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Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio 1. Resumo O espetáculo Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio é a primeira parte de uma pesquisa em 3 etapas que investiga a criação de espetáculos teatrais a partir de textos escritos sob a forma de livre-associação, um mecanismo de escrita que cria textos fragmentados e repletos de lacunas, metáforas e significados em camadas mais profundas de interpretação. Nesta primeira etapa, investiga-se a forma através da qual o espetáculo se constrói sobre os aspectos de atuação. Portanto, os atores são colocados em cena com o mínimo de recursos externos e buscam apenas em sua atuação preencher o espetáculo de significado. 2. Introdução O projeto Ruídos do Inconsciente é um projeto de pesquisa e criação teatral desenvolvido pela Companhia Ruídos de Arte acerca das manifestações do inconsciente do dramaturgo em conexão com o inconsciente do público, em última instância, buscando se aproximar de uma experiência subjetiva e catártica coletiva através do uso de imagens e da busca de um sentido nas camadas mais profundas da individualidade que cerca cada pessoa que assiste a um espetáculo mas que ao mesmo tempo a conecta com os demais, formando de maneira paradoxal uma individualidade coletiva que conecta o público, como um único ser, ao espetáculo em cena e mais profundamente aos realizadores deste espetáculo. O projeto como um todo, no entanto, se divide em 3 grandes partes baseadas em um mesmo texto de modo a permitir uma compreensão gradual dos resultados do processo de pesquisa por parte dos realizadores e para que possamos construir um conhecimento baseado no que convencionamos chamar de Espiral de Ressignificação, uma técnica em que, de maneira cíclica, revisitamos por repetidas vezes os mesmos conceitos e situações, porém com o acúmulo de significados obtidos em etapas anteriores da pesquisa. Assim, ressignificados pelo que foi descoberto antes, não nos limitamos a andar em círculos dentro 1

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  • Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio

    1. Resumo

    O espetáculo Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio é a primeira parte de

    uma pesquisa em 3 etapas que investiga a criação de espetáculos teatrais a partir de textos

    escritos sob a forma de livre-associação, um mecanismo de escrita que cria textos

    fragmentados e repletos de lacunas, metáforas e significados em camadas mais profundas

    de interpretação. Nesta primeira etapa, investiga-se a forma através da qual o espetáculo

    se constrói sobre os aspectos de atuação. Portanto, os atores são colocados em cena com

    o mínimo de recursos externos e buscam apenas em sua atuação preencher o espetáculo

    de significado.

    2. Introdução

    O projeto Ruídos do Inconsciente é um projeto de pesquisa e criação teatral

    desenvolvido pela Companhia Ruídos de Arte acerca das manifestações do inconsciente do

    dramaturgo em conexão com o inconsciente do público, em última instância, buscando se

    aproximar de uma experiência subjetiva e catártica coletiva através do uso de imagens e da

    busca de um sentido nas camadas mais profundas da individualidade que cerca cada

    pessoa que assiste a um espetáculo mas que ao mesmo tempo a conecta com os demais,

    formando de maneira paradoxal uma individualidade coletiva que conecta o público, como

    um único ser, ao espetáculo em cena e mais profundamente aos realizadores deste

    espetáculo.

    O projeto como um todo, no entanto, se divide em 3 grandes partes baseadas em

    um mesmo texto de modo a permitir uma compreensão gradual dos resultados do processo

    de pesquisa por parte dos realizadores e para que possamos construir um conhecimento

    baseado no que convencionamos chamar de Espiral de Ressignificação, uma técnica em

    que, de maneira cíclica, revisitamos por repetidas vezes os mesmos conceitos e situações,

    porém com o acúmulo de significados obtidos em etapas anteriores da pesquisa. Assim,

    ressignificados pelo que foi descoberto antes, não nos limitamos a andar em círculos dentro

    !1

  • de nossa pesquisa, mas adquirimos uma tridimencionalidade de conhecimento, que

    descreve uma espiral. Sendo assim, cada uma das 3 etapas desta pesquisa terá uma

    abordagem distinta resultando em um espetáculo diferente sobre o mesmo texto. Nesta

    primeira etapa, buscamos compreender o sentido inconsciente da livre-associação dentro

    do texto através das palavras e dos corpos dos atores em um espaço vazio, o que permite

    uma completa volatilidade das imagens e uma total liberdade na formação de significados,

    apoiados ainda diretamente sobre os sons e sentidos descritos pelas palavras contidas no

    texto. Na segunda etapa da pesquisa, Ruídos do Inconsciente - Parte II: O Silêncio,

    reconstruiremos o espetáculo a partir do mesmo texto utilizado na Parte I: O Espaço Vazio,

    porém neste momento teremos como centro da pesquisa a construção de imagens e

    objetos cênicos capazes de transmitir as sensações conquistadas na primeira etapa da

    pesquisa, agora fazendo uso do silêncio; isto é, teremos como objetivo a tradução do texto

    para uma linguagem puramente simbólica. Por fim, a terceira etapa da pesquisa, Ruídos do

    Inconsciente - Parte III: Uníssono, será uma fusão das duas primeiras etapas da pesquisa,

    em que buscaremos associar a capacidade significativa do texto presente - como

    trabalhada na Parte I - com a significação imagética do texto imaginado - como trabalhada

    na Parte II. Assim, ao final do processo de pesquisa, esperamos construir de uma maneira

    concreta a linha de pensamento desenvolvida pela companhia na construção de um

    espetáculo carregado de subjetividade e construído a partir de uma visão psicanalítica da

    escrita de um texto teatral.

    3. Objetivos

    a. Investigar as conexões entre o inconsciente do dramaturgo e o inconsciente coletivo

    do público na concepção de um espetáculo teatral

    b. Investigar a influência de sons e imagens na percepção do público sobre os sentidos

    contidos em um texto teatral

    4. Métodos

    A base de construção do espetáculo apresentado como resultado desta pesquisa

    engloba duas frentes em si, que se desenvolvem simultaneamente em cada uma das

    !2

  • etapas de construção do espetáculo: uma primeira essencialmente teatral, centrada na

    capacitação dos atores de ler e interpretar os sentidos profundos contidos em um texto e

    em seguida construir imagens físicas, conectadas porém independentes do texto dito,

    capazes de transmitir uma segunda camada de sentidos ao público; e uma segunda, de

    viés mais psicanalítico, que busca compreender as manifestações inconscientes do

    dramaturgo ao escrever um texto através de uma técnica que se aproxima da técnica de

    livre associação utilizada por Freud na elaboração dos seus estudos psicanalíticos como

    uma substituição da técnica hipnótica no acesso ao inconsciente (FREUD, 1904)1.

