pela razo e pela lgica

    convencionais, que regiam seu significado num contexto anterior a tal ruptura e ao

    deslocamento que lhes infligido.

    A interao entre os signos (ou o dilogo entre os signos), no interior de um

    discurso (verbal, visual ou sonoro) s possui o poder de subverter convenes, mesmo que

    mnimas, e, portanto, impulsionar algum tipo de vida ou dinamismo para a mensagem,

    quando est presente a possibilidade de interferncia mtua entre os signos no momento em

    que estes so colocados lado a lado. O novo, o inusitado, aquilo que perturba ou agride o

  • 35

    espectador, depende de uma transformao, amplificao, reduo ou mesmo inverso dos

    significados convencionalmente estabelecidos para estas imagens, sons ou palavras. Estes

    signos necessitam, por assim dizer, estar na mesma condio dos corpos de final aberto,

    fator fundamental para a realizao do carnaval a que Bakhtin se refere.

    O conceito de carnavalizao elaborado por Bakhtin no momento em que

    todas aquelas rupturas no pensamento cientfico, filosfico e artstico se consolidavam e, de

    certa forma, se difundiam, passando a constituir novos parmetros para um maior nmero de

    pessoas. Fazemos uma meno particular s teorias de Einstein sobre a relatividade.

    Um ensaio contido no livro M. Bakhtin and philosophical Culture of the Twentieth Century, de Boris Egorov, publicado em 1991, relaciona o dialogismo com a revoluo do pensamento cientfico precedente e seguinte Grande Guerra. Durante essa dcada, lembra-nos o autor, o positivismo, a linearidade e a singularidade do pensamento do sculo XIX em diversos campos (filosofia, economia poltica, biologia e cincias naturais) deram lugar a novos modelos pluralistas e multiperspectivsticos, inspirados no pensamento einsteniano. Os campos mais estritamente cientficos fizeram essa transio com notvel velocidade e Bakhtin, observa Egorov, estava determinado a fazer com que o saber literrio no ficasse para trs. O jovem e intelectualmente precoce Bakhtin tinha paixo pela coordenao global das mudanas de paradigma. (EMERSON, 2003. p.187188)

    No mesmo momento, portanto, em que as teorias de Einstein ensejavam de

    forma definitiva uma ruptura com as compreenses tradicionais de espao, tempo, matria e

    energia, com impactos significativos sobre vrios fundamentos do pensamento ocidental,

    sobre a lgica do prprio pensamento linear cartesiano e racionalista (cenrio em que brotam,

    como j afirmamos, todos os movimentos da vanguarda modernista), Bakhtin elabora seus

    conceitos de carnavalizao, polifonia e dialogismo. A noo de Bakthin sobre a existncia de

    uma multiplicidade de vozes num mesmo discurso, seja ele um discurso literrio, um discurso

    visual ou o discurso do prprio pensamento, de um autor ou de um indivduo, estar em

    sintonia com este momento, apontando inclusive para um fenmeno que seria observado e

    estudado dcadas mais tarde, de forma mais intensa: o multiculturalismo, ou as culturas

    hbridas. Da talvez decorra sua atualidade22

    22 Fundado em Rabelais, mas no restrito a ele, o conceito bakhtiniano de corpo grotesco vontade no seio da smekhovaia kultura, a cultura do riso, mostrou-se irresistvel. Todos o percebem como potencialmente subversivo e, no entanto, ao contrrio das subverses elaboradas por intelectuais, ele no elitista (porque trabalhamos aqui literalmente com os mais baixos denominadores comuns humanos). No admira, pois, que o carnaval e seu corolrio de valores tenham viajado com espantosa velocidade para inspirar o maio de 68 em

    (voltaremos a este assunto no captulo 4).

  • 36

    Este carnaval polifnico, que pressupe a combinao de diversos elementos

    dspares, est presente e patente na arte dadasta. Sua compreenso pode lanar luz sobre os

    efeitos e desdobramentos do movimento. A apropriao daqueles fragmentos da realidade

    (fotografias, manchetes, anncios, pequenos objetos), elementos emblemticos, oriundos de

    estruturas sociais e culturais consolidadas, como a cincia, o militarismo, a moral burguesa

    (to combatida por quase todos os movimentos artsticos no seio do modernismo), a sua

    recombinao, a sua reinveno, seu reposicionamento no interior de uma nova estrutura ou

    configurao visual anrquica e carnavalizada, causar um impacto ainda mais radical (em

    comparao com os movimentos artsticos anteriores) na sensibilidade e na percepo do

    pblico, gerando um questionamento da lgica das relaes de poder, das leis morais e dos

    padres de comportamento.

