ROSA, Sueli Marques Rosa, A Justica Divina e o Mito Da Deficiencia Fisica

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9 estudos, Goiânia, v. 34, n. 1/2, p. 9-19, jan./fev. 2007. Resumo: este artigo apresenta uma reflexão sobre a doença e a deficiência física em suas relações com a justiça divina, tomada como base de discussão a formação da cul- tura religiosa judaico-cristã no texto bíblico e na mitologia greco-romana. São apontadas passagens do texto bíblico que tratam a deficiência física como um mal, um castigo divino em conseqüência de pecado cometido, e vinculam sua cura ao perdão; no mito greco-romano, é apresentado Hefestos ou Vulcano, o único deus deficiente do Olimpo, descrito como feio e disforme e que compensou sua deformidade física com a habilidade no trabalho. A aproximação desses dois textos mostra o preconceito com relação à deficiência física na gênese da formação da cultura judaico-cristã, auxiliando a compreensão da construção do imaginário sobre a deficiên- cia física. Palavras-chave: doença, deficiência física, texto bíbli- co, mito greco-romano, justiça divina SUELI MARQUES ROSA A JUSTIÇA DIVINA E ste trabalho tem a intenção de buscar a compreen- são das origens do pensamento sobre a deficiência física e realiza um estudo do texto bíblico, em pas- sagens do Antigo e Novo Testamento, enfocando a visão de E O MITO DA DEFICIÊNCIA FÍSICA

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Resumo: este artigo apresenta uma reflexão sobre adoença e a deficiência física em suas relações com a justiçadivina, tomada como base de discussão a formação da cul-tura religiosa judaico-cristã no texto bíblico e na mitologiagreco-romana. São apontadas passagens do texto bíblico quetratam a deficiência física como um mal, um castigo divinoem conseqüência de pecado cometido, e vinculam sua curaao perdão; no mito greco-romano, é apresentado Hefestosou Vulcano, o único deus deficiente do Olimpo, descrito comofeio e disforme e que compensou sua deformidade física coma habilidade no trabalho. A aproximação desses dois textosmostra o preconceito com relação à deficiência física nagênese da formação da cultura judaico-cristã, auxiliando acompreensão da construção do imaginário sobre a deficiên-cia física.

Palavras-chave: doença, deficiência física, texto bíbli-co, mito greco-romano, justiça divina

SUELI MARQUES ROSA

A JUSTIÇA DIVINA

E ste trabalho tem a intenção de buscar a compreen-são das origens do pensamento sobre a deficiênciafísica e realiza um estudo do texto bíblico, em pas-

sagens do Antigo e Novo Testamento, enfocando a visão de

E O MITO DA DEFICIÊNCIA

FÍSICA

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doença e da deficiência relacionadas com a punição divina. As curasrealizadas por Jesus comumente relacionavam a doença ao mal e asaúde à salvação. O mito greco-romano de Hefestos, o deus deficien-te que carregou o estigma de sua deficiência física durante toda a suavida, é apresentado como uma forma de extravasamento de conteú-dos que nem sempre nos são conscientes. A relação entre estes doistextos se mostra possível e abre caminho para reflexões sobre as no-ções de doença e deficiência física presentes no imaginário religioso.

O TEXTO BÍBLICO E A RELAÇÃO ENTRE DOENÇAE PECADO

Iniciamos nosso trabalho com uma leitura da doença median-te a visão bíblica. Kilpp (1990), em seu estudo sobre as deficiên-cias físicas no Antigo Testamento, aponta, no texto bíblico,referências a diversas doenças que teriam em sua etiologia as“precárias condições higiênicas, sanitárias e medicinais” daquelaépoca, quando eram desconhecidas as formas adequadas de pre-venção e tratamento das doenças, agravando epidemias e, emconseqüência, piorando as condições econômico-sociais de gran-de parte da população.

São comuns as referências à lepra, às pestes, a fraturas, aosdiferentes tipos de doenças de pele e às malformações e deformida-des, com diversas formas de deficiência física. São mencionadoscom maior freqüência, nos textos bíblicos, os surdos-mudos, cita-dos mais comumente de forma figurada; os cegos, também porvezes citados de forma figurada, adquiriam sua deficiência prova-velmente por infecções, pela idade avançada ou por conseqüênciada guerra; e o grupo dos ‘coxos’ que abrangia, de forma geral, todasas dificuldades de locomoção, incluindo o pé-torto congênito, asdeformidades e as paralisias ou plegias, por causas congênitas ouadquiridas (KILLP, 1990).

