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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL ROTEIRO DE CURSO 2010.1 3ª EDIÇÃO AUTORES: ALVARO JORGE E GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

ROTEIRO DE CURSO2010.1

3ª EDIÇÃO

AUTORES: ALVARO JORGE E GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDT

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Sumário do CursoDireito Constitucional Econômico e Social

BLOCO I – SENSIBILIZAÇÃO E INTRODUÇÃO Aula 01: “Constituição Dirigente”: Para que servem as Constituições? Aula 02: Alfabetização”: Estado, Mercado e Terceiro Setor Aula 03: Constitucionalismo Dirigente e “Frustração Constitucional” Aula 04: Constituição de 1988 ou Constituição do Brasil? BLOCO II – AS FORMAS DE ATUAÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO ECONÔMICO Aulas 05, 06 e 07: O Estado Regulador Aulas 08 e 09: O Estado Empresário BLOCO III – PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA Aulas 10 e 11: Livre Iniciativa, Valorização do Trabalho Humano e Livre Concorrência Aulas 12 e 13: Função Social “das Propriedades” - Desapropriação no Campo e na Cidade Aula 14: Superação das Desigualdades Regionais e “Federalismo Regiona Aula 15: Defesa do Consumidor

BLOCO IV – A ORDEM SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO Aulas 16 e 17: A Previdência e suas Reformas Aulas 18 e 19: Direito à Saúde e o Sistema Único de Saúde na Constituição Aula 20: Comunicação Social: Soberania e/ou Globalização Aulas 21 e 22: Direito à Educação e o Sistema de Ensino no Brasil Aula 23: Cultura e Patrimônio Cultural Aulas 24 e 25: A Constituição e o Meio Ambiente Aula 26: Palestra: Limites, Possibilidades e Tendências do “Constitucionalismo Dirigente” no Brasil

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

BLOCO I – SENSIBILIZAÇÃO E INTRODUÇÃO

Por que inserir na Constituição dispositivos relativos aos “princípios fundamentais da or-dem econômica e social”, ou à “intervenção do Estado na economia”? Quais os fatores polí-ticos, econômicos, jurídicos e sociais que colocaram essas questões na pauta do constituinte? Qual a relevância e quais as conseqüências dessa opção?

Na abordagem dessas questões, retomaremos algumas das discussões realizadas em Te-oria do Direito Constitucional (1° período), mais especificamente o problema da decisão constituinte. Afinal, o que vai para a constituição? Exploração de petróleo e gás? Ciência e Tecnologia? Ensino Superior? Previdência?

Na verdade, a resposta a essas perguntas não se dá em um código binário, do tipo “sim” ou “não”. É fundamental definir como essas matérias entram na constituição, isto é, qual será a sua forma jurídica específica. Dependendo das ambições do constituinte, a constituição promulgada pode deixar mais ou menos espaço para integração legislativa e para a adoção de políticas públicas. Pode investir os particulares de situações jurídicas mais ou menos consis-tentes, abrindo maior ou menor espaço para a sua aplicação direta por parte do Judiciário. Pode ainda restringir mais ou menos o âmbito de atuação do Poder Público brasileiro em cada uma das esferas em jogo – educação, saúde, desporto e setor financeiro, por exemplo.

Vale notar que toda constituição instaura uma “ordem econômica” de alguma forma, mesmo que não haja um capítulo ou mesmo um artigo sequer tratando especificamente do tema. Primeiro, porque “propriedade”, “contratos” e “relação de trabalho” não são realida-des pré-existentes ao direito, esperando para serem ou não “reguladas” pela constituição e pela legislação.1 Ao contrário: o direito cria a propriedade, a liberdade de contratação, de iniciativa e de trabalho. Não existe uma “ordem econômica natural”, de “contratos naturais” e “propriedade natural”, supostamente em harmonia, diante da qual a constituição e as leis precisam estabelecer uma relação – tensa ou também harmônica - no momento de sua cria-ção. Lembre-se do que foi discutido em Introdução ao Estudo do Direito I e II: as normas jurídicas constituem a propriedade, os contratos, a liberdade. Não é por outro motivo que a propriedade e a liberdade de contratação precisam estar positivados e definidos pelo direito vigente para que seus titulares possam invocar a proteção estatal para sua garantia.

Segundo, e conseqüentemente, uma constituição que não trate especificamente da intervenção do Estado na atividade econômica – como a Constituição brasileira de 1824, por exemplo – nem por isso deixa de refletir opções econômicas fundamentais. Com a simples positivação do direito de propriedade da disponibilização do aparato judiciário e policial para protegê-lo de intervenções de outros particulares e do próprio Estado, dá-se forma jurídica a uma ordem econômica com características liberais – intervenção estatal limitada à garantia dos direitos necessários ao funcionamento do mercado (propriedade, contratos, liberdade de expressão e de iniciativa etc.). Não positivar limites ao direito de propriedade é também fazer uma escolha – uma escolha que, aliás, tende a favorecer os interesses daqueles que a constituição define como proprietários (o que, no caso do Brasil, tende a coincidir com o conjunto dos que já eram proprietários de acordo com a legislação anterior à Cons-tituição). Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos:

“A ’Constituição Econômica‘ vem a ser, pois, o conjunto de normas voltadas para a ordenação da economia, inclusive delineando a quem cabe exercê-la. A Constitui-ção, por ser o elemento fundamental para todos os atos do Estado (administrativos, legislativos e jurisdicionais) acaba sempre tomando uma posição em face da matéria

1 Eros Roberto Grau, A Ordem

Econômica na Constituição

de 1988, p.37.: “O mercado

– além de lugar e princípio

de organização social – é

instituição jurídica (=institu-

cionalizado e conformado pelo

direito posto pelo Estado)” . Cf.

também Roberto Mangabeira

Unger, O Direito e o Futuro da

Democracia, passim.

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econômica. Se ela não tiver normas explícitas sobre ela, prevalece o que poderíamos chamar de uma ordem econômica implícita, qual seja, a resultante da regulação de determinados direitos como o de propriedade e o da liberdade de trabalho. Eis que esses vão naturalmente dar lugar a uma ordem econômica baseada na livre iniciati-va. Portanto, a ausência de posições assumidas pela Carta Magna ante o fenômeno econômico é própria dos regimes liberais.” 2

Observe-se mais um exemplo de ordem econômica implícita: a Constituição americana de 1787. Nesta, não se discute concorrência, nem exploração estatal de atividades econômi-cas, nem se traçam as diretrizes e princípios fundamentais do sistema financeiro ou do uso da propriedade rural, como faz a Constituição brasileira de 1988. Ela garante direitos de propriedade e a liberdade de iniciativa, restringindo bastante a capacidade das legislaturas de regularem as atividades comerciais em geral. Mesmo assim, é possível identificar qual é a opção econômica feita pela Constituição americana: garantir que aqueles que já eram proprietários na época da Convenção Constituinte manteriam seus direitos de propriedade intactos, tanto contra investidas de particulares, quanto contra confiscos e outras arbitrarie-dades estatais. Para tanto, o governo desenhado pela Constituição deveria ser forte o sufi-ciente para proteger os proprietários quando estes estivessem em minoria, mas fraco demais para que possa representar um risco à livre circulação de capital.3

Neste bloco, além de fazermos os primeiros contatos com conceitos fundamentais como “constituição dirigente”, “ordem econômica” e “estado de bem-estar social”, tentaremos analisar as diferentes opções fundamentais feitas pelo constituinte no tocante à ordem eco-nômica e à ordem social, incluindo os seus efeitos práticos específicos. Além disso, sempre que possível, discutiremos algumas das possibilidades e caminhos que não foram adotados, embora ainda permaneçam em aberto pela via da reforma constitucional.

Como já discutimos em Teoria do Direito Constitucional, a rigidez da constituição é um dos atrativos para transformar em matéria constitucional essas decisões fundamentais relati-vas à ordem econômica e à ordem social. Vale notar, porém, que muitos desses dispositivos, embora naturalmente só possam ser alterados ou suprimidos por emenda constitucional, na maioria das vezes não chegam a constituir a cláusulas pétreas (a não ser quando funcionem como normas definidoras de direitos fundamentais, nos termos do art. 60, 4o, IV). Se não fosse assim, a mudança substancial de modelo econômico, por exemplo, dependeria da substituição da constituição vigente por uma outra inteiramente nova.

Sintetizando os pontos acima, podemos dizer que este primeiro bloco tem três objetivos principais.

1. Discutir a importância da forma jurídico-constitucional das decisões econômicas e sociais fundamentais;

2. Problematizar os limites e possibilidades da ambição do chamado “constitucionalismo dirigente” de regulamentar a atividade econômica e a organização social, diminuindo a margem de manobra e até substituindo as decisões políticas do legislador infraconstitucional;

3. Apresentar aos alunos uma tendência geral, nas reformas constitucionais dos úl-timos 15 anos, de reconfiguração da presença do Estado na economia (isto é, de algumas opções econômicas fundamentais que o constituinte tinha feito em 1988).

2 Celso Ribeiro Bastos, “Existe

efetivamente uma Constitu-

ição Econômica?”, in Revista

de Direito Constitucional e

Internacional, 10, n.39, abril-

junho de 2002, pp.92.

3 Charles A. Beard, An

Economic Interpretation of

the Constitution of the United

States (1913), pp.154-155.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 01

“Constituição Dirigente”: Para que servem as Constituições?

Nota ao Aluno

Nas disciplinas anteriores de Direito Constitucional, afirmou-se inúmeras vezes que as constituições e o próprio constitucionalismo se articulam em torno de dois eixos: organiza-ção do poder e proteção de direitos fundamentais. Neste curso, vamos ir além dessa “dupla função” clássica. A partir das Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), a ma-téria e a dimensão do constitucionalismo se alargam.3

Contudo, alguns destes dispositivos consagram direitos; outros atribuem competências e poderes para realizar determinadas funções. Qual seria então a novidade? Em que medida a simples positivação de normas relativas à ordem econômica e social é capaz de transfor-mar as constituições contemporâneas em algo distinto de seus equivalentes do século XIX e início do século XX?

Uma primeira observação se faz necessária. Se a constituição é a lei fundamental de um Estado, é natural que esta lei reflita a concepção contemporânea acerca do papel do Estado. Em um regime organizado como “Estado Liberal”, esse papel se limita basicamente à ma-nutenção da segurança externa e interna, com a necessária garantia de liberdades e alguns direitos fundamentais ligados à autonomia individual. Quando se começa a pensar que também é dever estatal promover algum nível de bem-estar coletivo, e não apenas garantir que os indivíduos tenham liberdade para atingir ou não esse bem-estar - o chamado “Estado de Bem-Estar”-, é compreensível que o conteúdo da constituição também mude. Como observa Raúl Machado Horta:

“O constitucionalismo clássico, em suas diversas manifestações nos séculos XVIII e XIX, comportou-se dentro do modelo constitucional de duas dimensões – a organização dos poderes e a Declaração de Direitos e Garantias Individu-ais – e as regras fragmentárias de natureza econômico-social que nele afloraram não alcançaram a estruturação sistematizada do ordenamento econômico (...). A Constituição refletia o liberalismo político e econômico. O primeiro se confundia com as liberdades e as garantias individuais, instrumentos da resistência e da li-mitação do poder, para preservar a indevassável autonomia individual, e o libera-lismo econômico repelia a presença do Estado na atividade econômica, que deveria expandir-se na livre concorrência da economia do mercado. O ingresso da ordem econômica, como matéria da Constituição, coincidirá com o declínio do libe-ralismo econômico e a ascensão das formas não liberais do intervencionismo e do dirigismo econômico. As instituições do capitalismo liberal vão experimentar os abalos decorrentes do confronto com o pensamento, as idéias e os movimentos políticos inspirados no reformismo social.” 4 (grifos nossos)

No entanto, o problema principal que vamos discutir nesta aula – e que permanecerá como pano de fundo de todo o curso - não reside apenas no conteúdo em si das normas consti-tucionais, mas também na eficácia jurídica que lhes pode ser atribuída. Durante muito tempo, especialmente até a primeira metade do século XX, a opinião dominante – jurídica e leiga – era a de que não se podia fazer muita coisa com uma norma constitucional que garantisse

3 Raúl Machado Horta. Direito

Constitucional. 4ª ed. Pp.252.

4 Rául Machado Horta, op.

cit, pp.252.

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o “direito ao trabalho”, por exemplo, ou que determinasse que o Estado deveria “universalizar a educação fundamental”.5 Mesmo que esses dispositivos fossem reconhecidos como normas jurídicas – e não apenas como um “conselho” do constituinte para as futuras gerações, a ten-dência geral era de considerar que tais comando se dirigiam apenas para o legislador, não po-dendo ser aplicados diretamente pelo Judiciário. Sua eficácia jurídica era, portanto, limitada.

Por trás dessa desqualificação, estava implícita a premissa de que uma boa constituição apenas organiza os procedimentos para que a sociedade (mais especificamente, os seus repre-sentantes eleitos) possa deliberar quais são os fins a serem seguidos – quem vota, quem é eleito, como se decide, sobre o quê se decide e quais são os direitos mínimos para que a participação dos cidadãos na vida política da comunidade de forma efetiva. Mais uma vez, a “dupla função”: organização do poder e garantia de direitos fundamentais.

Mas... e se os constituintes quisessem determinar de antemão o resultado dessa delibera-ção, condicionando a atuação do legislador a certos fins e objetivos previamente determinados? E se, ao invés de apenas garantir uma situação já existente contra as decisões políticas futuras (“Constituição Garantia”), sua intenção fosse a de promover transformações – isto é, apontar de antemão o rumo político a ser seguido? Isso pode ser feito por meio da constituição?

Como se vê, subjacente a todos esses problemas encontramos um tema já discutido em Teoria do Direito Constitucional: afinal, o que se pode exigir da Constituição? Mais especificamente, o que se pode exigir da Constituição na definição da ordem econômica e social do país?

O Caso

Tentaremos discutir essas questões a partir da Constituição portuguesa de 1976. Para tanto, vamos conhecer um pouco dos antecedentes de sua promulgação. A Carta foi elaborada como resultado da Revolução de 25 de abril de 1974 (“Revolução dos Cravos”), quando um levante militar derrubou o regime político de inspiração fascista vigente no país desde 1926.

O ditador Oliveira Salazar permanecera à frente do governo português desde 1933, saindo do cargo em 1968 por motivos de saúde. Seu substituto foi Marcello Caetano – professor de Direito Constitucional e Administrativo e ex-reitor da Universidade de Lisboa -, que não se afastou muito das linhas gerais do governo de seu antecessor: repressão à oposição, favoreci-mento de alguns poucos grupos industriais e financeiros e manutenção das colônias portugue-sas na África, com violentas represálias aos movimentos locais de independência.

Ao contrário do que aconteceu no Brasil, foram alguns dos próprios representantes das For-ças Armadas que, clandestinamente, começaram a se organizar e a conspirar a derrubada do regime. No dia 25 de abril, o golpe militar foi colocado em prática e, de forma quase pacífica (4 pessoas morreram no momento da tomada do prédio onde funcionava a Polícia Política do regi-me), debelaram toda a resistência oferecida pelo regime. Ao fim da manhã, com Caetano ainda no poder, o grupo militar revolucionário fez divulgar a seguinte mensagem para toda a nação:

“As Forças Armadas iniciaram uma série de acções com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina. Nos seus comunicados, as Forças Armadas têm apelado para a não intervenção das forças policiais, com o objectivo de se evitar derramamento de sangue. Embora este desejo se mantenha firme, não se hesitará em responder, decidida e implacavelmente, a qualquer oposição que venha a manifestar-se. Consciente de que interpreta os verdadeiros sentimentos da nação, o movimento das Forças Armadas prosseguirá na sua acção libertadora e pede à população que se mantenha calma e que recolha às suas residências. Viva Portugal!” 6

5 Sobre o tema, cf. Luís Roberto

Barroso, O Direito Constituci-

onal e a Efetividade de suas

Normas, passim.

6 Disponível no site:

http://pt.wikipedia.

org/wiki/Cronologia_da_

Revolu%C3%A7%C3%A3o_

dos_Cravos. Acesso em 20 de

janeiro de 2006.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Algumas horas depois, o ditador foi levado a entregar o seu cargo e partir para o exílio no Brasil.Conta-se que, no amanhecer do dia seguinte – o primeiro em cinco décadas fora do regime fascista -, alguém

começou a distribuir cravos para os soldados revolucionários e para os cidadãos portugueses, que começavam a sair nas ruas. Os soldados então decoraram suas espingardas com as flores vermelhas – daí o nome “Revolução dos Cravos”, pelo qual a Revolução de 25 de abril é conhecida.

Imediatamente, formou-se uma “Junta de Salvação Nacional”, composta exclusivamente por militares, para organizar a transição. Nos dois anos seguintes – período chamado de “PREC”, Processo Revolucionário em Curso -, diversas decisões fundamentais e polêmicas foram tomadas, sobretudo no campo econômico. Por exem-plo: foram nacionalizadas todas as grandes empresas em atividade em Portugal.

Em 25/04/75 - um ano após a Revolução, portanto – foram convocadas eleições livres para uma Assembléia Constituinte exclusiva. Pela primeira vez em meio século, os cidadãos portugueses participavam diretamente da definição do futuro de sua comunidade. A Assembléia produziu um texto constitucional com características muito peculiares. Veja, por exemplo, o Prêambulo e os artigos abaixo selecionados. Eles falam por si sós:

Constituição da República PortuguesaTexto originário da Constituição, aprovada em 2 de Abril de 1976

Preâmbulo A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os

seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma

viragem histórica da sociedade portuguesa.A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legí-

timos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do País.A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos

fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a cons-trução de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.

A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa:

ARTIGO 1.º

(República Portuguesa)

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.

ARTIGO 2.º

(Estado democrático e transição para o socialismo)

A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liber-dades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democrática, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.

ARTIGO 3.º

(Soberania e legalidade)

1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.2. O Movimento das Forças Armadas, como garante das conquistas democráticas e do processo revolucionário, participa, em

aliança com o povo, no exercício da soberania, nos termos da Constituição.3. Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da

independência nacional e da democracia política.4. O Estado está submetido à Constituição e funda-se na legalidade democrática.

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ARTIGO 9.º

(Tarefas fundamentais do Estado)

São tarefas fundamentais do Estado:a) Garantir a independência nacional e criar as condições politicas, económicas, sociais e culturais que a promovam;b) Assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais, defender a democracia política e fazer

respeitar a legalidade democrática;c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico,

criar as condições que permitam promover o bem estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.

ARTIGO 10.º

(Processo revolucionário)

1. A aliança entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos e organizações democráticos assegura o desenvolvimento pacífico do processo revolucionário.

2. O desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos principais meios de produção.

TÍTULO IIIDireitos e deveres económicos, sociais e culturais

ARTIGO 50.º

(Garantias e condições de efectivação)

A apropriação colectiva dos principais meios de produção, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais.

ARTIGO 62.º

(Direito de propriedade privada)

1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.2. Fora dos casos previstos na Constituição, a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante pagamento

de justa indemnização.

ARTIGO 73.º

(Educação e cultura)

1. Todos têm direito à educação e à cultura.2. O Estado promoverá a democratização da educação e as condições para que a educação, realizada através da escola e de outros

meios formativos, contribua para o desenvolvimento da personalidade e para o progresso da sociedade democrática e socialista.3. O Estado promoverá a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos, em especial

dos trabalhadores, à fruição e criação cultural, através de organizações populares de base, colectividades de cultura e recreio, meios de comunicação social e outros meios adequados.

ARTIGO 74.º

(Ensino)

1. O Estado reconhece e garante a todos os cidadãos o direito ao ensino e à igualdade de oportunidades na formação escolar.2. O Estado deve modificar o ensino de modo a superar a sua função conservadora da divisão social do trabalho.3. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito;b) Criar um sistema público de educação pré--escolar ;c) Garantir a educação permanente e eliminar o analfabetismo;d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação

científica e da criação artística;

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino;f ) Estabelecer a ligação do ensino com as actividades produtivas e sociais;g) Estimular a formação de quadros científicos e técnicos originários das classes trabalhadoras.

ARTIGO 80.º

(Fundamento da organização económico-social)

A organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meias de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras.

ARTIGO 81.º

(Incumbências prioritárias do Estado)

Incumbe prioritariamente ao Estado:a) Promover o aumento do bem-estar social e económico do povo, em especial das classes mais desfavorecidas;b) Estabilizar n conjuntura e assegurar a plena utilização das forças produtivas;c) Promover a igualdade entre os cidadãos, através da transformação das estruturas económico-sociais;d) Operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento;e) Orientar o desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões;f ) Desenvolver as relações económicas com todos os povos, salvaguardando sempre a independência nacional e os interesses

dos portugueses e da economia do país;g) Eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir

os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral;h) Realizar a reforma agrária;i) Eliminar progressivamente as diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo;j) Assegurar a equilibrada concorrência entre as empresas, fixando a lei a protecção às pequenas e médias empresas económica

e socialmente viáveis;I) Criar as estruturas jurídicas e técnicas necessárias à instauração de um sistema de planeamento democrático da economia;m) Proteger o consumidor, designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores;n) Impulsionar o desenvolvimento das relações de produção socialistas;o) Estimular a participação das classes trabalhadoras e das suas organizações na definição, controlo e execução de todas as

grandes medidas económicas e sociais.

ARTIGO 82.º

(Intervenção, nacionalização e socialização)

1. A lei determinará os meios e as formas de intervenção e de nacionalização e socialização dos meios de produção, bem como os critérios de fixação de indemnizações.

2. A lei pode determinar que as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas não dêem lugar a qualquer indemnização.

ARTIGO 83.º

(Nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974)

1. Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras.2. As pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas, fora dos sectores básicos da economia, poderão, a título ex-

cepcional, ser integradas no sector privado, desde que os trabalhadores não optem pelo regime de autogestão ou de cooperativa.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

ARTIGO 85.º

(Iniciativa privada)

1. Nos quadros definidos pela Constituição, pela lei e pelo Plano pode exercer-se livremente a iniciativa económica privadaenquanto instrumento do progresso colectivo.

2. A lei definirá os sectores básicos nos quais é vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza.3. O Estado fiscalizará o respeito da Constituição, da lei e do Plano pelas empresas privadas, podendo intervir na sua gestão

para assegurar o interesse geral e os direitos dos trabalhadores, em termos a definir pela lei.

Após a leitura dos textos e dos trechos selecionados da redação original da Constituição portuguesa de 197610 , reflita:• As duas dimensões clássicas do constitucionalismo estão refletidas no texto desta Constituição?• Existe algum dispositivo que não se enquadra nessa “dupla função” (organização do poder e garantia de

direitos fundamentais)?• No que essa Constituição é diferente ou semelhante às Constituições Brasileiras?• Identifique eventuais diferenças e semelhanças entre esta Constituição e a Constituição brasileira de 1988.• Com base nos textos, você diria que esta Constituição é “dirigente”? Por quê? O que isto significa?• Basta que a constituição positive regras para o funcionamento da economia e direitos sociais para ser con-

siderada “Dirigente”? Qual a relação entre “ordem econômica” e “Constituição Dirigente”?• Qual a diferença entre uma “Constituição Garantia” e uma “Constituição Dirigente”?• Nesses termos, a Constituição brasileira de 1988 pode ser considerada “Dirigente”?• Em sua opinião, quais são as vantagens, desvantagens e riscos de se promulgar uma Constituição com essas

características?

ConceitosConstituição Dirigente, Constituição Garantia ou Estatutária, Vinculação do Legislador, Estado Liberal,

Estado de Bem-Estar Social

Bibliografia

Obrigatória:• Celso Ribeiro Bastos, “Existe efetivamente uma Constituição Econômica?”, in Revista de Direito Constitu-

cional e Internacional, 10, n.39, abril-junho de 2002, pp.89-96.• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. pp.. 65-79 e 87-91.• Gilberto Bercovici. “Constituição Dirigente: Algumas considerações sobre o caso brasileiro”, in Revista de

Informação Legislativa, pp. 35-44.

Complementar:• J.J.Gomes Canotilho. “A Constituição e as revisões da Constituição. De quantas “Constituições” é com-

posta a Constituição”? (tópicos 1 a 4), in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almeidina,2003.

• Carmem Lúcia Antunes Rocha, “Constituição e Ordem Econômica”, in Eros Grau e Demian Fiocca(orgs). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. pp.09-32.

• Gilberto Bercovici, “A Constituição Econômica”, in Constituição e Desenvolvimento. Uma Leitura a partir daConstituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. Cap. I.

• Raúl Machado Horta. “Constituição e Ordem Econômica e Financeira”. In Direito Constitucional, 4ª ed..Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Pp.251-262.

Bibliografia

Obrigatória:• Celso Ribeiro Bastos, “Existe efetivamente uma Constituição Econômica?”, in Revista de Direito Cons-

titucional e Internacional, 10, n.39, abril-junho de 2002, pp.89-96.• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. pp.. 65-79 e 87-91.• Gilberto Bercovici. “Constituição Dirigente: Algumas considerações sobre o caso brasileiro”, in Revista

de Informação Legislativa, pp. 35-44.

Complementar:• J.J.Gomes Canotilho. “A Constituição e as revisões da Constituição. De quantas “Constituições” é com-

posta a Constituição”? (tópicos 1 a 4), in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almei-dina, 2003.

• Carmem Lúcia Antunes Rocha, “Constituição e Ordem Econômica”, in Eros Grau e Demian Fiocca (orgs). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. pp.09-32.

• Gilberto Bercovici, “A Constituição Econômica”, in Constituição e Desenvolvimento. Uma Leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. Cap. I.

• Raúl Machado Horta. “Constituição e Ordem Econômica e Financeira”. In Direito Constitucional, 4ª ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Pp.251-262.

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FGV DIREITO RIO 11

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 02

“Alfabetização”: Estado, Mercado e Terceiro Setor

Nota ao Aluno

Como já discutido na aula passada, a formulação de cartas constitucionais do tipo “Di-rigente” é algo relativamente novo na experiência jurídica ocidental. Em relação às duas funções tradicionais das constituições escritas, historicamente consagradas no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão7 de 1789, as constituições “Dirigentes” acrescentam uma terceira dimensão normativa. Em seu texto, encontramos dispositivos que vinculam a ação do legislador e dos particulares à realização de certos fins e à obediência de certos valores considerados fundamentais pelo constituinte.

No campo da atividade econômica, a novidade na definição desses fins a que a sociedade está vinculada reside no fato de que, no geral, as constituições liberais clássicas reservavam um papel diferente para o Estado. Se a Constituição americana (1787) e a Constituição brasileira de 1824 não regulavam explicitamente o direito à saúde, por exemplo, isto não quer dizer que não havia serviços de saúde sendo oferecidos e utilizados, mas sim que o Estado não interferia na circulação desses serviços, exceto talvez fazendo cumprir as leis penais e civis entre médicos e pacientes, quando fosse o caso. O silêncio da Constituição sobre a prestação de serviços liga-dos à saúde, à educação e à cultura - apenas para citar alguns exemplos - era então algo natural, pois essas atividades eram consideradas como sendo naturalmente de responsabilidade exclusiva do mercado. Eram, portanto, basicamente Cartas Orgânicas.

O centro do repertório constitucional dos países ocidentais, o Estado, hoje, figura como responsável pela prestação de serviços de consumo social, produção de mercadorias e regula-mentação dos agentes econômicos. Nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr. “o Estado, hoje, substitui, ainda que parcialmente, por exemplo, o próprio mercado na coordenação da economia, tornando-se o centro da distribuição da renda, ao determinar preços, ao taxar, ao subsidiar”.8

Essa nova forma de reorganização estatal não poderia ser concebida sem uma alteração na Constituição no sentido de recepção de decisões políticas fundamentais que abarcassem o amplo rol de novas possibilidades de atuação estatal.

Assim, em última instância, por trás das reformas constitucionais e das próprias decisões da Assembléia Constituinte de 1998, encontramos basicamente a questão da reorganização das funções estatais. Quando a Constituição determina que o Estado tem o dever de uni-versalizar o ensino fundamental, por exemplo, ela está organizando a prestação de serviços educacionais de modo diferente daquele adotado pelas Constituições de 1891 e de 1824. Organizar a produção de um bem ou a prestação de um serviço de modo diferente pres-supõe, é claro, diferentes possibilidades de realização dessas atividades. Nesta aula, a partir da bibliografia selecionada, vamos tentar discutir algumas das combinações possíveis entre certos tipos de atividades e os atores existentes (Estado, mercado e terceiro setor).

Para se preparar para a aula, procure refletir sobre os seguintes pontos:• Como podemos organizar a atividade produtiva e a prestação de serviços em uma dada

sociedade?• Quais são os extremos possíveis (capitalismo / socialismo), e quais os níveis interme-

diários?• O que significa atribuir a responsabilidade pela realização de uma determinada ativi-

dade ao “setor público” ou ao “setor privado”?• Existe algum “meio-termo” possível entre “público” e “privado”?

7 Artigo 16. Toda sociedade na

qual a garantia dos direitos

não for assegurada, nem a

repartição dos poderes deter-

minada, não tem constituição.

8 Tércio Sampaio Júnior.

Congelamento de Preços

– Tabelamentos Oficiais.

Revista de Direito Público, n.

91, p. 76-86, maio 1989.

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12FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

• Como e por que as responsabilidades estatais vêm se reorganizando nas últimas décadas, especialmente nocaso do Brasil?

Conceitos

Setor Público, Setor Privado, Terceiro Setor, Reforma do Estado, Atividades-Fim e Atividades-Meio, Priva-tização, Terceirização, Publicização

Bibliografia

Obrigatória:• Luís Carlos Bresser-Pereira. “A Reforma de Estado nos Anos 90: Lógica e mecanismos de controle”, in Ca-

dernos do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, n.1, Brasília, 1997. Caps. I (Crise e Reforma)e II (Delimitação da Área de Atuação). Disponível no site: www.planejamento.gov.br/arquivos_down/seges/pu-blicacoes/cadernos_mare/CADERNO1.PDF. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

Complementar:• Luís Carlos Bresser-Pereira & Regina Silvia Pacheco. “A Reforma do Estado Brasileiro e o Desenvolvi-

mento”, in Revista Eletrônica de Reforma do Estado (RERE), n.3, set/out/nov de 2005. Disponível no site: www.direitodoestado.com.br. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito Público,n. 91, p. 76-86, maio 1989.

