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Central do Brasil O Fenômeno da Diversidade no Processo de Individuação Regina Ferreira BARRA Doutoranda em Educação -UFRJ Progr. Pós-Graduação Educação - Currículo e Linguagem Rio de Janeiro BRASIL- [email protected] Maria de Fátima Cardoso COELHO Especialista em Psicologia Junguiana Centro Universitário Hermínio da Silveira, IBMR Rio de Janeiro BRASIL [email protected] Resumo O cinema possibilita o despertar do imaginário humano que está presente em nossas imagens mentais. A linguagem cinematográfica em sua forma e conteúdo é simbólica e rica em metáforas. A leitura e compreensão das imagens exigem a ação do sujeito espectador nas inter-relações entre o visível e o invisível. Esse trabalho trata-se da jornada do herói fundamentado na obra de Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces e na psicologia analítica de Carl G. Jung. É apresentada a trajetória do herói em etapas pelas quais todo herói teria que se submeter: o chamado; a iniciação; o caminho de provas; o retorno com a transformação. Essa jornada do herói poderíamos dizer que é um movimento semelhante ao processo de individuação, tema central da obra de Jung, que apresentamos nesse trabalho numa analogia com o filme brasileiro Central do Brasil do diretor Walter Salles, enfocando a diversidade na trajetória de vida da personagem Dora, no encontro e na relação com o garoto Josué. Palavras-chave: cinema, diversidade, herói, transformação, individuação. Abstract The film allows the awakening of the human imagination that is present in our mental images. Film language in its form and content is rich in metaphors and symbolic. The reading and understanding of images require the viewer in the action of the subject inter- relationships between the visible and invisible. This work comes from the hero's journey based on the work of Joseph Campbell, The Hero With a Thousand Faces and the analytical psychology of Carl G. Jung. It shows the trajectory of the hero in stages through which every hero would have to undergo: the call; initiation; the way of evidence, the return to the transformation. This journey of the hero might say that is a movement similar to the process of individuation, a central theme of Jung's work, which we present in this paper an analogy with the Brazilian film Central Station director Walter Salles of Brazil, focusing on diversity in the life trajectory of the character Dora, in the encounter and relationship with the boy Joshua. Keywords: movies, diversity, Hero, transformation, individuation.

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Resumo Keywords: movies, diversity, Hero, transformation, individuation. Abstract Palavras-chave: cinema, diversidade, herói, transformação, individuação. Podemos encontrar na obra de arte, os elementos simbólicos que possibilitam estabelecer relações de significados pessoais e subjetivos. O cinema, o filme, ao mesmo tempo em que constituem uma experiência compartilhada é também, uma experiência profundamente individual com relação ao que está sendo projetado. Introdução

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“Central do Brasil” O Fenômeno da Diversidade no Processo de Individuação

Regina Ferreira BARRA

Doutoranda em Educação -UFRJ Progr. Pós-Graduação Educação - Currículo e Linguagem

Rio de Janeiro – BRASIL- [email protected]

Maria de Fátima Cardoso COELHO

Especialista em Psicologia Junguiana Centro Universitário Hermínio da Silveira, IBMR

Rio de Janeiro – BRASIL [email protected]

Resumo O cinema possibilita o despertar do imaginário humano que está presente em nossas imagens mentais. A linguagem cinematográfica em sua forma e conteúdo é simbólica e rica em metáforas. A leitura e compreensão das imagens exigem a ação do sujeito espectador nas inter-relações entre o visível e o invisível. Esse trabalho trata-se da jornada do herói fundamentado na obra de Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces e na psicologia analítica de Carl G. Jung. É apresentada a trajetória do herói em etapas pelas quais todo herói teria que se submeter: o chamado; a iniciação; o caminho de provas; o retorno com a transformação. Essa jornada do herói poderíamos dizer que é um movimento semelhante ao processo de individuação, tema central da obra de Jung, que apresentamos nesse trabalho numa analogia com o filme brasileiro Central do Brasil do diretor Walter Salles, enfocando a diversidade na trajetória de vida da personagem Dora, no encontro e na relação com o garoto Josué. Palavras-chave: cinema, diversidade, herói, transformação, individuação. Abstract The film allows the awakening of the human imagination that is present in our mental images. Film language in its form and content is rich in metaphors and symbolic. The reading and understanding of images require the viewer in the action of the subject inter-relationships between the visible and invisible. This work comes from the hero's journey based on the work of Joseph Campbell, The Hero With a Thousand Faces and the analytical psychology of Carl G. Jung. It shows the trajectory of the hero in stages through which every hero would have to undergo: the call; initiation; the way of evidence, the return to the transformation. This journey of the hero might say that is a movement similar to the process of individuation, a central theme of Jung's work, which we present in this paper an analogy with the Brazilian film Central Station director Walter Salles of Brazil, focusing on diversity in the life trajectory of the character Dora, in the encounter and relationship with the boy Joshua.

Keywords: movies, diversity, Hero, transformation, individuation.

