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Fotografia para a Paz e Identidade Fabricio Borges CARRIJO Mestre em Estudos de Paz, Conflitos e Desenvolvimento Cátedra UNESCO de Filosofía para a Paz Universidade Jaume I,España Doutorando em Relações Internacionais e Integração Européia Universidade Autônoma de Barcelona [email protected] Resumo O presente artigo propõe o reconhecimento de realidades de paz e a construção de identidades pacíficas. A variável fotografia é apresentada como uma possível ferramenta para lograr tais objetivos. Inicialmente, apresento uma abordagem conceitual sobre violência e paz. Logo, analiso a prática da violência cultura através de sistemas simbólicos de representações sobre violência. Posteriormente, abordo a proposta que denomino Fotografia para a Paz a qual consiste no reconhecimento de contextos de paz no cotidiano. Para levar a cabo tal proposta realizei uma pesquisa de campo cujos resultados são apresentados na forma de ensaio fotográfico. Palavras-chave: fotografia para a paz, violência cultural, identidade. Abstract This article aims to propose the recognition of peace realities and the construction of Peace Identities. The photographic variable is presented as a possible tool to reach such goals. Initially, I present a conceptualization on violence and peace. Then, I analyze the practice of cultural violence through symbolic systems of representations about violence. Further, I address a theoretical proposal I called Photography for Peace, which consists on the recognition of peace contexts within the quotidian. In order to put this proposal into practice I conducted a field research. Its results are presented in the format of a photographic essay. Keywords: photography for peace, violence, identity. Introdução arto da premissa segunda a qual não existe nenhuma determinação biológica no ser humano que o conduza inevitavelmente à prática da violência. Seu contrário, a condição do ser humano como violento por natureza, constitui historicamente o sustentáculo legitimador da violência em sua variedade de acepções a serem abordadas abaixo. P

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arto da premissa segunda a qual não existe nenhuma determinação biológica no ser humano que o conduza inevitavelmente à prática da violência. Seu contrário, a condição do ser humano como violento por natureza, constitui historicamente o sustentáculo legitimador da violência em sua variedade de acepções a serem abordadas abaixo. Resumo Keywords: photography for peace, violence, identity. Abstract Palavras-chave: fotografia para a paz, violência cultural, identidade. Introdução

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Fotografia para a Paz e Identidade

Fabricio Borges CARRIJO

Mestre em Estudos de Paz, Conflitos e Desenvolvimento Cátedra UNESCO de Filosofía para a Paz – Universidade Jaume I,España

Doutorando em Relações Internacionais e Integração Européia Universidade Autônoma de Barcelona [email protected]

Resumo O presente artigo propõe o reconhecimento de realidades de paz e a construção de identidades pacíficas. A variável fotografia é apresentada como uma possível ferramenta para lograr tais objetivos. Inicialmente, apresento uma abordagem conceitual sobre violência e paz. Logo, analiso a prática da violência cultura através de sistemas simbólicos de representações sobre violência. Posteriormente, abordo a proposta que denomino Fotografia para a Paz a qual consiste no reconhecimento de contextos de paz no cotidiano. Para levar a cabo tal proposta realizei uma pesquisa de campo cujos resultados são apresentados na forma de ensaio fotográfico. Palavras-chave: fotografia para a paz, violência cultural, identidade. Abstract This article aims to propose the recognition of peace realities and the construction of Peace Identities. The photographic variable is presented as a possible tool to reach such goals. Initially, I present a conceptualization on violence and peace. Then, I analyze the practice of cultural violence through symbolic systems of representations about violence. Further, I address a theoretical proposal I called Photography for Peace, which consists on the recognition of peace contexts within the quotidian. In order to put this proposal into practice I conducted a field research. Its results are presented in the format of a photographic essay. Keywords: photography for peace, violence, identity.

Introdução

arto da premissa segunda a qual não existe nenhuma determinação biológica no ser humano que o conduza inevitavelmente à prática da violência. Seu contrário, a condição do ser humano como violento por natureza, constitui historicamente

o sustentáculo legitimador da violência em sua variedade de acepções a serem abordadas abaixo.

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O presente artigo se insere no contexto da imensa desproporção entre a valoração dada às realidades de violência, sobretudo guerras, em comparação aos estudos das experiências pacíficas vividas pelos seres humanos em seu cotidiano (Muñoz e Martínez, 2000). Tente imaginar a última notícia que você leu ou assistiu sobre paz, as últimas imagens vistas sobre contextos de paz. Em comparação com as informações sobre violência, percebemos nos meios de comunicação de massa certa indiferença quanto aos contextos de paz. Esta invisibilidade da paz contribui para a criação de um imaginário coletivo em que a paz seja percebida como algo distante da realidade, uma forma de idealismo irrealizável na prática. Portanto, em quais contextos encontramos realidades de paz? Por que estas são tão ausentes nos meios de comunicação de massa? Quais suas conseqüências? Abordarei tais interrogantes e apresentarei a proposta fotografia para a paz como ferramenta de reconhecimento de realidades de paz e construção de identidades pacíficas. 1. Conceptualização de violência e paz Diante das inúmeras possibilidades para definir violência e paz, optei por iniciar com a abordagem de Johan Galtung1(2003), para quem violência constitui uma ofensa às necessidades básicas do ser humano de tal forma que o nível da satisfação destas necessidades é diminuído em relação ao seu potencial (2003:197). Entende-se por necessidades básicas as “necessidades de sobrevivência (negação: morte, mortalidade); necessidades de bem estar (negação: miséria, morbidez); necessidades de identidade e sentido (negação: alienação); necessidades de liberdade (negação: repressão)”2 (Galtung, 2003:197). A negação destas necessidades ocorre através de três tipologias interconectadas de violência: direta, estrutural e cultural. Com base no triangulo da violência proposto por Galtung (2003), a violência direta abarca eventos de violência física e verbal, como por exemplo, tortura, assassinato, extermínio, guerra, repressão violenta de manifestações pacíficas, imposição de embargos que ameacem a subsistência de uma população, tratamento a certos setores da sociedade como cidadãos de segunda classe por sua etnia, credo, cor, nacionalidade, posicionamento político, etc. A violência estrutural ocorre de forma indireta através da criação e manutenção de estruturas sociais que impedem ao ser humano a satisfação de suas necessidades básicas. Esta forma de violência está presente em todo contexto de desigualdade e injustiça social, exploração e marginalização. O capitalismo financeiro, baseada na liberalização da economia, predomínio do econômico em relação ao político, desregulamentação do sistema financeiro e conluio entre empresas transnacionais e instituições financeiras em um contexto globalizado, representa um dos mais nefastos exemplos de produção de toda forma de violência.