Bibliografia

Obrigatória:• Luís Carlos Bresser-Pereira. “A Reforma de Estado nos Anos 90: Lógica e mecanismos de controle”, in

Cadernos do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, n.1, Brasília, 1997. Caps. I (Crise e Reforma) e II (Delimitação da Área de Atuação). Disponível no site: www.planejamento.gov.br/arquivos_down/seges/publicacoes/cadernos_mare/CADERNO1.PDF. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

Complementar:• Luís Carlos Bresser-Pereira & Regina Silvia Pacheco. “A Reforma do Estado Brasileiro e o Desenvolvi-

mento”, in Revista Eletrônica de Reforma do Estado (RERE), n.3, set/out/nov de 2005. Disponível no site: www.direitodoestado.com.br. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito Público, n. 91, p. 76-86, maio 1989.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 03

Constitucionalismo Dirigente e “Frustração Constitucional”

Nota ao Aluno

Você certamente se lembra das discussões sobre “Constituição Formal” e “Constituição Material” de Teoria do Direito Constitucional, bem como da “classificação ontológica” das constituições – nominal, normativa e semântica -, proposta por Karl Loewenstein. Puxando pela memória, provavelmente lembrará também que a maior parte das normas que contri-buíam para o caráter nominal (ou semântico) da constituição eram aquelas que refletiam pretensões possivelmente excessivas, ainda que louváveis, diante da realidade brasileira. O exemplo paradigmático se encontra nos dispositivos referentes ao salário-mínimo, à educa-ção, à valorização do trabalho humano, às reduções das desigualdades regionais.

Mesmo se partirmos da premissa de que constituição possui “força normativa” - idéia amplamente consolidada na doutrina nacional e estrangeira - e tem portanto a capacidade de provocar mudanças na realidade, é preciso reconhecer que essa mesma realidade não aguarda passivamente a incidência dos preceitos. Como em qualquer outra questão decidida pela cons-tituição, os interesses envolvidos são múltiplos, antagônicos e, muitas vezes, mais fortes do que a própria norma, como a experiência jurídica brasileira já demonstrou inúmeras vezes.

No campo da ordem econômica, esse tem sido um dos principais desafios ao projeto de Brasil imaginado pelo constituinte e instituído como parâmetro para a ação futura do legislador. No arroubo de promover reformas sociais e garantir que o legislador e o adminis-trador público do futuro se mantenham fiéis aos rumos traçados na Assembléia, corremos o risco de superestimar o poder transformador da constituição. Os juristas e operadores do direito no Brasil são tradicionalmente criticados por sua insensibilidade em relação a obstáculos empíricos que tornam inúteis ou perigosas soluções jurídicas que, em tese, soam muito bem. Esse traço dos operadores do direito é pejorativamente chamado de “bachare-lismo”, entendido como um apelo formal à retórica em detrimento da aproximação com a realidade, um viés profissional “tendente a ver o jurídico como essência do social, e os respectivos valores como o alfa e o ômega do universo humano”.9

Como já observou Luís Roberto Barroso, “o papel aceita tudo”10 . Mas a realidade, não. Falar de “constitucionalismo dirigente” é também falar de riscos e frustrações, pois existem razões legítimas para que a constituição não regule diretamente determinadas matérias (ou que não se preocupe em detalhá-las). Contudo, essas razões legítimas muitas vezes são in-vocadas em defesa de interesses não tão legítimos. Na prática, é difícil diferenciar as duas coisas. Foi o que aconteceu com as disposições constitucionais relativas ao Sistema Finan-ceiro Nacional (artigo 192).

Em sua redação original, o artigo 192 da Constituição é tipicamente “dirigente”. Repare: o legislador tem a obrigação de legislar, mas o conteúdo da legislação não fica ao seu comple-to arbítrio. O constituinte já cuidou de determinar a orientação geral (e algumas orientações específicas) do conteúdo dessa futura criação do legislador. Dizia a sua redação original:

CAPÍTULO IVDO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

9 Nelson Nogueira Saldanha,

citado em Alberto Venâncio

Filho, Das Arcadas ao Bach-

arelismo: 150 anos de ensino

jurídico no Brasil. São Paulo:

Perspectiva, 2005, p.294.

10 “Princípios constitucionais

brasileiros (ou De como o

papel aceita tudo)”, Revista

da Faculdade de Direito da

UERJ, 1993.

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FGV DIREITO RIO 14

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso; II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador; II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capi-talização, bem como do órgão oficial fiscalizador. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 13, de 1996) III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente:a) os interesses nacionais; b) os acordos internacionais; IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições fi-nanceiras públicas e privadas; V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central e demais institui-ções financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo;VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantin-do créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União; VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento; VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.

§ 1º - A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sis-tema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.

§ 2º - Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabi-lidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados.

§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.

Rapidamente, surgiu na comunidade jurídica a controvérsia acerca da aplicabilidade dos seus incisos e pará-grafos. Nos termos propostos por José Afonso da Silva, seria uma norma constitucional de eficácia plena ou de eficácia limitada? Depende ou não depende da edição de outras leis para produzir todos os seus efeitos?

Grosso modo, a discussão acabava dividindo os juristas de um lado e os economistas do outro. Estes, preo-cupados com os efeitos nocivos que esse suposto “bacharelismo” do constituinte poderia ter sobre a economia e a sociedade brasileira. Aqueles, discutindo a melhor exegese do § 3º do art. 192 – o alcance da expressão “juros reais”, a interpretação sistemática dos parágrafos, as discussões constituintes que deram origem ao artigo -, enfim, preocupados basicamente em determinar como o artigo deveria ser obedecido. Realidade versus Norma – e com argumentos plausíveis para ambos os lados. O assunto foi definitivamente resolvido com a Emenda Constitucional 40, que removeu todos os incisos e parágrafos do artigo 192. Alguns anos antes, porém, a interpretação do alcance do § 3º do art. 192 chegara ao Supremo Tribunal Federal – e é este o caso da nossa aula de hoje.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Ao discutir o caso, procure refletir:• Você consegue separar as questões “estritamente econômicas” das questões “estritamente jurídicas” nesse caso?• “constituição dirigente” é necessariamente igual a “constituição boa para o país”? É possível estabelecer em

que condições uma “constituição dirigente” pode dar certo? Quais os riscos envolvidos?

O Caso

Logo após a promulgação da Constituição de 1988, o Poder Executivo tratou de firmar um entendimento quanto à aplicabilidade do artigo 192 da Constituição. O dispositivo levantava inúmeras dúvidas, mas havia três pontos de maior preocupação:

1) Alguns dos incisos e parágrafos do artigo 192 poderiam ser considerados “auto-aplicáveis”, independente-mente da eventual integração legislativa?

2) No tocante ao limite de 12% para as taxas de “juros reais”, essa “integração” legislativa deveria se dar por Lei Complementar, nos termos do caput, ou por lei ordinária, como a já existente Lei de Usura (Decreto 22.626de 1933)?

3) A eventual Lei Complementar deveria necessariamente incorporar todas as disposições do artigo 192 e de seus incisos e parágrafos, ou o legislador estaria livre para dispor em sentido contrário?

Requisitado pelo presidente da República para responder a essas questões, o consultor-geral da República emitiu o Parecer nº. 70. Na peça, afirmava como tese central a inaplicabilidade do § 3º do artigo 192 na ausência de integração legislativa. O consultor-geral, porém, reconhecia que o Poder Legislativo não estava livre para de-cidir o conteúdo da Lei Complementar de que fala o caput do artigo 192 – quando esta norma fosse elaborada, ela deveria incluir a limitação de 12% referente aos juros reais.

O Parecer nº. 70 ganhou força vinculante para toda a administração pública federal após ter sido formalmente aprovado pelo presidente da República. Assim, o entendimento oficial – que deveria ser aplicado por todos os órgãos do Executivo, bem como os da administração indireta – passaria a ser o da eficácia limitada da limitação da taxa de juros.

Este entendimento gerou polêmica. Quase que imediatamente, o Partido Democrático dos Trabalhadores (PDT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, alegando que o Pare-cer nº. 70 – transformado em ato normativo com força de lei no momento da aprovação pelo Presidente – viola-va o próprio artigo 192 da Constituição Federal, que seria auto-aplicável. Em determinado momento da petição inicial, o PDT reconhece que a taxa de juros reais que costuma ser praticada desde a década de 70 no Brasil é bem superior aos 12% estabelecidos no artigo 192 da Constituição de 1988. Este fato, contudo, não deve obstar o reconhecimento da auto-aplicabilidade do dispositivo em questão. Segundo o autor da ADIN:

“Isto [o argumento de que a taxa de juros habitualmente praticada no Brasil é muito maior do que 12%] desvela a intenção não só de adiar a aplicação do dispositivo limitativo dos juros, como de sepultá-lo definitivamente, por tê-la como ineficaz, tomado o termo na sua acepção de não produzir efeitos no plano econômico-social. Interessassem essas questões ao desate do problema jurídico, e invocaríamos a lição dos economistas, entre eles o maior teórico do capitalismo, Adam Smith, que afirma só ser inócua a fixação normativa dos juros se posta abaixo do mínimo praticado pelo mercado, o que não é evidente-mente o caso. Não nos deixaremos, porém, atrair para esse terreno. (...)” (grifos nossos)

Nesse sentido, e com base nos argumentos expostos na inicial, o PDT pedia a declaração da inconstitucio-nalidade do Parecer nº. 70 da Consultoria-Geral da República e, incidentalmente, a interpretação do § 3º do artigo 192 como sendo aplicável independentemente da edição de lei ordinária.

Após a leitura da petição inicial, do parecer nº. 70 da Consultoria-Geral da República, dos votos dos ministros Carlos Velloso e José Carlos Moreira Alves e do texto de J.H. Meirelles Teixeira, coloque-se na posição de ministro do Supremo Tribunal Federal. Como você decidiria a questão? Procure refletir sobre as seguintes questões:

• Como a idéia de “constituição dirigente” é interpretada na petição, no parecer e nos votos dos ministros?

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16FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

• Que “questões” são essas que, segundo o PDT, não interessam ao “desate do problema jurídico”? Você con-corda com essa posição do PDT?

• Qual é o “problema jurídico” a ser desatado, nos termos propostos pelo PDT?• Em termos de distribuição de poder político, quais seriam os efeitos de uma decisão do Supremo que inter-

pretasse a norma como de eficácia limitada?• Você acha que essa decisão contribuiria ou prejudicaria a força normativa da Constituição?

Conceitos

Eficácia Jurídica e Aplicabilidade das Normas Constitucionais; Integração Legislativa; Efetividade Constitucionale Força Normativa da Constituição; Normas Programáticas, Normas-Tarefa e Normas-Fim; Lei Complementar.

Bibliografia:

Obrigatória:• J.H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional. Texto organizado e atualizado por Maria Garcia.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. Pp.316-331.• Petição inicial da ADIN 04, do PDT (trechos selecionados)• Parecer n.70 da Consultoria-Geral da República (trechos selecionados)• Votos dos Ministros Carlos Velloso e Moreira Alves na ADIN 04 (trechos selecionados)

Complementar:• Luís Roberto Barroso. “A Doutrina Brasileira da Efetividade”, in Temas de Direito Constitucional – V.III.

Rio de Janeiro: Renovar, 2005.• ___. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 7a. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.• José Afonso da Silva. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5a. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. Pp.88-

163 e 225-259.• Raúl Machado Horta. “Constituição e Ordem Econômica e Financeira”. In Direito Constitucional, 4ª ed..

Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Pp.264-265.

Bibliografia:

Obrigatória:• J.H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional. Texto organizado e atualizado por Maria Gar-

cia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. Pp.316-331.• Petição inicial da ADIN 04, do PDT (trechos selecionados)

Complementar:• Luís Roberto Barroso. “A Doutrina Brasileira da Efetividade”, in Temas de Direito Constitucional

– V.III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.• ___. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 7a. ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2003.• José Afonso da Silva. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5a. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

Pp.88-163 e 225-259.• Raúl Machado Horta. “Constituição e Ordem Econômica e Financeira”. In Direito Constitucional, 4ª

ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Pp.264-265.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 04

Constituição de 1988 ou Constituição do Brasil?

Nota ao Aluno

Na aula passada, discutimos a relação entre “constituição dirigente” e “frustração consti-tucional”. Em outras palavras: o que acontece quando os legisladores (a quem caberia regu-lamentar a constituição), os administradores e até mesmo os juízes (a quem caberia aplicar a constituição) agem de forma contrária aos preceitos constitucionais? Os motivos para se interpretar a constituição desta ou daquela forma podem ser mais ou menos nobres, mais ou menos pertinentes, mas, para os fins deste bloco, o importante é destacar que o otimis-mo e a pretensão do constituinte podem desaguar em falta de efetividade da constituição.

Contudo, como já discutido em Teoria do Direito Constitucional (Direito Constitucio-nal I), é possível alterar a constituição por outras vias, além da interpretação judicial e da in-terpretação legislativa. Mais especificamente, é possível realizar emendas à constituição. Na aula de hoje, discutiremos como o instrumento das emendas constitucionais foi utilizado para dar concretude jurídica a determinados objetivos políticos e econômicos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

O que está em jogo, portanto, é a alteração das decisões que o constituinte considerou fundamentais em 1988. Vale notar que, com apenas algumas semanas de promulgação, a nossa atual Constituição já era objeto de críticas e pedidos de reformulação parcial e até completa. Na linha de suas pretensões “dirigentes”, já discutidas na primeira aula do curso, a Constituição ia contra as expectativas dos defensores de uma reconfiguração do papel do Estado na sociedade brasileira. Portanto, o principal alvo das críticas eram os dispositivos referentes à Ordem Econômica e à Ordem Social, que, para muitos juristas, economistas e políticos, tornariam o país “ingovernável”.

As primeiras iniciativas de revisão do modelo de atuação estatal na atividade produtiva instaurado pela Constituição de 1988 datam do governo de Fernando Collor de Mello. Para a realização das mudanças pretendidas, optou-se pela via da legislação infraconstitucional (com especial destaque para as medidas provisórias). O resultado prático foi o de que muitas das medidas tomadas começaram a ser questionadas junto ao Poder Judiciário. Assim, mes-mo que diversos objetivos daquele governo tenham sido alcançados de qualquer maneira, ficou claro que, graças aos mecanismos de controle difuso de constitucionalidade, os juízes de primeira instância e tribunais inferiores poderiam dificultar quaisquer reformas futuras que considerassem contrárias aos dispositivos constitucionais.11

Com a subida ao poder de Fernando Henrique Cardoso, os objetivos fundamentais da agenda de reforma - reconfigurar a atuação do Estado na atividade econômica, permitir o equilíbrio orçamentário e flexibilizar e modernizar a administração pública e o sistema previdenciário – foram perseguidos a partir de propostas de reforma constitucional. Na ver-dade, FHC foi eleito com propostas de governo que, na prática, dependiam de reformas na Constituição. Assim, ao contrário do que ocorrera no governo Collor, enfatizou-se a opção mais demorada, também a mais estável e dotada de relativa legitimação democrática, da proposição de emendas constitucionais para discussão no Congresso Nacional. Nas palavras do próprio presidente Fernando Henrique:

“(...) a solidez do processo de reformas em curso decorre justamente do fato de que estamos avançando no contexto de regras democráticas. Queremos assegurar sempre

11 Oscar Vilhena Vieira,

“Realinhamento Constituci-

onal”, in Oscar Vilhena Vieira

e Carlos Ari Sundfeld (orgs.).

Direito Global. São Paulo:

Max Limonad, 1999. Como o

próprio autor observa, essa foi

uma das razões que levaram à

criação da Ação Declaratória de

Constitucionalidade por meio

da EC n3./93: a necessidade

de “blindar” de alguma forma

as medidas legais tomadas

pelo Governo no sentido das

reformas, que, num primeiro

momento, poderiam ter legiti-

midade questionável junto à

população.

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FGV DIREITO RIO 18

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

o maior grau possível de apoio a mudanças que terão um impacto profundo para a sociedade. O debate e a busca de consensos são características intrínsecas da demo-cracia. O resultado dessa forma de agir é que as reformas ganham em legitimidade e diminuem, assim, os riscos de que possam ser revertidas.(...)” 12

Assim, aproveitando a base partidária que lhe servia de sustentação política no Congres-so, bem como o apoio popular no início de seu governo, Fernando Henrique conseguiu em menos de um ano que o Poder Legislativo votasse diversas emendas extremamente polêmicas. Nos anos seguintes de seu primeiro mandato, bem como em seu segundo man-dato, seguiram-se outras emendas constitucionais. Esse “legado jurídico” do governo FHC perdura até os dias de hoje.

Como você pode imaginar, as discussões em torno dos méritos e deméritos dos dispo-sitivos da Constituição relativos à ordem foram terreno fértil para as disputas ideológicas. Tratava-se de pontos que despertaram intensa polêmica na sociedade civil e na academia. Os diagnósticos acerca da necessidade de reforma da Constituição foram os mais díspares. O jurista Oscar Vilhena Vieira, por exemplo, observou em 1998:

“Todas essas reformas [dos Governos Collor e FHC] têm sido feitas sob o argumen-to de que é necessário buscar adaptar o Estado brasileiro às demandas da globa-lização. Porém não é segredo que decorrem fundamentalmente da imposição das economias centrais, das agências intergovernamentais de financiamento, como o FMI e o Banco Mundial, e das empresas de caráter transnacional. De acordo com a retórica da globalização, o capital internacional só irá se interessar por investir num determinado território se houver um conjunto de condições adequadas, que vão no sentido da desregulamentação, da flexibilização da legislação social, da ampla liberdade de movimentação de capital, previsibilidade e minimização dos custos fiscais e da estabilidade monetária, que por sua vez exige redução dos gastos públicos e equilíbrio fiscal. Esta a cartilha. Como no Brasil muitas destas questões encontram-se na Constituição, esta a direção das reformas.” 13

Alguns anos antes (1994), em sentido contrário, o economista e ex-ministro da Fazenda Bresser-Pereira observara, por ocasião da Revisão Constitucional (art.1o do ADCT):

“A revisão constitucional que está para começar é uma boa oportunidade para se corrigirem algumas das distorções populistas e equivocadamente nacionalistas - porque contrárias ao interesse nacional - da Constituição de 1988, mas não deve ser vista como uma condição indispensável para a estabilização dos preços e a re-tomada do desenvolvimento. A afirmação que o Brasil se tornou ingovernável com a atual Constituição é falsa e perigosa. Ignora que a crise brasileira começou em 1979, muito antes que a nova carta fosse aprovada, e oferece aos autoritários um pretexto para uma nova quebra do regime democrático. Não há dúvida quanto à desejabilidade de se alterarem alguns artigos da Constituição. No plano econômico seria importante eliminar o monopólio da União no petróleo e nas telecomunica-ções, a exclusão das empresas estrangeiras da exploração do subsolo, e a prioridade para as empresas nacionais nas compras do governo. Esta última é uma prática de todos os países, mas nenhum comete a tolice de colocá-la na sua constituição.” 14

Nessa polêmica toda, pelo menos um ponto pode ser considerado pacífico: é sempre positivo que se tente mudar a ordem jurídica a partir de dentro, pelas vias institucionais

12 Discurso do Presidente da

República, Fernando Henrique

Cardoso, por ocasião do

seminário organizado pela

CONFINDUSTRIA. Roma, Itália

– 11/2/1997. Disponível no

site http://www.presidencia.

gov.br/. Acesso em 10 de

janeiro de 2006.

13 Oscar Vilhena Vieira, op. cit.

14 Bresser-Pereira, “Revisão

Constitucional”, publicado em

12.11.93. Disponível no site

http://www.bresserpereira.

org.br. Acesso em 10 de janeiro

de 2006.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

adequadas. Como observa Luís Roberto Barroso, reformar a Constituição não deixa de ser uma forma de reconhecer efetividade à Constituição – afinal, se ela não servisse para nada, se não tivesse nenhum poder de influenciar no mundo dos fatos, não precisaríamos nos preocupar em emendá-la.15 Bastaria ignorar a Constituição.

Mas, se a idéia é alterar a Constituição, em que pontos a sua estrutura deveria ser emen-dada? O que foi preciso (em termos de alteração textual na Constituição) para que a agenda de reformas dos anos 90 pudesse ser concretizada?

O Caso

Leia com atenção os trechos abaixos:16

- Mensagem da Presidência da República ao Congresso Nacional (janeiro de 1995)

A Constituição de 1988 foi elaborada em circunstâncias que estimularam os constituintes a incorporar ao texto constitucional tudo o que pudesse ser incorporado. De um lado, pela razão prática de que tornava-se mais fácil, do ponto de vista do processo legislativo, aprovar uma proposta de dispositivo constitucional do que um projeto de lei ordinária. De outro lado, porque a memória recente do período de autoritarismo alimentava uma enorme preo-cupação em restringir os poderes do Executivo e estabelecer de modo perma-nente a garantia de direitos e o atendimento de demandas sociais.Em função disso, a Constituição acabou impondo restrições exageradas, não só ao exercício eficaz das ações de Governo, mas à própria soberania popular, tal como se manifesta através dos mandatários eleitos, tanto na esfera do Executivo como do Legislativo.A verdade é que a Constituição de 1988 inclui dispositivos que dizem respeito mais propriamente a políticas de governo do que às regras permanentes de funcionamento do Estado e aos direitos dos cidadãos. Na medida em que o eleitorado pode conduzir ao Executivo e ao Legislativo representantes com orientações programáticas distintas das contidas na Constituição, está aberto o terreno para conflitos constantes sobre a constitucionalidade ou inconstitu-cionalidade de medidas infraconstitucionais dos dois poderes. Conflitos cuja solução acaba sendo submetida ao Poder Judiciário, transformado assim, de maneira não prevista pelos constituintes nem desejada pelos próprios mem-bros deste Poder, em responsável último por decisões típicas de governo.O detalhismo da Constituição judicializa a política e despolitiza as decisões. Em vez da independência e harmonia que fundam a governabilidade demo-crática, instaura-se assim o impasse entre os Poderes constituídos. Impasse de conseqüências particularmente nefastas em matéria fiscal e financeira, na medida em que as oscilações naturais da fazenda pública e da economia na-cional chocam-se com a rigidez da ordem constitucional.A constitucionalização de vastas áreas da vida social e econômica acarreta o esvaziamento da atividade parlamentar, relegando o Poder Legislativo à mera reprodução de normas já incluídas na Lei Maior. Reverter esse quadro preocupante importa em devolver à classe política a capacidade de, por suas maiorias e pelo voto democrático do Legislativo, nas relações com o Exe-cutivo, administrar o País, ou seja, ditar com a necessária flexibilidade os

15 Luís Roberto Barroso, “A

Doutrina Brasileira da Efeti-

vidade”, in Temas de Direito

Constitucional, v. III.

16 Todo o material desta

seção foi extraído do site da

Presidência da República

(www.presidencia.gov.br).

Acesso em 10 de janeiro de

2006.

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objetivos imediatos e os instrumentos ordinários da ação do Governo.Daí por que as propostas de emenda constitucional do Governo têm como pano de fundo a descons-titucionalização, ou seja, a retirada do texto constitucional de normas que lá não deveriam estar por serem mais propriamente matéria de política de governo, passíveis de tratamento por legislação infra-constitucional. (...)Vem a propósito, aqui, a seguinte afirmativa de Ralph Dahrendorf numa reflexão sobre os destinos da Europa Central após o colapso do comunismo: “Em questões de política constitucional não há dois caminhos, ou melhor, só há dois caminhos: a sociedade fechada ou a sociedade aberta, ao passo que, na política normal, uma centena de opções pode ser oferecida e três ou quatro geralmente o são”.Não deixemos escapar a oportunidade de consagrar no Brasil a sociedade aberta — a Constitui-ção da liberdade, — devolvendo ao âmbito da política normal e da atividade legislativa ordinária a centena de opções que o dia-a-dia da vida social normalmente exige.Tal é o espírito das propostas de emenda constitucional que o Governo encaminhará ao Congres-so Nacional a partir de amanhã. (...)A fim de consolidar a estabilidade econômica e assentar as bases materiais da justiça social, é impres-cindível eliminar da Constituição dispositivos que restringem de maneira descabida a participação do capital privado nacional e o estrangeiro nos investimentos essenciais ao desenvolvimento do País.É o caso do modelo monopolístico do setor de telecomunicações. Mais de 50 por cento das lo-calidades brasileiras, 80 por cento das residências e 98 por cento das propriedades rurais não têm telefone. A carência é estimada em 10 milhões de linhas, uma demanda que pode acentuar-se com a retomada do crescimento econômico. Propondo a eliminação da exigência de controle es-tatal, para que também as empresas privadas possam explorar os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, o Governo não quer mais do que possibilitar investimentos no volume necessário na expansão e modernização da in-fra-estrutura nacional de telecomunicações. Ao mesmo tempo, mantido o regime de concessão, assegura-se ao Poder Público o instrumento básico para a adequada fiscalização do setor.Propõe-se também emenda com o objetivo de flexibilizar o monopólio do petróleo, permitindo à União exercê-lo através de contratos com empresas privadas para a exploração das atividades de pesquisa e lavra, refino, importação e exportação e transporte. Essa mudança possibilitará reduzir os custos de exploração e produção de petróleo, derivados e gás natural.Outra proposta de emenda visa a eliminar o monopólio para empresa estatal estadual na explo-ração dos serviços locais e a exclusividade de distribuição de gás canalizado. Pretende-se, assim, tornar o setor mais competitivo por meio da injeção de investimentos privado, mantendo-se a responsabilidade do Poder Público sobre a atividade, mediante o regime de concessão.A Constituiçãode 1988 estabeleceu discriminação entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, chegando a prever tratamento preferencial para esta última. Essa discriminação perdeu sentido no contexto da abertura da economia, com a eliminação das reservas de mercado, maior interrelação entre as economias e necessidade de atrair capitais estrangeiros para comple-mentar a poupança interna. Propõe-se, em vista disso, sua eliminação do texto constitucional.Na mesma linha, encaminha-se proposta que permite a pesquisa e a lavra de recursos minerais e aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica por brasileiro ou empresa brasileira, median-te autorização ou concessão, sem qualquer prejuízo do controle da União.Também será proposta emenda remetendo para a legislação ordinária as eventuais restrições ao ca-pital estrangeiro na navegação de cabotagem. Não faz sentido manter a „reserva de mercado“ para embarcações nacionais na navegação de cabotagem e interior — exigência que implica em menor flexibilidade na contratação do serviço de transporte de carga, acarretando aumento de custos e de preços finais dos produtos, notadamente daqueles em que o custo de transporte é significativo.”

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

- Plano Diretor para Reforma do Aparelho de Estado (1995) (Elaborado pela Câmara de Reforma do Estado do Governo FHC)

“A estratégia da reforma do aparelho do Estado está concebida a partir de três dimensões: a primeira, institucional-legal, trata da reforma do sistema jurídico e das relações de propriedade; a segunda é cultural, centrada na transição de uma cultura burocrática para uma cultura gerencial; a terceira dimensão aborda a gestão pública a partir do aperfeiçoamento da administração burocrática vigente e da introdução da administração gerencial, incluindo os aspectos de modernização da estrutura organizacional e dos métodos de gestão. Essas dimensões, ainda que guardem certa independência, operarão de forma complementar. A primeira permitirá mudanças estruturais no funcionamento do aparelho do Estado, já que pressupõe a eliminação dos principais entraves no sistema jurídico-legal; a segunda, entretanto, viabilizará a operacionalização da cultura gerencial centrada em resultados através da efetiva parceria com a sociedade, e da cooperação entre administradores e funcionários; finalmente, a terceira possibilitará concretizar novas práticas gerenciais e assim obter avanços signi-ficativos, ainda que os constrangimentos legais não sejam totalmente removidos.A estratégia proposta, nessa dimensão, está orientada no sentido de viabilizar as transformações fundamentais pretendidas com a reforma do aparelho do Estado, em três direções. Em primeiro lugar, permitindo a focalização do Estado no atendimento das demandas sociais básicas. Em se-gundo lugar, facilitando o redirecionamento da maneira tradicional de atuar do Estado, evoluin-do de um papel executor para um papel de promotor do desenvolvimento social e econômico. Finalmente, a estratégia proposta deverá criar as condições para a implementação do modelo de administração gerencial no setor de serviços do Estado.É importante destacar que o compromisso fundamental do Estado não é o de realizar dentro de seu aparelho todas as funções demandadas pela sociedade. Ao invés, é o de assegurar ou facilitar a sua realização sempre que possível, o que deverá implicar a adoção de mecanismos inovadores de operação e funcionamento.Para a operacionalização das mudanças pretendidas será necessário o aperfeiçoamento do sistema jurídico-legal, notadamente de ordem constitucional, de maneira a remover os constrangimentos existentes que impedem a adoção de uma administração ágil e com maior grau de autonomia, capaz de enfrentar os desafios do Estado moderno. Nesse sentido, a reforma contempla a propo-sição de emendas constitucionais.”

- Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso no coquetel em comemoração ao seu aniversário (Clube das Nações, Brasília, DF – 18/6/1997)

“Nós estamos descentralizando o Estado. Nós não estamos diminuindo o Estado, no sentido que alguns imaginam. Nós estamos dando novas funções e nova força ao Estado, mas a um Estado que está sob controle social, e um Estado que regulamenta e que não vai se meter a fazer aquilo que ele não sabe fazer tão bem quanto a própria sociedade é capaz de fazer. É um novo Estado brasileiro. É uma nova sociedade. E, se me permitem, até – no dia do aniversário a gente pode ser mais retórico – é uma revolução cultural. A mudança de percepção das coisas. E toda mudança, no começo, provoca reações. Provoca incompreensões. No decorrer do tempo as pessoas perce-bem, e acabam modificando suas próprias formas de comportamento. E isso está ocorrendo no Brasil. Está ocorrendo, repito, não só no âmbito político, mas no âmbito da sociedade. (...)”