    Neste sentido, a construção do espetáculo se dá em 5 momentos a serem discutidos

    detalhadamente a seguir.

    4.1. A preparação física do ator

    Ao iniciar a construção de um espetáculo que não tem como base um texto pré-

    definido, ou mesmo uma escolha estética ou proposta de criação, parte-se do nada, do

    vazio. E é justamente neste vazio que está a fundação da pesquisa que desejamos realizar.

    Isto é, o vazio inicial é precisamente o campo que permite o surgimento da livre-associação

    que buscamos encontrar na escrita do texto, o passo seguinte. Portanto, como uma

    introdução ao desenvolvimento da pesquisa, é necessário não somente aceitar o vazio,

    como reafirmá-lo e estruturá-lo como linguagem, evitando direcionamentos no campo da

    significação. É dentro deste contexto, que trabalhamos o "silêncio antes da

    palavra" (LECOQ, 1997 p.59)2. Buscamos a utilização mínima de recursos externos, o que

    permite uma total liberdade expressiva e física dos atores e a aquisição de uma habilidade

    cênica capaz de acessar as imagens expressivas que serão necessárias no

    desenvolvimento da pesquisa. Criamos assim uma estrutura de condições precárias iniciais

    porque "(…) montar uma coisa em condições precárias é como uma revolução, pois tudo o

    que cai entre as mãos pode ser transformado em arma.” (BROOK, 1968 p107)3.

    Na busca desta expressividade física na construção das imagens, encontramos

    terreno fértil de pesquisa tanto nos aspectos ritualísticos que permeiam a origem do teatro,

    quanto na pedagogia de Jacques Lecoq, principalmente em seus estudos envolvendo a

    Máscara Neutra e o Fundo Poético Comum.

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  • Por um lado, a abordagem do teatro em seu aspecto ritualístico nos permite

    despertar nos atores a habilidade do artista primitivo de acessar emoções complexas,

    conectando-se com os demais de uma maneira não só artística, mas também espiritual e

    frequentemente catártica. "O artista que necessita apenas do seu corpo para evocar

    mundos inteiros e percorre a escala completa das emoções é representativo da arte de

    expressão primitiva do teatro. O pré-histórico e o moderno manifestam-se em sua

    pessoa" (BERTHOLD, 1968)4.

    Por um outro lado, a pedagogia de Lecoq nos permite instrumentalizar o ator com

    uma linguagem e um domínio do movimento com um sentido poético-expressivo não

    atrelado a qualquer estilo teatral pré-definido pois "de início, nosso trabalho não se apoia

    num texto, nem em qualquer teatro referencial, seja oriental, balinês ou outro. Como

    primeira leitura, temos apenas a vida." (LECOQ, 1997 p.81-82)2.

    4.2. O texto teatral

    Dentro do contexto que definimos para a estruturação da pesquisa, o método de

    escrita no momento em que o texto é elaborado é mais importante do que o resultado em si.

    Afinal, trata-se de um texto que busca acessar o inconsciente do autor e o seu conteúdo

    será válido apenas se uma metodologia adequada for utilizada. Para tanto, lançamos mão

    da livre associação.

    Em semelhança ao método definido por Freud que, lado a lado com a interpretação

    dos sonhos, permitiu o acesso ao inconsciente por uma via não hipnótica (FREUD, 1904)1,

    a escrita por meio de livre associação se dá quando o dramaturgo escreve sem se

    preocupar com a estrutura textual, ou mesmo com o sentido que vai adquirindo o texto, ou

    sem sequer intencionar a elaboração de uma estória. A escrita segue o ritmo e o fluxo dos

    pensamentos do autor, e ele é impelido a escrever o que lhe vier à mente, evitando

    qualquer tipo de bloqueio ou repressão. Neste sentido formam-se associações

    frequentemente absurdas e lacunas não preenchidas ao longo do texto. O que ocorre de

    maneira semelhante nas análises de Freud sobre pacientes em neurose, como descrito no

    seguinte trecho: "Já no relato da história clínica surgem lacunas na memória do doente, ou

    seja, esquecem-se acontecimentos reais, confundem-se as relações de tempo ou se

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  • rompem as conexões causais, daí resultando efeitos incompreensíveis. Não há nenhuma

    história clínica de neurose sem algum tipo de amnésia." (FREUD, 1904)1. Segundo Freud,

    essas lacunas derivam de processos de repressão que se formam como contenção de um

    impulso psíquico que tende ao desprazer (FREUD, 1915)5 e o método analítico que decorre

    da livre associação com uma posterior interpretação das lacunas objetiva-se de encontrar o

    mecanismo psíquico que originou a repressão e produz, em geral, um sentimento de

    desagrado ao encontrar tal mecanismo, daí o processo catártico contido nesta técnica

    (FREUD, 1904)1.

    O método de livre associação então, no texto teatral assim como na entrevista

    psicanalítica, faz com que possamos serpentear entre as diversas lacunas do meio psíquico

    do autor e experienciar as repressões e inconsistências ali contidas. Nos levando por um

    percurso por um lado individual, no sentido em que expõe ao público suas inconsistências,

    convidando-o ao processo analítico particular de cada indivíduo que se forma na leitura e

    encenação do texto; e por outro lado coletivo, convidando este mesmo público à

    experiência catártica que o processo proporciona.

    4.3. A compreensão das imagens e a formação do coro

    Com o resultado da livre associação em mãos, partimos então para a interpretação

    das imagens ali contidas. Os atores são reunidos e orientados a ler o texto repetida e

    cuidadosamente, atentando principalmente às suas imagens e aos seus possíveis

    significados simbólicos, que em algum grau permitem uma interconexão apesar da aparente

    desconexão inicial e trazem um sentido amplo ao texto como um todo. Isto é, neste

    momento começam a ficar aparentes os mecanismos de repressão exercidos pelo

    inconsciente e os complementos das lacunas passam a ficar mais evidentes somente com o

    destaque dos símbolos apresentados ao longo da escrita do texto.

    Assim, fica possível perceber que, para que o público se torne parte do processo

    analítico e consciente destes bloqueios, basta que os símbolos fiquem evidentes e, com

    isso, eles sejam convidados a interpretar por si próprios as conexões entre os diversos

    momentos criados pela livre associação.

