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    ESCOLA DA MAGISTRATURA DOTRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

    DireçãoDesembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon

    Conselho Desembargador Federal Paulo Afonso Brum VazDesembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira

    Coordenador Científico do Módulo de Direito Tributário

    Juiz Federal Leandro Paulsen

     Assessoria Isabel Cristina Lima Selau

     __________________________________________

    CADERNO DE DIREITO TRIBUTÁRIO - 2006

    Organização e Revisão – Divisão de EnsinoMaria Luiza Bernardi Fiori Schilling

    Revisão – Divisão de Publicações  Arlete HartmannLeonardo SchneiderMaria Aparecida Corrêa de Barros BertholdMaria de Fátima de Goes Lanziotti

    Capa e Editoração – Divisão de Editoração e Artes  Alberto Pietro Bigatti Artur Felipe TemesMarcos André Rossi VictorazziRodrigo Meine

     ApoioSeção de Reprografia e Encadernação

    Contatos:E-mail: [email protected] Assessoria: (51) 3213-3040Divisão de Ensino: (51) 3213-3041Divisão de Publicações: (51) 3213-3043

    Divisão de Editoração e Artes: (51) 3213-3046www.trf4.gov.br/emagis

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     Apresentação

    O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do Tribunal

    Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em encontros mensais,

    voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes federais substitutos da 4ª Região,

    que atende ao disposto na Emenda Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre

    outros, propiciar aos magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas,

    melhor instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos

    concretos de sua jurisdição.

    O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto desta

    Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às necessidades

    dos participantes.

    O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como artigos,

     jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores brasileiros e estrangeiros

    compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados da 4ª Região, bem como a

    pesquisadores e público interessado em geral.

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    COMO CITAR ESTA OBRA:

    CARVALHO, Cristiano. Lançamento, presunções e ficções no Direito Tributário. Porto Alegre:

    TRF – 4ª Região, 2006 (Currículo Permanente. Caderno de Direito Tributário: módulo 1)

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    ÍNDICE

    “ LANÇAMENTO, PRESUNÇÕES E FICÇÕES NO DIREITO TRIBUTÁRIO”

    Ministrante: Cristiano Carvalho 

    Ficha Técnica.............................................................................................................................. 02 Apresentação.............................................................................................................................. 03

     Texto: “ Lançamento, Presunções e Ficções no Direito Tributário”  

     Autor: Crist iano Carvalho

    1 Ontologia e Epistemologia........................................................................................................ 07 2 Epistemologia jurídica .............................................................................................................. 09 

    3 A problemática das presunções e ficções jurídicas.................................................................. 113.1 Linguagem, realidade social e institucional....................................................................... 113.2 Breve introdução à Teoria dos Atos de Fala...................................................................... 12

    3.2.1 Atos ilocucionários................................................................................................... 123.2.2 Força ilocucionária................................................................................................... 133.2.3 Tipos de atos de fala e propósitos ilocucionários.................................................... 143.2.4 Direção de ajuste dos atos ilocucionários................................................................ 173.2.5 Macro-ato de fala..................................................................................................... 183.2.6 A sexta força ilocucionária: ficcional........................................................................ 21

     4 Sistema Jurídico: normas, princípios e regras......................................................................... 22

    4.1 Teoria do Sistema Jurídico – o direito como um processo comunicacional...................... 224.2 Valores morais e valores jurídicos ..................................................................................... 23

    4.3 A autogeração do sistema jurídico..................................................................................... 234.4 Os elementos do sistema jurídico como atos de fala......................................................... 244.4.1 Normas, princípios e regras..................................................................................... 244.4.2 Definição de norma .................................................................................................. 254.4.3 Diferenças entre princípios e regras........................................................................ 26

    4.4.3.1 Destinatários e direção de ajuste................................................................. 264.4.3.2 Força e propósitos ilocucionários................................................................ 284.4.3.3 Diferença quanto ao conteúdo proposicional.............................................. 28

    4.4.4 As regras jurídicas................................................................................................... 294.4.5 Metaregras e regras de comportamento.................................................................. 304.4.6 Regras gerais e abstratas, individuais e concretas................................................. 314.4.7 O triplo propósito ilocucionário das regras concretas.............................................. 344.4.8 Lançamento tributário como regra individual e concreta......................................... 35

     5 Presunções e Ficções.............................................................................................................. 365.1 Abertura e fechamento cognitivo dos antecedentes normativos....................................... 365.2 O direito e a verdade.......................................................................................................... 385.3 Verdade real e verdade formal........................................................................................... 405.4 Breves considerações sobre a prova................................................................................ 445.5 Epistemologia “do” direito e epistemologia “no” direito...................................................... 475.6 Prova, erro de fato e ação rescisória................................................................................. 485.7 As presunções no direito.................................................................................................... 50

    5.7.1 Introdução................................................................................................................ 505.7.2 Conceito de presunção jurídica............................................................................... 525.7.3 As espécies de presunção....................................................................................... 53

    5.7.3.1 Presunções hominis..................................................................................... 54

    5.7.3.2 Presunções legais........................................................................................ 545.7.3.3 Presunção absoluta ou jure et jure.............................................................. 56

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    5.7.3.4 Presunção relativa ou juris tantum............................................................... 565.8 As Ficções Jurídicas.......................................................................................................... 57

    5.8.1 Introdução Histórica................................................................................................. 57

    5.8.2 O período iluminista — Jeremy Bentham e as ficções............................................ 595.8.3 Definição de ficção jurídica...................................................................................... 625.8.4 Ficções e eqüidade.................................................................................................. 64

    5.8.4.1 Introdução.................................................................................................... 665.8.4.2 Princípios versus regras: o caso Riggs vs. Palmer...................................... 685.8.4.3 As cláusulas abertas do direito privado....................................................... 735.8.4.4 Integração sistêmica.................................................................................... 74

    5.8.5 São as ficções “verdades jurídicas”?....................................................................... 775.8.6 Ficções de primeiro grau – desconsideração da realidade objetiva........................ 795.8.7 Ficções de segundo grau — desconsideração da realidade institucional............... 815.8.8 Ficções de terceiro grau – desconsideração da realidade jurídica.......................... 825.8.9 É a pessoa jurídica uma ficção?.............................................................................. 855.8.10 As ficções jurídicas no direito tributário................................................................. 86

    5.8.10.1 As ficções jurídicas tributárias frente aos princípios constitucionais....... 875.8.10.1.1 Princípio da Segurança Jurídica.................................................... 875.8.10.1.1.1 Ficções jurídicas e segurança juridical................................ 89

    5.8.10.1.2 Princípio do devido processo legal................................................ 915.8.10.1.2.1 Ficções e devido processo legal.......................................... 92

    5.8.10.1.3 Princípio da Capacidade Contributiva........................................... 925.8.10.1.3.1 Capacidade econômica e capacidade contributive............. 925.8.10.1.3.2 Direito tributário e economia: acoplamento estrutural eanálise econômica................................................................................... 965.8.10.1.3.3 Ficções e capacidade econômica........................................ 98

    5.8.10.1.4 Princípio federativo........................................................................ 995.8.10.1.5 Princípio da legalidade tributária.................................................... 100

    5.8.10.1.5.1 Ficções e legalidade tributária............................................. 101

    5.8.10.1.6 Princípio da tipicidade cerrada....................................................... 1015.8.10.1.6.1 É a tipicidade cerrada uma limitação de origemexclusivamente constitucional?............................................................... 1035.8.10.1.6.2 Ficções e tipicidade cerrada................................................ 1075.8.10.1.6.3 O artigo 108 do Código Tributário Nacional e o argumentopor analogia............................................................................................. 107

    5.8.11 O artigo 110 do CTN – metaregra antificção......................................................... 1095.8.12 As ficções na regra-matriz de incidência tributária................................................ 110

    5.8.12.1 Ficção no critério material...................................................................... 1115.8.12.1.1 O ICMS e os serviços de bares e restaurantes........................... 1125.8.12.1.2 O IPI e a industrialização sob encomenda.................................. 1135.8.12.1.3 O ISS e a lista de serviços:.......................................................... 113

    5.8.12.2 Ficção no critério temporal..................................................................... 113

    5.8.12.3 Ficção no critério espacial...................................................................... 1155.8.12.4 Ficção no critério pessoal....................................................................... 1165.8.12.5 Ficção no critério quantitativo................................................................. 116

    5.8.12.5.1 Base de cálculo............................................................................ 1165.8.12.5.2 Alíquota........................................................................................ 118

    5.8.13 A ficção na regra individual e concreta administrativa – desconsideração dapersonalidade jurídica....................................................................................................... 1215.8.14 Diferença entre ficções e presunções absolutas................................................... 122

    5.8.14.1 O artigo 30 da Lei de Introdução ao Código Civil.................................. 1245.8.14.2 A pauta fiscal.......................................................................................... 1255.8.14.3 A tributação de coligadas e controladas no exterior.............................. 1265.8.14.4 A substituição tributária “para frente”..................................................... 127

    5.8.15 Ficção, simulação e dissimulação......................................................................... 128

     Referências Bibliográficas........................................................................................................... 131

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    e apreensão. Um jogo de xadrez, por exemplo, não pode ser decomposto

    apenas por seus atributos físicos. O fato de certas pedras serem dispostas

    num tabuleiro e movidas em tais e quais movimentos não basta para acompreensão do que seja “xadrez”. Um ser extraterrestre que não

    conhecesse nada da cultura humana, incluindo jogos como esse, não seria

    capaz de compreender o que está se passando numa partida de xadrez ou

    qualquer outra atividade que envolva cooperação humana dentro do contexto

    da cultura.