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Introdução

á mais de um século o cinema encanta, provoca emoções e atrai bilhões de pessoas no mundo todo para vivenciarem a experiência alquímica do cinema. No filme existe uma projeção, uma transferência inconsciente, que deve olhar para aquela imagem,

cujo efeito é transformador. O cinema possibilita o despertar do imaginário humano que está presente em nossas imagens mentais, ou seja, em nossos desejos inconscientes, idéias, recordações e sentimentos. O encanto imagético é perceber a transferência das imagens mentais para as imagens materiais, o que significa projetar o imaginário humano em forma e conteúdo. Nosso mundo é constituído por imagens e a linguagem cinematográfica em sua forma e conteúdo é simbólica e rica em metáforas. Essas formas e conteúdos variados fazem parte da nossa comunicação e expressão humanas, constituindo nossa subjetividade e singularidade enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais. Podemos encontrar na obra de arte, os elementos simbólicos que possibilitam estabelecer relações de significados pessoais e subjetivos. O cinema, o filme, ao mesmo tempo em que constituem uma experiência compartilhada é também, uma experiência profundamente individual com relação ao que está sendo projetado. Somos espectadores das imagens, que permeiam os locais fantásticos criados pelas obras, e ao mesmo tempo somos os espectadores da nossa própria imaginação nesses locais e com essas imagens. O espectador de imagem precisa mergulhar nos signos plenos do filme, identificar os vínculos entre os significantes e os significados sugeridos e, por fim, inferir significados que não estão explícitos no enunciado fílmico. Assim, a leitura e compreensão das imagens exigem a ação do sujeito espectador nas inter-relações entre o visível e o invisível, entre o dito e o não-dito, entre o vazio e a comoção. A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações e atribuir significados que propriamente não são existentes na tela. A montagem sugere e nós deduzimos as significações por força da contextualização a partir das imagens vistas, como se o ato de ver filmes fosse uma conversa de imagens em nossa mente. Fazer cinema é criar imagens para contar histórias, revelar segredos, seduzir o espectador e fazer história. Nessa perspectiva, a imagem cinematográfica deveria ser configurada a partir da lógica própria do inconsciente, à qual somente se tem acesso pela arte e pelo sonho. Bergala (2008) destaca a importância da experiência emocional que a natureza estética da linguagem cinematográfica proporciona. Ela se dá cada vez que a emoção e o pensamento nascem de uma forma, de um ritmo, que não poderia existir senão através do cinema. O filme favorece mecanismos psicológicos de projeção/identificação e o cinema, como fenômeno social, favorece mecanismos de pertencimento quando as emoções proporcionadas pelos filmes são socializadas por meio de várias maneiras que são oferecidas pelo cinema e pelas ações culturais que se aprofundam em diferentes formas de cinefilia.

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Essa dupla magia ajudou a consolidar o cinema como um dos maiores negócios do século XX e como a mídia mestre na configuração da cultura de massa. É justamente o fator afetivo, formado pelo efeito psicológico do filme na formação das emoções e desejos do espectador, e a memória reiterada desse “estado anímico” oferecido pela mídia cinema, com suas ações e conexões sociais, que forma a base afetivo-cultural dos gostos, desejos, sonhos. E, a médio e longo prazo, passa a constituir uma identidade moral, ideológica e cultural, que parece “natural”, e se torna orientadora dos comportamentos humanos. A partir da temática apresentada nesse XVI Seminário da APEC: Horizontes do Brasil: cenários, intercâmbios e diversidade, escolhemos o filme Central do Brasil do diretor Walter Salles1, para apresentar cenas do interior do Brasil, os não-cidadãos da periferia esquecida da cidade e os cidadãos comuns, personagens que protagonizam o cinema brasileiro. São eles que estrelam Central do Brasil, em que uma mulher escreve cartas para analfabetos na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Ela, como os heróis brasileiros sem caráter que a literatura difundiu, vai ajudar um menino, cuja mãe foi atropelada, a encontrar o pai que nunca conheceu, no interior do Nordeste (GALENO, 2008). Esse trabalho tem como objetivo abordar a jornada do herói fundamentado na obra de Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces (1949) e na psicologia analítica de Carl G Jung, a partir da personagem Dora, interpretado pela atriz brasileira Fernanda Montenegro. No filme é apresentada a trajetória do herói em etapas pelas quais todo herói teria que se submeter, passando pelas seguintes etapas: em primeiro lugar, o chamado à aventura ; em segundo lugar, a iniciação, que seria o caminho de provas e desafios a ser vencidos; em terceiro lugar, o caminho de volta e finalmente o retorno com o tesouro: a transformação. Essa transformação da consciência é a aventura para a qual ele está preparado, que constitui a função do herói, ou seja, de todo ser humano. Essa jornada do herói poderíamos dizer que é um movimento semelhante ao processo de individuação, tema central da obra de Carl Gustav Jung, que articula imagens, símbolos e representações inerentes ao pensamento alquímico para a compreensão do conjunto de elementos essenciais que constituem a fenomenologia desse processo. Para Joseph Campbell (1990, 2003) o herói é tanto aquele que realiza proezas físicas – dada a sua coragem – como é capaz de proezas espirituais, cujo domínio de sagacidade leva-o a exercer um papel superior, relacionado à vida espiritual humana. Mas também o herói é capaz de transformar seus interesses pessoais em projetos coletivos. Campbell (1990, 2003) identifica dois motivos para a transformação do indivíduo em herói: o fato de alguém ter sido usurpado de bens valorados como fundamentais ou quando sente as carências e necessidades entre as “experiências normais”, permitidas aos indivíduos da sociedade. Desta forma, o herói toma para si o destino/missão de defensor de recompensas, de realizador de abundâncias, transformando-se, assim, na lente refletora dos sentidos e anseios da vida. Com isto, embrenha-se em aventuras, perfazendo um círculo de partida e