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  • Para que os símbolos ganhassem força cênica e o poder de voz julgadora, eles

    foram então representados por pequenos coros. Coros estes que fisicamente representam

    as imagens extraídas do texto ao mesmo tempo em que agem como figura repressiva das

    pulsões do indivíduo-autor. Assim como ocorria no teatro grego, o coro ganha o poder de

    uma voz externa, capaz de observar e julgar as ações do herói e ainda mantém seu tom

    satírico, o que faz dele ainda mais repressor e evoca seu o caráter ritualístico. (BERTHOLD,

    1968 p. 103-105)

    A preparação dos atores neste quesito teve como base dois diferentes pontos de

    vista de construção de um coro que, apesar de se fundarem nas mesmas bases

    semânticas, alcançam o coro por vieses diferentes. São estes pontos de vista o Jacques

    Lecoq através do exercício do equilíbrio do palco (LECOQ,1997 p. 199)2; e o de Marcelo

    Lazzaratto em sua pesquisa do campo de visão.

    Ambas estas formas de abordagem do coro tratam este elemento teatral tanto em

    seu aspecto de individualidade dos membros componentes do coro, quanto em seu aspecto

    de alteridade na formação de um movimento coletivo fazendo uso em diversos momentos

    da improvisação (LAZZARATTO, 2011 p. 23)6. Isso permite que haja novamente uma

    afirmação e execução da fluidez em consonância com a metodologia de escrita do texto.

    4.4. A livre-associação dos sons

    Na busca de uma identidade sonora dentro do contexto da pesquisa que

    desenvolvemos a partir da escrita e do trabalho físico, não poderíamos trilhar caminho

    diferente do que da improvisação e da livre-associação. Era necessário então encontrar

    alguma forma de evocar os Ruídos em seu sentido mais literal. Para tanto, buscamos

    construir este ambiente sonoro tomando como base o processo de livre associação em que

    um dos atores propunha um som inicial, e era seguido posteriormente por sons reativos dos

    demais atores. Formava-se assim um ambiente sonoro fluido e reativo, baseado na

    identidade semântica visual construída pelos corpos e nas situações criadas pelo fluxo

    orgânico do texto. Com isso, pudemos encontrar um ambiente não apenas musical, mas

    também ruidoso, em espelho à proposta inicial do espetáculo, da pesquisa e do processo

    até então desenvolvido.

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  • 4.5. As máscaras teatrais

    Ao longo do desenvolvimento do trabalho, tomando como ponto de partida os 4

    elementos descritos até aqui, construiu-se um contexto em que o indivíduo central da trama,

    que em última instância abriga uma síntese de todos os demais indivíduos, se confrontava

    constantemente, em diálogos absurdos e desconexos, com seres de características e

    motivações absolutamente extra-cotidianas. Ambos estes indivíduos, ainda, eram

    permeados por um coro de figuras também profundamente extra-cotidianas. Isso conferia

    ao espetáculo um tom ao mesmo tempo melodramático e surrealista; e provocava um

    grande estranhamento diante dos rostos cotidianos dos atores dentro da representação em

    universo tão complexo e fragmentado.

    Era portanto necessário encontrar uma forma de levar os atores a um nível de

    interpretação tão fragmentado e absurdo quanto o contexto pedia.

    Novamente recorremos ao universo ritualístico e exagerado trazido pelo jogo das

    máscaras teatrais. Principalmente no que se refere ao uso de meias-máscaras expressivas,

    como no jogo da commedia dell'arte (BERTHOLD,1968 p.353)4, ou mais particularmente na

    sua abordagem através da comédia humana (LECOQ, 1997 p.168)2. Esta linguagem

    permite construir o jogo cênico em um patamar de energia mais elevado, mais fora do

    cotidiano e mais absurdo sem que seja perdida a habilidade de dizer os textos sem a

    obstrução provocada pelas máscaras inteiras. E, ainda, introduz um espectro de

    possibilidades cômicas na construção dos tipos dos personagens que compõem a cena,

    adicionando diversas camadas semânticas ao espetáculo.

    5. Descrição

    Tomando como base os 5 momentos da pesquisa descritos acima demos início aos

    encontros em março de 2016 com a proposta de realizarmos encontros semanais durante

    12 semanas para a introdução da preparação física dos atores, do exercício ritualístico e do

    trabalho inicial envolvendo a máscara neutra. Essa preparação foi seguida por uma pausa

    nos encontros para que o texto pudesse ser escrito e então os encontros foram retomados,

    de modo que o texto pudesse ser trabalhado nos aspectos de imagens, coro e máscaras

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  • expressivas. Sendo assim, o processo de direção do espetáculo foi dividido em 2

    momentos: um primeiro de preparação física antes da concepção do texto e um segundo de

    interpretação textual e concepção do espetáculo após a escrita.

    5.1. A preparação física do ator

    Como descrevemos anteriormente, a proposta para esta etapa da pesquisa consistiu

    na construção de um terreno que permitisse uma posterior interpretação física e repleta de

    significado visual no momento em que iniciássemos a abordagem do texto. E, para que

    alcançássemos esta habilidade física, fizemos uso de duas frentes de pesquisa: o ator

    como fenômeno ritualístico e a pedagogia de análise de movimento e identificação de

    Jacques Lecoq.

    Dentro do campo ritualístico da formação de uma identidade física do ator,

    introduzimos a meditação dinâmica de Osho, uma meditação que permite uma percepção

    da respiração, do silêncio e da própria presença física ao mesmo tempo em que leva o ator

    a um estado de exigência física e psíquica, que amplia a percepção e a concentração. Esta

    meditação tem duração de 1 hora e é guiada por uma música dividida em 5 etapas, que

    subdivide o processo de meditação também em 5 estágios.

    - Expiração (10 minutos): Neste estágio os atores são orientados a respirar

    concentrando-se na expiração e deixando que o corpo por si só realize a inspiração.

    Esta expiração deve, no entanto, ser tão rápida e firme quanto possível. Neste

    momento a movimentação pelo espaço é livre.

    - Catarse (10 minutos): Trata-se de um estágio em que os atores são orientados a

    exteriorizar todas as emoções e vontades. O corpo deve se manter ativo, enquanto

    ri, chora, grita, rola pelo chão, etc. Nada deve ser reprimido. A mente e o corpo

    devem permanecer em fluxo contínuo e ininterrupto.