1 Johan Galtung é um dos fundadores da disciplina acadêmica Estudos para a Paz (Peace Studies/ Peace

Research) 2 “Survival needs (negation:death, mortality); well-bring needs (negation: misery, morbidity); identity,

meaning needs (negation:alienation); and freedom needs (negation: repression)” (Galtung, 2003:197).

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Como “a lógica liberal é uma máquina de produzir desigualdades”3 ( Bensaid, 210:10) e “ ‘cada um por si e todos contra todos!’ parece ser a lógica absurda de um planeta submetido ao despotismo anônimo do capital e dos mercados” 4( Bensaid, 210:12), a prática do capitalismo financeiro,movido pela esta lógica liberal esquizofrênica de acumulação de capital, constitui uma máquina de promoção da violência estrutural. A violência estrutural resulta, por exemplo, de crises econômicas geradas pela especulação financeira; da imposição pelos mercados aos Estados, de uma agenda de reformas neoliberais de recortes de gastos sociais para acalmar o “nervosismo” daqueles e gerar a maximização de seus lucros em troca da “confiança” em relação à capacidade dos Estados em pagarem suas dívidas públicas; do desmantelamento de serviços públicos de proteção social, como a saúde e a providência social; da deterioração do sistema de educação pública; da existência de paraísos fiscais. Também promove a violência estrutural o processo “privatização do mundo e redução de espaços públicos”5 (Bensaid, 2010: 183); a privatização dos recursos naturais; a biopirataria e a conseqüente transformação em patente dos saberes tradicionais de povos indígenas, pois as patentes promovem a “apropriação privada do conhecimento e a transformação generalizada da informação e do vivo em capital”6 (Besaid, 2010: 36). A Violência cultural representa “a esfera simbólica de nossa existência – exemplificada pela religião e ideologia, linguagem e arte, ciência (...) – que podem ser utilizadas para justificar ou legitimar a violência direta ou estrutural”7 (Galtung, 2003:196). Como irei abordar no item “3. O espetáculo da violência” deste artigo, a violência cultural funciona como eficiente aparato para naturalizar a violência e seus efeitos. A violência se torna não apenas aceitável como necessária em determinados casos, sempre que esteja de acorda com o moralismo hipócrita na qual se sustenta. É exercida por um vasto conjunto de meios, como a economia, a política, a cultura, os meios de comunicação de massa, a educação, a indústria cultural e a produção científica. A criação do Islã como inimigo do ocidente através de um processo de representações simbólicas constitui um exemplo emblemático de violência cultural ao construir uma imagem do “outro” como inimigo. Justifica a violência direta ao apresentar a guerra ao eixo do mal como algo necessário e o ato de matar ao “outro” como legítimo. Justifica também a violência estrutural ao considerar-se aceitável a pobreza da população e sua falta de acesso a serviços básicos, decorrente do processo de busca pela maximização dos lucros e controle da exploração do petróleo nestas regiões habitadas pelo “inimigo”. Manter o “outro” oprimido e obediente é normalizado como meio de atender-se aos interesses próprios.

3 “la lógica liberal es una máquina de producir desigualdades e injusticias” ( Bensaid, 210:10).

4 “‘¡cada uno para si y todos contra todos!’ parece ser la lógica absurda de un planeta sometido al

despotismo anónimo del capital y de los mercados” ( Bensaid, 210:12). 5 “Privatización del mundo y de la reducción de los espacios públicos.” (Bensaid, 2010: 183).

6“apropiación privada del conocimiento y la transformación generalizada de la información y de lo vivo

en capital” (Besaid,2010: 36). 7 “the symbolic sphere of our existence – exemplified by religion and ideology, language and art,

empirical science and formal science (logic, mathematics) – that can be used to justify or legitimize direct or structural violence” (Galtung, 2003:196).