    O efeito imediato operado por estas estratgias de desconstruo (recorte) e

    reestruturao da imagem (colagem) a criao de um espao (ou terreno frtil) propcio ao

    surgimento (ou possibilidade de construo) de novos significados (de significados abertos,

    de mltiplos significados) para aqueles antigos dados sociais e culturais, expostos ali atravs

    de suas imagens mais emblemticas. A criao, ou a determinao de um significado possvel,

    mas ainda inexistente, sendo mera possibilidade, se transfere de maneira radical para a esfera

    do observador, para o terreno da subjetividade. Ou seja, os elementos que esto ali

    recombinados, deslocados de seus contextos anteriores, no esto mais em condies de

    impor um significado dado, fechado e pronto ao observador. Pelo contrrio, aqueles

    elementos estranhos, dispostos de forma perturbadora e aparentemente aleatria, de forma s

    vezes agressiva percepo, vo exigir do observador que este participe, contribua, deposite

    na obra, a partir do seu olhar, de sua reflexo e de sua emoo, um significado particular ou a

    sugesto de mltiplos significados possveis. Tudo isso a partir do que aquela estranha

    imagem diz a coisas que lhe so ntimas: fantasmas, temores, desejos, pr-conceitos, etc.

    Aquela estranha imagem ir exigir, ou antes, permitir ao espectador que ele se coloque na

    obra de uma forma mais intensa.

    Obviamente, todo este processo particular de significao no exclusividade da

    arte dadasta, sendo observvel em obras de movimentos e artistas anteriores. Para citar

    Paris, a teoria ps-colonial britnica, a literatura latino americana e o pensamento feminista continental e norte-americano. (EMERSON, 2003 p203-204)

  • 37

    apenas um exemplo mais evidente, bem distante no tempo, podemos fazer uma referncia a

    obra de Hieronymus Bosch, pintor renascentista (de cuja obra abordaremos certos aspectos no

    captulo 3). Seus quadros se constituam a partir de grandes mosaicos de lendas, seres

    fantsticos, padres de comportamentos, leis morais, dogmas religiosos, atos profanos,

    tradies, pr-conceitos e crenas vigentes no final da idade mdia e no renascimento.

    Imagem 9: O jardim das delcias. Pintura de Hieronymus Bosch. Fonte: Enciclopdia dos

    Museus. Volume Prado Madri. P 132

    Imagem 10: O jardim das delcias (detalhe)

  • 38

    Imagem 11: O inferno. Pintura de Hieronymus Bosch. Fonte: Enciclopdia dos Museus.

    Volume Prado Madri. P 132

    Imagem 12: O inferno (detalhe)

  • 39

    Todos estes elementos, assim como no Dadasmo, tambm esto justapostos e

    organizados em estruturas formais aparentemente caticas. No por acaso, Bosch

    considerado um dos precursores histricos (assim como Arcimboldo) do Surrealismo.

    Porm, na arte dadasta, toda esta estratgia de significao oriunda de um desejo

    de carnavalizao do real, vai se mostrar particularmente profcua, atendendo adequadamente

    s novas demandas de percepo que passamos a observar nas ltimas dcadas do sculo XIX

    e primeiras dcadas do sculo XX. Na verdade, as formas de cognio do ser humano, assim

    como diversos aspectos da prpria cultura de uma maneira geral, estavam sendo afetadas por

    todos os lados e, portanto repensadas e reformuladas. Reformulao que se inicia, como j

    afirmamos, com Nietzsche, com Freud, com Einstein, com Picasso (e tantos outros) e vai se

    intensificar com o fim da Segunda Guerra Mundial. daqui que partimos para percorrer agora

    este longo caminho que perpetua diversos aspectos da arte dadasta, ligando-a de forma

    estreita a processos recentes da produo artstica, particularmente a produo de imagens

    visuais.