    - RU (10 minutos): Os atores devem assumir uma posição com os braços para cima,

    os ombros e cotovelos devem permanecer com ângulos de aproximadamente 90o.

    No lugar, eles devem pular repetidamente e, a cada vez que os pés tocarem o chão,

    devem repetir o mantra "RU", que deve ser dito com intensidade e entrega total.

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  • - Silêncio (15 minutos): Neste momento a música pára subitamente e o silêncio se

    instaura. O ator deve permanecer completamente imóvel, qualquer movimento

    quebra o fluxo da meditação e desperdiça o trabalho realizado. O ator não pode se

    ajeitar, secar suor ou se coçar. Trata-se de um momento de total autopercepção e

    concentração.

    - Celebração (15 minutos): A música reinicia e os atores se tornam livres para se

    movimentarem e celebrarem através da dança a conclusão da meditação.

    Utilizamos, em cada um dos encontros, a meditação dinâmica, no início das

    atividades como uma forma de promover um despertar nos atores e um senso de

    percepção física individual e coletiva que permitia o desenvolvimento das etapas seguintes

    de treinamento mais técnico.

    Em associação ao trabalho ritualístico da meditação dinâmica, nesta primeira etapa,

    abordamos a pedagogia de Jacques Lecoq sob 3 principais ópticas: a análise de

    movimento, a máscara neutra e as identificações.

    O trabalho de análise de movimento (LECOQ, 1997 p. 116-141)2 consiste em uma

    observação e reinterpretação dos movimentos do corpo humano e da natureza buscando

    sempre a economia do movimento (LECOQ,1997 p.116). Ele busca, em si, um gesto

    preciso e econômico em ações tanto cotidianas como poéticas e metafóricas. Iniciamos o

    trabalho com movimentos simples como a ondulação, a ondulação invertida e a eclosão

    (LECOQ, 1997 p.117)2 (fotos 1-4) e trabalhamos cada um dos movimentos com os

    diferentes tratamentos possíveis (LECOQ, 1997 p.121)2, ou seja, com variações de

    amplitude do movimento, respiração, intensidade, entre outros. A seguir, trabalhamos com

    fundamentos de mímica clássica como o ponto fixo (fotos 5-6) e as ações de empurrar e

    puxar (foto 7), chegando à mímica de ação, em que buscamos reproduzir ações específicas

    como descrito por Jacques Lecoq: "A mímica de ação é a nossa base para analisar as

    ações físicas do homem. Consiste em reproduzir uma ação física o mais próximo possível

    do que ela é, sem transposição, fazendo mímica do objeto, do obstáculo, da resistência.

    Para isso, utilizo os gestos dos grandes ofícios (o barqueiro, o lavrador, o escavador, o

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  • lenhador), ou ainda das grandes modalidades esportivas (barra fixa, halterofilismo). A

    mímica de ação também trata da manipulação de objetos: abrir uma mala, fechar uma

    porta, tomar uma xícara de chá" (LECOQ, 1997 p.126)2 (fotos 8-9).

    O exercício da mímica de ação permite, em seus extremos, o surgimento das

    atitudes. "Chamo atitude um tempo forte, apreendido no interior de um movimento, na

    imobilidade. É um momento de pausa, que pode ser posto no começo, no fim ou num

    momento importante de mudança. Quando levamos um movimento até seu limite,

    descobrimos uma atitude" (LECOQ, 1997 p. 123)2. Dentro da pedagogia de Lecoq, são

    definidas então 9 atitudes a partir das ações trabalhadas, que são então abordadas em

    sequência para que seja possível compreender suas transições e mudanças. (foto 10).

    Adquirido um certo domínio físico através dos exercícios descritos até aqui,

    percorremos então o caminho da máscara neutra (foto 11) , que "se trata de uma máscara

    de referência, uma máscara de fundo, uma máscara de apoio para para todas as outras

    máscaras. Sob todas as máscaras, sejam expressivas ou da commedia dell'arte, há uma

    máscara neutra que reúne todas as outras. Quando o aluno sentir esse estado neutro do

    início, seu corpo estará disponível, como uma página em branco, na qual poderá inscrever-

    se a 'escrita' do drama" (LECOQ, 1997 p.69)2. Trabalhamos sucessivamente os exercícios

    do despertar (LECOQ, 1997 p. 72)2, do adeus ao navio (LECOQ, 1997 p.74)2 e da viagem

    elemental (LECOQ, 1997 p.75)2.

    A partir daí, foi possível criar o terreno para a última etapa do nosso processo

    envolvendo a pedagogia de Jacques Lecoq: as identificações (LECOQ, 1997 p.77-79) . No

    processo de identificação, os atores são impelidos a representar fisicamente diversos

    elementos da natureza: água, fogo, terra, ar. E cada um deles em suas diferentes

    possibilidades e dimensões, desde a mais ínfima gota de água, até um furacão de

    dimensões imensuráveis. Dos elementos da natureza, partimos para a identificação com os

    materiais (fotos 12-15) como plásticos, metais, papeis, entre outros; e com as cores (fotos

    16-20). E, ao final deste processo, cria-se entre os atores e o diretor do espetáculo a ser

    construído um repertório e um vocabulário comum dentro do campo de construção

    imagética e poética. Um linguajar coerente com o fundo poético comum (LECOQ, 1997 p.

    81-82)2.

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  • 5.2. Construção do espetáculo

    Após a preparação inicial descrita acima, o ator e co-fundador da Cia. Ruídos de

    Arte, Diego Antunes, dedica-se a escrita do texto anexado (Anexo I) segundo os moldes da

    livre-associação. Surge assim, um texto profundamente fragmentado e repleto de lacunas a

    serem preenchidas por uma interpretação cuidadosa. Como esperado, o texto em si é

    repleto de imagens carregadas de sentido simbólico, onde está o caminho para

    preenchermos as lacunas semânticas contidas na desconexão e fragmentação do sentido

    explícito ali contido.

    Como abordagem inicial, buscamos realizar uma leitura cuidadosa do texto para que

    pudéssemos encontrar quais eram os símbolos mais fortes em cada um dos diálogos

    estabelecidos, e a partir desta análise definimos quais imagens poderiam ser trabalhadas

    fisicamente pelo coro em consonância com o trabalho realizado previamente à escrita do

    texto.

