Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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UFPE Universidade Federal de Pernambuco CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DE FOLHA E CIPÓ É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO: A RELIGIOSIDADE POPULAR NA CIDADE DE RIO BRANCO – ACRE (1945-1958) Rosana Martins de Oliveira Recife-PE 2002

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UFPE Universidade Federal de Pernambuco

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

DE FOLHA E CIPÓ É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO:

A RELIGIOSIDADE POPULAR NA CIDADE DE RIO BRANCO – ACRE (1945-1958)

Rosana Martins de Oliveira

Recife-PE 2002

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

DE FOLHA E CIPÓ É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO: A RELIGIOSIDADE POPULAR NA CIDADE

DE RIO BRANCO – ACRE (1945-1958)

ROSANA MARTINS DE OLIVEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História do Brasil.

Orientadora: Professora Dra. Silvia Cortez Silva

Recife-PE 2002

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Ficha Catalográfica (Elaborada na Biblioteca Central da UFAC)

O48f

OLIVEIRA, Rosana Martins de. De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-1958). Recife: UFAC/UFPE, 2002. 124 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 1. Ayahuasca – Santo Daime, 2. Religião – cultura popular-Acre, 3. Daime – Religião popular, I. Título.

CDU 39:291.212 (811.2)

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ROSANA MARTINS DE OLIVEIRA

DE FOLHA E CIPÓ É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO: A RELIGIOSIDADE POPULAR NA CIDADE

DE RIO BRANCO – ACRE (1945-1958)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História do Brasil.

Aprovada em: 30/08/2002

BANCA EXAMINADORA:

Profª. Drª. Silvia Cortez Silva

Prof. Dr. Carlos Alberto Alves de Souza

Prof. Dr. Carlos Alberto da Cunha Miranda

Recife-PE 2002

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Dedico esta Dissertação a Frei Daniel (in memoriam), Mensageiro de Luz, minha gratidão pelas obras de caridade, a Frei Manuel Hipólito de Araújo (in memoriam), como Pai, Irmão e Amigo, me afirmou os passos com o seu sublime amor. Aos meus pais, José Rufino de Oliveira e Raimunda Martins de Oliveira, o meu eterno amor e gratidão.

Às minhas queridas filhas Larissa e Raissa, pela paciência e afeto.

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AGRADECIMENTOS:

A Francisco Hipólito de Araújo Neto, Presidente da Capelinha de São

Francisco, grande irmão amigo, sou grata pelo estímulo e confiança ao me ter

aberto as portas do conhecimento e da pesquisa sobre a vida de Daniel Pereira de

Mattos.

À Capes por ter autorizado o Mestrado Interinstitucional UFPE/UFAC.

À Professora Doutora Silvia Cortez Silva, minha orientadora tolerante

e humana, que me encaminhou na compreensão do estigma como uma realidade

dos oprimidos.

Ao professor Doutor Carlos Alberto Alves de Souza, coordenador

acadêmico do MINTER.

Ao colega do mestrado, Domingos José de Almeida Neto, a quem

devo o auxílio e presteza na organização das notas e referências bibliográficas.

À professora Ducélia Mota Lopes, pelas devidas correções

ortográficas e gramaticais.

À Frei José Joaquim e Anelino (in memoriam), por ajudarem a erguer

a Capelinha de São Francisco.

Minha gratidão ao senhor Antônio Lopes da Silva, com quem mantive

longos diálogos sobre os “tempos” de Daniel.

Aos meus irmãos amigos do barquinho Santa Cruz, companheiros de

uma linda e sublime viagem.

Agradeço a Nancy, Marcelo e Andréa pela convivência e apoio

durante os meses de estágio em Pernambuco.

À Val, responsável pela biblioteca da Diocese de Rio Branco, pela

gentileza com que me atendeu durante os dias que por lá estive.

Aos funcionários do Cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos, Termo

sede da Comarca de Vargem Grande, no Maranhão, que nos permitiu a pesquisa

em seus livros de registros.

À D. Nini Barros, pela hospedagem em sua casa durante as minhas

pesquisas em Vargem Grande.

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O nosso Centro existe há 57

(cinqüenta e sete) anos. Foi fundado no ano de 1945 pelo Mestre Daniel Pereira de Mattos, [...] ele ergueu uma capelinha feita de barro, onde realizava o culto e ritual com ingestão do Daime, atendimento aos necessitados e aconselhamentos a todos que o buscavam para este fim. [...] Continuamos praticando o mesmo ritual e preceitos deixados por ele, que é a doutrina cristã escrita no seu Hinário. Primamos por seguir toda a tradição por ele deixada.[...] Somos uma casa de caridade, franciscanos, fazemos o bem sem olhar a quem, sem visarmos bens nem lucros, assim como nos ensinou o nosso fundador (Francisco Hipólito de Araújo Neto – Presidente da Capelinha de São Francisco, 2002).

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SUMÁRIO

1.

1.1.

2.

3.

3.1.

3.2.

3.3.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS...................................................................

CAPÍTULO I - A “BAGAGEM RELIGIOSA” DO MIGRANTE

NORDESTINO NO ACRE........................................................................

“Desfazendo as malas” da devoção.........................................................

CAPÍTULO II - O USO DO DAIME: UM NOVO “ALTAR” DE CRENÇAS

NA CIDADE DE RIO BRANCO................................................................

CAPÍTULO III - DE FOLHA E CIPÓ (DAIME) É A CAPELINHA DE

SÃO FRANCISCO: UMA RELIGIÃO POPULAR EM RIO

BRANCO..................................................................................................

Capelinha de beira de estrada do Seringal Empresa...............................

O imaginário social x religiosidade...........................................................

O Livro Azul: palavra sagrada, cantada e vivida......................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................

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18

26

44

61

61

90

104

111

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RESUMO Nas décadas de 30 e 40, do século passado, novas expressões religiosas foram forjadas na cidade de Rio Branco, resultado da herança cultural trazida na ”bagagem” dos migrantes nordestinos durante a ocupação do Acre, adaptadas à realidade material que encontraram no processo de (des)enraizamento nos seringais, vilas e cidades, na convivência com o catolicismo oficial e com elementos apreendidos no contato com as populações tradicionais indígenas. A partir de 1945, o migrante Daniel Pereira de Mattos elaborou um modo de vida religioso no espaço de uma Capelinha, na beira de uma estrada de seringa, nos arredores da cidade de Rio Branco, retirando da floresta o subsídio material, folha e cipó, para o preparo de uma bebida, o Daime, que propiciou a ele e a outros homens e mulheres elaborarem uma concepção de vida religiosa pautada nas crenças dos santos de devoção tradicional, com valores morais e normas de convivência, repassados em forma de cânticos durante o ritual religioso com a ingestão do Daime. No decorrer da apreensão dessa cultural religiosa, o grupo enfrentou preconceito e perseguição dos familiares, autoridades policiais, Igreja Católica e da população local, mas promoveram formas de resistência que redundaram em práticas sociais legitimadas pelo Governo e parte da população local. É justamente dessa cultura religiosa e dos conflitos vividos no processo de apreensão e construção desse modo de vida que trata a presente dissertação.

PALAVRAS CHAVES: Acre: religião popular. Acre: história.

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ABSTRACT

In the decades of 30 and 40, last century, new religious expressions were wrought to the city of Rio Branco, result from the cultural inheritance brought in the ”background” of the migrating natives from the northeastern region of Brazil during the occupation of Acre; adapted to the material reality that they found in the process of self-(de)rooting in the rubber-tree plantations, villages and cities, coexisting with the official Catholicism and with elements apprehended in the contact with the indigenous traditional populations. Starting from 1945, the migrant Daniel Pereira de Mattos elaborated a religious living way in the space of a little chapel, along a rubber-tree plantation track, in the surroundings of Rio Branco city, removing from the forest the material subsidy, leaf and vine, for preparing a tea, called Daime, that propitiated him and the other men and women to elaborate a conception of a religious life based on faiths in saints of traditional devotion, with moral values and coexisting rules, taught in form of songs during the religious ritual with the ingestion of Daime. During the apprehension of that cultural religious, the group faced up prejudice and the relatives' persecution, police authorities, Catholic Church and of the local population, but they promoted resistance forms that resulted in social practices legitimated by the Government and by a part of the local population. It is exactly on that religious culture and the faced conflicts in the apprehension process and construction in that way of living that the present dissertation deals with.

KEY WORDS: Acre: popular religion. Acre: history.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presente dissertação teve como objetivo, desenvolver o processo

de construção e vivência religiosa dos participantes da Capelinha de São

Francisco, destacando o imaginário elaborado pelo fundador Daniel Pereira de

Mattos1 a partir da sua experiência com o Daime.2 Buscamos construir a idéia, de

que a base ideológica do fundador orientou homens e mulheres para uma ação

prática positiva, afirmando o viver religioso em meio à existência material.

A pesquisa está contextualizada historicamente na região do Estado

do Acre, território que até meados do século XIX se constituía basicamente das

comunidades indígenas, mas a partir do interesse pela hevea brasiliense para a

produção da borracha, que passou a abastecer o mercado internacional, recebeu a

primeira leva de nordestinos, bem como imigrantes de outras nacionalidades,

espanhóis, portugueses e sírio – libaneses, que formaram a sociedade acreana,

caracterizada por elementos culturais trazidos de suas regiões de origem, do

contato com as populações tradicionais, os índios, e das condições sócio-

econômicas e ambientais aqui encontradas, apreendidas, inventadas e

reinventadas no cotidiano da existência material vivida.

1 Daniel nasceu na antiga freguesia de Vargem Grande no Estado do Maranhão, em 13 de julho de 1888. Vivendo em Rio Branco desde 1907, casou-se no religioso com a também maranhense Maria do Nascimento Viégas no ano de 1928, com quem viveu até 1936, nascendo-lhes 4 filhos: Ormite do Nascimento Mattos, Creusolina do Nascimento Mattos, Nazareth do Nascimento Mattos e Manoel do Nascimento Mattos, conforme informações contidas em: CATEDRAL NOSSA SENHORA DE NAZARÉ. Livro II de Casamentos, nº 554. Rio Branco, p. 139, fev. 1924/nov. 1931; e CATEDRAL NOSSA SENHORA DE NAZARÉ. Livro de Batizados nº.V. Rio Branco, set. 1927/jan. 1931. 2 O Daime é o preparo resultante da fervura do cipó jagube (banisteriopsis caapi) e da folha rainha (psichotria viridis), uma bebida que recebe desde tempos imemoriais, nomes diversos nas várias comunidades indígenas da Amazônia, tais como Ayahuasca, iagé, chouri. Segundo SILVA, Antônio Lopes da (participante da Capelinha desde 1956): depoimento. [16 de maio de 2002]. Entrevistadora: Rosana Martins de Oliveira. Rio Branco. Entrevista concedida ao projeto de dissertação “De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-1958)”, Daniel explicara para ele e um grupo de seis participantes, que o nome da bebida que eles tomavam durante o culto na Capelinha era Daime, a população local chamava de Oasca, mais ele batizara por Daime, porque ao se tomar o Daime, pedia-se na linguagem simples do povo e grafada por nós de acordo como era pronunciada: daí-me amor, daí-me força, daí-me firmeza e que dissera ainda, mais ou menos umas sessenta palavras acompanhadas com daí-me. Neste trabalho a palavra Ayahuasca é usada nas citações dos autores, entretanto, incorporo o termo Daime que foi construído por Daniel Pereira de Mattos.

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A historiografia acreana é rica em abordagens de cunho econômico,

que tem discutido o processo de ocupação recente das terras do Acre e os conflitos

resultantes durante a implantação dos seringais (unidade econômica de produção

da borracha), que promoveu relações econômicas e sociais de exploração e

desenraizamento, onde a mão-de-obra usada era a do nordestino que se fez

seringueiro.

A opção foi a de escolher um tema que resgatasse um dos aspectos

culturais da sociedade acreana, a cultura religiosa, em especial uma nova

expressão de religiosidade, forjada na herança cultural dos índios, e do catolicismo

popular, elementos que sintetizam o processo de encontro do migrante com a

população tradicional do Acre, o índio. A escolha foi motivada por razões de

experiência pessoal, de estar convivendo diretamente com a cultura religiosa do

grupo desde 1996. Após várias visitas, em constantes conversas com o Presidente

da Capelinha, o senhor Manuel Hipólito de Araújo, identificamos como era forte a

memória social sobre o fundador e o trabalho religioso por ele idealizado.

Com relação à escolha do título, o mesmo corresponde ao objetivo de

abordar as origens da prática religiosa dos participantes da Capelinha de São

Francisco, que ocorreu da experiência do fundador com a bebida batizada por

Daime, que é feita a partir da fervura em água da Folha Rainha e do Cipó Jagube.

Sob o efeito da mesma, ele idealizou e ergueu um espaço religioso, onde passou a

colocar em prática o seu imaginário de uma crença e modo de vida religioso, com

normas de conduta, valores e convivência social pautadas na vida de São

Francisco, associada à prática social das obras de caridade. O próprio título veio

como inspiração do Hinário, que é a própria fala do fundador, quando escreve no

Hino Do santo amor apareceu

1

Das florestas as matas virgens,

Do santo amor apareceu,

Este cipó e estas folhas

Que nos mostram as glórias de Deus.

2

Com o cipó, fogo, água e folha,

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São essas as combinações,

Que se prepara esta bebida

Que nos dar santa miração.

3

Quem não gostar desta bebida,

Se não gostar não vão zombar,

Se zombar tem castigo

Deus do céu é quem dar.

4

Quem zombar desta bebida,

Zomba do sagrado amor,

Daquele que fez os mundos

Deus supremo criador.

5

E feliz de quem der crença

Que se ver Deus nesta luz,

Nesta sessão em verdade

Baixa o divino Jesus.

6

Baixa o Divino Jesus

Com a Virgem da Conceição,

Vem nos derramar as graças

E abençoar esta sessão

7

Quem não gostar desta sessão

É melhor não a freqüentar,

Fiquem lá nas suas casas

Que nenhum irmão lhe vai chamar.3

Desde 1959 que a Capelinha é juridicamente reconhecida como

Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”, os documentos

que usamos na pesquisa e que fazemos citação, constam como autor o nome

jurídico da Capelinha, mas fizemos a opção de continuar usando o termo

Capelinha, mesmo quando nos referimos a ela nos dias de hoje, por entendermos

3 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino do santo amor apareceu, p. 6.

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que sua característica religiosa e social formadora, ainda é tradicionalmente

mantida pelo grupo, apesar do aspecto físico ter sido alterado de uma construção

inicial de barro medindo 16m² para alvenaria com aproximadamente 700 m².4

O subtítulo, a religiosidade popular na cidade de Rio Branco (1945-

1958), reflete primeiramente a nossa abordagem sobre as transformações pelas

quais passou a sociedade brasileira, conseqüência da romanização do catolicismo

brasileiro e a resistência do migrante nordestino em Rio Branco, que trouxe na

“bagagem” uma religiosidade herdeira do catolicismo popular e a apreensão de

novas crenças quando no contato com elementos da cultura tradicional local, em

particular, a criação da religião praticada na Capelinha de São Francisco, uma

ermida que foi erguida na beira de uma estrada do Seringal Empresa,5 sem

autorização da Igreja Católica, dirigida por um homem pobre, humilde, que vivia

uma vida franciscana, “[...] comia de esmola. Quem recebia os benefícios dos seus

trabalhos espirituais lhe levava um pão, um pedacinho de carne, um litro de leite; e

assim ele vivia, como São Francisco de Assis, quase da caridade pública [...]”.6 Ele

organizou e agregou elementos praticados pela cultura popular, como o uso do

Daime, de origem indígena, a devoção aos santos cultuados pelo catolicismo

popular, fez a reinterpretação dos ensinamentos contidos na Bíblia, escreveu,

musicalizou e repassou em forma de hinos, que permitiam uma maior memorização

dos ouvintes, já que eram em grande parte analfabetos. Os ensinamentos em

forma de hinos continham normas de conduta e valores e norteavam a convivência

social. O marco temporal (1945-1958), porque enfocamos o tempo histórico do

fundador no processo de construção da ideologia religiosa, as origens da formação

dessa religiosidade e a apropriação por outros sujeitos sociais, moradores da

cidade de Rio Branco.

4 A Capelinha passou por uma reforma, ampliação e restauração em 1996 e 1997, devido à necessidade de acomodar o grande número de participantes (150) efetivos e mais os visitantes que são uma média de 200 a cada Sábado. Certo dia em conversa informal com o senhor Manuel Araújo, ele nos disse que ela seria para ele a Catedral do Daime, fazendo referência ao seu tamanho ampliado. 5 Foi em parte do Seringal Empresa, na beira do rio Acre, onde se originou a cidade de Rio Branco. O espaço onde o fundador ergueu a Capelinha ficava aproximadamente a 5 km de distância desse local. 6 ARAÚJO, Manuel Hipólito de apud Revista do 1º centenário de Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro, Ed. Beija-Flor, 1992, p. 21.

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De fundamental importância para nós, foi à existência da Casa de

Memória Daniel Pereira de Mattos, uma réplica da casa do fundador, situada no

local original de sua moradia, ao lado da Capelinha que ele e outros homens, como

José Joaquim da Silva e Anelino, ajudaram a construir nos primeiros tempos. A

finalidade da Casa de Memória é guardar os documentos históricos da Capelinha,

ofícios, cartas, o Hinário escrito pelo fundador, suas cartas, bem como recortes de

jornais, fotografias, entrevistas feitas com homens e mulheres que conviveram com

Daniel Pereira de Mattos, depoimentos preciosos para o nosso trabalho, já que a

grande maioria desses depoentes faleceram e foram exatamente eles os primeiros

participantes e seguidores da cultura religiosa da Capelinha de São Francisco. A

partir dessa documentação nos foi possível escrever este trabalho.

Como pretendíamos abordar as origens dessa religiosidade, era

necessário entender o idealizador-fundador como sujeito histórico, para isso,

buscamos ouvir a suas palavras, os hinos, a linguagem que ele usou, que estão

preservadas no Hinário, que são cantadas nos rituais religiosos até os dias de hoje,

no mesmo local onde fundou a Capelinha. Analisamos ainda as cartas que ele

escreveu ao Governador e Deputado do Território do Acre, José Guiomard dos

Santos, nos anos de 1946 e 1956. Elas nos foram fundamentais para

compreendermos sua idealização do ponto de vista religioso e material, como

sujeito social que se posicionou politicamente sobre a realidade histórica em que

vivia, associando essa realidade às crenças religiosas.

Os relatórios de prestação de contas anual, atas e as

correspondências ampliaram a abordagem das formas de perseguição sofridas, as

resistências elaboradas e a busca pela legitimidade em meio à população.

As fontes orais analisadas, dizem respeito às falas de homens e

mulheres que mantiveram vivas as experiências religiosas. Suas relações com o

fundador, as formas de resistência que elaboraram para enfrentarem o preconceito

e perseguição sofrida no processo de vivência dessa religiosidade. Dessas falas,

apreendemos ainda, o significado das idéias religiosas que eram transmitidas no

espaço da Capelinha.

As fontes de informação foram utilizadas de acordo com a

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especificidade de cada capítulo, os quais sejam: 1 – A “BAGAGEM RELIGIOSA”

DO MIGRANTE NORDESTINO NO ACRE, onde foi feita uma abordagem acerca

do processo de romanização do catolicismo brasileiro e sua repercussão na cidade

de Rio Branco, em meio à população que praticava uma religiosidade, herança do

catolicismo popular trazido do Nordeste, os conflitos travados com a Igreja Católica,

que não compreendia essas manifestações espontâneas como expressão de

religiosidade verdadeiramente aceitáveis, impondo normas para a realização dos

sacramentos, base da verdadeira religião, exigências incompatíveis com a

realidade de homens e mulheres que vivenciavam uma religiosidade tradicional no

seio das matas dos seringais e depois na cidade de Rio Branco. Desse encontro

ou desencontro, vários conflitos se revelaram, com altares desfeitos e outros sendo

refeitos na tentativa de garantir as tradições de um povo que se tornou seringueiro

nas terras do Acre, onde passaram a viver em condições de exploração e

cerceamento da liberdade de produzir, mas resistiram reinventando modos de vida

e de crenças a partir do contato com a cultura local, apreenderam com os índios e

caboclos o conhecimento de outras expressões materiais, que ao longo do tempo

foram adaptadas e forjaram práticas religiosas novas na cidade de Rio Branco; 2 –

O USO DO DAIME: UM NOVO “ALTAR” DE CRENÇAS NA CIDADE DE RIO

BRANCO, discutiremos a apreensão do uso do Daime pelos migrantes nordestinos

e a sua reinvenção no espaço da cidade de Rio Branco, como forma de expressão

das classes populares de inventar por conta própria as suas próprias crenças; 3 –

DE FOLHA E CIPÓ (DAIME) É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO: UMA

RELIGIÃO POPULAR EM RIO BRANCO, onde demonstraremos como apreensão

do uso do Daime forjou uma religião idealizada pelo migrante Daniel Pereira de

Mattos, em meio ao preconceito e à perseguição de setores da cidade de Rio

Branco, com um discurso que associa as crenças religiosas ao viver prático e

material.

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1. CAPÍTULO I

A “BAGAGEM RELIGIOSA” DO MIGRANTE NORDESTINO NO ACRE.

O Acre é caracteristicamente uma região que foi ocupada por

migrantes, ao longo do século XIX, principalmente pelos nordestinos que para cá

vieram durante o primeiro e segundo surto da Borracha. A expressão material e

espiritual que se manifestou durante e depois da ocupação do Acre, era múltipla, foi

trazida pelos migrantes leigos e religiosos como “bagagem” de aprendizados

incorporados em sua região de origem, e no contato com a cultura indígena local, e

no (des)encontro desse nordestino, herdeiro do catolicismo popular e tradicional

com o catolicismo romano trazido na “bagagem” dos missionários estrangeiros que

chegaram a partir da década de 20 do século próximo passado.

A primeira fase de ocupação do Acre ocorreu no contexto da

romanização da Igreja Católica, que rompeu com o catolicismo tradicional brasileiro

entre 1880 a 1920.7 Esse processo de reforma religiosa pela qual passou a

sociedade brasileira, promovida pela Igreja Católica, teve sua repercussão em todo

território brasileiro, nas cidades, vilas, na zona rural e especificamente no nosso

caso, nas cidades e nos seringais da Amazônia, em particular o Acre. As

transformações aconteceram concomitantes à formação do Território do Acre que,

a partir da segunda metade do século XIX, recebeu as primeiras levas de

nordestinos para trabalharem na extração do látex.

O equilíbrio se desfez quando ocorreu a imposição de um catolicismo

romanizado, que identificava o outro catolicismo, o abrasileirado, como ilegítimo e

supersticioso. Foi o confronto entre a religião tradicional e a nova religião formatada

na perspectiva da romanização do catolicismo, um projeto de negação dos

costumes religiosos e tradicionais da sociedade brasileira.

O que caracterizou a religião Católica no Brasil até 1880 foi a

7 BEOZZO, José Oscar. Irmandades, Santuários, Capelinhas de Beira de Estrada. In: Revista Eclesiástica Brasileira (REB). Petrópolis, Vozes, v. 37, n. 148, dez. 1977.

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[...] Sua convivência com a senzala e com o índio, pelo cruzamento

de tradições reinóis e da terra, catolicismo mestiço e barroco,

convivendo com reizados e congadas, com irmandades de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos e São Benedito [...].8

O catolicismo brasileiro desde o inicio da colonização estava

assentando sobre organizações e lideranças leigas. No entanto, o catolicismo

romano que se instala no Brasil, tendo como principais representantes os Bispos

Reformadores a partir da segunda metade do século XIX, se

Assenta sobre outra base: a autoridade do papa, e por extensão,

dos bispos e padres. Por isso, a romanização do catolicismo

brasileiro só poderia ser efetiva na medida em que o poder religioso

fosse transferido dos leigos para os clérigos.9

O objetivo dos Bispos Reformadores, da segunda metade do século

XIX, era “[...] substituir o ‘catolicismo colonial’ pelo catolicismo universalista,

segundo o modelo romano”.10 Orientação pautada nas recomendações

eclesiásticas da Santa Sé para a centralização e controle religioso da sociedade

brasileira. Convém citarmos qual era a situação da Igreja Católica no Brasil no

século XIX. Apropriamo-nos da descrição de Oliveira que aborda três aspectos

fundamentais:

1. O regime de Padroado fazia dos bispos funcionários públicos

encarregados do culto religioso, dependentes do Governo Imperial

de direito e de fato (pois dele dependiam para seu sustento e para a

manutenção das atividades eclesiásticas). Careciam até mesmo do

apoio efetivo da Santa Sé, posto que as bulas papais dependiam do

“placet” imperial para ter valor legal, e nem sempre este era

concedido ou só o era parcialmente.

2. As Ordens Religiosas tradicionais (jesuítas, franciscanos,

beneditinos e carmelitas), que constituíram a espinha dorsal da

Igreja Católica durante o período colonial, estavam em franca

8 Ibid., p. 743. 9 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Catolicismo Popular e Romanização do Catolicismo Brasileiro. In: Revista Eclesiástica Brasileira (REB). Petrópolis, Vozes, v. 36, n. 141, p. 137, mar. 1976. 10 Ibid., p. 131.

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decadência (jesuítas expulsos em 1759, franciscanos e beneditinos

minados por lutas internas) tolhidas pela restrição ao ingresso de

noviços. Os Bispos não podiam contar com elas para uma pastoral

reformadora, mas, ao contrário, tinham que esforçar-se por reformá-

las.

3. O clero secular encontrava-se num estado deplorável, sob o

ponto de vista eclesiástico. Muitos sacerdotes viviam em

concubinato, praticavam a simonia, dedicavam-se a atividades

economicamente rentáveis, e eram relapsos nos serviços religiosos

não-lucrativos. Os padres seculares interessavam-se mais pelas

atividades políticas, através das quais galgavam os postos

eclesiásticos ou faziam uma carreira política, do que pela cura de

almas. (Inclusive, podiam desrespeitar as sanções episcopais pelo

recurso ao Imperador, que tinha efeito suspensivo, minando assim a

autoridade episcopal).11

Diante do quadro acima, os Bispos Reformadores vão se pautar em

novas bases de atuação:

1. Voltar-se para os assuntos internos da Igreja, não assumindo

cargos na política imperial, como haviam feito seus antecessores.

2. Trazer da Europa, na medida do possível, novas ordens e

congregações religiosas que lhe servissem de apoio para a reforma

da Igreja (Padres da Missão, Irmãs da Caridade, Capuchinhos

franceses e, posteriormente, Redentoristas, Dominicanos, Jesuítas

e outros).

3. Instituir os seminários “fechados”, rigoristas, como único meio

para ingressar no sacerdócio. Assim, formar sacerdotes com

espírito clerical de intensa vida espiritual, cortados dos interesses

familiares e políticos e que se dedicassem exclusivamente aos

serviços religiosos.12

Um novo clero vai se formando no Brasil, saídos dos seminários

rigoristas, que “rezavam na cartilha” romana da moral irrepreensível.13 O que fazer

então com a religião dos leigos, aquelas que tinham à frente os beatos e ermitões?