  • 40

    3 DO DADASMO MANIPULAO DIGITAL DE IMAGENS: PONTES,

    PROCESSOS, CORRESPONDNCIAS

    Iniciamos este trabalho discorrendo sobre aquilo que Jung chamou de

    desenvolvimento da psique coletiva ao descrever em seu livro O esprito na arte e na

    cincia, os indcios do incio de um amplo processo cujos primeiros sinais se fazem notar nas

    obras de diversos cientistas, filsofos e artistas, como Freud, Nietzsche, Einstein, Joyce e

    Picasso. O romance Ulisses, a descoberta do inconsciente, o cubismo, a teoria da relatividade,

    todos estes fenmenos representariam em conjunto o precedente histrico de um processo que

    se iniciaria nas ltimas dcadas do sculo XIX e se estenderia at os nossos dias.

    Os movimentos de vanguarda artstica, inspirados em grande parte pela cincia

    e pela filosofia, buscavam uma virada radical em diversos aspectos da cultura ocidental,

    fundamentalmente no que dizia respeito s relaes de poder e opresso mantida a partir de

    cdigos morais e valores que j se mostravam defasados (patriotismo, dogmas catlicos, arte

    acadmica, obedincia a lei paterna, etc). O movimento dadasta, talvez por ter criado, mesmo

    que intuitivamente, uma estratgia para a composio de visualidades, atravs de tcnicas e

    procedimentos novos, que permitiam uma melhor adequao de suas imagens visuais a esta

    nova realidade, tornou-se uma das principais referncias e fontes de inspirao para outros

    importantes movimentos culturais e artsticos que se desenvolveram posteriormente.

    Se o Dadasmo tivesse abrangido to-somente o protesto contra a guerra e contra a racionalidade dessa cultura proclamando, por sua vez o irracional e o acaso como caminhos para se encontrar uma realidade humana mais autntica o fenmeno no teria ultrapassado o momento histrico que o gerou e a que se referia o protesto. (...) Acontece, porm, que atravs do protesto, ou melhor, alm do protesto, deu-se uma verdadeira descoberta de novos mundos da linguagem. Houve uma espcie de renascimento de materiais e tcnicas A capacidade inventiva dos artistas revelou a existncia de formas de expresso em todo tipo de materiais e combinaes, muitas vezes materiais desprezados ou desprezveis (pedacinhos de cartas rasgadas, recompostas em belssimas composies caligrficas e tipogrficas Kurt Schwitters, que depois foi professor da Bauhaus, sacos de aniagem, trapos e pregos Picasso). Os prprios conceitos do que seria uma forma de arte (forma expressiva) foram reformulados numa viso nova e produtiva. Ainda que o propsito do Dadasmo fosse destruidor, visando abolir as normas estabelecidas e, com isso, muitos preconceitos, o fato que, atravs dos objetos que criaram, os artistas desenvolveram novas possibilidades formais e todo um vocabulrio novo que veio enriquecer a linguagem nos vrios campos da arte. No sentido artstico, sua ao foi verdadeiramente construtiva. (OSTROWER, 2004. p341)

  • 41

    3.1 DESDOBRAMENTOS DO DADASMO NO SENTIDO DA INTERAO COM O

    PBLICO: BAUHAUS E POP ART

    O Dadasmo, que foi reconhecidamente um movimento anti-artstico, talvez

    visasse, simplesmente, um questionamento a respeito de uma srie de fenmenos que,

    segundo a viso dos adeptos do movimento, instaurara-se em tudo aquilo que, naquele

    momento, era chamado de arte: narcisismo do artista, a funcionalidade da arte, a moral

    burguesa ditando tendncias formais e temticas, a padronizao e o academicismo, etc. O

    que ocorreu de fato, a despeito destes propsitos questionadores, foi que as obras de arte

    visual do Dadasmo (sem entrar no mrito das demais linguagens e formas de expresso

    utilizadas pelo grupo) introduziram ou estimularam na histria da arte e da imagem, de forma

    radical e apenas esboada por alguns movimentos precursores (Futurismo e Cubismo, por

    exemplo), tcnicas e estratgias de significao que marcariam definitivamente os trabalhos

    de comunicao visual durante as dcadas posteriores, at os nossos dias (seja em

    movimentos como a Pop Art e a Poesia Concreta, no Brasil, ou nos trabalhos comerciais de

    designers e publicitrios, em cartazes, anncios, impressos e out-doors).