    Porém, antes que o coro pudesse compor qualquer imagem, ele precisava ser

    composto. Para tal, realizamos um breve trabalho sobre o campo de visão de Marcelo

    Lazzaratto como descrito em seu livro "Campo de Visão, Exercício e Linguagem

    Cênica" (LAZZARATTO, 2011 p.48-51)6. De maneira breve, neste jogo, os atores movem-se

    segundo um líder tão somente quando algum movimento passa por seu campo visual.

    Deste modo, surge um movimento coletivo que por si forma um ser plural e orgânico que

    remete profundamente ao coro, porém mantém os atores em um equilíbrio entre sua

    individualidade e a alteridade contida na movimentação e interpretação coletiva. "O

    exercício propicia e força o ator a saber impor sua vontade particular na mesma medida que

    impõe um 'abrir mão' dessa vontade em prol da vontade coletiva" (LAZZARATTO, 2011 p.

    47-48).

    De maneira complementar, retornamos à pedagogia de Jacques Lecoq em busca de

    sua abordagem para a formação do coro, encontrando o exercício do equilíbrio do

    praticável (LECOQ, 1997 p.199-203)2. Neste exercício, os atores buscam equilibrar de

    maneira sucessiva um espaço cênico delimitado como se ele fosse apoiado sobre um único

    ponto central. Nesta etapa, o exercício ainda não se depara com a formação de um coro.

    !11

  • Porém, em sua segunda etapa, cada novo ator que entra faz com que os demais se

    agrupem em um coletivo com o peso equivalente ao do ator que acaba de entrar em cena.

    Assim, a movimentação ao longo do exercício se dá de modo que sempre temos um ator

    equilibrado por um grupo de outros atores em uma dinâmica coro-herói.

    Extraímos então estas duas abordagens do coro e as associamos à construção de

    imagens físicas trabalhadas antes da escrita do texto e colocamos este repertório a serviço

    das imagens extraídas da leitura cuidadosa realizada previamente. A cada diálogo então

    formou-se a imagem de um herói em relação com um corifeu suportado pelo seu coro, que

    carregava em si a imagem-síntese do diálogo em questão. Ao longo da análise de cada um

    dos diálogos, foi ficando evidente que o herói se mantinha constante ao longo de todo o

    texto, sendo confrontado por diferentes corifeus que se destacavam um de cada vez de um

    mesmo coro. Formou-se então um herói reflexo ao mesmo tempo do autor do texto e um

    espelho para o público que, enquanto assiste a este personagem em confrontação consigo

    mesmo transposto em imagem, também tem a possibilidade de enfrentar seus próprios

    confrontos individuais.

    É neste momento que se torna conveniente a introdução das máscaras expressivas

    da comédia humana como ferramenta de transposição do espetáculo para um campo

    surrealista não só no aspecto verbal, mas também no aspecto visual e estético. Neste

    momento também, cada ator já havia composto uma noção significativamente construída

    dos desenhos corporais de cada personagem. Portanto, cada um deles modelou e

    confeccionou a própria máscara em cartapesta. A partir daí, realizamos uma série de

    improvisações com cada uma das máscaras, buscando as diversas possibilidades de cada

    uma delas e seus diferentes campos de jogo.

    Ao final deste processo, alcançamos uma concepção visual limpa, com os atores em

    cena em todos os momentos e modelando, por si próprios, os campos de jogo e suas

    regras, construindo o espetáculo segundo a segundo sem quaisquer recursos externos.

    Forma-se então um espetáculo rústico e honesto, móvel e comprometido apenas com a

    atuação e com o significado.

    !12

  • 6. Resultado

    A concepção de um texto teatral através da livre-associação criou uma dramaturgia

    fragmentada e repleta de lacunas, que inicialmente chegam a dificultar a apreensão de

    qualquer sentido dentro da estrutura e da semântica textual. No entanto, o texto torna-se

    também repleto de imagens, metáforas e simbolismos, que potencializam camadas mais

    profundas de significado e criam um campo extremamente fértil para a interpretação e para

    a construção de um espetáculo visual. Sendo assim, o que se coloca como dificuldade a

    uma primeira vista, torna-se o principal ponto forte do texto. Afinal, com palavras pouco

    esclarecedoras e símbolos muito significativos a relação entre o espetáculo e o público se

    torna não apenas intelectual, mas também sensorial. Há, portanto, uma conexão entre o

    autor e o público que vai além das palavras. O público identifica-se, sente, e respira em

    conjunto com os atores.

    Dentro desta linguagem, então, o trabalho físico e a expressão corporal dos atores

    que representam a linguagem simbólica do texto precisam ser cuidadosamente explorados

    e pensados. Afinal, um texto que apresenta ideias que se conectam com alguma frequência

    apenas por suas imagens, perde qualquer sentido se as imagens forem trabalhadas com

    descaso. Podemos pensar que, a leveza e fluidez do texto se materializam na concretude

    do corpo. O corpo é o verbo que falta, e preenche os espaços vazios deixados pelo texto. E

    consigo, o corpo carrega todo o passado e toda a emoção do indivíduo que assiste ao

    espetáculo. Daí, cria-se uma obra que se torna completa somente com a participação do

    imaginário do público. O espetáculo não se fecha em si como obra concluída, mas convida

    o público a se inserir em suas lacunas e a organizar sua fragmentação.

    !13

  • 7. Referências

    1. FREUD, Sigmund. O Método Psicanalítico de Freud, 1904. Disponível em

    acesso em 01/05/2017

    2. LECOQ, Jacques. O Corpo Poético, Uma pedagogia da criação teatral. Tradução de

    Marcelo Gomes. 1a edição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. Tradução

    de: Le corps poétique: un enseignement de la création théâtrale, 1997

    3. BROOK, Peter. O espaço vazio. Tradução Roberto Leal Ferreira. 1a. Edição. Rio de

    Janeiro: Apicuri, 2015. Tradução de: The empty space: a book about the thatre:

    deadly, holy, rough, immediate, 1968.

    4. BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução de Maria Paula V.

    Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. 6a edição. São Paulo :

    Perspectiva, 2014. Tradução de: Weltgeschichte des Theaters, 1968

    5. FREUD, Sigmund. Repressão, 1915. Disponível em acesso em 01/05/2017

    6. LAZZARATTO, Marcelo. Campo de Visão, Exercício e Linguagem Cênica. 1a.

    Edição. São Paulo: Escola Superior de Artes Célia Helena, 2011.