     A Epistemologia também pode ser objetiva, quando o conhecimento

    independe de juízos subjetivos e pode ser subjetiva, quando conhecer requer juízos de subjetividade. Assim, posso conhecer cienti ficamente tanto objetos

    ontologicamente objetivos quanto subjetivos. Por exemplo, posso dizer

    objetivamente que tanto a Gisele Bündchen quanto a Ana Hickmann são

    modelos profissionais. Entretanto, posso também afirmar que considero a

    segunda mais bonita que a primeira. No primeiro caso, trata-se de um juízo

    objetivo; no segundo subjetivo.

    2 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA

     A temática das presunções e ficções jurídica leva, necessariamente, a

    indagações de cunho jurídico-filosóficas. São institutos que cumprem funções

    especiais no sistema jurídico, algumas vezes contrariando o senso-comum, outras

    violando princípios jurídicos da mais alta envergadura.

     Ao analisar o fenômeno jurídico venho desenvolvendo uma Epistemologia que

    se apóia em três grandes teorias:

    a) A Teoria dos Sistemas

    Entendida não como uma corrente específica, mas sim como um amálgama

    de diversas teorias, tais como a Cibernética, Autopoiese, Teoria da Comunicação e

    da Informação e Teoria do Caos, tendo todas essas linhas o objeto comum de

    estudo: os sistemas dinâmicos e complexos.

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     Aplicada ao Direito, a Teoria dos Sistemas vê o fenômeno jurídico como um

    sistema auto-regulável, autogerativo e auto-referenciável e, também, como um dos

    subsistemas sociais em constante interação com outros subsistemas, tais como oeconômico, o científico, o político, o moral e o religioso.

     A Teoria dos Sistemas considera que o direito positivo, entendido este como o

    conjunto de todas as normas válidas aqui e agora, tanto legais, como jurisdicionais

    e administrativas, é formado por atos comunicacionais ou atos de fala, organizados

    numa determinada estrutura hierarquizada.

    b) A Teoria dos Atos de FalaConsiderando que o direito positivo é um sistema formado por atos de fala,

    i.e., comunicações oriundas de um emissor e enviadas a determinados destinatários,

    dá-se então relevância ao aspecto pragmático da comunicação humana. Nesse

    contexto, não há teoria mais desenvolvida que a Teoria dos Atos de Fala, criada

    pelo filósofo inglês John L. Austin e posteriormente desenvolvida pelo filósofo

    americano John R. Searle.

     A Teoria dos Atos de Fala tem como foco principal a análise da força e

    finalidades ilocucionárias  da linguagem humana, em outras palavras, quais os

    propósitos pretendidos pelos falantes ou emissores ao se comunicarem, bem como

    os atos perlocucionários, i.e., os efeitos acarretados pelos atos de fala nos ouvintes

    ou receptores.

    c) A Análise Econômica do Direito

    Considerando que atos de fala acarretam efeitos concretos nos ouvintes, i.e,

    conseqüências, nada mais oportuno que utilizar também a linha de pensamento

    conseqüencialista por natureza, que é a Ciência Econômica, para analisar o Direito.

     A Análise Econômica do Direito, de origem norte-americana (também conhecida

    como Law and Economics) é uma corrente interdisciplinar, que busca firmar um

    diálogo entre as Ciências Jurídica e Econômica, com ênfase na utilização das

    ferramentas desta última para estudo do sistema jurídico.

     A Economia não tem por objeto, ao contrário do que reza o senso-comum,

    somente categorias como taxas de juros, inflação, curvas de oferta e demanda, etc.

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    O objeto por excelência da Economia é a Ação Humana, da qual o Direito é apenas

    uma de suas manifestações.

     A aplicação da teoria econômica ao Direito leva em conta principalmente ofator eficiência das normas jurídicas, não como modo de subjugar questões jurídico-

    morais como a justiça e a igualdade, mas sim pelo fato de que, muitas vezes, o

    desconhecimento dos efeitos econômicos acarretados pelas normas faz com que as

    intenções originais dos operadores do direito (dentre eles, os juizes) acabem tendo o

    efeito contrário ao pretendido.

    Dessa forma, ferramentas como a Teoria dos Custos de Transação, das

    Externalidades, Teoria dos Preços, etc, ensinam a perceber conseqüências reais dodireito. Tal perspectiva é fundamental, pois uma vez que tomamos como premissa

    que o direito é um sistema em constante interação com os demais e, portanto, a

    reação destes, positiva ou negativa, acabará influenciando a própria auto-regulação

    e autogeração jurídica.

    3 A PROBLEMÁTICA DAS PRESUNÇÕES E FICÇÕES JURÍDICAS

    Presunções e ficções são técnicas jurídicas utilizadas para solucionar

    determinados problemas. São artifícios inseridos no artefato maior que é o próprio

    sistema jurídico, mecanismo regulador da conduta humana e verdadeiro calibrador

    do sistema social como um todo. Considerando que as presunções e as ficções são

    técnicas utilizadas para que as comunicações jurídicas obtenham efeitos que não

    obteriam de outra forma, a Teoria dos Atos de Fala será o principal instrumento para

    análise desses institutos.

    3.1 Linguagem, realidade social e institucional

     A linguagem funciona como mecanismo de representação da realidade

    e como mecanismo de comunicação. É o meio pelo qual nos conectamos com

    a realidade e que nos possibilita interagir com outros indivíduos. Entretanto,

    a linguagem não constitui a realidade objetiva, mas sim a pressupõe.

    Há, entretanto, uma parte  da realidade que é constituída

    lingüisticamente: a realidade institucional. Enquanto a realidade objetiva tem

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    uma ontologia objetiva, existe independentemente do observador, a realidade

    institucional é ontologicamente subjetiva.

     A realidade institucional, que compreende toda a estrutura sociallingüisticamente desenvolvida, na qual vivem e agem os indivíduos racionais,

    pressupõe a intencionalidade para tanto, entendida como a aptidão da consciência

    de projetar-se para fora de si mesma.

     As estruturas institucionais requerem a intencionalidade coletiva, que não

    pode ser reduzida à individual. Por intencionalidade coletiva entende-se a forma de

    consciência e de ação realizada em termos cooperativos, não redutíveis a

    intencionalidade individual. As instituições têm papel fundamental para a interação humana, restringindo

    o raio da ação humana, impondo regras do jogo e permitindo que as organizações

    possam agir nesse contexto de regras constitutivas.

     A linguagem é uma forma de ação humana. E enquanto tal manifesta-

    se através de atos de fala.

    3.2 Breve introdução à Teoria dos Atos de Fala

    Tentarei expor, da maneira mais sintética possível, a teoria referida acima. A

    maneira mais eficaz para fazer isso é limitar a exposição a conceitos e definições de

    algumas de suas categorias-chave. Vamos a elas, então:

    3.2.1 Atos ilocucionários

     A comunicação é uma espécie de ação humana, e a unidade mínima da

    comunicação humana é o ato de fala do tipo ilocucionário .

    Falar uma linguagem é exercer um comportamento governado por regras. Em

    outras palavras, falar é realizar atos de acordo com regras . 3  Ainda que, na

    prática comum da linguagem os seus usos façam parte do pano de fundo de nossos

    hábitos, a Teoria dos Atos da Fala busca sistematizar essas regras.

     A diferença fundamental da Teoria dos Atos da Fala para outras ciências da

    linguagem é a de considerar o ato de fala como núcleo da linguagem. Toda

    comunicação lingüística envolve atos lingüísticos. Portanto, a unidade da

    3 Cf. Searle. Speech acts, p. 22.

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    comunicação lingüística não é, como tem sido normalmente pressuposto, o símbolo,

    palavra ou frase, ou mesmo o proferimento do símbolo, da palavra ou da sentença,

    mas, sim, a produção ou enunciação do símbolo, palavra ou frase através daperformance do ato de fala.4 

    John L. Austin, precursor da teoria, classificou os atos de fala em três

    categorias: 1) locucionários; 2) ilocucionários e; 3) perlocucionários5.

    Os atos locucionários6  são as frases enunciadas, sem levar em conta a

    intenção e o uso que o falante lhe quer impor. Por exemplo, as seguintes frases: a)

    João abre a porta; b) João, abra a porta? c) João, abra a porta!; todas as frases são

    idênticas do ponto de vista semântico: possuem um sujeito, verbo e predicado e areferência é idêntica; a proposição é a mesma: que João abre a porta. Onde está a

    diferença? Em nível pragmático, isto é, nos diferentes atos ilocucionários.7 

    Por outro lado, as frases Quando João viajará?” e “Você pretende trocar de

    automóvel?” têm diferentes conteúdos proposicionais, todavia idênticas forças

    ilocucionárias.

    Os atos ilocucionários, portanto, denotam a intenção do falante ao utilizar a

    linguagem: afirmar, perguntar, ordenar, descrever, expressar um desejo, etc.. É sob

    esse prisma que analisarei categorias como sistema jurídico, fato jurídico, norma,

    princípio, regra, presunções e ficções.

