Rousseau em Kant: a moral

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122 Estudos Kantianos, Marília, v. 1, n. 2, p. 121-128, Jul./Dez., 2013 MAttoS, f. C. REPENSANDO A PRESENÇA DE ROUSSEAU NA FILOSOFIA MORAL KANTIANA: SERIA KANT UM PIEDOSO? Fernando Costa MATTOS 1 Sempre que se coloca a questão da relação entre Rousseau e Kant, é impossível não lembrar de Cassirer e de sua tese a respeito da inluência de Rousseau sobre a ilosoia moral de Kant. Contrariamente à tendência mais óbvia, que seria insistir nos contrastes entre as estratégias de fundamentação da moralidade - Rousseau recorrendo ao sentimento de piedade, Kant à racionalidade da lei moral -, Cassirer propõe que Rousseau teria chamado a atenção de Kant para a possibilidade de pensar uma lei universal, interna ao ser humano, que fosse a base de nosso agir moral. Ao transferir essa base do sentimento para a razão, Kant estaria, possivelmente, “corrigindo” Rousseau no sentido de conferir à lei moral os elementos de universalidade e necessidade que somente a razão pura, por ser a priori, poderia possuir (bem ao contrário dos sentimentos, que, ligados à nossa natureza sensível, estariam sujeitos à contingência da empiria). Nosso objetivo neste artigo é discutir essa hipótese interpretativa à luz de algumas passagens de Rousseau e Kant, veriicando se a aproximação de ambos seria frutífera no sentido de pensar uma caracterização do indivíduo humano compatível com a noção de dignidade, cuja importância é sabidamente grande na ilosoia política contemporânea. 2 Começaremos por reconstruir a argumentação de Cassirer, indicando o sentido da guinada kantiana em direção à razão (I), para em seguida fazer um paralelo entre os dois ilósofos no que diz respeito à fundamentação da moral, chamando a atenção para os possíveis méritos da solução kantiana (II). Ao inal, contudo, indagaremos se a compreensão rousseauísta da subjetividade humana não seria uma boa fonte de inspiração para, em associação com a ilosoia moral kantiana, pensar a subjetividade humana e aquilo que, nesta, nos motivaria a agir moralmente (III). 1 Fernando Costa Mattos é professor de ilosoia na Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Autor de Nietzsche, perspectivismo e democracia: um espírito livre em guerra contra o dogmatismo (Saraiva, 2013) eDo conhecimento teórico à liberdade: a questão da objetividade em Kant (AM, 2009), traduziu para o português a Crítica da razão pura, de Immanuel Kant (Vozes, 2012), e Fé e saber, de Jürgen Habermas (Edunesp, 2013), além de ter publicado diversos artigos sobre Kant e Nietzsche. Seus trabalhos de pesquisa vêm se concentrando nas áreas de ilosoia clássica alemã e ilosoia política. 2 Cassirer, E. Kant. Vida y Doctrina. México: Fondo de Cultura Economica, 1948, p.108.

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A presença de Rousseau em Kant

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  • 122 Estudos Kantianos, Marlia, v. 1, n. 2, p. 121-128, Jul./Dez., 2013

    MAttoS, f. C.

    REPENSANDO A PRESENA DE ROUSSEAU NA FILOSOFIA MORAL KANTIANA: SERIA KANT UM PIEDOSO?

    Fernando Costa MAttOS1

    Sempre que se coloca a questo da relao entre Rousseau e Kant, impossvel no lembrar de Cassirer e de sua tese a respeito da inluncia de Rousseau sobre a ilosoia moral de Kant. Contrariamente tendncia mais bvia, que seria insistir nos contrastes entre as estratgias de fundamentao da moralidade - Rousseau recorrendo ao sentimento de piedade, Kant racionalidade da lei moral -, Cassirer prope que Rousseau teria chamado a ateno de Kant para a possibilidade de pensar uma lei universal, interna ao ser humano, que fosse a base de nosso agir moral. Ao transferir essa base do sentimento para a razo, Kant estaria, possivelmente, corrigindo Rousseau no sentido de conferir lei moral os elementos de universalidade e necessidade que somente a razo pura, por ser a priori, poderia possuir (bem ao contrrio dos sentimentos, que, ligados nossa natureza sensvel, estariam sujeitos contingncia da empiria).