    Imagem 13: Capa de folheto, elaborada por Lester Beal. HURLBURT, 2002. p46

  • 42

    Imagem 14: Design para pgina de revista, elaborado por Bradbury Thompson. Fonte:

    HURLBURT, 2002. p84

    As tcnicas e formas de expresso dadastas, em sua essncia, foram

    sucessivamente incorporadas, no decorrer das dcadas seguintes, por diversos movimentos

    artsticos e mesmo pelo trabalho de profissionais a servio do mercado de comunicao

    visual, via publicidade ou design.

    O Dadasmo influiu nos designers grficos de duas maneiras igualmente importantes: ajudou-os a se libertarem das restries retilneas e reforou a idia cubista do uso da letra em si mesma como uma experincia visual. [...] Apesar de todas as suas extravagncias, o Dadasmo deve ser encarado seriamente, em virtude da sua influncia nos demais movimentos artsticos que se seguiram. (HURLBURT, 2002. p23 )

    A tendncia para composies assimtricas e a busca de um equilbrio visual que

    no mais se baseava na distribuio harmnica e eqidistante no campo visual, ir orientar o

    trabalho e a pesquisa de escolas, artistas e profissionais do design, inspirados pelas arrojadas

    experincias do Dadasmo23

    23 Interessante perceber que, ao contrrio da arte ocidental, muito guiada (com honrosas excees) at aquele momento, pelos cnones do renascimento (simetria, perspectiva linear e central), a arte oriental j experimentava uma tendncia para a assimetria e para outros padres de perspectiva (perspectiva obliqua, com dois pontos de fuga, por exemplo). Isto refora a idia de que os movimentos de vanguarda artstica faziam parte de um processo mais amplo, que veio a incluir uma aproximao da filosofia e da cincia ocidental com diversas tradies do pensamento oriental.

    . S para citar o exemplo mais evidente, a escola alem de

  • 43

    arquitetura, arte e design denominada Bauhaus e fundada aps a Primeira Grande Guerra,

    trouxe para seu corpo docente artistas oriundos de diversos movimentos de vanguarda, do

    Dadasmo (como Kurt Schwitters, por exemplo) ao Construtivismo russo e ao Cubismo

    (sendo que estes dois movimentos, de forma particularmente forte, j possuam relaes

    estreitas, em termos estticos e ideolgicos, com o Dadasmo). A semente de experimentao

    livre que tinha sido lanada pelo Dadasmo encontrou depois da guerra um novo solo frtil.

    Na Bauhaus (oficina de construo), uma academia alem de artes que se tornou lendria em

    tudo, nos mtodos de ensino e na qualidade artstica dos professores, as novas idias se

    tornaram ao (OSTROWER, 2005. p345).

    Apesar da abertura dos significados e da tendncia ao anarquismo24

    24 Artistas como o pintor russo Wassily Kandinsk, um dos principais expoentes da escola Bauhaus, preocupava-se de forma particular com a questo da abertura dos significados e do dilogo entre as diversas linguagens e meios de expresso na produo artstica, residindo a um dos grandes dilogos e pontos de aproximao entre os diversos movimentos de vanguarda. No por acaso, Kandinsk teorizou, em suas aulas, sobre as relaes entre a cor e os sons musicais, ou seja, entre as matrizes visual e sonora da linguagem (voltaremos a este assunto de forma detalhada no captulo 5), tornando-se um dos pais da arte abstrata (ou do Expressionismo Abstrato).

    que eram

    prprios do Dadasmo, suas tcnicas e procedimentos incorporados e estudados pela Bauhaus,

    iro evoluir no sentido de uma possvel aplicabilidade, ou funcionalidade, em outras esferas

    da comunicao visual, que no restritas ao que se considerava arte, no sentido mais nobre

    deste termo. O uso da palavra e das letras como elementos de composio da imagem,

    estabelecendo relaes diversas com outros elementos visuais, a colagem fotogrfica, a

    liberdade na composio (assimetria, associaes livres de imagens), todas estas tcnicas e

    procedimentos de elaborao de imagens, tornaram-se fundamentais para toda a comunicao

    visual direcionada ao mercado que se desenvolveu posteriormente, especialmente no design e

    na publicidade. As fronteiras entre o artstico e o comercial (categorias que ainda hoje so

    objetos de debate e polmica) comeavam a se dissolver.