    3.2.2 Força ilocucionária

    Como visto acima, ainda que a proposição possa ser a mesma, isto é, a frase

    ter o mesmo conteúdo semântico, a intenção empregada pelo falante ao comunicar

    pode dar-se de várias formas. Essa é a força ilocucionária.

     Algumas formas de indicar a força ilocucionária são a ordem das palavras e o

    tom em que a frase é expressa: a) você sairá do quarto; b) você sairá do quarto!; c)

    você sairá do quarto? Alguns indicativos sintáticos, como a exclamação e a

    4 Searle (1968, p. 16).5  A distinção não é adotada por Searle, que diferencia os atos de fala apenas em locucionários e

     perlocucionários, denominando de “proposição” o que Austin chama de ato locucionário,6 Searle não aceita a classificação de Austin, e não utiliza a categoria atos locucionários, preferindo

    utilizar “conteúdo proposicional” dos atos de fala, o que significa a porção meramentesemântica da linguagem.7 Conforme Searle e Vanderveken (1985, p.1).

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    interrogação, podem, de acordo também com o contexto, indicar a força

    ilocucionária.

     Assim, o ato de fala tem sempre uma força ilocucionária, que indica o uso queo falante está empregando no ato, que tem também um conteúdo proposicional. Um

    ato de fala simples tem a seguinte fórmula lógica F(p), onde F  simboliza a força

    ilocucionária e p  simboliza o conteúdo proposicional. Destarte, os exemplo acima

    são atos de fala que contém o mesmo conteúdo proposicional com diferentes forças

    ilocucionárias. O exemplo (a) é um ato de fala de força assertiva; o exemplo (b), de

    força diretiva e; o exemplo (c), também diretivo, porém, com diferente intensidade

    em comparação com o exemplo (b), pois aqui não se trata de uma ordem, mas deum pedido.

    Nem sempre é simples verificar intensidade da força ilocucionária através da

    própria frase. Uma sentença que é aparentemente um pedido, a depender do

    falante, pode significar uma ordem. Por exemplo, se um estagiário disser ao dono da

    empresa “O senhor poderia me alcançar aqueles papéis?”, trata-se de um pedido; se

    o dono da empresa disser ao empregado “O senhor poderia me alcançar aqueles

    papéis”, trata-se, muito provavelmente, de uma ordem, ainda que em tom polido.

    Num outro contexto, por exemplo, fora do ambiente de trabalho, tanto uma frase

    quanto a outra podem significar pedidos.

    3.2.3 Tipos de atos de fala e propósitos ilocuc ionários

    John L. Austin propôs uma classificação dos atos ilocucionários em cinco

    categorias: veriditivos, exercitivos, compromissivos, expositivos e comportativos.

    Trata-se, como afirmou o próprio Austin, de uma proposta meramente experimental,

    não definitiva, sendo que ele mesmo não estava satisfeito com a classificação.8 

    Searle, criticando as bases sobre as quais Austin erigiu a classificação,

    propõe outra, em seu clássico artigo “Uma taxinomia dos atos ilocucionários”9,

    classificando os atos ilocucionários em cinco tipos: assertivos, diretivos,

    compromissivos, expressivos e declarativos.

    8

      Nas palavras de Austin (1999, p.151): “I distinguish five very general classes: but I am far fromequally happy aboutall of them”.9 Artigo publicado no livro  Expressão e signif icado (Searle, 2002 e).

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    O propósito ilocucionário é o principal componente da força ilocucionária de

    um ato de fala, definindo os seus tipos. Também importante são as diferentes

    condições de sinceridade, direções de ajuste, condições preparatórias, etc. ParaSearle, são tipos de atos ilocucionários:

    a) assertivos — esse propósito é a de comprometer o ouvinte com

    a verdade da proposição, apresentando-a como uma representação de um

    estado de coisas no mundo (Searle: 2000, p. 137). O critério de avaliação

    dessa classe de atos ilocucionários é o verdadeiro/falso. A intensidade desse

    tipo de ato de fala é variável, não obstante o estado psicológico comum atodos ser a crença em algo. Todavia o ato pode expressar uma hipótese

    científica, uma previsão, um fato ou mesmo um palpite. A direção de ajuste é

    a palavra-mundo, isto é, o falante quer que o seu ato de fala ajuste-se, esteja

    de acordo com o mundo;

    b) diretivos — esse propósito significa a tentativa do falante em

    alterar a conduta do ouvinte, levando-o a fazer algo. Isso pode incluir desde

    atos de intensidade fraca, como pedidos e súplicas, até atos de intensidade

    forte, como comandos e ordens. A direção de ajuste é a mundo-palavra, isto

    é, o falante quer que o mundo se ajuste ao seu ato de fala.

    c) compromissivos — esses atos têm o propósito de comprometer

    o falante com alguma linha futura de ação 10, também em intensidades

    variáveis. A direção de ajuste é a mesma dos atos diretivos, porém ao passo

    que naqueles a realidade se ajustará ao ato porque o ouvinte será induzido a

    fazer o que lhe foi pedido ou ordenado, aqui é o próprio falante que se

    compromete a fazer algo expresso no seu ato de fala. Por exemplo, ao

    prometer que vou dirigir com cuidado, já me comprometi a dirigir com cuidado.

     A condição de sinceridade é a intenção;

    d) expressivos — o propósito ilocucionário dessa classe é o de

    expressar um estado psicológico, especificado na condição de sinceridade a

    respeito de um estado de coisas, determinado no conteúdo proposicional.

    Verbos ilocucionários deste tipo são agradecer, parabenizar, desculpar-se,

    10 Cf. Searle (2002 e, p.22)

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    dar as boas-vindas, criticar, etc. A direção de ajuste é nula, pois não se

    pretende nem que o mundo se ajuste ao ato de fala, nem que o ato de fala

    corresponda ao mundo; a verdade da proposição é pressuposta.11

      Se, porexemplo, parabenizo-o por ter sido aprovado em algum concurso, não é meu

    propósito descrever que você passou no concurso nem tampouco fazer com

    que você seja aprovado. A enunciação correta de uma frase assim não pode

    ser, portanto, “Parabenizo-o que você passou no concurso” ou “Parabenizo-o

    que você passe no concurso”, mas, sim, “Parabenizo-o por  você ter passado

    no concurso”;

    e) declarativos: conforme Searle

    12

    , “[...] a característica definidoradessa classe é que a realização bem-sucedida de um de seus membros

    produz a correspondência entre o conteúdo proposicional e a realidade, a

    realização bem-sucedida garante a correspondência entre o conteúdo

    proposicional e o mundo: se sou bem-sucedido em realizar o ato de designá-

    lo presidente, então você é o presidente; se realizo com sucesso o ato de

    nomeá-lo candidato, então você é candidato; se realizo com sucesso o ato de

    declarar um estado de guerra, então estamos em guerra; se sou bem-

    sucedido em realizar o ato de casá-lo, então você está casado”. O mero fato

    de se realizar o ato de fala já altera o estado de coisas no mundo. A direção

    de ajuste é dupla: palavra-mundo e mundo-palavra, ao mesmo tempo em que

    o ato corresponde ao mundo, pelo mero fato de sua enunciação (se o declaro

    casado, você está  casado), o mundo ajusta-se ao fato declarado, pois a

    declaração estabelece um novo status. Se o árbitro de futebol declara que o

     jogador cometeu uma falta, ele cometeu, não importando, para efeitos da

    partida, se ele realmente cometeu ou não; se o juiz de direito declara que

    determinado sujeito cometeu um crime, para fins jurídicos, ele cometeu.

    Note-se como a classe de atos declarativos tem importância fundamental para

    a realidade social da qual faz parte o direito. Não obstante as declarações serem

    factuais, elas instituem situações deônticas, com respectivos direitos e deveres. Se

    11

     Idem ibidem, p. 23.12 Ibidem, p. 26.

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    se declara alguém casado, ele passa a cumprir uma nova função de status que não

    possuía antes da declaração, com conseqüentes direitos e deveres relativos.

    3.2.4 Direção de ajuste dos atos i locucionários

     A direção de ajuste refere-se à relação entre a linguagem e a realidade, as

    palavras e o mundo por elas referido. Alguns atos ilocucionários têm, como parte do

    seu propósito, fazer o seu conteúdo proposicional corresponder ao mundo; outros

    têm como propósito fazer o mundo corresponder ao seu conteúdo proposicional. No

    primeiro caso, têm-se as predições, os relatos, os testemunhos, as teorias

    científicas, etc. No segundo caso, têm-se as ordens, os pedidos, as súplicas, aspromessas, etc.

    Há ainda atos com dupla direção de ajuste e atos com direção de ajuste nula.

    Os atos ilocucionários com propósito declaratório têm esse duplo ajuste e atos

    ilocucionários têm direção de ajuste nula.