1 CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles Júnior. Produção: Martine de Clermont-Tonnerre e Arthur Cohn.

Roteiro: Marco Bernstein, João Emanuel Carneiro e Walter Salles Júnior. Intérpretes: Fernanda Montenegro; Marília Pêra, Vinícius de Oliveira, Sônia Lira; Othon Bastos; Matheus Nachtergaele e outros. [S.I.]: Le Studio Canal; Riofilme; MACT Productions, 1998. Filme (106 min), son., color.,35 mm.

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retorno em relação ao seu lugar de origem. O herói é tomado pelo espírito de andarilho/aventureiro em busca de desvendar caminhos, labirintos e pela saga do herói histórico em encontrar o fio da saída. “Como no antigo mito de Teseu e Ariadne, no qual o herói condiciona sua promessa de amor eterno à decifração do labirinto, assim também o arquétipo do herói supõe a fixação de metas e caminhos tortuosos e difíceis” (GALENO, 2008). As viagens e expedições nos remetem à imagem do andarilho /aventureiro / estrangeiro a buscar um destino, um lugar, um fim e até mesmo um não-lugar, uma utopia. Tais viagens, segundo Galeno (2008), significam uma busca à procura da figura simbólica do pai. Campbell (1990, 2003) chama atenção para o fato de que nos mitos, por ocasião do nascimento do herói, o pai encontra-se ausente, seja por motivo de morte ou por encontrar-se em outro lugar. Por isso, o herói deve partir à sua procura. O autor apresenta trechos da Odisséia de Homero trazendo imagens sobre o sentido e os impactos que essa “procura do pai” tem exercido nos indivíduos no decorrer dos séculos: numa analogia com a Odisséia, o filme brasileiro Central do Brasil do diretor Walter Salles, enfoca a trajetória de vida da personagem Dora no encontro e na relação com o garoto Josué. Reflexões Teóricas Um mito pode ser a possibilidade de reflexão sobre a existência, o cosmos, a situação de “estar no mundo” ou as relações sociais. Os gregos souberam transmitir seus mitos de forma poética, expressando-os através de seus poemas, suas indagações a respeito do universo e do mundo dos homens. O mito do herói é um dos mais conhecidos em todas as culturas e apesar de variar muito em suas características, possui uma forma universal, arquetípica onde sempre é testado pelas difíceis tarefas que enfrenta na trajetória de sua existência. Segundo Jung (1964), o mito do herói guarda uma forma universal mesmo quando criado por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si como, por exemplo, as tribos africanas e os índios norte-americanos, os gregos e os incas do Peru. Estudiosos têm demonstrado que há uma conexão entre os símbolos que pertencem a povos antigos e acontecimentos da vida moderna. O homem através dos mitos vem redescobrindo sua história. Foi através de Jung que esses símbolos foram compreendidos e aplicados no cotidiano da atualidade. Jung (1964) descreve o mito do herói desde seu nascimento até sua morte e cada fase desta etapa tem suas particularidades. Ele atribui ao mito do herói o desenvolvimento da consciência do ego através do conhecimento das forças e das fraquezas humanas e em cada estágio da vida o mito do herói tem formas particulares, ou seja, ele traduz cada fase da evolução da personalidade humana. Campbell (1949), como citado anteriormente, apresenta a trajetória do herói em etapas pelas quais todo herói teria que se submeter: 1) O chamado da aventura ou os indícios da