11 Ibid., p. 132. 12 Ibid., p. 132-133. 13 Ibid., p. 133.

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Teriam que ser desmoralizados. Tem início o processo de destituição religiosa dos

leigos, a transferência do poder das mãos destes para os clérigos. Mas isso não

ocorreu sem resistência, o exemplo de oposição entre a religião tradicional e a nova

religião europeizante e romanizada está no caso de Juazeiro do Padre Cícero

Romão e Canudos de Antônio Conselheiro, ambos ocorridos no sertão, religiões

sertanejas, leigas e dirigida por beatos, ausente de um trabalho missionário

apurado, vistas como incompreensíveis e ilegítimas, supersticiosas, um reduto de

ignorantes no ponto de vista dos padres importados. Para Beozzo:

[...] Em 1894 a religião de Canudos não é mais reconhecida pela

hierarquia como a religião herdada da fé dos antepassados, embora

hoje, relendo-se os sermões de Antônio Conselheiro, só se possa

concluir pela sua perfeita ortodoxia e pela sua profunda piedade. 14

É a oposição entre o catolicismo brasileiro, na sua forma luso-

brasileira, mesclada de mestiçagem e leiga e o novo catolicismo que aportou no

século XIX no Brasil, europeizante e romanizante, puramente branco e fortemente

clerical.15 O combate é pelo controle sobre os leigos e suas associações,

denominadas irmandades e confrarias, que estão presentes desde o início da

colonização portuguesa no Brasil.16

No entanto, a presença da Igreja de Roma no Brasil era limitada pelo

poder do Imperador, que mantinha o regime de Padroado, “[...] o rei é o chefe da

Igreja [...] O Estado determinava a criação dos bispados, nomeava os bispos, os

professores de seminário, determinava o rol dos livros que se podia ensinar no

seminário”.17 Com o fim da tutela que o Estado mantinha sobre a Igreja no Brasil,

fato ocorrido no dia 7 de janeiro de 1890, quando foi decretada a separação entre

Igreja e Estado, que trouxe a liberdade para a Igreja e foi bem aceita, pois sem a

intervenção do Estado ela poderia se expandir, com isso, cresce a presença de

Roma no interior da instituição religiosa brasileira, conforme Beozzo:

14 BEOZZO, op. cit., 1977, p. 744. 15 Ibid., p. 745. 16 OLIVEIRA, op. cit., 1976, p. 133. 17 BEOZZO, Oscar. In: DINES, Alberto; FERNANDES JR., Florestan; SALOMÃO, Nelma (orgs.). História do poder: 100 anos de política no Brasil. V. 1: Militares, Igreja e sociedade civil. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 39.

Page 22: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

22

A gente termina o Império com doze bispados no Brasil. E cerca de

130 em 1930. Quer dizer, durante toda a Monarquia, com uma

grande expansão da população, do território, só permitiu a criação

de três bispados: o do Rio Grande do Sul, Diamantina, em 1854, e

Fortaleza. Então, era uma situação também para a Igreja muito

inaceitável. O Império proibiu a entrada de noviços em 1855. Então,

ordens grandes como a dos franciscanos chegaram na República

com um único frade, aqui no sul do Brasil todo, que devia cuidar de

todos os conventos. Não era confortável para o Estado, não era

confortável para a Igreja. 18

Esse movimento de romanização abarca a clericalização do

catolicismo brasileiro, pois não seria possível a nova Igreja Católica utilizar os

leigos e sua religiosidade rudimentar para promover a reforma no seio da

sociedade. Ela vai promover as reformas a partir dos seus bispos, padres e das

congregações européias que virão para o Brasil. Esses grupos sociais serão os

portadores da oficialidade religiosa, os pregadores da “verdadeira” religião Católica.

Mas como o povo vai receber essa nova determinação cultural

estrangeira? Com dificuldades, frente ao preconceito e o cerceamento na prática de

um viver católico dentro das normas importadas de Roma. Beozzo escreve que:

Uma das conseqüências não menores desta atitude foi a dificuldade

de os brasileiros, sobretudo em áreas como o Nordeste, sem a

tradição de intensa imigração européia, se adaptarem à

mentalidade, ao tipo de estudo, de normas vigentes nestes

seminários. Mais grave ainda foi a recusa quase unânime da

direção estrangeira destes seminários em aceitarem em suas

fileiras seminaristas mulatos e pretos e, em certas áreas, até

mesmo o brasileiro, o “caboclo” como era chamado, que não fosse

filho de imigrante italiano, alemão ou polonês. O preconceito virou

até mesmo expressão corrente: “Brasileiro não dá para padre”.19

18 Ibid., p. 40. 19 BEOZZO, op. cit., 1977, p. 746-747.

Page 23: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

23

Se dentro dos seminários estava de bom termo as reformas da Igreja

Católica, o mesmo não se pode dizer nas instituições leigas, que vivenciam um

catolicismo brasileiro, notadamente leigo, constituídos em irmandades que

construíam e administravam igrejas, contratavam capelão, promoviam festas para

os santos padroeiros, recolhiam esmolas e promoviam os terços, ladainhas,

novenas. Em muitos lugares os membros das Irmandades se ligam às lojas

maçônicas e ao pensamento liberal da época.

O inverso acontece com os bispos brasileiros, se inspiram no

catolicismo romano, e dos braços do Imperador eles migram para os do Papa, se

opondo ao liberalismo, se omitem em participar no debate político e social do país,

se limitam às funções sacramentais. A característica do catolicismo brasileiro deixa

de ser o leigo para tonificar o bispo, de religião familiar transfere-se para o templo,

das rezas para a missa, os sacramentos se fortalecem frente aos terços.20 Uma

forte pressão leva a reduzir as irmandades ao poder dos bispos, sem interferência

na ordem temporal.21

Um outro aspecto de controle e inversão de poderes do catolicismo

romanizante vai ocorrer na zona rural, área de maior concentração populacional no

Brasil, local de uma religiosidade popular herdeira do catolicismo luso-brasileiro,

tendo à frente os leigos, ermitões, beatos que marcavam com a construção de

santuários, com uma vida devocional e de fé, os caminhos e vilas do interior do

Brasil. As idas e vindas dos peregrinos com suas famílias para rezarem e fazerem

promessas eram constantes, nasceram à margem do catolicismo oficial. São

herdeiros de práticas religiosas que brotaram no início da colonização e

evangelização do Brasil, mas que no contexto da romanização ameaçavam a

hegemonia de bispos, padres e missionários. Foram manifestações espontâneas

de uma fé vivida no labor do “desbravamento”, que fincou a experimentação em

forma de devoção e onde outros e outros puderam reproduzir na presença ou

ausência de missionários a sua religiosidade. De forma que:

20 Ibid., p. 748. 21 Ibid., p. 750.

Page 24: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

24

Os santuários brotam meio a margem da religião oficial [...] Assim

no século XVI, no Santuário da Penha, em Vila Velha, ao lado de

Vitória no Espírito Santo, plantado numa “penha” por Pedro Palácios

irmão franciscano, que convive com os índios e os pobres. Na

Bahia, Francisco de Mendonça Mar que alforria em fins do século

XVII seus escravos e vai viver como eremita às margens do São

Francisco fundando aí o Santuário de Bom Jesus da Lapa.22

A Igreja Católica Romana seguia com a reforma religiosa pelas

cidades, caminhos e vilas do Brasil, uniformizando práticas religiosas em um

padrão oficial de normas e condutas, “purificando” a fé e submetendo os leigos ao

ofício do ouvir e não mais dirigir. No ano de 1915 na reunião da Pastoral Coletiva

do Episcopado Brasileiro, foram traçadas as normas de controle para essas

manifestações religiosas do Brasil. Assim descreviam que:

Para que as peregrinações surtam os efeitos salutares que todos

desejamos, e se não convertam em ocasiões de escândalo para os

fiéis, queremos e ordenamos que os Revds. Párocos e sacerdotes,

em geral, não promovam, organizem e nem dirijam peregrinações,

senão raramente e por motivos extraordinários, e sempre com

audiência da autoridade diocesana, a cuja aprovação submeterão

os respectivos programas.23

Para os bispos da província meridional do Brasil, as peregrinações

que o povo fazia até os santuários eram consideradas uma atitude apta a se

converter em escândalo e por isso precisavam ser normatizadas. Peregrinações só

deveriam “ocorrer raramente e por motivos extraordinários” e quem decidia se

convinha ou não promovê-las era a “autoridade diocesana”. Essa atitude promovia

o “enquadramento” do viver religioso dentro das necessidades ditadas pelos

clérigos e não do indivíduo, ditava-se o espaçamento para a devoção, para rezar,

seria nos dias de missa e não mais francamente, não mais a partir da necessidade

do cotidiano. A espiritualidade do povo, sua fé e a manifestação da sua devoção

22 Ibid., p. 752. 23 Pastoral Coletiva apud BEOZZO, op. cit., 1977. p. 753.

Page 25: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

25

ficariam submetidas à autorização e controle clerical. A Igreja toma para si as

“chaves dos santuários”.

Outra manifestação religiosa dos leigos era a capelinha de estrada,

amostra mais cotidiana do povo, com suas festas, rezas, ladainhas e terços.

Espaço comunitário, coletivo, congregacional, com calendário de festas em dias

santificados, romarias, cânticos, tendo à frente o capelão, que ergueu, consagrou e

fez um altar para colocar o santo padroeiro e outros santos da sua devoção, da sua

tradição. Ele mora próximo a ela, zelando e promovendo os encontros, não pediu

licença a matriz para criá-la, mas foi legitimado pelo povo, não é reconhecido pelos

clérigos, é um leigo, mas o povo confia nele, se confessa e respeita, pede conselho

e batismo, é o padrinho e amigo, os laços de confiança e sociabilidade eram

estreitados nas necessidades cotidianas.

O que os reformadores determinaram quanto a sua existência?

Sendo comuns em nossas dioceses abusos no funcionamento e na

administração das capelinhas de estradas e até mesmo de bairros

que circundam as localidades principais, queremos que os Revds.

Párocos mantenham-nas fechadas a todo e qualquer serviço

religioso, a menos que não sejam observadas as seguintes

cláusulas:

1º Cada um terá um zelador nomeado pelo Pároco, com a

obrigação rigorosa de não consentir que se façam nelas festas,

terços, ladainhas, rezas, etc. sem a exibição, por parte dos

chamados capelães, da licença in scriptis do mesmo Pároco;

2º Cada zelador prestará contas, no mês de Dezembro de cada

ano, ao fabriqueiro da matriz, das esmolas que entraram, e de sua

respectiva aplicação, no correr do ano.

Concorrendo esta nossa resolução para moralizar esses atos de

culto e até evitar desordens nessas reuniões, esperamos que a

autoridade policial dará o seu concurso aos Revds. Párocos,

quando precisarem, fazer efetiva essa nossa determinação.24

24 Pastoral Coletiva apud BEOZZO, Ibid., p. 756-757.

Page 26: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

26

Primeira cláusula autoritária, destituir o fundador da capelinha, o

promotor dos cultos e festas, o capelão, para em seguida nomear um zelador, para

bem dizer, um vigia ou segurança que tem o papel de coibir a realização das

práticas religiosas, a não ser que o Pároco considere pertinente a sua realização.

Segunda cláusula, a prestação de contas das esmolas. Está dito: negação do

capelão como legitimo ordenador da capelinha e o controle das esmolas pela

matriz. Moralizar as atividades. As manifestações de religiosidade espontâneas do

capelão e do povo são consideradas imorais, desordeiras, a forma de rezar, de

cantar, de promover as festas não estão em acordo com as regras formais do

catolicismo romano. Não deixa opção: ou se submetem as cláusulas ou o

fechamento da capelinha, e para fazer cumprir essas ordens, se necessário fosse,

entra a autoridade policial, com as armas da repressão física.

As medidas de contenção das manifestações espontâneas ocorreram

também na substituição das crenças do povo nos santos tradicionalmente

cultuados no Brasil desde a colonização. A estratégia de desvalorização do

catolicismo brasileiro e seus santos de devoção, trouxeram a imposição do culto

aos santos em moda na Europa. Destituíram dos altares Santo Antônio, São José,

São Sebastião, Santa Bárbara, São Benedito, substituindo-os pela devoção aos

santos das novas congregações e associações leigas, como Nossa Senhora das

Graças dos Salesianos, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, São Geraldo

Magella, devoção dos Redentoristas.25

1.1. “Desfazendo as malas” da devoção.

Essa transformação religiosa que viveu a Igreja brasileira, se fez

presente no Acre, representada pela Ordem religiosa dos Servos de Maria, de

origem italiana, que interferiu nas práticas do catolicismo popular, sem contudo,

garantir o controle sobre as manifestações mais espontâneas da sociedade

acreana, que foram sendo reinventadas no processo de enraizamento pelos

migrantes que vieram para o Acre, tais como: paraibanos, cearenses,

25 OLIVEIRA, op. cit., 1976, p. 137-138.

Page 27: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

27

pernambucanos, maranhenses e de outros Estados do Nordeste, que assolados

pelo difícil quadro de seca e crise econômica em sua região, vislumbraram a

oportunidade de enriquecimento nessa frente migratória que se abria, impulsionada

pela exploração da hevea brasiliense a partir da segunda metade do século XIX,

conhecido na História como o ciclo da borracha.26

A fase de exploração e povoamento do Acre pelos migrantes

nordestinos remonta a 1877. Esses homens que vieram para o Acre para trabalhar

nos seringais, na extração do látex para a confecção da borracha, tiveram sua vida

marcada

Desde cedo pelo infortúnio [...] chegavam estes pobres em levas,

amontoados nos porões dos navios. Chegavam a Belém e Manaus,

onde as casas aviadoras, que financiavam o empreendimento das

selvas acreanas, os contratavam. Postos nas gaiolas, perfazem a

última etapa da viagem até a sede do seringal ou barracão. Neste

barracão mora o patrão mais conhecido por coronel, que exercia

praticamente o domínio absoluto em suas terras e sobre seu

pessoal. No barracão, recebia o “brabo” (o seringueiro novo) todas

as ferramentas e apetrechos para a colheita da seringa. Era-lhe lido

e explicado também o regulamento que vigorava nos seringais. As

proibições eram as mais absurdas e ridículas, como: proibição de

plantar, fazer agricultura, caçar, pescar, etc. Tudo isso para que o

seringueiro não se distraísse do seu trabalho principal que era a

coleta da borracha [...].27

Viveram os nordestinos no Acre as experiências do desenraizamento

no processo de migração pois,

Quando duas culturas se defrontam, não como predador e presa,

mas como diferentes formas de existir, uma é para outra como uma

revelação. Mas essa experiência raramente acontece fora dos pólos

26 MARTINELLO, Pedro. A “batalha da borracha” na Segunda Guerra Mundial e suas conseqüências para o vale Amazônico, Cadernos da UFAC, n. 1 Série “C” – Estudos e Pesquisas, Rio Branco, Universidade Federal do Acre, 1988. 27 MARTINELLO, Pedro. Os Servos de Maria na Missão do Acre e Purus (1920-1975): Uma missão na selva amazônica. 1976, f. 60-61. (Dissertação de Mestrado em História) - Universidade de San Francisco, Califórnia-EUA.

Page 28: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

28

submissão-domínio. A cultura dominada perde os meios materiais

de expressar sua originalidade.28

Primeira transformação, o migrante nordestino tornou-se

seringueiro,29 em um espaço dominado pela estrutura econômica imposta pelo

mecanismo de funcionamento dos seringais, que negava a liberdade do homem na

sua possibilidade de empregar os meios de subsistência e expressões materiais

originários do seu modo de vida no Nordeste. A criatividade foi sufocada pela

imposição de uma rotina de extração da borracha, que limitava a sobrevivência

desse homem a um trabalho mecânico, estafante e solitário em meio à floresta.

A raiz do nordestino no Acre foi sendo paulatinamente arrancada, à

medida que o domínio do seringalista preenchia todos os espaços de sua vida, não

simplesmente no campo direto da exploração econômica da borracha, mas na

proibição de plantar, cerceando a garantia da prática alimentar mais saudável,

sujeitos aos “[...] escassos de todas as conservas suspeitas e nocivas, com

derivativo aleatório das caçadas, [...]”,30 na ausência da família, proibida no primeiro

surto da borracha, evitando com isso distrair o seringueiro de seu trabalho.

Na condição de seringueiro, o nordestino passou a viver em condição

de semi-servidão, preso às dívidas contraídas com o patrão – o seringalista, que

era o dono do seringal e do barracão que lhes fornecia todos os utensílios e

alimentos necessários para o trabalho e subsistência. O migrante que se tornou

seringueiro, chegava no seringal endividado, contraía as primeiras dívidas no

momento em que embarcava para o Acre nos portos do Nordeste, o patrão

debitava todas as despesas contraídas durante a viagem.

28 BOSI, Eclea. Cultura e desenraizamento. In: BOSI, Alfredo (org.) Cultura Brasileira: Temas e Situações. São Paulo: Ática, 1992, p.16. 29 Seringueiro é a categoria usada para denominar o nordestino que foi inserido na economia extrativa do látex na Amazônia. Na condição de coletor do látex, fabricava as pélas de borrachas que eram entregues ao dono do seringal, o seringalista, que comercializava com as casas aviadoras de Manaus e Belém para serem exportadas. Os seringueiros eram trabalhadores do seringalista, presos às dívidas da viagem do Nordeste para os seringais, sem direito de plantar ou criar animais, eram obrigados a consumir os gêneros alimentícios, como conservas, que eram vendidas pelo seringalista no barracão de sua propriedade. 30 CUNHA, Euclides da. A Margem da História. Porto: Livraria Lello & IRMÃOS, Editores, 1941, p. 59.

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29

Instalados em meio à floresta, o isolamento e a distância de outros

seringueiros, cúmplices da mesma opressão, dificultava as relações de

sociabilidade, tendo “[...] que calcar durante a vida inteira a mesma ‘estrada’, de

que elle é o único tranzeunte, trilha obscurecida, estreitissima e circulante, que o

leva intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida, [...]”31

são as estradas de seringa.32 O migrante torna-se calado e contemplativo, fala

pouco, característica marcante do homem seringueiro da Amazônia, que na cidade

é estigmatizado como matuto e ignorante, é o homem de “pouca conversa”.

O migrante ao se perceber no contexto a que foi envolvido vivencia

uma realidade conflitante, reclama a si mesmo o desprazer da sua vida, imputando

as suas desventuras a inconseqüente ambição pela riqueza, que:

Além disto, só lhe é licito punir-se da ambição maldita que o

conduziu áquelles lugares para entregal-o, maniatado e escravo,

aos traficantes impunes que o iludem – e este pecado é o seu

próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável

penitencia [...].33

As expressões materiais desse conflito aparecem nas celebrações

religiosas. Euclides da Cunha narra o drama da Semana Santa no seringal, onde:

[...] No sábado de Aleluia os seringueiros [...] desforram-se de seus

dias tristes. É um desafogo [...]. Não tiveram missas solenes, nem

procissões luxuozas, nem lavapés tocantes, nem predicas

comovidas. Toda semana santa correu-lhes na mesmice torturante

daquella existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de

meios-jejuns permanentes e de pezares que lhes parecem uma

interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiozamente,

indefinida, pelo ano todo afora.34

É a transmutação do significado religioso para a realidade, em que a

desassistência espiritual uniformiza os dias santos com a rotina, onde a rotina é a

31 Ibid., p. 58. 32 As estradas de seringa eram picadas abertas com a finalidade de interligar as árvores denominadas de seringueiras. 33 CUNHA, op. cit., p. 87. 34 Ibid., p. 85.

Page 30: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

30

própria representação do martírio e sofrimento presente e ampliado por todo o ano

nas relações de trabalho nos seringais. Seguindo a tradição trazida do Nordeste,

diz Euclides que os seringueiros recordavam essa data nas cidades, vilas e sertões

vividos com pesar e tristeza, sentimentos passageiros ligados à data comovente da

paixão de Cristo. Contudo, nos seringais, ela parece se eternizar, “[...] ali a

existência inteira, monotona, obscura, dolorozissima e anonima, a girar

acabrunhadoramente na via doloroza e inalterável, sem principio e sem fim, do

circulo fechado das ‘estradas’”.35

O migrante tem as suas raízes partidas, distantes vão ficando a

paisagem da vivência religiosa e comunitária praticada na terra natal, e o modo de

vida de compartilhamento e de pertencimento. No sertão a religiosidade é

compartilhada nas rezas familiares dos oratórios domésticos, nas capelas, com as

ladainhas e cânticos, romarias e festas, na visita do vigário e nas procissões, nas

peregrinações, se não tinha o padre, mas tinha o beato, o capelão, os rezadores,

confrades e irmãos, ermitães que promovia as rezas, erguia a capelinha com o altar

e levantava o cruzeiro. Havia a devoção ao santo padroeiro, intercessor, protetor

sobrenatural individual ou coletivo, para fazer face às dificuldades da vida. As

festas religiosas promoviam a sociabilidade e solidariedade entre o grupo.36

Contudo, essa herança o migrante traz para a Amazônia, mas a

expressão material dessa cultura religiosa é dificultada pelas condições em que

esses homens foram estabelecidos. A família que promovia o compartilhar das

rezas não existia nos primeiros tempos da migração; a sociabilidade era limitada

pelo ritmo estafante do trabalho na seringa, que não deixava tempo para o

seringueiro se ocupar com qualquer outra atividade, ademais havia a enorme

distância entre as casas dos seringueiros; o deslocamento nos seringais era

controlado pelo seringalista, para viver no seringal era com um único objetivo,

trabalhar.

35 Ibid., p. 86. 36 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.

Page 31: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

31

O desenraizamento do migrante, na fase de ocupação do Acre, é

assim promovido pelas condições econômicas impostas na estrutura de

funcionamento da produção da borracha nos seringais. Como esses homens

elaboraram novas formas de vidas, de enraizamento a partir da nova realidade

apresentada?

Quando retomamos as expressões religiosas dos migrantes que

vieram para o Acre, dizemos que elas foram construídas ao longo da formação da

sociedade brasileira, dentro do catolicismo tradicionalmente brasileiro, que foi

forjado nas relações de dominação e opressão do povo, da herança portuguesa, do

contato com as manifestações indígenas e posteriormente ou concomitante com

africanas. No Acre, essas expressões vieram na “bagagem” do nordestino, mas

foram dificultadas devido à atividade econômica imposta com restrições as relações

de sociabilidade e liberdade.

Diante dessas limitações os migrantes vão reformulando, refazendo

seus modos de vida a partir das condições, da realidade material que lhes é

apresentada, forjada na luta pela sobrevivência. Os seringueiros vivendo na esfera

do controle econômico, praticavam sua religiosidade de maneira mais livre, pela

ausência da instituição de uma Igreja oficial, que só vai se fazer presente

efetivamente no Acre a partir de 1920.

O seringueiro não abandona as suas crenças que estão alicerçadas

no catolicismo tradicional, organiza sua prática religiosa a partir das condições

materiais dadas. Quando nos primeiros tempos de ocupação dos seringais, o

número de mulheres era mínimo e na maioria dos casos ausência total, era o

homem rezador quem dirigia e organizava a vida religiosa. Mais tarde quando

ocorreu o afrouxamento das cadeias de dominação-submissão, ocasionado pelo

declínio ou crise da borracha a partir de 1912,37 a presença da mulher cresceu no

espaço familiar dos seringais, passando a ser mais comum à mulher como

rezadora, e quando alfabetizadas, além do terço, puxava os cantos, lia as orações

e novenas.

37 Esse fato foi ocasionado pela concorrência dos seringais de cultivo na Malásia, que passou a dominar o mercado internacional da borracha, levando a bancarrota a economia mono-extrativista da borracha no Acre e Amazônia brasileira em geral.

Page 32: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

32

Em alguns seringais, o patrão compartilhava da vivência religiosa,

fazendo reuniões em seu barracão, ou sede do seringal. A mulher do seringalista

dirigia a reza e até ensinava o catecismo, cantava um bendito ou puxava o terço,

pois em muitos casos, elas haviam estudado nos colégios de freiras na cidade de

Manaus ou Fortaleza. Esse catolicismo estava fora do controle da Igreja oficial,

eram os próprios leigos que proviam e dirigiam as reuniões. Ainda nas matas, ou

seringais, nos lugares mais distantes, o migrante que se tornou seringueiro cultuava

os santos de origem verdadeiramente popular e venerava a alma de pessoas que

se tornaram referência no atendimento de suas preces e rogativas.

Por exemplo no Acre, ainda hoje o povo se reúne fazendo romaria

no Seringal Floresta que fica a dez horas de Xapuri, pra venerar

São João do Guarani, que foi um seringueiro abandonado pelo

patrão na beira do varadouro. Onde morreu, o povo construiu uma

capela, hoje de alvenaria, meta de romaria popular.38

Uma outra descrição dessa manifestação espontânea da religiosidade

aparece na literatura local.

Alma Milagrosa

CRUZ DE BAMBÚ

Existiu, há muito tempo, um certo seringueiro

Talvez, pelo começo da rendosa exploração

Do látex, gomoso indústria de exportação,

Para o imenso comércio brasileiro.

No seringal “Novaxioma”, em janeiro,

De milnovecentos e dez, um extrator adoentado

Buscando remédios, trouxa às costas, carregado

Com sua esposa, buscava, a barraca de José seu

Companheiro

Transpondo uma mata de 6 horas, desabitada

E neste deserto terminou o dia; anoiteceu.

O pobre exausto de cansaço, ali morreu

38 LOMBARDI, Massimo. A Igreja no Acre e Purus: 1877-1930. 1982. p. 34-35. Monografia (Curso de Teologia) - CEHILA, São Paulo.

Page 33: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

33

Em companhia da esposa, pobre coitado.

E esta, noite tôda ali sòzinha

Com um medo pavoroso, tudo assustava

Um ruído qualquer, a aterrorizava

Amamentava no colo, uma filhinha.

Que horas cruéis, ela a chorar passou

Mais ainda, no cadáver confiava

Com ternura junto a êle, sempre orava

E pela manhã para o morto assim falou:

Afonso: fica que eu vou iguém chamar

Pessoas que possuam bom coração,

Para vir comigo aqui esta solidão

Ao teu corpo inerte, sepultar.

Cautelosa com ramos, o cadáver ela cobriu

Com pedaços de pau seco, fez um lume

Resou, conforme era seu costume,

E depois resoluta ela partiu.

Três horas de viagens, tristemente ela andou

Em busca de encontrar algum cristão

Que lhe seguisse, também na solidão,

Uma barraca, em um campo avistou,

Morta, de cansaço, trêmula, ainda chorando.

Um homem perguntou: o que aconteceu?

Foi meu pobre marido que morreu!

Vamos sepultar, por Deus, estou rogando.

Voltando ao local, perplexos... admirando?

Porque era assim, aquilo acontecia,

O fogo aceso ardia, e não se consumia

Elevando ao ar, as chamas crepitando.

Page 34: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

34

Não existia se quer um urubú!

Nem o cadáver estava putreficado

E depois de terem-no sepultado

Improvisaram-lhe uma tosca cruz de bambú.

E desde ahí, começou então a romaria

Os milagres, um após outro sucedendo-se

Os sofredores, de longe socorrendo-se

E a todos, seus milagres, ela fazia.