No Antigo Testamento, as relações entre doença ou deficiên-cia e vontade divina podem ser observadas em Êxodo 4, 11. AíDeus se declara autor da deficiência, quando fala a Moisés: “Quemfez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o quevê, ou o cego? Não sou Eu, o Senhor?”.

Em Êxodo 23, 25, a proteção divina contra a doença é vincu-lada ao cumprimento da vontade de Deus, deixando implícito que

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o desrespeito à lei ocasionaria enfermidade (punição): “Servireisao Senhor vosso Deus e ele abençoará o vosso pão e a vossa água;e tirará do vosso meio as enfermidades”. Em Deuteronômio 28,58-61, da mesma forma, Deus utiliza a doença como ameaça aosque infringirem a Sua Lei:

Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras destalei, [...]. Também o Senhor fará vir sobre ti toda enfermidadee toda praga que não estão escritas no livro desta lei, até quesejas destruído.

Mas é em Levítico 21, 16-24, nas leis para os sacerdotes,onde se pode observar o impedimento de todos os doentes e de-ficientes para os rituais, por serem considerados impuros para oculto a Deus:

Disse mais o Senhor a Moisés: Fala a Arão, dizendo:Ninguémdos teus descendentes, nas suas gerações, em quem houveralgum defeito se chegará para oferecer o pão de seu Deus.Pois nenhum homem em quem houver defeito se chegará:como homem cego, ou coxo, ou de rosto mutilado, ou despro-porcionado, ou homem que tiver o pé quebrado ou mão que-brada, ou corcovado, ou anão, ou que tiver belida no olho,ou sarna, ou impigens, ou que tiver testículo quebrado. Ne-nhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quemhouver algum defeito se chegará para oferecer as ofertas quei-madas do Senhor; ele tem defeito; não se chegará para ofe-recer o pão do seu Deus. Comerá o pão do seu Deus, tanto dosantíssimo como do santo. Porém até ao véu não entrará, nemse chegará ao altar, porque tem defeito, para que não profa-ne os meus santuários, porque eu sou o Senhor, que os san-tifico. Assim falou Moisés a Arão, aos filhos deste e a todosos filhos de Israel.

Segundo essa passagem de Levítico estão impedidas para oritual todas as pessoas consideradas deficientes, tomando-se cla-ramente sua aparência física como referência para a exclusão.

Em seqüência à interdição das pessoas portadoras de defi-ciência, em Levítico 22,19-23, é acrescentada a proibição da uti-

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lização de animais ‘defeituosos’ para os rituais, por serem consi-derados indignos para o sacrifício:

Para que seja aceitável, oferecerá macho sem defeito, ou dogado, ou do rebanho de ovelhas, ou de cabras.Porém todo o que tiver defeito, esse não oferecereis porquenão seria aceito a vosso favor. Quando alguém oferecer sa-crifício pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto oudo rebanho, o animal deve ser sem defeito para ser aceitável;nele, não haverá defeito nenhum. O cego ou aleijado, oumutilado, ou ulceroso, ou sarnoso, ou cheio de impigens, nãoos oferecereis ao Senhor e deles não poreis oferta queimadaao Senhor sobre o altar. Porém, novilho ou cordeiro despro-porcionados poderás oferecer por oferta voluntária, mas, porvoto, não será aceito.

Passando à análise do texto do Novo Testamento, constata-mos, na maior parte das curas realizadas por Jesus, além do servira Deus como forma de se manter livre das doenças, o estabeleci-mento de relações diretas entre a doença/deficiência e o pecado eentre a cura da doença e o perdão divino.

Em Lucas 5, 20-24, há o relato da cura de um paralítico emCafarnaum vinculada ao perdão de seus pecados:

[...] Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: homem, estãoperdoados os teus pecados. [...] Qual é mais fácil dizer: Es-tão perdoados os teus pecados, ou Levanta-te e anda? Mas,para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terraautoridade para perdoar os pecados, disse ao paralítico: Eute ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para casa.

A mesma relação entre doença e pecado e entre cura e perdão éreafirmada em João 5,14. Aí, após haver ministrado a cura a um en-fermo, Jesus adverte: “Olha que já estás curado; não peques mais,para que não te suceda coisa pior”. Algo similar se verifica em Tiago6, 14-16: “Está alguém entre vós doente? [...] Confessai, pois, os vossospecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados”.