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vocação do herói; 2) a iniciação, o caminho de provas e desafios; 3) O retorno e reintegração à sociedade. O chamado é um rito de passagem que, quando completo, equivale a uma morte seguida de um nascimento. O herói pode estar simplesmente caminhando a deriva, quando algum fenômeno passageiro lhe chama a atenção e o leva para longe dos caminhos comuns dos homens. Na vida real, o indivíduo também pode recusar a esse chamado, pois sempre é possível desviar a atenção para outros interesses. Mas segundo Campbell (1949), a recusa ao chamado converte a aventura em sua contraparte negativa. O sujeito muitas vezes é aprisionado pelo tédio, sua vida torna-se sem sentido. Entretanto o autor também coloca que nem todos que hesitam se perdem, pois a psique reserva muitos segredos; às vezes o castigo que se segue a uma recusa de um chamado é a ocasião de uma providencial revelação. O chamado à aventura também pode nascer de um erro. Campbell (1949) diz que Freud demonstrou em sua teoria que o erro não é um mero acaso. O erro pode equivaler ao ato inicial de um destino. No conto de fadas de João e Maria, eles têm fome que é o primeiro sintoma, avistam a casa de biscoitos e doces e começam comer a casa. Foi um erro. Surge a bruxa e eles são aprisionados. Ou eles ficam presos dentro da gaiola em estado animal ou acham a saída alternativa. O herói que atende ao chamado ultrapassa os limites do conhecido e se adentra no desconhecido; luta com forças perigosas que envolvem riscos. Esse herói que se aventurou pelo inexplorado parece que morreu para a temporalidade. O herói está na fase de iniciação onde ele irá trilhar o caminho das provas. Talvez, segundo Campbell (1949), ele descubra pela primeira vez que existe um poder benigno em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana. O caminho das provas é uma perigosa jornada na escuridão, por meio da descida aos caminhos tortuosos de seu próprio labirinto espiritual. O herói também tem uma figura protetora que lhe fornece meios para sua proteção contra as forças titânicas com que ele depara em seu percurso. É o auxílio sobrenatural do destino com poder benigno e protetor. A fada-madrinha é uma dessas figuras nos contos de fadas e Hermes no mito clássico. É como se as forças do inconsciente estivessem ao seu lado. E o último estágio, o retorno e reintegração do herói à sociedade, ou seja, colocar todo o conhecimento adquirido a favor da sociedade, pode se afigurar como o requisito mais difícil. O herói agora passa por uma difícil passagem que o leva de volta ao seu cotidiano, ao seu mundo, porém muito mais amadurecido, transformado pelas experiências da vida. Campbell (1949, p.256) refere-se à aventura do herói da seguinte forma: “ *...+ A aventura do herói marca o momento em que este, embora ainda esteja vivo, descobriu e abriu o caminho da luz, para além dos sombrios limites da nossa morte em vida”. Essa aventura do herói compara-se com o processo de individuação da teoria de Jung, conceituado como uma experiência total de integridade no decorrer da vida de uma pessoa.

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Ao longo de suas observações e estudos, em hospitais psiquiátricos, Jung constatou a existência de processos inconscientes que apresentam conteúdos completamente diversos da consciência. E a partir do momento em que teve certeza de sua existência, afirmou-os como pertencentes à totalidade do indivíduo, ao lado dos componentes do consciente. A essa totalidade Jung chamou de Self (Si-Mesmo) e o descreveu como a totalidade absoluta da psique para diferenciá-la de ego, que constitui apenas uma parte da psique. Para Jung (1961) a meta do processo de individuação é o encontro com o Self. Ele corresponde o Si-Mesmo com a grandeza e a invencibilidade da criança: “menor do que pequeno e maior do que grande” (JUNG, 1967, O.C.,vol.VII/2 §290). Assim, temos o ego como o centro da consciência e o Self como o centro da totalidade da psique. A relação ego/self se faz na relação do sujeito com o mundo. O ego é a ponte de ligação entre o Self e o mundo exterior. “*...+ O Si-Mesmo, enquanto pólo oposto, ou o absolutamente “Outro” do mundo, é a conditio sine qua non do conhecimento do mundo e da consciência de sujeito e objeto. É a alteridade psíquica que possibilita verdadeiramente a consciência.” (JUNG, 1961, O.C., vol.IX/1 §290). A individuação é um processo inerente à psique; às vezes estamos tão envolvidos em nosso cotidiano, no pragmatismo de nossas ações que não conseguimos ouvir a nossa voz interior, o Self, representante de nossa totalidade interior. No entanto, ao voltar-se para dentro de si, o indivíduo depara-se com que Jung (1961) chamou de “sombra”. É a parte inconsciente da personalidade que emerge do confronto da nossa visão daquilo que somos e do que somos capazes de fazer em desacordo com o código de ética por nós adotado. Podemos concluir que o processo de individuação tem que passar por esse confronto com a nossa sombra. Para Jung (1961) quando o homem segue essa voz interior pode transformar sua vida até então desinteressante e apática, numa aventura interior sem fim, proporcionando coincidências significativas na vida desse indivíduo. Faremos agora, algumas considerações sobre o arquétipo da criança, do puer, do senex, do “Trickster” e de Hermes no processo de individuação. Para Jung (1964) o conceito de arquétipo indica a existência de determinadas formas na psique que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. O arquétipo é uma tendência a formar representações que contêm conteúdos variados sem perder sua configuração original, ou seja, o arquétipo é uma forma vazia cujo conteúdo é de acordo com a cultura, portanto contextualizado. Enquanto os arquétipos surgem como manifestações involuntárias de processos inconscientes, no mito, pelo contrário, trata-se de ensinamentos tradicionais, transmitidos entre as tribos de geração para geração, através de narrativas orais. O arquétipo da criança é o futuro em potencial. No símbolo da criança está inserido o elemento juventude. Esse arquétipo da criança prepara uma futura transformação da personalidade. Para Jung (1964) esse processo de transformação corresponde ao mito do