  • 44

    Imagem 15: Design da Bauhaus. Fonte: http://tipografos.net/bauhaus/mestres.html acesado

    em 25/11/2010

    Imagem 16: Design da Bauhaus. Fonte: http://aulas.pro.br/blog4/?p=11 acessado em

    25/11/2010

    Imagem 17: Capa de publicao da escola Bauhaus, elaborada por Herbert Bayer. Fonte:

    HURLBURT, 2002. p39

  • 45

    Lszl Moholy-Nagy, em 1923, quando aderiu ao Bauhaus , estava bem familiarizado com as idias do movimento De Stijil, de uma tipografia assimtrica e simplificada. Conhecia tambm o trabalho experimental de Man Ray em fotografia e fotogramas, e a utilizao ps-cubista de montagem e colagem no design . (...) Os construtivistas e o primeiro grupo de designers da escola Bauhaus tambm conheciam perfeitamente as propostas libertrias do movimento Dada; contudo, era propsito destes movimentos, bem como do De Stijil, dar um sentido de ordem e de objetividade ao caos institudo pelo Dadasmo. (...) Em muitos sentidos, o Bauhaus, menos do que um movimento, foi um centro de estudos que reuniu, em uma escola dedicada a testar novas concepes artsticas, as idias acumuladas nas duas primeiras dcadas do sculo. (HURLBURT, 2002. p23-38-40)

    A escola Bauhaus foi fechada pelos nazistas, ainda na dcada de 30, mas seu

    impacto sobre a comunicao e as artes visuais do sculo XX, perpetuando atravs de seus

    alunos as lies de grandes nomes das vanguardas artsticas dos anos anteriores, era

    definitivo. A partir da dcada de 50, aps o fim do longo e negro perodo que se estendeu da

    crise de 29 ao trmino da Segunda Grande Guerra, com todas as suas conseqncias

    econmicas e morais, o esprito de contestao e questionamento prprio das vanguardas das

    dcadas de 10 e 20 ser renovado em diversas frentes. Destacaremos a seguir alguns

    fenmenos que teriam uma relao mais estreita com certas especificidades do Dadasmo.

    Principalmente via Bauhaus, as fundamentais formas da visualidade dadasta iro

    se difundir para alm do terreno exclusivo e restrito da experimentao e da vanguarda, ou

    para alm daquilo que passou a ser considerado produo artstica de fato25

    25 Com todas as implicaes que tal noo sugere, a discusso terica a respeito do que pode ou no na contemporaneidade ser considerado arte tornou-se um verdadeiro pntano, ou poo sem fundo. No pretendemos aqui entrar neste debate, embora reconheamos sua importncia. O que nos interessa, no momento, constatar que diversos padres formais e tcnicos da visualidade contempornea originam-se no Dadasmo (um movimento considerado de vanguarda artstica) e se perpetuam no terreno do design e da publicidade (prticas consideradas comerciais).

    . Quando a

    Bauhaus inaugura este dilogo entre os vrios fundamentos estticos institudos pelas diversas

    vanguardas artsticas e o universo da aplicabilidade e funcionalidade tcnica e comercial,

    estes fundamentos estticos passam a atingir, por conseqncia, um pblico bem mais amplo

    e diversificado. Da mesma forma passa a estabelecer um novo tipo de relao com este novo

    pblico. A respeito deste novo tipo de relao com o pblico, que no mais aquela relao

    estabelecida nos momentos de ruptura das dcadas de 10 e 20 (com seus efeitos

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    perturbadores, chocantes e desestabilizadores) trataremos no captulo 5. Por hora, basta-nos

    destacar o caminho inverso a este, percorrido pelos criadores da pop art norte-americana, nas

    dcadas de 50 e 60.

    Ao f