    !14

  • 8. Anexos

    8.1. Fotos

    Foto 1

    !

    Foto 1 - O diretor Artur Ramos orienta o ator Victor Hugo Sorrentino na execução da ondulação

    Foto 2

    !

    Foto 2 - O diretor Artur Ramos orienta o ator Diego Antunes na execução da ondulação invertida

    !15

  • Foto 3

    !

    Foto 3 - O ator Rafael Sandoli executa a eclosão

    Foto 4

    !

    Foto 4 - O ator Diego Antunes Executa a eclosão

    !16

  • Foto 5

    !

    Foto 5 - O ator Victor Hugo Sorrentino e a atriz Mariana Bueno em exercício de ponto fixo

    Foto 6

    !

    Foto 6 - O ator Rafael Sandoli em exercício de ponto fixo

    Foto 7

    !17

  • !

    Foto 7 - O ator Rafael Sandoli em exercício da ação de empurrar

    Foto 8

    !

    Foto 8 - O ator Victor Hugo Sorrentino em exercício de mímica de ação

    !18

  • Foto 9

    !

    Foto 9 - O diretor Artur Ramos orienta o ator Victor Hugo Sorrentino em Exercício de mímica de ação

    Foto 10

    !

    Foto 10 - O diretor Artur Ramos orienta o ator Rafael Sandoli na realização das 9 atitudes

    !19

  • Foto 11

    !

    Foto 11 - O diretor Artur Ramos orienta o ator Victor Hugo Sorrentino durante exercício de máscara neutra

    Foto 12

    !

    Foto 12 - Exercício de identificação com materiais

    Foto 13

    !

    Foto 13 - O ator Diego Antunes executa exercício de identificação com materiais - clipe de papel

    !20

  • Foto 14

    !

    Foto 14 - O ator Diego Antunes em exercício de identificação com materiais

    Foto 15

    !

    Foto 15 - Exercício de identificação com materiais

    Foto 16

    !

    Foto 16 - O ator Victor Hugo Sorrentino em exercício de identificação com cores

    !21

  • 8.2 Texto

    Ruídos do Inconsciente Peça de: Diego Antunes

    Diálogo 1 – DOS DESENCONTROS E DA SENSAÇÃO DE NÃO PERTENCIMENTO

    A - Eu não sabia que você vinha.

    B - Pois é. Eu vim.

    A - De onde?

    B - É uma pena que não saiba.

    A – Eu não sei de muita coisa. Da próxima vez que vier, sussurre um pouco mais. Ninguém gosta de te ver assim tão elétrico, gritando pelos cantos como um zé-ninguém. Precisamos do seu carisma, mas nem tanto. Ninguém é insubstituível.

    B - Por acaso pedi que me chamassem?

    A - Ah, pediu. E muito.

    B – Não pedi.

    A – Pediu sim!

    B - Talvez. Mas não da forma que acha que pedi. Sabe, eu também já fui solitária. Gritava em silêncio. Hoje eu grito aqui. Vendo você assim tão inquisitivo, parece que você não sabe de onde veio. Pelo menos, eu sei de onde vim e para onde vou.

    A - De onde vim?

    B - Sim, de onde veio.

    A - Viemos do mesmo lugar.

    B - Sim, foi por isso que eu te disse...

    A - Do lugar onde a gente veio, os sinos tocam ao contrário.

    B - Por isso que te disse que nunca há a volta de um mundo perfeito. Sei que é difícil, pois, de onde a gente veio, tudo é bem mais fácil. Sorrisos fáceis, alegria barata, horas reduzidas. Lembra?

    !22

  • A - Lembro.

    B - Então você sabe do que estou falando.

    A - Sei. Mas também tenho medo de onde a gente veio. Tenho uma sensação de não lembrar nada. Absolutamente nada. É como se eu tivesse passado a existir somente quando saí de lá. Quando a gente não se lembra de coisa alguma, talvez seja porque a gente queira esquecer.

    B – Ou talvez porque tenha sido bom. Já parou pra pensar que o esquecimento pode ser sinônimo de felicidade?

    A – Ou do trauma. Sabe que...

    B – Não sei.

    A – Sabe que.... Eu parei muito pra pensar nesse lugar de onde a gente veio. E cheguei à conclusão de que não tenho memórias específicas, claras, sabe? Tenho apenas alguns resquícios de sensações...cheiros, sons...

    B – Sei.

    A – Sei que sabe. Mas, se você fala tão bem do lugar de onde viemos...

    B – Eu sou feliz.

    A – Feliz, feliz.

    B – Nem um, nem o outro. Só amadureci. Aprendi a encontrar meu Shangrilá.

    A – Virou poeta, agora?

    B – Não existe Shangrilá sem poesia.

    A - Eu fico tentando achar meu Shangrilá de onde eu vim.

    B- De onde viemos, tudo é mais difícil.

    A- Não é tão difícil, basta aceitar as coisas como elas são. Para a gente ser igual, basta comer a mesma comida, beber da mesma água, ler as mesmas coisas, ir para os mesmos lugares.

    B- Mas eu não quero voltar para lá.

    A- Às vezes eu quero.

    !23

  • B- Prefiro o silêncio àquele barulho infernal.

    A- É um barulho que só.

    B- Só Deus!

    A- Só.

    B- Deus?

    A- Quem sabe?

    B- Não sei.

    A- Eu sei que gosto daqui. Não há nada. Eu gosto do nada. Faz com que sejamos tudo.

    B- Eu sempre procurei um lugar onde eu pudesse ser tudo. De onde viemos, era frequente minha vontade de abraçar o mundo, mesmo sabendo-o pequeno demais e eu queria mais e mais e me achava importante demais.

    A- Pelo menos aqui você é.

    B- Me sinto.

    A- Você sempre foi arrogante?

    B- As pessoas acham. Mas lá de onde eu vim. Aqui não. Aqui não confundem arrogância com grandeza de espírito.

    A- O que é grandeza de espírito?

    B- Alguns poucos sustentam o peso das coisas e dos outros, e eu sou um deles.

    A- Quanta arrogância!

    B- É verdade! Ninguém é igual, alguns sustentam nas costas o peso de estar vivo! É difícil essa tarefa, mas é mais forte do que eu. Os moribundos...

    A- As pessoas são diferentes, só isso, nem todas têm tantas ambições quanto você.