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herói cujo ato principal é vencer o monstro da escuridão: a vitória esperada da consciência sobre o inconsciente. Encontramos na obra de Jung (1964) e mais tarde em outros autores como Von Franz (1964), um estudo sobre o arquétipo do puer constelado na alma humana e caracterizado como o impulso renovador e presente na manifestação do arquétipo da criança. O puer arquetipicamente representa o novo, o futuro e a sua polaridade é expressa pelo senex que se refere ao velho, ao passado, ao princípio arquetípico da dureza, da frieza e da vida sofrida. O senex também tem qualidades como identidade de limites, associação com consciência, continuidade, que darão ao ego uma base arquetípica. Esse conhecimento é a marca registrada da consciência e está no começo da formação do ego na criança. O senex torna-se negativo quando é separado de seu aspecto puer. A dualidade puer/senex é cindida em polaridades e o senex perde sua “criança”, o puer. Hillman (1999) descreve essa conexão do puer com o senex chamando-a de constelação “puer-senex” onde o espírito jovem se organiza em função da renovação do velho, o senex e o senex enquanto espírito tradicional, necessita do jovem puer para vitalizar-se. Jung (1964) utiliza a figura do Trickster da mitologia indiana para caracterizar a fase mais primitiva da vida, onde o importante é satisfazer às necessidades mais elementares de sobrevivência. O Trickster é considerado o embusteiro, aquele que trapaça, que comete as maiores atrocidades, mas por outro lado, sua natureza divino-animal o leva a querer aprender e consequentemente a desenvolver sua consciência. O ciclo do Trickster corresponde à primeira etapa da vida. Ele tem a mentalidade de uma criança, é um personagem dominado pelos seus anseios sem reconhecer os limites e representa a antítese de valores culturais estabelecidos. Encontramos também na mitologia a figura de Hermes, que representa a presteza, a astúcia e a habilidade, considerado o guia dos viajantes, deus do comércio e da reconciliação. Hermes seria aquele arquétipo que movimenta o psiquismo, que direciona o indivíduo em seu processo de individuação.

Análise do Filme Faremos a seguir algumas considerações sobre os diversos aspectos do arquétipo do herói no processo de individuação da personagem Dora a partir de seu encontro com o menino Josué no filme Central do Brasil. Assim como nos mitos, nos contos, nas fábulas, a trajetória do herói está presente, por mais diferentes que sejam as culturas, podemos perceber na história de Dora e Josué a presença do arquétipo do herói.

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Cada um a seu modo diante da diversidade da vida tem um sonho: Dora com o sonho de poder sobreviver à mediocridade humana e Josué com o sonho de conhecer o pai que mora no interior do estado de Pernambuco. À banalidade do mundo, Dora parecia questionar interiormente qual o sentido de sua vida e qual o sentido de tudo na vida. Parece que o arquétipo do herói foi ativado para suprir essa carência existencial de Dora. O mito do herói revela aquele que realizou tarefas sobre-humanas. A etimologia da palavra herói, traz o significado daquele que foi útil, que defendeu, que velou, que nasceu para servir. Podemos perceber na personagem Dora essas características de guardar, de velar, de defender a partir de um momento em sua história, quando se relaciona com o menino Josué. E também da tarefa sobre-humana de deixar tudo para trás e partir em busca do pai do menino, sensibilizada pela situação do garoto Josué. O herói é sempre um “guerreiro” e um “soldado”, expressão usada por Irene, amiga e vizinha de Dora quando esta resolve resgatar o garoto das mãos dos traficantes de crianças. O herói é aquele que está sempre relacionado a conquistas, lutas, buscas, defesas e glórias. A personagem Dora representa também um paradoxo, repleto de glórias e falhas, de conquistas e fracassos. Podemos compará-la a figura mitológica de Dédalo que construiu o labirinto para esconder o monstro, assim como forneceu à Ariadne o fio condutor para Teseu encontrar o monstro. Percebemos a ambigüidade no caráter de Dora: ao mesmo tempo em que queria entregar Josué ao tráfego de crianças, foi a condutora para Josué encontrar seu pai. Dora é o herói de bom coração, dotada de coragem e fé. E o pouco de esperança que lhe restava a jogou nessa aventura. Temos os dois lados de Dora: o bem e o mal. A luz que destrói é a mesma que cria. O sofredor que há dentro de nós e o divino ser. Essa foi a trajetória de Dora que a levou a uma viagem transformadora, que a aproximou do centro de sua própria existência. Em todo processo de vida, as transformações que nos ocorrem requer sempre uma mudança de padrão. Os ritos ou rituais de passagem são como exercícios formais de rompimento, de afastamento ou até de isolamento que vão mostrar uma nova condição de vida ou mesmo um renascimento. A viagem pelo nordeste que Dora e Josué realizam configura-se como um ritual de passagem em que ambos são afastados, rompem, isolam-se de seus cotidianos para uma aventura, para uma verdadeira odisséia, para uma transformação. É também uma viagem do mundo externo para o mundo interno onde o afastamento de casa remete Dora a várias reflexões. É preciso separar-se da família ou do grupo social para poder encontrar-se. Os ritos são atos que se repetem para dar sentido e significado. A espera do trem na Central é um ritual, dá sentido e significado ao homem contemporâneo, ao sujeito habitante dos grandes centros urbanos que sofre de uma enorme sensação de vazio e tédio. Para Jung (1961) o processo de individuação acontece na segunda metade da vida. Dora, uma mulher de mais de cinqüenta anos, inicia o seu processo de transformação a partir desse encontro com Josué, o puer, que tem o aspecto pueril e renovador da criança. Josué desperta o puer em Dora. Josué, representa o arquétipo do puer constelado na alma de Dora. Ela deixa tudo em sua vida, como se morresse para o passado e renascesse para o futuro. Enquanto Josué busca o pai, Dora busca o espírito, o renascimento. Josué representa o novo, o futuro, Dora representa o velho, o passado.