    Em síntese, há quatro e tão-somente quatro direções de ajuste:

    a) direção de ajuste palavra-mundo — a proposição tem de

    corresponder a um independente estado de coisas no mundo, são seus

    exemplos relatos, descrições, hipóteses, predições, promessas;

    b) direção de ajuste mundo-palavra — o mundo é alterado para se

    ajustar ao conteúdo da proposição, sendo seus exemplos ordens, comandos,

    súplicas, pedidos;

    c) direção de ajuste dupla — o mundo é alterado para se ajustar

    ao conteúdo proposicional que por sua vez representa o mundo como sendo

    alterado, são seu exemplo declarações;

    d) direção de ajuste nula — não há intenção de realizar nenhum

    ajuste porque o propósito do ato é simplesmente expressar a atitude do

    falante em relação ao estado de coisas representado pela proposição ou

    suspender a relação entre linguagem e realidade, em comum acordo com o

    ouvinte. Exemplos dessa direção são as expressões de felicidade ou de raiva,

    ou as ficções.

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    Um exemplo constantemente citado por Searle (2002 e, p.5) foi escrito por

    Elizabeth Anscombe: Suponhamos que um homem vá ao supermercado com uma

    lista de compras feito por sua esposa, onde estão escritas as palavras “feijão,manteiga, toucinho e pão”. Suponhamos que, enquanto anda pelo supermercado

    com seu carrinho, selecionando esses itens, seja seguido por um detetive, que anota

    tudo que ele pega. Ao saírem da loja, comprador e detetive terão suas listas

    idênticas. No entanto, a função das duas listas será bem diferente. No caso do

    comprador, o propósito da lista é, por assim dizer, levar o mundo a corresponder às

    palavras; ele deve fazer com que a lista se ajuste às ações do comprador. Isso

    também pode ser demonstrado através da observação do papel do “erro” nos doiscasos. Se o detetive chegar em casa e de repente se der conta de que o homem

    comprou costeletas de porco em vez de toicinho, poderá simplesmente apagar a

    palavra “toicinho” e escrever “costeletas de porco”. Entretanto, se o comprador

    chegar em casa e a esposa lhe chamar a atenção para o fato de ter comprado

    costeletas de porco em vez de toucinho, ele não poderá corrigir o erro apagando

    “toucinho” da lista e nela escrevendo “costeletas de porco”.

    No exemplo acima, ambas as listas são o conteúdo proposicional, porém, de

    diferentes atos ilocucionários. A forma pela qual esse conteúdo se relacionará com a

    realidade dependerá da força ilocucionária, e a diferença é quanto à direção do

    ajuste. A lista do detetive tem a direção de ajuste palavra-mundo (assim como as

    teorias, os relatos, as predições), e a lista do comprador tem a direção de ajuste

    mundo-palavra (assim como os pedidos, promessas, súplicas, ordens).

    No contexto jurídico, diríamos que as normas jurídicas têm direção de ajuste

    mundo-palavra, enquanto a doutrina jurídica tem a direção de ajuste palavra-mundo.

    3.2.5 Macroato de fala

    É conhecida a história do ator que, em plena atuação em peça de teatro, mais

    especificamente uma comédia, percebeu um início de incêndio nos bastidores e

    gritou, olhando para a platéia, “fogo!”, tendo por resposta uma sonora gargalhada.

    Tendo gritado novamente, novamente a resposta foi uma gargalhada. Se non é vero,

    é bem trovato...

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    Independentemente de a história acima ser real ou não, ilustra de forma

    precisa como o contexto é capaz de dirigir o discurso, impondo uma macroestrutura

    que impõe o sentido global da comunicação. Outro exemplo, desta vez histórico, foio episódio em que Orson Wells, ao narrar em programa de rádio o livro de H.G.

    Wells, Guerra dos Mundos, propositadamente não fixou o seu discurso em

    fabulativo, ficcional, mas, sim, como uma descrição dramática da realidade. Numa

    época de relativo pouco fluxo de informação, sendo que o principal veículo de

    informação em tempo real era precisamente o rádio, o efeito da narração foi

    catastrófico: caos, confusão, pânico, violência, etc.

    O que importa é que todo o discurso é sempre estruturado de forma global,tendo uma força ilocucionária principal, ainda que haja diversos outros atos com

    distintas forças ilocucionárias.

    Wittgeinstein intuiu isso com a sua concepção de jogos de linguagem, mas a

    Teoria dos Atos de Fala tratou de analisar este fenômeno mais precisamente,

    trazendo a figura do macroato de fala.

     A análise pioneira nesse sentido foi desenvolvida por Teun A. Van Dijk, em

    sua obra Text and Context (Van Dijk, 2001). Para Van Dijk, ações podem ser

    combinadas com outras ações, para formar complexas e interligadas ações e

    seqüências de ações. Essas ações são organizadas em unidades de nível superior e

    estruturadas hierarquicamente, planejadas e interpretadas como tal. Exemplificando,

    se alguém pretende viajar para Paris, terá que conectar diversas ações menores,

    tais como reservar e comprar a passagem aérea, reservar o hotel, ir até o aeroporto,

    efetuar o check-in, embarcar, desembarcar, pegar um táxi, etc.. A marcação, ie.

    Viajar, conforme o exemplo acima, é a estrutura global que reúne todas essas ações

    de segunda ordem.

    Uma ação não é uma macroação em si, mas relativamente a outras ações.

    Viajar para Paris, ainda que seja uma macroação relativa às ações de segunda

    ordem referidas no exemplo, pode ser também uma ação inserida em outra

    macroação. Posso viajar para Paris como parte de um plano maior, como fazer um

    curso no exterior, visitar amigos, viajar por toda a Europa, etc.

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    Considerando que comunicar é um tipo de ação, os atos de fala também

    podem ser vistos como elementos interconectados numa estrutura global. Uma

    simples conversação ilustra a função do macroato de fala: A. “Alô?”

    B. “Alô, Pedro, aqui é o João.”

     A. “Ah! Oi, João, como vai?”

    B. “Ótimo. Vem cá, você ainda tem aquela bicicleta da Paula, que ela não

    usa mais?”

     A. “Sim, por quê?”

    B. “Bem, é que a Laura vai fazer aniversário semana que vem, e ela queruma bicicleta. Como eu acho que a Paula não a usa mais, talvez eu pudesse

    comprar de vocês para dar a Laura de presente.”

     A. “Por mim, tudo bem. É claro que eu primeiro tenho que perguntar a

    Paula, mas tenho certeza que ela não vai se importar.”

    B. “Que bom. Posso passar aí amanhã? E você pergunta à Paula?”

     A. “Claro. Até amanhã.”

    B. “Então tchau, e obrigado.”

     A. Tchau.

    Essa conversação simulada acima denota diversos atos ilocucionários

    (expressivos,compromissivos, diretivos, assertivos), mas a conversação como um

    todo, entretanto, pode ser sintetizada como um pedido (Van Dijk: 2001, p.238-

    239).

    O macroato de fala, às vezes pode ser expresso; outras vezes, mais sutil,

    dissimulado. Uma outra situação típica é a barganha. Numa negociação, por

    exemplo, envolvendo a compra de um bem, teremos atos ilocucionários assertivos

    (descrição do bem pelo vendedor), diretivos (as ofertas e contra-ofertas),

    expressivos (exclamações típicas nesse contexto, reclamando do preço ofertado e o

    oferecido), compromissivos (comprometimento quanto à qualidade do produto,

    promessa de pagar pelo mesmo, de entregá-lo ao comprador, etc.), declarativos (a

    tradição do bem declara a existência de uma mudança de proprietários e

    instauração dos respectivos direitos e deveres).

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    Mas o contexto comunicacional é instaurado pelo macroato de fala diretivo da

    barganha, desde o início do processo comunicacional instaurado pelo interesse do

    comprador em adquirir a mercadoria do vendedor.O macroato de fala denota uma espécie de pacto pragmático  entre os

    comunicadores, condição necessária para que o processo comunicacional possa se

    instaurar e fluir. No contexto jurídico, o macroato de fala é a força ilocucionária

    diretiva, ainda que o discurso jurídico-normativo tenha atos ilocucionários assertivos,

    declarativos, expressivos, compromissivos e diretivos.

    Destarte, num simples processo judicial, podem-se encontrar atos

    ilocucionários assertivos (descrição de fatos), compromissivos (em caso de acordo),declarativos (decisão judicial), expressivos (interjeições, formalismos, etc.) e

    diretivos (imposição de condutas a serem cumpridas). Mas o macroato de fala é de

    força ilocucionária diretiva, que fixa o contexto como normativo. A estrutura global da

    comunicação jurídico-normativa tem por função dirigir condutas, fazendo com que o

    mundo se ajuste à norma.

     Assim como as ações em geral, as comunicações são estruturadas e podem

    inclusive formar sistemas com códigos próprios de processamento de mensagens.

    Por isso, um sistema social contemporâneo tem subsistemas como o jurídico, o

    econômico, o político, o moral, o religioso e o científico. E, sempre que um processo

    comunicacional qualquer se instaurar, o macroato de fala próprio que firma o

    respectivo contexto poderá designar a conversação como própria de algum daqueles

    subsistemas sociais.

    3.2.6 A sexta força ilocucionária: ficcional

    Uma sexta categoria de atos de fala é aqui apresentada. Não se confunde

    com os assertivos, os diretivos, expressivos, declarativos ou compromissivos, pois

    suas características fundamentais são distintas.

    O propósito ilocucionário desse tipo de ato não é corresponder à realidade,

    comprometer o falante, expressar, declarar ou dirigir condutas, mas, sim, veicular

    determinado conteúdo proposicional que não é vinculado à realidade.

