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    * P rofes so r Titula r da Faculda de J es uta d e Filos ofia e Teolog ia , Belo Horizonte, B rasil.

    RICHARD RORTY, ARAUTO DEUMA NOVA VISO DE MUNDO

    Paulo Roberto Margutti Pinto*

    paulomargutti@terra com.br

    O ano de 2007 trouxe grandes perdas para a filosofia. Dentre elas, destaca-

    se aquela marcada pelo falecimento de Richard Rorty, no dia 08 de junho,

    em sua residncia em Palo Alto, na Califrnia, aos 75 anos, de cncer no

    pncreas.

    Rorty nasceu em New York, em 1931. Seus escritos revelam a influncia

    das idias social-democrticas de seus pais, que eram escritores e militantes

    polticos inspirados no pensamento socialista. No texto Trotsky e as OrqudeasSelvagens, Rorty nos fala no apenas dessa influncia, mas tambm de seuinteresse, desde a infncia, pelas orqudeas selvagens, que ele considerava

    flores sem utilidade social. A partir daquela poca, seu objetivo em filosofia

    tem sido encontrar um equilbrio entre duas tendncias opostas: a defesa da

    pureza intelectual no estilo de seus pais e a contemplao da beleza pura.Nossofilsofo foi um estudante precoce, tendo ingressado na Universidade

    de Chicago aos 15 anos de idade. Isso lhe permitiu no s escapar das

    truculncias de que era vtima por parte dos valentes da escola secundria,

    mas tambm dedicar-se leitura dos grandes clssicos do pensamento. Em

    1952, Rorty terminou o mestrado em filosofia em Chicago e ingressou na

    Universidade de Yale para fazer o doutorado, que terminou em 1956. Depois

    HOMENAGENS

    KRITERION, Belo Horizonte, n 116, Dez/2007, p. 527-531.

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    de completar o servio militar, deu aulas em Wellesley e depois em Princeton,

    de 1961 a 1982. Em seguida, lecionou na Universidade de Virgnia, at 1998.

    Tornou-se ento professor de literatura comparada em Stanford at 2005,

    quando se aposentou definitivamente. Rorty casou-se com Amelie-Oksenberg

    Rorty, de quem se divorciou. Casou-se depois com Mary Varney Rorty. Deixoutrs filhos um do primeiro casamento e dois do segundo e dois netos.

    Como filsofo, Rorty foi um pensador impressionantemente produtivo

    e combativo. Sua filosofia tem inmeras fontes, como James, Dewey, Quine,

    Sellars, Davidson, Darwin, Hegel, Heidegger e Wittgenstein. Rorty se

    autodefine como um neopragmatista, porque no apenas se baseia nas idiasde Dewey e James, mas tambm as renova, ao alegar que o termo experinciadeve ser substitudo por linguagem, que uma palavra mais adequada paraexpressar o holismo e o antifundacionismo desses autores. Com isso, ele abre

    o seu pragmatismo s contribuies enriquecedoras de filsofos analticos

    como Quine, Sellars e Davidson.

    Para ilustrar o legado filosfico extremamente rico e nuanado de Rorty,

    consideremos, por exemplo, sua concepo de linguagem, que constitui umdesenvolvimento de algumas das idias de Davidson. Em sua abordagem,

    Rorty considera que o eu e o mundo no podem ser descritos em termos

    essenciais. Eles so antes produzidos por uma srie de crenas e desejos, que

    Rorty denomina vocabulrios. A verdade no est fora da linguagem, pois

    uma crena (que pertence linguagem) s pode ser justificada por meio de outracrena (que tambm pertence linguagem). O domnio exterior linguagem

    formado por causas, no por razes. E o fato de estarmos em relaes

    causais com o mundo no envolve representaes em sentido tradicional.

    Assim, a mudana de um vocabulrio para outro no tem necessariamente

    uma explicao racional e as novas metforas que substituem as antigas so

    causas, no razes para mudanas de crenas. Ainda seguindo Davidson, Rorty

    considera que a metfora um rudo no costumeiro. Ela uma enunciao

    que quebra regras, no se conformando ao jogo de linguagem e conduzindo a

    comunidade para um novo jogo.

    A partir da, podemos concluir que no h uma viso privilegiada do

    mundo, que nos fornea condies para estabelecer relaes seguras entre

    as coisas e nossas crenas a respeito delas. No pode haver controle dessas

    crenas com base nos estmulos fsicos extra-lingsticos (o mundo e o ego

    esto definitivamente perdidos). O ego uma teia de crenas e desejos sem

    centro que esto continuamente mudando atravs dum processo de re-tecer,

    o qual se d atravs da percepo, da inferncia e da metfora. O choque

    produzido pelas metforas nos leva a re-tecer os padres de nossas crenas

    Paulo Roberto Margutti Pinto

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    para que possamos us-las ao lidar com as coisas ao nosso redor. Um rudo

    no familiar a metfora, por exemplo pode funcionar como causa para

    uma crena. S depois que a metfora perde sua estranheza e comea a ser

    contextualizada no interior da rede de crenas e desejos que ela vem a

    constituir uma justificativa racional.Como se pode ver, o neopragmatismo rortyano uma forma de

    naturalismo. Rorty argumenta que a filosofia moderna acerta ao abandonar

    a viso de mundo religiosa, mas erra ao substituir a noo de Deuspela deverdade objetiva. Isso leva os modernos a manter equivocadamente a noode fundamento ltimo. Ora, a crtica de Sellars ao mito do dado mostraque a teoria da verdade como correspondncia e o representacionismo so