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A paz, por sua vez, não significa apenas ausência de guerra, o que seria um exemplo de paz negativa. Esta se limita à redução da violência direta. A dimensão positiva da paz engloba o processo de transformação8 das estruturadas geradoras da violência direta, estrutural e cultura. De acordo com Galtung (2003), dentro da perspectiva da paz positiva, a paz constitui o fim e o meio para atingi-lo, ou seja, a busca pela paz deve ocorrer por meios pacíficos. A paz positiva direta abrange a ausência de violência direta, incluindo a supressão de toda forma de discriminação. Refere-se também à presença da gentileza e respeito no trato entre os diversos atores sociais; ajuda mútua e cooperação; existência de movimentos sociais e artísticos para paz. A paz positiva estrutural promove a transformação da violência estrutural. Está presente quando existe liberdade no lugar de opressão; equidade em vez de exploração; na existência de justiça social; na presença de uma paz interna em que o corpo e a mente estejam em harmonia; na relação sustentável com o meio ambientes; na reforma de organismos internacionais, como as Nações Unidas, a fim de promover equidade no processo decisório; na coexistência cultural. Já a paz positiva cultural substitui a violência cultural. Promove a legitimação da paz em suas várias dimensões através, embora não necessariamente, dos mesmos meios utilizados para o exercício da violência cultural: os meios de comunicação, indústrias culturais, educação, ciência, religião, normas9. A paz cultura se materializa, por exemplo, com a existência de um jornalismo para a paz; na incorporação da paz nos currículos educacionais através de programas de educação para a paz; com a paz como objeto de pesquisa acadêmica; incorporação dos estudos para a paz como disciplina transversal em programas de graduação e pós graduação, nos mais diversos âmbitos do conhecimento (Galtung, 2003:32-33). Para José Tuvilla Rayo (2004c), a paz cultural representa a existência de um conjunto de valores mínimos compartilhados os quais formam

uma cultura da convivência e da participação, fundada nos princípios da liberdade, justiça, democracia, tolerância10 e solidariedade; uma cultura que rechaça a violência, se dedica a prevenir os conflitos em suas causas e a resolver os problemas pelo caminho do diálogo e da negociação; uma cultura que assegura a todos os seres

8 Transformação é aqui empregado a partir de seu uso nos estudos de paz, especificamente à

abordagem de Johan Paul Lederach ao referir-se ao processo de transformação de conflitos, em substituição à expressão resolução de conflitos. Transformar um conflito vai além de apenas eliminá-lo, significa promover a alteração da estrutura que o fomenta, de modo que não volte a ocorrer. Este processo demanda lidar com o conflito de forma criativa, construtiva e não violenta, assim como promover um complexo sistema de transformação da forma como percebemos o mundo e como nos relacionamos. Ver Lederach, John Paul. "Conflict Transformation." Beyond Intractability. Eds. Guy Burgess and Heidi Burgess. Conflict Research Consortium, University of Colorado, Boulder. <http://www.beyondintractability.org/essay/transformation/>.[10 de março de 2011 ] 99

Refiro-me tanto às normas escritas de um ordenamento jurídico (leis federais, estaduais, municipais, tratados internacionais, acordos internacionais) quanto ao sistema normativo não escrito, como os existentes em comunidades indígenas em que predomina a cultura da oralidade. 10

A utilização da palavra tolerância me causa desconforto, pois pode significar que ao tolerar o “outro”, aquele que tolera mantém sua percepção de superioridade em relação ao tolerado. Não é este o caso. Tolerância aqui é utilizada no sentido de reconhecimento e interação com o “outro” em uma processo relacional horizontal.

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humanos o pleno exercício de seus direitos e os meios necessários para participar plenamente no desenvolvimento endógeno de suas sociedade11 (Rayo, 2004b:397).

A paz, de forma abrangente, representa “o maior grau de bem estar ou satisfação de necessidades” (Muñoz, 2004a: 30). Na presente proposta abordo a perspectiva da paz imperfeita (Muñoz, 2004a), segundo a qual a paz não constitui algo acabado, longínquo e inatingível. A paz é percebida como um processo. A existência da paz não está condicionada à presença simultânea de todas as dimensões da paz (direta, estrutural e cultural) e suas inúmeras subcategorias12. A paz pode ser reconhecida a partir das práticas cotidianas mesmo quando imersas em contextos imperfeitos onde existam elementos de violência. Como abordaremos no item “Fotografia para a paz”, é justamente esta possibilidade de reconhecimento de práticas pacificas no cotidiano que proporciona um meio de rearticulação de poder por parte da sociedade civil em direção à formação de identidades pacíficas que promovam a construção de realidade de paz. 2. O espetáculo da violência Vivemos em uma era da hegemonia da imagem em que o real e o virtual se entrelaçam em um jogo opaco de interesses diversos imersos em relações de poder formadoras de um simulacro da violência. Como afirma Subirats na obra “A cultura como espetáculo”, o simulacro constitui uma réplica tecno-científica, lingüística ou multi-midiática do real e compete ontologicamente com o ser representado, ultrapassando-o em uma pretensão ilusionista para converter-se no único ser objetivamente real (Subirats, 1988: 84-95). No simulacro a representação do real chega a substituir a própria realidade. São as sombras da caverna platônica que se convertem em realidade e substituem o que representam. A experiência subjetiva do real torna-se irrelevante mediante as infinitas possibilidades de representação proporcionadas pelas imagens. Neste contexto, o espetáculo da violência ocorre por meio da difusão exagerada, reiterada e sensacionalista de imagens e textos sobre violência. Conforme escreveu Baudelaire,

É impossível dar uma olhada em qualquer jornal, não importa de qual dia, mês ou ano, e não encontrar em cada linha as pegadas mais terríveis da perversidade humana (...) Todos os jornais , da primeira à última linha, não são mais que uma série de horrores. Guerras, crimes, furtos, lascívias, torturas; os feitos malévolos dos príncipes, das nações, dos indivíduos: uma orgia da atrocidade universal. E com esse aperitivo

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“una cultura de la convivencia y de la participación, fundado en los principios de libertad, justicia, tolerancia y solidaridad; una cultura que rechaza la violencia, se dedica a prevenir los conflictos en sus causas y a resolver los problemas por el camino del dialogo y de la negociación; un una cultura que asegura a todos los seres humanos el pleno ejercicio de sus derechos y los medios necesarios para participar plenamente en el desarrollo endógeno de su sociedad” (Rayo, 2004b:397). 12

Por exemplo, paz interior, paz ecológica, paz de gênero, etc.