     A direção de ajuste não é nem palavra-mundo, nem mundo-palavra, mas sim

    nula.

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    O elemento caracterizador desse ato de fala ficcional, que estabelece o

    macroato de fala ficcional, é expresso dentro da função metalingüística da emissão.

    Por exemplo, um livro de ficção traz informações nesse sentido ao leitor (era umavez...), e ainda que não trouxesse, há outros indícios de que seja ou não ficção: o

    autor, reconhecido ou não nesse ramo de atividade, o gênero, o título, etc. Um filme

    de cinema é semelhante nesse aspecto. Uma peça de teatro já impõe o macroato

    simplesmente pelo próprio veículo e pelos elementos extralingüísticos que cercam

    esse tipo de manifestação artística. Ninguém vai ao teatro para ler notícias ou

    assistir documentários, ao passo que os veículos impressos e cinematográficos se

    prestam a essa função.

    4 SISTEMA JURÍDICO: NORMAS, PRINCÍPIOS E REGRAS.

    4.1 Teoria do Sistema Jurídico – o direito como um processo comunicacional

    Qual é o elemento puramente objetivo do direito que podemos encontrar?

    Grosseiramente falando, são os emaranhados de leis, entendidas como documentos

    nos mais diversos tipos de suportes físicos. Da mesma forma que uma cadeira,

    enquanto objeto material, é ontologicamente objetivo, mas enquanto artefato com

    função atribuída pela intencionalidade, é ontologicamente subjetiva, o direito,

    enquanto diretivo da ação humana, tem essa função atribuída pela crença coletiva

    — é ontologicamente subjetivo.

    Direito é um sistema comunicacional diretivo de condutas. Comunicar é uma

    forma de ação humana. Epistemicamente o que encontramos são registros desses

    atos comunicativos, ou atos de fala. Assim, onde houver comunicação, haverá atosde fala, sejam comunicações científicas, sejam políticas, religiosas ou jurídicas.

    Estruturalmente, portanto, o direito é um sistema, cujos elementos são

    comunicações. Essas podem ser analisadas pelas mais diversas ciências e teorias,

    como a Teoria da Comunicação e da Informação, pela Lógica Formal, pela

    Semiótica. Por uma questão de preferência, conforme já demonstrado, opto pela

    teoria que se considera a mais desenvolvida, até agora, no campo da Pragmática da

    Linguagem, que é a Teoria dos Atos de Fala. Nesse contexto, que ver-se-ão ofenômeno normativo e como subproduto seu, as ficções jurídicas.

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    4.2 Valores morais e valores jurídicos

    Uma das maiores contribuições do positivismo jurídico foi algo que muitas

    correntes doutrinárias contrárias até hoje não admitem, muitas vezes por uma má-compreensão do que significa essa separação. Por isso, é comum é confusão entre

    o positivismo, enquanto mera proposta epistemológica, com algo como um

    “legalismo”13, pelo qual tudo que o legislador ordenar deverá ser acatado sem

    protesto.

    Ocorre que dentre os subsistemas sociais e o seu ambiente, o macrossistema

    social, existem os que são primordialmente normativos. O macroato de fala que

    forma os contextos desses subsistemas tem força ilocucionária diretiva. Assim, ocontexto moral, o religioso, assim como o contexto jurídico, é fundamentalmente um

    dever-ser , pois sua função precípua é orientar as condutas humanas.

    4.3 A autogeração do sistema jurídico

    O direito é um sistema auto-regulativo, pois tem a capacidade de corrigir suas

    falhas através do processamento das informações que recebe do ambiente. Todavia

    para que possa se auto-regular, ele precisa se autogerar.14 

     A dinâmica de todo sistema complexo ou autopoiético funciona assim: na sua

    interação com o ambiente, busca manter seu equilíbrio interno (homoestase), e, para

    tanto, tem de processar as mensagens recebidas. De forma a continuar mantendo

    essa auto-regulação, necessita ser hábil para produzir seus próprios elementos. Em

    nível biológico, isso ocorre através da produção de células a partir do código

    genético. Em nível social, através da produção de atos de fala. 

     A produção de atos de fala jurídicos, cujo outro nome mais usual é “norma”

    está prevista pelo próprio sistema. Assim, não é a economia, a política, a religião ou

    a moral que fabricam direito, mas sim ele próprio, ainda que recebe influência destes

    e outros setores da sociedade. Todo sistema que “fecha os olhos” perante a

    sociedade, historicamente acaba sendo trocado por outro.

    13  Filósofos como Jeremy Bentham e Stuart Mill defenderam essa forma de legalismo, o que era

     justif icável no contexto histór ico de abuso e discricionariedade dos juizes de então. Tallegalismo asseguraria a segurança jurídica.14 Cf. Cristiano Carvalho (2005).

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    4.4.3 Diferenças entre princípios e regras

    O que a Teoria dos Sistemas e a Teoria dos Atos de Fala podem contribuir

    para esse tema é analisar as referidas diferenças através das funções de cadaespécie normativa, bem como os seus emissores e receptores, direção de ajuste e

    propósitos ilocucionários.

    No contexto geral do direito, a força e a finalidade do macroato de fala é

    sempre diretiva. O direito, enquanto mecanismo homoestático, calibrador do sistema

    social, tem por função precípua a estabilização social. No contexto intra-sistêmico,

    contudo, os atos de fala normativos podem ter destinatários distintos, bem como

    direções de ajuste diferentes e mais de uma força e finalidade.Um ponto importante nesta distinção é que os princípios são elementos

    lingüísticos mais simples que as regras. Geralmente, os princípios são enunciados

    atômicos, contidos num dispositivo legal, como por exemplo, os direitos individuais

    do artigo 50 e demais incisos da Constituição. Para a compreensão do sentido de

    enunciado como o direito de propriedade disposto no inciso do artigo 50 é necessário

    que o indivíduo esteja inserido num contexto social e institucional, onde haja funções

    de status que dêem significado aos termos direito e propriedade. Ainda assim, não é

    necessário um processo de interpretação no sentido hermenêutico da palavra, isto é,

    para que o sujeito compreenda que a Constituição lhe assegura esse direito, ele não

    precisa recorrer a uma reordenação lógica de enunciados normativos.

    4.4.3.1 Destin atário s e direção de ajuste

    Os princípios são normas. Todavia são normas, por assim dizer, de uma

    categoria especial. São traduções axiológicas, digitalizações lingüísticas de valores

    sociais, internalizadas no sistema pelo legislador constituinte. Os destinatários

    imediatos dos princípios, e esse é um ponto fundamental, não são os cidadãos

    comuns, mas aqueles investidos de competência jurídica, em outras palavras, os

    órgãos emissores de regras. Em suma, os princípios são normas endógenas, que

    servem à função de controle da autogeração do sistema jurídico; os órgãos

    produtores de regras devem ater-se aos valores enunciados pelos princípios, sob

    pena de terem seus atos normativos invalidados.

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    F : É o falante, ou, em linguagem jurídica, a fonte do direito, o foco

    emissor da norma.

    : O ato de fala, isto é, o princípio ou a metarregraS : é o ouvinte, isto é, os órgãos produtores de normas do sistema

     jurídico.

    Note-se que a função dessas normas endógenas é de calibrar o próprio

    sistema, de forma a regular a sua autogeração normativa.

    4.4.3.2 Força e propó sito s il ocuci onários . A essência do sistema jurídico é a sua imperatividade. O direito tem a função

    de calibrador da ordem social e, para tanto, suas mensagens são essencialmente

    ordens. Pelo prisma da Teoria dos Atos da Fala, todo elemento do sistema, a saber,

    toda norma, tem força e finalidade ilocucionárias diretivas, pois visam regular 15  a

    conduta humana. É que o macroato de fala que forma o contexto jurídico é diretivo.

    Não obstante essa característica universal, as normas podem variar quanto a

    sua complexidade. E essa trajetória se dá iniciando de atos de fala simples, com

    uma só força e finalidade ilocucionárias, até atos complexos, com dupla finalidade e

    força. É a trajetória dos princípios às regras.

    Enquanto atos de fala, os princípios têm finalidade ilocucionária simples,

    puramente diretiva, e buscam, enquanto normas endógenas, que seus receptores,

    os órgãos emissores de regras, produzam atos perlocucionários, isto é, os sigam

    como diretivos que são, quando produzirem novas normas no sistema.

    4.4.3.3 Diferença quanto ao conteúdo pr oposi cion al

    Por fim, a diferença entre princípios e regras dá-se também quanto ao seu

    conteúdo proposicional. As regras têm uma formulação implicacional (se p então q),

    ao passo que os princípios simplesmente dizem o que se pode e o que não de pode

    fazer na autogeração jurídica. Porém alguém poderia dizer: mas os princípios não

    15

      “Regular” tem dois sentidos aqui: 1) regular como ordenar, coagir o indivíduo a determinadascondutas e; 2) regular no sentido de calibrar, de trazer equilíbrio à sociedade. O direito não tema função de dirigir a conduta humana, como já vimos.