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- Entrevista concedida pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, ao jornal Gazeta Mercantil (Brasília, DF – 19/6/1997)

“Eu disse, quando tomei posse, que iria colocar um fim na era Vargas. Este estado foi formado, basi-camente, por dois impulsos autoritários: o do getulismo do Estado Novo e o do autoritarismo militar. Este estado que hoje a esquerda defende é produto de dois momentos autoritários do Brasil. É um es-tado onisciente, onipresente e onicontrolador, em que você confundia o bem da nação com o bem do Estado. Não acreditava no povo e não acreditava na sociedade civil. Isso acabou. O Estado está mon-tado para isso. É um Estado que, ao ser montado, está incrustado de interesses privados e interesses clientelistas do setor político – os dois se fundem. Qual a nossa luta para acabar com isso, nesta nova sociedade? Aí vou falar de três linhas para não cansá-los de tanta falação. A primeira é que você tem que deixar de ser um Estado produtor, a não ser em áreas específicas, para ser promotor, regulamentador e fiscalizador. Isso são as agências de energia, petróleo, transportes, telefonia. Você vai desestruturar todo aquele aparelho burocrático que controlava as empresas destas áreas, dava monopólio e, quando não havia monopólio, botava uma canga no setor privado, como no caso da energia elétrica. Depois acontecia o contrário: o setor privado entrava dentro do Estado ficava aliado à burocracia, fazia os anéis burocráticos e controlava todas as decisões, sufocando a sociedade. Nós estamos acabando com isso.”

- Discurso do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na solenidade de apresentação dos estagiários da Escola Superior de Guerra. (Palácio do Planalto, Brasília, DF – 20/6/1997)

“Numa certa fase do nosso crescimento, o Estado, necessariamente, era um Estado produtor. Porque ou ele se jogava como um Estado, um governo, capaz de fazer fundos de acumulação de recursos, para investir esses recursos e para, inclusive, criar ou trazer tecnologias, ou não haveria quem o fizesse. Aqui, portanto, não vai um julgamento da História. No momento oportuno, o que foi feito, em termos de um Estado capaz de abrir a siderurgia, de abrir a petroquímica, de abrir o petróleo, era absolutamente necessário ser feito, e assim foi feito.Ocorre que, essa capacidade toda se fez através de impostos. E hoje nós estamos num momento em que falar de aumentar imposto é quase uma condenação, de antemão, à negativa. Mesmo quando se trata de imposto para a saúde, a dificuldade que o governo tem, de fazer com que a sociedade aceite que haja um imposto adicional, é enorme. Imagina explicar que nós precisamos de mais recurso para um investimento produtivo deste ou daquele tipo.Então, o Estado não pode imaginar que ele vai substituir a sociedade, no processo produtivo direto. Isso não o inibirá de continuar atuando de forma indireta nos diversos setores da sociedade, nem o inibirá da sua necessidade de investimento na infra-estrutura de estradas, de portos, de energia, do que seja. Mas, sempre que possível, buscando, através de fórmulas de parceria, de concessões de serviços públicos, capitalizar os recursos existentes nas mãos da sociedade civil, de tal maneira que eles possam ser orientados para a realização daquilo que é essencial e necessário.”

Após a leitura dos textos selecionados para esta aula e dos trechos acima, analise as emendas constitucionais promulgadas no Brasil até 2003. Lembre-se: concordando ou não com as motivações ideológicas eventual-mente identificáveis tanto no material de leitura, quanto no material do caso, é importante saber identificar na Constituição os interesses sócio-econômicos em conflito, bem como a forma jurídica escolhida para viabilizar as reformas da Constituição.

Nesse sentido, procure refletir sobre as seguintes questões:• O que significa “desconstitucionalização”? Explique o conceito apresente um argumento favorável e um

argumento desfavorável a essa proposta.• Que significa dizer que “o detalhismo da Constituição de 1988 judicializa a política”? Você concorda com

esse diagnóstico?

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• Quais das emendas constitucionais em análise contribuíram para os objetivos descritos nos pronunciamen-tos de Fernando Henrique Cardoso e nos documentos?

• Quais das emendas constitucionais em análise contribuíram para o “fim da Era Vargas”, prometido porFernando Henrique Cardoso?

• Se fosse assessor jurídico da Presidência da República em 1994, você sugeriria alguma outra emenda cons-titucional além das que foram efetivamente propostas e aprovadas?

• Você diria que as emendas contribuíram para preencher de que forma o quadro discutido em sala na aula02 deste bloco?

• Você considera que as emendas constitucionais em análise constituem violação aos limites materiais aoPoder Constituinte Derivado?

Conceitos

Constituição Analítica; Mudança Constitucional: Reforma e Revisão; Emendas Constitucionais de Revisão;Judicialização da Política; Reforma da Administração Pública; Princípio da Eficiência; Desconstitucionalização;Monopólio Estatal; Privatização; Restrições ao Capital Estrangeiro.

Bibliografia

Obrigatória• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pp. 172-192.• ___. “As Relações entre os Poderes no Décimo Aniversário da Contituição de 1988”, in Eros Roberto Grau

e Demian Fiocca (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Pp.69-76.• Celso Antônio Bandeira de Mello. “Funerais da Constituição de 1988”, in Eros Roberto Grau e Demian

Fiocca (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Pp.35-46.

Complementar• Paulo Bonavides. “Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da constituição e a recolonização

pelo golpe do Estado institucional”, in Do País Constitucional ao País Neocolonial.• Sayonara Grillo Coutinho. “Reformas Constitucionais: De Collor a FHC”, in Revista Estado, Direito e

Sociedade, n.07, 1996. Disponível no site http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista. Acesso em 10de janeiro de 2006.

• Oscar Vilhena Vieira, “Realinhamento Constitucional”, in Oscar Vilhena Vieira e Carlos Ari Sundfeld(orgs.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999. Disponível no site http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_unidir.html. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Marcus André Melo. “Reformando o Estado Brasileiro: A Formação da Agenda”, in Reformas Constitucio-nais do Brasil. Instituições políticas e processo decisório. Rio de Janeiro: Revan, 2002. Pp.47 a 58.

• Diogo de Figueiredo Moreira Neto. “Políticas Governamentais versus Políticas Nacionais”, in Revista Eletrôni-ca da Reforma do Estado, n.1, fev/mar/abr 2005. Disponível no site http://www.direitodoestado.com.br.

• Flávio da Cunha Rezende. “As Reformas e as Transformações no Papel do Estado: O Brasil em perspectivacomparada”, in O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 1/ Organizadores: Fernando LuizAbrucio e Maria Rita Loureiro. – Brasília: MP, SEGES, 2002. Disponível no site: http://federativo.bndes.gov.br/bf_bancos/estudos/e0002028.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

Bibliografia

Obrigatória• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pp. 172-192.• ___. “As Relações entre os Poderes no Décimo Aniversário da Contituição de 1988”, in Eros Roberto

Grau e Demian Fiocca (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Pp.69-76.

• Celso Antônio Bandeira de Mello. “Funerais da Constituição de 1988”, in Eros Roberto Grau e Demian Fiocca (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Pp.35-46.

Complementar• Paulo Bonavides. “Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da constituição e a recoloni-

zação pelo golpe do Estado institucional”, in Do País Constitucional ao País Neocolonial.• Sayonara Grillo Coutinho. “Reformas Constitucionais: De Collor a FHC”, in Revista Estado, Direito e

Sociedade, n.07, 1996. Disponível no site http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Oscar Vilhena Vieira, “Realinhamento Constitucional”, in Oscar Vilhena Vieira e Carlos Ari Sundfeld (orgs.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999. Disponível no site http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_unidir.html. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Marcus André Melo. “Reformando o Estado Brasileiro: A Formação da Agenda”, in Reformas Constitu-cionais do Brasil. Instituições políticas e processo decisório. Rio de Janeiro: Revan, 2002. Pp.47 a 58.

• Diogo de Figueiredo Moreira Neto. “Políticas Governamentais versus Políticas Nacionais”, in Revista Ele-trônica da Reforma do Estado, n.1, fev/mar/abr 2005. Disponível no site http://www.direitodoestado.com.br.

• Flávio da Cunha Rezende. “As Reformas e as Transformações no Papel do Estado: O Brasil em perspectiva comparada”, in O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 1/ Organizadores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro. – Brasília: MP, SEGES, 2002. Disponível no site: http://federativo.bndes.gov.br/bf_bancos/estudos/e0002028.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

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BLOCO II – AS FORMAS DE ATUAÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO ECONÔMICO

Introdução

No Bloco I, discutimos como as Constituições definem a “ordem econômica” em cada sociedade, determi-nando o papel que o Estado e a iniciativa privada terão em atividades que vão da exploração de petróleo até o ensino. Algumas mensagens, idéias-chave e questões em aberto foram se cristalizando ao longo das discussões, dentre as quais podemos destacar as seguintes:

• Primeiro, percebemos que, embora a “ordem social e econômica” só passe a constar na pauta constitucional a partir das Cartas do México de 1917 e de Weimar de 1919, toda constituição reflete decisões econômicas, ainda que não contenha um capítulo explícito sobre “ordem econômica”;

• Segundo, O mercado possui uma forma jurídica, que, em um “Estado liberal”, está associada basicamente à positivação de direitos que garantem uma esfera de não-intervenção do Estado. O papel do Estado é basicamen-te o de cumprir e fazer cumprir as regras que protegem a autonomia individual (propriedade, liberdade etc.). Contudo, com a mudança da concepção acerca do papel do Estado, ligada ao que se convencionou chamar de “Estado de Bem-Estar Social”, muda também a “pauta constitucional”.

• Terceiro, essa mudança de conteúdo das constituições – com a inserção explícita de normas relativas a direitos so-ciais, culturais e econômicos – eventualmente traz consigo uma mudança também da função das constituições. Ao lado das “constituições-garantia”, que determinam apenas os quadros básicos de exercício do poder na sociedade, começam a surgir “constituições dirigentes”, assim chamadas pela pretensão – expressa em suas normas – de conduzir a transfor-mação da sociedade em uma determinada direção escolhida pelo constituinte.

• Quarto, as disputas e problemas ligados à regulação constitucional da economia têm como pano de fundo comum a distribuição de papéis a diferentes atores – Estado, mercado e terceiro setor. Dessa forma, cada constituição pode ser entendida como um conjunto de decisões relativas a esse pano de fundo.

Agora, é hora de analisar em detalhes quais foram afinal as decisões econômicas que estão expressa ou impli-citamente consagradas no texto constitucional. Neste bloco, vamos nos concentrar especificamente na explora-ção das formas de atuação do Estado no processo econômico previstas na atual Constituição – ou seja, já levando em conta a distância da intenção original de 1988 da criada com as reformas constitucionais da década de 90.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

17 Ob. Cit., p. 801.

AULAS 5, 6 E 7

O Estado Regulador

Nota ao Aluno

Como se viu nas aulas anteriores, o Direito Constitucional contemporâneo extrapolou a clássi-ca definição de que a constituição cuidava simplesmente da estruturação do Estado e da proteção aos direitos fundamentais. Dentro dessa nova perspectiva, viu-se que o texto constitucional pode ser um importante instrumento de orientação da política econômica a ser seguida pelos governos.

Pode, até mesmo, servir de instrumento para a transição para um modo de produção distinto do até então adotado, como aconteceu de forma explícita com a Constituição portuguesa de 1976.

Reconhecendo que a Constituição de 1988 abraça o modelo capitalista de produção, nas palavras de José Afonso da Silva, “a participação do Estado na economia será uma ne-cessidade, enquanto, no sistema capitalista, se busque condicionar a ordem econômica ao cumprimento de seu fim de assegurar existência digna a todos, conforme ditames da justiça social e por imperativo de segurança nacional”.17

No caso da Constituição de 1988, esse novo papel da Lei Maior foi bastante ressaltado, tendo em vista a amplitude da Carta Constitucional. Política econômica e reforma consti-tucional andaram de braços dados a partir de 1988. Não foi por outro motivo que a aula passada foi dedicada ao estudo das alterações do texto constitucional necessárias à acomo-dação das transformações trazidas pelos projetos econômicos aprovados nas urnas.

Nesse contexto, é importante compreender o papel desempenhado pelo Estado brasilei-ro. Com efeito, sua maior ou menor participação no processo econômico leva a resultados absolutamente distintos. Mas, embora essa seja uma noção instintiva, quando se fala em maior ou menor participação estatal na vida econômica, é preciso entender as implicações jurídicas de cada forma de atuação do Estado no processo econômico.

Como, afinal, o Estado atua no processo econômico?De acordo com a Constituição, o Estado atua basicamente no processo econômico por

dois meios distintos, quais sejam: (i) por meio da regulação; ou (ii) por meio da participação direta na atividade econômica.

As próximas três aulas vão tratar da atuação estatal no processo econômico por meio da regulação.

O objetivo destas aulas é, além da apresentação dos limites constitucionais ao poder regu-lador do Estado, discutir o papel das chamadas “Agências Reguladoras” e comparar o papel delas no direito brasileiro com o papel das mesmas no direito norte-americano, sua fonte de inspiração. Com isso, a idéia é mostrar as adequações e problemas do modelo brasileiro.

Sem esvaziar o futuro curso de Direito Administrativo, serão apresentadas aos alunos as principais agências reguladoras e seus respectivos papéis na regulação dos diferentes setores da economia nas quais as mesmas atuam.

O caso final da aula se presta à discussão de dois temas importantes: (i) o papel do Banco Central do Brasil na regulação do sistema financeiro nacional; e (ii) a importância ou não da autonomia daquele, bem como a conseqüência prática de tal autonomia para o processo econômico no país.

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Casos

Caso I 18

A Lei Estadual nº 10.931/1997 criou a Agência Estadual de Regulação dos Servi-ços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS. Através da Lei Estadual nº. 11.292/1998, foram procedidas alterações na redação dos artigos 3º, 4º, 6º, 7º, 8º, 10, 12, 13, 14 e 15 da Lei Estadual nº. 10.931/1997. Os artigos 7º e 8º da Lei Estadual nº. 10.931/1997 passaram a vigorar com a seguinte redação:

Art. 7º - O Conselheiro [da Agência] terá mandato de 04 (quatro) anos, será nomeado e empossado somente após aprovação de seu nome pela Assembléia Legislativa, devendo satisfazer, simultaneamente as seguintes condições:I - ser brasileiro;II - ser maior de idade;III - ter habilitação profissional de nível superior;IV - ter reputação ilibada e idoneidade moral;V - possuir mais de cinco (05) anos no exercício de função ou atividade profissional relevante para os fins da AGERGS.Art. 8º - O Conselheiro só poderá ser destituído, no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa.

O governador do Estado do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade com base nos artigos 2º, 37, II in fine, e 84, XXV, da Constituição Federal.

Argumentou o governador que, por força do art. 37, II, da CF, somente existem duas formas de se prover o cargo público (além da exceção prevista no art. 37, IX): por con-curso ou por nomeação para cargo em comissão. Desta forma, o artigo 8º da Lei Estadual nº 10.931/1997 ao condicionar a exoneração dos Conselheiros da AGERGS à decisão da Assembléia Legislativa torna sem efeito a livre exonerabilidade dos ocupantes de cargo de provimento em comissão pelo chefe do Poder Executivo, prevista na parte final do inciso II, do artigo 37, da Constituição Federal.

Além disso, o artigo 7º da referida Lei Estadual submete a nomeação e posse dos conse-lheiros à prévia aprovação da Assembléia, o que, em tese, agrediria o art. 84, XXV, da Cons-tituição Federal, aplicável ao Executivo estadual por força do artigo 25 da Constituição Federal. Da mesma forma, este dispositivo seria contrário às prerrogativas do Executivo, ao livre provimento e à livre exonerabilidade de pessoas em cargos em comissão e à separação dos poderes.

O controle sobre a seleção dos membros das agências reguladoras é um importante ponto para a definição da autonomia das mesmas. No caso narrado, a lei enfrentada pelo governador assegura a imparcialidade dos gestores da AGERSGS? E se a mesma for derru-bada? Como ministro do STF, indique como você decidiria o caso.

Caso II

Em agosto de 2004, em meio a denúncias de irregularidades supostamente cometidas pelo presidente do Banco Central do Brasil, o presidente da República editou a Medida Provisória nº. 207, que alterou disposições das Leis nºs. 10.683, de 28 de maio de 2003, e 9.650, de 27 de maio de 1998.

De acordo com o art. 2º da citada medida provisória, o cargo de presidente do Banco Central do Brasil foi transformado em cargo de ministro de Estado, in verbis:

18 Caso extraído da Ação

Direta De Inconstitucionali-

dade 1949-0, Relator: Ministro

Sepúlveda Pertence.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Art. 2º. O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado emcargo de Ministro de Estado.

De acordo com a Exposição de Motivos nº. 102/2001, do Ministério da Fazenda, tal alteração teria os se-guintes fundamentos:

“2. O Presidente do Banco Central do Brasil, por imperativo das atribuições próprias do cargo, toma decisões de elevada complexidade, alterando práticas de mercado e situações jurídicas, em virtude da gestão das políticas macroeconômicas do País. Essa decisões são dotadas de grande repercussão na ordem econômica.“““3. A relevância das matérias que integram a pauta de decisões do Presidente do Banco Central do Brasil, cujas atribuições compreendem, dentre outras medidas de notória complexidade, a formulação da política monetária do país e a intervenção no sistema financeiro nacional, na forma da legislação de regência, sugere a necessidade de conferir-lhe a condição de Ministro de Estado”

Em que pese à explicação apresentada pelo governo, vários partidos de oposição protestaram contra a me-dida, afirmando que a atuação do presidente da República era casuística e servia simplesmente para proteger opresidente do Banco Central, pois, a partir do novo status, os inquéritos criminais que investigassem o titular docargo passariam a correr no Supremo Tribunal Federal.

Seria a medida provisória adotada pelo presidente da República constitucional? Que argumentos constitu-cionais você poderia utilizar para sustentar a tese da oposição? E do governo?

Conceitos

Poder Regulamentar; Regulação Setorial; Agências Reguladoras; Independência das Agências Reguladoras; Autar-quia; Limites ao Poder Regulamentar; Banco Central; Autonomia do Banco Central; Sistema Financeiro Nacional.

Bibliografia

Obrigatória:• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed., 2005, pp. 799 – 811.• Luís Roberto Barroso. “Constituição, Ordem Econômica e Agências Reguladoras”, in Revista Eletrônica de

Direito Administrativo Econômico, n1, fev/mar/abr 2005. Disponível no site: http://www.direitodoestado.com.br.

Complementar:• Alexandre dos Santos Aragão. Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2004.• Maria Garcia. “As Agências Reguladoras e a Reforma do Estado”, in Revista de Direito Constitucional e In-

ternacional – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. V.10, n.40, jul/set 2002.• Gustavo Binenbojm. “Agências Reguladoras Independentes e Democracia no Brasil”, in Revista Eletrônica

de Direito Administrativo Econômico, n3, ago/set/out 2005. Disponível no site: http://www.direitodoestado.com.br.

• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Pp.92-110 e 277-311.

Bibliografia

Obrigatória:• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed., 2005, pp. 799 – 811.• Luís Roberto Barroso. “Constituição, Ordem Econômica e Agências Reguladoras”, in Revista Eletrônica

de Direito Administrativo Econômico, n1, fev/mar/abr 2005. Disponível no site: http://www.direitodoesta-do.com.br.

• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito Público, n. 91, p. 76-86, maio 1989 (trecho selecionado)

Complementar:• Alexandre dos Santos Aragão. Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2004.• Maria Garcia. “As Agências Reguladoras e a Reforma do Estado”, in Revista de Direito Constitucional

e Internacional – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. V.10, n.40, jul/set 2002.• Gustavo Binenbojm. “Agências Reguladoras Independentes e Democracia no Brasil”, in Revista Eletrô-

nica de Direito Administrativo Econômico, n3, ago/set/out 2005. Disponível no site: http://www.direitodo-estado.com.br.

• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Pp.92-110 e 277-311.

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FGV DIREITO RIO 28

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

19 Caso extraído do Mandado

de Segurança 23.875-5 (Dis-

trito Federal), Relator: Ministro

Carlos Velloso.

AULAS 8 E 9

O Estado Empresário

Nota ao Aluno

Este bloco, de duas aulas, é dedicado a dois temas: (i) ao estudo da forma de atuação do Estado no processo econômico por meio da exploração direta da atividade econômica; e (ii) ao estudo da atuação do Estado como prestador de serviços públicos. A idéia aqui é fazer com que o aluno compreenda que o Estado além de mero regulador pode ser também partícipe da ativi-dade econômica. E mais: que a estrutura constitucional vai determinar como isso irá ocorrer.

Nesta aula, você deve procurar compreender a importância da atuação do Estado em determinadas áreas da economia e a diferença que isto pode fazer no seu dia a dia. Veja, por exemplo, o Banco do Brasil e a Petrobrás.

No campo da exploração direta da atividade econômica, outro tema a ser aprofundado está no fato desta ser regida pelo princípio da livre iniciativa, o que faz com que a posição das empre-sas estatais não deva ser de supremacia em relação aos demais atores participantes do mercado.

Além disso, a atuação direta do Estado como agente econômico não é uma opção a ser adotada livremente, ao arbítrio do Poder Público. Só é constitucionalmente admissível dentro de certas condições. Conforme determina o art. 173 da Constituição, “a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Mas quando é que isso vai ocorrer? Quem afinal decide se é relevante ou não?

Uma questão importante diz respeito aos instrumentos por meio dos quais o Estado pode realizar referida exploração direta, ou seja, as empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades estatais e paraestatais. Como se criam, como se organizam e se extinguem essas instituições jurídicas, necessárias para a exploração estatal de atividade econômica?

Quanto à prestação dos serviços públicos a abordagem do tema é diversa. Com efeito, esta será sempre submetida a um regime de direito público, justamente para resguardar o interesse público envolvido. No entanto, é importante perceber que embora a titularidade do serviço público seja sempre estatal, nem sempre a sua prestação ocorre diretamente por meio de uma de suas empresas.

De fato, o art. 175 da Constituição determina que “impõe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Portanto, outra questão importante que tangencia os temas acima é o da concessão dos serviços públicos.

Você deverá encerrar este bloco de aulas com noções do que representa uma concessão, quais suas principais características, normas organizadoras e, especialmente, como se dá a rela-ção das empresas concessionárias com as agências reguladoras, estudadas nas aulas anteriores.

Por fim, o último tema que não pode faltar é o dos monopólios estatais. Procure pensar nos prós e contras das atividades monopolistas e entender o tratamento constitucional do tema.

Casos

Caso I 19

Em 1997, o Tribunal de Contas da União determinou ao Banco do Brasil – Distribui-dora de Títulos e Valores Mobiliários S.A., sob pena de responsabilidade solidária, a instau-ração de “Tomada de Contas Especial” do Sr. Ronaldo Teixeira Guimarães, funcionário do

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FGV DIREITO RIO 29

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

banco, pelo prejuízo causado em decorrência de operações na BOVESPA sem atentar para normas internas da instituição que regulam o assunto.

A empresa Banco do Brasil – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. impe-trou o mandado de segurança, sustentando:

(i) que há incompatibilidade do instituto da “Tomada de Contas Especial” com o regime jurídico da CLT (regime ao qual estão submetidos os empregados do banco), porque a referida empresa é sociedade anônima regida pelas normas de direito privado, não tendo seus empregados dever de prestar contas ao TCU;(ii) que há necessidade de caracterização do dano ao erário para a instauração da “Tomada de Contas Especial” (dano ao Banco do Brasil não significa dano ao erário, o prejuízo seria aos acionistas);(iii) que a participação majoritária do Estado na composição do capital não trans-muda seus bens em públicos, de modo que os bens e valores questionados não são os da Administração Pública, mas os geridos considerando-se a atividade bancária por depósitos de terceiros e administrados pelo banco comercialmente.

A empresa Banco do Brasil – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. pos-tulou a concessão da segurança para que fique desobrigada, definitivamente, a promover a instauração de tomada de contas especial contra seus funcionários, em qualquer caso.

O presidente do TCU sustentou, inicialmente, o descabimento de mandado de segu-rança contra a lei em tese, já que a impetrante estaria questionando a obrigação disciplinada pela lei nº. 8.443/1992, e a inexistência de direito líquido e certo, uma vez que não há menção ao preceito que sustente a pretensão requerida. No mérito, afirmou que:

(i) estão incluídas na previsão dos artigos 70 e 71, II, da Constituição Federal, as entidades da Administração Indireta, e a atuação do Tribunal de Contas se estende a situações que onerem indiretamente o erário;(ii) é aplicável a tomada de contas especial dado que a União, como acionista controlador, assume a responsabilidade decorrente dos atos praticados por di-rigentes ou empregados de sociedade de economia mista;(iii) as sociedades de economia mista estão sujeitas à fiscalização estatal, sujei-tando-se a um regime jurídico híbrido;(iv) há previsão legal expressa para a tomada de contas especial.

Como Ministro do Supremo Tribunal Federal, como você decidiria este caso?

Caso II 20

A Lei nº. 9.472, de 16 de julho de 1997 (Lei Geral de Telecomunicações – “LGT”), que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº. 08/95, prevê:

Art. 189. Para a reestruturação das empresas enumeradas no art. 187, fica o Poder Executivo autorizado a adotar as seguintes medidas:I - cisão, fusão e incorporação;II - dissolução de sociedade ou desativação parcial de seus empreendimen-tos;III - redução de capital social. 20 Caso extraído da Ação

Direta De Inconstitucionali-

dade 1840-0, Relator: Ministro

Celso De Mello.

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30FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Por sua vez, o Decreto nº. 2.546 de 14 de abril de 1998, que aprova o modelo de reestruturação e desestati-zação das empresas federais de telecomunicações supervisionadas pelo Ministério das Comunicações, estabeleceem seu anexo:

Art. 3º. A reestruturação societária das empresas federais de telecomunicações dar-se-á mediantecisão parcial da TELEBRÀS - Telecomunicações Brasileiras S.A., que fica autorizada a constituirdoze empresas que a sucederão como controladora.

O Partido dos Trabalhadores apresentou, em 09 de junho de 1998, ação direta de inconstitucionalidade compedido de medida liminar, contra o presidente da República e o ministro das Comunicações, em razão de oartigo 189 da LGT e o artigo 3º do Decreto nº. 2.546/1998 terem violado, em tese, o art. 37, XIX, da Consti-tuição Federal.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresapública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste últi-mo caso, definir as áreas de sua atuação.

A fundamentação apresentada foi a de que a Lei nº. 6.404/1976 (Lei das SA) prevê que a cisão pode ser feitapor meio (i) de transferência de parcela do patrimônio para uma ou mais sociedades já existentes, ou (ii) pelatransferência de parcelas do patrimônio para uma ou mais sociedades constituídas para esse fim. Além disso,no caso de sociedades anônimas tipicamente estatais, deve-se observar o art. 37, XIX da Constituição que deter-mina que lei específica é que constituirá a nova companhia, ou seja, deve preexistir um ato do Poder Legislativoelaborado especialmente para criar a companhia.

A inconstitucionalidade, portanto, ocorreria em razão da inobservância dos requisitos mencionados, nãosendo possível a criação de empresas por dispositivo de lei geral (LGT) e, ainda que se entenda que é exigidasomente autorização legislativa, pois o artigo 189 da LGT somente faculta a criação de novas empresas, mas nãoautoriza expressamente tal constituição.

Conceitos:

Exploração direta da atividade econômica; empresa pública; sociedade de economia mista; prestação de ser-viços públicos; concessão de serviços públicos; poder concedente; parceria público-privada; criação de empresasestatais; monopólios estatais.

Bibliografia:

Obrigatória:• Celso Antonio Bandeira de Melo. “Sociedades Mistas, Empresas Públicas e o Regime de Direito Público”.

Revista Diálogo Jurídico, n.13, abril/maio de 2002. Disponível no site http://www.direitopublico.com.br/pdf_13/DIALOGO-JURIDICO-13-ABRIL-MAIO-2002-CELSO-ANTONIO-BANDEIRA-MELLO.pdf

Complementar:• Alberto Venâncio Filho. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Rio de Janeiro: FGV,

1968.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

BLOCO III – PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA

Introdução

No Bloco II, exploramos as diferentes formas de organização jurídica da atuação do Estado no processo econômico - mais especificamente, analisamos quais destas formas in-tegram hoje o repertório possível de ação estatal nesse domínio. Esse conjunto de possibi-lidades não se esgota nas opções feitas pelo constituinte de 1988. Inclui também aquelas mudanças e acréscimos feitos pelo poder constituinte derivado nas reformas constitucionais feitas desde a promulgação da Constituição e na revisão de 1993.

Esse repertório de formas jurídicas de atuação à disposição do Estado, porém, não pode ser utilizado para promover qualquer finalidade. Não é uma “carta branca”. Se, por um lado, a Constituição não retirou dos poderes eleitos (legislativo e executivo) a margem de manobra para definirem as políticas públicas mais convenientes para cada época, por outro, vinculou essas políticas públicas a certos fins específicos e as condicionou à obediência de certos parâmetros. Tais “fins” e “parâmetros” que devem nortear a ação estatal estão conti-dos principalmente no artigo 170 da Constituição.

Como qualquer norma jurídica, estes princípios constitucionais não podem ser inter-pretados como meros “conselhos” ao legislador infraconstitucional. Vinculam a atuação dos poderes eleitos (além, é claro, das decisões judiciais) e, portanto, segui-los não é uma questão de prudência, mas de obediência às decisões que constituem a ata do pacto social firmada em 1988. Mas qual o conteúdo normativo que podemos extrair dos incisos do artigo 170? Construir argumentos e maneiras de viabilizar a sua eficácia em cada caso - sem ultrapassar o limite da liberdade do legislador e do administrador – tem sido um desafio permanente para a doutrina e para a jurisprudência brasileira.

Nesse sentido, o presente bloco tem por objetivo analisar as possibilidades de argumen-tação jurídica e modalidades de eficácia21 baseada nos princípios constitucionais da Ordem Econômica (art. 170 e seguintes). Será discutido o conteúdo jurídico passível de ser cons-truído a partir desses dispositivos. Utilizando alguns exemplos de casos judiciais colhidos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tentaremos construir em sala de aula as pontes entre a Ordem Econômica e a “dupla dimensão” do constitucionalismo clássico (organização do poder e proteção dos direitos fundamentais).