    B- Os moribundos... Sim. Somos diferentes, por isso estamos aqui.

    A- Engraçado quando fala assim, sempre tentando, tentando, tentando achar uma forma de justificar tudo que vê. Lembra aquele sino que toca ao contrário de onde a gente veio? Ele não tem uma solução tão simples quanto parece.

    !24

  • Diálogo II – DA FUNÇÃO DA ARTE E DO OLHAR DO OUTRO

    A- Já não te falaram?

    B - Já sim.

    A- Então é isso.

    B- Ele sempre foi assim.

    A- Sempre.

    B- Acontece que.... Não adianta.

    A- Não.

    B- Eu tinha um amigo um tempo atrás que, sei lá, hoje não é mais meu amigo.

    A- Mas não era seu amigo?

    B- Era, mas mudei.

    A- E o que isso tem a ver?

    B- Tem a ver que...

    A- Te entendo.

    B- Então...

    A- Eu não gosto muito dela. Parece que está sempre invejando alguma coisa, olhando esquisito. Eu não consigo me aproximar.

    B- De quem a gente consegue se aproximar hoje em dia?

    A- E aí ela vem com um papo de experiência fora do corpo.

    B- EFC?

    A- Já teve?

    B- Já.

    A- Eu também. Aí os quadros viraram todos do avesso, todos, assim, sem nenhuma explicação. Dizem que quando isso acontece é a arte se rebelando.

    !25

  • B- Mas quem virou os quadros?

    A- Não sei.

    B- Sabe que...

    A- Não sei.

    A- Sabe que lá na casa da minha vó tinha um quadro que tomava a parede inteira da sala? Era uma paisagem campestre com pessoas fazendo atividades: tomando banho de rio, colhendo frutas, conversando.

    B- Sei.

    A- E vez em quando a ponta esquerda do quadro entortava e vinha pra frente.

    B- Entendo.

    A- Achava que era uma passagem. Que se eu entrasse lá iria me transportar para aquele mundo campestre. Eu tinha vontade de me misturar àquela paisagem, àquelas pessoas. Era como se aquele rio me chamasse de alguma forma, ainda que estivesse parado. Aliás, tudo ali parado parecia ter mais vida do que a vida real. Aquela imobilidade de ações era mais rica e mais móvel do que qualquer mobilidade. Eu gostava daquela paralisia ali contida, uma paralisia nada parada. Você me entende?

    B- Eu tenho medo de entrar na arte.

    A- E aí cresci e descobri que aquilo era só o efeito do calor.

    B- Alguma coisa sempre é efeito de outra. Nada foge disso.

    A- Mas marca.

    B- Marca, como não marcar?

    Diálogo III – DE NÃO SABER QUEM SE É NA MULTIPLICIDADE DE VOZES INTERNAS E EXTERNAS E DA ARTE ATUAL DE DAR NOME A TUDO.

    A- Eu não tenho nome. Você tem?

    B- Não. Prefiro não ter. Pessoas se escondem atrás de nomes.

    A- Mas não é o que elas são? Só um nome?

    B- Algumas sim. Mas eu prefiro não ter. Já mudei de nome várias vezes.

    !26

  • A- A gente dá nome para tudo. Desde que mundo é mundo.

    B- Mas e se não tivessem os nomes, como chamaríamos as coisas?

    A- As coisas ou pessoas?

    B- As coisas a gente chama. Pessoas são chamadas.

    A- Sim, mas onde você quer chegar com isso?

    B- Se nada tivesse nome, nada existiria.

    A - E se inventassem uma outra forma?

    B- Uma outra forma. Uma vez eu parei na frente de um rio, pequeno, sem graça e turvo. Pousou um bicho estranho no meu pé e eu não sabia o nome dele, nunca tinha visto. Eu imaginei que ele fosse único pra mim. Foi a mesma coisa com uma pedra. Eu perdi essa pedra. Ela era escura e grossa por fora e por dentro tinham cristais brancos e rosas. Ela também não tinha nome. Estas foram as duas coisas mais preciosas que tive. Esse bicho e essa pedra.

    A- Eu gostava de uma pedra, sabe? Uma amarela, como chamava?

    B- Eu era especial. As pessoas criavam ideias ao meu respeito, imaginavam meu rosto, meus pés, a cor dos meus olhos, me viam correndo pela rua e brincando de alguma coisa. Aí um dia pintaram um quarto inteiro de azul, bordaram meu nome em lençóis e travesseiros, compraram sapatos e personalizaram o sabonete do meu primeiro banho. A partir daquele dia, deixei de ser especial.

    A- Pintaram o meu de rosa.

    B- Que pedra?

    A- Ágata.

    B- Sua filha?

    A- Safira, talvez.

    B- Quem? Uma vez eu tive uma sina que me chamava Estela.

    A- Por que Estela?

    B- Ah sei lá, assim. Gostei.

    !27

  • A- E aí?

    B- E aí eu insisti que Estela tinha 40.

    A- 40 o quê?

    B- Anos.

    A- E?

    B- Só. Eu me vestia de Estela. Eu tinha uma cara velha, tive não, sempre tive. Ganhei aquela cara com uns 19 anos e quando me olhei no espelho, cheguei à conclusão de que aquela cara de velha me acompanharia o resto da vida, sempre essa cara, de velha, um pouco sexagenária, talvez mais, talvez menos, não sei. E aquele rosto que ganhei com 19, esse rosto envelhecido, encardido, encarquilhado, encardido, sulcado, rugoso.... Eu chamei esse rosto de Estela.

    A- Que lindo nome.

    B- Com um rosto feio. De que adianta?

    A- Não é feio ser velho.

    B- Pra mim é.

    A- Aqui não. Olhe pra você.

    B- Onde?

    A- Na água.

    B- Ali?

    A- É.

    Estela vê o seu próprio reflexo na água. Grita como uma desesperada.

    B- Eu sempre fui Estela, sempre fui! Estela! Estela! Que dor não saber que sempre fui Estela. Sou Estela, sempre fui, Estela!

    A- Não te aceitaste Estela, não sabes que eras Estela, que pena, linda mulher. Eu gosto de nomes. Eles gostam de lugares, eles acham lugares para habitar.

    Diálogo IV – DE SE CRIAR, CONTAR E (de se) INVENTAR HISTÓRIAS

    !28

  • B- Qual seu nome?

    A- Roberto. E o seu?

    B- Cláudio.