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Dora, assim como Josué, venceram suas limitações históricas pessoais para se adentrarem por caminhos até pouco tempo apenas inspirados: Josué de conhecer o pai e Dora de sair de sua rotina, vazia, triste, patética. O encontro dos dois representa a constelação puer-senex. O espírito jovem se organiza em função da renovação do velho. O eixo puer-senex é vertical. Dora, o senex necessita de Josué, o puer para vitalizar-se e Josué, procura a madura sabedoria de Dora, o senex. Mas essa jornada de Dora, essa viagem para o desconhecido, galgando estradas poeirentas e malcuidadas, sem recurso financeiro para efetuar tal excursão, passando necessidades de fome, de abrigo como se estivesse numa selva escura, identifica-se com os obstáculos e perigos da aventura do herói. Podemos traçar um paralelo da viagem de Dora com o processo de individuação, perigosa tarefa de autodescoberta e de autodesenvolvimento. O percurso do herói segundo Campbell (1949) são os rituais de passagem: separação-iniciação-retorno: “Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes”. (CAMPBELL, 1949, p. 36). Temos Dora que sai de seu mundo cotidiano representado por egoísmo, trapaça, intransigência, rigidez, frieza e se aventura para uma viagem onde encontrará muitas dificuldades, mas que lhe transformará e enriquecerá sua vida. Seu egoísmo lhe dará lugar à generosidade, suas trapaças à consciência, sua intransigência a vicissitudes, seu vazio a aspirações. Podemos dizer que Dora em relação a Josué resgata-lhe a vida e Josué, em relação à Dora, foi o portador simbólico de seu destino. A história do filme tem como cenário de fundo a estação ferroviária Central do Brasil. Essa estação tem a forma de uma mandala, círculo mágico. Segundo Campbell (1949, p. 46) o círculo na tribo dos Pawnees no norte do Kansas e do sul do Nebraska(EUA), representa um ninho e também o grupo de parentesco, o clã, a tribo. Josué quando perdeu sua mãe de acidente, retorna para a Central, para esse ninho que passa ser sua morada. Aquele lugar lhe serve de abrigo, de acolhimento. Josué de alguma forma tenta sobreviver. Dora de uma forma ou de outra, representa um grau de parentesco com o menino, ao conhecer um pouco de sua intimidade, ao saber do pai que mora no sertão, ou ao ter conhecido sua mãe. Como Campbell (1949, p. 48) relata, “O Centro do Mundo é Ubíquo. E sendo ele a fonte de toda a existência, nele á gerada a plenitude do bem e do mal do mundo. A feiúra e a beleza, o pecado e a virtude, o prazer e a dor, são igualmente produção sua. ‘ Aos olhos de Deus, tudo é normal e bom e justo’ , declara Heráclito*...+”. A Central do Brasil representa esse centro onde o bem e o mal existem concomitantemente, apesar de tudo parecer normal: Dora que trapaceia os transeuntes escrevendo as cartas, cobrando por enviá-las e não as remetendo ao seu destino, Pedrão considerado “o xerife da lei” e a polícia que assassinam friamente um rapaz de dezoito anos ao roubar um walk-man num camelô , a mãe de Josué que é atropelada em frente à Central quando atravessava a rua e o sinal estava fechado para os carros. Essa é considerada a “terra de ninguém”, o mundo das trevas, onde os aspectos sombrios da personalidade estão presentes.