Antes de começarmos o bloco, entretanto, duas observações precisam ser feitas.Primeiro, lembre-se de que há dispositivos ligados à ordem econômica em outros títulos

além daquele dedicado especificamente ao tema. Em muitos casos, aliás, normas como aquelas do artigo 170 só podem ser integralmente compreendidas e adequadamente apli-cadas se construirmos conexões de sentido com outros dispositivos constitucionais. Como compreender a exigência de conciliação entre a “livre iniciativa” e “valorização do trabalho”, por exemplo, sem analisar os direitos sociais expressos no art. 7º e seguintes da Constitui-ção? Como observa Raul Machado Horta:

“A Ordem Econômica e Financeira não é ilha normativa apartada da Cons-tituição. É fragmento da Constituição, uma parte do todo constitucional e nele se integra. A interpretação, a aplicação e a execução dos preceitos que a compõem reclamam o ajustamento permanente das regras da Ordem Econômica e Finan-ceira às disposições do texto constitucional que se espraiam nas outras partes da Constituição.” 22

21Cf., no geral, Ana Paula

de Barcellos, A Eficácia dos

Princípios Constitucionais,

passim.

22 Direito Constitucional, 4ª

ed.., p.265. No mesmo sentido,

cf. Eros Roberto Grau, A Ordem

Econômica na Constituição de

1988, 10ª ed., p.175.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Este tipo de ligação será exemplificado em praticamente todos os textos de leitura obri-gatória selecionados para o bloco.23 Na preparação para as discussões, procure montar um “mapa” das relações entre as normas constitucionais e construir as suas próprias e inovado-ras conexões sistemáticas.

Segundo, nos casos e nas discussões que compõem este bloco e os blocos posteriores do curso, você encontrará muitos temas e instrumentos analíticos já estudados nas duas pri-meiras disciplinas de Direito Constitucional. Assim, ao se preparar para as aulas e provas, lembre-se de tentar aplicar aos problemas de ordem econômica e social na Constituição, aqueles conceitos que você já conhece de períodos anteriores, como, por exemplo:

• Aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais;• Limites materiais ao poder de reforma;• Competências legislativas e administrativas da União, dos Estados e dos Municípios;• Separação de poderes;• Princípios de interpretação constitucional;• Ponderação, proporcionalidade e razoabilidade.

O manejo adequado desses instrumentos não apenas agregará valores às discussões em sala de aula, como também será indispensável para o enfrentamento dos problemas que você encontrará em sua vida profissional. Aproveite a oportunidade para exercitar seus conhecimentos.

23Cf., por exemplo, Eros Rob-

erto Grau, op. cit., pp.173-174.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

24 J.J. Gomes Canotilho, Direito

Constitucional e Teoria da Con-

stituição, 1998, pp.1091-92.

25 Idem, p.1092.

26 Sobre os princípios como

normas que estabelecem

estados de coisas a serem at-

ingidos, tornando obrigatórias

as condutas necessárias à sua

consecução, cf. Humberto

Ávila, Teoria dos Princípios.

AULAS 10 E 11

Livre Iniciativa, Valorização do Trabalho Humano e Livre Concorrência

Nota ao Aluno

A doutrina reconhece que a Constituição de 1988 fez a opção por um sistema de produ-ção capitalista. Como já discutimos em aulas anteriores, essa decisão política fundamental está expressa de forma mais nítida no artigo 170 e seus incisos e no artigo 174. Contudo, “capitalismo” é um conceito econômico. No primeiro bloco do curso, discutimos qual a forma jurídica que essa opção econômica poderia ter, isto é, o que a Constituição deve con-ter para consagrar e preservar a decisão constituinte por um modelo econômico ou outro. Agora, porém, vamos inverter o sentido da discussão: qual pode ser o conteúdo jurídico dos princípios da ordem constitucional econômica? Em outras palavras: quais os efeitos possíveis da aplicação do artigo 170 e dos seus incisos?

Nas próximas aulas, enfocaremos o sentido e o alcance do caput do artigo 170, que consagra – de forma aparentemente contraditória –o conceito de valorização tanto do tra-balho humano, quanto da livre iniciativa, com vistas à sua aplicação em casos concretos. Inicialmente, é possível dizer que os dispositivos constitucionais ligados à ordem econô-mica cumprem uma dupla função. Primeiro, funcionando como princípios constitucio-nalmente conformadores, explicitam as valorações políticas fundamentais do constituinte, concretizando os ideais e concepções políticas que prevaleceram na decisão constitucional originária.24 A positivação constitucional da livre iniciativa e da livre concorrência como fundamentos da ordem econômica, em verdade constituem a própria ordem econômi-ca. Dão-lhe a forma jurídica correspondente a essas opções fundamentais, excluindo, por exemplo, a propriedade coletiva de todos os meios de produção.

É dentro desse quadro jurídico-institucional que o Estado deve atuar. Sua atuação, porém, não é livre - e aqui entra o segundo papel dos princípios da ordem econômica na constituição, particularmente relevante para estas aulas. Funcionando como princípios constitucionais impositivos, submetem os órgãos do Estado (especialmente o legislador) à realização de certas tarefas, com vistas à consecução de certos fins.25

Na verdade, parâmetros como o da valorização do trabalho e da livre concorrência (inci-so IV), por exemplo, não investem os indivíduos e organizações que operam no país de uma situação jurídica desfrutável apenas como liberdade negativa (direito a abstenções do Esta-do), embora certamente incluam também essa dimensão. De fato, se a livre concorrência é um dos fundamentos da ordem econômica, nos termos do art. 170, então o Estado não so-mente deve se abster de retirar completamente do mercado a liberdade de fixação de preços, como também deve adotar medidas positivas – inclusive contra outros particulares – com o intuito de promover o estado de coisas desejado pelo princípio da livre concorrência. 26

Contudo, esses fins muitas vezes podem colidir não apenas com outros fins e tarefas ligados à ordem econômica, como também com outros fins constitucionalmente relevantes – por exemplo, a universalização da educação, a proteção da saúde da população, a valo-rização da cultura nacional pela indústria do entretenimento etc. Os casos selecionados para as próximas duas aulas tratam de alguns desses conflitos. Assim, na preparação para a discussão em sala de aula, procure prestar atenção no possível entrelaçamento entre os diversos princípios constitucionais diante em cada caso. Por exemplo, ao discutirmos livre concorrência e livre iniciativa, muitas vezes é indispensável analisar também o impacto de possíveis decisões judiciais sobre o bem-estar do consumidor, o direito ao trabalho, o direito

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

à saúde etc. Como podemos nos posicionar de modo a resolver conflitos normativos do gênero sem esvaziar as aspirações constitucionais para a ordem econômica e social no Brasil, preservando assim a unidade da Constituição?

Casos

Caso I - “Meia Entrada” para Estudantes?

Hoje em dia, todo estudante secundarista do Rio de Janeiro já sabe de antemão de que, apre-sentando a documentação devida, tem direito a pagar apenas metade do valor do ingresso nos ci-nemas, teatros e casas de espetáculos em geral – a famosa “meia-entrada”. Esse direito, porém, inde-pendentemente do seu valor social ou do bem que promove, não tem bases jurídicas unânimes.

Inicialmente criada por lei federal em nos anos 60, a meia-entrada foi revogada pelo presidente Figueiredo no início da década de 80, sob o argumento básico de que, dada a ausência de qualquer tipo de controle ou fiscalização na emissão das carteiras de estudante, não havia como garantir que somente os estudantes se beneficiariam da norma. 28

Já na década de 90, na vigência da atual Constituição, diversas leis estaduais e municipais vol-taram a garantir o direito à meia-entrada. A aceitação dessas medidas entre o empresariado afetado pela concessão do benefício, a comunidade jurídica e os próprios estudantes está longe de ser pací-fica, ainda que cada grupo apresente motivos diferentes para criticar a legislação existente.

Em São Paulo, o deputado Jamil Murad propôs em 1991 o Projeto de Lei de nº.111, que veio a ser aprovado pela Assembléia Legislativa e sancionado pelo Governador do Estado no ano seguin-te, dando origem à Lei nº.7.844/1992. Em seus primeiros dispositivos, a Lei dispunha:

“Art. 1° Fica assegurado aos estudantes regularmente matriculados em estabe-lecimentos de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus, existentes no Estado de São Paulo, o pagamento de meia-entrada do valor efetivamente cobrado para o ingresso em casas de diversão, de espetáculos teatrais, musicais e circenses, em ca-sas de exibição cinematográfica, praças esportivas e similares das áreas de esporte, cultura e lazer do Estado de São Paulo, na conformidade da presente Lei.

§1° Para efeito do cumprimento desta Lei, consideram-se casas de diversão de qualquer natureza, como previsto no caput deste artigo, os locais que, por suas atividades, propiciem lazer e entretenimento”.

Em 02 de fevereiro de 1999, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) de nú-mero 1950-3, alegando que a Lei Estadual nº. 7.844/1992 violava a Constituição Federal. Em síntese, a CNC afirmava que a norma em questão “implica indevida intervenção do Estado de São Paulo no domínio econômico, mercê de planejamento vinculante e efetiva fixação de preços privados, em franca agressão aos artigos 170 e 174 da Constituição Federal”.

Com base no caso acima e após a leitura da petição inicial da ADI 1950, distribuída pelo professor, reflita:

• Como você votaria se fosse o ministro do Supremo designado para relatar a ADIn 1950? Com base em que fundamentos? Procure se posicionar sobre:

• A legitimação ativa da CNC para propor a ação;• A possibilidade e a necessidade de concessão da medida cautelar solicitada pela autora;• Os princípios e os conflitos constitucionais em jogo;• A aplicabilidade desses princípios;• As regras constitucionais de competência aplicáveis à questão;

28 Informações extraídas da

reportagem “COMO A MEIA-

ENTRADA SE TRANSFORMOU

NUM NEGÓCIO LUCRATIVO E

ALTEROU A RELAÇÃO ENTRE

ESTUDANTES E SUAS ENTI-

DADES NACIONAIS”, publicada

na revista Caros Amigos, n.50.

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FGV DIREITO RIO 35

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

• A eventual ocorrência de “planejamento vinculante” e “fixação de preços privados” nesse caso, conforme alegado pela Autora, bem como as condições de admissibilidade de cada um desses dois tipos de atuação em face da Constituição de 1988.

• Caso você considere a Lei estadual inconstitucional, procure imaginar que alterações em sua redação a tornariam constitucional.

• Caso você considere a Lei estadual constitucional, procure imaginar que alterações em sua redação a tor-nariam inconstitucional.

O Caso II – Restrição legislativa à abertura de farmáciasEm 13 de junho de 1991, a Câmara Municipal da cidade de São Paulo promulgou a Lei nº.10.991. Em seu

art. 1o, esta dispunha o seguinte:

“Art. 1° A Instalação de estabelecimentos de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêu-ticos e correlatos, em cidades com mais de 30.000 habitantes, deverá respeitar a distância mínima de um raio de 200 m (duzentos metros) com relação a estabelecimentos congêneres já instalados.”

Na justificativa do projeto de lei que deu origem à norma em questão, o Prefeito de São Paulo argumentava que a medida seria necessária para promover o adequado zoneamento urbano no âmbito do Município, nos termos do artigo 182 da Constituição Federal.

Sem nenhuma concorrente instalada por perto por ocasião da entrada em vigor da Lei, os donos da DRO-GARIA SÃO LUCAS já começavam a comemorar quando, contrariando a Lei Municipal n.10.991/1991, foi inaugurada a DROGARIA SÃO PAULO a menos de 25 metros de distância da DROGARIA SÃO LUCAS.

Imediatamente, a DROGARIA SÃO LUCAS ingressou na Justiça pedindo o fechamento do estabelecimen-to da DROGARIA SÃO PAULO. O argumento era simples: a Lei Municipal regulando o uso do solo urbano em São Paulo estava sendo frontalmente violada. O juiz de primeira instância acolheu o pedido e determinou o fechamento da DROGARIA SÃO PAULO.

Inconformada, a DROGARIA SÃO PAULO recorreu da decisão junto ao Tribunal de Justiça. Sofreu, porém, mais uma derrota: a Segunda Câmara Cível do TJ-SP confirmou a decisão de 1a instância, nos seguintes termos:

“Não há inconstitucionalidade na Lei Municipal mencionada. Ela não estabelece reserva de mercado ou afronta ao artigo 170 da Constituição Federal. Simplesmente disciplina o uso do solo, distribuindo as farmácias de forma tal que atenda todas as camadas da população, evitando a concentração delas em determinado local, com evidentes prejuízos ao povo, visto como um todo. E assim agindo o Município trata de questão referente ao seu peculiar interesse, devidamente auto-rizado pela Carta da República. Nem existe afronta ao princípio da isonomia pois trata igualmente todas as pessoas jurídicas que se dedicam ao ramo da farmácia e drogaria”.

Em uma última tentativa de reverter a decisão, a DROGARIA SÃO PAULO ajuizou Recurso Extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal. Segundo a autora do recurso, o Supremo teria competência para avaliar o caso, na medida em que a Lei nº. 10.991/1991 violava diversos princípios da ordem econômica, especialmente a liberdade de iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.

Em parecer sobre o caso, o Ministério Público opinou pelo não provimento do recurso da DROGARIA SÃO PAU-LO, concluindo não ter havido qualquer afronta ao princípio constitucional do art. 170. Disse o procurador-geral:

“Quando a Carta Republicana atual dispõe, no caput do seu artigo 170, que ‘A ordem econômica, funda-da na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)’ não está a impedir, de forma alguma, que os Estados e Municípios legislem sobre o tema, no intuito de atender as peculiaridades locais, o que é, a nosso ver, o caso dos autos.”

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36FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Após a análise dos fatos, dos textos e das decisões judiciais selecionadas para leitura, coloque-se no papel de ministrodo Supremo Tribunal encarregado de relatar o caso. Dê o seu voto, posicionando-se a respeito dos seguintes tópicos:

• A competência do Município de São Paulo para promulgar a Lei nº. 10.991/1991; caso considere ser o municípioincompetente para adotar a medida, indique de qual ente seria a competência, nos termos da Constituição;

• Os princípios e conflitos constitucionais em jogo;• A aplicabilidade e o peso desses princípios neste caso específico;• Se, no lugar de farmácias, a Lei municipal em questão fixasse uma distância mínima de 200 metros entre

postos de venda de combustíveis, a sua decisão seria diferente? Por quê?

ConceitosPrincípios e Regras; Princípios da Ordem Econômica; Livre Concorrência e Livre Iniciativa; Valorização do Traba-

lho Humano; Dirigismo Estatal versus Intervencionismo Estatal; Planejamento Estatal e Ordem Econômica.

Bibliografia

Caso IObrigatória• Luís Roberto Barroso, “Ordem Econômica e os Limites à atuação estatal no controle de preços”, in Temas

de Direito Constitucional, v.II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Versão eletrônica disponível no site: http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/DIALOGO-JURIDICO-14-JUNHO-AGOSTO-2002-LUIS-ROBERTO-BARROSO.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pgs. 193-214.• Petição Inicial da ADIn 1950-3

Complementar• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito Públi-

co, n. 91, p. 76-86, maio 1989.

Caso IIObrigatória• Luís Roberto Barroso, “Ordem Econômica e os Limites à atuação estatal no controle de preços”, in Temas

de Direito Constitucional, v.II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Versão eletrônica disponível no site: http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/DIALOGO-JURIDICO-14-JUNHO-AGOSTO-2002-LUIS-ROBERTO-BARROSO.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pgs. 193-214.• Trechos selecionados de decisões judiciais (v. tópico “Jurisprudência”)• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª ed. Tópico “Constituição Econômica

e Seus Princípios”, pp.766 a 775.

Jurisprudência selecionadaCaso IADI 1950-3

Caso IIADI 2.327-6RE 193.749-1RE 235.736-7

Obrigatória • Luís Roberto Barroso, “Ordem Econômica e os Limites à atuação estatal no controle de preços”, in

Temas de Direito Constitucional, v.II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Versão eletrônica disponível no site: http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/DIALOGO-JURIDICO-14-JUNHO-AGOSTO-2002-LUIS-RO-BERTO-BARROSO.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2006.

• Petição Inicial da ADIn 1950-3

Complementar• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito

Público, n. 91, p. 76-86, maio 1989.• Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pgs. 193-214.

Obrigatória• Recurso Extraordinário 193.749-1 (SP) (trechos selecionados)• Recurso Extraordinário 235.736-7 (MG) (trechos selecionados)• Petição Inicial da ADIn 2832 (trechos selecionados)• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª ed. Tópico “Constituição Econô-

mica e Seus Princípios”, pp.766 a 775.

Complementar• Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Congelamento de Preços – Tabelamentos Oficiais”, in Revista de Direito

Público, n. 91, p. 76-86, maio 1989.• Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pgs. 193-214.

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FGV DIREITO RIO 37

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

28 Gilberto Bercovici, “A Função

Social da Propriedade”, in Con-

stituição e Desenvolvimento

Econômico, p.117.

29 Raul Machado Horta, Direito

Constitucional, 4ª ed., p.252.

30 A Ordem Econômica na

Constituição de 1988, p.245.

AULAS 12 E 13

Função Social “das Propriedades” - Desapropriação no Campo e na Cidade

Nota ao Aluno

A propriedade sempre foi uma das questões mais controvertidas na sociedade brasileira – seja sob o aspecto jurídico, seja sob o aspecto econômico ou o aspecto político. Como observa Gilberto Bercovici, “o discurso jurídico sobre a propriedade é repleto de visões mani-queístas, pois trata de opções econômicas que tendem a ser converter em ideologias.”28 Dessas visões maniqueístas, a mais famosa – e infame – é a concepção liberal do instituto da pro-priedade como modelo paradigmático para os próprios direitos: absoluto, incondicionado e à disposição da vontade de seu titular.

Ao longo do século XX, porém, essa concepção liberal de propriedade – que muitas vezes era defendida como algo logicamente anterior ao ordenamento jurídico, como um “direito natural”- passou a ser progressivamente erodida. A propriedade continua existindo como um dado do direito positivo de muitos países, embora seja comum encontrar nas constituições, na legislação, na doutrina e na jurisprudência reflexos de uma preocupação com a dimensão social da propriedade. Não sendo mais um fim em si, a propriedade precisa preencher uma função, e cabe ao direito apontar os parâmetros para que isso possa acontecer.

Como apresentado em Teoria do Direito Constitucional, a idéia de que os direitos e o próprio Direito (e não apenas a propriedade) possuem uma dimensão social, e não mera-mente de proteção de expectativas individuais, foi colocada na pauta constitucional graças às Constituições do México (1917) e de Weimar (1919).29 O artigo 153 da Constituição de Weimar, aliás, consagrou de forma inédita a “função social da propriedade” por meio da fa-mosa assertiva: “a propriedade obriga”. Dizer isto é reconhecer que o direito de propriedade traz para o seu titular não apenas faculdades, imunidades e poderes, mas também deveres correlatos. Deveres que, na observação de Eros Roberto Grau, podem tanto ser positivos, quanto negativos:

“(...) o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem, e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposi-ção de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não pura-mente de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.” 30

Na verdade, continua o autor, o que se limita não é o direito de propriedade, mas sim a propriedade em si, pois qualquer direito só tem existência jurídica e só pode ser exercido dentro da maneira peculiar àquele ordenamento jurídico que lhe confere validade. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a vinculação da propriedade a certos aspectos do bem comum e do interesse social é um fato, um dado, tendo em vista a expressa previsão constitucional da “função social da propriedade” em dois dispositivos diferentes (arts. 5, XXIII e 170, III).

Contudo, na maioria dos casos, seria muito difícil aplicar diretamente esses dois dis-positivos a um caso concreto. Não porque eles não possuam eficácia jurídica própria, mas porque seria complicado definir o ponto adequado de equilíbrio entre a proteção à pro-priedade e o respeito à sua função social. O risco seria o de avançarmos demais no sentido oposto: depois de um exagero liberal-individualista, uma radicalização “socializante” que

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“funcionaliza” completamente a propriedade dos cidadãos, colocando-a como um mero instrumento a serviço de finalidades coletivas. Em síntese: seria muito difícil de ponderar adequadamente esses dois princípios em cada caso, o que implicaria sérios riscos para as liberdades individuais.

Para minimizar o problema, antevendo certas situações específicas, o constituinte já re-alizou essa ponderação, concretizando e detalhando o âmbito de incidência de cada princí-pio em alguns momentos. Nessas situações, o arbítrio do Poder Público tem menos espaço, pois as normas a serem aplicadas são construídas com hipóteses de incidência e conseqü-ências jurídicas mais bem definidas. Nos casos destas aulas, discutiremos duas situações em que isso ocorre: a desapropriação para fins de reforma agrária e a desapropriação para fins de implementação da política de urbanização. Mesmo assim, o princípio da “função social da propriedade” permanece como um importante vetor interpretativo dos dispositivos que o concretizam – dentro e fora da Constituição -, até porque podemos recorrer a ele sempre que as regras constitucionais específicas se mostrarem pouco abrangentes em relação à fina-lidade que procuramos promover.

Por fim, é importante destacar que a expressão “função social da propriedade” é enganosa, apesar da matriz dogmática comum ao seu uso em qualquer situação. Pois a Constituição estabelece uma sistemática diferente para cada tipo de propriedade: propriedade urbana, pro-priedade dos meios de produção, propriedade rural, pequena propriedade rural (art.5, XXVI), propriedade das terras indígenas, propriedade do subsolo e das jazidas e reservas minerais etc. Procure perceber essa multiplicidade de subsistemas constitucionais, identificando as suas eventuais especificidades, mantendo a idéia de “função social” como um denominador co-mum mínimo entre todas as “propriedades” reconhecidas na Constituição.

Na leitura dos textos e na discussão dos casos destas duas aulas, procure refletir sobre as seguintes questões:

• Existe diferença entre a “função social da propriedade” do art.5, XXIII e a do art.170, III?• Você consegue encontrar na Constituição todos os dispositivos que podem ser inter-

pretados como concretizações e estruturações do princípio da “função social da proprieda-de” (art.5, XXIII e art.170, III)?

• Quantas e quais são os tipos diferentes de “desapropriação” previstos na Constituição?• Seria possível desapropriar um imóvel com base apenas no art. 5, XXIII?• Existe diferença entre a “função social da propriedade” do art. 5, XXIII e a “função

social da propriedade” do art. 170? 31

• A desapropriação é a única forma de especificação constitucional da “função social da propriedade”? Procure identificar outros dispositivos que contribuam para estruturar esse princípio e, conseqüentemente, facilitar a sua aplicação.

Casos

Caso I – Invasões de propriedades “produtivas” e a “MP da Desa-propriação”

Nos termos da Constituição de 1988, cabe à União desapropriar imóveis rurais com o intuito de promover a reforma agrária (Capítulo III, título VII da Constituição Federal). Esse dispositivo foi regulamentado pela Lei no 8.629/1993, dispondo que:

Art. 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispo-sitivos constitucionais.

§ 1º Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de refor-

31 Eros Roberto Grau,

por exemplo, distingue

“propriedade dotada de

função individual” (artigo 5)

de “propriedade dotada de

função social” (artigo 170),

sendo esta última relativa

aos bens de produção. Para

o autor, a função social não

seria imputável à propriedade

individual, cabendo ao Estado

apenas limitar os abusos

cometidos no exercício do

direito pelo titular (A Ordem

Econômica na Constituição de

1988, 10ª ed., p.238)

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ma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, si-

multaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do

meio ambiente;III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos traba-

lhadores.§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os

graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.

§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.

§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das carac-terísticas próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.

§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho im-plica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.

§5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalha-dores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.

A União, porém, não vem cumprindo o seu dever constitucional – já devidamente

regulamentado – de forma a apaziguar os ânimos dos trabalhadores sem terra. Ao longo da década de 90, eles se organizaram e ganharam força no seio do Movimento dos Sem Terra (MST), que causou polêmica e reações apaixonadas na sociedade brasileira ao promover invasões de terra por conta própria.

Juridicamente, a invasão de terras pode ser enquadrada como “esbulho possessório”, crime previsto no art. 161, II do Código Penal. Mas existem algumas decisões em sentido contrário. Em 1997, por exemplo, o Superior Tribunal Justiça apreciou habeas corpus em que se discutia o enquadramento ou não das invasões promovidas pelo Movimento dos Sem-Terra como con-duta típicas relativas aos crimes de “esbulho possessório” e “formação de quadrilha”. Um dos pacientes do writ era José Rainha, um dos líderes do MST. Em seu voto, seguido pela maioria dos membros da 6ª Turma, o min. Luiz Vicente Cernicchiaro afirmou:

“É direito reclamar a implantação da Reforma Agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente. (...) Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania.” 32 32 HC 5574-SP – 6a Turma

– Rel. Min. Luiz Vicente Cernic-

chiaro (1997).

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No geral, essa linha de argumentação coincide com aquela adotada pelos defensores de uma postura mais tolerante para com as invasões: a greve está para os trabalhadores urbanos assim como as invasões estão para os trabalhadores rurais sem-terra. Segundo essa linha de raciocínio, trata-se do único instrumento de pressão que possuem sobre a União para acele-rar a implementação do programa constitucional relativo à propriedade rural. “São homens e mulheres do povo, sem dúvida impacientes, mas no cumprimento do seu legítimo direito de cobrar a agilização da efetiva mudança no campo, a reforma agrária”, asseverou o presi-dente da Comissão Pastoral da Terra, D. Tomás Balduíno. 33

Segundo dados da entidade, a média de ocupações anuais vinha caindo nos últimos anos do governo FHC. Em 1994, foram mais de 100 ocupações, subindo para 400 em 1995. Em 1997 e 1998, foi atingida a média recorde de 600 invasões por ano. Em 2000, porém, este número já tinha caído para 390, voltando a cair em 2001 (194 ocupações/ano) e 2002 (184 ocupações/ano) – de acordo com a Comissão Pastoral, uma prova de que os integrantes do MST estão mais dispostos ao diálogo e a colaboração o processo institucional de reforma agrária.

Em seu segundo mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso adotou algumas medidas com o intuito de coibir as invasões. A principal delas foi a Medida Provisória 2.027-38, editada em maio de 2000, alterando o art. 2 da Lei no 8.629/1993 e acrescen-tando o art. 2-A, nos seguintes termos:

"Art. 2° ...................................................................................§ 6° O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por

conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel.

§7° Na hipótese de reincidência da invasão, computar-se-á em dobro o prazo a que se refere o parágrafo anterior.

§8° A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a socie-dade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, cola-borar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos.

§9° Se, na hipótese do parágrafo anterior, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instru-mento similar.“

"Art.2°- A. Na hipótese de fraude ou simulação de esbulho ou invasão, por parte do proprietário ou legítimo possuidor do imóvel, para os fins dos §§ 6o e 7° do artigo anterior, o órgão executor do Programa Nacional de Reforma Agrária aplicará pena administrativa de cinqüenta mil a quinhentas mil UFIR e o cancelamento do cadastro do imóvel no Sistema Nacional de Cadastro Rural, sem prejuízo das demais sanções penais e civis cabíveis."

Em 2001, o Partido dos Trabalhadores (PT) ingressou junto ao Supremo Tribunal Fe-deral com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, afirmando que a referida medida provisória violava diversos dispositivos constitucionais.

Você é um ministro do Supremo Tribunal Federal, e precisa se posicionar sobre a ques-tão. Após analisar os argumentos apresentados pelo PT na petição inicial da ADIn 2213 e ler os votos editados dos ministros do Supremo, decida: a MP 2.027-38 é constitucional?

33 Citado na reportagem “MP

da Desapropriação deverá ser

mantida”, disponível no site

www.comciencia.br/reporta-

gens/agraria/agr04.shtml.

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Caso II – Função Social da Propriedade Urbana, Estatuto da Cida-de e o Plano Diretor do Município 34

Em 10 de fevereiro de 2006, o Prefeito do Município de Salto (SP) decretou a expropria-ção do terreno situado na Rua da Fartura – uma área de expansão urbana. O proprietário do imóvel era conhecido na região por levar uma vida confortável graças ao seu tino para aquisições imobiliárias: comprava grandes terrenos em áreas ainda pouco valorizadas e habi-tadas, para depois vendê-las quando a cidade começasse a crescer naquela direção.

No decreto expropriatório, o prefeito justificava a medida afirmando que, com a pro-priedade do terreno, o município iniciaria a a “construção de casas populares, escola, creche, criação de estádio e centro esportivo e abertura de vias e logradouros públicos”. Segundo informações prestadas pela prefeitura, estariam seriam reformas extremamente necessárias para a elevação da qualidade de vida da população do Município de Salto.

Imediatamente, os advogados do Sr. Vicente entraram na Justiça pedindo o reconheci-mento da ilegalidade do ato e a conseqüente anulação do decreto expropriatório, com base nos seguintes argumentos:

• Não se pode invocar a “Função Social da Propriedade” para exigir que o proprietário de um bem faça alguma coisa, mas apenas para que não utilize sua propriedade para fins anti-sociais;

• O artigo 182 é norma de eficácia limitada, como reconhece a própria redação do caput: “...conforme diretrizes fixadas em lei...”. Ora, a lei em questão ainda não existe, de modo que o artigo não é aplicável;

• As medidas sancionatórias previstas no art. 182, §4o para o descumprimento da fun-ção social da propriedade urbana são sucessivas, e não alternativas. Ou seja: antes de recorrer à “desapropriação” (inciso III), o município deveria ter lançado mão das “sanções” previstas nos incisos I e II;

• O Município de Salto não possui Plano Diretor, que é colocado pelo próprio artigo 182 como condição indispensável para: 1) a definição do que “função social da proprie-dade” em cada cidade e 2) a imposição das sanções a que se refere o §4o. Sem um Plano Diretor –argumentaram os advogados - não existe fundamento legal ou constitucional para se levar adiante a desapropriação, por mais nobres que sejam as intenções do prefeito acerca do terreno.

Você é procurador do Município de Salto. Elabore a contestação aos argumentos apre-sentados no recurso do proprietário do imóvel, de modo a fornecer embasamento jurídico suficiente para o decreto expropriatório.

Conceitos

Propriedade Urbana e Propriedade Rural; Propriedade de função individual e Proprie-dade dos meios de produção; Função Social da Propriedade; Deveres positivos e negativos; Desapropriação por interesse social; Desapropriação para fins de Reforma Agrária; “Desa-propriação-sanção”; Plano Diretor; Estatuto da Cidade; Política Urbana; Política Agrícola.

34 Caso adaptado do RE

161.552-4 (SP).

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Bibliografia

Caso IObrigatória:• Petição Inicial da ADIn 2213 (editada);• Votos dos Ministros do Supremo na ADIn 2213 (editados)• Gilberto Bercovici. “A Função Social da Propriedade”, in Constituição Econômica e Desenvolvimento.