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repugnante, o homem civilizado rega sua comida matutina13 (Baudelaire, citado em Sontag, 2003: 122)

Quando ligamos a televisão, acessamos a internet ou lemos o jornal não demora em termos a sensação de que o mundo é um completo desastre, repleto de toda forma de atrocidades: conflitos armados, ataques terroristas, torturas, crimes, intolerância religiosa, miséria, aquecimento global etc. O argumento de Baudelaire mencionado acima, não isento de certo exagero, continua atual embora seja de 1860. Obviamente, no presente contexto de 2011 existe uma variedade muito maior de meios de comunicação. Com o advento da tecnologia e meios alternativos de comunicação (blogs, redes sociais, sites de notícias) teríamos, em tese, maior acesso à informação a partir de pluralidade de perspectivas. Embora isto ocorra em certo grau, grande parte da população mundial ainda se encontra excluída desde processo. Ao mesmo tempo, como afirma Dêmis de Moraes (2000) o processo de distribuição de produção e distribuição de informação e entretenimento é cada vez mais concentrado nas mãos de conglomerados multimídia, em sua maioria com sede nos Estados Unidos, com atuação hegemônica, norteados pela maximização da rentabilidade a qualquer custo. Estes conglomerados formam oligopólios que incluem a mídia, as telecomunicações e a indústria do entretenimento, processo que Moraes (2000) denomina infotelecomunicação. Atuam em esfera global através da incorporação, fusão ou associação com meios de comunicação nacionais, regionais e locais. Os conteúdos que distribuem não representam uma visão neutra da realidade; encontram-se de acordo com os interesses neoliberais destes oligopólios da comunicação, atrelados às parcerias governamentais, em um conluio de busca por acumulação de capital e hegemonia global. Uma vez que a os conflitos armados e a existência de um inimigo externo a ser combatido constituem um dos meios para atingir a estes fins, promove-se nas informações distribuídas a ausência da paz e a espetacularização e legitimação da violência. Um exemplo para este contexto pode ser encontrado na obra “Mídia e Relações Internacionais: lições da invasão do Iraque em 2003”. Nesta, Julia Camargo (2009), analisa a cobertura desta guerra realizada por três jornais de grande circulação no Brasil: O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e O globo. Entre os resultados, Camargo encontra uma significativa reprodução reiterada, por parte da imprensa brasileira, dos discursos da mídia internacional, sobretudo estadunidense, legitimadores da invasão do Iraque. Exemplos como o mencionado acima, ou seja, a omissão por parte da mídia dos contextos de paz e sua complacência e mesmo legitimação da violência, atuam como aparatos de construção e reiteração da violência cultural. A linguagem constitui um aparato discursivo através do qual o poder circula. As práticas discursivas, por meio dos aparatos simbólicos (em nosso caso, as narrações sobre violência através de textos e imagens) determinam o que é verdade, que vivemos em um mundo condenado à 13

“Es imposible echar una ojeada a cualquier periódico, no importa de qué día, mes o año, y no encontrar en cada línea las huellas más terribles de la perversidad humana*…+Todos los periódicos, de la primera a la última línea, no son más que una sarta de horrores. Guerras, crímenes, hurtos, lascivias, torturas; los hechos malévolos de los príncipes, de las naciones, de los individuos: una orgía de la atrocidad universal. Y con ese aperitivo repugnante, el hombre civilizado riega su comida matutina” (Baudelaire, citado em Sontag, 2003: 122).

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violência, sem esperança, em constante perigo; um mundo em contínuo processo de destruição. A internalização destes discursos forma o regime de verdade da violência (Foucault, 1980) e determina nossa performatividade. Entende-se por performatividade a prática reiterada a partir da qual emerge o sujeito como materialização do discurso (Butler, 1993). A conversão da realidade em espetáculo influi na formação identitária de seus espectadores ao proporcionar-lhes uma concepção de mundo acabada e dada de antemão, em substituição ao que seria construído a partir da experiência do real. A experiência real também se torna condicionada pelo simulacro pois este proporciona as categorias identitárias a serem incorporadas pelo sujeito; os desejos, interesses, impressões e sentimentos com os quais interpretar e performar no mundo. A sujeição inconsciente às posições identitárias criadas fora do sujeito ocorrem por meio do processo de interpelação, em outras palavras, pelo processo em que o sujeito se identifica e interioriza a imagem de si produzida fora de si (Altthusser, 1970). Os regimes de verdades da violência estabelecem o inimigo a ser temido: o pobre, imigrante, negro, muçulmano, etc. Proporcionam ainda a performatividade do sujeito interpelado em relação ao “outro”: exclusão, indiferença e desconsideração do outro como “interlocutor válido” (Guzmán,2007). Ao negar a capacidade de interlocução do outro, silenciamos e invisibilizamos sua existência. Nesta peformatividade passiva em questão, encontra-se ainda a aceitação de políticas conservadoras que suprimem a liberdade em nome da segurança; o medo quanto ao “outro”, considerado uma ameaça; e por fim, a legitimação da violência. Esta passa a ser percebida como um dever para proporcionar segurança.