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Podemos perceber que em seu processo de individuação, Dora tem que passar pelo confronto com sua sombra. Dora decidiu vender Josué aos traficantes de crianças para poder comprar uma TV mais moderna. Ela foi cruel, egoísta e trapaceira. Mas é alertada pela amiga Irene, reconhece sua mesquinhez e volta atrás. Como o processo de individuação se faz na relação com o mundo, com o outro, parece que o encontro de Dora e Josué não foi casual. Houve uma sincronicidade de quem queria conhecer o pai que morava tão longe e de quem escrevia cartas de anseios e inquietações de pessoas de lugares tão distantes. A união dos dois é um tipo de união diferente, vinda do Self, da busca de Dora de si mesma, da função social do Self. Dora e Josué são indivíduos separados, mas que foram feitos para encontrarem-se e se entenderem. O arquétipo do herói constelado na personagem Dora permite-nos perceber a diversidade da trajetória do desenvolvimento de sua consciência através do conhecimento de suas próprias forças e fraquezas e a partir disso prepara-se para as difíceis tarefas que a vida lhe impõe. Podemos perceber estágios da evolução da personalidade humana na figura de Dora: uma mulher que perdeu o pai, sua referência, quando criança, sozinha na vida, apenas com uma amiga, sua vizinha Irene, com quem mantém uma cumplicidade de anseios e esperança diante da realidade dura e fria de uma cidade grande. Dora é a personagem que escreve cartas e não as envia para seu destino. O ato de escrever os anseios, a saudade, a dor daquelas pessoas, migrantes, analfabetas, muitas vezes solitárias, parece um ato meio divino e meio mágico que se encaixa muito bem na figura do Trisckster. O Trickster corresponde ao primeiro estágio da vida, o mais primitivo. É um personagem dominado pelos seus apetites. É cruel, cínico e insensato. Como no estágio de desenvolvimento humano podemos dizer que no final do filme, quando Dora parada em frente aos Correios na cidadezinha onde estava, no interior de Pernambuco, ela envia as cartas que escreveu para aquele povo, é uma forma avançada do Trickster, transformada em uma pessoa socialmente mais responsável. Hermes é o vinculador, o mensageiro dos deuses. O personagem Dora revela também o arquétipo de Hermes em sua psique. Dora é a mensageira daquelas pessoas. Em determinado momento Dora escreve cartas para o santo, “Padre Cícero”. Ela torna-se também portadora dos anseios espirituais daquele povo sofrido. Trickster e Hermes seriam aqueles arquétipos que movimentam o psiquismo, que direcionam o indivíduo em seu processo de individuação. As considerações seguintes serão sobre a aventura do herói. “Era uma vez, quando o desejo ainda era capaz de levar a alguma coisa...”. Podemos dizer que assim foi o desejo de Josué de encontrar seu pai. Era muito forte sua convicção de ir para o sertão em busca do pai, aumentada ainda mais depois da morte da mãe. Seu desejo se acirrou e parecia que via em Dora uma fonte para realização de seus anseios.

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Dora como trapaceira, não enviava as cartas que escrevia. Um erro. Não enviou a carta de Josué. Podemos dizer que a aventura de ambos começa aí. E os dois se aproximam atraídos por forças que não são plenamente compreendidas. E nas palavras de Campbell 1949, p. 60): “*...+ O erro pode equivaler ao ato inicial de um destino *...+. No início do encontro de Dora e Josué, o menino pode ser considerado o “arauto”. O arauto Josué constelado em Dora. A crise de seu aparecimento é o “chamado à aventura”: crise pelo seu jeito agressivo, intransigente, sério que incomoda Dora terrivelmente. O arauto anuncia o chamado para algum grande empreendimento histórico. Josué anuncia para Dora o chamado para uma viagem ao mundo interno: para o “despertar do eu”, para o encontro com ela mesma. O tipo de vida de Dora, não a atrai mais, sua vida não tem mais sentido, seu olhar é vazio como demonstra a cena em que de volta para casa, entra no trem espremida pela pequena multidão que se comprime no vagão e ela consegue agarrar numa barra de ferro quando o trem balança e range nos trilhos. Parece que seus velhos conceitos, ideais e padrões já não são adequados. Como se aquilo que antes tinha sentido, tornou-se estranhamente sem valor. Numa outra etapa da trajetória do herói este pode recusar-se ao chamado. Isso seria um possível desvio de atenção para outros interesses. A recusa à convocação pode converter a aventura em sua contraparte negativa. Dora como trapaceira, vende o garoto Josué e em troca compra uma TV a cores, com controle remoto. Dora é aprisionada pelo consumismo, pelo seu egocentrismo, pela vantagem econômica. Dora recusa-se a enfrentar essa criança que de uma forma ou de outra lhe chama a atenção. Assim como o herói é auxiliado pelos amuletos, pelos conselhos, pelos deuses, Dora é ajudada por uma figura protetora que é Irene, sua vizinha e amiga que lhe chama a atenção pela monstruosidade de seu ato. Por isso, nem todos que hesitam se perdem. Irene ajudou na união desse par eternamente pré-destinado. Processou-se um milagre para o reencontro e a fuga dos dois. É o milagre do acontecimento do primeiro desejo de Josué de encontrar o pai, relatado na primeira carta que Ana pede a Dora para escrever, ainda na sua função de “escrevedora de cartas”. Tendo respondido ao chamado, o herói percebe que as forças da natureza lutam a seu lado. Dora enfrenta Pedrão e as pessoas para quem vendeu Josué a fim de resgatá-lo novamente. Podemos comparar a viagem de Dora e Josué com a viagem de Psiquê ao mundo inferior empreendidas pelos heróis dos contos de fadas e dos mitos. Essa viagem de Dora e Josué trata-se também de uma perigosa jornada na escuridão, deparando-se com uma paisagem de figuras simbólicas, podendo qualquer delas devorá-las. Os heróis trilham os caminhos das provas. E o último estágio do herói é o seu retorno e sua reintegração. E qual seria esse momento de transformação na vida de Dora? Dora depois de uma exaustiva busca por Josué durante as romarias, entra na sala dos milagres e em meio a toda aquela colcha de retalhos de fotos, santinhos, fitas, ela desmaia e depois acorda deitada com a cabeça no colo de Josué. É como se presenciássemos a cena de