Uma Leitura a partir da Constituição de 1988. Tópicos 5.1., 5.6, 5.9 e 5.10.

Complementar:• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed, 2005. Pp.231-248.

Jurisprudência

"O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, autilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementosde realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto — enquanto sanção consti-tucional imponível ao descumprimento da função social da propriedade — reflete importante instrumentodestinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. Incumbe,ao proprietário da terra, o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de inci-dir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ouimprodutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade,quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) demanter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de ob-servar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aquelesque cultivam a propriedade.“ (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/04/04)

“Reforma agrária: desapropriação. Imóvel invadido: "sem-terra" — Imóvel rural ocupado por famílias dos de-nominados "sem-terra": Situação configuradora da justificativa do descumprimento do dever de tornar produtivoo imóvel. Força maior prevista no § 7º do art. 6º da Lei 8.629/93.” (MS 23.241, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ12/09/03)

“A pequena e a média propriedades rurais, cujas dimensões físicas ajustem-se aos parâmetros fixados em sedelegal (Lei nº 8.629/93, art. 4º, II e III), não estão sujeitas, em tema de reforma agrária (CF, art. 184), ao poder ex-propriatório da União Federal, em face da cláusula de inexpropriabilidade fundada no art. 185, I, da Constituiçãoda República, desde que o proprietário de tais prédios rústicos - sejam eles produtivos ou não — não possua outrapropriedade rural. (...) A notificação prévia do proprietário rural, em tema de reforma agrária, traduz exigência im-posta pela cláusula do devido processo legal” (MS 23.006, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/08/03)

“Reforma agrária — Desapropriação-sanção (CF, art. 184) — Média propriedade rural (CF, art. 185, I)— Lei nº 8.629/93 — Área resultante de divisão amigável — Inexpropriabilidade — Irrelevância de ser, ou não,improdutivo o imóvel rural.” (MS 21.919, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 06/06/97)

“Desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária. Sucessivos esbulhos possessórios. Redução deProdutividade. O Certificado de Cadastro de Imóvel Rural produzido pelo órgão oficial tem sido admitido peloSupremo Tribunal Federal, para efeito de classificação da propriedade rural (MS nº 23.018-3, Rel. Min. NelsonJobim, julgado em 18/10/2001). Aplica-se a exceção prevista no art. 6º, parágrafo 7º, da Lei 8.629/93 à pro-priedade que ao longo de dois anos é ameaçada de invasão e efetivamente invadida por quatro vezes. Não podeprevalecer vistoria realizada após a quarta invasão que concluiu pela desclassificação do imóvel porque deixou de

Obrigatória:• Petição Inicial da ADIn 2213 (trechos selecionados);• ADIn 2213 (Votos dos Ministros Nelson Jobim, Maurício Corrêa e Marco Aurélio)• Gilberto Bercovici. “A Função Social da Propriedade”, in Constituição Econômica e Desenvolvimento.

Uma Leitura a partir da Constituição de 1988. Tópicos 5.1., 5.6, 5.9 e 5.10.

Complementar:• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed, 2005. Pp.231-248.

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levar em consideração os atos de turbação da posse.” (MS 23.738, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 28/06/02)“A invasão de menos de 1% do imóvel (20 hectares de um total de 2.420 hectares) não justifica, no caso, o

estado de improdutividade do imóvel. (MS 23.054/PB, Rel. o Min. Sepúlveda Pertence).” (MS 23.857, Rel.Min. Ellen Gracie, DJ 13/06/03)

“Desapropriação-sanção (CF, art. 184) — Tutela constitucional do direito de propriedade — Ausência derecepção do Decreto-Lei nº 554/69 pela nova constituição — Inviabilidade da declaração expropriatória, porinteresse social, ante a inexistência das leis reclamadas pelo texto constitucional (art. 184, § 3º, e art. 185, I)— edição superveniente da lei complementar n. 76/93 e da lei n. 8.629/93 — Irrelevância — Impossibilidadede sua aplicação retroativa.” (MS 21.348, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 08/10/93)

"A propriedade produtiva, independentemente de sua extensão territorial e da circunstância de o seu titularser, ou não, proprietário de outro imóvel rural, revela-se intangível à ação expropriatória do poder público emtema de reforma agrária, desde que comprovado, de modo inquestionável, pelo impetrante, o grau adequado esuficiente de produtividade fundiária.“ (MS 22.022, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04/11/94)

"Reforma agrária: desapropriação: imóvel desmembrado, passados mais de seis meses da vistoria, em duasglebas rurais médias, doadas, cada uma, às duas filhas do expropriado; desapropriação inadmissível (CF, art. 185,I, c/c L. 8629/93, art. 2º, § 4º, cf. MPr 2183/01): MS concedido“ (MS 24.171, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,DJ 12/09/03)

"A prova negativa do domínio a que se refere a cláusula final do inciso I do art. 185 da Constituição nãoincumbe ao proprietário que sofre a ação expropriatória da União Federal. O onus probandi, em tal situação,compete ao poder expropriante, que dispõe, para esse efeito, de amplo acervo informativo ministrado pelosdados constantes do Sistema Nacional de Cadastro Rural mantido pelo INCRA." (MS 21.919, Rel. Min. Celsode Mello, DJ 06/06/97)

"O exame de situações de fato controvertidas, como aquelas decorrentes de dúvida fundada sobre a extensãoterritorial do imóvel rural ou sobre o grau de produtividade fundiária, refoge ao âmbito da via processual domandado de segurança, que não admite, ante a natureza especial e sumaríssima de que se reveste o writ constitu-cional, a possibilidade de qualquer dilação probatória.“ (MS 21.982, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/04/95)

"Caracterizado que a propriedade é produtiva, não se opera a desapropriação-sanção, por interesse social paraos fins de reforma agrária, em virtude de imperativo constitucional que excepciona, para a reforma agrária, aatuação estatal, passando o processo de indenização, em princípio, a submeter-se às regras constantes do incisoXXIV, do artigo 5, da Constituição Federal, ‚mediante justa e prévia indenização‘." (MS 22.193, Rel. Min.Ilmar Galvão, DJ 29/11/96)

Caso IIBibliografia obrigatória• Gilberto Bercovici. “A Função Social da Propriedade”, in Constituição Econômica e Desenvolvimento.

Uma Leitura a partir da Constituição de 1988. Tópicos 5.1., 5.6, 5.9 e 5.10.• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Título II da Segunda Parte, Capítulo V,

item IV (“Função Social da Propriedade”); Título I da Quarta Parte, Capítulo II (“Das Propriedades na OrdemEconômica”)

Complementar:• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed, 2005. Pp.231-248.

Bibliografia obrigatória• Gilberto Bercovici. “A Função Social da Propriedade”, in Constituição Econômica e Desenvolvimento.

Uma Leitura a partir da Constituição de 1988. Tópicos 5.1., 5.6, 5.9 e 5.10.• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Título II da Segunda Parte, Capítulo V,

item IV (“Função Social da Propriedade”); Título I da Quarta Parte, Capítulo II (“Das Propriedades na Ordem Econômica”)

Complementar:• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed, 2005. Pp.231-248.

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AULA 14

Superação das Desigualdades Regionais e “Federalismo Regional”

Nota ao Aluno

Em 2005, o Nordeste produzia apenas 15% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, embora possua 28% da população. A pobreza no Nordeste, contudo, deriva menos do seu sistema de produção agrícola e industrial do que da má distribuição de renda gerada pela grande concentração da propriedade fundiária e da apropriação das riquezas locais por conglomerados internacionais e de outras áreas do país. O problema não é simplesmente de “desemprego”, pois a quase totalidade da população se encontra engajada em atividades produtivas, mas sim de disseminação do subemprego, com precárias condições de segurança e de remuneração. Esse cenário se torna possível graças ao alto grau de informalidade nas relações de trabalho - 42% dos empregados urbanos e 93% dos rurais não possuem carteira de trabalho, contrariando o disposto no artigo 7º da Constituição. Estima-se que metade dos trabalhadores do país que ganham apenas 1 (um) salário-mínimo viva no Nordeste.

A lista de indicadores desfavoráveis ao Nordeste em relação às regiões Sul e Sudeste poderia continuar inde-finidamente. Esse quadro de desigualdade está ligado ao modo da inserção do Nordeste na produção nacional – basicamente como área fornecedora de matéria-prima e força de trabalho barata. Poderíamos dizer que, nas relações entre o Nordeste e as regiões Sul e Sudeste, vigora uma lógica semelhante àquela existente nas relações entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos.

Essa é uma realidade que há muito preocupa juristas, economistas e formuladores de políticas públicas no Brasil – a chamada “Questão Regional”. Um exemplo paradigmático de enfrentamento deste problema pode ser encontrado na extinta SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste). Criada em 1959, a Sudene nasceu da política desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitscheck, quando o principal objetivo a ser atingido era o crescimento econômico do país, passando necessariamente pela integração entre o núcleo mais dinâmico (Sul e Sudeste) e as áreas periféricas (Norte, Centro-Oeste e Nordeste).

Na época da criação da SUDENE, a renda industrial do Nordeste era menor do que 1/5 da renda do mes-mo setor no Sudeste, ao passo que a produção agrícola correspondia a 1/3 da produção do Centro-Sul. Neste contexto, a SUDENE surgiu para corrigir os desníveis regionais, propondo-se a gerar fortes impactos moderni-zadores na organização agrícola. Mas a chave da atuação da SUDENE estava mesmo no setor industrial, já que, na época de sua criação, a idéia dominante era de que a industrialização era o “carro-chefe” do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, o órgão procurou estimular empresários de outras áreas a implantar indústrias novas no Nordeste, além de ter viabilizado incentivos governamentais para que as indústrias locais modernizassem e ampliassem o seu parque industrial.

Contudo, em 2001, mais de 40 anos após o início das atividades da SUDENE, a imprensa investigou e di-vulgou o uso de verbas da instituição para favorecer projetos que, embora apresentados como contribuições ao desenvolvimento da Região Nordeste, eram geridos por membros do Congresso Nacional. O problema estava no fato de que a legislação aplicável à SUDENE vedava expressamente que a instituição apoiasse projetos de deputados federais e estaduais, vereadores e senadores. Após o escândalo, a SUDENE foi extinta pelo presidente da República, por meio da Medida provisória 2.156-5, de 24 de agosto de 2001, que também pôs fim à Supe-rintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e aos fundos de Investimento do Nordeste (Finor) e da Amazônia (Finam) – todos eles instrumentos jurídicos para a promoção de um desenvolvimento mais regionalmente eqüitativo.

A mesma MP 2.156 criou a Agência de Desenvolvimento do Nordeste (ADN) e a Agência de Desenvolvi-mento da Amazônia para substituir a SUDENE a SUDAM, respectivamente. Na prática, porém, os dois novos órgãos sequer começaram efetivamente suas atividades.

Embora a preocupação com a “Questão Regional” no Brasil date de muitas décadas atrás, o problema só ga-nhou assento constitucional em 1988, com o reconhecimento explícito, por parte do Constituinte, deste traço

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

característico da realidade brasileira: a existência de brutais desigualdades entre indivíduos e entre regiões do país. De fato, a Constituição de 1988 evidencia uma preocupação em fornecer instrumentos jurídicos para o Estado brasileiro (mais especificamente, a União) enfrentar a tarefa do desenvolvimento nacional de forma sensível ao problema da desigual-dade entre regiões. Pela primeira vez na história de nosso país, as “regiões administrativas” ganharam assento constitucional, nos seguintes termos:

Art. 43. Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais.

§ 1º - Lei complementar disporá sobre:I - as condições para integração de regiões em desenvolvimento;II - a composição dos organismos regionais que executarão, na forma da

lei, os planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com estes.

§ 2º - Os incentivos regionais compreenderão, além de outros, na forma da lei:

I - igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens de custos e preços de responsabilidade do Poder Público;

II - juros favorecidos para financiamento de atividades prioritárias;IV - prioridade para o aproveitamento econômico e social dos rios e das

massas de água represadas ou represáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas periódicas.

§ 3º - Nas áreas a que se refere o § 2º, IV, a União incentivará a recupe-ração de terras áridas e cooperará com os pequenos e médios proprietários rurais para o estabelecimento, em suas glebas, de fontes de água e de pequena irrigação.

Parece razoável supor que, se certos problemas transcendem a fronteira entre os Estados, as soluções devem também atravessar os limites entre os entes da Federação. Como observa Alexandre de Moraes, esse dispositivo “caracteriza-se por ser norma instrumental para a efetividade de dois dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, a saber, os incisos II e III do art. 3, “tendo como finalidade permitir o auxílio da União ao desen-volvimento de regiões menos favorecidas da Federação”.35

Por outro lado, o art. 19, III determina expressamente que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) criar distinções entre brasileiros ou pre-ferências entre si”.

Como conciliar essas duas exigências – respeito ao princípio federativo e promoção da igualdade material entre as regiões do país - de modo a preservar a unidade da Constituição? Como resolver essa tensão sem permitir que um projeto de desenvolvimento e equiparação regional se transforme em licença jurídica para o favorecimento dos mesmos grupos que há tempos dominam certas regiões do país?

O caso desta aula nos coloca diante dessa tensão, que pode ser possivelmente encarada como um conflito de igualdade material e igualdade formal. A Constituição oferece al-guns instrumentos para contornar o conflito direto entre esses princípios, desonerando o intérprete da tarefa de criar critérios para permitir as desequiparações entre regiões. Você consegue identificá-los?

35 Alexandre de Moraes, Cons-

tituição do Brasil Interpretada,

p. 970

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FGV DIREITO RIO 46

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Na leitura dos textos selecionados para essa aula, procure refletir também sobre as se-guintes questões:

• O conceito de “Federalismo” é compatível com a desequiparação no tratamento entre regiões?• O que significa “Federalismo Regional”? Esta idéia é compatível com a Constituição brasileira?• Porque o conceito de “Região” é juridicamente relevante? Não bastariam os entes in-

tegrantes da Federação brasileira – União, Estados e Municípios?• Como o artigo 43 da Constituição poderia ser melhorado?• Qual a relação entre os artigos 43 e 3º da Constituição?

O Caso

Em 30 de dezembro de 2004, foi aprovada a Lei nº. 11.079, instituindo e regulando a realização de parcerias público-privadas (PPPs). Na prática, a Lei estabelece normas para a associação entre o Poder Público e a iniciativa privada em empreendimentos de interesse para a sociedade – por exemplo, a construção de estradas, ferrovias, portos etc.

Segundo o jurista Arnoldo Wald, o diploma legal inova sobretudo em dois pontos principais:

“De um lado, no seu aspecto prático e imediato, oferece uma regulamentação nova e adequada à cooperação entre o Estado e a iniciativa privada. De outro, modifica a relação entre o empresariado e o Poder Público, flexibilizando e dina-mizando a ação estatal, mediante uma renovação não só dos conceitos, mas do próprio espírito do direito administrativo.(...) Com a nova legislação das PPP, consolida-se um novo direito, que é o de esforço comum, da cooperação e da di-visão de riscos, entre a Administração e os seus parceiros, criando-se um clima que pressupõe a confiança mútua, para que o contrato possa sobreviver por longo tempo numa época caracterizada pela incerteza, pela volatilidade e pelas grandes transformações tecnológicas.36”

A ênfase da eficiência do setor privado – e do quanto essa eficiência pode contribuir para a realização de obras públicas – tem sido bastante enfatizada pelos defensores da Lei. O próprio presidente da República reconheceu (no veto parcial oposto ao art. 11, II da Lei nº. 11.079 de 2004) que a iniciativa privada “na maioria dos casos, dispõe da técnica necessária e da capacidade de inovar na definição de soluções eficientes em relação ao custo do investimento.“ 37

Há, porém, um dispositivo da Lei nº. 11.079 que está causando polêmica: o artigo 27, com a seguinte redação:

Art. 27. As operações de crédito efetuadas por empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União não poderão exceder a 70% (setenta por cento) do total das fontes de recursos financeiros da sociedade de propósito específico, sendo que para as áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH seja inferior à média nacio-nal, essa participação não poderá exceder a 80% (oitenta por cento).

§ 1o Não poderão exceder a 80% (oitenta por cento) do total das fontes de recursos financeiros da sociedade de propósito específico ou 90% (noventa por cento) nas áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH seja inferior à média nacional, as operações de crédito ou contribuições de capital realizadas cumulativamente por:

I – entidades fechadas de previdência complementar;II – empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União.

36 Arnoldo Wald, “Uma

Revolução Cultural”, publicado

no jornal Valor Econômico de

20.01.05.

37 Citado por Arnoldo Wald,

op. Cit.

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47FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

§ 2o Para fins do disposto neste artigo, entende-se por fonte de recursos financeiros as opera-ções de crédito e contribuições de capital à sociedade de propósito específico.

Na prática, isso significa que a participação da União (isto é, do dinheiro público) nas parcerias voltadaspara as regiões indicadas no artigo será maior do que naquelas referentes a empreendimentos situados em outrasregiões do país.

Antecipando as controvérsias jurídicas que eventualmente surgirão na aplicação deste dispositivo, especial-mente pelos governadores de Estados que se sintam prejudicados pelo favorecimento às Regiões Norte, Cen-tro-Oeste e Nordeste, o advogado-geral da União ajuíza Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) noSupremo Tribunal Federal, com vistas a pacificar desde já a questão.

Você é assessor do procurador-geral da República, que, nos termos da Constituição, deverá se manifestarsobre a constitucionalidade da Lei nº. 11.079 junto ao Supremo Tribunal Federal. Elabore um parecer sobre aquestão, abordando as seguintes questões:

• É cabível a ADC neste caso?• Quais os fundamentos constitucionais para o favorecimento de uma ou mais regiões em detrimento de

outras?• Esse tipo de favorecimento viola o princípio federativo?• Quais são os exemplos existentes de desequiparação entre as regiões no nosso país? Este caso é de alguma

forma semelhante?• As “regiões” de que fala a Lei em questão são aquelas mencionadas no artigo 43 da Constituição Federal?

Como a resposta a essa pergunta pode influir na decisão do Supremo?• Com a promulgação da Lei nº. 11.079, podemos dizer que o legislador continua omisso na concretização

do artigo 43 da Constituição?

Conceitos

Federalismo Cooperativo; Federalismo Regional; Regiões Administrativas; Superação dasDesigualdades Regionais; Planejamento; Parcerias Público-Privado.

Bibliografia

Obrigatórias• Gilberto Bercovici. “Constituição e Superação das Desigualdades Regionais”, in Constituição Econômica

e Desenvolvimento. Uma Leitura a partir da Constituição de 1988, pgs.87 a 116.• Fábio Konder Comparato. Muda Brasil. Uma Constituição para o Desenvolvimento Econômico, pp.40 e 53.

Complementares• Verbetes “SUDENE” e “SUDAM” do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930 (CPDOC).• Eros Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988.• José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo.

Obrigatórias• Gilberto Bercovici. “Constituição e Superação das Desigualdades Regionais”, in Constituição Econômi-

ca e Desenvolvimento. Uma Leitura a partir da Constituição de 1988, pgs.87 a 116.• Fábio Konder Comparato. Muda Brasil. Uma Constituição para o Desenvolvimento Econômico, pp.40

e 53.

Complementares• Verbetes “SUDENE” e “SUDAM” do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930

(CPDOC).• Eros Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988.• José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

38 Sobre o tema, cf. Suzana de

Barros Toledo, O Princípio da

Proporcionalidade e as Leis

Restritivas de Direitos. Brasília,

1995.

39 A Ordem Econômica na

Constituição de 1988, p.248.

AULA 15

Defesa do Consumidor

Nota ao Aluno

Como já foi discutido nas aulas iniciais deste bloco, a liberdade de iniciativa está sujeita a certos limites imanentes.38 Alguns destes limites surgem do confronto entre a liberdade de iniciativa e outros imperativos constitucionais como a defesa do consumidor (art. 170, V) e a defesa do meio ambiente (art. 170, VI). Nesta aula, analisaremos o alcance e o possível conteúdo da defesa do consumidor.

Dando o primeiro passo para a consecução dessa diretriz, o Congresso Nacional apro-vou em 1990 a Lei nº. 8.078 – Código de Defesa do Consumidor (CDC). A elaboração dessa norma vem a cumprir exigências impostas ao legislador ordinário pelo próprio poder constituinte originário, tendo em vista o disposto no art. 5°, XXXII da Constituição e no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 5º. XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Assim, todo aquele que se encontra na situação de consumidor tem direito a exigir do Estado que tome medidas protetivas, tanto na órbita do Poder Executivo, quanto na do Legislativo. Nesse sentido, o CDC trouxe modificações profundas nas relações contratuais, com dispositivos de ordem civil, processual e penal.

Entre outros fatores que levaram à inclusão da defesa do consumidor na esfera constitu-cional, podemos citar a assimetria de informações existente entre o fornecedor/produtor e o destinatário final dos produtos ou serviços e a vulnerabilidade do consumidor em face das empresas com as quais contrata, especialmente no tocante à capacidade de litigar e defender seus interesses em juízo. Tente encontrar textos doutrinários que enumerem outras razões fáticas para a diferenciação constitucional do tratamento dado ao consumidor.

Na verdade, a defesa do consumidor cumpre uma dupla função como princípio consti-tucional da ordem econômica. Por um lado, é instrumento da ação estatal; por outro, é ob-jetivo a ser atingido com esta atuação. Nesse último aspecto, possui caráter constitucional conformador, segundo Eros Grau, “justificando a realização das políticas públicas”.39 Essa dupla função é discutida em detalhes na bibliografia selecionada para a aula.

A legislação específica do consumidor precisa conviver harmonicamente com as normas que regulam outros aspectos da atividade econômica – trabalhistas, tributárias e societárias, por exemplo, além das leis específicas sobre o Sistema Financeiro Nacional. Como proceder, po-rém, quando o instrumento da defesa do consumidor (ou seja, o CDC) pode não ser a maneira adequada para se atingir à finalidade da defesa do consumidor? Esse é o problema colocado pelo caso desta aula. Os contratos celebrados entre os bancos e seus clientes devem ser regidos pelo CDC? Ou será que, tendo em vista as especificidades da relação financeira em jogo, deve-mos deixar a proteção dos usuários dos serviços bancários à fiscalização e regulação do Banco Central, bem como da incidência das leis aplicáveis ao sistema financeiro nacional?

O Caso No dia 26 de dezembro de 2002, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) ajui-

zou a ADIn 2591-1 para a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº. 8.078 (Código de Defesa

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FGV DIREITO RIO 49

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

do Consumidor) no que tange à sua aplicação às atividades de natureza bancária e financeira.O Código de Defesa do Consumidor, promulgado em 1990 por obediência ao disposto

no art. 5o, XXXII da Constituição e art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais transi-tórias, contém os seguintes dispositivos:

Art. 1º - O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e Art. 48 de suas Dispo-sições Transitórias.

Art. 2º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ain-da que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvol-vem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou pres-tação de serviços.

§ 1º - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, me-

diante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Vale destacar que o problema não é completamente inédito no cenário jurídico nacio-nal. Doutrina e jurisprudência já vinham enfrentando, desde a promulgação do CDC, a aplicabilidade de seus dispositivos às relações entre bancos e seus clientes.

No caso desta ADIn, o ponto de partida para a compreensão do tema em debate deve ser a alegação da Consif de que as instituições financeiras não seriam fornecedoras de produtos e serviços, e sim entidades integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN), não devendo, portanto, estar inseridas no horizonte de aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Nos termos do artigo 192 da Constituição, toda e qualquer regulamentação do SFN precisa se dar por meio de Lei Complementar.

Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a partici-pação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

Assim, segundo a Consif, embora a proteção dos usuários dos serviços bancários seja uma finalidade relevante, querer aplicar uma norma feita para outro tipo de relação (o Código de Defesa do Consumidor) aos contratos celebrados entre os Bancos e seus clientes significa violar toda a normatização constitucional do Sistema Financeiro Nacional.

A questão gerou intensa polêmica na época em que a ADIn foi ajuizada. Milhares de pes-soas enviaram mensagens de correio eletrônico para o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, expressando suas opiniões sobre o pedido da Consif.40

40 Cf. a notícia “Mensagens

congestionam correio

eletrônico da Presidência

do STF”, publicada em

28/01/2002, às 19:40, no site

do Supremo Tribunal Federal

(www.stf.gov.br).

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FGV DIREITO RIO 50

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Além disso, algumas entidades de defesa dos direitos dos consumidores ingressaram com pedidos, junto ao Supremo Tribunal Federal, para se manifestarem na discussão da ADIn como “terceiros interessados” – dentre elas, ,a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (PROCON/SP), o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). Afirmam basicamente que a lei complementar a que se refere o art. 192 é desnecessária, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor já regula as relações de consumo e de serviços. Além disso, alegam que o CDC não tinha por finalidade dispor sobre a “a estru-tura, o funcionamento e a competência do Sistema Financeiro Nacional, mas sim, sobre as atividades desenvolvidas pelas empresas que o integram, enquanto prestadoras de serviços bancários, creditícios e securitários”.41 Ou seja: nas suas relações com o consumidor final, os bancos estariam sujeitos à legislação específica de proteção ao consumidor. Por fim, ar-gumentam que a Consif não tem legitimidade ativa para ajuizar a ADIn em questão, por não se tratar de uma entidade representativa do setor.

Corroborando as alegações do PROCON/SP, do BRASILCON e do IDEC, o presi-dente da República encaminhou ao Supremo um parecer sobre a questão, elaborado em conjunto pelo Ministério da Justiça e pelo Banco Central. Segundo o parecer, a norma exigida pelo artigo 192 da Constituição já existe: a Lei nº. 4595/1964, recepcionada pela Constituição com força de lei complementar. O CDC não entra em conflito com essa norma, pois trata de aspectos diferentes da atividade bancária – é uma norma de conduta, e não de organização, como é o caso da Lei nº. 4595 –, da mesma forma que a regulação específica do setor financeiro precisa conviver com a legislação trabalhista, tributária etc. A conclusão do parecer é a de que a interpretação do Código de Defesa do Consumidor e da Lei nº.4595 devem ser feitas conforme os princípios constitucionais pertinentes, especial-mente a defesa do consumidor (art. 170, V).42

A partir do caso acima, procure refletir:• Se fosse você ministro do STF, você conheceria da ADIn ajuizada pela Consif?• Se fosse você ministro do STF, como julgaria o pedido formulado pela Consif?• Qual a posição do STJ acerca da possibilidade de aplicação do CDC aos contratos

celebrados entre os bancos e seus clientes? Quais os argumentos utilizados em favor dessa posição?

ConceitosProteção e Defesa do Consumidor; Fornecedor de Produtos e Serviços; Atividade Bancária.

Bibliografia

Obrigatória:• Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10ª ed. Pp.248-250.• Claudia Lima Marques. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção

ao consumidor”, in Revista de Direito do Consumidor, v.17, pp.36 e seguintes.• Armando Castelar, “Concorrência e spreads bancários”, publicado no jornal Valor

Econômico em 25 de julho de 2003.

Jurisprudência:• Superior Tribunal de Justiça: REsp. no 106.888/PR, 2a Seção, Rel. Min. César Asfor Rocha

41 Cf. a notícia “Entidades de

Defesa do Consumidor entram

no STF para figurarem como

terceiros interessados em ADI

dos bancos”, publicada em

19/02/2002, às 19:52, no site

do Supremo Tribunal Federal

(www.stf.gov.br).

42 Cf. a notícia “Presidência da

República presta informações

ao STF em ADI dos Bancos”,

publicada em 01/03/2002,

às 18:58, no site do Supremo

Tribunal Federal (www.stf.

gov.br).

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

BLOCO IV – A ORDEM SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO

Introdução

A Constituição inaugura o título “Da Ordem Social” colocando o trabalho como a base da ordem social no Brasil, e o bem-estar coletivo e a justiça social como os seus objetivos (artigo 193). Como observa José Afonso da Silva, nesse aspecto “a ordem social se harmoniza com a ordem econômica, já que está se funda também na valorização do trabalho e tem como fim (objetivo) assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.” 43

Contudo, apesar desta dupla unidade normativa - de fundamento e de objetivos -, o título “Da Ordem Social” é na verdade um conjunto de dispositivos com pouca relação substancial necessária entre si. De fato, a Constituição abriga neste título matérias tão dís-pares quanto ciência e tecnologia, de um lado, e proteção à infância, à adolescência e ao idoso, de outro, passando por temas como desporto, meio ambiente e a previdência social.44 Assim, ao contrário da estratégia adotada na condução das aulas anteriores, neste bloco não tentaremos analisar os dispositivos referentes à “ordem social” partindo de qualquer critério unificador ou sistematizador.

Existem, porém, algumas mensagens didáticas que sublinham todas as aulas, indepen-dentemente do seu conteúdo específico, e que precisam ser enfatizadas neste momento.

Primeiro, como você provavelmente notará, muitas das questões que serão abordadas nas próximas aulas já foram no mínimo indiretamente discutidas nas disciplinas anteriores de Direito Constitucional. Isto se deve ao fato de que o artigo 193 – que abre o título “Da Ordem Social” – reproduz valores e decisões políticas já enunciados em diversos outros dis-positivos da Constituição, em especial nos objetivos fundamentais da República (art. 3o) e na seção relativa aos Direitos Fundamentais (arts 5° e seguintes).45

Entretanto, nem por isso os dispositivos e os casos em torno dos quais serão conduzidas as aulas deste bloco podem ser considerados “supérfluos”, ou “redundantes”, pois é só com base neles que podemos discutir em detalhes as instituições e sistemas criados e delineados pela própria Constituição, para promover aqueles direitos e metas que já aparecem em dis-positivos anteriores. Pense, por exemplo, no direito à educação, positivado no artigo 6°. Quais são os instrumentos constitucionais para a sua concretização? A que órgãos incumbem o dever de promover a educação no país? Quem pode explorar a atividade de ensino, e sob que condições? O que o Poder Público precisa fazer para se exonerar da sua responsabilidade para com o ensino? Quem determina o conteúdo do ensino? São perguntas que o artigo 6o inevitavelmente coloca, mas não nos ajuda a responder. Para tanto, é preciso recorrer ao subsistema constitucional desenhado com o intuito de promover o direito à educação, deter-minando – entre outros detalhes relevantes - o quê deve ser feito e quem deve agir para que se cumpra o direito positivado no artigo 6º. Esse subsistema normativo é delineado nos artigos da “Ordem Social” referentes à educação. O mesmo vale para temas como previdência social, direito à saúde, patrimônio cultural e meio ambiente, entre outros.