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    Da mesma forma, com base em enunciados soltos e desordenados, é

    sobremodo difícil para que o cidadão cumpra com as normas. A condição

    preparatória do conteúdo proposicional das normas pressupõe que as mesmassejam inteligíveis. Salvo em determinados tipos de conduta, onde se quer uma

    abstenção de ação por parte do cidadão, por exemplo, normas penais, nos demais

    casos, para que se possa cumprir com alguma determinação é necessário

    logicamente ser capaz de compreendê-la.

    Um contrato mal redigido, com cláusulas obscuras, torna-se difícil de ser

    cumprido; leis tributárias confusas e prolixas geram dificuldades ainda maiores.

    Nesses casos, é necessário uma atividade interpretativa, cujo fim será reordenaresse emaranhado de enunciados, numa estrutura lógica através da qual seja

    possível saber o que se pode e o que não se pode fazer.

     A estrutura lógica de uma regra é mais complexa que a de um princípio,

    sendo logicamente do tipo implicacional: p→q.

    4.4.5 Metarregras e regras de comportamento

    Para que se possa produzir norma é necessário seguir as regras

    autoreferenciais do sistema, isto é, regras que dizem como produzir outras regras.

    Por serem regras acerca de outras regras, as denomino de metarregras. 

     As metarregras são normas endógenas, assim como os princípios, porém

    estruturalmente mais complexas que estes. As metarregras são basicamente regras

    de competência, utilizando o léxico de Alf Ross. Portanto, seus destinatários não são

    cidadãos, mas os próprios órgãos produtores de normas. Os princípios são

    componentes formadores dessas metarregras, sendo que o legislador sabe como

    fazer uma nova norma a partir do produto resultante de enunciados autorizativos

    (por exemplo, criar imposto sobre a renda) e enunciados proibitivos (por exemplo,

    estrita legalidade, irretroatividade, anterioridade, isonomia, etc.).

    Sua direção de ajuste é, assim como a dos princípios, sistema-norma, isto é,

    o sistema, ao se autoproduzir, deve atender ao disposto nessas metarregras, sob

    pena de ulterior invalidação da regra produzida em desacordo.

    Já as regras de comportamento têm por destinatários os cidadãos comuns.

    Cabe lembrar que um indivíduo pode ser simultaneamente órgão do sistema e

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    cidadão comum, como, por exemplo, o legislador, o juiz e o fiscal. Obviamente, pelo

    princípio da isonomia, as normas valem para eles também. Mas, enquanto as

    metarregras lhes orientam a ação enquanto órgãos produtores de normas, as regrasde conduta lhes orientam enquanto cidadãos comuns. Um juiz terá necessariamente

    que seguir as primeiras ao proferir sentenças, bem como obedecer as últimas ao

    cumprir com suas obrigações tributárias.

    4.4.6 Regras gerais e abstratas, individuais e concretas

    Há basicamente duas espécies de regras no que tange a sua análise pela

    Teoria dos Atos de Fala: regras hipotético-condicionais e regras declarativas. As regras condicionais são atos de fala com a estrutura “se/então”, voltadas

    para o futuro: Se matar alguém/então deverá cumprir até 21 anos de reclusão; se

    vender mercadoria/então deverá pagar ICMS.

     A estrutura lógica dessa regra é Se p então f(q), ou formalmente: P→F(Q).

    Note que o indicador de força ilocucionária encontra-se antes da proposição

    implicada. Isso não significa que o antecedente proposicional ou hipótese (por

    exemplo, vender mercadoria) seja uma asserção ou uma predição no sentido estrito,

    sujeita a critérios de verdade/falsidade, pois o macroato de fala que informa o

    contexto comunicacional é diretivo. Assim, em termos sistêmicos, a fórmula pode ser

    assim enunciada: Fd[P→F(Q)], sendo que o Fd fora dos colchetes é a força

    ilocucionária diretiva — o macro-ato diretivo do direito.

    Note-se que uma lei científica tem a mesma estrutura lógica acima

    demonstrada: “se uma partícula de matéria for acelerada até a velocidade da

    luz/então sua massa tornar-se-á infinita”. Nesse caso, não se trata de um ato de fala

    com força ilocucionária diretiva (não obstante a estrutura condicional poder gerar

    essa confusão, pois os termos são leis ou normas científicas), pois o contexto é

    assertivo.

     A especificação ou não do destinatário é que informará se a regra é geral ou

    individual. Mas a forma condicional do antecedente volta-se necessariamente, de

    forma a atender às condições preparatórias do conteúdo proposicional, para o

    futuro. Essa é uma regra abstrata e sua direção de ajuste é mundo-norma.

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     A segunda espécie de regra quanto a estrutura interna é a regra “concreta”.

    Essa regra, como toda regra, tem estrutura implicacional no que tange a sua

    proposição. Mas não é um ato de fala diretivo/condicional e simassertivo/declarativo/diretivo.

    Como vimos, os atos de fala declarativos criam situações novas apenas pela

    força da declaração. E isso pressupõe um ato de aplicação da regra abstrata por

    alguém que tenha autoridade para tanto (condições de satisfação e condições

    preparatórias do ato ilocucionário): um agente da administração tributária investido

    de autoridade para, verificados os pressupostos (condições preparatórias da

    proposição normativa, ou em outras palavras, elementos suficientes que informem aocorrência de um fato gerador) declarar que determinado sujeito, por exemplo, João

    da Silva é proprietário de um veículo automotor modelo X, placa Y, ano Z/logo

    deverá pagar o IPVA correspondente. 

     Ainda assim, não basta somente a força ilocucionária declarativa nas regras

    concretas. Se um juiz declara, numa sentença, a relação de paternidade entre o réu

    e o autor da ação, não está somente estabelecendo direitos e deveres relativos, mas

    sim impondo que determinadas obrigações sejam efetivamente cumpridas. Da

    mesma forma, ao implicar certos efeitos jurídicos, a autoridade precisa declarar a

    ocorrência de um fato. Por isso, as regras concretas, enquanto atos de fala, têm

    tripla força ilocucionária: declarativa, assertiva e diretiva. A autoridade competente

    declara a ocorrência de um fato e determina efeitos correspondentes, cujo conteúdo

    são condutas a serem efetivamente cumpridas.

    Uma vez que uma das forças é assertiva, está sujeita a critérios de

    verdade/falsidade, porém, não da mesma forma que uma hipótese científica, pois o

    macro-ato de fala jurídico é diretivo e não assertivo como na ciência. Destarte, deve

    ser  que a autoridade enuncia(declaração) um fato de que  João da Silva auferiu

    renda (asserção), logo deverá pagar   o IRPF (ordem). Ainda assim, a asserção

    pode ser provada como falsa, isto é, não corresponde à realidade, pois outra norma

    determina essa possibilidade de prova em contrário: o princípio do devido

    processo legal. 

     A força ilocucionária declarativa, dentro do contexto normativo, impõe a

    qualidade de argumento de autoridade legítimo, não falacioso, o que aconteceria

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    competência, e injeta-se um ato normativo no ordenamento. É um típico ato de fala

    declarativo/assertivo/diretivo.17 

    4.4.7 O triplo propósi to ilocucionário das regras concretas

    Sempre que um juiz profere uma sentença ou um fiscal lavra um auto de

    infração, seu propósito ilocucionário não é apenas declarativo. Diferentemente de

    um juiz de paz, que simplesmente declara dois noivos “marido e mulher” e atinge a

    direção dupla de ajuste das declarações, uma regra concreta do tipo sentença ou

    ato administrativo também tem de fundamentar as razões de seu proferimento. Os

    princípios da segurança jurídica, do devido processo legal, da verdade real, datipicidade e da fundamentação dos atos administrativos requerem que o aplicador

    do direito justifique as razões pelas quais está aplicando aquela regra ao caso

    particular.

    Essa fundamentação coloca um propósito assertivo no ato de fala. Não se

    trata de uma hipótese ou descrição no sentido comum do termo, mas, sim, o relato

    da situação factual específica que enseja aquela regra a ser aplicada ou, nos casos

    de falta desta, o porquê de uma integração por analogia ou mesmo de uma ficção. E

    essa fundamentação tem de basear-se na realidade, em vista dos diretivos

    principiológicos acima referidos.

    Não há que se confundir os critérios lógico-deônticos da  regra com a

    asserção dos fatos narrados na  regra. O macro-ato de fala do direito é sempre

    diretivo, e isso fixa o contexto comunicacional, e uma das forças ilocucionárias das

    regras concretas é declarativa, o que pressupõe a autoridade do emissor. Isso

    afirma a validade da regra, mas não dispensa que a fundamentação corresponda

    com a realidade. Se isso não ocorrer, o princípio do devido processo legal possibilita

    que o interessado possa buscar, através de elementos também assertivos,

    desconstituir as asserções proferidas pela autoridade, alegando erro de fato.

    Note-se que as petições e peças dos autores e réus nas ações judiciais e

    processos administrativos têm, por sua vez, enquanto atos de fala, dupla força e

    propósitos ilocucionários. O autor ou o réu busca colacionar situações factuais,

    17

      Conforme John R. Searle (2002e, p.44-45): “[...] promulgar uma lei tem tanto um estatutodeclaracional (o conte;udo proposicional torna-se lei) quanto um estatuto diretivo (a lei édiretiva em sua intenção)”.