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“Pietá Invertida”, a mãe no colo do filho. Dora desmaiada entrega-se no colo de Josué, uma criança, símbolo do Self. Dora renasce como uma criança. É como se o sentido da vida de Dora fosse preenchido de um sentido religioso. É como se Dora tivesse morrido em vida. No caos da tenda dos milagres, depois de muito sofrimento, de muito clamor: “Queima Senhor” (filme) uma alquimia processou-se. Entre choro e risos, Dora retorna levando uma mensagem para si assim como os heróis universais trazem uma mensagem para o mundo inteiro. Dora não era mais a mesma pessoa. Transformou-se. Josué é resgatado por seus irmãos e seu destino se cumpriu. Considerações finais Percebemos nas análises anteriores essa experiência alquímica que o cinema nos proporciona. É como se esse despertar do imaginário humano constituído de conteúdos simbólicos e de metáforas tivesse um efeito transformador no psiquismo do indivíduo. O sujeito que assiste ao filme é o expectador de sua própria imagem. A imagem no cinema desperta para além do visível e do que é dito que permite vivenciar uma experiência emocional traduzida em um estado anímico que resulta em ações e conexões sociais, orientando comportamentos humanos. Nos tempos de angústia, melancolia e congelamento das esperanças, a trama de Central do Brasil nos oferece uma estética e uma ética da fé e do amor para a vida com responsabilidade de estar no mundo e ser parte dele. Da insensatez e dureza, Dora transforma-se e passa a perceber e sentir a importância do outro em sua vida. Certamente, Josué a preencheu de algo simbolicamente afetivo que há tempos estava vazio e desengavetou outros sentimentos em seu ser. Ela, como Josué, também se encontrava como uma “estrangeira” desvinculada da relação de alteridade e que também precisava ser acolhida e resgatada. Conforme aponta Galeno (2008, p.97-98), não podemos esquecer que na trama da diversidade vivida pelas personagens Dora e Josué, “torna-se possível acreditar na esperança e na responsabilidade com a solidariedade e com a fraternização do outro, pois somos seres imbricados pelas relações tênues do “eu” e do “outro”. Ou como diz o poeta Arthur Rimbaud (1991): “O Eu é um Outro”. Esta é uma dimensão profunda que Dora e Josué experimentam e nos advertem que mesmo que tenhamos de passar por momentos difíceis, de desesperança, de “hiroshimas interiores”2, essas aventuras e percalços pelos quais o herói deve passar, representam a chave para o conhecimento do Si-Mesmo, dando autonomia e sentido à vida humana.

2Expressão do francês Edgar Morin (1997) ao referir à sensação que tem experimentado com a morte da sua

mãe (In: GALENO, 2008).

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A vida apresentou-se surpreendente para Dora e Josué. A apatia deu lugar a vivências, o vazio foi preenchido por sorrisos, choros, alegrias, provando que realmente o que a gente pensa a respeito da vida raramente corresponde aquilo que a vida de fato é. Os mitos nos revelam histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação através dos tempos e tudo aquilo que nós seres humanos temos em comum e se expressa nos mitos. Dora e Josué caíram nesse “mundão de Deus” como se diz na gíria popular, e Dora na tentativa de escapar de dúvidas e infortúnios, encontrou sua humanidade. Referências BERGALA, Alain (2008) A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink e CINEAD/UFRJ. CAMPBELL, Joseph (2003) A jornada do herói: Joseph Campbell vida e obra. Organização e apresentação de Phil Cousineau; tradução de Cecília Prada. São Paulo: Agora. CAMPBELL, Joseph (1990) O poder do mito. Joseph Campbell com Bill Moyers; org. por Betty Sue Flowers; tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena. GALENO, Alex et al. (2008) Brasil em tela: cinema e poéticas do social. Porto Alegre: Sulina. HILLMAN, James (1999) O Livro do Puer; ensaio sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus. JUNG, Carl Gustav (1964) O Homem e seus Símbolos (org). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ______________ (1987) Obras Completas, vol. VII/2.Petrópolis: Vozes. ______________ (1961) Obras Completas, vol.IX/1 . Petrópolis: Vozes. VON FRANZ, Marie-Louise (1992) A Individuação nos Contos de Fada. São Paulo: Paulinas.