Assim, ao se preparar para as próximas aulas, tenha em mente que, como profissional do Direito, você não pode se contentar em saber apenas que “todos têm direito à saúde”, ou que “a Constituição protege as manifestações culturais”. É preciso compreender como esses direitos e garantias são efetivados, e o título “Da Ordem Social” é uma etapa obrigatória nesse percurso.

Segundo, o conteúdo de direitos à saúde e à educação, por exemplo, consiste em presta-ções de serviços que invariavelmente possuem potencial econômico. Isto é válido ainda que o Estado tenha o monopólio sobre essas prestações em uma dada sociedade, ou como bem observa Eros Grau, é um equívoco identificar o adjetivo econômico exclusivamente com

43 Curso de Direito Constitu-

cional Positivo, 9a ed.. São

Paulo: Malheiros, 1992, p.705.

44 Como observa José Afonso

da Silva, “Ciência e Tecnologia

e Meio Ambiente só entram

no conceito de ordem social,

tomada essa expressão em

sentido bastante alargado”

(op. Cit, p.706).

45 Cf., nesse sentido, Ives

Gandra Martins e Celso Ribeiro

Bastos, Comentários à Con-

stituição do Brasil, v. VIII, São

Paulo: Saraiva, 1998. P.04.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

“produção”, e não com “distribuição”.46 O caráter econômico dessas atividades fica maisevidente quando a Constituição abre espaço para a atuação do setor privado (e do setor pú-blico não-estatal, ou “Terceiro Setor”) na sua realização. Assim, na interpretação e aplicaçãodos dispositivos relativos à ordem social, procure estar atento para as possibilidades de seabrir espaço para a incidência de normas relativas à Ordem Econômica, como por exemplo,a liberdade de iniciativa.

46 A Ordem Econômica na

Constituição de 1988, 10a

ed. São Paulo: Malheiros,

2005, pp.70-71. Criticando a

separação constitucional entre

“Ordem Econômica” e “Ordem

Social”, o autor assevera: “(...)

a menção a uma ordem social

(seja econômica e social ou

tão-somente social) como

subconjunto das normas con-

stitucionais poderia nos levar a

indagar de caráter das demais

normas constitucionais – não

teriam elas, acaso, também

caráter constitucional? O fato

é que toda a ordem jurídica

é social, na medida em que

voltada à ordenação social.”

(op. Cit, p.71).

5. Bibliografia

Obrigatória:• Petição Inicial da ADIn 2591• Acórdão do Supremo (votos selecionados) na ADIn 2591.

Jurisprudência:• Superior Tribunal de Justiça: REsp. no 106.888/PR, 2a Seção, Rel. Min. César Asfor Rocha

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULAS 16 E 17

A Previdência e suas Reformas

Nota ao Aluno

No início do curso, discutimos alguns dos detalhes jurídicos que um Estado minima-mente “liberal” e “capitalista” deve possuir. No bloco passado, foram apresentados, em minúcia, alguns desses detalhes que estão presentes na ordem econômica da Constituição de 1988, mais especificamente a livre iniciativa e a livre concorrência. Agora, pense no se-guinte: se a iniciativa é livre, isto significa que as pessoas têm o direito inclusive de cometer os próprios erros na exploração da atividade econômica. Se a concorrência é livre, então necessariamente haverá pessoas mal-sucedidas na competição por uma fatia do mercado. Além disso, é sempre possível que um trabalhador ou trabalhadora sofra um acidente que o (a) impeça de continuar exercendo sua profissão e sustentando sua família. O que acontece com essas pessoas?

A noção de “seguridade social” está relacionada justamente com esse tipo de preocupa-ção. Mesmo que, em um regime capitalista, o Estado não possa substituir o funcionamento da concorrência, nem dizer às pessoas como elas devem exercer a sua iniciativa econômica, ele possui um papel complementar importante para a viabilidade do mercado no longo pra-zo: o de assegurar condições mínimas para o próprio exercício das liberdades econômicas tão caras aos defensores do Estado liberal.

Essa idéia - de que o Estado deve ser responsável pela “seguridade social”, fornecendo uma “rede de segurança” a partir do qual a livre iniciativa e o mercado podem funcionar de forma menos “selvagem” - está intimamente ligada ao advento da noção de “Estado de Bem Estar”. Nas próximas duas aulas, vamos discutir um dos subsistemas constitucionais que concretizam o ideal da Seguridade Social: a previdência.

O sistema da Previdência Social funciona fornecendo proteção aos trabalhadores em caso de infortúnios decorrentes de doença, invalidez, velhice, desemprego, morte e maternidade. Além disso, mediante contribuição, possibilita a percepção de aposentadorias, pensões etc. No ordenamento jurídico brasileiro, a administração deste sistema é atribuída ao Ministé-rio da Previdência e Assistência Social e é exercida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), uma autarquia pública federal que responde diretamente ao Ministério.

A Previdência Social entrou na pauta das Constituições brasileiras na Assembléia Consti-tuinte de 1934.47 Na época, porém, a referência constitucional ao tema era sucinta, e boa parte das decisões fundamentais sobre a organização da Previdência eram deixadas pelo constituinte dentro do âmbito da liberdade de atuação do legislador. Confira a redação do artigo 121:

“Art. 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalha-dor e os interesses econômicos do País.

§ 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:

h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e ins-tituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;”

47 Vale notar que a Constituição

de 1891 já previa a aposen-

tadoria para os funcionários

públicos, mas apenas em caso

de invalidez decorrente do

serviço à Nação (art.75). Cf.

Ives Gandra Martins e Celso

Ribeiro Bastos, Comentários à

Constituição do Brasil, p.299.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Assim, a única exigência que a Constituição de 1934 fazia era de que o legislador devia instituir a previdência,mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, além de determinar o tipo de incapacidadepara o trabalho que deve ser coberto pelo sistema (velhice, invalidez, maternidade, morte e acidentes de trabalho).

Na Constituição de 1988, porém, o sistema da previdência social foi desenhado em alto nível de detalha-mento (mantida a responsabilidade primária do Estado), diminuindo bastante a margem de manobra do legis-lador na interpretação da Constituição para a produção de leis relativas a este assunto.

Atualmente, no tocante à aposentadoria, a Previdência Social está organizada em torno da idéia de contribui-ção – o trabalhador precisa contribuir com uma parcela de sua remuneração para fazer jus a uma aposentadoriacusteada pelo sistema previdenciário – isto é, para se tornar beneficiário da Previdência, para receber um bene-fício previdenciário. Esse caráter contributivo contrasta nitidamente com demais setores da Seguridade Social,em especial a Saúde e Assistência Social. As garantias prestadas por essas duas áreas estão abertas a todos que delanecessitem, independentemente de contribuição – daí se falar em universalidade de atendimento.

Dentro do sistema contributivo, o texto constitucional prevê a existência de dois Regimes de PrevidênciaSocial (RPS) distintos e separados:

a) Regime Geral (RGPS), aplicável aos beneficiários da iniciativa privada, ou seja, os trabalhadores em geral,independentemente da categoria profissional a que pertençam e até mesmo da existência ou inexistência devínculo empregatício (art. 201 da CF);

b) Os Regimes Próprios (RPPS), disciplinados pelo artigo 40 da Constituição, que amparam os servidorespúblicos efetivos civis e militares. Os benefícios concedidos sob o Regime Geral são de responsabilidade daUnião, enquanto a Constituição prevê a responsabilidade de cada ente federativo pelos benefícios devidos a seuspróprios servidores.

Os contornos atuais desse sistema – por exemplo, o seu caráter contributivo e a obrigatoriedade de filiação– não se devem inteiramente a decisões do constituinte de 1988, mas sim a algumas reformas realizadas no finalda década de 90 e início da década seguinte. Nesse sentido, as duas principais reformas no âmbito constitucionalforam as Emendas Constitucionais nº.20/1998 e nº.41/2003.

Contudo, esse tipo de reforma – independentemente do seu mérito ou da sua necessidade – nos colocadiante de um sério problema jurídico. A relação do trabalhador ou do servidor com o INSS é complexa, e nãose esgota em um único ato jurídico. Ao contrário, é preciso preencher uma série de requisitos e realizar umasérie de ações que se desenrolam no tempo. Imagine, por exemplo, que você começa a trabalhar como advogadohoje, contribuindo regularmente com o INSS e prevendo que vai conseguir uma aposentadoria nos termos dasregras constitucionais e infraconstitucionais hoje vigentes. O que acontecerá se essas regras mudarem daqui a 10anos, quando você ainda não conseguiu se aposentar? Você precisará se sujeitar às novas regras, ou terá direito– direito adquirido, mais especificamente – a se aposentar de acordo com a legislação vigente quando começoua trabalhar?

Em última instância, o que está em jogo é a segurança jurídica. As figuras do direito adquirido, do ato jurí-dico perfeito e da coisa julgada são respostas do ordenamento jurídico brasileiro (e dos de muitos outros países)à necessidade de proteção de expectativas das pessoas de que certos aspectos de suas vidas não vão simplesmenteser virados do lado do avesso a cada nova mudança de legislatura. Na verdade, a incidência de novas leis sobresituações pretéritas – e a necessidade de se dar uma resposta socialmente aceitável para esse problema – é umaquestão há muito reconhecida e enfrentada por diversos ordenamentos jurídicos.

Todavia, apesar da sua importância, é interessante notar que a proteção ao direito adquirido não entra di-retamente na pauta Constitucional dos países ocidentais, exceto no que diz respeito à aplicação de leis penais. AConstituição americana de 1787, por exemplo, vedava apenas que a lei penal produzisse efeitos retroativos, coma fórmula: “No bill of attainder or ex post facto law shall be passed”.48 De um modo geral, com exceção da matériapenal, as Constituições ocidentais – inclusive as contemporâneas – delinearam o

respeito ao direito adquirido como algo que se encontrava na esfera de disponibilidade do legislador. Em ou-tras palavras, nesses contextos a legislação poderia criar exceções à regra geral da proteção ao direito adquirido,sem que isso implicasse qualquer violação à Constituição.

Este, no entanto, não é o caso do Brasil. A Constituição brasileira de 1988 protege expressamente o direito

Na Constituição de 1988, porém, o sistema da previdência social foi desenhado em alto nível de detalha-mento (mantida a responsabilidade primária do Estado), diminuindo bastante a margem de manobra do legis-lador na interpretação da Constituição para a produção de leis relativas a este assunto.

Atualmente, no tocante à aposentadoria, a Previdência Social está organizada em torno da idéia de contribui-ção – o trabalhador precisa contribuir com uma parcela de sua remuneração para fazer jus a uma aposentadoria custeada pelo sistema previdenciário – isto é, para se tornar beneficiário da Previdência, para receber um benefício previdenciário. Esse caráter contributivo contrasta nitidamente com demais setores da Seguridade Social, em especial a Saúde e Assistência Social. As garantias prestadas por essas duas áreas estão abertas a todos que dela necessitem, independentemente de contribuição – daí se falar em universalidade de atendimento.

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FGV DIREITO RIO 55

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

adquirido (art. 5o, XXXVI), tornando inválidas as normas infraconstitucionais que firam essa garantia. Contudo, o preço de se erigir a proteção ao direito adquirido ao nível cons-titucional – e, mais ainda, como uma possível candidata à categoria de “cláusula pétrea” – é a necessidade de se delinear muito bem quais são os limites desta proteção, sob pena de completa estagnação social. É simples de se perceber o problema: se não fosse assim, a escravidão jamais teria sido abolida no país, por força dos “direitos adquiridos” dos proprie-tários de escravos, nem teria sido possível instituir a possibilidade legal do divórcio no país, devido à incidência do “direito adquirido” do outro cônjuge a um casamento indissolúvel.

Como os doutrinadores e operadores do direito resolvem esta tensão? Esse problema é explorado na bibliografia selecionada para este conjunto de aulas. Fazendo uma distinção, é claro: o conceito de “direito adquirido” protege certas coisas, e outras não. Na tentativa de construir um parâmetro para distinguir essas categorias, o Supremo Tribunal Federal e a doutrina brasileira vêm reconhecendo de forma unânime que não existe direito adquirido a regime jurídico. Conforme já decidiu o STF, no caso específico da previdência, um tra-balhador que já tenha se aposentado tem direito “ao quantum da aposentadoria, calculado de acordo com as leis do momento da aposentação [sic]”, de modo que este valor não pode ser reduzido por lei posterior, “mas não tem direito adquirido à persistência do sistema aplicado na sua aposentadoria”, porque “ninguém tem direito adquirido ao sistema legal, para conservar o sistema preexistente.” 49

Nas próximas duas aulas, utilizaremos a noção de “direito adquirido” para tentar enfrentar alguns problemas práticos de constitucionalidade trazidos pela Emendas nº. 20/1998 e nº.41/2003.

Casos

Caso I – Emenda Constitucional nº.20/1998

A Emenda Constitucional nº.20/1998 C 20 no Regime Geral de Previdência alterou as regras do regime especial de aposentadoria concedido a algumas categorias profissionais, mais especificamente a dos professores. Antes de 1998, e de acordo com o inciso III do arti-go 202, os professores em atividade no Brasil tinham direito a um regime de aposentadoria com condições diferenciadas, nos seguintes termos:

“Art. 202. É assegurada aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o ben-efício sobre a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade dos reajustes de salários de contribuição de modo a preservar seus valores reais e obedecidas as seguintes condições:(...)III – após trinta anos, ao professor, e, após vinte e cinco, à professora, por efetivo exercício de função de magistério.”

Agora, imagine que um mês após a promulgação da EC nº.20/1998, que alterou as re-gras acima, você é procurado em seu escritório por um professor de economia da Fundação Getulio Vargas. Ele conta que acabou de ter o seu pedido de aposentadoria negado pelo INSS, que levantou os seguintes argumentos:

i. A atual redação da Constituição não prevê condições especiais de aposentadoria (tem-

48 Art. 1º, séc.IX, cláusula 3.

49 RE n.92.511 (SC), Rel. Min.

Moreira Alves. Julgado pela 2ª

turma em 07.10.80.

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FGV DIREITO RIO 56

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

po de contribuição reduzido) para professores do ensino superior. Como ele não tinha ainda decidido se aposentar na vigência da redação original do artigo 202 da Constituição, não poderia agora requerer a aposentadoria com base em normas já revogadas;

ii. Além disso, ainda que o caso em tese fosse de “direito adquirido”, é pacífico que não se pode opor a garantia do direito adquirido contra normas constitucionais.

Suponha que seu novo cliente confesse não saber muito bem o que é “direito adquiri-do”. Sabe apenas que, aos 50 anos de idade, 33 dos quais dedicados ao ensino superior, está cansado de trabalhar e quer se aposentar para escrever um livro de memórias e aproveitar mais o tempo livre. Por isso, procurou os seus serviços. Elabore uma argumentação favorá-vel à pretensão de seu cliente, refutando os argumentos do INSS.

Caso II – Emenda Constitucional nº.41/2003

A segunda grande reforma no sistema previdenciário veio com a Emenda Constitucio-nal nº. 41/03, promulgada em 19 de dezembro de 2003. A Emenda quase não promoveu alterações no âmbito do Regime Geral – apenas aumentou o valor do limite máximo de concessão de benefícios de R$ 1.869,34 para R$ 2.400,00 (atualmente, R$ 2.508,72).

A verdadeira mudança operada pela Emenda foi sobre os Regimes Próprios de Previdência So-cial, ou seja, no âmbito da aposentadoria dos servidores públicos, estabelecendo uma das medidas mais polêmica desde a promulgação da Constituição de 1988: a instituição de contribuição para os inativos e pensionistas do serviço público, usualmente chamada de “taxação dos inativos”.

A medida não demorou muito para ser questionada por entidades representativas de segmentos do serviço público, como se vê nas notícias abaixo, extraídas do site do Supremo Tribunal Federal: 50

02/01/2004 - 16h09 - Supremo recebe ações contra a reforma da Previdência

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) ajuizou duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 3104 e 3105), com pedido de liminar, contra artigos da Emenda Constitucional nº. 41, da reforma da previdência social. A entidade questiona a cobrança previdenciária dos servidores inativos e dos pensionistas e a mudança nas regras de transição para a aposentadoria dos funcionários públicos, alegando que as novas disposições legais ferem o direito adquirido dos servidores.

Na ADI 3104, a Conamp diz que na reforma da previdência aprovada em 1998 foram criadas regras de transição que passaram a constituir direito adquirido e, por isso, não podem ser alteradas. A entidade explica, na ação, que a reforma de 1998 não estabeleceu regime jurídico objetivo aplicável a todos os servidores públicos, mas assegurou direito subjetivo já incorporado ao patrimônio jurídico de determinada classe de servidores públicos.

Assim, assegura, a Emenda Constitucional nº.41/03 “não poderia, como fez, retroagir para alterar-lhe o conteúdo, de modo a prejudicar aquele direito adquirido e impor situação jurídica mais gravosa aos seus titulares”. A nova emenda estabeleceu um redutor de até 5% no valor do benefício por ano de antecipação para quem se aposentar antes da idade mínima de 60 anos para homem e 55 anos para mulher.

Na ação contra a taxação dos inativos e pensionistas (ADI 3105), a Conamp diz que os servidores aposentados têm garantido o direito de não pagarem contribuição. Afirma, ainda, que esse direito foi garantido na reforma de 1998 que instituiu o caráter contributivo no regime previdenciário.

50 www.stf.gov.br.

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11/02/2004 - 18h26 - Procuradores da República acionam Supremo contra a contri-buição de inativos

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3128), com pedido de liminar, contra o artigo 4º da Emenda Cons-titucional nº. 41, relativa à reforma da Previdência. O dispositivo questionado pela entidade estabelece que os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, passem a contribuir para a Previdência Social, a partir da promulgação da emenda constitucional.

Segundo a Associação Nacional dos Procuradores, a contribuição dos servidores inativos e pensionistas desrespeita os direitos adquiridos e o ato jurídico perfeito, estabelecidos pelo artigo 5º da Constituição Federal. Na avaliação da ANPR, “os servidores aposentados ou aqueles que reuniam os requisitos necessários à inativação, antes da promulgação da Emenda que instituiu a reforma da Previdência, estavam submetidos a regime não contributivo ou solidário (antes da EC nº. 20/98) ou a regime tão somente contributivo (após a vigência da EC nº. 20/98). Em decorrência de tais circunstâncias, tinham incorporado a seu patrimônio o direito de não contribuírem para a Previdência Social”.

Ao reforçar o pedido de liminar, a ANPR ressalta que a norma ofende o princípio da irredu-tibilidade da remuneração, consagrado na Constituição. Diante dos motivos, a entidade pede ao Supremo que declare inconstitucional o artigo 4º da EC nº. 41. A relatora da ação é a ministra Ellen Gracie.

Toda a polêmica acima descrita gira em torno do artigo 4º da Emenda Constitucional nº.41/03 – a chamada “Reforma da Previdência”. Este dispositivo foi promulgado com a seguinte redação:

“Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Dis-trito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º,1 contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos. 51

Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:I - cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regi-me geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;II - sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União.”

Como você pode perceber, em última instância o que se discute aqui é se os servidores inativos teriam “direito adquirido” a não contribuírem para a Previdência depois de se aposentarem.

Após a leitura da petição inicial da ADIn e do voto do Ministro Gilmar Mendes no jul-gamento da questão, reflita: qual a sua opinião profissional a respeito? Procure se posicionar a respeito dos seguintes pontos:

51 Art. 3º, caput da EC nº

41/03: “É assegurada a con-

cessão, a qualquer tempo, de

aposentadoria aos servidores

públicos, bem como pensão

aos seus dependentes, que,

até a data de publicação desta

Emenda, tenham cumprido

todos os requisitos para

obtenção desses benefícios,

com base nos critérios da

legislação então vigente.”

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

• A EC nº.41/2003 viola direitos adquiridos? Em que sentido?• A EC nº.41/2003 viola cláusulas pétreas? Explique.• Seria possível revogar completamente a legislação existente sobre previdência, sem deixar nenhuma norma

regulando o tema? Por quê?

Conceitos

Seguridade Social, Previdência Social, Assistência Social, Contribuição, Aposentadoria, Pensão, Beneficiário,Proventos, Direito Adquirido, Expectativa de Direito, Regime Contributivo, Regime Solidário.

Bibliografia

Obrigatória para ambos os casos:• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23a ed. São Paulo: Malheiros, 2004. Tópico

“Da Seguridade Social”, capítulo da seção “Da Ordem Social”.

Caso I• Paulo Modesto. “Reforma Administrativa e Direito adquirido”. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ

- Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 8, novembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. (trechos selecionados pelo professor)

• Valmir Pontes Filho. Direito Adquirido ao Regime de Aposentadoria. Revista Diálogo Jurídico, Salvador,CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 8, novembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>.

Caso II• Voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI (editado)• Petição Inicial da ADI 3104

Complementar• Luís Roberto Barroso. “Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência (ascensão e queda

de um regime de erros e privilégios”. Temas de Direito Constitucional, v.III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.• Marcelo Leonardo Tavares. Direito Previdenciário. 6a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.• Paulo Modesto (org.). Reforma da Previdência. São Paulo: Fórum, 2004.

Jurisprudência

“Segundo a jurisprudência do STF, ‘o aposentado tem direito adquirido ao quantum de seus proventos cal-culado com base na legislação vigente ao tempo da aposentadoria, mas não aos critérios legais com base em queesse quantum foi estabelecido, pois não há direito adquirido a regime jurídico’ (RE 92.511, Moreira Alves, RTJ99/1267).” (AI 145.522-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 26/03/99)

“Aposentadoria: proventos: direito adquirido aos proventos conformes à lei regente ao tempo da reunião dosrequisitos da inatividade, ainda quando só requerida após a lei menos favorável (Súm. 359, revista): aplicabilida-de a fortiori, à aposentadoria previdenciária.” (RE 243.415, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 11/2/00)

Obrigatória para ambos os casos:• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23a ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

Tópico “Da Seguridade Social”, capítulo da seção “Da Ordem Social”.

Caso I• Luís Roberto Barroso. “A Segurança Jurídica na Era da Velocidade e do Pragmatismo”. Temas de Direito

Constitucional, v.II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.• Valmir Pontes Filho. Direito Adquirido ao Regime de Aposentadoria. Revista Diálogo Jurídico, Salva-

dor, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 8, novembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopu-blico.com.br>.

Caso II• Voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI da contribuição dos inativos (editado)

Complementar.• Paulo Modesto. “Reforma Administrativa e Direito adquirido”. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ

- Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 8, novembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. (trechos selecionados pelo professor)

• Luís Roberto Barroso. “Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência (ascensão e queda de um regime de erros e privilégios”. Temas de Direito Constitucional, v.III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

• Marcelo Leonardo Tavares. Direito Previdenciário. 6a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.• Paulo Modesto (org.). Reforma da Previdência. São Paulo: Fórum, 2004.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

“O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a re-gime jurídico. Quanto à atualização dos saldos do FGTS relativos aos Planos Verão e Collor I (este no que diz respeito ao mês de abril de 1990), não há questão de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matéria exclusivamente no terreno legal infraconstitucional.” (RE 226.855, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 13/10/00)

“O constituinte, ao estabelecer a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, diante da lei (art. 5º, XXXVI), obviamente se excluiu dessa limitação, razão pela qual nada o impedia de recusar a garantia à situação jurídica em foco. Assim é que, além de vedar, no art. 37, XIV, a concessão de vantagens funcionais ‘em cascata’, determinou a imediata supressão de excessos da espécie, sem consideração a ‘direito adquirido’, expressão que há de ser entendida como compreendendo, não apenas o direito adquirido propriamente dito, mas também o decorrente do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Mandamento auto-exeqüível, para a Administração, dispensando, na hipótese de coisa julgada, o exercício de ação rescisória que, de resto, importaria esfumarem-se, ex tunc, os efeitos da sentença, de legitimidade inconteste até o advento da nova Carta.” (RE 140.894, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 09/08/96)

“A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido.” (ADI 248, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 08/04/94)

“Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial váli-do são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos — que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) — acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e pre-cedentes. A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas.” (AI 292.979-ED, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/02)

“O princípio constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito se aplica também, conforme é o entendimen-to desta Corte, às leis de ordem pública. Correto, portanto, o acórdão recorrido ao julgar que, no caso, ocorreu afronta ao ato jurídico perfeito, porquanto, com relação à caderneta de poupança, há contrato de adesão entre o poupador e o estabelecimento financeiro, não podendo, portanto, ser aplicada a ele, durante o período para a aquisição da correção monetária mensal já iniciado, legislação que altere, para menor, o índice dessa correção.” (RE 202.584, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 14/11/96)

“No tocante ao direito adquirido, pelo respeito ao ato jurídico perfeito, a impedir que, com relação à cader-neta de poupança, em que há contrato de adesão, possa ser aplicada a ele, durante o período para a aquisição da correção mensal já iniciado, legislação que altere, para menor, o índice dessa correção, é entendimento já assentado por esta Corte.” (AI 210.680-AgR, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 26/06/98). No mesmo sentido: AI 561.676, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14/10/05.

“Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroa-tividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

do STF. Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Carta Magna. Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profis-sional (PES/CP).” (ADI 493, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 04/09/92)

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULAS 18 E 19

Direito à Saúde e o Sistema Único de Saúde na Constituição

Nota ao Aluno a) A saúde pública como interesse difuso

Inovadora em vários aspectos, a Constituição de 1988, inspirada na Carta italiana de 1948 (art. 32) e na Constituição portuguesa de 1976 (art. 64), foi, ainda, a primeira Carta Consti-tucional, na história do país, a reconhecer o direito à saúde como direito fundamental.52

A Constituição de 1988, todavia, não se limita a elevar a saúde a direito fundamental53. O constituinte originário buscou delinear a estrutura do chamado “Sistema de Saúde” no Brasil, no intuito de oferecer aos poderes constituídos diretrizes mínimas para concretizar, na prática, o direito constitucional à saúde. Se a proteção da saúde dos cidadãos é dever do Estado, então é preciso que se criem instituições voltadas para o cumprimento dessa tarefa constitucional. Nesta aula, nossa discussão se dará justamente em torno das ferramentas necessárias para a compreensão do Sistema de Saúde no Brasil.

Cabe esclarecer, no entanto, antes de nos voltarmos para a análise desta estrutura, que o direito constitucional à saúde pode ser visto, também, sob um prisma meta-individual. Vale dizer: o direito à saúde, mais do que um direito individual, é um direito difuso da coletivi-dade - afeta a população como um todo, em diferentes lugares, e em diferentes momentos, e de forma distinta para cada um, no tempo e no espaço. Por exemplo: se o Poder Público não produzir uma eficaz campanha preventiva contra a AIDS, em algumas décadas o Bra-sil acabará tendo uma população com índices alarmantes de contaminação pelo vírus do HIV. E isso, naturalmente, vai se refletir na sobrevida provável dos brasileiros, com reflexos imprevisíveis para o país, inclusive na esfera econômica. Se por um lado os brasileiros já contaminados com o HIV têm direito a exigir (inclusive judicialmente) do Estado a presta-ção do tratamento de que necessitam, por outro a coletividade como um todo têm direito a que esse estado de coisas (a disseminação completa do vírus na comunidade) seja evitado também por meio da atuação do Estado.

Um outro exemplo marcante é o da dengue. Na década de 30, o Brasil chegou a erradi-car o mosquito da dengue (aedes egypti). Ocorre que, em função da falta de investimentos na área de saúde, notadamente em campanhas de prevenção, a dengue voltou com força total e é, hoje, um dos piores males que afligem a coletividade municipal. Não é por outra razão que o art. 198, II, da Carta de 1988 estabelece como prioridade, na defesa da saúde pública, a realização de campanhas preventivas pelo Poder Público.

Nesse aspecto, uma questão controvertida diz respeito à legitimidade do Ministério Pú-blico para a defesa da saúde pública, em nome da coletividade. Nos termos do art. 129, III, incumbe ao Ministério Público a defesa, por intermédio da ação civil pública, dos interesses difusos e coletivos. Reza o aludido artigo:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:(...)III – promover o inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio pú-

blico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”É evidente que, se o Poder Público decidisse construir uma usina nuclear, no Estádio

de Remo da Lagoa, e decidisse transformar a Lagoa em depósito de lixo nuclear, poderia o

52 Uadi Lammêgo Bulos.

Constituição Federal anotada,

6ª ed., São Paulo: Saraiva,

2005, p. 1338. No mesmo

sentido: Ieda Tatiana Cury.

Direito Fundamental à Saúde,

Rio de Janeiro: Lumes Júris,

2005, p. 94.

53 Vale recordar, aqui, as

discussões realizadas na disci-

plina “Organização do Estado

e Direitos Fundamentais”, a

respeito da natureza do direito

constitucional à saúde. Ali se

discutiu se a norma contida

no art. 6º da Constituição

Federal, e reproduzida no art.

196, encerraria em favor da

pessoa humana um direito

fundamental, suscetível de

ser exigido do Poder Público.

Naquela época - e ainda hoje,

em menor escala - sustentava

uma parcela substancial da

doutrina que o art. 196 da

Constituição Federal consa-

grava uma regra de caráter

meramente programático,

indicando uma diretriz a

ser adotada pelos poderes

constituídos, não autorizando,

no entanto, o Poder Judiciário

a se substituir à vontade do

Poder Executivo e lhe impor

prestações positivas, em

defesa da saúde individual.

O Supremo Tribunal Federal,

de início mais timidamente,

e posteriormente em larga

escala, firmou entendimento

no sentido de que a saúde é

um direito fundamental, como

corolário lógico do direito à

vida. A esse respeito, merece

menção a ementa do Recurso

Extraordinário nº. 232.335-RS,

da lavra do Ministro Celso de

Mello: “EMENTA: PACIENTES

COM HIV/AIDS. PESSOAS

DESTITUÍDAS DE RECURSOS

FINANCEIROS. DIREITO À VIDA

E À SAÚDE. FORNECIMENTO

GRATUITO DE MEDICAMENTOS.