Podemos observar, assim, mediante o texto bíblico, que a do-ença/deficiência física é considerada materialização do castigo di-

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vino, revelando aos olhos da sociedade o pecador e adquirindo umsignificado punitivo, especialmente quando não são conhecidas assuas causas ou sua cura, como nos afirma Sontag (2002, p. 76-9):

qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tra-tamento é ineficaz tende a ser carregada de significação. Pri-meiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção, decadência,poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. Ossentimentos relacionados com o mal são projetados numa doen-ça. E a doença (assim enriquecida de significados) é projetadano mundo [...]. E são as doenças das quais se acredita teremmúltiplas causas (isto é, as doenças misteriosas) que reúnem asmaiores possibilidades de serem usadas como metáforas para oque se considera social ou moralmente errado.

O MITO GRECO-ROMANO

Passamos, a seguir, à análise da deficiência física mediante omito greco-romano. É necessária, antes, a compreensão do mitoem sua função simbólica, como uma segunda linguagem da expe-riência religiosa e como relato de um acontecimento originário noqual os deuses (tão plurais, quanto a experiência humana) agem ecuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa(CROATTO, 2001).

Paul Tillich descreve o mito como uma forma de ‘ revelação’ontológica (CROATTO, 2001), considerando a história mítica nãouma cópia da realidade, mas sim de sua interpretação. É uma nar-rativa, um fenômeno literário construído pelo homo religiosus e,como toda palavra, tem função social. Narra o fato fictício comoinstaurador de uma realidade e, como texto, é polissêmico. Suanarrativa situa-se in illo tempore, isto é, num tempo absoluto,acronológico, pré-cósmico, diferente do tempo histórico. Assim,todo mito remete às origens. O mito não tem valor científico; tema função de dar sentido à realidade tratando, portanto, de aspectosde grande valor para o ser humano (CROATTO, 2001).

Jung fala do importante elo entre os mitos arcaicos ou primi-tivos e os símbolos produzidos pelo inconsciente, permitindo ainterpretação destes símbolos num contexto que oferece sua pers-pectiva histórica e seu sentido psicológico.

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O símbolo, primeira linguagem da experiência religiosa, en-contra-se na composição do mito. O símbolo é polissêmico, é li-mitado ou especificado pelomito, delimitando-se por um lado numalinguagem unívoca e expandindo-se, por outro. O mito enriquecee orienta o símbolo, interpretando-o. O símbolo tem no mito funçãohermenêutica, canaliza o transcendente, representa vivênciassociais, auxilia na interpretação de realidades sociais e represen-ta um acontecimento primordial que é modelo de um fato realsocial, interpretando fatos de relevância na vida social do grupo.O mito cumpre sua função hermenêutica ao buscar o sentido dasrealidades que afetam o grupo. Os fatos novos que perdem asintonia com o transcendente exigem a modificação no mito(CROATTO, 2001).

Compreendendo assim a importância do mito, passamos àsquatro teorias que buscam explicar a mitologia e que, segundoBulfinch (2001), mostram apenas parcialmente a verdade: a Teo-ria Bíblica atribui a origem de todas as narrativas mitológicas aostextos das Escrituras; a Teoria Histórica afirma que todas as per-sonagens míticas tiveram suas origens em personagens e em acon-tecimentos reais; a Teoria Alegórica oferece ao mito um valorsimbólico, contendo verdades morais, religiosas ou filosóficas e,por fim, a Teoria Física coloca as primeiras divindades comopersonificações das forças da natureza. A estas teorias, Bulfinchacrescenta o desejo do ser humano de explicar os fenômenos na-turais incompreensíveis.

A mitologia grega, como dramaturgia que trata tanto da vidainterior quanto da vida social de um povo, envolve originalmenteos dogmas filosóficos e os valores morais daquela sociedade, sempretensões científicas, pois “o que importa discernir é o seu valorsimbólico, que lhe revela o sentido profundo” (CHEVALIER;GUEERBRANT, 1991, p. 611-2).

Tomando dessa forma o mito, encontramos, então, o únicodeus portador de deficiência física, Hefestos (Vulcano), o filho deZeus (Júpiter) e Hera (Juno), que se casou com a bela Afrodite.Sua origem tem diferentes narrativas, mas todas relacionadas àrejeição por parte de seus pais:

Nascera coxo e sua mãe sentiu-se tão aborrecida ao vê-lo queo atirou para fora do céu. Outra versão diz que Júpiter atirou-

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o para fora com um pontapé, devido à sua participação numabriga do rei do Olimpo com Juno. O defeito físico de Vulcanoseria conseqüência dessa queda (BULFINCH, 2001, p. 12-3).

Hefestos habitava a Ilha de Lemnos à qual chegou após tersido chutado por seu pai e rolar pelo Olimpo abaixo durante umdia inteiro. Era o único deus que trabalhava, atividade que não erabem vista no panteão:

Mestre das artes do fogo e governando o mundo industriosodos ferreiros, dos ourives e dos operários. É visto soprandoseu fogo e penando na sua bigorna, em que fabrica as armasdos deuses e dos heróis [...] (CHEVALIER; GUEERBRANT,1991, p. 485).