E hoje: é um deserto festejado,

Edificaram-lhe uma linda e modelar capela

Onde os romeiros vão acender vela,

E agradecer aquela Bem aventurada.39

O ano de 1920 no Acre é marcado pela chegada da Igreja Católica,

representada pela missão dos Servos de Maria, missão italiana pautada na

ideologia católica romana, que rezava na cartilha das reformas implantadas no

Brasil pelos bispos reformadores. A proposta da missão era a de transformar a fé

do povo numa expressão religiosa mais sacramental. A impressão sobre a vida do

povo da Amazônia é relatada em carta, pelo padre Lorenzini da missão dos Servos

de Maria, na chegada ao Brasil rumo ao Acre, quando ele observa que:

Dos barrancos saiam homens e mulheres maltrapilhos e crianças

nuas, nunca teria pensado de encontrar perto de Belém pessoas de

uma vida quase selvagem... por falta de assistência religiosa, a

moral deles deixa muito a desejar... esperamos leva-los a uma vida

cristã e civil.40

A narrativa do padre revela o seu desconhecimento da realidade da

Amazônia. A partir do seu olhar sobre as roupas ou a ausência das mesmas,

considerou o povo como vivendo de forma quase selvagem, com a moral sob

suspeita, imputando a essa situação a ausência de assistência religiosa.

39 MESSIAS, Raimundo Nonato. Trovador Matuto. Rio Branco: [s. n.]. 1961. Alma milagrosa – Cruz de bambu, p. 26-27. 40 LORENZINI apud LOMBARDI, op. cit., p.37.

Page 35: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

35

Não nos deixa a impressão de que conhecia a situação de exploração

a que estavam sujeitos homens e mulheres dos seringais, ou os caboclos que

viviam às margens dos rios da Amazônia. Negando qualquer possibilidade de que

eles tivessem uma religiosidade por debaixo das roupas maltrapilhas ou da

condição quase selvagem em que se apresentavam, colocam-se como os

redentores desses sujeitos históricos.

Entretanto, veremos que o grande problema que os Servos de Maria

vivenciaram no Acre foi exatamente não ter compreendido por um longo tempo o

modo de vida e costumes do povo acreano, pois a proposta era instituir uma vida

sacramental para resolver os problemas espirituais, negando as condições

materiais desses homens e mulheres que viviam nos seringais. A prioridade da

Ordem era o trabalho pastoral, considerando o número das obras espirituais nos

batizados, confissões, casamentos, isso era o que contava, como descreve Dom

Próspero na carta que escreve falando das desobrigas.41

Chegava nos seringais [...] logo visitava as casas [...] convidando e

incentivando e vencendo o acanhamento de quem devia regularizar

a união conjugal, de quem tinha filhos pra batizar e crismar. Nestes

casos eu procurava que os pais e os padrinhos dos batizados e dos

que iam fazer a primeira comunhão, também recebessem os

sacramentos da confissão e da comunhão. Desse jeito eu

conseguia duas coisas, a de excluir de ser padrinho a pessoa que

não podia ou não queria satisfazer o preceito da confissão e

comunhão anual [...].42

A missão do bispo era empregar os sacramentos, impor condições

para a realização dos mesmos: não batizar os filhos de quem não se confessasse e

recebesse a comunhão, uma forma autoritária de fazer com que os seringueiros

cumprissem as obrigações religiosas da Igreja Católica, e quem não o fizesse

ficava excluído do ritual. Era a religião devocional e leiga versus religião clerical e

sacramental.

41 Viagens missionárias nos seringais para desobrigar os moradores do preceito da confissão e comunhão. 42 Ibid, p. 47.

Page 36: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

36

O povo era um sujeito passivo nas desobrigas, o padre organizava os

sacramentos de forma exaustiva e passageira, devido à distância que precisava

percorrer não dava tempo de conhecer a realidade do seringueiro, de aprofundar o

viver religioso, as missas eram muitas vezes anuais. Como esperar que os

seringueiros praticassem uma religião que não conheciam os seus preceitos. Na

ausência do padre, era na vida doméstica que eles organizavam a sua religião,

doméstica e devocional.

Para o cumprimento dos sacramentos, o padre exigia o ato da

confissão, que não garantia a relação de confiabilidade e cumplicidade. Era um dos

poucos momentos em que o seringueiro tinha a oportunidade de se fazer ouvir

individualmente pelo padre, diminuindo a distância e a impessoalidade entre o

representante religioso e o “fiel”. A superficialidade dos ensinamentos religiosos e

das normas de conduta moral não eram aprofundados no decorrer das desobrigas,

deveriam ser apreendidas pelo menos para a efetivação dos sacramentos dos

filhos.

As desobrigas cumpriam um papel superficial e quantitativo, não

visavam ao ensinamento profundo da doutrina católica, não havia tempo para isso,

o número de padres era reduzido, levavam muitas vezes os missionários à

exaustão devido à distância percorrida e na organização do ritual, ter que rezar

missa, ouvir confissão, batizar e casar.43 Contudo, a Igreja Católica considerava

que esse trabalho garantia “[...] uma onda de purificação salutar para a alma

daquele povo tão abandonado nos tempos passados [...]”.44

Na continuação da carta, o bispo afirma que os Servos de Maria foram

predestinados pela Divina Providência a fazer a regeneração moral e espiritual do

povo da região do Acre. A compreensão do bispo, na sua narrativa, transparece

que a situação de abandono vivida pelo seringueiro, decorria apenas da ausência

dos sacramentos, escamoteia a exploração econômica a que haviam sido

subjugados na estrutura dos seringais. Portanto, abandonados, na concepção do

bispo, era coisa do passado. Na verdade, essa compreensão induzia o seringueiro

43 Ibid. 44 Ibid., p. 52.

Page 37: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

37

a uma condição de passividade diante da opressão, já que a causa do sofrimento e

degradação social e moral estavam relacionados à ausência do sacramento e não

da relação de trabalho imposta pelo seringalista.

Sendo os sacramentos prioridade, a Igreja Católica no Acre pretendeu

“arrebanhar” os “fiéis” e convertê-los à fé católica, usando-se de tal artifício para

promover a correção moral que levaria a uma conduta cristã. A Igreja impõe

condições de normas e posturas para o recebimento dos sacramentos. Vejamos

quais foram às normas:

1. Para o povo entender o valor do matrimônio, seja como simples

contrato, seja como Sacramento, é necessário adotar o sistema de

não admitir ao matrimónio religioso aquele que já está casado

civilmente com outra pessoa. No mesmo tempo precisa insistir com

as autoridades civis, para que os juízes adotem o mesmo sistema

com católicos a respeito do casamento civil.

2. Para conseguir uma maior participação aos santos sacramentos

achei um meio eficaz o seguinte: não batizar os filhos se antes os

pais não regularizassem a sua situação com o matrimónio, se por

acaso não estivessem casados, ou se não aceitassem de cumprir o

preceito pascal.

3. Igualmente, não serão aceitos como padrinhos, aqueles que não

estejam em regra com o matrimónio, nem aqueles que não

aceitarem de cumprir com o preceito pascal.

4. Além disso eu não aceito como padrinho aqueles que se casam,

mas até então estivessem amigados. Esta honra seria adiada,

depois de eles darem um bom exemplo com alguns anos de vida

familiar.

5. Os culpados pela separação, não só ficassem excluídos de

serem padrinhos, mas nem eram admitidos ao benefício da

confissão, a não ser que se comprometessem a procurar esposo ou

a esposa, e esse compromisso será por escrito... Com esta medida,

quero chamar a atenção dos separatistas, para um conceito mais

elevado do Sacramento... (Relatório de Dom Próspero, 1924)45

45 Ibid., p. 97.

Page 38: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

38

Eram normas impositivas que dificultavam a possibilidade de uma

relação de espontaneidade entre a Igreja e o povo, o objetivo era o enquadramento

na prática moralizante. Com isso, ela se torna uma religião excludente,

preconceituosa e intolerante.

Mas essa tentativa de “regeneração” não foi tranqüila. A reforma que

os Servos de Maria traziam na “bagagem” afetava profundamente um modo de vida

que havia sido forjado na relação de trabalho e nas dificuldades impostas nos

seringais e cidades do Acre.

A exclusão e intolerância da Igreja Católica se abateram sobre povos

de outras nacionalidades, religiões, organizações sociais e políticas. O Acre,

durante o apogeu da borracha, atraiu não somente os nordestinos para trabalharem

nos seringais, vieram uma grande quantidade de comerciantes, “[...] na sua maioria

turcos maometanos, mesclados com sírios católicos do Líbano, os hebreus e os

próprios europeus de diversos países [...]”.46 Os comerciantes sírio-libaneses,

também eram conhecidos como mascates turcos, que passaram a viver nas

cidades do Acre, em Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Sena Madureira, Tarauacá e

Brasiléia.

Na Amazônia esses mascates eram chamados de regatões (porque

praticavam comércio navegando pelos rios) e se estabeleciam em

qualquer parte onde encontrassem boa oportunidade de negócios.

Subiam os rios, os paranás e os igarapés, negociando suas

mercadorias em troca de borracha, castanha, couro de caça, ou

qualquer outro produto de valor comercial. [...] De uma forma geral

os regatões eram mal vistos pela elite da sociedade extrativista.

.............................................................................................................

Com o tempo e a prosperidade proporcionada pelo comércio do

“ouro negro” (como era tratada a borracha no início do século) os

árabes do Acre começaram a participar da maçonaria, dos clubes

políticos, da fundação de clubes esportivos [...].47

46 MARTINELLO, op.cit., 1975, p. 112. 47 NEVES, Marcos Vinicius. Os Árabes Acreanos. Casa Farhat – 90 anos. Rio Branco, v. 1, n. 1, p. 6-7. 2000.

Page 39: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

39

A falta de tato da Igreja Católica com esses grupos resultou em uma

série de conflitos, ela negava e combatia as diferenças. Martinello descreve alguns

combates promovidos pelos católicos.

Chegamos assim ao glorioso ano de 1945, quando a Prelazia

celebrava seus 25 anos de existência e portanto suas bodas de

prata [...]. Relendo as crônicas e os documentos da época, nota-se

antes de tudo um despertar do sentimento religioso, com várias

campanhas anti-maçônicas, anti-carnaval, anti-má imprensa.[...] A

26 de abril é iniciada a Biblioteca Paroquial de Sena Madureira, com

8 volumes e projetada a fogueira da má imprensa para o último dia

de maio. A 31 de maio, de fato, pela primeira vez, em plena praça

pública e depois de solene procissão, realizou-se a fogueira dos

maus livros recolhidos durante o mês: livros protestantes – 57;

espíritas – 21; e outros – 7, além das muitas revistas pornográficas.

Em novembro, durante todo o mês, foi realizada a campanha do

terço anti-comunista, com a participação de 513 pessoas; [...]. A 17

de novembro o Partido Comunista era fundado em Rio Branco,

estando envolvidos em sua cúpula o Professor Lúcio Cavalcante e o

atual governador do Acre Prof. Geraldo Mesquita [...]. Os dois

professores foram por isso expulsos da Congregação Mariana. Em

Rio Branco foi fundada a Liga de Orações anti-maçônica [...].

.............................................................................................................

A 29 de maio de 1926, negando-se o Sr. Prelado a repicar os sinos

e a celebrar a Santa Missa por Mamede Geber, maometano e

maçom, este fato provocou grande comoção na cidade. É que o

pessoal não entendia certamente as disposições canônicas das

quais S. Excia. Era cioso no cumprimento.48

Esses acontecimentos ocorridos em Rio Branco e em outras cidades

do Acre apresentam a intolerância e tentativa de hegemonia por parte da Igreja

Católica. A sua ação não se pautou somente na área religiosa, é certo que a

moralização do povo que praticava um catolicismo tradicional poderia ser

amenizado através dos sacramentos, mas recorreu à pressão contra as outras

48 MARTINELLO, op.cit., 1976, p.139 -144.

Page 40: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

40

organizações religiosas e políticas, chegando à violência, como é o caso da

fogueira da má imprensa, atitude que remonta as práticas da Inquisição.

Na verdade, a queima foi um ato simbólico. Na prática, a Igreja

Católica pretendia neutralizar todas as forças contrárias, no campo religioso e

ideológico, que pudessem ameaçar o controle ideológico da sociedade.

Sua estratégia de desvalorização do catolicismo popular dos

seringueiros e moradores das cidades do Acre ocorreu ainda por meio de

substituição das devoções aos santos tradicionais (São Sebastião, São Francisco)

pelos santos de devoção italiana (São Felipe, São Peregrino, Santa Juliana, os 64

mártires de Praga), desconhecidos dos acreanos.

Em 1921, o bispo em visita à cidade de Brasiléia,49 “[...] benzeu a

igreja local, dedicando-a a Nossa Senhora das Dores e a São Peregrino Laziosi,

uma vez que a imagem da Imaculada Conceição que lá se encontrava e que era a

padroeira da cidade foi considerada ‘indecorosa’.50 Os santos importados pelo

catolicismo romano ocuparam, nos altares das igrejas, o lugar dos santos do povo,

de devoção tradicional, em parte destituídos ou quase de seus lugares privilegiados

nos altares, mas o povo reagiu frente às imposições das reformas, resistindo em

ver destituído o objeto de culto e devoção.

[...] O povo não ficou conformado, afinal a imagem de São

Peregrino estava ocupando o lugar central do Altar Mor, enquanto a

Nossa Senhora tinha sido rebaixada num altar lateral. Assim

durante a noite a estátua do novo santo que por sinal pesava mais

de cem quilos, foi colocada por vinte homens no altar lateral a de

Nossa Senhora no Altar Mor. [...] Só no dia seguinte, uma carta

assinada “a união dos vinte” procurava dar esclarecimento sobre o

gesto, pois o novo santo, recém chegado não poderia ocupar o

primeiro lugar na Igreja. (Relatório de Dom Próspero Bernardi,

1924).51

49 Município do Acre distante aproximadamente de 240 km da capital Rio Branco. 50 Ibid., p. 92. 51 LOMBARDI, op. cit., p. 94.

Page 41: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

41

Esse relato demonstra a insatisfação do povo com o autoritarismo, a

desvalorização e o descaso da Igreja Católica que não levava em conta a fé e

devoção existente antes da sua chegada ao Acre. A religiosidade e o modo de vida

do povo eram desvalorizados e depreciados, faltando tolerância com as diferenças,

com os costumes locais, eram sacerdotes estrangeiros e por isso,

[...] Desconhecendo os costumes do interior do país,

freqüentemente entram em choque com seus paroquianos devido

às práticas tradicionais que estes estão habituados a encarar como

sendo “verdadeiramente” católicas [...].52

Vejamos a postura do Padre Matioli, onde narra em carta a sua

intolerância e incompreensão.

Fora da cidade são quase todos índios, de costumes primitivos, as

condições morais são desastrosas... Só dizer que em Rio Branco,

numa população de quatro mil almas, os casamentos legítimos não

chegam a 10. É um povo que não sente nenhuma atração a não ser

pelo interesse material... Aqui domina o crime mais descarado que

já se imaginou. A crise da borracha que reduziu a fome grande

parte do povo, eu acredito que foi providencial para estes

adoidados criarem juízo, pois passam o tempo todo dançando e

bagunçando sem pensar em Deus ou na religião, a não ser para

zombaria. (Grifo nosso).53

Os padres tinham dificuldades em aceitar o modo de vida da

população, os seus casamentos ilegítimos, o que era natural em uma sociedade em

que muitos já vieram casados do Nordeste, mas não puderam retornar e aqui

constituíram novas famílias, além dos que moravam nos seringais distantes, longe

dos juízes e na ausência dos padres para realizarem as cerimônias de casamento.

Os divertimentos eram considerados bagunças e a crise econômica que havia se

abatido no Acre, resultado da decadência na produção da borracha. Essa crise

52 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O Campesinato Brasileiro: ensaios sobre Civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 74. 53 MATIOLI, Tiago apud LOMBARDI, op. cit., p. 40.

Page 42: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

42

promovia a fome e miséria, mas na concepção do padre era um castigo divino para

que eles tomassem juízo pelo “mau comportamento”.

Era a intolerância com a cultura religiosa e o modo de vida do povo,

não compreendiam que essas expressões eram herança de todo um viver que foi

apreendido como experiências reais no dia a dia das suas lutas e embates pela

sobrevivência, em condições de desenraizamento quando foram transplantados do

Nordeste para o seio das matas, na solidão do trabalho, na distância da família,

vivendo uma carência alimentar que levava às doenças e desnutrição, cerceados

na criatividade de produzir, abatidos pela crise econômica.

Mesmo na falta de igrejas e de sacerdotes, o povo se considerava

católico, segundo o ex-seringueiro Joaquim Paulo Araújo, “[...] todo mundo era

católico, mas lá não havia um lugar onde a gente fosse se encontrar para rezar.

Rezar para nós era na rede ou de joelho no pé da parede”.54

O enraizamento dos nordestinos nasceu, como já exposto

anteriormente, do contato com as condições surgidas no decorrer da ocupação nos

seringais e cidades do Acre, na relação de trabalho, na resistência em criar novas

formas de sobrevivência em face da espoliação e cerceamento dos seringalistas;

na vida religiosa, em reuniões organizadas pelo rezador ou rezadeiras nas casas

dos seringueiros ou no barracão do patrão; na formação de laços familiares que

fugiam às regras da Igreja, como é o caso dos amasiamentos, prática comum nos

seringais e cidades do Acre; nas consultas ao benzedor que conhecia as rezas

para curar, no aprendizado do uso de plantas que serviam como paliativos na

ausência dos remédios ou na falta de dinheiro para comprá-los. A resistência vai

ocorrer ainda, no aprendizado da cultura indígena nas matas que faziam fronteiras

com a Bolívia e o Peru.

O legado que nos interessa desse contato dos nordestinos com os

indígenas na região do Acre, foi o aprendizado do valor sagrado de uma planta

utilizada no feitio da bebida conhecida pelos índios por Ayahuasca, usada na

54 DILVA, Maria do Perpetuo Socorro; ARIMATÉIA, José Rodrigues; BATISTA, Frankcinato da Silva et al. Seringueiro – memória, história e identidade. Rio Branco: UFAC/CDIH, 1997, 3 v., v.1, p.127.

Page 43: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

43

cultura indígena durante certos rituais de cura, na busca de caças. Isso nos

interessa em profundidade, pois desse aprendizado tivemos origem no Acre, de

práticas religiosas populares incorporadas na “bagagem” cultural trazida do

Nordeste, que promoveu modos de vidas pautadas nesse aprendizado.

Podemos afirmar que as religiões fundadas na cidade de Rio Branco,

com base no uso de bebidas feitas com plantas, nasceram das experiências que os

seus fundadores tiveram em condições históricas de suas existências e que

repassaram a outros homens e mulheres, que legitimaram essas experiências nas

suas necessidades e vivência.

Esses homens eram nordestinos que vieram para o Acre no contexto

do primeiro surto da borracha. Suas histórias de vida por certo que diferem umas

das outras, mas a sua herança cultural entrou em contato com outras expressões

que reformularam o modo de viver desses homens.

O desenraizamento do migrante nordestino no Acre, promoveu a

reconstrução desses modos de vida, da sua cultura, resultado esperado no

processo de desenvolvimento das sociedades, nas suas relações sociais e de

trabalho, “[...] seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos de

desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já foram arrancadas, mas

procurar o que pode renascer nessa terra de erosão”.55 Efetivamente a resistência

é uma característica das classes populares na reconstrução dos seus modos de

vida.

Quando o migrante experimenta novas expressões culturais, ele pode

ou não se apropriar delas. A apropriação do uso da Ayahuasca, resultou na criação

de novas práticas religiosas no Brasil, originariamente no Acre, o sujeito histórico se

apropria reinventando o uso de conformidade com as crenças que traz como

herança. É a reinvenção da sua crença e expressão religiosa.

55 BOSI, op. cit., p.17.

Page 44: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

44

2. CAPÍTULO II

O USO DO DAIME: UM NOVO “ALTAR” DE CRENÇAS NA CIDADE DE RIO

BRANCO.

A exploração das terras acreanas atraiu nordestinos e exploradores

de outras regiões do Brasil e de outros países, e também desbravadores e

aventureiros que mantiveram contato com a cultura indígena, sem necessariamente

se apropriarem de seus elementos para constituição de modos de vida, viveram

experiências e testemunharam expressões de religiosidade desses povos. Para

outros, o contato possibilitou a reinvenção de práticas que culminou com a

elaboração de novas culturas religiosas na cidade de Rio Branco.

A realidade amazônica se configurava no período de ocupação e

formação do território do Acre.

De um lado, a primitiva Amazônia, iluminada pelo mito, mágica,

resistindo ainda nas derradeiras culturas indígenas, em estágios

diferentes de contato com a sociedade brasileira. De outro, uma

Amazônia extensão dessa sociedade, produto de espontâneos e

dirigidos processos de ocupação, caracterizada pelas comunidades

rurais/urbanas surgidas ou atingidas durante as frentes de

expansão capitalista do século XX.56

O encontro do migrante explorador, extrator da hevea brasilienses ou

agricultores nordestinos com as comunidades indígenas no início do século XX,

forneceu ao não-índio o conhecimento da cultura do uso da Ayahuasca.57 Segundo

CEMIN,

Se o primeiro momento de contato com a cultura ayahuasquera

ocorre na floresta, através do encontro entre “índios” e agricultores

nordestinos em processo de assimilação dos processos de trabalho

56 MONTEIRO, Clodomir. A Questão da Realidade Amazônica. In: MOTTA, Roberto (coord.). A Amazônia em questão - ENCONTRO INTER-REGIONAL DE CIENTISTAS SOCIAIS. Manaus, p. 90, 1985. 57 Segundo MONTEIRO, op. cit., p. 95, a palavra Ayahuasca, “’Aya – Huasca” vem do Quíchua e significa liana da morte, ou do sonho, ou dos espíritos [...]. ”

Page 45: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

45

e do modo de vida na mata; esse encontro não ocorre em meio

simples. Bem ao contrário, ele acontece, [...] imerso na

complexidade do intercruzamento de culturas tribais. Essas culturas

foram afetadas também pelos processos de desestruturação de

seus modos de vida. Seja em decorrência de sua incorporação

forçada ao modelo de trabalho extrativista da “Hévea brasilienses”,

ou pela cristianização e evangelização efetivadas por padres

católicos de diferentes ordens devocionais; e por pastores

provenientes de diversas denominações religiosas [...].58

Desde da chegada dos primeiros migrantes com as suas explorações

de reconhecimento a partir de 1860, quando identificaram as riquezas naturais

existentes ao longo dos rios acreanos, se fez sentir o impacto na vida das

populações indígenas. No entanto, salientamos que não foram somente os

nordestinos que se fizeram seringueiros ou caboclos, e que passaram por um

processo de desenraizamento, também os índios vivenciaram essa realidade

concomitante à exploração e ocupação do Acre. Neves escreve que:

Já em 1870 tinha início uma verdadeira corrida do ouro que fez com

que poucos anos os rios acreanos fossem tomados de assalto.

Milhares de homens vindos de todas as partes do Brasil e do mundo

passaram a subir os rios estabelecendo imensos seringais em suas

margens. Era a febre provocada pelo ouro negro, a borracha

extraída da seringueira que depois de defumada era exportada para

abastecer as indústrias européias e norte-americana [...]. Em

poucos anos, os povos nativos da região se viram cercados por

brasileiros, peruanos e bolivianos [...].59

A exploração da borracha na Amazônia foi drástica para as

populações indígenas.

58 CEMIN, Arneide Bandeira. Ordem, Xamanismo e Dádiva: o poder do Santo Daime. 1998, f. 84-85 Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo. Para a autora, ‘“Cultura da floresta” concerne ao conhecimento indígena referente ao consumo ritual de ayahuasca. [...] tem o caráter de ‘cultura ayahuasquera’ porque referida ao complexo de costumes e de crenças que lhe diz respeito [...].” 59 NEVES, Marcos Vinicius. História nativa do Acre. POVOS DO ACRE: História Indígena da Amazônia Ocidental. Rio Branco, p.13-14. 2002.

Page 46: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

46

[...] Nem o fim do primeiro ciclo da borracha, em 1913, diminuiu a

pressão sofrida por esses grupos já tão enfraquecidos. Diante

dessa nova realidade, com grandes e poderosos seringais

espalhados por todos os principais rios, nunca mais seria possível

retomar as antigas formas de organização social. Alguns pequenos

grupos ainda conseguiram se refugiar nas cabeceiras mais isoladas,

mas a grande maioria dos índios do Acre foi obrigada a se modificar

para não desaparecer. [...] começaram a depender das ferramentas

dos brancos, foram perdendo suas línguas maternas e aprendendo

o português ou o espanhol.

.............................................................................................................

A acentuada queda nos preços internacionais da borracha [...]. O

gradativo esvaziamento dos seringais da região levou a

necessidade cada vez maior do aproveitamento dos índios como

mão de obra. Muitos foram os patrões que reuniram grupos

dispersos de diversas etnias para trabalharem em seus seringais.

Alguns desses patrões chegaram a ser reconhecidos como amigos

dos índios, como Ângelo Ferreira, famoso amansador de índios, que

reuniu muitos Kaxinawá, Jaminawá e Kulina [...]. Mas a maioria dos

patrões tratava os índios ainda pior dos que os seringueiros [...].60

Perseguição, morte, captura para mão-de-obra na extração da

borracha, são algumas situações pelas quais os índios do Acre passaram. Nesse

processo foram incluídos na rede de exploração econômica dos seringais,

assimilaram natural ou forçosamente as práticas dos não-índios, foram

desenraizados dos seus modos de vida.

Foi nesse contexto que os migrantes nordestinos tiveram contato com

as populações indígenas, experimentando e se apropriando de elementos da sua

cultura, em particular, o uso da Ayahuasca.

A amplitude geográfica e histórica da prática do uso da Ayahuasca,

[...] Remete às populações meso-americanas pré-incaicas, espraia-

se por diferentes tribos no Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia para

finalmente “rebrotar” em remotas cidades da Amazônia: Xapuri,

60 Ibid., p. 14.

Page 47: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

47

Boca do Acre, Brasiléia, Cruzeiro do Sul, Rio Branco e Porto Velho.

Várias cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e, ainda, o

exterior.61

O uso da Ayahuasca no meio indígena, está relacionado com o que os

antropólogos chamam de técnica xamânica.

O uso da ayahuasca como técnica xamânica faz parte do

complexo mítico religioso dos índios localizados na Amazônia

brasileira, boliviana e peruana, cujas práticas do xamanismo

envolvem complexos rituais assentados em sólido conhecimento de

plantas mágico-medicinais, em técnicas de contato com os espíritos

dos mortos e com os espíritos da natureza, retirando desse conjunto

de conhecimentos um saber capaz de auxiliar na cura e na

resolução de problemas pessoais e coletivos. [...]. Desse modo, o

consumo de ayahuasca, para fins religioso e terapêutico, parece

haver se propagado de um centro cultural, cuja disseminação

abrange particularmente a Amazônia através das trocas culturais ali

estabelecidas. A classificação mais ampla indica como centro de

irradiação a América Central, o Noroeste da América do Sul, a

exemplo da Colômbia, Equador, Venezuela, Peru e Bolívia.62

No contexto de opressão e readaptação ao meio, na vivência da

floresta, das matas, é que muitos migrantes “[...] tiveram contato com a bebida

[...]”.63 Um relato que nos atraiu quando começamos a pretender escrever este

trabalho, foi a experiência de um aventureiro que buscava as cabeceiras do rio

Gregório no Acre no início do século XX. Ressaltamos que esta é umas das mais

antigas narrativas de experiência com a Ayahuasca que temos notícia no Acre,

dizemos antiga, porque no caso da ocupação por não-índios, a história do Acre é

bastante recente, de meados do século XIX. Transcreveremos parte da narrativa,

para termos a dimensão da origem e objetivo do uso da bebida junto às

comunidades indígenas.