3. Fotografia: doença e antídoto A fotografia constitui um dos meios discursivos de exercício da violência cultural analisada acima. “A busca pela imagem mais dramática (como freqüentemente descrevem) norteia o negócio da fotografia, e constitui parte da normalidade de uma cultura na qual o choque se tornou um estímulo instigador do consumo e fonte de valor” 14(Sontang, 2003:23). Somos parte de um espetáculo sádico no qual a brutalidade e a crueldade em relação ao “outro” entretém e a desgraça longínqua traz conforto. Como diz a conhecida frase no meio jornalístico, mencionada por Sontag, “se sangra, atrai”15 (Sontag, 2004:27) ou seja, quanto maior a violência de uma contexto, maior o seu poder de atração. A fotografia não constitui uma representação imparcial da realidade. Traz significados resultantes da subjetividade do ser humano que a produz. Argumentar em prol da neutralidade das imagens é ignorar a intenção do emissor. Barthes (1986) denomina este contexto de “paradoxo da fotografia”. Refere-se à coexistência de duas

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“the hunt for more dramatic (as they’re often described) images drives the photographic enterprise, and is part of normality of a culture in which shock has become a leading stimulus of consumption and source of value” (Sontang, 2003:23). 15

“If it bleeds, it leads” (Sontag, 2004:27)

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mensagens na fotográfica: a mensagem sem código, composta pelo sentido denotativo, ou seja, a idéia de representação mecânica do real e a mensagem com código, caracterizada pelo sentido conotativo; pela maneira em que ocorre o processo fotográfico: a eleição, o tratamento da imagem, a composição, a técnica (Barthes, 1986:13-18). Para Barthes, “quanto mais desenvolvida a técnica da difusão da informação ( e especialmente das imagens), mais meios proporciona para mascarar o sentido construído sob a aparência do sentido dado”16 (Barthes, 1986,42). Como vimos no item anterior, a fotografia, a serviço de oligopólios dos meios de comunicação, constitui um aparato discursivo de construção e manutenção de regimes de verdade da violência. Mascara a intencionalidade de legitimação da violência diante da aparência de uma reprodução neutra do real. Ao mesmo tempo, a fotografia possui o potencial como elemento de desmantelamento destes regimes através do reconhecimento de realidades de paz. Reconhecer a paz é um exercício de resistência, um passo em direção à construção de novos contextos de paz.

4. Fotografia para a Paz Conforme Sontag, “câmeras são o antídoto e a doença, um meio para reconhecer realidades e um meio para torná-las obsoletas”17 (Sontag, 1979: 179). Até o momento vimos que a fotografia é freqüentemente utilizada como elemento de reconhecimento de realidades de violência enquanto torna obsoletos os contextos de paz. Proponho uma mudança criativa nos processos comunicativos através da abordagem que denomino fotografia para a paz, caracterizada pela utilização da fotografia como meio para reconhecer a existência de realidades pacíficas no cotidiano. A busca por registrar em imagens a presença de momentos de paz não significa indiferença quanto às realidades de violência. Não é um intento de representar um mundo em perfeita ordem, onde a violência seja inexistente (o que também inclui desigualdade, injustiça, opressão); um mundo em que as lutas pacíficas por igualdade e justiça social careçam de necessidade e sentido. Pelo contrário. Isto seria um mero intercâmbio de um regime de verdade de violência, por outro regime de verdade da paz. Constituiria um aparato repressor a serviço do sistema de dominação que esta proposta almeja transpor. Fotografia para a Paz reconhece a importância de fotografar contextos de violência, em suas várias dimensões, como ferramenta de denuncia social, de tal forma que, como escreveu o premiado fotógrafo James Nachtwey18, o

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“cuanto más desarrolla la técnica de la difusión de información (y especialmente de las imágenes), más medios proporciona para enmascarar el sentido construido bajo la apariencia del sentido dado” (Barthes, 1986,42).

17 “cameras are the antidote and the disease, a means of appropriating reality and a means of making it

obsolete” (Sontag,1979:179). 18

O fotógrafo James Nachtwey se dedica há 30 anos à cobertura de guerras e todas formas de conflitos armados e situações sociais críticas. O documentário “Fotógrafo de guerra” apresenta seu