    Nosso objetivo neste artigo discutir essa hiptese interpretativa luz de algumas passagens de Rousseau e Kant, veriicando se a aproximao de ambos seria frutfera no sentido de pensar uma caracterizao do indivduo humano compatvel com a noo de dignidade, cuja importncia sabidamente grande na ilosoia poltica contempornea.2 Comearemos por reconstruir a argumentao de Cassirer, indicando o sentido da guinada kantiana em direo razo (I), para em seguida fazer um paralelo entre os dois ilsofos no que diz respeito fundamentao da moral, chamando a ateno para os possveis mritos da soluo kantiana (II). Ao inal, contudo, indagaremos se a compreenso rousseausta da subjetividade humana no seria uma boa fonte de inspirao para, em associao com a ilosoia moral kantiana, pensar a subjetividade humana e aquilo que, nesta, nos motivaria a agir moralmente (III).

    1 Fernando Costa Mattos professor de ilosoia na Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP). Autor de nietzsche, perspectivismo e democracia: um esprito livre em guerra contra o dogmatismo(Saraiva, 2013) eDo conhecimento terico liberdade: a questo da objetividade em Kant(AM, 2009), traduziu para o portugus aCrtica da razo pura, de Immanuel Kant (Vozes, 2012), eF e saber, de Jrgen Habermas (Edunesp, 2013), alm de ter publicado diversos artigos sobre Kant e Nietzsche. Seus trabalhos de pesquisa vm se concentrando nas reas de ilosoia clssica alem e ilosoia poltica.

    2 Cassirer, E. Kant. Vida y Doctrina. Mxico: Fondo de Cultura Economica, 1948, p.108.

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    IA tese de Cassirer sobre a inluncia que Rousseau teria exercido sobre Kant, exposta na

    segunda seo do terceiro captulo de Kant. Vida e obra (intitulada A crtica metafsica dogmtica. Os Sonhos de um visionrio), baseia-se sobretudo nas anotaes de Kant margem das Observaes sobre o sentimento do belo e do sublime. Nessa seo, Cassirer faz uma anlise dos anos 1763-4, tomando como referncia a evoluo do pensamento kantiano que seria perceptvel nos textos da poca - alm das Observaes, tambm os Sonhos de um visionrio. Depois de mostrar como, no primeiro, Kant faz de Swedenborg uma caricatura da metafsica racionalista clssica e, com isso, comea a romper com a sua formao nessa linha de pensamento, Cassirer nos apresenta um Kant que, incapaz de simplesmente ceder ao ceticismo, e j enxergando na metafsica uma cincia dos limites da razo humana, se coloca agora em busca de novos fundamentos. E nesse contexto que Rousseau parece apresentar-se a Kant como, digamos, um universo de novas possibilidades em nossa autocompreenso - algo que j se teria prenunciado no entusiasmo produzido em Kant, pouco tempo antes (1762), pela leitura do Emlio:

    No precisaramos recordar a conhecida anedota que nos conta como, em 1762, cativado pela leitura do Emlio quando esta obra havia acabado de aparecer, Kant quebrou pela primeira vez os seus hbitos de vida e, para grande assombro de seus vizinhos, renunciou sua caminhada vespertina para compreender o que a obra de Rousseau signiicou para Kant desde o primeiro momento. O que a doutrina de Rousseau continha de novo, do ponto de vista histrico, se manifesta com maior clareza no fato de que, a princpio, todos os padres ixos de que aquela poca dispunha eram insuicientes para compreend-la. O efeito exercido por esse autor sobre os diferentes espritos era completamente diverso e at oposto, conforme as caractersticas especicas de cada qual. 3