61 CEMIN, op. cit., p. 69. 62 Ibid., p. 43. 63 Ibid., p. 86.

Page 48: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

48

Fui eu, quem pela primeira, em 1909, desvendei e descobri os

maravilhosos effeitos desta mysteriosa bebida, por mim ingerida nas

densas e ínvias mattas Tarauacaenses, em pleno aldeiamento de

índios catuquinas64 [...]. Foi no decurso dessa penosa e longa

viagem, que eu tive a inesperada felicidade de susprehender entre

os guerreiros catuquinas, o segredo da mysteriosa composição da

hoje tão celebre hiuasca, entre eles designada por chouri, e entre os

jaminauás65, por onei. Lá, em pleno e adusto sertão acreano,

devassei-lhe os maravilhosos effeitos [...] liberta de torpes

pajelanças, entre os próprios descobridores – os selvagens. Pelo

nosso interprete, soubemos, então, que os catuquinas preparavam,

alli, o celebre chouri, cujos maravilhosos effeitos já haviam sido

revelados a vários exploradores peruanos dos valles do Juruá e

Ucayali, por alguns índios cachinauas66 e iauanauas67 pegados em

correrias68 [...]. As occasiões em que os selvagens o preparavam,

eram raríssimas – somente o usavam para debaixo de sua

poderosa influencia conjurarem o vacá69 a abandonar o corpo do

doente [...].70

Conforme a narrativa vemos que o uso da Ayahuasca, chouri, onei, já

estava bastante difundida, “[...] esta já celebre bebida [...] vae avassalando as

populações acreanas [...] [e faz uma “profecia”] [...] em futuro próximo, invadirá todo

o paiz, e, quiçá, o Universo, triumphante de perseguições e manancial de deliciosos

sonhos”.71

64 Índios residentes nas cabeceiras do rio Gregório e em outros pontos dos Departamentos do Alto Juruá e Tarauacá. In: OS SEGREDOS do Hiuasca (I). O FUTURO, Rio Branco, n. 15, p. 2, mar.1920. 65 Selvicolas dos Departamentos do Alto Juruá e Tarauacá. In: loc. cit. 66 Índios do Juruá, Tarauacá e Purus. É a tribu indígena mais importante do Território acreano [...]. In: loc. cit. 67 Outror’ora numerosos, actualmente estão quase extinctos, mercês de doenças e correrias. In: loc. cit. 68 Vocábulo especialmente usado nos Departamentos acreanos para designar os bárbaros assaltos com que os civilizados exterminam e perseguem os infelizes brasis domiciliados nessas paragens. È lamentável que as correrias ainda sejam muito freqüentes e que os seus auctores fiquem sempre impunes devido ao remoto dos locaes e á difficuldades de efficaz policiamento. In: loc. cit 69 Espírito das trevas. In: loc. cit 70 Loc. cit. 71 Loc. cit.

Page 49: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

49

O uso do Daime seria ainda uma prática corrente entre os Incas,

segundo alguns relatos e

[...] É coerente com a memória social dos adeptos da ayahuasca

[...]. A “União do Vegetal” mantém a tradição de um mito que relata

a origem do cipó, jagube para os daimistas e Mariri para a “União do

Vegetal”; e da folha, chamada de Rainha ou chacrona pelos

daimistas e de OASKA pela União do Vegetal, situando os heróis

doadores da planta no império “Inka” [...]. Entre os daimistas, existe

a figura de Pizango, “índio peruano” que teria ensinado a Irineu os

“segredos da bebida”. Em alguns relatos, Pizango aparece como

homem histórico, contemporâneo de Irineu; em outros, ele é referido

como “espírito da ayahuasca”, entidade sobrenatural.72

Entretanto, foi a experiência do nordestino Raimundo Irineu Serra que

propiciou a efetivação do uso Daime das matas para a cidade de Rio Branco em

1930, migrante nascido na cidade de São Vicente Ferrer, no Maranhão, no ano de

1890.73

Depois de passar pelo Rio de Janeiro e São Paulo, Irineu deslocou-

se para a Amazônia. Ao chegar no Estado do Acre, em 1912, foi ao

encontro, “nas selvas peruanas”, dos irmãos Antônio e André Costa,

seus primos e conterrâneos, já iniciados no consumo ritual da

Ayahuasca e reconhecidos em Brasiléia como curandeiros. Com

eles Irineu participou naquela vila, do Circulo de Regeneração e Fé,

CRF, que fazia uso de Ayahuasca [...].

.............................................................................................................

De 1912 a 1920, Irineu incursionou na floresta no exercício das

funções de seringueiro e funcionário da Comissão de Limites e

Fronteiras, onde, segundo um testemunho, ele trabalhou como

carregador do cofre da expedição. Os registros apontam esse

72 CEMIN, op. cit., p. 44. Em 1959, o baiano José Gabriel da Costa, criou a União do Vegetal, em Porto Velho-RO. Na União do Vegetal, a Ayahuasca é denominada vegetal, mariri ou oasca, jamais Daime ou Santo Daime. A memória indica que Gabriel teve suas primeiras experiências com o vegetal através de índios e caboclos peruanos nas florestas amazônicas. 73 Todos os trabalhos produzidos até os dias de hoje apontam a data de nascimento de Raimundo Irineu Serra no ano de 1892, no entanto, em recente pesquisa no arquivo da casa paroquial de São Vicente Ferrer, encontramos no livro de registro de batismo da paróquia a data do seu nascimento de 1890.

Page 50: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

50

período (1912-1920) como fase de seu processo iniciático, onde

teria ocorrido, também, sua participação e posterior desligamento

do CRF e seu desenvolvimento iniciático independente. O posterior

processo de constituição de sua doutrina ocorreu no contexto de

criação de comunidade agrícola e extrativista, cuja liderança social

e religiosa, concentrava-se em Irineu.74

O Círculo de Regeneração e Fé (CRF), onde Irineu participou nos

primeiros tempos bebendo a Ayahuasca, foi

Organizado em Brasiléia, fronteira com a cidade boliviana de Cobija

[...] pelos irmãos Antônio e André Costa, Raimundo Irineu Serra,

todos negros, naturais de S.Vicente Ferrer, Maranhão. Já haviam

estado no Peru e Bolívia. Nesses países trabalham na extração do

látex, quando conheceram o caboclo peruano Crecêncio Bizango.

Com esses aprenderam a fazer e beber a “Aiuasca”. Irineu Serra,

um dos generais dessa milícia, desliga-se do centro, que alguns

anos é fechado.75

Raimundo Irineu Serra, como tantos outros migrantes no Acre,

ingressou nas florestas e matas dos seringais, aprendendo a viver dos saberes que

caracterizam os povos nativos da Amazônia. No início da década de 20, do século

passado, desce dos seringais e fixa residência em Rio Branco, ingressando como

soldado na Guarda Territorial, ascendendo a cabo. Em 1932 abandonou a

corporação e passou a morar nos arredores de Rio Branco, na Vila Ivonete,

promovendo encontros religiosos com um pequeno grupo em sua casa com o uso

do Daime.

Em 1945 mudou-se da Vila Ivonete para a estrada Custódio Freire,

fundando nesta data o Alto Santo.

Quando os daimistas chegaram na Custódio Freire ali também era

“colocação” do Seringal Empresa, em processo de transformação

em área agrícola. Irineu adquiriu, através de compra, uma

“colocação” constituída por seis “estradas” de seringa de

74 Ibid., p. 188-189. 75 MONTEIRO, op.cit., p. 96.

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51

propriedades de José das Neves, seu discípulo e amigo. Junto a

Irineu, os daimistas extraíram látex e plantaram roças, ao mesmo

tempo em que davam prosseguimento à constituição da Doutrina.76

Na trajetória que Irineu faz do seringal para cidade, traz na “bagagem”

saberes apreendidos e valorizados na convivência com índios e caboclos. Adaptou

esse aprendizado na cidade de Rio Branco, elaborou o seu trabalho religioso com

base nesses saberes e “segredos” da floresta e das plantas curativas.

Sendo usada durante os rituais de pajelança em meio às

comunidades indígenas, o Daime é absorvida no meio urbano principalmente pela

população que havia de uma certa forma compartilhado das experiências de vida

nos seringais, eram assim como Irineu, nordestinos ou filhos desses nordestinos

nascidos no Acre que se organizaram “[...] em mutirão ou ‘adjutório’, comum entre

as populações rurais [...]”.77 As terras do Alto Santo foram doadas para Irineu Serra

pelo então Governador do Território do Acre, José Guiomard dos Santos, e

compreendia parte da antiga Colônia Alberto Torres. A propriedade foi dividida em

pequenos lotes e distribuídas por Irineu aos seus familiares e seguidores, onde

cultivavam agricultura para subsistência e comercialização no mercado local.

Monteiro descreve que:

[...] A faixa de terra da colônia Alto Santo era muito extensa e dava

abrigo a muita gente. Ele colocou muita gente dentro das terras e

não cobrava um tostão desde que cada um cumprisse com seu

dever de trabalhar a terra pra sustento de sua família e educação de

seus filhos, nada mais. Mais de 45 famílias. Ele distribuía, não

cobrava coisa nenhuma e havia um sistema muito interessante:

quando chegava a época da broca (derrubada) juntava todos

aqueles homens e dizia: ‘hoje é na terra de fulano’. Ajudando uns

aos outros, aquela convivência tão boa, aquela comunidade

harmônica.78

A colônia consumia parte da produção e abastecia ainda na cidade de

Rio Branco o Mercado Público Municipal. Essa organização social girava em torno

76 CEMIN, op. cit., p. 91. 77 MONTEIRO, op. cit., p.112. 78 Ibid., p.112.

Page 52: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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do ritual do Daime, que criava laços de reciprocidade frente às necessidades

concretas, materiais e as experiências vividas durante a prática religiosa

organizada e dirigidas por Irineu Serra. Criam estratégias de sobrevivência frente à

crise econômica que desmantelou os seringais acreanos. Irineu cumpria o papel de

líder religioso e organizador de uma atividade econômica que propiciava ao grupo

superar as crises provocadas pelo desmantelamento dos seringais após a Batalha

da Borracha.79 Não vemos com isso que as pessoas que se agregaram a ele, o

fizeram somente como forma de resolver os problemas de ordem material, seria

reduzir a religiosidade a um efeito da estrutura econômica, negando-lhe a

criatividade e a vida própria da cultura religiosa. Fizeram-no em condições de

espontaneidade e legitimidade com uma necessidade interior que extrapola os

problemas surgidos das pressões de cunho econômico.

Concordamos com René Ribeiro em citação feita por Monteiro que

não se trata de ultimar que “[...] a conduta religiosa seja necessariamente um efeito

da estrutura social, nem que a socialização, a redução da angústia e a revitalização

cultural seja conseqüência da religião”.80 Discordamos da idéia de que a vivência

religiosa seja uma fuga da realidade concreta e histórica, um “[...] meio de alívio da

privação real [...] que sofreriam na cidade os migrantes rural-urbanos. [...] seria

temerário afirmar que os crentes buscam as sessões porque sofrem problemas

nascidos das ‘estruturas do subdesenvolvimento’”.81

Os homens criam e legitimam uma prática religiosa, a partir da sua

cultura como um todo, do seu modo de vida, de suas necessidades ampliadas, e

por não estar dissociado da realidade material, esses dados históricos se

confundem e se entrelaçam.

É corrente no Brasil, os casos de preconceito e estigmatização aos

grupos religiosos rústicos do Nordeste do Brasil. Foram em parte massacrados e a

sua forma de compreensão do mundo e da vivência religiosa uma extensão do

79 Batalha da Borracha é como ficou conhecida a fase de extração da borracha a partir de 1942, voltadas a abastecer os aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Os nordestinos tinham a opção de irem para o front ou combaterem nos seringais da Amazônia como “soldados da borracha”. 80 RIBEIRO, René apud MONTEIRO, op. cit., p. 116. 81 MONTEIRO, op. cit., p. 117.

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viver material considerados ignorância e fanatismo por serem pobres e analfabetos.

Brito contraria essa idéia quando diz que:

A explicação de uma realidade decorrente da miséria econômica,

dos determinantes sociais e raciais – o que aponta para injunções

de diferentes etnias e culturas nessas expressões da religiosidade

popular no Nordeste –, e das condições de saúde é reveladora das

formas preconceituosas por meio das quais grupos populares foram

apreendidos e tratados por agentes ilustrados.82

O uso do Daime promoveu a formação de grupos na cidade de Rio

Branco (áreas adjacentes), que elaboraram um modo de vida, primeiramente com

Irineu Serra, baseado na comunidade agrícola e posteriormente o surgimento da

Capelinha de São Francisco, fundada em 1945 por Daniel Pereira de Mattos,

dissociado de uma atividade econômica comunitária.

A iniciativa do homem que vive na Amazônia em criar a sua própria

religião, como foi o caso de Raimundo Irineu Serra e Daniel Pereira de Mattos

(objeto maior da nossa pesquisa), já se manifestava em séculos anteriores na

Amazônia. Sobre isso escreve Vieira, que:

Encontra-se na carta pastoral de um dos primeiros bispos do Pará,

no século XVIII, condenando práticas envolvidas na comemoração

do Espírito Santo, na de Nossa Senhora, e em várias outras festas,

nas quais o povo se embriagava, fazia grandes comilanças,

fandangos, etc. e o Bispo dizia “isso não é cristianismo, vocês não

podem fazer isso, estão proibidos, mandarei prende-los, [...]

expulsá-los-ei daqui” [...]. No século XIX encontramos novamente

Dom Macedo Costa tentando combater a invasão do catolicismo

oficial pela religião do povo, proibindo até a procissão do Círio de

Nazaré e o povo quebrando a porta da Igreja, tirando a santa e

saindo com ela de qualquer maneira.83

82 BRITO, Gilmário Moreira. Pau de colher: na letra e na voz. São Paulo: EDUC, 1999, p. 86. Nesta obra o autor resgata a repressão sofrida por beatos e rezadeiras do movimento de Pau de Colher, no município de Casa Nova (BA) na década de 30 do século próximo passado. Faz uma abordagem sobre a depreciação a religiosidade popular do Nordeste por parte do governo e jornais da época. 83 VIEIRA, David Gueiros apud MONTEIRO, op.cit., p. 130.

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Homens e mulheres que incorporaram a prática do uso do Daime em

seus modos de vida, a partir da década de 30 do século próximo passado, foram

vítimas do preconceito e perseguição. O depoimento do Senador do Acre Mário

Maia, prefaciando a 2ª edição do livro “Santo Daime, cultura Amazônica: história do

povo Juramidam”, de Vera Fróes,84 retrata o olhar sobre Irineu Serra e seus

seguidores por parte dos moradores da cidade de Rio Branco.

Era eu menino quando passei a conhecer o Irineu, [...] era um

pretão alto, corpulento, de olhos miúdos e pés enormes que não

havia na cidade sapatos que o calçasse. Seu andar cambalheante e

meio cambota, e seu sorriso sardônico emoldurava um vozeirão

molhado. Transmitia às crianças da minha idade mais que respeito,

um certo medo. Essa imagem do Irineu a tenho dos tempos em que

aos sábados vinha o corpulento negro à cidade fazer a feira e

demorava-se em conversas na taverna do Joviniano no Papouco ou

na esquina do mercado velho da Praça da Bandeira. [...]. Passou o

tempo. Adolescente, já não nos assaltava o medo do pretão Irineu.

Entretanto, um mistério envolvia o seu nome que, quando em

quando, chegava aos ouvidos da cidade e se multiplicava pela

língua do povo como uma espécie de feiticeiro que congregou e

chefiava uma comunidade negra. Sempre foram poucos os negros

no Acre e esses poucos, em certo momento, mesmo em número

reduzido, gravitavam como satélite em torno de Irineu e passaram a

morar em pequenas posses aí localizadas, nas proximidades do

Igarapé – Fundo. O fato curioso, entretanto, que tornou na cidade

conhecido e comentado esse núcleo de pessoas de pele escura em

sua grande maioria, era o uso ritualizado de uma bebida elaborada

a partir de um certo cipó da mata, que passou a ser conhecido na

linguagem popular como “oasca” (corruptela de ayahuasca –

palavra indígena). De início, o grupo era pequeno e o uso da bebida

era restrito. Com o passar dos anos a notícia dos efeitos

extraordinários da “oasca” passaram a ser do domínio público e

outras pessoas, que não pretos, passaram a freqüentar as sessões

de ingestão coletiva do chá preparado pelo mestre Irineu, buscando

84 FRÓES, Vera. Santo Daime, cultura amazônica: história do povo Juramidam. Manaus: SUFRAMA. 1986.

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55

nessa prática uma respostas as suas aflições ou mesmo a cura de

seus males físicos ou psíquicos.

.............................................................................................................

Mas o que marcou mesmo, ou melhor, oficializou o cidadão negro

Raimundo Irineu Serra, “Mestre Irineu”, conhecedor e senhor de

uma nova forma de congregação fraternal do ser humano através

de um ritual balizado pela ingestão de bebida extraída de plantas

silvícolas, foi uma violência sofrida: motivos religiosos, pseudo-

éticos ou pseudo-morais, levaram mestre Irineu e sua gente a

serem denunciados como useiros de práticas insensatas e até

diabólicas. (Grifos nossos).85

O Senador Mário Maia na sua apreensão dessa cultura material, deixa

transparecer aspectos que denunciam e estigmatizam o grupo religioso. Em sua

reminiscência estereotipou Irineu de pretão, os moradores da cidade o chamavam

de feiticeiro, useiro de práticas diabólicas, caracterizando a desvalorização e o

preconceito para com esses sujeitos históricos que se diferenciavam por

incorporarem em sua cultural material o Daime.

A violência sofrida pela comunidade em determinado momento é

resultado da pressão dos moradores frente ao diferente, torna-se um incômodo a

expressão de religiosidade e organização social elaborado por Irineu, levando a

intervenção do Governo que autorizou a força policial da Guarda Territorial a intervir

junto à comunidade.

Foi acionado o Tenente Costa – com fama de crueldade e frieza –

da Polícia Militar, para cercar, invadir e destruir ou desativar aquele

culto que estaria a incomodar e pôr em risco as convicções sócio-

religiosas então dominantes. Mestre Irineu e seus seguidores

ofereceram resistência, obrigando as autoridades ao diálogo e à

negociação. Do que parecia sair uma guerra resultou o

entendimento através do Comandante da corporação, Manoel

Fontenele de Castro e do Governador, Major do Exército, Guiomard

dos Santos, interventor de então do Território que autorizara o

cerco. De potencial inimigo passou a amigo, freqüentador e protetor

85 MAIA, Mário. In: Fróes, op. cit., p.19-20.

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do mestre Irineu. Mestre Irineu passou então a ser conhecido por

todos na capital do Território Federal do Acre, Rio Branco [...].86

Ao contrário do ocorreu com outras comunidades religiosas no Brasil,

que foram invadidas, desativadas pela força policial a mando do Governo central e

mesmo local, as comunidades do Alto Santo, organizadas e dirigidas por Irineu

Serra, foi legitimada87 pelo poder local. Mantida essa aliança o Governador José

Guiomard dos Santos fez a doação de uma área de terra na Colônia Custódio

Freire. De perseguido torna-se aliado.

No tempo que isso era Seringal Empresa, veio o Governador

Guiomard, que era interventor, e comprou esse seringal e doou

essa parte. Ele comprou do dono e doou. Naquele tempo, quem

quisesse terra, pagava 1.000 cruzeiros para cada estrada de

seringa, que tinha 150, 200 madeiras [seringueiras]. Então ele

sabendo que o Mestre tinha essa comunidade, ele foi e disse;

Irineu, Essa colocação com três estradas de seringa, tu não me

paga nada, é tua pra tu colocar o teu povo. (Chico Granjeiro, Alto

Santo, julho, 1996).88

As terras do Seringal Empresa89 foram adquiridas pelo governo do

Território do Acre em 1941, com o objetivo de serem divididas em vários núcleos. A

partir de 1942 o governador Oscar Passos tomou a iniciativa de realizar o plano de

colonização da região nos arredores da cidade de Rio Branco, esboçado pelo

agrônomo Pimentel Gomes. Mas só a partir de 1943 começaram a estabelecer os

primeiros lotes que visavam a realização da agricultura e agropecuária associada à

silvicultura. A realização desse projeto foi levada a efeito durante o governo de

86 Ibid., p. 20. 87 CEMIN, op. cit., p. 191. 88 Ibid., p. 191. 89 GUERRA, Antonio Teixeira. Estudo Geográfico do território do Acre. Rio de Janeiro: Serviço gráfico do Instituto de Geografia e Estatística, 1955. Segundo Guerra, ibid., p. 81: “num estudo do aparecimento das primeiras instalações da atual cidade de Rio Branco, observa-se que sua origem foi simples, resultando da fundação do Seringal Empresa feita por NEUTEL NEWTON MAIA em 1882 [...]. A sede do seringal foi estabelecida na margem esquerda do rio Acre, porém a futura cidade começaria a se desenvolver na margem oposta. Em 22 de agosto de 1904, o pequeno aglomerado humano em formação foi elevado à categoria de vila, com a denominação de Volta da Empresa. Quase um mês depois, ou mais exatamente, no dia 7 de setembro de 1904 esta vila foi elevada à categoria de sede provisória do Departamento do Alto Acre com o nome de Rio Branco”.

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Guiomard Santos, em maio de 1947, pelo decreto n.º 83, que transformara 80.000

hectares de terra do Seringal Empresa em núcleos colônias.

A execução efetiva só aconteceu nos anos de 1949 e 1950, período

em que foram criados quase todos os núcleos. O certo é que desde 1946 que o

trabalho de colonização já havia sido iniciado, pelo Governador José Guiomard

Santos, buscando solucionar o problema social dos ex-seringueiros que se

encontravam em dificuldades financeiras ocasionado pela extinção do “exército da

borracha” após o fim da Segunda Guerra Mundial.90

Segundo depoimento dos contemporâneos de Irineu, na comunidade,

a legitimidade ao grupo foi favorecida principalmente, pela amizade que Irineu tinha

com o comandante da Guarda Territorial, Manoel Fontenele de Castro. Haviam

servido juntos na época em que Irineu se engajou na Guarda, e foram graduados

como cabo na mesma época. Nessa relação de amizade as trocas se efetivaram

através de favores e benefícios. Fontenele tornou-se protetor da comunidade contra

as represálias policiais, em contrapartida Irineu “[...] lhe retribuía com proteção

‘espiritual’ e votos”.91 Fontenele ingressou na carreira política, recebendo o apoio

político de Irineu e de seus seguidores.

[...] O coronel Fontenele toda vida, desde soldado, desde a caserna

foram amigos e morreu amigo os dois...

- E o coronel Fontenele também bebia Daime?

- Não senhora, ele gostava de escutar os conselhos do Mestre

Irineu, quando precisava de alguma coisa, ele pegava o carro dele e

ia bater na casa do Mestre Irineu, chegava lá: Irineu [fala em tom

grave, com entonação de comando], que o Fontenele falava bem

assim: Irineu, eu vim aqui que eu preciso disso assim, vá firme que

eu dou o meu apoio. Ele foi e venceu. Governo, ele quis se

90 A migração nordestina durante o segundo surto da borracha foi uma migração dirigida, levada a efeito pela necessidade das indústrias que a utilizavam como matéria-prima. Os Estados Unidos, a partir de 1939 começou a se preocupar com a questão do abastecimento, com ameaça de escassez em virtude da guerra. Em 1941, os japoneses se apossaram das áreas produtoras de borracha na Ásia, cortando a fonte de abastecimento dos estoques de borracha dos Estados Unidos e dos países aliados. Assim, a Amazônia foi incorporada nesse esforço de guerra, como uma opção de fornecedora da borracha, dado a sua condição de grande depositária de borracha natural. Guerra, op. cit. 91 CEMIN, op. cit., p. 220.

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candidatar a governo e pensou que dava conta, o Mestre disse,

entra na fogueira, deixa isso pegar fogo [...].92

Ocorreu, portanto a legitimação do uso do Daime na cidade de Rio

Branco a partir do poder local, que garantiu a continuação das práticas religiosas do

Alto Santo e como veremos em seguida da Capelinha de São Francisco.

Entretanto, em meio à população o preconceito continuou a existir, o povo não

aceitava essas expressões de religiosidade que nascera fora do controle da Igreja

Católica.

O conto do ex-seringueiro Messias, transparece a situação colocada

pelo Senador Mário Maia sobre a impressão que parte dos moradores da cidade de

Rio Branco tinham sobre Irineu Serra e as pessoas que junto com ele praticavam

uma religiosidade pautada em um aprendizado com a cultura indígena. Os homens

e mulheres que formaram junto com Irineu o Alto Santo se constituíam de negros,

analfabetos, ex-seringueiros.

Além desse conto, que é específico sobre Irineu Serra, constam

outros sobre a Capelinha fundada por Daniel Pereira de Mattos, que será abordada

no próximo capítulo.

PESADÊLO

Sonhei: em deserto, um campo amarelado

Um negro, de peito amplo, pescoço grosso,

Esbelto, forte, mesmo um colosso

Pés descalços dentes alvos, um olho encarnado.

Perguntou-me: que queres em meu reinado,

Vai-te embora, grande impostor

Tudo que veis aqui eu sou senhor

Este reino que estais, é encantado.

É do povo Dumbanda, domina Belzebu

Sou eu, seu ajudante, o Jacaré Assú.

Comecei a mexer-me com extorsão.

92 CEMIN, op. cit., p. 219-220.

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Acordei-me então muito cansado,

Meu Deus, que sonho atormentado

Nunca jamais, irei a tal sessão.93

A descrição de Messias ilustra o seu olhar, ou os olhares dos que

estão no meio urbano para com aqueles que praticam uma religiosidade diferente

da institucionalizada ou oficial, relacionando essa religiosidade aos

condicionamentos raciais, “[...] estabelecendo imagens, estereótipos, símbolos e

signos tão surpreendentes quanto, de certo modo instransponíveis [...]”.94 Explicar

uma religiosidade a partir de determinantes raciais, revela o modo pelo qual os

grupos populares no Acre, especificamente no caso dos grupos que usavam o

Daime foram apreendidos e tratados.

O condicionamento racial é agregado à religiosidade como prática de

feitiçaria ou macumba, característica marcante com que a sociedade urbana

estereotipou a religiosidade dos negros que não praticam o catolicismo oficial.

Portanto, um novo “altar” de crenças foi erguido na cidade de Rio

Branco, não dentro da Igreja Católica ou Protestante, mas em casas e capelinhas

que foram levantadas na beira das “estradas” de seringa nas terras do Seringal

Empresa. Esses “altares” se originaram do Daime, a bebida sacramental de

homens e mulheres que compartilhavam as experiências e constituição de uma

nova religião na cidade de Rio Branco, como narra o senhor José das Neves, um

dos fundadores da religião do Alto Santo junto com Irineu Serra.

Foi no dia 26 de maio de 1930 que comecei esse trabalho com ele e

trabalhamos até seu falecimento, 41 anos e 41 dias depois. Naquele

tempo não havia farda e o primeiro trabalho foi de concentração.