    equivocados, devendo ser substitudos por uma explicao baseada na prtica

    social. Apesar de pretenderem defender a abordagem cientfica, os filsofos

    modernos acabam por se afastar do naturalismo, que mais compatvel com seus

    ideais. O neopragmatismo rortyano busca superar essa deficincia, mostrando

    que o domnio da justificao est na prtica social, que as normas provm

    da sociedade e no da natureza. Somos seres biolgicos num mundo natural

    e nossa linguagem um instrumento para lidar com esse mundo para atingir

    nossos propsitos. Nessa perspectiva, a cincia uma ferramenta eficiente,

    mas o cientificismo equivocado. J que o fundamento no est em algum

    princpio universal e atemporal, mas sim em formas de justificao imersas

    na prtica social efetiva, outras formas de saber menos cientficas, como asdas cincias humanas, podem ser admitidas. A melhor maneira de justificar

    uma crena avaliar seu desempenho em relao a crenas alternativas. Da a

    estratgia argumentativa de Rorty, que consiste em mostrar que as abordagens

    de seus adversrios no tm um desempenho to bom quanto a sua. Nessa

    forma de argumentao, a metfora desempenha um papel vital. E a filosofia

    sistemtica, que tenta explicar a racionalidade e a objetividade em termos de

    condies da representao acurada, se revela enganadora. Melhor candidata

    a filosofia edificante, que ajuda as pessoas e a sociedade a se livrarem de

    atitudes e vocabulrios desgastados pelo tempo, ao invs de fornecer um

    fundamento ltimo para as instituies existentes. Embora argumente que

    nenhum perodo histrico apreendeu a realidade mais corretamente do que

    outro, Rorty defende a sociedade liberal-democrtica como a melhor opo

    no momento, porque ela permite a coexistncia de crenas alternativas no

    domnio pblico. Na discusso desses temas, Rorty confronta suas idias com

    as de pensadores do naipe de Kant, Locke, Hegel, Quine, Sellars, Davidson,

    Heidegger, Habermas, Foucault e Derrida.

    RICHARD RORTY, ARAUTO DE UMA NOVA VISO DE MUNDO

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    Dono de um belo estilo, Rorty escreve com clareza, elegncia e

    simplicidade, transmitindo ao leitor uma sensao de clareza racional,

    associada a uma esperana otimista para com o destino da humanidade. Dentre

    os livros mais importantes que escreveu, destacam-seA Filosofia e o Espelho

    da Natureza(1979), Conseqncias do Pragmatismo (1982), Contingncia,Ironia e Solidariedade(1988), Objetividade, Relativismo e Verdade ArtigosFilosficos I(1991), Ensaios sobre Heidegger e Outros Artigos FilosficosII(1991), Verdade e Progresso Artigos Filosficos III(1998), Filosofia eEsperana Social (2000). Nos trs primeiros livros, Rorty exps as linhasgerais de sua filosofia. Depois disso, escreveu uma pletora de artigos, que

    desenvolvem essa filosofia nos mais variados domnios e foram reunidos nos

    quatro livros seguintes. O aspecto mais importante de seu maior legado est no

    tipo de pragmatismo que props, sempre voltado para o futuro e preocupado

    com formas cada vez melhores de justificao. Nessa perspectiva, a filosofia

    constitui uma conversao sem fim, sujeita a variaes contingentes. E, nessa

    conversao, digna de nota a disponibilidade de Rorty para ouvir as vozes

    dos interlocutores menores.

    As posies heterodoxas e perturbadoras de Rorty, apontando na direo

    de um mundo sem referenciais fixos, despertaram as crticas de muitos

    autores. Dennett, por exemplo, pensa que a recusa de Rorty em reconhecer o

    poder da cincia para retratar a realidade revela uma ignorncia intransigente

    dos mtodos comprovados na investigao cientfica da verdade. Blackburnatribui a Rorty um dom extraordinrio de esconder, embaralhar e lanar

    fumaa. Bernard Williams acusa Rorty de ser um relativista para quem a

    verdade se tornou dispensvel. Dentre outros autores que criticam as posies

    de Rorty, destacam-se Putnam, McDowell, Conant, MacIntyre, Nagel, Searle

    e Habermas. No Brasil, as idias de Rorty foram bastante discutidas. E aqui

    tambm as crticas aparecem em maior nmero do que os elogios. A razo disso

    est em que a maior parte dos interlocutores de Rorty, sejam eles estrangeiros

    ou brasileiros, fazem uma leitura relativista de sua filosofia, como se pode

    ver pelos exemplos acima. Mas talvez ele no tenha sido adequadamente

    compreendido. Para Rorty, o abandono da noo de verdade objetiva noconstitui necessariamente um mal. Com efeito, a justificao contingente

    permite no apenas a satisfao de objetivos prticos, mas tambm deixa em

    aberto a possibilidade de futuras reformulaes, motivadas por novos desafios

    surgidos a partir das interaes com as coisas mundanas. Ora, isso constitui

    uma mensagem de esperana, no de desespero. De qualquer modo, o intenso

    debate em torno das idias de Rorty revela a importncia das mesmas para a

    filosofia contempornea.

    Paulo Roberto Margutti Pinto

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    Apesar de ocupar uma posio de destaque no quadro filosfico

    contemporneo, Rorty nunca se deixou fascinar pela prpria fama. Sempre

    foi uma pessoa modesta, simples e discreta. Quando tivemos a oportunidade

    de conhec-lo pessoalmente, por ocasio de um congresso, em 1997, na

    UFMG, sua postura respeitosa, generosa e atenciosa contrastava com a dasdemais estrelas internacionais presentes. Que todos os seus leitores, sejam

    eles favorveis ou no s suas idias, possam ao menos aprender essa lio de

    humildade, esperana e solidariedade.

    RICHARD RORTY, ARAUTO DE UMA NOVA VISO DE MUNDO