    A partir disso, Cassirer procura ento mostrar quais seriam essas linhas opostas de leitura e recepo da obra rousseuniana: de um lado, uma recepo negativa (perceptvel sobretudo em Mendelssohn, numa nota sobre A nova Helosa), que considerava Rousseau um escritor de segunda ordem (abaixo de Richardson, por exemplo); de outro, uma exaltao talvez exagerada da parte dos jovens gnios da gerao seguinte, que viam em Rousseau um escritor genial, capaz de dar voz vida mesma, natureza etc. E Kant seria aquele que (como sempre!) tenta encontrar uma posio intermediria ou conciliatria entre esses dois extremos: embora muito entusiasmado, a princpio, com o vigor da escrita rousseuniana (numa poca em que, segundo Cassirer, o prprio Kant comeava a irmar-se como grande escritor), ele sabe que precisa ler Rousseau at que j no me cative a beleza das expresses e eu possa investig-lo usando apenas a razo.4

    Trata-se de um esforo, sugere Cassirer, por meio do qual Kant pretende descobrir o ilsofo Rousseau por trs do escritor, a lei interior que estaria guiando o seu pensamento. E graas a esse esforo Kant lograria escapar da tendncia generalizada da poca, de ver em Rousseau um retorno natureza como um retorno irrestrita liberdade individual, ou algo do tipo:

    3 Kant, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Traduo de Guido A. de Almeida. So Paulo: Barcarolla, 2009, p. 377. Nas citaes de Kant, izemos ajustes da traduo quando julgamos oportuno.4 Cf. Beck, L. W. A commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1984. Cf. tb. Mattos, F. C. Em torno da velha questo: seria Kant um metafsico? In: Analytica (UFRJ), vol. 13, n. 1, 2009, p. 95-134.

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    Se havia algo em que os contemporneos de Rousseau concordavam, em seus juzos sobre ele, era no fato de verem nele um grande lutador contra a tirania da regra. Enquanto tal, ele era combatido por alguns com base na razo popular e na moral burguesa, enquanto outros o exaltavam como um libertador. O retorno natura parecia um retorno liberdade da vida pessoal interior, ausncia de vnculos do sentimento e afeto subjetivos. Para Kant, porm, que vinha de uma inluncia newtoniana, o conceito de natureza tem, desde o princpio, um outro sentido. Ele v nele a expresso da mais elevada objetividade - a expresso mesma da ordem e da legalidade. E tambm neste sentido que ele interpreta a tendncia fundamental do pensamento de Rousseau. Assim como Newton o fez com as regras objetivas dos astros e dos corpos do mundo, Rousseau investigou e estabeleceu a norma moral objetiva das inclinaes e aes humanas.5

    A ideia, portanto e isto j prenuncia o modo como Kant compreender a liberdade em sentido positivo , que tem de haver uma regra moral interior que comum a todos os homens (a todos os seres racionais, dir ele mais tarde), independentemente de qualidades ou caractersticas pessoais. Tambm estaria a, em Kant como em Rousseau, a guinada em direo ao simples, ao homem comum, nos assuntos ilosicos genunos. Como veremos na Fundamentao, com efeito, a moralidade pode ser percebida no senso comum, no modo como o ser humano efetivamente constri juzos morais, e assim por diante. Nas notas de Kant, citadas por Cassirer, vemos como Rousseau parece t-lo ajudado a distanciar-se da arrogncia de certos sistemas dogmticos:

    Rousseau me colocou no bom caminho. Essa hipottica vantagem desaparece; eu vou aprendendo a honrar os seres humanos, e me consideraria mais intil que o trabalhador comum se no acreditasse que esse modo de pensar pode infundir em todos os demais um valor para instaurar os direitos da humanidade.6

    Para Cassirer, isso j fornece uma indicao do sentido em que se daria a revoluo kantiana na metafsica: a disciplina que pretendia conhecer a coisa em si (a cargo das escolas e dos eruditos) dar lugar a uma metafsica que olha para o homem considerado em sua universalidade, i.e. naquilo que h de efetivamente comum a todos (as nossas faculdades a priori constituindo um sistema subjetivo em que a razo prtica acabar por ter o primado, i.e. por ditar o rumo daquelas relexes decisivas em que o conhecimento terico no pode nos dar respostas) uma metafsica a cargo do pensador que est atento ao que se passa no mundo, na sociedade, naquilo que se mostra efetivamente nas relaes humanas.