O ofício de ferreiro situa-se, entre os ofícios ligados à trans-formação dos metais, como “o mais significativo quanto à impor-tância e à ambivalência dos símbolos que implica” (CHEVALIER;GUEERBRANT, 1991, p. 423). Por ser ferreiro, Hefestos temprovável participação na obra cosmogônica; vivia num vulcão,habitando as sombras e em relação com as entranhas da terra deonde extraia o metal, e com o fogo subterrâneo, com o qual forja-va armas maravilhosas para deuses e heróis e jóias para deusas ebelas mortais, entre outros objetos e artefatos incríveis.

[...] às vezes, os ferreiros são monstros, ou identificam-se comos guardiões dos tesouros ocultos. Possuem, portanto, um as-pecto temível, propriamente infernal; sua atividade aparen-ta-se à magia e à feitiçaria. E é por essa razão que, muitasvezes, os ferreiros eram mais ou menos excluídos da socieda-de; e, na maioria dos casos, seu trabalho era rodeado de ritosde purificação, de proibições sexuais e de exorcismos(CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 424).

Hefestos é apresentado como um demiurgo, criatura interme-diária entre a natureza divina e a humana. É descrito por Homerocomo disforme e claudicante, “monstro esbaforido e manco, cujaspernas débeis vacilam sob o peso do corpo” (CHEVALIER;GUEERBRANT , 1991, p. 485).

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“Toda deformidade é sinal de mistério, seja maléfico, sejabenéfico” (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 328) e a de-formidade de Hefestos inscreve-se na ausência de integridadecorporal, como um elemento de desqualificação e de assimetria,o que elimina a paridade humana e “remete ao uno, esquerdo oudireito malditos” (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 328).

Pode-se ressaltar alguns aspectos interessantes no mito do deusHefestos, apontados por Amaral (1991). Primeiramente, na gêne-se do mito, encontramos a rejeição e a punição, com conseqüenteexclusão do Olimpo para as entranhas da terra. Segundo, nos cha-ma a atenção a descrição de seu aspecto físico, diferente de outrosdeuses, trazendo adjetivos como ‘feio, desgrenhado, monstro es-baforido, manco e de pernas débeis’. Suas características moraistambém são desfavoráveis e é considerado vingativo, ardiloso eamoral. Apesar de muito inteligente e capaz de produzir artefatosresponsáveis pela glória e beleza de deuses e mortais, era consi-derado apenas um trabalhador braçal.

Suas representações nas artes foram estudadas por Amaral(1991). O deus era representado de forma ambígua, como um velhofranzino ou pela figura de um operário forte, envolto numa túnicacurta e segurando nas mãos um martelo e, embora fosse ‘coxo’, osartistas ‘disfarçavam’ ou suprimiam esse aspecto, ora represen-tando-o de pé, sem nenhuma deformidade aparente (negação), oraocultando-a por detrás de algum objeto (velando, camuflando);por vezes aparecia sentado, mas sempre em posições ambíguas,podendo sua deformidade passar despercebida (dissimulando).Estas formas de representação podem ser constatadas, entre ou-tras, nas obras de Vincenzo de Rossi (escultura de Vulcano) eVelásquez (A Oficina de Vulcano), reproduzidas por Amaral(1991).

DISCUSSÃO

Após esta viagem em busca das origens das relações entredeficiência física e punição divina dentro da cultura religiosa ju-daico-cristã, podemos constatar que, tanto mediante o texto bíbli-co, quanto da mitologia greco-romana, se encontra claro o estigmada deficiência física, generalizado no portador da deficiência eapontando-o como pecador ou impuro, portador de um mal capaz

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de contaminar e devendo ser, portanto, punido e mantido afastado doconvívio social (do sagrado). Por corresponderem a narrativas dequestões existencialmente significativas ao ser humano, por revela-rem conteúdos muitas vezes inconscientes e por representarem e,ao mesmo tempo, interpretarem as realidades sociais e o aconte-cimento primordial (que é modelo de um fato real social), os mi-tos certamente deveriam ser tratados sob a perspectiva de umahermenêutica mais livre de dogmas religiosos e disposta a pene-trar nas origens dos temores que habitam o ser humano. Se o medodo contato com o diferente/deficiente tem repercussões sociaisexcludentes e pode nos remeter a textos fundantes da humanida-de, decifrar sua simbologia pode levar a uma melhor compreen-são de nossas atitudes.