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    através de elementos de prova, de acordo com um procedimento previsto, e, via de

    regra, o faz sob o título “dos fatos”. Também buscam convencer a autoridade

     julgadora sobre quais as regras aplicáveis àqueles fatos ali arrazoados. Outrossim,as peças processuais são atos de fala com força e propósito assertivo, com direção

    de ajuste palavra-mundo, pois têm a intenção de descrever a situação real e

    também força e propósito diretivo, pois requerem à autoridade que julgue de acordo

    com o seu pedido e, portanto, têm direção de ajuste mundo-palavra.

     A regra concreta proferida por uma autoridade competente, seja um ato

    administrativo que inaugura o processo administrativo, seja uma decisão recursal

    também administrativa, seja uma sentença ou um acórdão judicial terá sempre triplaforça e propósito ilocucionário: a) assertivo, visto que a conclusão da autoridade,

    concordando ou não com alguma das partes, relatará os fatos; b) declarativa, visto

    que a autoridade tem legitimidade para alterar o estado de coisas no mundo,

    simplesmente proferindo a regra que declara acontecimentos e institui direitos e

    deveres; e c) diretiva, pois para que o ato de fala seja bem-sucedido e não

    deficiente, é necessário que o ato perlocucionário próprio seja gerado: a regra seja

    efetivamente cumprida.

    4.4.8 Lançamento tributário como regra individual e concreta

    Não obstante a definição contida no artigo 14218 do Código Tributário, não há

    dúvida de que o lançamento é uma regra individual e concreta, que busca formalizar

    o evento tributário ou fato gerador, de forma a aplicar a regra tributária geral e

    abstrata ao caso particular.

    Por ser uma regra individual e concreta, o lançamento é um ato de fala com

    tripla força e propósito ilocucionário: é um ato assertivo, declaratório e diretivo.

    Enquanto ato assertivo, busca relatar fatos reais previstos pela regra geral tributária,

    de modo a poder efetuar a subsunção do caso particular á previsão geral. Enquanto

    18  O CTN define lançamento como “procedimento administrativo”. Paulo de Barros Carvalho hámuito revelou a falácia dessa definição, que confunde o processo com o produto. É cediço queem muitas ocasiões não há necessidade de “procedimento” para que seja efetuado olançamento, entendido aquele como um “fazer” da Administração fazendária previsto e regido por regras procedimentais. Ainda que em outras si tuações seja necessário um prévio

     procedimento, como por exemplo, uma fiscal ização no estabelecimento do contribuinte, esseagir pode muito bem não resultar em lançamento, muito menos em auto-de-infração, nos casosem que o fiscal nada encontra o que tributar.

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    ato declaratório, em sua dupla direção de ajuste, constitui um novo status deôntico

    ao declarar que determinada relação jurídica foi constituída, com direitos e deveres

    correlatos, entre Fisco e contribuinte. Finalmente, como ato diretivo, busca fazer comque o mundo se ajuste à norma, ou, em outras palavras, que o contribuinte cumpra

    com o dever de satisfazer seu débito tributário para com o Estado.

    5. PRESUNÇÕES E FICÇÕES

    5.1 Abertura e fechamento cognitivo dos antecedentes normativos

    Todo sistema dinâmico complexo necessita relacionar-se com seu ambiente,

    enviando e recebendo informações, de forma a cumprir com suas duas funções

    primordiais: auto-regulação e autogeração, sendo que a auto-referencialidade é

    condição necessária para que o sistema se autoproduza.

     A abertura cognitiva dá-se por meio dos antecedentes normativos. Lourival

    Vilanova (1997, p.89) destaca a abertura por meio da hipótese: “[...] o fato se torna

    fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a

    hipótese.” Explicitando um pouco mais a assertiva, percebe-se que o sistema

     jurídico, através de seus órgãos produtores de normas (o legislador em sentido

    amplo) observa a realidade social e seleciona aspectos dela, de forma a “trazê-la”

    para o seu interior.

    Na compostura normativa, de forma a regular amplamente as relações

    humanas, primeiramente as situações da realidade são traduzidas para o direito

    através das hipóteses normativas. O “matar alguém”, o “prestar serviços de qualquer

    natureza” ou o “nascer” são situações que, não obstante serem traduções jurídico-linguísticas de situações objetivas do mundo, são hipotéticas porque se dirigem a

    possíveis e prováveis (modo alético da possibilidade) situações reais.

    Nesse sentido, a metáfora “porta aberta” do jusfilósofo pernambucano é a

    abertura cognitiva que o direito, enquanto sistema comunicacional tem, de forma a

    voltar-se para o seu ambiente, de forma a interferir nele, regulando a ação humana.

    Todavia apenas essa abertura cognitiva não é suficiente. Como vimos, o processo

    de positivação do ordenamento significa a concretização e a individualização dasnormas. De forma a “irritar” mais fortemente o ambiente, formado pelo sistema social

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    e demais subsistemas, é mister que o direito passe das regras gerais e abstratas

    para as individuais e concretas. Assim, o “se matar alguém” converter-se-á em “dado

    o fato de que João matou Paulo”, “o prestar serviço” em “dado o fato de que Joãoprestou serviço de consultor a Paulo” ou, finalmente, o “nascer” converter-se-á em

    “dado o fato de que João nasceu às 11:00h do dia 24 de setembro de 2004...”.

    Em síntese, a abertura cognitiva ou semântica do sistema jurídico dá-se pelos

    antecedentes normativos, seja o antecedente da regra geral e abstrata (hipótese),

    seja o da regra individual e abstrata (hipótese), seja o da regra geral e concreta

    (relato do fato jurídico), seja o da individual e concreta (relato do fato jurídico).

     Assim, da mesma forma que o legislador, ao colher situações objetivas reais,o faz por meio da hipótese normativa, o mesmo ocorre, por exemplo, no antecedente

    dos contratos (hipótese), no antecedente dos veículos introdutores de normas

    (declaração da criação da norma, pelo exercício da competência de que é titular o

    aplicador) e, por fim, no antecedente das regras individuais e concretas (declaração

    de um estado de coisas que implica efeitos ).

    Dependendo da matéria regulada, há uma exigência maior ou menor de

    argumentos que busquem comprovar a veracidade dos fatos alegados. Outrossim,

    se o autor (contribuinte) alega que, por exemplo, não auferiu renda e o réu (fisco) ao

    contestar a ação alega que o contribuinte realizou o fato gerador da renda, o juiz terá

    que decidir quais alegações são verdadeiras, encerrando (ao menos naquela

    instância), o litígio. Percebe-se que decisões são atos declarativos que se

    sobrepõem a atos assertivos19, dentro da autogeração de normas.

     Assim, de modo a atender com o princípio do devido processo legal, quanto

    maior a restrição à liberdade imposta pela norma, maior deve ser a possibilidade do

    indivíduo provar o contrário do que lhe está sendo imputado. Ao mesmo tempo,

    maiores são as exigências de comprovação de fatos que somados, provem que o

    indivíduo realizou determinada conduta prevista pelo direito como implicadora de

    efeitos jurídicos. Decorre disso toda uma normatização de procedimentos reunidores

    19 Segundo John R. Searle (2002e, p.29): “Alguns membros da classe das declarações sobrepõem-sea membros da classe dos assertivos. Isso acontece porque, em certas situações institucionais,não nos limitamos a apurar os fatos, mas também precisamos que uma autoridade pronuncie

    uma decisão sobre quais sejam os fatos, depois de concluídos os procedimentos do inquérito. Odebate deve ter um fim e resultar numa decisão, e é por essa razão que temos juizes eárbitros”.“ 

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    de elementos factuais, que dependendo do segmento normativo, levam o nome de

    procedimento de fiscalização, inquérito, etc.. É o sistema abrindo-se ao mundo dos

    fatos, de modo a verificar, dentro de procedimentos previstos, o que aconteceu e oque não aconteceu de fato  e assim mover-se nesse sentido, produzindo atos

    comunicativos que irão atribuir conseqüências jurídicas respectivas.

    Todavia de forma a dar operatividade em determinadas situações, o sistema

     jurídico fecha-se ao seu ambiente, não levando em conta a realidade. É o que

    acontece nas ficções e nas presunções absolutas. As hipóteses ou conseqüentes de

    normas que utilizam a forma “como se”, estão, conforme vimos, a desconsiderar os

    aspectos do real, dos respectivos referentes dos termos conotativos do antecedentee do conseqüente. Em outras palavras, a hipótese que prevê a situação do tipo “O

    serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento

    prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador (LC n0 

    116/03, art. 30, caput)” configura uma desconsideração parcial da realidade, pois

    ainda que seja possível que específico serviço tenha sido realmente realizado no

    estabelecimento, a presunção não admite prova em contrário. Trata-se de uma

    presunção absoluta posta por lei complementar, de forma a integrar, uniformizar e

    dar operatividade ao imposto municipal sobre serviços. Se tal presunção é conforme

    a luz dos princípios constitucionais será visto em tópico subseqüente, mas o que

    importa aqui é demonstrar o fechamento da hipótese e do fato jurídico a situações

    da realidade.

    5.2 O direito e a verdade

    Não é incomum a expressão “verdade jurídica” utilizada por muitos juristas,

    como sendo algo independente da verdade objetiva, do mundo dos fatos. É uma

    concepção normalmente associada à vertente do positivismo jurídico, que busca

    autonomizar o direito frente a outros domínios da realidade.