DEVER CONSTITUCIONAL DO

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FGV DIREITO RIO 62

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Ministério Público propor uma ação civil pública com o intuito de impedir a referida cons-trução, na defesa da saúde pública e do meio-ambiente. A questão assume maior complexi-dade, contudo, quando a pretensão ministerial, por meio da ação civil pública, é conseguir um “fazer” do Poder Público – uma atuação positiva, e não uma simples omissão, o que implica a destinação de recursos públicos para uma finalidade específica, que muitas vezes precisaria ser detalhada pelo Judiciário ou pelo próprio Ministério Público. Como conci-liar esse papel do Ministério Público com o princípio da separação e independência dos poderes? Como conciliar esse tipo de atuação com outras exigências constitucionais - por exemplo, as de prévia dotação orçamentária para a realização de qualquer despesa (Art. 167, I), realização de licitação para a contratação com o Poder Público (Art. 37, XXI) e realização de concurso público para o preenchimento de cargo público (Art. 37, III)?

Procure relacionar esses problemas com as discussões sobre as formas de eficácia de normas constitucionais. Como podemos classificar a norma do art. 196 da Constituição quanto à sua eficácia jurídica?

b) o Sistema de Saúde no Brasil

Ao tratar do Sistema de Saúde no Brasil, a Constituição de 1988 estabelece algumas diretrizes básicas para concretizar o “dever ser” imposto pelo direito constitucional à saúde. Nos termos da Constituição, o sistema de saúde no país assume uma feição mista: embora seja a saúde um dever do Estado (art. 196 da CF/88), é livre à iniciativa privada, na forma do art. 199 da Lei Fundamental.

Ser livre à iniciativa privada, no entanto, não significa dizer que estejam os particulares livres para atuar, na área de saúde, sem qualquer fiscalização. Considerando a relevância pública de que se revestem as ações e serviços de saúde, o poder constituinte originário estabeleceu para o Poder Público a responsabilidade de dispor, na forma da lei, sobre a re-gulamentação, fiscalização e controle dos serviços de saúde prestados pela iniciativa privada (art. 197 da CF/88). É nesse cenário que se encaixa o Conselho Federal de Medicina, por exemplo, assim como de todos os conselhos regionais a ele ligados. Trata-se de uma autar-quia especial, dotada de personalidade jurídica de direito público, voltada para fiscalizar o médico e regulamentar a sua atuação profissional.

No âmbito da atuação pública, a Constituição de 1988 criou a figura do Sistema Único de Saúde (art. 198). Assim, embora os entes da Federação sejam todos autônomos e dota-dos de capacidade para gerir os seus próprios interesses, estabelece a Carta Maior, em nome do princípio da eficiência, que as ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único. A idéia por trás desse arranjo é a de evitar, dentre outros fatores de ineficiência, a duplicidade de investimentos em uma mesma área ou a realização de investimentos conflitantes ou contraditórios.

Isso não quer dizer, porém, que os entes políticos tenham perdido sua autonomia. Procura-se aumentar a eficiência na proteção à saúde, mas sem suprimir a direção única em cada esfera de governo, conforme fez por bem o constituinte expressar no art. 198, I, da Carta de 1988.

Além disso, muito embora se trate de um “Sistema Único de Saúde”, impõe a Lei Fun-damental a descentralização dos serviços de saúde, reconhecendo, assim, em razão da enor-me extensão territorial do país, que as necessidades variam de região para região. As compe-tências do Sistema Único de Saúde estão, em caráter exemplificativo, relacionados no art. 200 da Constituição.

A relevância da saúde é tamanha que o poder constituinte foi mais além ao tratar do tema: exige dos entes da Federação a aplicação de recursos mínimos do orçamento na área de saúde (art. 198, § 2º, da CF/88), sendo que o descumprimento dessa determinação

ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT,

E 196). PRECEDENTES (STF).

- O direito público subjetivo

à saúde representa prer-

rogativa jurídica indisponível

assegurada à generalidade

das pessoas pela própria

Constituição da República (art.

196). Traduz bem jurídico con-

stitucionalmente tutelado, por

cuja integridade deve velar, de

maneira responsável, o Poder

Público, a quem incumbe for-

mular - e implementar - políti-

cas sociais e econômicas que

visem a garantir, aos cidadãos,

o acesso universal e igualitário

à assistência médico-hospita-

lar. - O caráter programático

da regra inscrita no art. 196

da Carta Política - que tem

por destinatários todos os

entes políticos que compõem,

no plano institucional, a

organização federativa do

Estado brasileiro - não pode

converter-se em promessa

constitucional inconseqüente,

sob pena de o Poder Público,

fraudando justas expectativas

nele depositadas pela coletivi-

dade, substituir, de maneira

ilegítima, o cumprimento de

seu impostergável dever, por

um gesto irresponsável de

infidelidade governamental

ao que determina a própria

Lei Fundamental do Estado.

- A legislação editada pelo

Estado do Rio Grande do Sul

(consubstanciada nas Leis

nºs 9.908/93, 9.828/93 e

10.529/95), ao instituir pro-

grama de distribuição gratuita

de medicamentos a pessoas

carentes, dá efetividade a pre-

ceitos fundamentais da Consti-

tuição da República (arts. 5º,

caput, e 196) e representa,

na concreção do seu alcance,

um gesto reverente e solidário

de apreço à vida e à saúde

das pessoas, especialmente

daquelas que nada têm e nada

possuem, a não ser a consciên-

cia de sua própria humanidade

e de sua essencial dignidade.

Precedentes do STF.”

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FGV DIREITO RIO 63

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

pode dar ensejo, inclusive, a intervenção federal nos Estados (art. 34, VII, da CF/88) e intervenção estadual nos Municípios (art. 35, III, da CF/88).

Procure refletir sobre a aplicação sistemática dessas normas constitucionais na discussão do segundo caso selecionados para essas aulas.

Casos

Caso I – A Dengue na Cidade do Rio de Janeiro

Com a chegada do verão, uma preocupação costuma se abater sobre a coletividade municipal: a dengue. Ve-rão vai e verão vem e, dependendo das decisões dos governantes, tem-se ou não uma nova epidemia de dengue. Você provavelmente se lembra do debate travado entre o prefeito da cidade do Rio de Janeiro e o então ministro da Saúde, a época do governo FHC, a respeito da responsabilidade pela epidemia de dengue que afligiu a cidade do Rio de Janeiro. O embate se deu porque faltaram verbas públicas que viabilizassem as precauções necessárias para evitar a disseminação da doença. Enquanto o governo federal dizia que era responsabilidade do município o combate à dengue nos limites de seu território, o prefeito atribuía ao governo federal o dever de combater epidemias dessa natureza.

Diz a Constituição de 1988:

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:(...)II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;(...)”

Isto significa que nos termos da Constituição Federal, compete ao Poder Público priorizar as atividades pre-ventivas, precisamente para evitar epidemias como a da dengue. De fato, a prevenção é muitíssimo mais eficaz do que a atuação a posteriori, quando a doença já está instalada no meio-ambiente.

Com o verão começando, e diante da inércia dos governantes, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro decidiu propor uma ação civil pública com base no artigo 129, III, da Constituição Federal, em face do Município do Rio de Janeiro, do Estado do Rio de Janeiro e da União Federal, pretendendo:

(i) a reserva de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais) anuais para a realização de campanha contra a dengue;(ii) a contratação de 300 funcionários (mata-mosquitos) pela prefeitura, para dar andamento à cam-panha;(iii) a divulgação semanal nos principais veículos de comunicação das formas de combate à dengue, explicitando como deve ser a participação da comunidade no combate à doença, em atendimento ao art. 198, III, da Constituição;(iv) a aquisição de 20 (vinte) veículos para permitir a vaporização de fumacê (inseticida) em todas as localidades da cidade do Rio de Janeiro; e(v) finalmente, a aquisição de 100.000 metros cúbicos de fumacê.

Na petição inicial, o representante do MP argumentava que, mesmo tendo havido a erradicação do aedes egypti, mosquito transmissor da enfermidade, nos idos de 1930, a doença voltou a afligir a população flumi-nense nos anos 80, precisamente em função da inexistência de programas de prevenção por parte dos órgãos

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

governamentais. A situação, já alarmante, se tornou calamitosa ao final dos anos 90 e início de 2000, em virtude da falta de verbas destinadas ao combate à doença. Em anexo à petição, estavam 5 (cinco) laudos técnicos, todos elaborados por especialistas em saúde pública, demonstrando as medidas necessárias para o efetivo combate à dengue, até a sua efetiva erradicação.

Contestando os argumentos do MP, os entes da Federação alegaram que:

• Preliminarmente, o Ministério Público não teria legitimidade para o ajuizamento da ação civil pública, uma vez que a saúde pública não constitui interesse difuso e nem coletivo, consistindo a regra do art. 196 da Constituição em Federal em norma de caráter meramente programático;

• A pretensão do MP viola o princípio orçamentário, uma vez que, na forma do art. 167, I, a Constituição da República de 1988 exige prévia dotação orçamentária para a realização de qualquer despesa;

• Ainda quanto ao mérito, a contratação de pessoal depende de prévio concurso público (art. 37, II, da CF/88), assim como a aquisição de veículos e de fumacê pressupõe prévia licitação (art. 37, XXI, da CF/88);

• Por fim, a atuação estatal está adstrita aos “limites do possível”, cabendo ao chefe do Poder Executivo, e não ao Poder Judiciário e, menos ainda, ao Ministério Público, definir aonde deverão ser alocados os recursos públicos disponíveis, se na educação, em obras de relevância para a coletividade, na proteção do meio-ambiente, ou mesmo em outros projetos de maior relevância para a saúde, como a pesquisa da cura da AIDS, por exemplo, sob pena de violação ao princípio da separação e independência dos poderes, contido no art. 2º da Constituição.

Contudo, embora as teses acima fossem consensuais, os entes processados também discordavam entre si. A União Federal atribuiu a responsabilidade pela delicada situação que assola a cidade do Rio de Janeiro à muni-cipalidade, sob o fundamento de que é de responsabilidade do ente menor, e não do ente maior, a competência para prestar os serviços de saúde de relevância local (art. 30, I e VII, da CF/88). Já o município afirmou que vinha aplicando os recursos mínimos necessários à saúde, na forma dos arts. 198, § 2º, III, e § 3º, I, da Carta de 1988, enquanto a União, em descumprimento ao comando contido nos arts. 198, § 3º, II, e 30, VII, ambos da Lei Fundamental, não teria efetuado o repasse das verbas que cabem ao Município do Rio de Janeiro para a proteção da saúde.

Após analisar os artigos da Constituição pertinentes e o material de leitura selecionado, profira sentença a respei-to da controvérsia, abordando os problemas levantados na petição inicial e na contestação dos entes da Federação.

Caso II – A crise da saúde pública na Cidade do Rio de Janeiro e a “intervenção federal” no ano de 2005.

Dispõe o art. 198, I, da Constituição:

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;(...)”

Assim, em atendimento ao comando contido no art. 198, I, da Constituição de 1988, por volta do ano de 1997, o governo federal deu início a um processo que tinha por objetivo implementar a descentralização dos serviços de saúde no Brasil. E isso foi feito com base nas regras contidas na Lei nº. 8.080/1990, em especial o seu art. 16, XV, que estabelece:

“Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:(...)

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;(...)”

A Lei nº. 8.080/1990, regulamentando o Sistema Único de Saúde, conforme previsão contida nos arts. 198 e 200 da Magna Carta, em homenagem ao princípio da eficiência, delineou as competências de cada ente da Fe-deração na prestação dos serviços de saúde. No campo da assistência médico-hospitalar, coube à União Federal, assim como aos Estados, os serviços de alta complexidade (arts. 16, III, “a”, e 17, IX, da Lei nº. 8.080/1990), enquanto aos Municípios se atribuiu a gestão e execução dos serviços de saúde em geral, notadamente o atendi-mento ambulatorial e a gestão da maior parte dos hospitais.

Em conseqüência, no ano de 1997, as primeiras unidades de saúde, integrantes da Administração Pública Federal, foram transferidas para a gestão municipal e, ao final de 1998, à exceção de algumas unidades alta-mente especializadas (exemplo: Instituto Nacional do Câncer - INCA), praticamente todos os hospitais federais estavam sob a responsabilidade do município. No total, eram 27 unidades, entre as quais o Hospital Geral de Ipanema, o Hospital Geral do Andaraí e o Hospital da Lagoa.

Por força da Constituição, a transferência da gestão estava necessariamente atrelada ao repasse de recursos para o adequado cumprimento da tarefa atribuída aos Municípios, nos termos dos arts. 198, § 3º, II, e 30, VII, ambos da Lei Fundamental. Dispõe o aludido artigo 30, VII:

“Art. 30. Compete aos Municípios:(...)VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;(...)”

Assim, ainda que a gestão tenha sido municipalizada, os hospitais prosseguiam pertencendo ao governo fe-deral. Por isso, os entes pactuaram as partes, expressamente – por meio de “Termo de Cessão de Uso” assinado pela União e pelos Municípios – o repasse para a edilidade dos recursos necessários em face das novas despesas oriundas da transferência da gestão dos hospitais federais para o Município do Rio de Janeiro.

Ocorre que, com o passar dos anos, apesar de um substancial aumento na procura pelos serviços de saúde prestados nos referidas unidades hospitalares, não procedeu a União a qualquer mudança ou reajuste nos valores repassados ao município, que ficou com o ônus de aplicar recursos próprios em hospitais federais, em prejuízo das unidades municipais. Como conseqüência, o serviço de saúde municipal atingiu um estado crítico.

Na falta de uma composição amigável com o governo federal, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro editou o Decreto nº. 24.999/2005, proibindo a alocação de pessoal e de recursos próprios para investimento em equipa-mentos e obras nas referidas instituições. Além disso, o Decreto determinava a redução gradativa de gastos com manutenção dos hospitais federais, à razão de um quinto por mês, até a sua completa eliminação.

A reação do governo federal foi imediata: ajuizou medida judicial e obteve liminar para suspender os efeitos do Decreto nº. 24.999/2005, com os seguintes argumentos:

(i) é a própria Constituição Federal que determina a descentralização dos serviços de saúde (art. 198, I, da CF/88);

(ii) o art. 198, II, da Carta Maior impõe aos entes da Federação o “atendimento integral”, não sendo possível transferir para a população os riscos de um conflito político entre os entes.

No dia 11.03.2005, o presidente da República editou o Decreto nº. 5.392, declarando “estado de calamida-de pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde do Município do Rio de Janeiro”, requisitando bens, serviços, servidores municipais e recursos financeiros afetos não apenas aos referidos hospitais federais, como, também, a alguns hospitais municipais de referência, em especial os Hospitais Souza Aguiar e Miguel Couto.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Logo após, nomeou como interventor federal o Sr. Sergio Cortes, então Diretor do Instituto de Trauma-Orto-pedia do Rio de Janeiro.

Imediatamente, o Município do Rio de Janeiro impetrou mandado de segurança contra o ato do presidenteda República, argumentando que, na hipótese, estaria havendo uma escancarada intervenção federal no Municí-pio do Rio de Janeiro, sem que estivessem presentes os requisitos previstos nos arts. 34 e 35 da Carta de 1988.

Após analisar os artigos da Constituição pertinentes e o material de leitura selecionado, elabore o seu parecersobre a questão, manifestando-se sobre os seguintes quesitos:

• Qual o fundamento constitucional para a transferência da gestão dos hospitais federais para o Municípiodo Rio de Janeiro?

• Estava a União obrigada a repassar ao município as verbas necessárias para fazer frente às despesas comcusteio e investimento nos referidos hospitais entregues à gestão municipal?

• Na falta de previsão expressa no “Termo de Cessão de Uso”, a resposta ao quesito anterior seria diferente?• Juridicamente, tinha o Município do Rio de Janeiro o direito de proibir a alocação de pessoal e de recursos

próprios para investimento em equipamentos e obras nos referidos hospitais, determinando, ainda, a reduçãogradativa de gastos com manutenção, à razão de um quinto por mês até a completa eliminação?

• Estavam presentes os pressupostos para a concessão de liminar para impedir a produção dos efeitos previs-tos no Decreto Municipal nº. 24.999/2005?

• Poderia a União ter procedido à intervenção nos hospitais sob a gestão municipal? E o Estado do Rio deJaneiro?

Conceitos

Direitos individuais, difusos e coletivos; Limites do Possível; Orçamento; Sistema Único de Saúde.

Bibliografia:

Leitura Obrigatória:

Caso I• Sentença proferida pelo Exma. Sra. Juíza de Direito Valéria Pacha Bichara, no processo nº

2004.001.072.814-0 (1ª Vara de Fazenda Pública).• Ieda Tatiana Cury. Direito Fundamental à Saúde, Lumen Juris, 2005, p. 93/106 e 120/131.

Caso II• Reportagem “SEM DAR A MÍNIMA PARA SAÚDE”, publicada no Jornal O Globo do dia 24 de ja-

neiro de 2005.• Razões recursais do Município do Rio de Janeiro no Processo nº. 2005.02.01.000697-1.• Contra-razões de agravo da União Federal no Processo nº. 2005.02.01.000697-1.

Leitura Complementar:• Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins. Comentários à Constituição do Brasil. 8º vol. São Paulo:

Saraiva, 1998. Pp.109 a 190.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 20

Comunicação Social: Soberania e/ou Globalização

Nota ao Aluno

Nesta aula, o problema básico apresentado, é um exemplo de tensão entre norma e realidade, mais especi-ficamente entre o regime constitucional da Comunicação Social (arts. 220 a 224) e as inovações tecnológicas que vêm reconfigurando os processos de transmissão de informação. Nesse sentido, o objetivo da aula é duplo: analisar a sistemática da Comunicação Social na Constituição, identificando inclusive as competências da cada órgão (Executivo, Congresso, ANATEL etc.), por um lado, e problematizar a aplicabilidade desses dispositivos diante de um mundo em constante transformação, por outro.

Os meios de comunicação capazes de atingir um público amplo são estratégicos, e isso não passou desperce-bido pelo constituinte. De posse dos meios necessários para falar diretamente a milhões de pessoas, um grupo ou mesmo um indivíduo pode veicular de forma sistemática mensagens que favoreçam seus interesses. A possibili-dade de uma comunicação enviesada e contrária aos interesses nacionais fez com que a Assembléia Constituinte positivasse inúmeras restrições à participação estrangeira nos meios de comunicação de massa. Essas restrições – fundadas no imperativo da soberania nacional - são analisadas em detalhes na leitura selecionada para a aula.

Contudo, à primeira vista, o advento de novas tecnologias de transmissão de informações pode colocar em xeque algumas das pretensões “dirigentes” da Constituição de 1988. As telecomunicações, a radiodifusão e a mídia impressa estão expressamente contempladas no texto constitucional. No caso desta aula, discutiremos a aplicabilidade dos dispositivos constitucionais a veículos de comunicação de massa que não se encaixam facil-mente em nenhuma das categorias acima.

O Caso

O GRUPO XYZ - grande conglomerado de empresas asiáticas – é uma importante presença no mercado de entretenimento de massa em diversos países da Ásia e da Europa Oriental. Sua estratégia é muito simples: adqui-rir novelas japonesas, feitas com orçamentos baixíssimos, fazer as dublagens na língua oficial de um determinado país, para finalmente abrir um canal de televisão e vender o espaço dos intervalos para anunciantes locais.

A prioridade para o próximo ano é investir pesadamente no setor de comunicação de massa no Brasil. Con-tudo, o grupo ainda não conseguiu definir exatamente o montante de recursos que precisará para realizar seus planos de investimentos, pois, para tanto, precisa saber exatamente de que forma entrará na mídia brasileira.

Nesse sentido, as dificuldades e dúvidas têm sido consideráveis, especialmente porque o GRUPO deseja fazer tudo de acordo com as leis brasileiras. O departamento jurídico do GRUPO XYZ está às voltas com a Consti-tuição brasileira, sem conseguir entender exatamente o tipo de restrição ao conteúdo de sua programação e à sua própria presença na mídia do país.

Assim, eles contratam os seus serviços e pedem que elabore um parecer sobre os seguintes quesitos:• GRUPO XYZ poderia manter um jornal impresso? E uma televisão? Em caso negativo, quais as medidas

que deveriam ser tomadas para viabilizar a atuação do GRUPO em cada uma das hipóteses?• O artigo 221 se aplicaria caso a empresa se dedicasse apenas a manter um site com versões dubladas de

novelas japonesas, com uma equipe brasileira e um diretor brasileiro, em um domínio “.br”?

Conceitos

Liberdade de Imprensa, Liberdade de Expressão, Liberdade de Informação; Mídia impressa e televisiva; Radiodifusão.

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68FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Bibliografia

Leitura Obrigatória• Luís Roberto Barroso. “Constituição, Comunicação Social e as Novas Plataformas Tecnológicas”, in Temas

de Direito Constitucional, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Leitura Complementar• Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. Liberdade de Informação e o Direito Difuso à Informa-

ção Verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. (cf. especialmente os capítulos V, VII e VIII).• José Paulo Cavalcanti Filho. “Informação e Soberania”. Palestra proferida em 30/09/05 na Conferência

Nacional da OAB (Florianópolis). Disponível no site www.noblat.com.br (seção “Artigos”).• ____. “O Drama da Verdade (ou Discurso sobre Alguns Mitos da Informação)”. Comunicação apresentada

em 10/1/05 ao 6º Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa (Lisboa, Portugal). Disponívelno site http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/.

Leitura Obrigatória• Luís Roberto Barroso. “Constituição, Comunicação Social e as Novas Plataformas Tecnológicas”, in Te-

mas de Direito Constitucional, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Leitura Complementar• Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. Liberdade de Informação e o Direito Difuso à Infor-

mação Verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. (cf. especialmente os capítulos V, VII e VIII).

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULAS 21 E 22

Direito à Educação e o Sistema de Ensino no Brasil Nota ao Aluno

A inclusão da educação na pauta constitucional se deu com a Constituinte de 1934. Desde então, todas as Cartas de nossa história constitucional contemplaram em seu texto uma série de dispositivos que visavam – ao menos formalmente – à garantia do direito a todo brasileiro de receber educação.

A dignidade da pessoa humana, elevada em 1988 à condição de princípio fundamental da República Federa-tiva do Brasil, fornece sustentação ainda maior às preocupações constitucionais com a educação. Afinal, um mí-nimo de instrução é condição necessária para que o indivíduo possa desenvolver suas potencialidades e aptidões. Por outro lado, a construção de um Estado Democrático de Direito no país também depende da instrução dos cidadãos, que precisam participar de forma efetiva das decisões políticas fundamentais da comunidade em que vivem. Assim, percebe-se que a educação é instituída para atender tanto aos interesses do indivíduo, que precisa possuir condições para ser autônomo e desenvolver sues projetos pessoais de vida, quanto da coletividade, que precisa de cidadãos bem-formados para se ocuparem da res publica (ainda que apenas por meio do voto).

As preocupações constituintes com a educação foram positivadas em título específico da Constituição. Ve-jamos o artigo 205:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Nos artigos seguintes, o constituinte estabeleceu parâmetros mais específicos com base nos quais o Estado pode cumprir o seu dever para com a educação. O instrumento básico pelo qual a educação é promovida é o ensino. Nos termos da Constituição, existem alguns níveis diferentes de ensino no Brasil, cada um se pautando por regras e princípios que, em muitos casos, guardam especificidades em relação aos outros níveis de ensino: fundamental, médio e superior. Você consegue identificar esses subconjuntos normativos no texto constitucio-nal? A exata compreensão do sistema normativo educacional na Constituição é fundamental para a resolução de diversos problemas práticos, como, por exemplo, os que analisaremos nas próximas duas aulas.

Além de assegurar o direito fundamental à educação – fundamental, por interpretação sistemática com o ar-tigo 5°, caput –, em seu artigo 209, a Constituição também assegura à iniciativa privada a possibilidade de atuar na esfera do ensino. Isso vale para todos os níveis do ensino no Brasil. Ou seja: embora a educação seja um direi-to subjetivo oponível primariamente ao Estado, ao particular é permitida a prestação de serviços educacionais.

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

O direito à educação, portanto, pode ser efetivado diretamente tanto pelo Estado quanto pelo particular. Quando for efetivado pelo Estado, o ensino será regulado pelas normas editadas pelos entes competentes na esfera apropriada (municipal, estadual ou federal). Quando couber ao particular fornecer a educação, ele tem relativa liberdade para organizar sua atividade da maneira que considerar mais adequada, respeitadas as normas gerais da educação nacional.

Contudo, o tipo de serviço prestado por uma escola ou faculdade particular é também uma atividade eco-nômica. Os alunos pagam pelas aulas ou pelo treinamento que desejam receber. Nesse aspecto, os princípios constitucionais da liberdade de iniciativa e da livre concorrência são aplicáveis ao ensino privado; caso contrário, pouco sentido haveria em dizer que o ensino é “livre” para o particular dentro de certas condições.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Mas será que o Estado pode interferir nessa atividade de prestação de serviços educacionais, quando realizada pela iniciativa privada? Como o Estado cumpre o seu papel de provedor de edu-cação quando esta não é prestada diretamente por seus órgãos, levando-se em conta que a atuação dos particulares pressupõe algum grau de liberdade, nos termos da própria Constituição?

Alguns autores afirmam que a livre concorrência e a livre iniciativa, que regulam a atua-ção econômica dos particulares, devem ceder a “outros valores da ordem constitucional” em certos casos específicos.54 Mas quais seriam estes “outros valores constitucionais”? Podería-mos incluir o direito à educação nessa categoria? No julgamento da ADIn 391-4, que serve de base para o caso desta aula, o Supremo enfrentou esse mesmo problema. De que forma o regramento constitucional do direito à educação em suas várias dimensões pode fundar al-guma forma de intervenção do Estado no processo de circulação de serviços educacionais?

Os problemas jurídicos não se limitam à relação entre o Estado e a iniciativa privada na prestação de serviços educacionais. Mesmo dentro do sistema público de ensino existem polêmicas quanto ao que o Poder Público pode ou não pode fazer, especialmente em face do princípio constitucional da autonomia universitária (art.207), pelo qual as instituições públicas de ensino qualificadas como “universidades” possuem “autonomia didático-cientí-fica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.” Você consegue imaginar como essa norma pode entrar em conflito com outras normas que procurem promover outros aspectos constitucionais do direito à educação?

Casos

Caso I – “Tabelamento” de mensalidades escolares?

A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº.8.039, de 30 de Maio de 1990, que dispunha sobre critérios de reajustes das mensalidades das escolas particulares, nos seguintes termos:

Art. 1º. Os reajustes das mensalidades das escolas particulares de 1º, 2º e 3º graus, bem assim das pré-escolas, referentes aos serviços prestados a partir de 1º de maio de 1990, serão calculados de acordo com o percentual de reajuste mínimo mensal dos salários em geral, fixados no inciso II do art. 2º da Lei nº. 8.030, de 13 de abril de 1990.

O argumento básico da autora era o de que, em face do princípio da livre iniciativa (artigo 170, caput da Constituição), aplicável às escolas como exploradoras de atividade econômica lícita e reconhecida pela Constituição (artigo 209), não seria permitida qualquer espécie de atuação estatal no controle de preços.

Além disso, não haveria na Constituição qualquer dispositivo que permitisse a ingerên-cia do Poder Público na política de preços praticada pelo mercado. Ao contrário: o artigo 170, IV consagra a livre concorrência como um dos princípios da ordem econômica. Mais: o artigo 174 não contempla a fixação de preços como forma legítima de atuação estatal na atividade econômica.

Dessa forma, por força dos princípios da livre concorrência e livre iniciativa e do próprio artigo 209, o Estado só poderia intervir nos preços praticados pelos estabelecimentos de ensino se estivéssemos diante de abuso de poder econômico. Assim, para a CONFENEN, a intervenção estatal na formação dos preços dos serviços educacionais só seria admissível a posteriori, nunca preventivamente, na hipótese prevista no artigo 173 § 4º:

54 Luís Roberto Barroso, “A

crise econômica e o direito

constitucional”, in Revista

Forense n°323/83, p.92

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da con-corrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Nas informações encaminhadas ao STF pela Consultoria Geral da República, em defesa da constituciona-lidade da Lei, assinalou-se que “a atividade econômica encontra limitações, para que atinja a sua finalidade de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art.170)”.

Considerando o argumento apresentado pela Consultoria Geral da República muito vago e temendo por um desfecho desfavorável aos seus interesses, a UNE – União Nacional dos Estudantes Secundaristas – contrata os seus serviços advocatícios. Pensando em fortalecer a sua argumentação em prol da constitucionalidade da Lei, a organização pede a você que elabore um parecer respondendo aos seguintes quesitos:

• A União tem competência para adotar essa medida? • Educação pode ser considerada “serviço público”? Em caso afirmativo, como isso repercute nos argumentos

da CONFENEN?• O alcance do artigo 209 da Constituição veda toda e qualquer interferência estatal no âmbito da educação?

Se não veda, como podemos determinar nesse caso se a interferência é constitucional ou não?• Essa mesma medida poderia ser adotada no âmbito do ensino superior?

Lembre-se: como parecerista, você não é obrigado a dizer o que quem o contratou deseja ouvir, mas sim a dar sua opinião profissional sobre os quesitos.

Caso II – Contraprestações ou cobrança de mensalidades de alunos e ex-alunos de universidades públicas

Em 2003, o deputado Otávio Leite apresentou à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro o Projeto de Lei nº.713/2003, que “institui o programa ‘compromisso social’ de prestação de serviços à comunidade por alunos dos cursos de graduação das universidades públicas estaduais”, nos seguintes termos:

Art.1º - Esta Lei institui o Programa “Compromisso Social”, visando à participação, em atividades de serviços à comunidade, dos alunos dos cursos de graduação das universidades públicas estaduais, como forma de retribuição dos investimentos da sociedade em suas formações profissionais.Art. 2º - Todos os alunos dos cursos de graduação das universidades públicas estaduais, independente-mente de haverem, ou não, ingressado pelo sistema de cotas, participarão, pelo período de pelo menos um ano, durante ou após a conclusão do curso, do Programa “Compromisso Social”, a ser implantado diretamente pelas Instituições de Ensino, ou mediante convênios com os três Poderes do Estado e suas entidades da administração direta e indireta, fundações ou, ainda, em parcerias com instituições da sociedade civil sem fins lucrativos. (...)Art. 6º - O Poder Executivo estadual poderá instituir bolsa-auxílio para atender às despesas básicas dos inscritos no Programa.Art. 7º - Ficam as universidades públicas estaduais autorizadas a estender o Programa “Compromisso So-cial” para ex-alunos, formados antes da vigência desta Lei, para participação exclusivamente voluntária.Art. 8º - O Programa instituído por esta Lei poderá ser implantado por órgãos estaduais de fomento à pesquisa, em contrapartida às bolsas concedidas.