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registro fotográfico seja um testemunho de eventos, capturados com a câmera para que não sejam esquecidos e jamais repetidos. Ao mesmo tempo, se refuta o uso sensacionalista de fotografias de violência em busca da imagem mais dramática, que objetifica o sofrimento alheio, utilizando-o como aparato simbólico de dominação a serviço de diversos atores, em uma perversa cooperação, para os quais a paz não é conveniente. Entre estes atores encontram-se: a) os Estados belicistas, como os Estados Unidos, Reino Unido e França; b) empresas produtoras e fornecedoras de armamento e materiais bélicos; c) empresas militares privadas19 fornecedoras de soldados mercenários e serviços de segurança, treinamento militar, logística e comunicação; d) empresas exploradoras de recursos naturais20; e) oligopólios de meios de comunicação e Indústrias culturais; e todos aqueles para os quais a violência, sobretudo, por meio de conflitos armados, constitui um meio para atender a seus interesses estratégicos, políticos e econômicos. Portanto, no que se refere às imagens de violência, é importante atentar-se à tênue linha entre a denúncia e a banalização; entre a crítica em busca de eliminar realidades de violência e a manipulação com o escopo de naturalizá-las e legitimá-las. A proposta fotografia para a paz representa um intento de transformar a violência cultural praticada pela omissão de realidades de paz e pela exacerbação e banalização das de violência. Busca-se também questionar e transpassar o medo, elemento simbolicamente construído pelo processo de violência cultural e fundamental para legitimar a dominação e a violência em nome da “segurança”. O medo atua ainda no processo de interpelação do indivíduo, levado a assumir identidades cuja performatividade normaliza e legitima a violência em sua variedade de tipologias, como conflitos armados, desigualdade e injustiça social, exploração do ser humano, indiferença e exclusão. A busca de reconhecimento de realidades de paz não representa um fim em si mesmo, mas um meio de rearticulação de poder voltado à construção de realidades pacíficas. Neste processo, a paz é o fim e o meio para lográ-lo, ou seja, a paz se constrói através de práticas pacíficas. Portanto, precisamos estar atentos e críticos ao fato de que a paz constitui um valor que tem sido incorporado pelos discursos dominantes para legitimar sua opressão. Uma sociedade pacífica não é uma sociedade silenciada, oprimida. É hipócrita a proibição, em nome da paz social, de manifestações pacificas que trazem a público os gritos de indignação contra a violência sofrida pela sociedade civil. Devemos questionar a legitimidade dos discursos de Estados para invadir territórios alheios em nome da paz, supostamente motivados por uma súbita preocupação em proteger a população civil oprimida. Causa estranhamento o fato de que estes mesmo Estados, aparentemente preocupados com a paz, sejam justamente os que proporcionam os meios para que a violência se perpetue impunemente nos territórios onde buscam legitimidade internacional para atuar. São cúmplices da violência ao

trabalho. Suas fotos podem ser vistas no site: <http://www.jamesnachtwey.com/> [2 de fevereiro de 2011 ]. 19

Exemplo, MPRI (Military Professional Resources Inc). Esta empresa pertence ao grupo L-3 Communications Holdings.

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apoiarem regimes ditatoriais (e aparentes regimes democráticos), por meio da venda de armas, treinamento de suas forças armadas e serviços secretos, realização de parcerias estratégicas e lucrativos acordos comerciais. Em contrapartida, atuam em conivência quanto à opressão da população civil cometida pelos regimes considerados “amigos”, “aliados” e “sócios”. Fotografia para a paz nos convida a ampliar nosso campo de visão para enxergar outras realidades, além dos contextos de violência que nos são constantes apresentados. Significa reconhecer a presença de realidades de paz - freqüentemente invisibilizadas e silenciadas - e assim perceber a contingência dos cenários que somos levados a crer como imutáveis, em decorrência dos discursos criadores de regimes de verdade de violência por aqueles atores com poder para nomear o que é real. O reconhecimento da paz não está condicionado à existência de uma paz total, acabada. Um contexto não é necessariamente ou de violência total ou de paz plena. Vivemos em um mundo de pazes imperfeitas em que violência e a paz são antagonismos que muitas vezes coexistem em uma mesma realidade. Paz imperfeita, como mencionado no início deste artigo, segundo Francisco Muñoz (2001; 2004a; 2004b), significa a existência de experiências por meio das quais os conflitos são regulados de forma pacífica. Conflito aqui não é tratado como sinônimo de violência, e sim como “contraposição de interesses e/ou percepções” (Muñoz, 2004:152), divergência de interesses, tensão; busca por objetivos incompatíveis (Galtung, 1996:71). Um conflito não é necessariamente violento, depende da forma como é regulado (Muñoz, 2004). A abordagem da paz imperfeita nos incita a perceber que embora cotidianamente possamos estar expostos a uma variedade de conflitos nas distintas esferas de nossas vidas, muitas vezes (senão sua maioria) os transformamos de forma pacifica. Pensar em termos da paz imperfeita nos auxilia a reconhecer as experiências cotidianas nas quais a paz, embora presente, freqüentemente não é reconhecida. Como afirma Muñoz, a paz imperfeita está presente em várias instancias: na satisfação de necessidades; nas regulações pacíficas individuais e grupais, carinho, doçura, solidariedade, cooperação, ajuda mútua; no âmbito regional/Estatal através da realização de acordos, negociações, intercâmbios, tratados, na formação de organismos internacionais. Reconhecer as práticas pacíficas nos permite romper com as percepções de paz como algo utópico, inalcançável e distante (Muñoz, 2001). Desse modo, realidades paz podem ser encontradas e/ou construídas em qualquer ambiente, por mais atrozes que sejam. Isto também inclui situações extremas de conflitos armados e pobreza, bairros e comunidades marcadas pelo estigma da violência. Nos mais recônditos cenários pode ser possível fotografar a capacidade do ser humano atuar de forma pacífica. Na abordagem fotografia para a paz, a busca pelo reconhecimento da existência da paz no cotidiano ocorre com a consciência da dimensão imperfeita da paz. Este reconhecimento possui como escopo incitar na população um processo de rearticulação de poder em prol de uma performatividade ativa para construção a manutenção de contextos de paz.