    Compreende-se agora que Kant, na mesma carta em que diz a Mendelssohn ver com contrariedade, e mesmo com algum dio, a enorme arrogncia de muitos volumes cheios de elucubraes metafsicas (to comuns nos tempos atuais), esclarea ao mesmo tempo que est muito distante de tomar a metafsica mesma, objetivamente considerada, por supericial ou dispensvel, e est mesmo convencido de que dela depende o verdadeiro e duradouro bem da espcie humana. Pois a inalidade e a a orientao da prpria metafsica mudaram inteiramente. Em lugar dos multifacetados problemas que se discutiam nas escolas sob os ttulos de ontologia, psicologia racional e teologia, apareceu a exigncia fundamental de uma nova fundamentao da tica. Aqui, e

    5 Cassirer, Kant, p. 110.6 Kant, I., apud Cassirer, Kant, p.111-2.

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    no nos conceitos lgicos das escolas, que deve ser buscada a verdadeira chave para a interpretao do mundo espiritual.7

    interessante notar aqui como o prprio Cassirer, que se inclinar por uma leitura mais focada na teoria do conhecimento (e icar contra Heidegger no clebre debate de 1929), chama a a ateno para o fato de que Kant no est abandonando a metafsica, mas antes a reposicionando, dando-lhe novas bases. E Rousseau, com sua viso do ser humano (to criticada pelos kantianos), teria um papel importante nesse redirecionamento: uma vez que no se trata mais de compreender o mundo em si mesmo, mas o nosso mundo espiritual, a hiptese de uma essncia boa (moral) do ser humano pode revelar-se um interessante io condutor.

    IIPara discutir, pois, essa possvel inluncia de Rousseau sobre Kant, talvez seja vlido

    confrontar duas passagens de seus textos, de modo a perceber eventuais semelhanas e diferenas. Comecemos por uma conhecida passagem do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens em que Rousseau, contrapondo-se viso hobbesiana do homem como lobo do prprio homem, apresenta a sua noo de piedade como uma virtude universal:

    H, alm disso, um outro princpio que Hobbes no percebeu e que, tendo sido dado ao homem para abrandar, em certas circunstncias, a ferocidade de seu amor prprio, ou o desejo de conservar-se antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele possui por seu bem estar com uma repugnncia inata em ver sofrer o seu semelhante. No creio ter qualquer contradio a temer se atribuo ao homem sua nica virtude natural, aquela que mesmo o mais estridente detrator das virtudes humanas seria forado a reconhecer. Reiro-me piedade, disposio adequada a seres to fracos, e sujeitos a tantos males, como somos ns; virtude to mais universal, e to mais til ao homem, que precede nele o uso de qualquer relexo; e to natural que os prprios animais dela do, por vezes, alguns sinais sensveis.8

    Embora Rousseau estabelea a uma aproximao do homem com os animais, bem como um vnculo entre a virtude e a nossa fraqueza natural - elementos que, como se sabe, Kant recusar com veemncia - , interessante notar, alm do carter universal por ele atribudo piedade, a ideia de que ela antecede o uso de qualquer relexo e o exemplo do mais estridente detrator das virtudes humanas para ilustrar a circunstncia de que todo indivduo humano seria capaz de reconhecer em si a presena desse sentimento fundamental da piedade. Temos a, segundo entendemos, trs importantes elementos de aproximao em relao ao modo como Kant compreende e descreve a presena da lei moral no ser humano. Veja-se, a ttulo de exemplo, a seguinte passagem da Fundamentao da metafsica dos costumes:

    No h ningum nem mesmo o pior vilo, desde que, de resto, esteja habituado a usar a razo que, se lhe mostramos exemplos de honestidade nas intenes, de constncia na obedincia s boas

    7 Cassirer, Kant, p.112.8 Rousseau, J-J. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. So Paulo: Escala, 2007.

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    mximas, de solidariedade e benevolncia universal (ligadas, alm disso, a grandes sacrifcios de vantagens e comodidade), no deseje estar tambm nessa direo. Ele s no o consegue, contudo, devido a suas inclinaes e impulsos, muito embora desejasse estar ao mesmo tempo livre de tais inclinaes, incmodas para ele prprio. Ele prova desse modo, portanto, que se coloca em pensamento, com uma vontade que livre dos impulsos da sensibilidade, em uma ordem de coisas inteiramente diversa daquela de seus apetites no campo da sensibilidade, pois no pode esperar daquele desejo qualquer satisfao dos apetites, nem, portanto, qualquer estado satisfatrio para alguma de suas efetivas ou cogitveis inclinaes (pois, desse modo, a prpria ideia que nele evoca esse desejo se veria privada de sua excelncia), mas apenas um maior valor interno de sua pessoa.9