Éramos três pessoas, não me lembro o nome do outro... De 1935 a

1940 é que o mestre Irineu vai desenvolver e receber os valores da

doutrina: os hinos, a música que vem do astral e não tem nada de

inventado... Antes não havia esse trabalho em Rio Branco, era um

93 MESSIAS, Raimundo Nonato. Trovador Matuto. Rio Branco: [s. n.]. 1961. Os macumbeiros – pesadêlo, p. 31. 94 BRITO, op. cit., p. 86.

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segredo da mata, o mestre Irineu abriu o conhecimento para outras

pessoas até chegar na situação que está hoje.95

À margem do domínio de uma religião oficial, novas expressões de

religiosidade se constituíram na cidade de Rio Branco, com ritual e normas de

conduta particulares, com características apreendidas dos saberes da cultura

indígena e da herança material e religiosa desses homens e mulheres nordestinos

ou acreanos. São religiões que foram idealizadas por sujeitos oriundos das classes

populares, que souberam ao longo de sua constituição resistir às perseguições e

preconceitos da sociedade urbana em face de invenção dos excluídos, que

elaboraram e foram legitimados a partir da vivência de outros sujeitos sociais, que

compartilharam velhas e novas crenças, reinventando-as em novas expressões de

religiosidade.

Assim como Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos

constituiu uma expressão religiosa na cidade de Rio Branco a partir de sua

experiência com o Daime que culminou com a criação da Capelinha de São

Francisco, espaço onde desenvolveu uma forma própria de apreensão do sagrado,

com elementos que serviram de base para agregar homens e mulheres em suas

experiências religiosas fora do controle da Igreja Católica.

95 FRÓES, op. cit., p. 37.

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3. CAPÍTULO III

DE FOLHA E CIPÓ (DAIME) É A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO: UMA

RELIGIÃO POPULAR EM RIO BRANCO.

3.1. Capelinha de beira de estrada do Seringal Empresa

Uma das preocupações da Igreja Católica romanizada no Brasil, ainda

no início do século XX, era com as capelinhas de beira de estrada, com calendário

de festas, romarias, procissões, cânticos e ladainhas. Eram criadas sem licença da

matriz, fugiam ao controle da Igreja Católica. Os homens que as erguiam eram

leigos, tinham como objetivo cultuar o seu santo de devoção e possibilitar para que

nelas outros homens e mulheres pudessem expressar de forma espontânea as

suas crenças religiosas. Segundo Beozzo, “nas capelinhas estaria, a meu ver, a

chave da compreensão da história religiosa mais quotidiana do povo e de sua

resistência por exemplo à ‘romanização’ do catolicismo brasileiro”.96

Partindo dessa assertiva de Beozzo, é que desenvolvemos este

capítulo, abordando sobre a constituição da Capelinha de São Francisco,97

capelinha de beira de estrada do Seringal Empresa erguida por Daniel Pereira de

Mattos, como expressão de uma religiosidade popular de homens e mulheres na

cidade de Rio Branco. Abordando os seus conflitos e resistências, suas

experiências no processo de apreensão dessa religiosidade.

O fundador recriou sistemas de crenças, repertórios e modelos que

foram compartilhados socialmente por indivíduos e grupos no espaço da Capelinha.

Essas crenças e repertórios foram aculturados de outras religiões constituídas,

demonstrando a possibilidade da pluralidade dos usos e dos entendimentos dos

96 BEOZZO, op. cit., 1977, p. 755. 97 A partir de 1959, a Capelinha recebe oficialmente o nome de Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”, entretanto, é como Capelinha que continuamos a nos referir a ela mesmo posterior a essa data, pois tradicionalmente os hinos que são cantados até os dias de hoje, a referenciam dessa forma. Também é cantada como igrejinha, missão, centro, casinha.

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62

objetos ou normas, que podem ser recebidos, “[...] compreendidos e manipulados

de diversas maneiras na sociedade”.98

O que vai diferenciar a Capelinha de São Francisco, de outras que

foram construídas pelo Brasil afora, é o fato de que a sua origem está relacionada

com o uso do Daime durante o ritual religioso, agregado ao cristianismo como base

ideológica e nas manifestações do catolicismo popular, como a devoção aos santos

tradicionais, com a escolha do santo padroeiro, que é São Francisco das Chagas,

colocado no altar da Capelinha acompanhado de São Sebastião, São José, São

Pedro, Santa Terezinha e Santa Luzia; na formação de um calendário religioso que

incluía as comemorações dos dias santificados pelo calendário católico, o uso da

cruz; as rezas; terço; cânticos (hinos e salmos) que ensinam sobre a criação do

mundo, o evangelho, a vida dos santos e os ensinamentos de conduta com

princípios no cristianismo; as romarias e penitências.

Na abordagem que fizemos no segundo capítulo, resgatamos a

incorporação da cultura indígena pelos nordestinos, em particular, a prática do uso

do Daime. Raimundo Irineu Serra, a partir do seu aprendizado de utilização da

bebida, em meio às matas dos seringais na fronteira com a Bolívia e o Peru,

organizou inicialmente na cidade de Rio Branco, na década de 30, do século

passado, uma religião baseada no uso do Daime (ingerida durante o ritual de

devoção) com base doutrinária cristã, no espaço batizado por Alto Santo. Não

pretendemos desenvolver o conteúdo da religião fundada por Irineu Serra, para

isso existem várias obras99 que tratam com profundidade desse assunto.

A repercussão da prática de Irineu e da sua comunidade alcançou

vários moradores da cidade de Branco, entre eles, Daniel Pereira de Mattos, negro

maranhense, muito amigo de Irineu Serra, por intermédio de quem bebeu o Daime

pela primeira vez em 1937, vindo a morar em sua comunidade pelo período de seis

meses, fazendo um tratamento para superar problemas de saúde. Aprendeu

98CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1991. 99 Para uma leitura sobre a religião fundada por Raimundo Irineu Serra, citamos alguns estudos entre outros: MONTEIRO, 1985, op. cit.; FRÓES, op. cit.; CEMIN, op. cit.; e SILVA, Clodomir Monteiro da. O palácio de Juramidam. O Santo Daime: um ritual de transcendência e despoluição. 1981. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Page 63: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

63

durante esse período a preparar e usar o Daime e por conta própria incorporou

esse saber adaptando ao seu cotidiano como prática religiosa e social.100

A partir de 1945, Daniel se instala em terra alheia, nas margens de

uma estrada do seringal Empresa, área pertencente a Manuel Julião de Souza,

distante aproximadamente cinco quilômetros do núcleo populacional da cidade de

Rio Branco.

A partir de 1946 essas terras tornaram-se parte da Colônia Agrícola

Cecília Parente,101 criada pelo Estado para acomodar as levas de ex-seringueiros

que viviam na cidade de Rio Branco, falidos e desempregados após o fim da

Batalha da Borracha. A apropriação dessas terras pelos participantes da Capelinha

só ocorreu na década de 70, quase duas décadas após a morte de Daniel em

1958,102 a partir de um conflito que envolveu a polícia, o poder municipal e

estadual. Quem conta é o senhor Manuel Hipólito de Araújo, participante da

Capelinha desde 1956, sendo presidente da mesma durante o período de 1977 a

2000, data do seu falecimento. Ele foi o responsável pelas negociações que

culminaram com a aquisição definitiva das terras.

Este terreno aqui onde está localizado a Missão, ele foi cedido pelo

então Manoel Julião de Souza, que era dono dessas terras, que

trabalhava aqui no seringal Empresa e era o dono disso aqui. Ele

era compadre do Daniel e permitiu a Daniel se estabelecer aqui,

fazer uma casinha e cumprir a missão dele. Quando Julião

desencarnou, deixou as terras para 2 netos. [...]. O Lauro Julião de

Souza Filho, o filho do Lauro Julião de Souza, Laurinda, neta de

100 SILVA, Percília Matos: depoimento. [08 de dez. de 2001]. Entrevistadora: Rosana Martins de Oliveira. Rio Branco. Entrevista concedida ao projeto de dissertação “De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-1958)”. No dia 8 de dezembro de 2001 entrevistei a Dona Percília Matos da Silva, contemporânea do Mestre Irineu Serra, por quem foi criada desde os 9 anos de idade, pessoa de confiança nos trabalhos do Alto Santo. Ela era criança em 1937, mas recorda a chegada de Daniel na casa de Irineu. Segundo ela, não era costume de Irineu convidar quem quer que fosse para participar dos trabalhos com o Daime em sua casa. No entanto, pela grande consideração que ele tinha por Daniel e sabendo que ele estava doente, com problemas no fígado, mandou que o buscassem na cidade para que recebesse um tratamento com o uso do Daime. Teria sido essa a única vez que Irineu chamara alguém para tomar o Daime. Até os dias de hoje no Alto Santo, a tradição do fundador se mantém, é norma proibitiva convidar qualquer pessoa para participar das comemorações. 101 Na década de 50 era também conhecida como Vila Ivonete. 102 Daniel faleceu no dia 8 de setembro de 1958, esta data é relembrada e festejada desde então como a “passagem” do fundador da Capelinha para a eternidade.

Page 64: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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Manoel Julião de Souza e Severina filha do Antão, com a esposa,

que eu não me recordo o nome dela. São dois netos, que são donos

dessas terras. Quando Daniel desencarnou, o Antão, pai da

herdeira dessas terras, ele veio proibir esta Missão aqui [...].103

De 1945 até a morte de Daniel, a Capelinha funcionou informalmente,

mas em 1959 os participantes decidiram registrar em cartório, recebendo, a partir

daí, o nome de Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus Fonte – de Luz”.

Ainda com o fundador vivo, deram início a uma igrejinha em alvenaria, concluída

após a sua morte. Posteriormente, criaram outros espaços com formas

arquitetônicas representando a simbologia da religião.

Após 25 anos instalados nas terras, os participantes da Capelinha

passaram a reivindicar a posse da mesma.

[...]. Então, eu fui pedi ao nosso irmão Antão, que era o pai da

herdeira, que nos desse o documento aqui, mas ele todas as vezes

que tinham eleições, eles vinham aqui pedir votos e prometiam que

ia dar o documento disso aqui e não davam. Veio, foi pedir que a

gente desocupasse isso aqui, mas nós já tínhamos aqui uma igreja

de alvenaria com várias casas de madeira já construídas aqui

dentro, dentro de um perímetro de 50 metros por 50, [...]. Então, ele

veio pedir que desocupasse e me tirasse daqui essa Missão, como

é que a gente ia tirar daqui um prédio de alvenaria já levantado? Já

construído?104

Apreendemos do depoimento do senhor Manuel Araújo, que o

proprietário manipulava e condicionava a doação da terra aos participantes da

Capelinha desde que durante as eleições eles apoiassem os seus candidatos. Eles

resistiram e buscaram junto ao poder local, prefeitura e governo legalizar tal

situação. Com o apoio do Governador Jorge Kalume as terras foram legalmente

entregues ao Centro.

103 ARAÚJO, Manuel Hipólito: depoimento. [19 fev./3 mar. 1990]. Entrevistador: Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. (Série Entrevistas, Cx. 2). 104 Ibid.

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[...]. E o governador mandou chamar o Antão e disse pra ele:

“Antão, não me mexa com seu Manoel Araújo da Vila Ivonete que

ele é meu amigo, e eu não permito que você mexa com ele, se você

quer alguma coisa pelo seu terreno diga que eu lhe pago, eu

particularmente lhe pago o terreno. [...] e me diga quanto quer pelo

terreno do seu Manoel que eu pago, eu particularmente pago”. E o

Jorge Kalume particularmente pagou esse terreno, não sei quanto

ele deu, mas sei que o Antão imediatamente parou a briga e eu

levei o título definitivo desta casa [...].105

A Capelinha foi consagrada pelo fundador a São Francisco das

Chagas. Era rústica, feita de taipa, aprendizado que trouxera do Nordeste. Nós

tivemos a oportunidade de conhecer este ano, a cidade de Vargem Grande, no

Estado do Maranhão, antiga Freguesia de São Sebastião de Vargem Grande,106

onde nascera Daniel, no ano de 1888. Visitei ainda a localidade Barra do Munim,

distante 20 km da área urbana – terra que lhe fora deixada como herança pelos

seus pais em 1897, mas que nunca tomara posse. Nesta pequena vila moram

aproximadamente 15 famílias e todas as casas são feitas de taipa, bem como a

pequena capelinha que é consagrada a Nossa Senhora de Fátima.107

105 Ibid. p. 39. 106 A cidade de Vargem Grande é tradicionalmente religiosa, berço da devoção, romarias e festas a São Raimundo Nonato e palco da revolta da balaiada. “A partir do estabelecimento dos engenhos de açúcar, do trabalho dos missionários em conjunto com os colonos, da abertura de fronteira para a ocupação e dominação às margens dos rios, foram surgindo além dos engenhos, as fazendas voltadas para o plantio de algodão, da cana-de-açúcar e de criações de gado. Essas fazendas foram embriões que serviram para o surgimento de pequenos povoados. [...]. Entre as povoações que se formaram, encontra-se Vargem Grande, que, sabemos, pertencia originalmente a Icatu, sendo uma de suas freguesias, conhecida pelo nome de Vila da Manga do Iguará e que segundo alguns estudiosos, teria esta povoação, nascida do encontro das estradas de boiada, sendo uma delas, a que partia de Caxias e que encontrava-se com a que vinha da vila da Manga, seguindo para Itapecuru-Mirim [...]. Em 1808, foi criado o termo Iguará, para a comarca que compunha os municípios e em 1835, pela Lei nº 7, foi a freguesia elevada à categoria de Vila, sendo criado ainda nesse ano, a Paróquia de São Sebastião da Vargem Grande. [...]. Corria o ano de 1838, quando uma grande revolta marcou a história de Vargem Grande. Foi a posteriormente denominada “Balaiada”. Prefeitura Municipal de Vargem Grande/ Secretaria de Educação. História e Geografia de Vargem Grande. São Luís. Editora Central dos Livros Ltda, p. 33-34. 107 Vindo seu pai Thomas Pereira de Mattos a falecer em agosto de 1897, foi procedida a partilha da herança conforme o Livro de Registro de Imóveis: “Partilha no arrolamento procedido em 6 de setembro de 1897. Polpa de terra medindo Duzentas oitenta braças de terra de frente em duas léguas de fundo no logar Barra entre Riacho fundo e Genipapeiro, na Freguezia de S. Sebastião da V. Grande”. Maranhão [Estado]. Cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos. Registro Geral de Imóveis e Hipotecas. Termo sede da Comarca de Vargem Grande. Registro Geral de Imóveis e Hipotecas. Transcrição do Imóvel. Fls. 35 do Livro nº 3. 2001.1 f.

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66

Ao trabalharmos a religiosidade da Capelinha, partimos da idéia de

que “[...] nenhuma corrente religiosa pode existir sem referência a um fundador”,108

que elaborou o conjunto de práticas a partir da sua forma de ver e de viver no

mundo, pois o

[...] Saber que se constrói e se transmite está relacionado à vida dos

seres humanos, tanto em nível pessoal, como em comunitário ou

social. A religião é um aspecto importante da realidade humana e

parece ser indissociável do processo social, pois permite o

desenvolvimento de convicções e valores, contribuindo de maneira

decisiva para a formação de diversos tipos de comunidades.109

A referência ao fundador é importante, para entendermos o lugar

social de onde ele fala, porque, como, em quais circunstâncias, para que, a

Capelinha chega a ser.

Daniel chegou ao Acre durante o primeiro surto da borracha, em 1905,

veio como marinheiro da Marinha de Guerra Brasileira. Ele mesmo conta a sua

trajetória na carta escrita em 1956, ao Deputado Federal pelo Território do Acre,

Major José Guiomard dos Santos.

‘Dados Biográficos do meu viver aqui

neste território’.

A primeira viagem que fiz ao Acre (...) foi em 195 [1905].

Era eu marinheiro da Marinha de Guerra

Brasileira. Viemos traser batalhões em

Defesa a terra que hoje piso [...]

E, depois de três viagens que viemos aqui

Tive uma licença de 2 anos; a qual vim

Para cá [...] e para melhor falar fis a penúltima viagem

Até a Jeruzalem e por toda Europa [...]

De volta dessa linda viagem de instrução,

Recebir – Baixa na Capital do Pará [...]

108 ANA, Júlio H. de Santa. Estudos de religião: conflito das interpretações. In: SOUZA, Beatriz Muniz; GOUVEIA, Eliane Hojaij; JARDILINO, José Rubens Lima. Sociologia da Religião no Brasil. São Paulo. PUC-SP, UMESP, Sociedade Religiosa, 1998, p. 60. 109 Ibid., p. 52.

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Seguir ou rumei para esta terra.

E desde o dia 7 de Abril de 197 [1907?] que fiz

Minha moradia aqui com praser e amor

Como se fosse na terra que me viu nascer.

“O Maranhão” Excia. A falar em ser veter

ano eu sou um que conheço desde a Pedra

Ou tijôlo que foi colocado nas primeiras

Paredes [...] Eu vi o Acre nascer [...]

Eu trabalhei pessoalmente com Cel Plácido

de Castro e com Cel Daniel Ferreira [...] conheço

Com firmeisa desde a primeira trinxeira

Ao perigo penultimo – porto Alonço que hoje

É porto Acre – Basta que eu diga para V.

Excia – Assisto e conheço o Acre a 51 anos

Tenho aqui a minha mocidade registrada e

Bem selada com o selo do Patriotismo e do

Amor aterra – graças a Deus, graças a Deus.

Excia tudo o que escrevo é uma pura verdade.

Testifico lhe com sagrado nome de Deus –

Todo poderoso. [...]

Do plebeo Daniel Mattos.110

No contexto da criação e evolução da Capelinha, Daniel dialoga com o

poder local, em particular com o recém - indicado Governador do Território do Acre,

Major José Guiomard dos Santos. Nesse diálogo abstraímos o seu imaginário

social que estará presente também nos hinos que ele escrevia, cantava e ensinava

durante o ritual religioso, incorporado como saberes no cotidiano das reuniões e na

prática da vivência de homens e mulheres, que fizeram do espaço de taipa um

mundo real onde as experiências eram vividas, analisadas e reelaboradas no ritual

de ingestão do Daime, nos ensinamentos religiosos que eram cantados

coletivamente e repetidos para serem memorizados.

O diálogo com o poder local não poupou o fundador e os participantes

da Capelinha da perseguição e preconceito dos moradores da cidade, como narra

110 MATTOS, Daniel. [Carta] 1 maio 1956b, 5 f., f. 2-3. Rio Branco [Acre] [para] Deputado José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

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D. Antônia Carneiro, que “[...] naquele tempo o povo falavam muito dele, chamavam

ele de nego velho feiticeiro isso e aquilo [...]”.111 O próprio Daniel narra em um dos

hinos o preconceito que a Capelinha sofreu.

Hino O poder da luz do Daime 1

O poder da luz do Daime

Em verdade

Vem de Deus,

Deixem os profanos

Zombar

Prometo a meu Jesus

Quem nunca

Zomba sou eu.112

Em outro hino canta a perseguição.

Hino formas do amor de Deus

1

Muitos descrer desta casa

E faz zombeirão desta luz

Eles zombam é do pai e do filho

E da Santíssima mãe de Jesus.

4

Deus vendo as perseguições

De quem dele não quer ter luz

Os que perseguir esta Casa

Estão perseguindo é Deus Jesus.113

Para resistirem ao preconceito, por ser o uso do Daime tratado com

desprezo pelos moradores, Daniel incentiva o grupo na perseverança religiosa,

111 LIMA, Antônia Carneiro: depoimento [8 ago. 1994, p. 5]. Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto, Maria Izabel de Castela Rodrigues e Silvio Francisco Lima Margarido. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos. 112 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino o poder da luz do Daime, p. 5. 113 MATTOS, op. cit.,1956a. Hino formas do amor de Deus, p. 14.

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Hino O poder da luz do Daime

3

Meus Irmãos vamos rezar,

E adorarmos ao Criador.

E deixa quem quiser zombar,

Quem zombar é para Deus,

Igual Judas traidor.114

Assim, convoca ainda a resistência,

Hino Ser servo de Deus

5

Meus irmãos, em verdade,

Desta luz muitos profanam,

Mas nela nós temos as graças

De Deus e a mãe soberana.115

O Daime era definido como uma luz que proporcionava benefícios ou

graças (para o grupo religioso da Capelinha, as graças são os benefícios materiais

e espirituais recebidos durante a vivência religiosa) sendo motivo suficiente para

enfrentarem as perseguições e o preconceito, como narra a D. Francinete,

[...] Porque quando eu comecei a tomar Daime, eu não conhecia [...]

aí eu pensava assim, eu não vou falar de uma coisa que eu não

conheço, nunca vi, aí eu comecei a tomar o Daime, eu vi a

realidade, uma coisa boa, tira do mal caminho e bota no bom

caminho.116

Na vivência religiosa os participantes enfrentaram ainda a perseguição

da força policial.

Aos vinte e dois dias do mês de Maio de mil novecentos e sessenta

e cinco [...] no salão nobre de prédio próprio do Centro Espírita e

114 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino o poder da luz do Daime, p. 5. 115 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino ser servo de Deus, n. 99. 116 SANTOS, Francinete Oliveira dos: depoimento [jan. 1995]. Entrevistador: Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

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Culto de Oração, Casa de Jesus – Fonte de Luz, reuniram-se os

senhores Antônio Geraldo da Silva – presidente, Manoel Hipólito de

Araújo – Vice-Presidente [...] e demais membros da Assembléia

Geral, e com a presença do Ilmo. advogado Sr. Adherbal Maximiano

Caetano Corrêa [...] que foi constituído, para nos defender das

injustas agressões e acusações feitas pelo cabo da guarda Antônio

João [...].117

Historicamente eles sofreram 4 invasões por parte da policia da cidade

de Rio Branco, segundo o Livro de Atas da Capelinha, “[...] foi a 20 de janeiro de

1958 a primeira; feita pelo comissário de polícia, José Araújo, em completo estado

de embriaguez, dando 3 tiros dentro da nossa capela, e nenhuma providência foi

tomada pêla justiça local [...]”.118

O comissário de polícia José Araújo se aproveitando do cargo que

ocupava, promoveu a invasão com o objetivo de retirar o seu irmão Manuel Araújo

da Capelinha, incentivado pelos familiares que eram contrários a essa prática

religiosa, como narra o entrevistado.

[...] Os meus familiares que não estavam satisfeitos pela minha

estadia na missão, me taxaram de louco, todos eles incutiram que

eu estava ficando louco, mas só Deus sabe o que era que eu estava

recebendo, eles acharam que essa luz enlouquecia o irmão, porque

eu tinha me transformado completamente da vida mundana que eu

vivia, para a vida de um verdadeiro cristão. Então, eles tentaram o

meu irmão gêmeo [...], que era delegado da cidade, junto com os

policiais, para virem a esta casa me buscar. E o meu irmão não

atendeu, não atendeu para vim com o delegado, nem com os outros

policiais, ele veio só, armado nesta casa, um pouco bebido, mas

instruído pelos os meus familiares e pela minha própria mulher pra

vim me buscar aqui. Quando chegou aqui, ele meio bêbado

procurou Daniel, compreendeu? E procurando quem era o homem

dessa casa, quem é o valente, compreendeu? Onde chegou e deu

dentro desta casa três tiros dentro da capela de taipa, um dos tiros

117 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO “CASA DE JESUS – FONTE DE LUZ”. Livro de atas n.º 1. Rio Branco. 1959-1972. Ata de 22 de maio de 1965, p. 20. 118 Ibid., p. 21.

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pegou no véu dos pés de Nossa Senhora, a nossa querida mãe,

representado pelo o seu quadro foi quem recebeu um dos tiros nos

pés. [...] eu estava lá fora, tinha terminado um trabalho tão bonito,

num dia de Domingo. Voei em cima dele e tomei o revólver e retirei-

me com ele daqui pra rua, que aliás eu pedi o revólver dele em

nome do chefe de polícia, fiquei com o revólver e fui entregar ao

chefe de polícia e dá ocorrência a ele do que aconteceu, do que ele

tinha feito, aquilo na missão de Daniel. Ele não levou nenhum

corretivo por causa disso, mas foi chamado atenção. [...]. Foi

quando me confessou que foi a minha família que peitou pra ele vim

me buscar nesta casa, por que disse que eu estava ficando louco

aqui dentro, quando na verdade nada disso estava acontecendo,

apenas eu estava consciente da vida espiritual e o que eu devia

fazer como verdadeiro cristão.119

Percebe-se que o adjetivo “louco”, com que a família do senhor

Manuel Araújo o estereotipou, foi construído para representar o grupo que

manifestava a sua religiosidade fazendo uso do Daime, que diferenciava das

práticas convencionais estabelecidas, e ao assumirem comportamentos diferentes,

eram considerados loucos.

Segundo o senhor Manuel a partir da sua experiência com o Daime e

do compartilhamento coletivo na Capelinha de São Francisco, ele se transformara

da vida mundana que vivia, para a vida de um verdadeiro cristão, ele se posiciona a

partir de novas condutas morais que vinha da tradição cristã. Mas tinha um caráter

desviante diante da normalidade da sociedade. No entanto, ao incorporarem os

saberes transmitidos na ingestão do Daime e as mensagens do discurso religioso

presente no Hinário, cantado por Daniel, passaram a se relacionar social e

culturalmente pelo universo religioso.120

A segunda invasão policial teve como causa disputas internas pelo

poder.

[...] A segunda foi no dia 21 de Março de 1960, por 4 elementos,

sendo o sr. Tenente Hordeniss Maia, o cabo Antonio João, o sr.

119 ARAUJO, op. cit., 1990. 120 BRITO, op. cit., p. 130.

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Afonso Amoêdo, e o sr. João Batista, todos eles membros espíritas

que vieram com o fim de retirar o nosso presidente dessa casa para

eles tomarem conta e dirigi-la, o que não fizeram por não encontrar

o apoio da irmandade.121

A disputa pela direção da Capelinha é uma questão que passou a

existir após a morte do fundador em 1958. De 1945 até a sua morte ele foi o chefe

religioso legitimado pelo grupo.

A leitura dos hinos nos permitiu apreender os vários papéis que o

fundador a si mesmo intitulava, após haver recebido de Deus e da Virgem Maria,

em miração, sob o efeito do Daime, para cumprir uma missão sobre a terra.

Escolhemos alguns hinos que ainda hoje são ensinados e cantados durante o ritual

religioso, sendo forte na memória social a figura do fundador, que espiritualmente é

quem “dirige” todos os “trabalhos” (Trabalho, é como os participantes denominam

todas as atividades que ocorrem na Capelinha com a ingestão do Daime, tais

como: “[...] obras de caridade (assistência espiritual ao público), concentração,

comemorações de datas santificadas, Romarias, busca e feitio do Daime”.122

O nosso Centro existe há 57 (cinqüenta e sete) anos. Foi fundado

no ano de 1945 pelo Mestre Daniel Pereira de Mattos, [...].

Continuamos ainda no mesmo local por ele fundado. [...] ergueu

uma capelinha feita de barro, onde realizava o culto e ritual com

ingestão do Daime, atendimento aos necessitados e

aconselhamentos a todos que o buscavam para este fim. [...]