    Todavia há que se tomar precauções quanto ao uso do termo. “Verdade” ou

    “verdadeiro” enquanto adjetivo, predicado que se atribui a alguma coisa, é uma

    qualidade dos atos ilocucionários assertivos, que buscam descrever o real. Quando

    alguém fala sobre algum aspecto do sistema jurídico, pode estar enunciando algo

    verdadeiro ou falso. Mas e quando o fiscal ou o juiz enunciam um fato?

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    como referente ações realizadas no mundo real, todavia colhidas, ao menos em

    certos aspectos, pelas hipóteses normativas.

    Cumpre advertir que de forma alguma os fatos são essencialmentelingüísticos. Uma coisa são fatos, outra são enunciados que falam sobre fatos —

    apesar de necessitarmos desses últimos para referirmo-nos àqueles,

    ontologicamente eles não se confundem. Afirmar o contrário é como confundir a

    paisagem com o quadro que a retrata.

    5.3 Verdade real e verdade formal

     A dicotomia referida neste tópico vem sofrendo críticas por parte da doutrina.Entendo também que a distinção não é mais útil, não por causa das razões

    usualmente alegadas, mas, simplesmente, porque não reflete a forma como o direito

    brasileiro opera, especificamente o direito processual.

    Segundo querem alguns, a distinção referida nesse tópico seria ultrapassada,

    uma vez que não existe realidade objetiva, toda verdade é formal (pois depende da

    linguagem que “constitui” os fatos), não há correspondência entre linguagem e fatos,

    mas, sim, entre linguagens tão-somente, etc.

    Tais erros provêm de confusões envolvendo categorias filosóficas, bem como

    um mau uso da linguagem. Quase sempre, são gerados por uma confusão entre

    Ontologia e Epistemologia.

    Dizer que toda a “toda verdade é formal” é incorrer exatamente na falácia

    referida acima. É atribuir uma essência ontológico-linguística à palavra “verdade”,

    quando o máximo que se pode pretender fazer é colocá-la no terreno da

    Epistemologia. É confundir enunciados com os fatos sobre os quais esses

    enunciados se referem. É incorrer na falácia uso-menção.21 

    Parece ter virado corrente na Ciência do Direito algumas contaminações de

    ordem pós-modernistas, relativistas e afins, que podem, se não tomados os devidos

    cuidados, corroer o discurso jurídico, como, por exemplo, a afirmação de que a

    verdade por correspondência não é aplicável ao sistema jurídico ou assunções do

    tipo “pouco importa se o acontecimento real efetivamente ocorreu ou não, importa a

    21

      Segundo Searle (1999, p.30): “Trata-se e uma falácia de uso-menção supor que a naturezalingüística e conceitual da identificação de um fato exige que o próprio  fato identi ficado   sejade natureza lingüística”.

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    verdade jurídica”. Este trabalho não tem a preocupação de identificar as origens de

    tais assertivas, pois as mesmas parecem ter se tornado uma espécie de senso

    comum atualmente. Nem por isso, significa que estejam corretas. A aversão à teoria da verdade por correspondência, descontados outros

    motivos quaisquer, baseia-se também em algumas concepções que são ou

    simplesmente triviais ou simplesmente falsas. Uma delas é dizer que “se a

    linguagem não esgota o objeto, não se pode admitir a verdade por correspondência”,

    aplicando-se isso ao direito também22. Ora, mais uma vez parece que se está diante

    de uma paralaxe cognitiva. Se se diz que está chovendo lá fora, isto é, se produz

    esse ato ilocucionário assertivo, nada mais é preciso que verificar, olhando pela janela, se realmente está chovendo ou não. Desde quando seria necessário, de

    modo a afirmar esse simples fato, que se produzissem compêndios e mais

    compêndios sobre o fato de chover lá fora, de forma a tentar “esgotar” esse objeto

    (e, mesmo assim não conseguir, segundo afirmam eles), quando o único ato

    necessário para confirmar a asserção é olhar pela janela?

    É certo que nem todos os processos de confirmação são simples assim, mas

    absolutamente todos que se referem a situações contingentes têm como pano de

    fundo a verdade por correspondência e jamais uma “verdade lógica ou consensual”,

    seja lá se queira dizer com isso. É interessante notar que esses autores, como bem

    aponta Popper (1972, p.285), emitem uma asserção, quando negam existir a

    verdade por correspondência ou verdade real. Sob qual critério então devemos

     julgar essas asserções?23 

    Verdades lógicas servem para os discursos aos quais pertencem, ou seja, o

    domínio da Lógica e da Matemática, não para o discurso pertencente a razão prática

    como o direito, que busca se relacionar com o mundo real.

    Como usualmente, considerações do tipo das criticadas nesse tópico ou

    estabelecem truísmos, ou simplesmente incorrem em erros. Se se trouxer a baila um

    argumento do tipo “no direito, toda a verdade é formal”, de forma a asseverar o rito

    formalístico jurídico, poderíamos simplesmente assegurar que a Ciência também

    possui um rito formalístico. Um físico que deseje demonstrar a confirmação de sua

    22

      Em rigor, quem afirma isso confunde a teoria pictórica de Wittgeinstein, do Tratactus, com ateoria semântica da verdade, de Tarsky.

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    teoria também terá que fazê-lo através de um rigor matemático não encontrado na

    maioria das ciências humanas, dentre elas o Direito. Ao mesmo tempo, se

    epistemicamente encontramos enunciados factuais jurídico-normativos veiculados apartir de todo um procedimento regrado, isso não alcança a ontologia do direito e

    sua relação com a verdade. Ontologicamente não há fatos no direito, mas sim

    enunciados sobre fatos que podem ou não ser comprovados por métodos

    epistemológicos — dependendo do interesse do próprio direito em admitir tais atos

    de fala assertivos como legítimas provas jurídicas.24 

     A distinção tradicional entre verdade real e verdade formal é importante para

    o Direito apenas porque ajuda a estabelecer uma diferença epistemológica, nãoontológica. Mas, na realidade do processo jurídico, não há fronteiras definidas de

    aplicação para cada um desses princípios, no que tange a ramos específicos do

    direito. De qualquer sorte, vamos às definições:

    O princípio da verdade real é uma exigência de resgate do fato real, que é

    qualificado como jurídico por alguma norma do ordenamento, através de um método

    probatório, também regrado juridicamente.

    O princípio da verdade formal estabelece presunção jurídica de veracidade

    dos fatos alegados por alguma das partes num processo jurídico, que satisfaça o

    órgão julgador. É regra que atribuí, permitindo ou não prova em contrário, um efeito

     jurídico a enunciados sobre fatos não efetivamente comprovados, mas presumidos.

    Tanto o princípio da verdade real como o da verdade formal são decorrentes

    do devido processo legal e da segurança jurídica. Se, em determinados contextos, é

    necessário buscar, com o máximo de precisão possível, a ocorrência real dos fatos,

    em outros é necessário dispensar essa busca. Em ambas as situações, o devido

    processo e a segurança jurídica são os valores desejados, a depender do grau de

    afetação da liberdade individual.

    Num litígio envolvendo interesses privados, isto é, uma relação jurídica onde

    os sujeitos são indivíduos ou organizações regidos pelo direito privado, o princípio

    da verdade formal pode ser a tônica. Em vista da segurança jurídica, as regras do

    processo civil prevêem preclusões que impõem presunções jurídicas, de forma a dar

    23

     Ocorrem aqui as falácias do regresso ao infinito e da auto-refutação. Ver item 2.13.1.6.

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    fim ao litígio. Por exemplo, se o réu deixa de contestar a ação, incorre na revelia,

    cujo efeito é dar presunção de veracidade às alegações factuais do autor 25.

    Por outro lado, em segmentos normativos onde a liberdade individual sofremais restrições, o princípio da verdade real prepondera. Assim, para uma sanção

    penal poder ser imposta, por exemplo, crime de homicídio, sequer basta o

    testemunho do autor do ilícito, sendo primordial que a prova material seja produzida

    (o corpo da vítima seja encontrado). No direito tributário a imposição da exação

    requer também que haja comprovação dos fatos alegados pelo Fisco. Note-se que o

    valor pretendido é igualmente a segurança jurídica, obtida através de regras

    concernentes ao devido processo legal. É que não obstante a segurança ser oobjetivo em ambas as situações descritas acima, a forma de alcançá-la depende dos

    objetivos pretendidos pelo direito. No direito civil é a resolução de conflitos de

    interesses privados; no direito público, a resolução de conflitos em que de um lado

    encontra-se o interesse do indivíduo e do outro, a coletividade26.

    Todavia não há uma demarcação rígida. Encontramos tanto a verdade real

    como a formal em processos cíveis, penais ou tributários. Em qualquer processo,

    cabe a regra geral do ônus da prova ao autor — seja ele o particular, o Ministério

    Público ou o Fisco. Nesse sentido, não há diferença alguma em relação à verdade

    real ou à verdade formal, pois a função do direito será aproximar-se ao máximo

    possível, dentro das suas limitações epistêmicas, dos fatos. O que impera, por

    conseguinte, é sempre o compromisso com a verdade real, expressão que peca

    inclusive pela redundância.

    De igual sorte, tanto num processo c