    Ao apresentar o exemplo hipottico do pior vilo, que desejaria (wnsche) seguir o caminho da honestidade, Kant parece estar reproduzindo em outros termos o argumento de Rousseau examinado acima: embora no aja de acordo com a virtude - por razes alheias sua, digamos, verdadeira vontade -, o criminoso seria forado a reconhecer (termos de Rousseau) a presena dessa virtude em si mesmo e a sua relao com o maior valor interno de sua pessoa. Quando explica de maneira mais precisa a razo pela qual o criminoso, mesmo desejando, no consegue ser honesto, Kant parece distanciar-se de Rousseau no imputar s inclinaes e impulsos a responsabilidade por diicultar esse modo de agir, j que a piedade rousseusta seria algo natural, da mesma ordem, por assim dizer, dos impulsos e inclinaes. No entanto, tambm em Rousseau tem de haver uma dicotomia para explicar por que o detrator das virtudes no consegue ser virtuoso: em seu caso, a vida em sociedade, como sabemos, ser a principal responsvel por afastar o homem de sua verdadeira natureza (esta que comum a ele e aos animais).

    Se imaginarmos, j de um ponto de vista kantiano, que o erro de Rousseau no est nessa sua compreenso dicotmica do ser humano (essncia boa versus tendncia m), mas sim na sua leitura da histria - no atribuir civilizao , e no natureza sensvel, a origem do mal no indivduo humano -, poderamos ento cogitar se o movimento necessrio, para tornar o seu pensamento compatvel com o progresso iluminista das instituies humanas (para Kant uma exigncia da razo), no seria o de corrigir essa inverso na relao natureza-razo de modo a identiicar nesta, e no naquela, a fonte do bem no ser humano. Entre outras coisas, essa correo perimitiria delimitar de maneira mais precisa a fronteira entre essas nossas dimenses: se em Rousseau difcil deinir o momento em que o mal penetra a histria humana - o momento em que algum se apropriou de um terreno e disse isto meu -, em Kant essa diiculdade desaparece, j que no se trata de estipular um comeo cronolgico dos apetites e inclinaes, mas antes estabelecer a relao conlitiva entre estes e a lei moral como uma relao constitutiva do ser humano (enquanto ser que por um lado racional, por outro sensvel).

    No toa, Kant recorre distino entre fenmeno e coisa em si quando precisa explicar a possibilidade mesma do imperativo categrico, isto , a possibilidade de que a lei moral constitua um dever para ns. Na continuao do texto citado acima, que faz parte da terceira seo da Fundamentao, Kant usa a imagem dos mundos inteligvel e sensvel para ilustrar o

    9 Kant, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Traduo de Guido A. de Almeida. So Paulo: Barcarolla, 2009, p. 377. Nas citaes de Kant, izemos ajustes da traduo quando julgamos oportuno.

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    modo como aquela dualidade, entendida como um ponto de vista, pode operar no indivduo humano, explicando-se assim a prpria possibilidade da moral:

    Ele acredita ser essa pessoa melhor, contudo, quando se coloca no ponto de vista de um membro do mundo inteligvel, ao qual involuntariamente forado pela ideia da liberdade, i.e. da independncia de causas determinantes do mundo sensvel, e no qual consciente de uma boa vontade que, segundo sua prpria conisso, constitui a lei para a sua m vontade enquanto membro do mundo sensvel uma lei cuja autoridade ele reconhece ao transgredi-la. O dever moral , portanto, a sua prpria vontade necessria enquanto membro de um mundo inteligvel, e s pensado por ele como dever na medida em que se considera ao mesmo tempo como membro do mundo sensvel.10

    IIISabe-se que esse recurso ao mundo inteligvel como forma de explicar o nosso lado

    moral perder fora na Crtica da razo prtica, dando lugar noo de um factum da razo para deinir o estatuto possudo pela lei moral em nossa faculdade prtica. E muitos intrpretes vero nessa mudana um esforo de Kant para fundamentar a moralidade sem qualquer referncia distino entre fenmeno e coisa em si, cujo carter metafsico seria talvez maior do que aquele do factum da razo. Autores como Beck,11 por exemplo, insistiram particularmente nesse ponto e deram origem, com isso, a uma estratgia de atualizao do pensamento kantiano que deixa todo e qualquer elemento metafsico de fora (Rawls seria um bom exemplo contemporneo).