Continuamos praticando o mesmo ritual e preceitos deixados por

ele, que é a doutrina cristã escrita no seu Hinário. Primamos por

seguir toda a tradição por ele deixada, sem desvirtuar ou corromper

os seus ensinamentos, que estão baseados na ingestão do Daime,

nos cânticos do seu Hinário e nas Obras de Caridade. [...]. Somos

121 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO “CASA DE JESUS – FONTE DE LUZ”, op. cit., 1959-1972. Ata de 22 de maio de 1965, p. 21. 122 SECRETARIA NACIONAL ANTIDROGAS. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL (DPF-MJ). Perguntas dirigidas às seitas ou congregações religiosas que fazem uso do preparado conhecido como ayahuasca. Rio Branco, 2002. Resposta nº 8. Sem paginação. O referido questionário contém 74 perguntas que foram respondidas pelo atual presidente do Capelinha, Francisco Hipólito de Araújo Neto e encaminhadas para o Conselho Nacional Antidrogas – CONAD, órgão do governo que delibera sobre a utilização do Daime.

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73

uma casa de caridade, franciscanos, fazemos o bem sem olhar a

quem, sem visarmos bens nem lucros, assim como nos ensinou o

nosso fundador [...].123

Portanto, o fundador se autodenominava zelador.

Hino formas do amor de Deus

2

Deus me entregou esta casa

E me fez nela um zelador,

E nela estou com meus irmãos

Firme a adorar Deus Salvador.124

Também patriarca.

Hino “A volta de Jesus”

1

Com firmeisa em Deus do Céu

Sou um patriarca de luz

Meus irmãos nos preparamos

Para a volta de Jesus.

4

Se Deus me fez de patriarca

Esta missão tenho que cumprir

Obedeço a vós do Santo Cordeiro

Quando ele falar, eu devo ouvir.125

Sacerdote.

Hino sou Sacerdote

1

Sou Sacerdote

Firme na luz

Quem me ordenou

Foi Senhor Jesus

123 Ibid., resposta nº 3. 124 MATTOS, op. cit.,1956a. Hino formas do amor de Deus p. 14. 125 MATTOS, op. cit.,1956a. Hino “a volta de Jesus”, p. 27.

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(Coro)

Para o preparar

Os meus irmãos

Para o caminho

Da salvação.

3

Da eternidade

Na eterna corte

Deus quem me faz

De Sacerdote.126

Ainda, pastor.

Salmo

4

Sou um Velho

Pastor

Pastoreio

As ovelhas

De Deus e as sigo

Em lindos rebanhos

No Santíssimo

Caminho do céu.127

Após a morte do fundador, o processo de sucessão na Capelinha foi

inventado pelo grupo. Daniel não havia indicado nenhum dos participantes como

sucessor, não havia registro em Cartório, nem possuíam estatuto ou regimento que

orientasse para a substituição.

Quando Daniel desencarnou, que aqui ficou um estado de turbação

pelo desaparecimento do líder, nós irmãos mais velhos da Missão,

dividíamos uma certa compreensão de trabalho nós se reunimos, eu

e o Antônio Geraldo, Antônio Lopes, João Lopes Filho, nosso irmão

Francisco Ferreira, nosso irmão Augustinho, nosso irmão Anelino e

nosso irmão Elias Kemer, se reunimos para dali nós vermos como é

126 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino sou sacerdote, p. 61. 127 MATTOS, op. cit.,1956a. Hino Salmo, p. 91.

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que nós íamos fazer a continuação da Missão, porque ficou num

certo estado de turbação, porque apareceu muitos irmãos achando

que era ele que devia cumprir o compromisso dali para frente,

mesmo sem que Daniel lhe tivesse entregue, [...]. Eu procurei a me

reunir com os outros irmãos e combinamos, fomos na casa do

Antônio Geraldo, que também era um dos irmãos mais antigo da

casa, fomos convida-lo para nós continuarmos os trabalhos na

Missão e ele tomasse a frente de todos nós, pois ele era um dos

mais entendido no momento. Mas fomos nós os irmãos que nos

reunimos, fomos na casa dele pedir que ele viesse cumprir a

missão, não que ele tivesse recebido, nem por Daniel e nem por

mensagem divina [...].128

Apreendemos da fala do senhor Manuel, que o grupo acreditava

realmente na intervenção do sobrenatural quanto à figura do fundador e seu papel

de mensageiro divino. No entanto, alguns se diziam preparados para assumirem a

chefia e a custa da força policial quiseram assumir a direção dos “trabalhos” da

Capelinha.

A terceira violência pela qual o grupo religioso ocorreu

[...] no dia 28 de Setembro de 1963, pêlo um elemento que se

chama Cassiano de tal, o dito elemento veio aqui com um terçado

128, e cortou várias cadeiras, o altar, derrubou e arrebentou várias

imagens e quadros, quebrando-lhes os vidros. Levamos ao

conhecimento da polícia a qual ainda estiveram até aqui [...] nem se

quer deu ao indivíduo uma prisão preventiva ou o solicitou a pagar

os prejuízos feitos em nossa casa.129

A outra invasão foi promovida pelo preconceito com que julgavam a

religiosidade do grupo.

[...]. A quarta foi feita no dia 20 de abril de 1965, pêlo delegado José

Araújo, o comissário Antonio João, o soldado Godofredo, um cabo

da guarda, um investigador e um motorista, os quais comandado

128 ARAÚJO, op. cit., 1990. 129 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO “CASA DE JESUS – FONTE DE LUZ”, op. cit., 1959-1972. Ata de 22 de maio de 1965, p. 21.

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76

pêlo delegado José Araújo, foram sem nem uma esplicação aos

interiores da casa residencial do Sr. Presidente em atitudes

agressivas, colocando todos os presentes em fila com as mãos para

traz, os levaram para o templo da capela, onde fizeram-lhes e

disseram-lhes as maiores baixezas, dizendo-lhes que o delegado e

o comissário, que traziam ordem verbal do sr. Juiz de direito

Lourival Marques para fecharem a casa [capela] e levarem a chave

e que o presidente com os seus familiares, tinham apenas 10 dias

para todos se retirarem da cidade, sob pena deles voltarem com

latas de gazolina para tocarem fogo em todas as casas [...].130

A resistência à invasão policial e os argumentos em defesa da prática

religiosa se deu com a manifestação do

[...] Vice-presidente Sr. Manuel Hipólito Araújo, que tendo tomado

conhecimento do que estava acontecendo deu a sua opinião

dizendo que nós daquela congregação estávamos em nossa casa

de culto e oração, e que nenhum ato desonesto tinham cometido

[...] dizendo-lhes o Sr. Vice-presidente que iria entregar a chave

pessoalmente ao sr. Juiz de direito, e os policiais invasôres se

retiraram, mas não desistiram do intento de tomarem aquilo que nós

sem medir esforsos construímos para as nossas devoções [...].131

A leitura que fazemos da reação do grupo é o da defesa de uma

cultura religiosa pautada na devoção, mas que estava sendo ameaçada e

desqualificada até mesmo pelo poder judiciário, que atuou pessoalmente na

invasão provocando terror e ameaça de morte ao grupo religioso.

[...] Estávamos todos já em seus leitos quando ouvimos a zuada de

um carro, que não era outro se não o da polícia [...] nunca

julgávamos sêrmos atacados pêlo Juiz de direito, sem haver contra

nós uma culpa formada, foi quando ao chegarem cercaram a nossa

casa residencial dizendo que abrissem que eram o Juiz Lourival

Marques com a policia, nós que já estávamos saturados pêlas

mentiras dos policiais, pensamos que eram eles que já tinham como

130 Ibid., p. 21 (verso). 131 Ibid., p. 21 (verso).

Page 77: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

77

tinham prometida, com gazolina para atear o fogo [...] razão pela

qual demoramos um pouco a abrir as portas, o que só fizemos

quando o Juiz [...] mandou que o delegado com o comissário e os

policiais formassem na frente da casa, de armas em punho [...] foi

quando o Sr. Dr. Lourival Marques [...] com a voz bem alta e

estridente, disse soldados preparar, quando eu contar três pode

atirar, [...] foi naquelas alturas que o nosso vice-Presidente vendo

que as crianças já estavam fazendo alarmes, foi que resolveu abrir

a porta da frente antes que o senhor juiz mandasse fazer disparos

[...] o Juiz mandou que todos saíssem para o lado de fora com as

mãos para cima, mandando em seguida que os corrigicem e assim

foi feito, e foi encontrado como arma um cruscifixo e um terço,

fôram as armas que encontraram entre todos os irmãos que

estavam presentes [...].132

Ao relatarem na Ata que as armas que foram encontradas foi um

crucifixo e um terço, o grupo expressa o significado da prática religiosa que estava

sendo realizada no espaço da Capelinha.

Além de serem considerados como loucos pelos próprios familiares, o

estigma e a perseguição aos participantes da Capelinha de São Francisco se

prolongaram nas décadas seguintes e aparece inclusive na literatura local da

época.

“Euásca”

É na Vila Ivonete: O Reinado

Do “Santo Dá me”, Euásca

Quem toma o tal ópio se embasbaca,

E fica muito tempo atoleimado

O Mundubixaba da seção homens malvados,

Vai assim tanta gente enlouquecendo

Outros coitados, até mesmo vão morrendo

Cegamente continuam obsedados.

É uma capela, aquele culto.

132 Ibid., p. 22 (verso).

Page 78: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

78

Dizem ser: São Francisco seu indulto

É demais! ... Que horrível temeridade!

Pedimos ao Departamento de Saúde

Considera: Tome séria atitude,

Já é tempo de acabar com a maldade.133

Os participantes são desqualificados, estereotipados de abestalhados

ou abobalhados por beberem o Daime, e a devoção ao santo padroeiro, São

Francisco, é considerado algo absurdo, inadmissível. O autor do verso não concebe

a possibilidade de unificação das crenças no santo e a prática do Daime, estava

fora do padrão normal de religiosidade, mas para Queiroz,

[...] O culto dos santos, porém, pode tanto ser inteiramente ortodoxo

em suas manifestações, como surgir associado a elementos da

antiga religião indígena autóctone, ou então aos cultos negros, ou

ainda ao espiritismo que se difundiu no país a partir do século XIX

[...].134

Frente à perseguição e aos estereótipos, elaboraram formas de

resistência para legitimar o fazer religioso.

[...] Eu procurei imediatamente com o meu secretário de saúde

examinar, mandei Daime, mandei o cipó, mandei a folha [...], para o

serviço nacional de fiscalização de entorpecente e mandamos fazer

análise bromatológica do produto [...].135

O Secretário de Saúde envia, em 21 de maio de 1965, o Cipó e as

Folhas para o Dr. Professor Décio Parreiras, Chefe do Serviço Nacional de

Fiscalização de Entorpecentes.

Ilustre Professor:

Tendo mantido o ano passado uma palestra com V. Excelência

quando relatei o uso de uma bebida no rito de certas seitas

133 MESSIAS, Raimundo Nonato. Trovador Matuto. Rio Branco: [s. n.]. 1961. Os macumbeiros – Euásca, p. 28. 134 QUEIROZ, op. cit., p. 73. 135 ARAÚJO, op. cit., 1990.

Page 79: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

79

religiosas, estou no presente encaminhando bem assim o Cipó do

qual é feita a (JAGUBE) e umas folhas de nome local, Mescla para

exame toxicológico. Aproveito o ensejo para apresentar a V. Excia

meus protestos de estima e consideração.

Dr. Carlos Meixeira Afonso [assinatura] Secretário de Saúde e Serviço Social.136

O resultado do exame é enviado pelo Secretário de Saúde aos

participantes da Capelinha.

A quem possa interessar:

Declaro que com o único interesse de zelar pela saúde do público,

foi que tomei a iniciativa de encaminhar para o Serviço Nacional de

Fiscalização de Entorpecentes, em ofício Nº 208 de 21/5/1966, uma

amostra do Cipó e das folhas de nome regionalmente conhecidas

por “JAGUBE”, do qual é feito o xarope por nome de “DAIME” ou

“UÁSCA”, que vem sendo usado em certos ritos religiosos em

nosso Estado.

Declaro outrossim que em telegrama recebido do Sr. Dr. Décio

Parreiras, Presidente da Comissão Nacional de Fiscalização de

Entorpecentes dizendo que, nenhum caso de intoxicação foi

observado dêsde o ano de 1962 pêlo uso da bebida “IAGE” ou

similar, nome pêlo qual é cientificamente conhecido o cipó “Jagube”.

Assim sendo a Secretaria de Saúde e Serviço Social, nenhuma

objeção tem a fazer no uso do “IAGE, DAIME ou UÁSCA” em ritos

espirituais, como já há muitos anos vem sendo feito em nossa

região.

Rio Branco, 16 de maio de 1966.

Dr. Carlos Meixeira Afonso [assinatura] Secretário de Saúde e Serviço Social137

136 GOVERNO DO ESTADO DO ACRE. SECRETARIA DE SAÚDE E SERVIÇO SOCIAL. SERVIÇO DE ADMINISTRAÇÃO. SECÇÃO TÉCNICA. SSS/OF/Nº 208. Rio Branco, 21 maio 1965. 1 f. 137 GOVERNO DO ESTADO DO ACRE. SECRETARIA DE SAÚDE E SERVIÇO SOCIAL. SERVIÇO DE ADMINISTRAÇÃO. SECÇÃO TÉCNICA. SSS/OF/Nº 339. Rio Branco, 16 maio 1966. 1 f.

Page 80: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

80

Essa declaração portanto, legitimava judicialmente o uso do Daime,

uma vitória sem dúvida para os participantes da Capelinha, que se viam

constantemente perseguidos pelos familiares e moradores da cidade de Rio

Branco.

As opiniões divergiam: de um lado os enfrentamentos e por outro a

legitimidade. No caso da Igreja Católica, não encontramos documentos da década

de 40 e 50 do século passado, que demonstrem a opinião sobre a religiosidade do

grupo. Entretanto, na década de 70 ela se manifesta de corpo presente em visitas

pastorais, inicialmente, com a visita do padre Manuel Pacífico da Costa, que legou

aos arquivos da Capelinha um relato da sua visita, descrevendo a sua impressão

sobre os trabalhos fundados por Daniel Mattos. Transcreveremos parte do seu

relato, que foi lido para a comunidade no dia em que comemoravam a festa de São

Francisco, padroeiro da Capelinha, conforme a ata do dia 15 de novembro de 1971.

[...]. Em seguida o senhor presidente [...] deu a palavra ao sr. Padre

Pacífico que ora nos visitava a titulo de observação [...] com um

documento teológico em que resumia os nossos trabalhos do inicio

da nossa missão, do tempo do Mestre Daniel Pereira de Matos,

nosso fundador. O documento ora citado encontra-se nos arquivos

da missão como prova dada por uma autoridade eclesiástica que

para nós tanto é importante espiritualmente como materialmente

[...].138

Vejamos o que relatava o padre.

Precisamente ela se situa a 500 metros da Experimental, em lugar

retirado, ocupando uma extensão de uma quadra de rua, área esta

onde localizam-se a Igrejinha de São Francisco das Chagas, [...] Em

torno da Missão há apenas algumas casas dispersas e o verdor da

mata. Pôr isso ela pode muito bem da-nos a impressão de um

mosteiro.[...]. Sua história é também algo apaixonante. Tudo iniciou-

se com vinda do Mestre Daniel para o Acre. O mesmo nascera lá

pelo Maranhão mas pôr volta de 1940 já sentia-se sua presença pôr

aqui. Êle foi fundador da Missão de São Francisco. Em 1950 a Vila

138 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO “CASA DE JESUS – FONTE DE LUZ”. Livro de atas nº 1. Rio Branco. 1959-1972. Ata de 15 de março de 1971.

Page 81: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

81

Ivonete já era um lugar muito concorrido sendo um ponto de apoio,

de ajuda e de conforto para quantos se sentiam atribulados pôr

males do corpo e do espírito. Com isso, sua fama crescia mais e

mais espalhando-se pelos lugares mais distantes. A igrejinha de

taipa, consagrada a São Francisco, foi o ponto de encontro de uma

Comunidade. Lá nasceu e se formou a Missão.[...]. A Missão era um

centro de peregrinação e seu fundador era um verdadeiro profeta,

rústico como o povo da redondeza e simples como a própria

floresta.139

O olhar do padre diferencia de outras falas carregadas de preconceito,

ele legitima o papel de Daniel como formador de uma cultura religiosa. Segundo

Giard apud Certeau “[...] toda cultura requer uma atividade, um modo de

apropriação, uma adoção e uma transformação pessoais, um intercâmbio

instaurado em um grupo social”.140 A Capelinha passa a cumprir uma função de

agregar grupos populares rústicos, atribulados, um centro de peregrinação, como

escreve o padre.

A relação de sociabilidade entre a Capelinha e a Igreja Católica se

estendem, é o que apreendemos do ofício enviado pelo presidente da Capelinha na

época, Antônio Geraldo da Silva, para o Padre Pacífico.

Exmo. Snr. Rio Branco, Em, 1º/11/71.

PADRE MANOEL PACÍFICO DA COSTA

D.D. PARÓQUIA DA CAPELA DE SANTA TEREZINHA

ESTAÇÃO EXPERIMENTAL

N E S T A

PRESADO SENHOR

Com o presente, quero comunicar a V.Excia., que a Vossa

proposta, programando um encontro de equipe em comunidade

com a irmandade do nosso Centro, após a apreciação da nossa

139 ORDEM DOS SERVOS DE MARIA. [Pe. Manoel Pacífico da Costa]. Observações e anotações, resumindo a história e as atividades principais desta comunidade espírita de mais de 25 anos de história na vida do Acre e que há tanto tempo vem influenciando os setores mais diversos da população pelo seu alto misticismo e tocando o sentimentalismo de nossa gente. Rio Branco. 1971, 4 f., f, 2. 140 CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. Campinas: Papirus; tradução Enid Abreu Dobránszki, 1995. p. 10.

Page 82: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

82

assembléia geral, que teve pleno apôio de todos os nossos irmãos.

Assim é que aqui aguardaremos na data de 7/11/71, aquele feliz e

muito alegre encontro com os nossos irmãos e amigos.

mui cordialmente.

PRESIDENTE.141

É provável que o interesse nessa relação nascia da nova proposta da

Igreja Católica no Acre, a partir de 1970, com a criação das Comunidades Eclesiais

de Base, onde a Igreja se insere no meio do povo para buscar entender suas

manifestações e agregar essas ovelhas num projeto religioso e social.

As relações da Capelinha em um segundo momento, alcançou os

degraus mais altos do Prelado Católico no Acre, com o Bispo Dom Moacir Grechi.

Vejamos as correspondências trocadas pelos dois chefes religiosos.

Da Capelinha na Vila Ivonete para a Diocese de Rio Branco.

OF./CECOCJFL./Nº___ RIO BRANCO EM, 4/9/72.

DO: C.EC.O.C.J. FONTE DE LUZ

AO: EXMO.REVMA. BISPO PRELADO DO ACRE E PURUS

ASSUNTO: CONVITE (FAZ)

SENHOR BISPO

A diretoria do nosso Culto de Oração, toma a liberdade de se dirigir

a V. Excia. Revma., a fim de convida-lo para que nos honre com a

Vossa presença no dia 4 de outubro próximo vindouro, quando

estaremos em comemoração, dando louvores a Deus e a sempre

virgem Maria em homenagem a São Francisco de Assis, padroeiro

da nossa entidade.

Na certeza de merecermos a Vossa santa atenção, aproveitamos o

ensejo para apresentar a Vossa Excelência Reverendíssima, os

nossos protestos de elevada estima e consideração.

141 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO - “CASA DE JESUS - FONTE DE LUZ”. Ofício. Rio Branco. 1971. 1 f.

Page 83: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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Antônio Geraldo da Silva (assinatura)

PRESIDENTE142

A resposta da Prelazia para a Capelinha.

Of. Nº. 03/72 Em 24 de setembro de 1972

Ilmo. Sr.

Antonio Geraldo da Silva

DD. Presidente da Comunidade Fonte de Luz

Rio Branco – Acre

Assunto: Responde Convite

Sr. Presidente

Em resposta a seu ofício de 4/9/72, venho por intermédio deste

certifica-lo que, se Deus quiser, estarei presente à comemoração do

dia 4 de outubro p.f. pretendo aí chegar às 17 horas.

Sendo só o que nos ocorre para o momento – subscrevo-me,

enviando minha bênção sacerdotal, extensiva a toda comunidade,

(Rubrica)

Dom Moacyr Grechi-Bispo-Prelado do Acre-Purus143

A visita efetivamente se realizou, conforme o Relatório Estatístico do

Centro, relativo ao ano de 1972.

Em Outubro por ocasião das festas de S. Francisco. Recebemos a

visita episcopal de sua Excelência D. Moacyr Grechi, Bispo Prelado

do Acre e Purus com o Bispo acompanhou-se uma comitiva

eclesiástica compondo-se das seguintes pessoas: o sr Pe Pacífico

quatro irmãs e uma noviça da Ordem Secular das Filhas de

Caridade.144

142 Id. Ofício encaminhado ao Bispo Prelado do Acre – Purus, Dom Moacyr Grechi. Rio Branco. 1972. 1 f. 143 PRELAZIA DO ACRE PURUS. [Dom Moacyr Grechi]. Ofício nº 03/72, encaminhado ao Presidente do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus – Fonte de Luz, Antônio Geraldo da Silva. Rio Branco. 1972. 1 f. 144 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO - “CASA DE JESUS - FONTE DE LUZ”. Relatório Estatístico, relativo ao ano de 1972. Rio Branco, dez. 1972. 2 p.

Page 84: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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A relação da Capelinha com a Igreja Católica, poder religioso local, foi

pacífico nos primeiros anos da década de 70. Entretanto, nos anos seguintes, o

preconceito se manifestou na negativa de alguns padres em batizar os filhos dos

participantes da Capelinha. Como não tinham compromisso oficial com a Igreja

Católica, essa prática foi iniciada, pois o batismo “[...] se conservou porque se

adaptou às necessidades locais, prescindindo do padre”.145 Não deixando outra

opção senão a própria iniciativa em batizar por conta própria as crianças. O senhor

Manuel Hipólito de Araújo146 explica porque deram início ao batismo de crianças,

[...]“porque tava vendo dificuldade nas comunidades católicas, aonde se faz

batismo de crianças, tava vendo dificuldade no atendimento das crianças por

causa, ou porque era casa aonde se tomava Daime [...]”.147

A prática do batizado que havia nascido para remediar a situação dos

participantes da Capelinha se estendeu para comunidade que buscava usufruir

desse benefício, mas tal sacramento nunca foi reconhecido pela Igreja Católica,

que manteve uma postura de difamação e descaso.

E iniciei a fazer os batismos e agora, todo Domingo, eu atendo as

crianças que em outras comunidades não podem, não tem tempo

de fazer o curso do batizado que eles exigem. Então, muitas vezes,

as crianças fazem o curso do batizado junto com os pais, junto com

os padrinhos, porque falham um dia, dois ou três não é atendido na

consagração do batismo das crianças. Então, eles não têm

oportunidade de fazer e de batizar suas crianças, então, eles

correm pra cá, porque eu acabei nesta casa com esse negócio de

curso de batizado, no dia da consagração do batismo, eu procuro a

conscientizar os pais, os padrinhos, da responsabilidade que vão

assumir em ser padrinho [...] Nós procuramos a cumprir a nossa

parte [...] nós somos perseguidos e os nossos próprios irmãos da

Igreja Católica procuraram a nos censurar por causa disso aí,

procuraram a nos difamar. Nas obras da missa, os queridos irmãos

e missionários procuraram a nos decepcionar, procuraram a falar,

145 Queiroz, op. cit., p. 90. 146 O senhor Manuel Hipólito de Araújo foi presidente da Capelinha no período de 1977 a 2000, ano do seu falecimento, assumindo em seu lugar, o seu filho Francisco Hipólito de Araújo Neto, por ser a sucessão estatutariamente hereditária e vitalícia. 147 ARAÚJO. op. cit., 1990.

Page 85: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

85

dizendo que o batismo desta casa não era certo, não era justo, não

era aceito, não era válido.148

A reação do Bispo quanto aos batizados.

Logo que eu comecei a fazer os batizados, que foi sabido por ele,

pelas comunidades católicas, eles mandaram aqui um monitor da

Igreja Católica como padrinho, trazendo um afilhado, uma criança

[...]. Eu fiz a consagração do batismo, [...] e o nosso irmão assistiu

aquilo ali, saiu daqui satisfeito dizendo que estava muito satisfeito.

Foi embora, quando saiu e chegou na sua comunidade, ele já

levava as intenções de comunicar o Bispo, porque ele era da

comunidade vizinha, da comunidade católica aqui à nossa, ele foi

ao Bispo e disse ao Bispo que aqui o nosso centro, nós estávamos

fazendo batizado com ordem do Bispo. Aí o Bispo me mandou um

recado, eu sempre fui amigo dele, me mandou um recado dizendo

se eu podia ir até lá. Perfeitamente. Aí eu fui. Quando cheguei lá ele

me sentou numa mesa, me levou para o gabinete dele no Palácio

do Bispo, me levou para o gabinete dele, me colocou dum lado e

colocou o padre Pacífico de outro e me disse: “Meu querido irmão

Manuel, me disseram aqui que o meu irmão está fazendo batizado

com a minha ordem, lá na sua comunidade”. Eu digo:

“Reverendíssimo Dom Moacir, não é verdade isso, eu não estou

fazendo batizado com a sua ordem, quem lhe disse faltou com a

verdade”. Ele disse: “Com a ordem de quem, em nome de quem o

senhor tá fazendo?” Eu disse: “Em nome de Deus Pai, Deus Filho e

de Deus Espírito Santo, e me acho com direito e também, dá o que

tenho aos meus queridos irmãos necessitados”. Aí fui, contei pra ele

porque era que eu tinha tomado essa atitude, é porque as igrejas

Católicas, que com vizinhança nossa, ficam vizinhos nossos, tinham

se negado de fazer o batizado em suas comunidades das nossas

crianças aqui [...].149

A promessa do Bispo.

148 Ibid. 149 Ibid.

Page 86: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

86

[...]. Irmão Manoel, eu estou de viagem para ir a Roma, eu tenho

que conversar com o Papa e nessa viagem que eu vou fazer, eu

vou conversar com o Papa sobre a sua comunidade, quando eu

chegar eu vou mandar lhe chamar, pra ver o quê que nós

combinamos para nós fazermos tipo um acordo. [...]. Muito bem,

então tá acertado, eu vou a Roma, quando eu chegar eu mando lhe

chamar para nós conversarmos a respeito dos seus trabalhos.150

A promessa não cumprida.

Perfeitamente, e foi para Roma, não sei se ele falou com o Papa, já

foi uns três, quatro, dez vezes a Roma e voltou e nunca mandou me

chamar. Então, a nossa comunidade que não tem nenhuma ligação

com a dele, ou deveres para com ele, eu também não liguei isso aí.

Depois padres e até ele próprio nos censurou nesta casa, mas a

censura dele eu deixo com ele, [...] porque quem pode nos julgar

não é o Bispo, quem pode nos julgar não são os padres, quem pode

nos julgar nesta casa não é a igreja Católica, que eu não tenho

nenhuma ligação de dever para com ela.151

Na fala de Manuel Araújo, está explícita a autonomia dos participantes

da Capelinha na prática de uma cultura religiosa, em que tiveram que criar formas

de resistência diante do preconceito e da negativa dos padres na prática dos

batizados.

A resistência no campo religioso se estendeu para o social. As

crianças, filhos dos participantes da Capelinha, que estudavam nas escolas da

cidade de Rio Branco, eram discriminadas por serem filhos de daimistas, isso levou

os participantes da Capelinha a se organizarem para fugirem dessa perseguição.