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4.1 Fotografias para a Paz: metodologia e desafios A proposta fotografia para a paz toma corpo a partir de janeiro de 2008. Constitui um processo em contínua construção. Esta abordagem demanda alguns elementos metodológicos básicos a serem mencionados a seguir. Os momentos de paz hão de ser capturados em sua espontaneidade, não podem ser forjados. Isto não impede a utilização de retratos posados, desde que reflitam a existência de um contexto de paz. Não cabe a realização de montagens no processo de captura e edição da imagem, para criar uma determinada situação que aparente um momento de paz. Nesta proposta, é inválido influir para a criação artificial do instante que se enquadraria na categoria paz, como por exemplo, dizer a alguém ou a um grupo de pessoas, “dêem um abraço em tal pessoa como se vocês se amassem”, “finjam estarem ajudando uns ou outro”, “tentem agir como se estivessem em um ambiente de paz”! Em uma guerra, a violência direta é evidente quando o fotógrafo depara-se com bombardeios, tiroteios, corpos mutilados, etc. Os momentos de paz são mais sutis e seu reconhecimento demanda paciência e perspicácia. Traduzir a paz em imagem constitui um dos desafios deste projeto. Quais situações são suscetíveis de serem fotografadas como pacíficas? Todas aquelas em que estejam presentes situações de paz, sendo esta percebida desde uma perspectiva imperfeita. A paz, conforme mencionado no item anterior,pode fazer-se presente em vários momentos e estâncias, por exemplo, como no diálogo com o “outro”, considerado como interlocutor válido; na cooperação; na existência de justiça social; na harmonia entre o ser humano natureza; nos momentos de solidariedade, ternura e amor; na coexistência harmônica com o “outro” de forma a encarar a diferença não como ameaça, e sim como oportunidade de um novo aprendizado; nos processo de integração com diálogo intercultural no lugar da rejeição da identidade cultural do “outro” em fomento à hegemonização cultural. Toda ação pacífica em busca da transformação da violência constitui um elemento a ser fotografado desde a perspectiva da paz: protestos; atuações da sociedade civil em prol de transformações sociais; usos de meios pacíficos para regular os conflitos; processos de mediação, etc. As possibilidades de imagens são infinitas assim como as diferentes maneiras em que os humanos podem atuar de forma pacífica nos mais diversos contextos culturais. 4.2 O reconhecimento de realidades de Paz Para realizar a prática da presente proposta de forma a reconhecer e fotografar instantes de paz, estive imerso em uma ampla variedade de contextos por mais de uma dezena de países. Busquei capturar com minha câmera contextos de paz presentes na fugacidade dos momentos aparentemente triviais do cotidiano com o intuito de que este reconhecimento empodere o ser humano em direção à criação e manutenção da paz. Apresentarei abaixo algumas das fotos resultantes deste

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processo. As demais fotos podem ser vistas no site: http://www.flickr.com/photos/fabriciocarrijo/

Figura 3. Liubliana, Eslovênia

Figura 1. Manifestação pelo

reconhecimento da população

imigrante como cidadãos.

Londres, Inglaterra

Figura 2. Castellón, Espanha

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Figura 3. Castellón, Espanha

5. Fotografia para a Paz e Identidades Pacíficas O sujeito é formado por múltiplas identidades, por exemplo, identidade nacional, religiosa, de gênero, de classe, etc. Segundo Stuart Hall (1996), identidade se refere ao processo de produção de subjetividade; “identidades são pontos de conexões temporárias aos posicionamentos do sujeito construídos para nós através de práticas discursivas”21 (Hall, 1996: 5-6). Identidades são construídas e reconstruídas constantemente através de processos discursivos e relacionais. As categorias identitárias não são fixas, fluem constantemente em um rio de incertezas. Identidades são construídas em relação a um “outro”, se referem a como o sujeito se percebe e se localiza no mundo, como é percebido e representado por outros e aos resultados desta representação em seu processo de auto-definição e performatividade. Embora tenhamos visto que a interpelação do sujeito ocorre, de tal forma que este assume identidades de violência, tais posicionamentos identitários não se sustentam de forma autônoma. É preciso uma constante reiteração, o que demonstra a condição fraturada e instável da identidade. A manutenção de posicionamentos identitários quanto à violência e ao medo demanda a constante reiteração de imagens a reforçar o espetáculo da violência e a representar o “outro” como inimigo. Portanto, como sustenta Judith Butler, é justamente nesta necessidade de reiteração para manter a identidade do sujeito, onde reside a fissura para a criação de novas identidades (Butler, 1993:10). De acordo com Foucault, “não é uma questão de emancipar a verdade de todo sistema de poder (o que seria uma ilusão, pois a verdade constitui em si uma forma poder), mas sim de desmembrar o poder de estabelecer a verdade, das formas de hegemonia

21 “Identities are thus, points of temporary attachment to the subject positions which discursive

practices construct for us” (Hall, 1996: 5-6).

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social, econômica e cultural, dentro da qual este poder atua”22 (Foucault, 1980:133). O reconhecimento de realidades de paz desmantela os regimes de verdade da violência os quais possuem o poder de estabelecer verdades absolutas geradoras de medo conquanto naturalizam e legitimam a violência. O reconhecimento de realidades de paz através da fotografia promove a construção do que denomino Identidades Pacíficas. As identidades de violência resultantes da violência cultural promovem uma performatividade passiva de submissão a posicionamentos identitários impostos. Por outro lado, a construção de identidades pacíficas resulta de um processo de rearticulação de poder em que o sujeito interpelado torna-se consciente do processo de interpelação e das relações de poder nele envolvido, entre as quais, a prática da violência cultural. Como afirma Focault, o poder circula como uma corrente, e indivíduos “simultaneamente se submetem e exercem o poder”23 (Foucault,1980:98). Indivíduos são o efeito do poder e os elementos de sua articulação. Tendo em vista a fluidez do poder e que os indivíduos são “veículos de poder” (Foucault, 1980), a construção de identidades pacíficas ocorre nestes espaços em que o poder é rearticulado e os indivíduos, em vez de “corpos dóceis”, conduzem-no, como em um movimento de Aikido24, para libertarem-se da opressão e construir a paz. As Identidades pacíficas emergem da performatividade ativa do sujeito empoderado e consciente da multiplicidade dinâmica de identidades que constituem sua subjetividade. Há a explosão da idéia do sujeito possuidor de uma identidade unitária, no caso, assumida como essencialmente violenta. Cria-se um espaço em que os estilhaços podem ser constantemente e infinitamente rearranjados, deixando fissuras para a incorporação de novos pedaços, ou seja, novas identidades, de tal forma que o sujeito como um todo estável não é logrado jamais. A incompletude é a condição do sujeito. Com a abordagem fotografia para a paz, o sujeito se torna consciente de seu poder para definir e construir a si mesmo em vez de ser definido e construído desde fora. O reconhecimento de práticas pacificas traz a percepção e a esperança de que a vida pode ser diferente do que retratado pelos regimes de verdade de violência. Ao reconhecer a presença de práticas pacíficas no cotidiano, o sujeito percebe o seu poder para atuar em direção à construção, reprodução e manutenção da paz. A identidade pacífica emerge neste instante em que o indivíduo se compromete com a paz, tendo esta como um fim e um meio norteador de sua prática cotidiana. As identidades pacíficas, quando compartilhada por um grupo de pessoais, conduzem à formação de culturas de paz, cuja construção é possível mesmo nos contextos mais imperfeitos.