    Ainda que concedssemos, contudo, que a fundamentao da moralidade pode ser levada a cabo independentemente de qualquer relexo sobre o que poderia ser a nossa essncia pessoal (nosso eu inteligvel, nosso eu em si), preciso reconhecer que Kant mantm aberto o espao para tal relexo, seja na prpria segunda Crtica (sobretudo na Dialtica), seja em muitos outros trabalhos (tais como o opsculo Como orientar-se no pensamento?, onde ele fala de uma necessidade metafsica da razo que nos daria o direito de desenvolver um pensamento sobre isso).12 Mesmo que no tenha qualquer funo fundacional, essa relexo desempenha um papel decisivo no que diz respeito aos aspectos motivacionais de nosso agir: esta a razo, talvez, pela qual Kant precise falar de um sentimento de respeito pela lei moral e fazer da imortalidade da alma um postulado da razo pura prtica.

    Se tambm ns, pois, mantivssemos aberta tal perspectiva - que no deve jamais confundir-se com a metafsica pr-katiana, que falava sobre o mundo em si13 -, ento autores como Rousseau poderiam funcionar sempre como fonte de inspirao para nossa relexo sobre

    10 Idem, p. 37911 Cf. Beck, L. W. A commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1984. Cf. tb. Mattos, F. C. Em torno da velha questo: seria Kant um metafsico? In: Analytica (UFRJ), vol. 13, n. 1, 2009, p. 95-134.12 (...) e o direito da necessidade da razo sobrevm como o fundamento subjetivo para a razo pressupor e aceitar algo que no pode pretender conhecer em bases objetivas, e portanto para orientar-nos no pensamento i.e. no incomensurvel espao do mbito supra-sensvel que enxergamos cheio de terrvel escurido por meio apenas de uma necessidade da prpria razo. (KANT, WDO, AA 08: 136-7)13 Quanto a essa diferenciao entre uma metafsica pr-kantiana e outra ps-kantiana, de carter crtico, cf. Henrich, D. O que metafsica? O que modernidade? Doze teses contra Jrgen Habermas. In: Cadernos de Filosoia Alem (USP), n. XIV, jun.-dez.2009, p. 83-117. Cf. tb. Mattos, F. C. Intersubjetivismo versus subjetivismo? Algumas consideraes sobre a controvrsia Habermas-Henrich a partir das Doze teses contra Jrgen Habermas. In: idem, p. 55-83.

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    quem somos, para nossa autocompreenso enquanto seres no mundo. esse o esprito, com efeito, em que nos propomos a ler passagens como a seguinte, uma das mais conhecidas de Rousseau:

    certo que a piedade um sentimento natural que, moderando em cada indivduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservao mtua de toda a espcie. ela que nos conduz, sem reletir, a socorrer aqueles que vemos sofrer; ela que, no estado de natureza, funciona como lei, costumes e virtude, com a vantagem de que ningum se sente tentado a desobedecer a sua voz; ela que impedir o robusto selvagem de capturar uma frgil criana ou um velho enfraquecido, que adquiriu sua subsistncia com muito esforo, caso ele possa conseguir a sua prpria em outra parte; ela que, no lugar da sublime mxima de uma justia racionalmente concebida faz ao outro o que tu queres que te faam , inspira em todos os homens uma outra mxima de bondade natural, bem menos perfeita mas talvez muito mais til que a outra: faz teu bem com o mnimo de mal alheio que seja possvel. nesse sentimento natural, em suma, e no em argumentos sutis, que se deve procurar a causa da repugnncia que todo homem experimentaria ao praticar o mal, independentemente das mximas da educao.14