Em 1963, Manuel Hipólito de Araújo toma a iniciativa de dá aulas para as crianças

da comunidade no próprio terreno da Capelinha.

Essa escola, ela surgiu num quarto, numa sala que eu fiz de taipa

aqui, eu fiz uma sala de taipa [...] e um quarto, morava no quarto e

na sala, como naquela época não havia aqui uma escola para os

150 Ibid. 151 Ibid.

Page 87: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

87

filhos da irmandade, eu improvisei uma escola primária na sala da

minha casa e fui lecionar para os irmãos. Comecei a lecionando a

noite, depois comecei a lecionar de dia.152

Ocorre a legitimação da prática educacional frente ao Governo do

Estado.

Quando eu tava aí com 30 alunos debaixo de uma taperazinha

coberta de lata de querosene, dentro de uma sala, eu chamei o

governador aqui, Jorge Kalume, e mostrei a ele em que condições

eu estava procurando a ajudar os nossos irmãozinhos em estado

escolar. Ele foi e disse: “Manoel, eu particularmente vou lhe dar 40

mil cruzeiros pra você iniciar uma escola de alvenaria aqui pra

você”. [...]. Então ele me deu esse dinheiro e eu imediatamente

providenciei a construir essa escola, e pedi uma ajuda a ele, ele me

deu uns operários e nós construímos a 1ª parte da escola. Foi na 1ª

parte da escola que agora tem dois pavimentos, tem 5 salas, 1

diretoria, a cantina e um salão de recreio pras crianças. Mas que

inicialmente foi assim que eu iniciei a escola que nós temos aqui,

que é de propriedade da nossa Missão. 153

A partir de 1967 a escola ampliou o seu atendimento para as crianças

dos bairros que vão se formando ao redor do espaço religioso, tornando-se

referência de apoio educacional. Sua condição de espaço de resistência se estende

para tornar-se um espaço com práticas sociais legitimados na cidade de Rio

Branco. A partir de então, é a comunidade quem busca os serviços do grupo

religioso.

Essas formas de resistências permitiram a Capelinha ser um espaço

que agregou práticas religiosas e sociais. Os participantes desempenharam um

papel ativo e essencial na criação de sua própria história e na definição de sua

identidade cultural.

152 Ibid. 153 Ibid. A escola foi batizada de São Francisco de Assis, em homenagem ao padroeiro da Capelinha. Em 29 de maio de 1967 foi registrada na Secretaria de Estado de Educação e Cultura. Está cedida para o Governo do Estado do Acre desde então, com o objetivo de atender as necessidades das crianças dos bairros que foram se formando nos arredores da Capelinha. Hoje são 300 crianças matriculadas no ensino infantil e fundamental.

Page 88: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

88

Enfrentando o preconceito e discriminações, criaram formas de

resistência que permitiram de uma certa forma serem legitimados pelo poder

institucional, o Governo, quando do registro da escola na Secretaria de Educação e

posteriormente com a assinatura de um convênio que formalizava a cessão da

escola para o Governo, e a legitimidade por parte da comunidade que matriculou os

seus filhos. Entretanto, mesmo cedida para o Governo do Estado, a direção da

escola se mantinha sob a responsabilidade do Presidente e líder religioso. O

Relatório de Atividades da Capelinha, demonstra a abrangência alcançada na

relação com os moradores que se instalaram nas adjacências.

Durante o ano de 1970, esta entidade que é registrada no CNSS. E

que tem decreto de utilidade pública, e vem mantendo uma escola

primária [...]. Prestou os seguintes serviços assistenciais e

filantrópicos: [...] atendimentos em 1.153 irmãos necessitados em

curativos de enfermidades e pequenas cirurgias, aplicações de

injeções, distribuição de 300 metros de tecidos à adultos e crianças

necessitadas [...]. Tendo em vista que, o governo do Estado está

prestes à inaugurar um prédio em modelo apropriado para o

funcionamento da nossa escola, e que temos a necessidade de

atender até o 4º ano primário [...]. E levando em consideração que,

os alunos desta localidade, são na maioria, filhos de pequenos

agricultores e que não possuem de recursos para a manutenção de

seus filhos nas escolas, a nossa entidade com o pensamento firme

em levar a luz da caridade aos necessitados, é que pretendemos

em auxilia-los, com a contribuição de pêlo menos com, o

fardamento, calçados, livros, lápis etc. A nossa entidade pretende

ainda, organizar um ambulatório clínico, que possa satisfazer no

atendimento diário em curativos, pequenas cirurgias, aplicação de

injeções e distribuição de medicamentos, após uma possível

assistência médica.154

No ano seguinte, alcançam os objetivos pretendidos.

154 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO - “CASA DE JESUS - FONTE DE LUZ”. Relatório de atividades do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus – Fonte de Luz referente ao exercício de 1970. Rio Branco, dez. 1970. 1 p.

Page 89: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

89

Durante o ano de 1971 esta entidade que é registrada no CNSS.

Prestou os seguintes serviços assistenciais: Mantemos uma escola

primária com (112) centro e dose alunos distribuídos em dois

turnos, atendimentos em nosso ambulatório em (1.580) irmãos

necessitados em curativos de pequenas cirurgias e aplicação de

injeções, distribuição de (400) quatrocentos metros de tecidos a

pessoas necessitadas.155

Com essas atividades, passaram a ser uma referência no bairro da

Vila Ivonete, interagindo o viver religioso com a prática social de atendimento aos

pobres que se instalaram nas proximidades.

Se inicialmente a Capelinha estava fora do núcleo urbano, na floresta,

a partir da década de 60 do século passado, vão se formando bairros ao redor,

promovendo a participação dos novos moradores no fazer religioso e social do

grupo.

O processo de resistência, com a criação de formas alternativas de

vencer o preconceito, garantiu a sobrevida do grupo religioso. Após a morte de

Daniel, os participantes ampliaram o papel religioso de culto e devoção, e social,

com as obras de caridade e atendimento em aconselhamentos, para os trabalho de

atendimento educacional.

Se o Daime se constituiu como elemento de preconceito e até

perseguição para os participantes da Capelinha, por outro lado foi quem promoveu

a criação dessa religiosidade, a folha e o cipó (Daime) é a base de constituição da

reinvenção dos ensinamentos cristãos por Daniel.

Uma outra atividade promovida pelos participantes da Capelinha, que

permitiu a inserção em outros espaços de atuação, foi à criação de uma olaria nos

tempos do fundador, servindo inicialmente para a construção da Capelinha em

alvenaria, em 1958, substituindo a anterior que era de barro, para posteriormente

atender às necessidades da cidade e angariar recursos para o próprio grupo

155 Id. Relatório de atividades do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus – Fonte de Luz. Rio Branco, nov. 1971. 1 p.

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90

religioso. Vários foram os consumidores, entre eles a própria Prefeitura de Rio

Branco.156

Portanto, nos interessa, com esses fatos, entender que o imaginário

religioso de Daniel, apreendido pelo grupo que passou a segui-lo, não estava

dissociado da realidade material, mas a prática religiosa da Capelinha promove

formas de resistências que vão sendo elaboradas à medida que o preconceito e a

discriminação vão surgindo. E essas resistências se tornam obras compartilhadas

não só pelos participantes, mas pela comunidade que vai se formando nas

proximidades da Capelinha. São práticas de resistência cultural nascida das

necessidades cotidianas.

3.2. O imaginário social x religiosidade.

A idealização forjada pelo fundador da Capelinha transpôs o espaço

de taipa e a sua relação com os peregrinos e alcançou o poder político local. Daniel

manteve um diálogo nas décadas de 40 e 50 com o Governador Delegado do

Território do Acre, José Guiomard dos Santos,157 em seis cartas ele circunscreve a

sua visão de mundo no contexto da vasta realidade econômica e social.

José Guiomard Santos assume o Governo do Território do Acre no

contexto da chegada de levas de seringueiros para a cidade de Rio Branco, devido

à desestruturação dos seringais com o fim da “batalha da borracha”. Homens,

mulheres e crianças perambulavam pelas ruas esfomeados, doentes, sem

perspectiva de moradia e emprego que lhes garantisse a sobrevivência. Em 1946,

Daniel escreve uma carta para Guiomard expressando um grande conhecimento

sobre as questões do Acre e a sua expectativa em torno das realizações do seu

Governo.

156 PREFEITURA MUNICIPAL DE RIO BRANCO ESTADO DO ACRE. DIRETORIA DA DIVISÃO DA FAZENDA E CONTABILIDADE. TESOURARIA. VALE. Rio Branco, 3 de novembro de 1967. 1 p. 157 Guiomard Santos assumiu o Governo do Território do Acre em fevereiro de 1946, chegando em Rio Branco em abril do mesmo ano, ficou no cargo de Governador até 1950, posteriormente foi eleito Deputado Federal e Senador pelo Acre.

Page 91: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

91

Exmo Snr. Governador deste Território Major J. Guiomard dos

Santos

“Cordiais Saudações”

DD. Governador Guiomard dos Santos peço

A V. Exa mil desculpas em eu lhe demonstrar

Em verdade a verdade do meu pensamento [...]

Em verdade digo a V.Exa “O Acre! O Acre...”

Tem muitas pedras monstruosas e que

Precisam serem destruídas de qualquer forma.

O Acre é um Tesouro mais á muitos e muitos

Que desfrutam deste tesouro disendo-os isto

__ é meu. E o mundo é sabedor que tudo isto

Foi indenisado por milhares de libras e que

Existe um só dono e este chama-se “Brasil”.

Eu conheço o Acre, sei o que tem no Acre...

O que faltava para o Acre era uma luz –

irradiante de amor mas Deus não dorme

Enviou V Exa, [...]

Ordena e mostra os caminhos para V Exa

Seguir com o vosso governo hombriado com a

Pobresa e evoluindo de dia a dia com o –

Progresso maravilhoso e sem interrupção...

Daniel Pereira de Mattos (assinatura)

Em 19 de Maio de 1946.158

O discurso de Daniel foi impositivo ao Governador, no sentido de que

ele se empenhasse em resolver os problemas da pobreza no Acre, que fosse capaz

de promover ao mesmo tempo o progresso do Território.

O campo religioso de onde ele fala, permite reconhecer que a sua

realidade vislumbra o moderno, não há uma tensão entre a sua vivência religiosa e

a modernidade, ela é relativizada, não afirma uma contradição entre ambos. Mas a

idéia de modernidade e progresso que ele defende propõe uma melhoria nas

158 MATTOS, Daniel Pereira de. [Carta] 19 maio 1946a. 4 p. Rio Branco [Acre] [para] Governador Delegado do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

Page 92: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

92

condições de vida dos pobres. Portanto, a experiência religiosa não põe

necessariamente barreira a realidade social, mas atua nela na perspectiva de se

alcançarem dias melhores.

Mesmo como migrante, Daniel expressa um forte sentimento de

enraizamento, ao afirmar que

[...] Fiz minha moradia aqui com praser e amor

como se fosse na terra que me viu nascer

“O Maranhão” [...] a falar em ser veter-

ano eu sou um que conheço desde a Pedra

Ou tijolo que foi colocado nas primeiras

Paredes [...] Assisto e conheço o Acre a 51 anos

Tenho aqui a minha mocidade registrada e

Bem selada com o selo do patriotismo e do

Amor a terra [...].159

O seu discurso estava carregado de experiências e anseios das

necessidades do cotidiano, vislumbrando dias melhores para o coletivo, que

poderia ser alcançado através do poder institucional terreno. Por isso recorre ao

Governador, na expectativa de “[...] que tudo se amenisem para melhoria dos

Pobres – E que não haja fracasso em orgulhos e soberbias a desconhecer os

necessitados e Esquecerem os que esperam vida ou morte nos hospitaes [...]”.160

Reforça o seu discurso da justiça com uma citação do Livro de

Instrução do Circulo Esotérico da Comunhão do Pensamento, reafirmando que é

preciso “[...] trabalhar sempre para que a justiça se torne uma realidade em toda a

terra, pois, da justiça bem comprehendida resultam logo a “harmonia” e o “amor”

que são os caminhos conductores para a “Verdade’”.161

159 MATTOS, op. cit. 1956b. p. 5. 160 Ibid., p. 2. 161 MATTOS, op. cit., 1946a. p. 4. A transcrição desse texto Daniel retirado do Livro de Instrucção do Circulo Esotérico da Comunhão do Pensamento, p. 117. Segundo os depoimentos orais Daniel seria filiado ao Circulo Esotérico, no entanto, participantes da Capelinha já fizeram buscas na sede Geral e não encontraram registros da sua filiação.

Page 93: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

93

As relações com o Governador se estreitam. Daniel recorre a ele em

várias ocasiões, solicitando justiça para os trabalhadores, mesmo tornando-se

intercessor de algumas causas.

Esse Senhor [...] pai de uma inomerosa família

E um vitima soffredor de salários não

Pagos dos Trabalhadores da Produção [...]

É justo que ele seja agraciado como um

Capataes de inteira confiança nos Serviços

Do governo [...].162

O que ele reafirma é a valoração do trabalho e do trabalhador na

perspectiva da justiça social.

Exmo Snr Major

Guiomard dos Santos

DD Governador desteTerritório –

“Cordiais Saudações”

Major Guiomard dos Santos

“Eu Daniel Pereira Mattos”

um simples operário [...]

Sei que V. Exa é o

Homem amigo da pobrêsa,

E do operário. Sei que

V. Exa é o homem da luta

Para vê tudo evoluir dentro

da faina do trabalho a luz

Que imortalisa o nome do

Homem para século e séculos.

“Confio em Deus e digo em

Verdade que o lavrador o

Operário dêve ser abraçado

Com estima e zêlo. Por que

Uns preparam o palácio, e

Os outros suprem com

162 MATTOS, op. cit. 1956b. p. 3.

Page 94: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

94

O conforto [...]”

Estima se assina – em 1º de

Maio de 1946 o sincero abraço;

Daniel Pereira Mattos (assinatura)163

O seu discurso exaltava o papel do lavrador e do operário, sujeito

social das classes subalternas, explicitando sua visão social da igualdade e do

valor de cada classe dentro da divisão social do trabalho. A sua concepção

valorizava o homem como sujeito social, inserido na luta pela sobrevivência, no

trabalho, na prática religiosa, vivendo experiências em meio às contradições

sociais.

O diálogo de Daniel transpôs ainda as paredes de taipa da Capelinha

em meio à floresta,164 sendo recebido165 em três ocasiões no Palácio do

Governo,166 pelo próprio José Guiomard. Segundo o depoimento do senhor Antônio

Lopes, participante da Capelinha desde 1956, o fundador recebia “[...] cobertura do

Fontenele, do Guiomard Santos, né, tinha cobertura desses homens tudim [...]”.167

163 MATTOS, Daniel Pereira de. [Carta] 1 maio 1946b. 3 p., p. 1-3. Rio Branco [Acre] [para] Governador Delegado do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco. 164 Em 1950, Daniel fez uma promessa de não visitar a cidade pelo período de 10 anos, cumpriu 8 anos apenas, pois faleceu em 1958. MATTOS, op. cit., 1956b, p. 2. 165 Não tivemos como saber o conteúdo da conversa entre o líder religioso e o líder político, nenhum registro nos permitiu fazer uma leitura daquele momento. Com relação às cartas, também não sabemos se o governador as respondeu, mas pelas datas das mesmas e as visitas de Daniel ao Palácio do Governo, concluímos que ao receber as cartas o governador José Guiomard preferiu discutir pessoalmente com Daniel o conteúdo das mesmas. 166 GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 769, p. 2, coluna 5, 23 maio 1946; GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 770, p. 3, coluna 5, 30 maio 1946; GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 803, p. 2, coluna 3, 19 jan. 1947. 167 SILVA, Antônio Lopes da: depoimento. [fev. 2000]. Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto e Rosana Martins de Oliveira. Rio Branco. Entrevista concedida ao projeto de dissertação “De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-1958)”.

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Daniel manifesta o seu reconhecimento político ao governador quando

lhe oferece ainda uma partitura musical,168 explicando que é pelo “[...] carinho e

dedicação da intelectualidade que demonstra V.Exa para com a pobreza [...].169

Essa relação com o poder foge ao objetivo do paternalismo, fazemos

uma leitura de que Daniel tinha uma preocupação com as questões sociais,

acreditando que as vias institucionais poderiam amenizar a situação dos pobres e

oprimidos, sujeitos sociais com quem ele convivia. Eram os peregrinos de quem

nos fala o padre Pacífico. Homens e mulheres que em peregrinação buscavam

junto a Daniel alívio para os seus mais variados problemas, doenças, vícios,

desemprego. O seu fazer religioso com o uso do Daime, as rezas e romarias

promovidas, a orientação no uso de plantas medicinais e os conselhos dados por

ele, levava homens e mulheres a buscarem a Capelinha na expectativa de

alcançarem dias melhores.

[...] Eu sempre tinha contato com o seu Daniel, eu conhecia ele, ele

era o médico dos meus filhos, porque eu não tinha recurso de ir ao

médico e o seu Daniel era o médico verdadeiro de meus filhos,

ensinava chá, remédio e tudo e rezava [...] qualquer coisa eu ia com

Daniel [...].170

168 MATTOS, Daniel. Valsa Lydia. Rio Branco [s.n.], 1946. 1 partitura (20 p.), para os seguintes instrumentos: trombones, bateria, trompas, sax, baixo, clarinete, sax-soprano, bombardinos e pistom Além dessa partitura, que foi uma homenagem a esposa do Governador, Daniel compôs outras partituras, tais como: Id. Marcha Canção Getulio Vargas. Rio Branco [s.n.]. 1 partitura (18 p.), para os instrumentos: trompas, rebeca, pistom, bateria, barítono, clarinetes, trombones; I, tuba, altos, bombardinos. Valsa Alvorada de amor. Rio Branco [s.n.], 1946. 1 partitura (1 p.); Id. Valsa Lindauva. Rio Branco [s.n.],1946. 1 partitura (1 p.); Id. Choro Decha-mi tranquilo. Rio Branco [s.n.]; 1946. 1 partitura (1 p.); Id. valsa [sem título]. Rio Branco [s.n.],1946. 1 partitura (1 p.). Ele fabricava violões e violinos, com os quais compôs os hinos e salmos religiosos que formam o Hinário. Além de ser músico e marceneiro, os depoimentos orais contam que ele tinha mais dez especialidades profissionais, entre elas: sapateiro, cozinheiro, alfaiate, carpinteiro, artesão, padeiro, construtor naval, barbeiro, poeta, SALLES, Ademar: depoimento. [17 jul. 1995]. Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto e Silvio Francisco Lima Margarido. Rio Branco. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos. Certamente todas esses aprendizados de Daniel, foram adquiridos quando da sua passagem pela Marinha ainda na condição de grumete, ele mesmo narra na carta para o Deputado José Guiomar, que fez uma viagem de Instrução pela Europa. Nessas viagens, em Navios – Escolas da Marinha de Guerra, aprendiam vários ofícios. 169 MATTOS, Daniel. [Carta] 29 maio 1946c. 4 f., f. 1. Rio Branco [Acre] [para] Governador Delegado do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco. 170 LOPES, Maria Belarmina de Souza: depoimento. [jan. 1995]. Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto, Maria Izabel de Castela Rodrigues e Silvio Francisco Lima Margarido. Rio Branco. entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

Page 96: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

96

Apreendiam essas formas de resistência e tornavam-se seguidores,

conforme o texto do Padre Pacifico.

Em 1950 a Vila Ivonete já era um lugar muito concorrido sendo um

ponto de apoio, de ajuda e de conforto para quantos se sentiam

atribulados pôr males do corpo e do espírito. Com isso, sua fama

crescia mais e mais espalhando-se pelos lugares mais distantes. A

igrejinha de taipa, consagrada a São Francisco, foi o ponto de

encontro de uma Comunidade.171

Daniel recebia esses peregrinos, aconselhava – os, criando uma

relação de confiança que levou a esses homens e mulheres a segui-lo na prática

religiosa e social da Capelinha. Ele os dirigia na perspectiva da superação dos

problemas cotidianos. A prática social do fundador revela a sua condição de

personalidade fortemente carismática. Essa referência ao carisma do fundador e a

tradição do mesmo é mantida através da memória individual e da “memória

social”,172 que na maioria dos casos se manifesta com emoção,173 “Em todos os

meus trabalhos, desde de quando o fundador em vida de matéria, eu sempre recebi

dele o conforto, pois eu tinha dele não só como um pai, mas como um padrinho

amigo [...]”.174

O senhor João Martins rememora a sua experiência na Capelinha.

A situação de eu conhecer o Daime pela decorrência de minha vida

que passou a ser de vícios, de jogos, eu apesar de trabalhar, mais

sempre jogava muito, bebia e vivia naquela vida mundana e então

um amigo meu [...] ele também era viciado em jogo, e todos os

vícios de loucura ele já freqüentava e me pegou pela mão e me

levou lá [...].175

O encontro com o fundador.

171 COSTA, op. cit. p. 2. 172 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1971. V. 1. 173 SANTA ANA. op. cit., p. 61. 174 ARAÚJO, op. cit., 1990. 175 OLIVEIRA FILHO, João Martins de: depoimento. [ago. 1994]. Entrevistador: Adilson Azevedo Soares. Aparecida de Goiás. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

Page 97: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

97

[...] Inicialmente eu vi ele como homem, como eu e outro qualquer,

mas depois com o decorrer do tempo, ai reconheci ele uma criatura

inigualável [...] um professor, um dos melhores professores que eu

vi na vida. [...] então, ele me deu uma aula tão grande de vida que

hoje eu passei a ser e a reconhecer a ser um verdadeiro esposo e

um verdadeiro pai [...] parece que o maior prazer do Mestre Daniel e

a alegria dele era receber os irmãos naquela simples capelazinha

[...].176

Depreendemos da fala do Senhor João, que o vício e o desequilíbrio

familiar foi contornado quando da sua experiência na Capelinha, que promoveu um

redirecionamento na sua vida. Para ele, o fundador fora um professor que lhe

aconselhava a conduta moral de valorização da família. A experiência de uma

norma de conduta moral é compartilhada pelos participantes da Capelinha.

[...] Eu vacilava muito, depois que eu me afirmei foi que eu vim a

reconhecer tudo isso aí. Tô pensando é me divorciar da minha

mulher lá em Porto Velho e me casar, pra completar a minha

obrigação é isso, que eu acho que tô num caminho incerto ainda

devido esse problema de ser junto.177

Essas experiências eram vividas no ritual religioso e adaptados no

cotidiano, com isso, alguns iam ficando e compartilhando com Daniel da vivência

religiosa, promoviam práticas que revertia segundo eles, em benefício social, como

é o caso das Romarias, que ampliam a experiência individual para a coletiva.

As Romarias são uma invenção do catolicismo popular, mas Daniel

incorpora no seu fazer religioso como uma manifestação de uma prática social.

Com base no calendário católico ele estipulou três Romarias a serem cumpridas

pelos participantes da Capelinha: São Sebastião, de primeiro a vinte de janeiro;

Nossa Senhora da Paz, de primeiro a trinta e um de maio; São Francisco das

Chagas, primeiro de setembro a quatro de outubro. Em todos os dias de Romaria,

reunidos na Capelinha, tomavam Daime, rezavam um número específico de

176 Ibid. 177 DEUS FILHO, João de: depoimento. [set. 1995]. Entrevistador: Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

Page 98: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

98

preces178 e cantavam hinos de louvores aos santos e no final fazia-se uma prece

rogatória que resume o objetivo das Romarias - rogar e fazer penitência em

benefício da solução dos problemas do mundo, entre eles, as guerras, epidemias,

fome, desigualdade e desarmonia. Essa prece rogatória era dirigida para o patrono

da Capelinha, São Francisco das Chagas, acreditando que ele é o advogado e

intercessor, o santo principal, que recebe os pedidos e leva ao plano espiritual,

intercedendo pelos pedidos dos seus devotos.

[...] Rogai a Nossa Senhora da Paz que abençoai a todos os lares

onde houver inocentes, os livrando da fome, da peste, da guerra e

de todas as epidemias, principalmente aos nossos irmãozinhos que

estão hospitalizados pelos hospitais do mundo inteiro, sofrendo as

calamidades da fome, da guerra e das epidemias que estão

assolando sobre a terra, dai-lhes o conforto, o pão de cada dia e a

saúde [...].179

A prece rogatória era rezada regularmente, visando à preservação da

saúde, buscando orientação e assistência para as ocasiões anormalmente difíceis.

Os pedidos não se limitavam aos bens de ordem material, rezava pelas dádivas

espirituais, pelos bens da alma, como a fé e o perdão dos pecados e em seguida

acrescentava pedidos relacionados aos bens da carne, à prosperidade, saúde,

recorrendo o seu pedido pela paz do mundo, a pacificação dos conflitos sociais.

[...] Rogai a Virgem Santíssima Rainha da Paz, que com a bandeira

de Paz em vossas sagradas mãos, tocai no coração dos nossos

irmãos que estão administrando o globo terrestre, para que saibam

administrar os nossos irmãos com amor, com igualdade, com união,

com amor ao próximo [...] para que não venham a provocar um

derramamento de sangue geral sobre a terra, para que não venham

a sofrer os inocentes por causa dos filhos [...] que não tem a luz do

178 Na Romaria de São Sebastião rezavam 5 preces diárias, de Nossa Senhora da Paz 10 preces e São Francisco 5 preces. Ainda hoje se segue o mesmo ritual na Capelinha. 179 CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO - “CASA DE JESUS - FONTE DE LUZ”. Ofertório das romarias e penitências. Rio Branco. [s. n.], [1959?]. Segundo depoimento do atual presidente da Capelinha, Francisco Araújo, essa prece foi transmitida oralmente por Daniel e posteriormente datilografada pelo seu pai Manuel Hipólito de Araújo, para que constasse como registro nos arquivos. Ela continua a ser rezada até os dias de hoje durante as três Romarias.

Page 99: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

99

sagrado amor ao próximo. Limpai os seus pensamentos e limpai os

seus corações [...].180

Esse fazer religioso e social foi absorvido pelos participantes da

Capelinha, apreendido durante as reuniões coletivas de cumprimento das

Romarias, e repassado ao longo dos anos como atividade religiosa que faz parte

ainda hoje do calendário de atividades. 181

A representação social de Daniel está presente ainda nos hinos que

ele escreveu e compôs durante os 13 anos em que se processou a constituição da

Capelinha, onde identificamos que a sua concepção religiosa era pautada no seu

modo de ver e viver o mundo historicamente, abarcando questões de cunho social,

econômico e político. Vários hinos trazem o discurso da desigualdade social, da

fome, guerras, calamidades. Daniel direciona cada aspecto social aos santos

tradicionalmente responsáveis em resolver tais questões.

Relações de tipo familiar se estabelecem entre os devotos e os

santos, principalmente entre o padroeiro doméstico [...]. O caboclo

não concebe um santo longínquo, impessoal, habitando o paraíso

e inteiramente invisível. Pelo contrário, o santo é muito humano e

sua imagem torna-o inteiramente presente ao desenrolar da

existência no grupo familiar [...].182

A Igreja Católica Romana no Acre promoveu uma substituição a

devoção dos santos tradicionais. O fundador resgatou e fortaleceu essa devoção

com a criação da Capelinha, constituindo uma comunidade franciscana,

incorporando o modo de vida de São Francisco de Assis.