Em “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossasemelhança” (Gn 1, 26), encontramos a associação do homem àimagem e à perfeição divina e também os alicerces das relações entreo homem-microcosmo e o universo-macrocosmo (CHEVALIER;GUEERBRANT, 1991), concepção também apresentada por AldoTerrin que, ao pesquisar a doença na história comparada das re-ligiões, a encontrou confundindo-se com monstros originários,espíritos maus, possessão demoníaca e com o pecado, compreen-dendo a primeira experiência pessoal do anticosmo, do caos e dadesordem (TERRIN, 1998).

Ao analisarmos a questão do corpo perfeito e belo, encontra-mos na simetria o símbolo da unidade representada pelo ‘Um’, quepor sua vez é representado por um falo erecto, um bastão ou umhomem de pé, ativo e associado à obra da criação; este símbolo datotalidade também representa o Deus único (CHEVALIER;GUEERBRANT, 1991).

Observando o simétrico como parâmetro de perfeição, o queteríamos então na assimetria da deformidade?

Os seres maléficos ou sombrios [...] são sistematicamentedescritos como disformes [...]. Toda deformidade é sinal demistério, seja maléfico, seja benéfico. [...] A anomalia exige,para ser compreendida, que se vá além das normas habituaisde julgamento e, desde logo, conduz a um conhecimento maisprofundo dos mistérios do ser e da vida (CHEVALIER;GUEERBRANT, 1991, p. 328).

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CONCLUSÃO

A mutilação se relaciona à desqualificação, trazendo nãoapenas conseqüências sociais, mas a transgressão de uma ordempar humana e diurna (duas pernas, dois pés, dois braços, duas mãos,dois olhos, ...) e o deformado, por ter sua paridade atingida, écolocado à margem da sociedade humana ou diurna que transgre-diu, “passando então a pertencer à ordem da noite, infernal ouceleste, satânica ou divina” (CHEVALIER; GUEERBRANT,1991, p. 628).

Como pudemos constatar, os dados aqui expostos mostram oquanto o exercício da pesquisa e da reflexão pode nos levar acaminhos hermenêuticos impensados e inesperados. Estes cami-nhos, especificamente os do tema aqui abordado, apontaram paratempos remotos e para mitos fundantes em que encontramos asorigens do nosso imaginário cultural-religioso, o qual, mesmo deforma não consciente, pôde ser capaz de influenciar nossos con-ceitos e pré-conceitos com relação à doença e à deficiência física,estabelecendo ligações inconscientes com o mal e com o pecadodivinamente punido. Cabe a nós, como seres capazes de refletir,compreender a influência destas construções mitológicas em nos-so imaginário cultural-religioso, discernir seu reflexo nos nossosjulgamentos e em nossas atitudes diante da doença e da deficiên-cia física.

Referências

AMARAL, L. A. Integração social e suas barreiras: representações culturaisdo corpo mutilado. Revista de Terapia Ocupacional da USP, São Paulo, v. 2,n. 4, p.188-95, 1991.

BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,1999.

BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 14.ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2001.

CHEVALIER, J.; GUEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 5. ed. Rio deJaneiro: J. Olympio, 1991.

CROATTO, J. S. Mito e interpretação da realidade: as linguagens daexperiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 179-269.

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JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,[19_ _].

KILPP, N. Deficientes físicos no antigo testamento. Estudos Bíblicos, Petrópolis,n. 27, p. 38-46, 1990.

SONTAG, S. A doença como metáfora. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

TERRIN, A. N. O sagrado off limits: a experiência religiosa e suas expressões.São Paulo: Loyola, 1998.

Abstract: this article presents a reflection on the illness and thephysical handicap in its relations with divine justice, taking asquarrel base the formation of the religious culture Jewish-Christian from the Biblical text and of Greco-roman mythology.parts of the Biblical text are pointed that treat the physicalhandicap as a bad, a divine punishment because of committedsin and tie to its cure with its pardon; in the Greco-roman myth,Hefestos or Vulcano, the only handicap god of the Olympus, isdescribed as ugly and deformed and has compensated its physicaldeformity with the ability in the his work. The approach betweenthese two texts shows to the preconception about physicaldeficiency in geneses of the formation of Jewish-Christian culture,assisting the understanding of the construction of the imaginaryon the physical handicap.

Key words: illness, physical handicap, Biblical text, Greco-romanmyth, divine justice

SUELI MARQUES ROSAMestra em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Goiás (UCG).Especialista em Docência Universitária pela UCG. Graduada em TerapiaOcupacional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora no cursode Terapia Ocupacional da UCG. Terapeuta ocupacional do Centro de Reabilita-ção e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer).E-mail: [email protected]