    Saltam novamente aos olhos as j mencionadas diferenas em relao a Kant: o carter natural desse sentimento, a crtica a uma justia racionalmente concebida etc. Se, no entanto, nos ativermos proposta de compreender mais fundamente a subjetividade humana - deixando de lado, por ora, os nomes que devemos dar a esta ou aquela instncia subjetiva (se sentimento ou fato da razo, por exemplo) -, podemos reconhecer de novo alguns traos de semelhana e, principalmente, o decisivo insight em algo que, presente em todo ser humano, constituiria a verdadeira base de nossa vida moral. Contra aqueles que, numa poca que se autodenomina ps-metafsica, se recusam a ver na subjetividade um objeto sequer possvel - todo discurso a respeito dela seria sempre localizado e, portanto, relativo -, estaramos reconhecendo a o valor dessa relexo, historicamente construda nas obras de autores como Rousseau e Kant, com a qual chegamos noo de dignidade humana que, sempre presente nos marcos normativos das modernas sociedades democrticas, permite falar ainda em critrios universais de justia.

    Como bem mostrou Dieter Henrich,15 a metafsica j no fala h muito do mundo mesmo: ela fala da subjetividade, pois somente a partir desta que ainda podemos, sem recurso religio, pensar a respeito de nossa posio no mundo - as relaes que mantemos com a natureza, uns com os outros, e cada um de ns consigo prprio. Nesse quadro, ler Rousseau ou Kant no um aprendizado sobre a histria da ilosoia; um aprendizado sobre o que somos, sobre o que podemos ser e, quem sabe, sobre o que devemos ser. E o sentimento da piedade, to ricamente descrito e elogiado por Rousseau, poderia readquirir ento - no discurso mesmo que pretendeu corrigi-lo, a ilosoia moral de Kant - o valor que mesmo o pior vilo teria de reconhecer em seu corao - ou, que seja, em sua razo. Ainda que isso no interira, como dissemos acima, na estratgia kantiana de fundamentao da moralidade no imperativo categrico, insistir nesse elemento menos formal do agir moral seria, talvez, uma forma de minimizar o eventual dicit motivacional da ilosoia prtica kantiana, algo que apontado por

    14 Rousseau, Discurso, p. 253.15 Cf. Henrich, op.cit.

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    autores dos mais diferentes feitios - de Hegel a Heidegger, passando por Nietzsche. Mas este j seria um assunto para outra ocasio.

    RESUMO: O objetivo deste artigo veriicar, luz de algumas passagens de Rousseau e Kant, o quanto a aproximao de ambos poderia ser frutfera no sentido de pensar uma caracterizao do ser humano compatvel com a noo de dignidade, cuja importncia sabidamente grande na ilosoia poltica contempornea. Comearemos por reconstruir a argumentao de Cassirer, indicando o sentido da guinada kantiana em direo razo, para em seguida fazer um paralelo entre os dois ilsofos no que diz respeito fundamentao da moral. Ao inal, indagaremos se a compreenso rousseausta da subjetividade humana, centrada na noo de piedade, no seria uma boa fonte de inspirao para, em associao com a ilosoia moral kantiana, pensar a subjetividade humana e aquilo que, nesta, nos motivaria a agir moralmente.

    PALAVRAS-CHAVE: Rousseau - Kant - piedade - moralidade - subjetividade

    ABSTRACT: his paper aims to inquire, based on certain passages from Rousseau and Kant, if the bringing together of these philosophers could be fruitful in order to think a notion of human being compatible with that of dignity, which is evidently important in contemporary political philosophy. We shall begin by reconstructing Cassirers arguments, showing why Kant turns into the direction of reason instead of feeling, and making a parallel between both philosophers in regard to the founding of morality. In the end, we shall question if Rousseaus comprehension of human subjectivity, centered on the notion of piety, could be a good source of inspiration to, in association with Kants moral philosophy, think human subjectivity and that which, within the latter, would motivate us to act morally.

    KEYWORDS: Rousseau - Kant - piety - morality - subjectivity

    REFERNCIAS Beck, L. W. A commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1984.

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    Rousseau, J-J. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. So Paulo: Escala, 2007.

    Recebido / Received: 17.11.2012Aprovado / Approved: 6.3.2013