Para o povo, o santo não é impessoal nem está distante, mas está

próximo e cumpre um papel social. Nos hinos, Daniel resgata a vida dos santos, as

suas passagens sobre a terra, demonstrando conhecimento das origens e vidas

desses santos. São Francisco das Chagas, o santo que na sua história de vida se

180 Ibid. 181 Cumprimento ou cumprir as Romarias, significa para os participantes da Capelinha, seguir todos os critérios necessários para que nas Romarias sejam alcançados todos os pedidos feitos. Quais sejam os critérios: abstinência sexual, comer pouco, falar pouco e rezar muito, são considerados as penitências ou sacrifícios feitos em benefício dos inocentes e de toda a humanidade. 182 QUEIROZ, op. cit., p. 85.

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identificou com os pobres do seu tempo, Daniel o escolheu como padroeiro seu e

da Capelinha, o advogado, intercessor e professor do seu viver religioso e social.

Essa Missão, ela é uma Missão franciscana. Tive uma mensagem

que ele em vida de matéria, o nosso mediador São Francisco,

quando cumpriu a missão dele sobre a terra ele tinha voto de

pobreza, esta Missão também surgiu do nada porque inicialmente

aqui, nós iniciamos do nada, fizemos aqui uma casinha na terra

alheia, [...] a terra não era nossa. Depois foi que nós adquirimos a

terra, pedindo favores a um e a outro até adquirir essa terra aonde

construímos essa Missão [...]. 183

Deveria ser o exemplo a ser seguido. O que é muito importante, não

basta ser devoto, saber pedir ao santo, mas seguir o seu exemplo, os seus passos,

suas orientações, a sua prática de vida.

Daniel Pereira de Mattos, era um homem pobre, humilde, que vivia

na vida franciscana. Comia de esmola. Quem recebia os benefícios

dos seus trabalhos espirituais lhe levava um pão, um pedacinho de

carne, um litro de leite; e assim ele vivia como São Francisco de

Assis, quase de caridade pública. Era Deus quem lhe dava.184

Segundo o ex-seringueiro Gregório Nobre, a religiosidade apreendida

na Capelinha, a devoção ao santo padroeiro, São Francisco, foi decisivo na

superação de problemas cotidianos.

[...] quando eu adoeci [...] aí vim aqui para Rio Branco atrás de cura,

[...] me internei ai no hospital [...] passei três meses internado [...]

me desenganaram [...] pedi alta [...]. Eu tinha uns 33 anos, aí nós

cheguemos aqui e eu falei com ele, com o Mestre Daniel [...]

perguntou se eu sabia rezar, eu digo: muito pouco. Ele disse: você

vai lá na igreja e lá você faz uma rogativa pro santo que seja do seu

agrado [...]. Eu fui na igreja, nos pés de São Francisco, porque eu já

vinha pelo meu pensamento, eu já vinha guiado por São Francisco,

porque eu cheguei na conclusão de pegar uma espingarda, que já

183 ARAÚJO, op. cit., 1990. 184 Id. op. cit.,1992. p. 31.

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fazia muito tempo que eu tava doente, pegar uma espingarda, ir pra

mata e procurar um lugar pra que não tivesse gente e atirar. Aí eu

me peguei com São Francisco e depois que eu me peguei com São

Francisco desapareceu aquele pensamento [...].185

Há uma relação de intimidade e proximidade com o santo, o devoto

roga pela vida cotidiana, material, mas também pela salvação.

Hino Rogando o nosso perdão

1

Meu Senhor São Francisco das Chagas,

Vós sois o meu protetor,

Ajudais em minha caminhada,

Até os pés do Senhor.

2

Meu Senhor São Francisco das Chagas,

Na luz é o meu professor,

Ensinais como eu devo seguir,

Firme com todo amor.

3

Com o amor que tenho a Deus,

E a Sempre Virgem Maria

Cumprindo com toda firmeza,

Todas as santas romarias.

4

Estas santas romarias

São luzes que nos alumiam,

Junto ao nosso Salvador,

Nas santas glórias um dia.

5

Meu Senhor São Francisco das Chagas,

Rogais por mim e meus irmãos,

Que perdoe as nossas culpas,

E nos dê a nossa salvação.

185 OLIVEIRA, Gregório Nobre: depoimento. [set. 1995]. Entrevistador: Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

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102

6

Salve São Francisco das Chagas,

Saudemos com todo amor,

A Sempre Virgem Maria,

E ao nosso Salvador.

Coro

Ó meu bom Protetor,

Nos guiais nesta luz,

Nos retirais desse degredo,

E nos leve para Jesus.186

Buscando seguir o exemplo de São Francisco, coloca a caridade

como questão primeira a ser seguida e forma a cultura religiosa centrada para esse

objetivo: fazer obras de caridade aos peregrinos, como canta no

Hino Luz e caridade

1

Irmãos vamos seguir

Felizmente neste caminho

Com amor e igualdade

As nossas obras

Vamos fazê-las

Com carinhos

E maiormente

A caridade.

2

Irmãos estamos na vida

Do mundo de pecados

E de tristeza

E calamidades!

Rogamos a Deus

Por quem talvez que

Amanhã nos fassa

As mesmas caridade.187

186 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino rogando o nosso perdão, n. 31. 187 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino luz e caridade, p. 23.

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103

Praticar assistência em forma de obras de caridade, é definido na

Capelinha como uma tradição que foi elaborada pelo fundador e que continua a ser

praticada.

[...] As obras de caridade que aqui nós fazemos [...] dos irmãos

materializados que vem da rua, com a vida atrapalhada, com a

saúde abalada. Muitas vezes até desenganados por médicos,

chegam aqui nesta casa completamente fora de rumo, pode-se

assim dizer. [...] que vivem embaraçados da vida, que vivem

doentes, gastando dinheiro nos médicos sem ter mais recurso e o

recurso é que eles procuram é esta casa [...] porque nesta casa não

se cobra nada de ninguém. [...]. Nesta casa não tem lucro e nem

dividendo, é uma casa franciscana que adota o mesmo estilo de

pobreza que São Francisco das Chagas adotou na sua vida [...] eu

não vou buscar os meus irmãos, nenhum irmão da rua para fazer

caridade nesta casa, mas aquele que bater na nossa porta pedindo

uma guarida, nós nos reunimos com firmeza e amor e vamos

procurar a levantar os nossos irmãos.188

A devoção a São Sebastião é outra expressão de crença nos santos

tradicionalmente acreditados como interventores nas questões materiais e

espirituais, individuais e coletivas. A prece musicalizada que Daniel compôs em

homenagem a São Sebastião revela essa crença.

Hino São Sebastião

1

Meu Senhor São Sebastião

Vós sois um santo varão

Lá no céu junto a Jesus

E a Virgem Mãe da Conceição

2

Meu Senhor São Sebastião

Pelas glórias em que vós estais

Venha nos livrar da peste

Que está no mundo assolar.

188 ARAÚJO, op. cit., 1990.

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3

Pelo amor a Jesus

Meu Senhor São Sebastião

Recebeu setas no peito

Que traspassou vosso coração

4

Senhor Jesus morreu na cruz

Para nos dá a luz celeste

E vós sobre a laranjeira

Para nos livrar da peste.

5

Pelas cinco chagas de Jesus

E por todas as sagradas vestes

Meu Senhor São Sebastião

Venha nos livrar da peste.189

O altar da Capelinha guardava a representação dos santos

tradicionalmente cultuados, todos eles receberam molduras190 fabricadas e

entalhadas por Daniel, e foram ordenadas no altar da Capelinha de acordo com a

importância devotada a eles.

3.3. O Livro Azul: palavra sagrada, cantada e vivida.

O Livro Azul ou Hinário, escrito pelo fundador, foi a linguagem usada

para transmitir mensagens religiosas associadas a valores, regras de convivência e

formas de compreensão do social.

O que temos é uma compreensão dessa realidade através da

linguagem, que como consciência prática está saturada por toda

atividade social e a satura, inclusive a atividade produtiva. E como

essa compreensão é social e contínua, ela ocorre dentro de uma

sociedade ativa e em transformação. A linguagem fala dessa

189 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino São Sebastião, p. 120. 190 As molduras foram fabricadas por Daniel e colocadas no altar da Capelinha com a imagem dos santos de sua devoção, quais sejam: Santa Terezinha, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Santa Luzia, Sagrada Família, Nosso Senhor do Bomfim, São Francisco das Chagas, São Pedro, São Sebastião, Nossa Senhora das Graças, Sagrado Coração de Jesus, Sagrado Coração de Maria.

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105

experiência [...]. Ou, mais diretamente, a linguagem é a articulação

dessa experiência ativa e em transformação; uma presença social e

dinâmica do mundo.191

Os hinos representam o diálogo entre o fundador e os seus

seguidores, é uma convocação do professor para o aprendizado das normas de

condutas a serem seguidas para se alcançar a salvação no plano espiritual, disso

depende a obediência aos preceitos cantados durante o ritual religioso,

Hino O professor e suas instruções

Coro

Eu sou um servo de Deus,

Ele aqui me colocou

Para ensinar os meus irmãos,

Como um bom professor”.192

Para os participantes e contemporâneos, o fundador cumpria o papel

de professor que ensinava valores e norma de convivência social.

Inicialmente eu vi ele como homem, como eu e outro qualquer, mas

depois com o decorrer do tempo, ai reconheci ele uma criatura

inigualável [...] um professor, um dos melhores professores que eu

vi na vida. [...] então, ele me deu uma aula tão grande de vida que

hoje eu passei a ser e a reconhecer a ser um verdadeiro esposo e

um verdadeiro pai. 193

Na fala do senhor João, vislumbramos que a questão da família era

uma referência discutida no espaço da Capelinha, como regra a ser seguida na

convivência social.

O religioso e o social se entrelaçam, se associam no viver do grupo,

pautados em um código moral de conduta e convivência social para seguirem na

vida, não separam o viver cotidiano do religioso, mas a perspectiva de alcançar a

salvação depende da obediência a esses preceitos. Caracterizam-se por uma

191 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 43. 192 MATTOS. Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino o professor e suas instruções, n. 16. 193 OLIVEIRA FILHO, op. cit., 1994.

Page 106: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

106

religiosidade que não está dissociada do material, a realidade é vivida individual e

na prática coletiva.

Assim, é que o fundador, como intelectual, produtor de um saber, fala

a partir da sua experiência individual, compartilhando dramas da sua vivência que

teriam sido superadas durante o uso do Daime, que lhe permitiu apreender e

praticar um saber religioso, que também é social, pautado no cristianismo, “[...] com

uma base ideológica para uma ação prática positiva.194 Nega, portanto, qualquer

possibilidade de uma passividade religiosa e subserviente ao determinismo

fatalista, apregoa um modo de vida que seja capaz de promover uma

transformação individual e coletiva, essa prática está centrada na caridade,

ampliando o significado do termo caridade para todas as formas que permitam a

superação dos conflitos vividos por homens e mulheres no cotidiano.

Portanto, a produção intelectual do fundador remete a uma

religiosidade que promova a transformação do homem internamente, concebendo

valores de respeito ao outro, como a tolerância, igualdade, fraternidade, harmonia e

paz, colocadas em prática no processo de convivência social.

Apreendemos então, que a proposta contida no Hinário não é de

forma alguma alienante, ela remete a uma vida religiosa adaptada às situações

vividas historicamente pelo grupo, como veremos a seguir.

O Hinário admoesta sobre a questão da vingança.

Hino O dono de nossa vida

4

Assim aqui nesta casa

Não se trata de vingança

A paz de Deus seja conosco

No santo sinal da aliança.

5

O amor sem sacrifício

Não pode ter segurança

Deus que é Deus não é vingativo

194 PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Ed. Paulinas, 1984.

Page 107: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

107

Grande pecado é a vingança.195

A idéia de pecado é abordada como a quebra da convivência, da

desarmonia social, das regras que regem as leis da sociedade e dos mandamentos

apregoados pelo cristianismo, enfim, discute a importância da ética nas relações

sociais e no respeito à valorização da vida.

A leitura que fazemos do hino onde é tratada a questão do aborto,

transparece o imaginário sobre uma questão que é extremamente polêmica nos

dias atuais.

Hino Mulher má

1

Perdoa teu filho que você o matou

Antes de ele vir ao mundo

No teu ventre você o assassinou.

2

Mulher má

Entrega o teu filho Deus Jesus Salvador

E roga que ele te perdoe

Pelo que o praticou.

3

Mulher má

Para que mataste o filho que Deus te deu

Sem pensar tu o estrangulaste em teu ventre

Mas ele subiu para Deus.

4

Mulher má

Abençoa o teu filho que você não conheceu

Ele é o que o assassinaste em teu ventre

Mas ele está no céu.

5

Mulher má

O teu crime é tão grande que não te posso dizer

Tua alma já vive nas trevas

195 MATTOS. Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino o dono de nossa vida, n. 73.

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108

Antes da tua matéria morrer. 196

Quanto trata da origem das calamidades econômicas e sociais, define

como causa primeira a desigual distribuição de rendas, ao mesmo tempo ensina a

solidariedade como norma de conduta, prática negada pelos ricos. Ele escreve,

Hino Clamando a Deus o pão de cada dia

4

Eu clamo a meu Jesus

Por ver tantas calamidades

Os ricos almoçam, jantam, ceiam e negam o pão

De cada dia a orfandade.197

Explicitando a sua visão sobre os ricos ele diz,

Hino Não posso rogar

3

Eu não posso rogar

Pelo os traiçoeiros

Que criminam a alma

Por qualquer Dinheiro.

7

Eu só posso rogar

E pedir a Jesus

Para os ricos o Dinheiro

E para os pobres a luz.

8

Os que amam o Dinheiro

Se afastam da luz

Das benções santíssimas

De Deus pai Jesus.198

O hino traz um discurso político da desigualdade, transmite uma

compreensão do social. Enquanto canta, o fundador politiza o grupo sobre a prática

196 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino mulher má, n. 20. 197 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino clamando a Deus o pão de cada dia, n. 32. 198 MATTOS, op. cit., 1956a. Hino não posso rogar, p. 16.

Page 109: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

109

dos ricos na sua relação com o outro. O lugar social de onde fala justifica a sua

opção pela causa dos pobres e oprimidos, levando os seguidores a incorporarem o

mesmo discurso, para seguirem com o objetivo da honestidade e da igualdade

como prática social.

Ainda sobre a questão da necessidade da igualdade, o discurso

transpõe do religioso para o social as regras de tolerância.

Hino Perdoar o meu próximo

1

A vós perdôo irmãos e torno os perdoar,

Com o santíssimo nome, de Deus Salvador.

Deus manda que os perdoe e perdoe de coração,

Porque sou também um pecador.

4

Minhas faltas ou culpas, quem me perdoa é Deus,

Porque é quem pode, nos perdoar.

Preciso amar o meu próximo, por mais que ele me odeie,

Deus Jesus ordena eu perdoar.199

O discurso da verdade busca orientar para a harmonia no fazer

religioso, que também é social.

Hino A luz da verdade

2

“Nesta luz não se pratica,

Mentira e traição,

Nela só se procura,

O caminho da salvação”.200

Não cumprir o preceito, pressupõe a inviabilidade da salvação, pois

rompe com a base ideológica da caridade propugnada na ideologia do Hinário. A

superação desses conflitos é a própria crença religiosa da Capelinha, a igualdade,

199 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino perdoar o meu próximo, n. 106. 200 MATTOS, Daniel Pereira de. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino a luz da verdade, n. 37.

Page 110: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

110

caracterizando a religiosidade desse grupo como a busca pela justiça social entre

os homens.

A ideologia, presente no Hinário da Capelinha de São Francisco, nos

remete a uma religião que buscou não negar a existência material do homem

religioso, mas torná-lo capaz de lidar com as situações práticas da realidade, só

assim podemos entender a resistência de homens e mulheres, que em situações

adversas formaram uma nova religião na cidade de Rio Branco.

Page 111: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

111

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As expressões religiosas dos moradores da cidade de Rio Branco, se

constituíram como resultado da herança cultural trazida pelos migrantes

nordestinos, no período de ocupação do território do Acre, durante o primeiro e

segundo surto da borracha, quando trouxeram de sua região de origem, maneiras

de se relacionar com o sagrado, adaptando à realidade material que encontraram

no processo de (des) enraizamento; ainda, na convivência com o catolicismo oficial,

o protestantismo, espiritismo e com os elementos apreendidos no contato com as

populações tradicionais indígenas.

Desses encontros e desencontros das diversas formas de viver a

religião, o migrante Daniel Pereira de Mattos elaborou um viver religioso que se

originou na beira da estrada do Seringal Empresa, no espaço da Capelinha de São

Francisco, em meio à floresta, nos arredores da cidade de Rio Branco, que

contemplou elementos do catolicismo popular e da cultura religiosa indígena,

retirando da floresta o subsídio material, o Daime, que propiciou a ele e a outros

homens e mulheres, organizarem uma forma própria de se relacionarem com o

sagrado, com uma concepção de vida que aliou as crenças religiosas nos santos e

nos valores de convivência social herdados dos ensinamentos cristãos.

Durante o processo de elaboração dessa cultura religiosa, o grupo

teve que enfrentar o preconceito e a perseguição. Apesar de transitarem em meio

ao poder político institucional, não os livrou de serem estigmatizados. A resistência

foi uma forte característica do grupo, que promoveu práticas sociais legitimadas

pela sociedade local.

Essa nova concepção religiosa permitia aos participantes apreender a

realidade a partir do universo religioso, praticando na convivência social os valores

e normas de conduta repassada a eles durante o ritual religioso, sob o efeito do

Daime, que permitia uma maior concentração e discernimento na interpretação da

mensagem cantada, com um conteúdo de devoção e de politização sobre as

questões que envolvem as relações sociais do cotidiano. Agregando a crença

Page 112: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

112

religiosa em prática, quando cumpriam as romarias, penitências, faziam preces e

rogativas em benefício da solução dos problemas individuais e coletivos.

A representação e a relação que esses sujeitos históricos faziam e

tinham da religião, era significativa, representava para eles muito mais do que

cumprirem com uma obrigação religiosa, o que seria bem mais fácil se tivessem

buscado uma religião legítima. Era, na verdade, um modo de vida, que dizia

respeito à perspectiva da salvação aliada a normas de conduta em relação à

realidade histórica vivida.

Page 113: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

113

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1.2. Dissertações

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Federal de Pernambuco, Recife.

1.3. Teses

CEMIN, Arneide Bandeira. Ordem, Xamanismo e Dádiva: o poder do Santo

Page 117: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

117

Daime. 1998. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São

Paulo, São Paulo.

1.4. Publicações periódicas

1.4.1. Artigos e/ou matérias de periódico

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Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro, Ed. Beija-Flor, 1992, p. 21.

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Page 118: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

118

1.4.2. Artigos e/ou matérias de jornal

GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 769, p. 2, coluna 5, 23 maio

1946.

GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 770, p. 3, coluna 5, 30 maio

1946.

GABINETE do Governador. O ACRE. Rio Branco, n. 803, p. 2, coluna 3, 19 jan.

1947.

OS SEGREDOS do Hiuasca (I). O FUTURO, Rio Branco, n. 15, p.2, mar. 1920.

1.5. Documentos oficiais e jurídicos

CATEDRAL NOSSA SENHORA DE NAZARÉ. Livro de Batizados V. Rio Branco,

set. 1927/jan. 1931.

___. Livro II de Casamentos, Nº 554, p. 139, fevereiro de 1924/novembro de 1931. CENTRO ESPÍRITA E CULTO DE ORAÇÃO - “CASA DE JESUS - FONTE DE

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___. Ofício. Rio Branco. 1971. 1 f.

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___. Livro de atas nº 1. Rio Branco. 1959-1972. Ata de 15 de março de 1971.

___. Livro de atas nº 1. Rio Branco. 1959-1972. Ata de 22 de maio de 1965.

Page 119: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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___. Relatório de atividades do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de

Jesus – Fonte de Luz referente ao exercício de 1970. Rio Branco, dez. 1970. 1

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GOVERNO DO ESTADO DO ACRE. SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO

E CULTURA. Registro da Escola Primária “São Francisco de Assis I”. Rio

Branco, 1967. 1 f.

GOVERNO DO ESTADO DO ACRE. SECRETARIA DE SAÚDE E SERVIÇO

SOCIAL. SERVIÇO DE ADMINISTRAÇÃO. SECÇÃO TÉCNICA. SSS/OF/Nº 208.

Rio Branco, 21 maio 1965.

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Maranhão [Estado]. Cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos. Registro Geral de

Imóveis e Hipotecas. Termo sede da Comarca de Vargem Grande. Registro Geral

de Imóveis e Hipotecas. Transcrição do Imóvel. Fls. 35 do Livro nº 3. 2001.1 f.

MATTOS, Daniel Pereira de. [Carta] 1 maio 1956b. 5 f. Rio Branco [Acre] [para]

Deputado José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

_____. [Carta] 1 maio 1946b. 5 f. Rio Branco [Acre] [para] Governador

Delegado do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

_____. [Carta] 19 maio 1946a. 4 f. Rio Branco [Acre] [para] Governador

Delegado do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

_____. [Carta] 29 maio 1946c. Rio Branco [Acre] [para] Governador Delegado

Page 120: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

120

do Território do Acre, Major José Guiomard dos Santos, Rio Branco.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino “a volta de Jesus”. p. 27.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino formas do amor de Deus,

p. 14.

___. Hinário. Rio Branco. 1956-2000. Datilografado. Hino o poder da luz do Daime,

n. 72.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino salmo, p. 91.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino do santo amor apareceu,

p. 6.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. Manuscrito. Hino São Sebastião, p. 120.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. Manuscrito. Hino não posso rogar, p. 16.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. 97 p. Manuscrito. Hino sou sacerdote, p. 61.

___. Hinário. Rio Branco. 1956a. Manuscrito. Hino luz e caridade, p. 23.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino ser servo de Deus, n.

99.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino o professor e suas

instruções, n. 16.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino perdoar o meu próximo,

n. 106.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino a luz da verdade, n. 37.

Page 121: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

121

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino o dono de nossa vida, n.

73.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino mulher má, n. 20.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino clamando a Deus o pão

de cada dia, n. 32.

___. Hinário (1956-2000). Rio Branco. Datilografado. Hino rogando o nosso

perdão, n. 31.

___. [Partitura] Valsa Lydia. Rio Branco [s.n.], 1946. 1 partitura (20 p.), para os

seguintes instrumentos: trombones, bateria, trompas, sax, baixo, clarinete, sax-

soprano, bombardinos e pistom.

___. [Partitura] Marcha Canção Getulio Vargas. Rio Branco [s.n.]. 1 partitura (18

p.), para os instrumentos: trompas, rebeca, pistom, bateria, barítono, clarinetes,

trombones, tuba, altos, bombardino.

___. [Partitura] Valsa Alvorada de amor. Rio Branco [s.n.],1946. 1 partitura (1 p.).

___. [Partitura] Valsa Lindauva. Rio Branco [s.n.],1946. 1 partitura (1 p.).

___. [Partitura] Choro Decha-mi tranquilo. Rio Branco [s.n.]; 1946. 1 partitura (1

p.).

___. [Partitura] Valsa [sem título]. Rio Branco [s.n.],1946. 1 partitura (1 p.)

ORDEM DOS SERVOS DE MARIA. [Pe. Manoel Pacífico da Costa]. Observações

e anotações, resumindo a história e as atividades principais desta

comunidade espírita de mais de 25 anos de história na vida do Acre e que há

tanto tempo vem influenciando os setores mais diversos da população pelo

seu alto misticismo e tocando o sentimentalismo de nossa gente. 1971. Rio

Page 122: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

122

Branco. 1971, 4 p., p, 2.

PREFEITURA MUNICIPAL DE RIO BRANCO ESTADO DO ACRE. DIRETORIA DA

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de novembro de 1967. 1 p.

PRELAZIA DO ACRE PURUS. [Dom Moacyr Grechi]. Ofício nº 03/72,

encaminhado ao Presidente do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de

Jesus – Fonte de Luz, Antônio Geraldo da Silva. Rio Branco. 1972. 1 f.

SECRETARIA NACIONAL ANTIDROGAS. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.

DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL (DPF-MJ). Perguntas dirigidas às

seitas ou congregações religiosas que fazem uso do preparado conhecido

como ayahuasca. Rio Branco, 2002. Resposta nº 8. O referido questionário

contém 74 perguntas que foram respondidas pelo atual presidente da Capelinha,

Francisco Hipólito de Araújo Neto e encaminhadas para o Conselho Nacional

Antidrogas – CONAD, órgão do governo que delibera sobre a utilização do Daime.

1.6. Entrevistas

ARAÚJO, Manuel Hipólito: depoimento. [19 fev./3 mar. 1990]. Entrevistador:

Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de

Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”.

DEUS FILHO, João de: depoimento. [set. 1995]. Entrevistador: Francisco Hipólito

de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro

Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada

para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do

Mestre Daniel Pereira de Mattos.

LIMA, Antônia Carneiro: depoimento [8 ago. 1994]. Entrevistadores: Francisco

Hipólito de Araújo Neto, Maria Izabel de Castela Rodrigues e Silvio Francisco Lima

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Margarido. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita

e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser

utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre

Daniel Pereira de Mattos.

LOPES, Maria Belarmina de Souza: depoimento. [jan. 1995]. Entrevistadores:

Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto, Maria Izabel de Castela

Rodrigues e Silvio Francisco Lima Margarido. Rio Branco: Casa de Memória Daniel

Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de

Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico –

cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

OLIVEIRA, Gregório Nobre: depoimento. [set. 1995]. Entrevistador: Francisco

Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos -

Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. Entrevista

realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da

Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

OLIVEIRA FILHO, João Martins de: depoimento. [ago. 1994]. Entrevistador:

Adilson Azevedo Soares. Aparecida de Goiás. Entrevista realizada para ser

utilizada no Projeto do Levantamento Histórico – cultural da Doutrina do Mestre

Daniel Pereira de Mattos.

SALLES, Ademar: depoimento. [17 jul. 1995]. Entrevistadores: Francisco Hipólito

de Araújo Neto e Silvio Francisco Lima Margarido. Rio Branco: Casa de Memória

Daniel Pereira de Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus –

Fonte de Luz”. Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento

Histórico – cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

SANTOS, Francinete Oliveira dos: depoimento. [jan. 1995]. Entrevistador:

Francisco Hipólito de Araújo Neto. Rio Branco: Casa de Memória Daniel Pereira de

Mattos - Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”.

Entrevista realizada para ser utilizada no Projeto do Levantamento Histórico –

Page 124: Rosana Oliveira - Dissertação sobre Barquinha

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cultural da Doutrina do Mestre Daniel Pereira de Mattos.

SILVA, Antônio Lopes da (participante da Capelinha desde 1956): depoimento. [16

de maio de 2002]. Entrevistadora: Rosana Martins de Oliveira. Rio Branco.

Entrevista concedida ao projeto de dissertação “De folha e cipó é a Capelinha de

São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-

1958)”.

___: depoimento. [fev. 2000]. Entrevistadores: Francisco Hipólito de Araújo Neto e

Rosana Martins de Oliveira. Rio Branco. Entrevista concedida ao projeto de

dissertação “De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade

popular na cidade de Rio Branco – Acre (1945-1958)”.

SILVA, Percília Matos: depoimento. [08 de dez. de 2001]. Entrevistadora: Rosana

Martins de Oliveira. Rio Branco. Entrevista concedida ao projeto de dissertação “De

folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de

Rio Branco – Acre (1945-1958)”.