Segundo argumenta o dep. Otávio Leite na justificativa do projeto de lei, “a proposta tem como objetivo principal estimular, na prática, o amadurecimento da consciência social dos universitários, em face de uma sociedade ainda profundamente dividida e injusta”, criando um compromisso para os alunos retribuírem de

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alguma forma o investimento da sociedade na sua formação.Em sentido semelhante, o deputado Divanir Braz Palma (PST) submeteu à apreciação da Assembléia Legis-

lativa do Estado do Paraná o Projeto de Lei que “autoriza o Poder Executivo a restringir a gratuidade nos cursosde graduação nas universidades públicas estaduais”, com a seguinte redação:

Art.1º - Fica o Poder Executivo autorizado a restringir a gratuidade nos cursos de graduação oferecidos pelas universidades públicas e estaduais.1º. A gratuidade a que se refere este artigo ficará restrita ao primeiro curso de graduação em que o aluno se matricular2º. Em caso de reprovação, o graduando perderá o benefício da gratuidade quanto à respectiva disci-plina.Art. 2º Os valores deverão ser pagos diretamente a universidade em que o aluno graduando estiver ma-triculado, sob a forma de mensalidade.Art.3º Os valores de que trata o artigo anterior em prol da respectiva universidade, devendo ser aplica-dos na aquisição de livros e equipamentos destinados ao ensino e à pesquisa, na construção de salas de aula, reformas e congêneres. (...)

Você é assessor de um senador que deseja avaliar a possibilidade e a conveniência de se adotar medidas seme-lhantes no âmbito federal. Após analisar os artigos da Constituição pertinentes e o material de leitura seleciona-do, elabore o seu parecer, manifestando-se sobre os seguintes quesitos:

• Os dois Projetos de Lei acima descritos são formalmente e materialmente constitucionais?• A União possui competência normativa para adotar uma medida do gênero?• A medida incidiria também sobre as universidades estaduais?• A medida entraria em conflito com o princípio da autonomia universitária (art.207, CF)?• Essa medida entraria em conflito com quais outros princípios constitucionais?• Se o senador desejasse propor uma medida similar aos projetos acima descritos, qual seria o caminho a ser adotado

quanto ao tipo de norma ser produzido? Por quê? Proponha de forma sintética uma redação para essa norma.• Na ausência de leis específicas a esse respeito, você considera possível uma universidade pública federal ou

estadual cobrar:• Mensalidade para oferecimento de cursos de pós-graduação lato sensu ou de extensão?• Taxa de matrícula?• Taxa de inscrição no Vestibular?

Lembre-se: você não é obrigado a dizer o que o senador deseja ouvir, mas sim a dar sua opinião profissionalsobre os problemas formulados.

Conceitos

Direito à educação, Ensino fundamental, Ensino médio, Ensino superior, Autonomia Universitária, Lei deDiretrizes e Bases.

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Jurisprudência

Supremo Tribunal FederalRE 436996/SP 55

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EMCRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADOPELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREEN-SÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍ-DICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTEAO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHE-CIDO E PROVIDO.

- A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferidaàs crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeiraetapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF,art. 208, IV).

- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta sig-nificação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criarcondições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero aseis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidadesde pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar,injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação esta-tal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, nãose expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Ad-

55 Decisão publicada no DJU de

7.11.2005.

Bibliografia

Obrigatória para ambos os casos:• Nina Beatriz Stocco Ranieri. Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo: EDUSP, FAPESP, 2000.

(trechos selecionados pelo professor)

Caso I• Luís Roberto Barroso, “A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle

de Preços”, in Temas de Direito Constitucional, v.II, Rio de Janeiro: Renovar: 2003.

Caso II• Parecer CNE/CES nº. 0364/2002, de 6 de novembro de 2002 (Regularidade da cobrança de taxas em

cursos de pós-graduação, lato sensu, com base no art. 90, da Lei n. 9.394). Brasília, DF, 2002. Disponível em: http://www.ufrgs.br/propg/regulam/resolcne364_02htm. Acesso em: 12 jan. 2006.

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ministração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

- Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-Administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveni-ência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

- Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina.

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra decisão, que, proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 189):

“EMBARGOS INFRINGENTES - Ação civil pública, objetivando matrícula de criança em creche muni-cipal. Conveniência e oportunidade do Poder Público. Ato discricionário da Administração. Embargos rejeita-dos.” (grifei)

A parte recorrente sustenta que o acórdão ora impugnado teria transgredido os preceitos inscritos nos arts. 208, IV, 211, § 2º, e 227, todos da Constituição da República.

O exame da presente causa convence-me da inteira correção dos fundamentos, que, invocados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, informam e dão consistência ao recurso extraordinário ora em julgamento.

É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação - que representa prerrogativa consti-tucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV e 227, “caput”) - qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num “facere”, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento, em creche e pré-escola, “às crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV).

O eminente PINTO FERREIRA (“Educação e Constituinte”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), ao analisar esse tema, expende magistério irrepreensível:

“O Direito à educação surgiu recentemente nos textos constitucionais. Os títulos sobre ordem econômica e social, educação e cultura revelam a tendência das Constituições em favor de um Estado social. Esta clara opção constitucional faz deste ordenamento econômico e cultural um dos mais importantes títulos das novas Consti-tuições, assinalando o advento de um novo modelo de Estado, tendo como valor-fim a justiça social e a cultura, numa democracia pluralista exigida pela sociedade de massas do século XX.” (grifei)

Para CELSO LAFER (“A Reconstrução dos Direitos Humanos”, p. 127 e 130/131, 1988, Companhia de Letras), que também exterioriza a sua preocupação acadêmica sobre o tema, o direito à educação - que se mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração - exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normati-vo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem:

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“(...) É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo ‘welfare state’, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos - como o direito ao trabalho, à saúde, à educação - têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade, na pers-pectiva ‘ex parte populi’, entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo (...).” (grifei)

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à educação infantil - ainda mais se considerado em face do dever que incumbe, ao Poder Público, de torná-lo real, mediante concreta efetivação da garantia de “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV) - não podem ser menosprezados pelo Estado, “obrigado a proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de competência” (WILSON DONIZETI LIBERATI, “Conteúdo Material do Direito à Educação Escolar”, “in” “Direito à Educação: Uma Questão de Justiça”, p. 236/238, item n. 3.5, 2004, Malhei-ros), sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário.

Cabe referir, neste ponto, a observação de PINTO FERREIRA (“Educação e Constituinte” “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), quando adverte - considerada a ilusão que o caráter meramente retórico das proclamações constitucionais muitas vezes encerra - sobre a necessidade de se conferir efetiva con-cretização a esse direito essencial, cuja eficácia não pode ser comprometida pela inação do Poder Público:

“O direito à educação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público subjetivo do par-ticular, ele consiste na faculdade que tem o particular de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações. Para que fosse cumprido o direito à educação, seria necessário que ele fosse dotado de eficácia e acionabilidade (...).” (grifei)

O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de educação infantil, especialmente se reconhe-cido que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis - notadamente aquelas que visem a fazer cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola -, traduz meta cuja não-realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público.

Ao julgar a ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF nº. 345/2004):

“ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LE-GITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICI-ÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERA-ÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVA-

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ÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA AR-GÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).”

Salientei, então, em tal decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econô-micos, sociais e culturais, que se identificam - enquanto direitos de segunda geração (como o direito à educação, p. ex.) - com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de pres-tações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal:

“DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTI-TUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governa-mental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a provi-dência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

.......................................................- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo

texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.”

(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

É certo - tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº. 345/2004) - que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Alme-dina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

Impende assinalar, no entanto, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Re-novar), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, presta-

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

ções estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gra-

dualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº. 345/2004).

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo mo-tivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental ne-gativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

Daí a correta observação de REGINA MARIA FONSECA MUNIZ (“O Direito à Educação”, p. 92, item n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema - após qualificar a educação como um dos direitos fundamentais da pessoa humana - põe em destaque a imprescindibilidade de sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida de todos, notadamente das classes menos favorecidas, assina-lando, com particular ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que “o Estado não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação” (grifei).

Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a educação infantil - que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 208, IV) - tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município (CF, art. 211, § 2º), disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial, como adverte, em ponderadas reflexões, a ilustre magistrada MARIA CRISTINA DE BRITO LIMA, em obra monográfica dedi-cada ao tema ora em exame (“A Educação como Direito Fundamental”, 2003, Lumen Juris).

Cabe referir, ainda, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, ilustre Procuradora Regional da República (“Políticas Públicas - A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público”, p. 59, 95 e 97, 2000, Max Limonad), cujo magis-tério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em tema de concretização das políticas públicas constitucionais, assinala:

“Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsa-bilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.

......................................................Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à Constituição e às normas

infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria à finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social.

......................................................Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade

e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal

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restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração........................................................As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar

sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucio-nal.” (grifei)

Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que os Municípios - que atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juri-dicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Constituição, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se de atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

As razões ora expostas convencem-me da inteira procedência da pretensão recursal deduzida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, seja em face das considerações que expendeu no presente recurso extraordi-nário, seja, ainda, em virtude dos próprios fundamentos que dão suporte a diversas decisões, sobre o tema em análise, já proferidas no âmbito desta Suprema Corte (AI 455.802/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - AI 475.571/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 401.673/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 411.518/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

Cumpre destacar, neste ponto, por oportuno, ante a inquestionável procedência de suas observações, a de-cisão proferida pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO (RE 431.773/SP), no sentido de que, “Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O Estado - União, Estados propria-mente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios - deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos dita-mes constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa” (grifei).

Isso significa, portanto, considerada a indiscutível primazia reconhecida aos direitos da criança e do adoles-cente (ANA MARIA MOREIRA MARCHESAN, “O princípio da prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente e a discricionariedade administrativa”, “in” RT 749/82-103), que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incom-petência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a educação infantil, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais esta-belecidas em favor das pessoas carentes não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, notadamente pelo Município (CF, art. 211, § 2º), da norma inscrita no art. 208, IV, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitá-vel omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental da cidadania e que é, no contexto que ora se examina, o direito à educação, cuja amplitude conceitual abrange, na globalidade de seu alcance, o fornecimento de creches públicas e de ensino pré-primário “às crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV).

Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para dar-lhe provimento (CPC, art. 557, § 1º - A), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo magistrado de primeira instância (fls. 73 a 76).

Publique-se.

Brasília, 26 de outubro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Superior Tribunal de Justiça

MS.7.407-DF, Rel. Min. Peçanha Martins. Julgado em 24/04/2002.56

“ENSINO EM CASA. FILHOS. Trata-se de MS contra ato do Ministro da Educação, que homologou parecer do Conselho Nacional de Educação, denegatório da pretensão dos pais de ensinarem a seus filhos as matérias do currículo de ensino fundamental na própria residência familiar. Além de, também, negar o pedido de afastá-los da obrigatoriedade de freqüência regular à escola, pois compareceriam apenas à aplicação de provas. A família bus-cou o reconhecimento estatal para essa modalidade de ensino reconhecida em outros países. Prosseguindo o julgamento, a Seção, por maioria, denegou a segurança ao argumento de que a educação dos filhos em casa pelos pais é um método alternativo que não encontra amparo na lei ex vi os dispositivos constitucionais (arts. 205, 208, § 2º, da CF/1988) e legais (Lei n. 10.287/2001 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – art. 5º, § 1º, III; art. 24, I, II e art. 129), a demonstrar que a educação é dever do Estado e, como considerou o Min. Humberto Gomes de Barros, é, também, formação da cidadania pela convivência com outras crianças, tanto que o zelo pela freqüência escolar é um dos encargos do poder público”.

56 Informativo STJ n.131 – 22 a

26 de abril.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 23

Cultura e Patrimônio Cultural

Nota ao Aluno

No seu uso comum, o vocábulo cultura indica todo o fazer humano – o “cultural” con-trastaria com o “natural” por ser construído, e não dado. Sob essa ótica, cultura inclui toda e qualquer manifestação artística, poética, intelectual, científica ou musical. Consistem em manifestações culturais, assim, as pinturas de Portinari, a música de Caetano Velloso, bem como o funk das favelas cariocas. Já a Constituição de 1934, em seu art. 148, ainda que de forma incipiente, reconhecia a importância dessa acepção de cultura para o cenário nacional:

“Art. 148 - Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.”

Numa outra acepção, cultura corresponde “ao conjunto de hábitos do homem na vida em sociedade”57. Aqui se incluem os costumes em geral, inclusive aqueles derivados de raça e credo, assim como todas as formas de viver do ser humano. Sob esse prisma, “cultura” inclui os costumes das comunidades indígenas do país, cada qual com as suas nuances.

O constituinte de 1988, mais do que reconhecer essas duas acepções de cultura, impôs ao Estado o dever de assegurar a todos o pleno acesso e exercício dos direitos culturais. A esse propósito, dispõe o art. 215, caput e § 1º, da Carta Magna:

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.§ 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório na-cional.”

É preciso lembrar, no entanto, que mesmo o direito à cultura não é absoluto, encon-trando limites em outros princípios constitucionais de igual hierarquia e importância. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso da “Farra do Boi”, em que a proteção às manifestações culturais (art.215) entrou em conflito com a proteção aos animais (art.225), como discuti-do nas disciplinas anteriores de Direito Constitucional.78

Um dos instrumentais utilizados pela Constituição, no intuito de preservar os valores históricos e culturais do povo brasileiro, está na atribuição conferida ao legislador de fixar datas comemorativas de referência para “os diferentes segmentos étnicos nacionais” (art. 215, § 2º, da CF/88). Cuidou o constituinte, neste particular, de vivificar e rememorar feitos e datas de maior relevância, reconhecendo a importância da história do país para a cultura de seu povo.

Não fosse só isso, a Carta de 1988 buscou definir, desde logo, o conceito de patrimônio cultural do Brasil, estabelecendo que:

57 Nulos, Uadi Lammêgo.

Constituição Federal anotada,

6ª ed., São Paulo: Saraiva,

2005, p. 1382.

78 No caso da “Farra do Boi”,

o Colendo Supremo Tribunal

Federal entendeu que a

obrigação de o Estado garantir

a todos o pleno exercício dos

direitos culturais, incentivando

a valorização e difusão das

manifestações culturais, não

o exime da observância da

norma do inciso VII do art.

225 da Constituição Federal,

a qual veda prática que acabe

por submeter animais à

crueldade. A esse propósito, a

notícia do julgado veiculada

no informativo nº. 74 do STF

é esclarecedora: “Concluído

o julgamento do recurso

extraordinário interposto

contra acórdão do Tribunal de

Justiça de Santa Catarina que

julgou improcedente ação civil

pública ajuizada por entidades

de proteção aos animais contra

omissão do Estado em reprimir

a “Farra do Boi”. A Turma, por

maioria, entendeu que a

referida manifestação popular,

ao “submeter os animais a

crueldade”, ofende o inciso

VII do § 1º do art. 225 da CF.

Vencido o Min. Maurício Corrêa

que entendia, de um lado,

que o Estado deve garantir a

todos o pleno exercício dos

direitos culturais, bem como

proteger as manifestações

das culturas populares — tal

como dispõe o art. 215 caput

e respectivo § 1º da CF —,

coibindo eventuais excessos;

e de outro, que se tratava

de questão de fato e não de

direito, o que é incompatível

com o extraordinário. RE

153.531-SC, rel. Min. Francisco

Rezek, rel. p/ o acórdão Min.

Marco Aurélio (art. 38, IV, b do

RISTF) 10.6.97 .”

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FGV DIREITO RIO 81

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza mate-rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referên-cia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às ma-nifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueo-lógico, paleontológico, ecológico e científico.”

A enumeração contida nos incisos I a V do art. 216 é meramente exemplificativa, mas que se presta para demonstrar que a noção de patrimônio cultural deve ser interpretada da forma mais elástica possível. Assim, integram o patrimônio cultural do Brasil manifestações religiosas, técnicas, obras de arte e mesmo de construção civil, lugares de relevância para a coletividade, sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico etc. O desrespeito ao patrimônio público, mediante lesão ou mesmo mera ameaça, deve ser punido, nos termos da lei (art. 216, § 4º). Ademais, o poder cons-tituinte fez por bem em listar, no § 1º do art. 216, uma série instrumentos para a proteção do patrimônio cultural, pelo Poder Público, a saber: inventários, registros, vigilância, tom-bamento e desapropriação, sem embargo de outras formas de acautelamento e preservação. O mais comum – e mais relevante – é sem sombra de dúvida o tombamento.

Segundo a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pelo tombamento, o poder públi-co protege determinados bens, que são considerados de valor histórico ou artístico, deter-minando a sua inscrição nos chamados Livros do Tombo, para fins de sujeição a restrições parciais; em decorrência dessa medida, o bem, ainda que pertencente a particular, passa a ser considerado bem de interesse público; daí as restrições a que se sujeita o particular”59. Um exemplo marcante está nas ruas do bairro da Lapa, cujos imóveis se encontram todos tombados, não sendo possível alterar a sua fachada, nem, tampouco, proceder à sua demo-lição, no intuito de ali construir um arranha-céu. A Lapa é patrimônio histórico e cultural da cidade do Rio de Janeiro.

Por sua própria natureza, o tombamento é sempre uma restrição parcial ao direito de propriedade, não dando ensejo, como regra, a qualquer direito indenizatório. Se o Poder Público pretende tomar para si o bem privado, ainda que a título de proteção do patrimô-nio cultural, o instrumento é outro: a desapropriação. Muito embora possua a administra-ção pública certa margem de discricionariedade para, em situações concretas, decidir por tombar ou desapropriar um bem, em nome da defesa do patrimônio cultural, não pode substituir um instrumento pelo outro, fazendo do tombamento uma espécie de desapro-priação, sem o pagamento da correspondente indenização. Na prática, muitas vezes é difícil determinar se estamos diante de tombamento, ou de indenização. Tal questão será mais bem examinada por ocasião da discussão de caso. Cabe observar, por fim, que, no que diz respeito aos documentos e aos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, a Constituição da República não deixou qualquer poder de decisão ao Poder Público, tombando-os ela própria, à vista de sua relevância para a cultura nacional (art. 216, § 5º, da CF/88).

59 Di Pietro, Maria Sylvia

Zanella. Direito Administrativo,

São Paulo: Atlas, 12ª edição,

2000, P. 131.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Caso

Em razão de manifestação do Instituto de Patrimônio Histórico Artístico Nacional – IPHAN, a UniãoFederal, por seus órgãos competentes, procedeu à inscrição do “Circo Voador”, no bairro da Lapa, nos Livrosdo Tombo, estabelecendo, ainda, que o referido imóvel deverá ser utilizado, exclusivamente, para eventos depromoção da música brasileira, vedada ali qualquer outra espécie de atividade.

Inconformado, o proprietário do imóvel impetra mandado de segurança contra ato do ministro da Cultura,sob os seguintes argumentos:

1) que o ato de tombamento, no caso em concreto, importou na perda completa e absoluta do conteúdoeconômico da propriedade;

2) que o impetrante, em função do tombamento, não pode utilizar o imóvel para outras atividades comer-ciais e nem mesmo realizar festivais com bandas de música estrangeira;

3) que o conceito de tombamento importa, apenas, em restrição parcial ao direito de propriedade, sem queisso importe em qualquer prejuízo ao proprietário;

4) que, considerando a perda do conteúdo econômico da propriedade, o instrumento adequado para a tutelado patrimônio cultural é a desapropriação;

5) que, assim, o ato de tombamento seria nulo, não se compatibilizando com a regra dos arts. 5º, XXIV, e216, § 1º, da Carta de 1988.

Na qualidade de juiz da causa, profira sentença de mérito, fundamentadamente, analisando todos os ar-gumentos possíveis em favor de ambas as partes. Procure refletir também sobre a seguinte questão: poderia oadvogado do impetrante, ao invés de pedir a nulidade do ato, exigir indenização do Poder Público Municipal?

Conceitos

Patrimônio cultural (material e imaterial), domínio iminente, tombamento, desapropriação, indenização,desapropriação indireta.

Bibliografia:

Obrigatória:• Acórdão proferido no RE 219.292-MG, Rel. Min. Octavio Gallotti.• Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 12ª edição, 2000, P. 131/132.• Joaquim Falcão. “Patrimônio Cultural do Brasil”, in Enciclopédia da Brasilidade: Auto-estima em verde e

amarelo. Organizado por Carlos Lessa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

Obrigatória:• Acórdão proferido no RE 219.292-MG, Rel. Min. Octavio Gallotti.• Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 12ª edição, 2000, P.

131/132.• Joaquim Falcão. “Patrimônio Cultural do Brasil”, in Enciclopédia da Brasilidade: Auto-estima em verde

e amarelo. Organizado por Carlos Lessa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULAS 24 E 25

A Constituição e o Meio Ambiente

Nota ao Aluno

Poucos capítulos da Constituição de 1988 são tão inovadores, se comparados aos seus equivalentes nas cartas políticas anteriores, quanto o capítulo, VI, que trata “Do Meio Am-biente”. Este bloco de aulas é dedicado ao seu estudo, tendo em vista a inserção do tema no título da “Ordem Social” na Constituição, além da sua importância inclusive para o Direito Constitucional Econômico.

De fato, a relação entre o Direto Ambiental e o Direito Econômico é bastante signifi-cativa, na medida em que aquele tem se apresentado como importante estrutura condicio-nante deste. Paulo de Bessa Antunes60 já afirmou que: “O conteúdo econômico do Direito Ambiental é evidente e não se pode negá-lo.” Você concorda com o diagnóstico do autor? Quais os fundamentos dessa afirmativa?

O caso gerador será utilizado em ambas as aulas. Leia-o com atenção. Ele traz diversos conceitos distintos que deverão ser compreendidos por você, tais como o de “bem de uso comum do povo”, “princípio da prevenção”, “licenciamento prévio”, “estudo de impacto ambiental” etc. Procure entender os efeitos práticos de uma decisão em sentido contrário ao que ficou decidido pelo STF. Como seria o dia a dia de um país que precisa urgentemente implantar grandes projetos de infra-estrutura e, ao mesmo tempo, preservar o meio-am-biente, necessitando, para tanto, de uma autorização legislativa específica para cada em-preendimento? Quais seriam as conseqüências econômicas de tal decisão? E o inverso? A decisão prolatada serve à proteção do meio-ambiente ou deixa-o desprotegido?

Lembre-se que, quando falamos em meio-ambiente, estamos falando da proteção de uma geração de direitos já estudada no curso de Organização do Estado e Direitos Fun-damentais e no curso de Direitos Humanos. Mas, afinal, a Constituição protege o direito de que geração da sociedade? Reflita: não seria a proteção de uma geração excludente em relação à proteção dos direitos de outra? Por exemplo, é constitucional, sob o fundamento de se preservar o meio-ambiente para as futuras gerações, impedir que a presente geração faça uso do mesmo? Que resposta daria o STF à questão?

Leia o caso gerador, a bibliografia e prepare-se para debater as questões acima.

Caso

O procurador-geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o art. 1º. da Medida Provisória nº. 2166-67, de 24/08/2001, na parte em que alterou o art. 4º., “caput” e parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º. da Lei nº. 4771, de 15 de setembro de 1965, que instituiu o Código Florestal.

O dispositivo impugnado tem a seguinte redação, in verbis:

“Art. 4o. A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devida-mente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quan-do inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.§ 1o A supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do

60 Direito Ambiental. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 1996,

p. 15.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2o deste artigo.§ 2o A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana, dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.§ 3o O órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente.§ 4o O órgão ambiental competente indicará, previamente à emissão da autori-zação para a supressão de vegetação em área de preservação permanente, as medi-das mitigadoras e compensatórias que deverão ser adotadas pelo empreendedor.§ 5o A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e man-gues, de que tratam, respectivamente, as alíneas “c” e “f ” do art. 2o deste Código, somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública.§ 6o Na implantação de reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das áreas de preservação permanente criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do CONAMA.§ 7o É permitido o acesso de pessoas e animais às áreas de preservação permanen-te, para obtenção de água, desde que não exija a supressão e não comprometa a regeneração e a manutenção a longo prazo da vegetação nativa.”

De acordo com o procurador-geral da República que, nos termos do art. 225, & 1º., III,“somente lei em sentido formal e específica, entendida esta como o ato normativo emanado do Poder Legislativo e elaborada segundo os preceitos do devido processo legislativo constitucional, poderá autorizar a alteração e/ou supressão dos espaços territoriais especialmente protegidos...”61.Assim, entende a Procuradoria-Geral da República que a mera autorização administrativapara a supressão de vegetação, disciplinada pela medida provisória acima citada, seria in-constitucional.

Você foi contratado pela Associação Nacional dos Amigos do Meio-Ambiente – umaONB com um longo histórico de militância em favor da preservação ambiental - para ela-borar um parecer sobre o caso. Elabore-o e traga para a discussão em sala. Lembre-se que,como parecerista, você não é obrigado a simplesmente dizer o que a ONG quer ouvir, massim a dar sua opinião profissional fundamentada sobre o assunto.

Conceitos:

Preservação da integridade do meio-ambiente; metaindividualidade; espaços territoriaisespecialmente protegidos; conflitos transgeracionais; licenciamento ambiental; geração dedireitos; justo equilíbrio; princípio da prevenção.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

5. Bibliografia:

Obrigatória:• Paulo Bessa Antunes. “Direito Ambiental como Direito Econômico – Análise Críti-

ca”. in Revista de Informação Legislativa (SEPARATA), ano 29, n. 115, jul./set. 1992.• José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23a ed. São Pau-

lo: Malheiros, 2004. Tópico “Meio Ambiente” do capítulo “Da Ordem Constitucional da Cultura”.

Complementar:• José Afonso da Silva. Direito Constitucional Ambiental. • Paulo Bessa Antunes. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996.• Luís Roberto Barroso. “A Proteção do Meio Ambiente na Constituição Brasileira”, in

Revista Forense, v. 317.

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FGV DIREITO RIO 86

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

AULA 26

Palestra: Limites, Possibilidades e Tendências do “Constitucionalismo Dirigente” no Brasil

Nota ao aluno

No encerramento do curso, será retomado o tema da primeira aula: o chamado “Constitucionalismo Di-rigente”. Agora, porém, ao contrário do seu primeiro contato com a questão, não será mais uma discussão em tese, como um debate doutrinário entre juristas mais otimistas e juristas mais céticos em relação à capacidade e à conveniência de as Constituições estabelecerem finalidades para o legislador e até mesmo para a iniciativa privada. O objetivo desta aula é discutir de maneira tecnicamente informada os limites e possibilidades de “força normativa” da Constituição de 1988 no tocante à ordem econômica e à ordem social.

Nesse sentido, tente perceber como as ambições do Constituinte de 1988 não foram uniformemente frus-tradas, nem sistematicamente bem-sucedidas. Por exemplo: se por um lado, as restrições à presença do capital estrangeiro na economia e o papel do Estado na atividade econômica foram radicalmente reformuladas pelo constituinte derivado ao longo dos últimos dez anos, por outro, os dispositivos constitucionais e a sistemática relativos à educação, por exemplo, não apenas se mantiveram intactos, como em muitos casos tiveram a sua eficácia jurídica confirmada por decisões judiciais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

Após nossa passagem por todos os blocos anteriores do curso, você certamente consegue compreender e imaginar exemplos de tudo o que foi dito no parágrafo acima. Mais: sendo essa a última das três disciplinas de Direito Constitu-cional, estão ao seu alcance os instrumentos para assumir uma posição fundamentada diante de uma suposta “morte” ou “crise” da Constituição brasileira – ou, mais especificamente, da “morte” ou “crise” de suas ambições originais.

Você terá a chance de colocar à prova seus conhecimentos em uma palestra com professores convidados. Procure se preparar para o evento lendo com atenção a leitura selecionada, que exemplifica posições distintas e muitas vezes antagônicas sobre o papel da Constituição e o seu futuro em nossa sociedade. Tente refletir sobre questões como:

• A Constituição brasileira mantém sua força “dirigente” ou se tornou apenas um instrumento de governo?• Como é possível conciliar respeito à Constituição em sua integralidade com o uso de “razões econômicas de Estado”?• Quais seriam as alternativas possíveis às reformas constitucionais já realizadas?• Quais são as tendências de reforma nos próximos anos? Essas tendências são positivas ou negativas, do

ponto de vista da preservação da “força normativa” da Constituição?

Bibliografia

Obrigatória:• Eros Roberto Grau. “Adendo” e “Apêndice (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador)”, extraídos

da obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 10a ed. São Paulo: Malheiros, 2005.• Eros Roberto Grau e Demian Fiocca (orgs.). Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra,

1998. (artigos selecionados)• Luís Roberto Barroso. “15 anos de Constituição. Foi bom para você?”, in Temas de Direito Constitucional

I. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.• Jacinto de Miranda Coutinho (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. 2ª Rio de Janeiro: 2005 (tre-

chos selecionados).

Complementar:• J.J.Gomes Canotilho. “Prefácio”, in Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contribuição para

o estudo das normas constitucionais programáticas. 2ª ed. Coimbra: Almeidina, 2002.• Clèmerson Merlin Clève. “O problema da legitimação do Poder Judiciário e das decisões judiciais no Esta-

do Democrático de Direito”, in Anais do Seminário Democracia e Justiça. Porto Alegre, 1999.

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DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

GUSTAVO DA ROCHA SCHMIDTÉ Master of Laws pela New York University School of Law (LLM2007/2008), procurador do Município do Rio de Janeiro, sócio do escritório Schmidt, Lourenço & Kingston — Advogados Associados e professor da FGV Direito Rio e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro — EMERJ.

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88FGV DIREITO RIO

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO E SOCIAL

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Fernando PenteadoVICE-DIRETOR DA GRADUAÇÃO

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

Luiz Roberto AyoubPROFESSOR COORDENADOR DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO

Ronaldo LemosCOORDENADOR CENTRO DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE

Evandro Menezes De CarvalhoCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Rogério Barcelos AlvesCOORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Lígia Fabris e Thiago Bottino do AmaralCOORDENADORES DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Wania TorresCOORDENADORA DE SECRETARIA DE GRADUAÇÃO

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO

FICHA TÉCNICA