22

“It’s not a matter of emancipating truth from every system of power (which would be a chimera, for truth is already power) but of detaching the power of truth from the forms of hegemony, social, economic and cultural, within which it operates at the present time” (Foucault, 1980:133). 23

“simultaneously undergo and exercise power” (Foucault, 1980: 98). 24

Aikido é uma arte marcial japonesa e um de seus princípios é utilizar a energia do adversário contra ele mesmo.

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Conclusão Analisei que o ser humano pode ser interpelado a assumir posicionamentos identitários que naturalizam e legitimam a violência. Um dos meios de materialização da interpelação ocorre pela reiterada banalização de imagens de violência através da fotografia. Neste contexto, propus a abordagem Fotografia para a Paz através da qual fotografia é utilizada como elemento de reconhecimento de realidades de paz. Coloquei a proposta em prática por meio de uma pesquisa de campo em que estive presente em uma ampla diversidade de contextos culturais em busca de fotografar a presença da paz no cotidiano. Fotografia para a paz constitui um intento com expectativa em seu potencial como elemento de reflexão e transformação. Constitui um grito muitas vezes silenciado em busca do reconhecimento da presença da paz no cotidiano e da capacidade do ser humano em transcender a violência e edificar ambientes de paz; um projeto em contínua construção em cujo âmago leva a esperança de que a presente prática possa gerar ecos, que gerem outros, e desde a aparente trivialidade do cotidiano, possamos ir construindo realidades de paz. Esta abordagem constitui uma forma de resistência e desmantelamento dos regimes de verdade sobre a violência e as conseqüentes identidades que naturaliza. Fotografia para a paz promove o reconhecimento da condição fraturada e dinâmica das identidades. Isto permite um processo de rearticulação de poder através do qual o sujeito empoderado se constrói a si mesmo. Neste processo, o sujeito constrói identidades pacíficas que se somam às distintas identidades formadoras de sua subjetividade. Pesquisas futuras Existe um amplo arcabouço de possibilidades de realização de estudos com base na proposta fotografia para a paz. Por exemplo, através de sua incorporação junto a propostas de jornalismo para a paz e na análise de seu impacto social. Também se pode investigar o processo de implementação da proposta fotografia para a paz como instrumento de educação para a paz em escolas, associações de bairro, movimentos sociais, organizações não governamentais, universidades, etc. Neste processo, os partícipes da iniciativa serão os fotógrafos para a paz. Outra possibilidade de pesquisa se refere à análise de implementação desta proposta em contextos de pós-conflitos armados, como meio de auxílio no processo de construção de paz e superação do trauma deixado pela violência e conseqüente Iniciamos no primeiro semestre de 2011 a implementação da abordagem Fotografia para a Paz com a criação do projeto “Cultura da Paz: um olhar fotográfico”25 em Boa Vista, Brasil, através de uma parceria com a Universidade Federal de Roraima. Os

25

Informações sobre o projeto podem ser encontradas no blog: http://culturafotopaz.blogspot.com/

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educandos partícipes do projeto formam um grupo marcado pela diversidade cultural: há membros de comunidades indígenas, estudantes universitários e não universitários e demais membros da sociedade civil. A análise deste projeto também constitui outra possibilidade de pesquisa futura. Referências ALTHUSSER, L. (1966) For Marx, Verso, London, England. BARTHES, R. (1986) Lo obvio y lo obtuso, Paidos Ibérica, Barcelona, España. BENSAID, D. (2010) Cambiar el mudo, editorialsol90, Barcelona, España. BUTLER, J. (1993) Bodies that matter on the discursive limits of "sex", Routledge, New York, USA. CAMARGO, J. F. (2009) Mídia e Relações Internacionais: lições da invasão do Iraque em 2003, Juruá, Curitiba, Brasil. FOUCAULT, M. (1980) Power/Knowledge, Harvester, Brighton, England. HALL, S. (1996) Who Needs Identity?, in HALL, S. & DU GAY, P. (eds.), Questions of Cultural Identity, Sage Publication, London, England, p. 1-17. GALTUNG, J. (2003) Peace by peaceful means, SAGE, London, England. MORAES, Dênis de, A hegemonia das corporações de mídia no capitalismo global, Rio de janeiro, Junho de 2000, Biblioteca on line de ciência da comunicação. Disponível em<http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=moraes-denis-hegemonia.html >.

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