    A- Você é gringo Cláudio?

    B- Todo mundo acha. É algo que vem de família, essa voz, esse som.

    A- Que voz diferente.

    B- Estranha você diz. Nunca me adaptei.

    A- Quem se adapta?

    B- Eu não sei muito bem o que quero. A gente faz tanta coisa que não dá tempo nem de pensar.

    A- Pra quê pensar? Quem pensa hoje em dia?

    B- Ninguém.

    A- Não, ninguém. Tudo muito rápido.

    B- Tudo.

    A- As pessoas trabalham demais.

    B- Trabalham.

    A- Por isso eu prefiro ser ator.

    B- Prefiro.

    A- Você prefere?

    B- O quê?

    A- Ser ator.

    B- Nem sei.

    A- Não sabe o quê?

    B- O que quero. Houve um tempo em que me disseram pra parar de pensar. Não sei se foi

    !29

  • na escola, deve ter sido. Eu disse pra professora que não entendia porque os homens da idade média usavam escudos. Escudos eram pesados. Bastava fazer um pacto com o exército combatente e renegar os escudos. A professora disse que assim foi e ponto.

    A- E você acreditou?

    B- Acreditei.

    A- Eu não sei se acredito. Por que acreditar em histórias?

    B- Porque foi assim que fomos ensinados.

    A- Mas por que acreditar em uma história se ela não passa de uma história?

    B- A gente cria histórias para gente mesmo. Por que o mundo não iria fazer o mesmo com sua própria história?

    A- Eu tenho medo de morrer sem história.

    B- Eu também.

    A- Será que não vou ter uma?

    B- Mesmo que você tivesse, um dia ela acabaria de uma forma ou de outra.

    A- Eu quero ter uma história.

    B- Eu também.

    A- Mas tenho medo dela.

    B- Da história?

    A- De criar a história errada.

    B- Mas isso é normal. A gente cria histórias erradas e histórias certas também e no final dessa história toda a gente inventa mais uma história pra ficar mais feliz ou menos triste ou qualquer coisa do gênero.

    A- Acho que no final dessa história é sempre a dosagem do mais ou do menos. O que foi de mais que poderia ter sido de menos ou qualquer coisa assim, acho.

    B- Ou o contrário.

    A- Ou o contrário. Não tem escapatória. Quer ir pra casa?

    !30

  • B- Qual casa?

    A- A casa de Deus. Palhaço, pra minha.

    B- Fazer o quê lá?

    A- Rezar. Palhaço, dormir.

    B- E nos contar histórias?

    A- E nos contar histórias.

    B- Até o dia raiar?

    A- Até a próxima lua cheia.

    B- E se eu não acreditar na sua história?

    A- Eu invento outra.

    B- E se eu acreditar nessa história que você inventou?

    A- Aí você me conta uma também e aí, pode ser, talvez, que eu acredite na sua.

    Diálogo V – DAS AMIZADES DE BOTECO E DAS AMIZADES DE COLO

    A- Eu vou tomar todas.

    B- Pra quê?

    A- Pra esquecer.

    B- Esquecer o quê?

    A- Tudo.

    B- Não dá. Quanto mais se bebe, mais se lembra.

    A- Outro dia resolvi ficar 3 meses sem beber.

    B- E?

    A- Perdi meus amigos.

    B- Amigos não se perdem.

    A- Perdi aqueles que bebem. Eles sumiram todos depois que parei de beber. Eles eram os

    !31

  • melhores.

    B- E os que não bebem?

    A- Não tenho nenhum. Só você. Quer ser meu amigo?

    B- Eu bebo.

    A- Ah.

    B- Desculpa.

    A- Tudo bem.

    B- Mas quando eu não beber, posso te ligar?

    A- Pode ser.

    B- Eu sinto falta de amigos quando não bebo.

    A- Eu não tenho nenhum. Só você quando fica sem beber, a partir de hoje.

    B- Eu sinto falta de amigos.

    A- Eu também.

    B- Aquele amigo de olho no olho.

    A- Tipo oculista?

    B- Vê se entende: assim ó (olha dentro dos olhos). Quero enxergar, lá dentro, assim ó (abre os olhos do outro), quero saber, preciso.

    A- Mas que coisa chata! Para com isso! Isso dói.

    B- Viu? Ninguém me deixa fazer isso.

    A- Claro, porque isso dói.

    B- É claro que dói.

    A- E por que você faz se sabe que dói?

    B- Porque só assim pra gente criar algum tipo de elo. (A palavra elo não deve ser dita e sim representada fisicamente)

    !32

  • A- Está triste? Está cansado?

    B- Estou triste e... cansado. Posso deitar no seu colo e dormir um pouco?

    A- Pode.

    B- Você pode enquanto isso, enquanto eu deito no seu colo e pego no sono, você pode fazer carinho na minha cabeça? Só um pouquinho?

    A- Posso.

    B- Enquanto você faz carinho na minha cabeça e espera que eu pegue no sono, você pode? Pode cantar alguma música ou canção? Ou música tanto faz?

    A- Canto.

    B- Você pode, por favor, enquanto fizer tudo isso, não pensar que...ou melhor, pensar que não estou com intenções, sabe, como se diz...segundas - que é o que todo mundo pensa quando chega perto de mim ou quando chego perto deles, eles se aproximam e eu também e aí nunca tenho coragem de pedir carinho porque sempre acho que vão achar alguma coisa que não é aquilo que achei e depois...

    A- Você pode parar de falar um pouco?

    B- Posso.

    (Se ajeita e deita)

    A- cantarola: Um barco a viajar, a velejar em algum lugar, sempre assim, assim, assim, querendo algo de mim, nem que seja um vento, um vento desses litorais, sempre perdido encontrando cais seguro, no fundo, no muro de algum lugar.... Assim ele consegue virar mar...Sempre um barco a viajar, a velejar em algum lugar, sempre assim, assim, assim, querendo algo de mim...

    Diálogo V – DO PASSADO, PRESENTE E FUTURO E DA SENSAÇÃO DE NÃO SAIR DO LUGAR (OU EFEITO DE ALGUM PSICOTRÓPICO QUALQUER)

    B – É ela!

    A – Não é!

    B – É sim!

    A- É claro! É ela sim!

    !33

  • B- Não é ela! Ela é ignorante, você sabe, você sempre fala.

    A- Você pega ela estressada e ela manda você tomar no seu cu!

    B- E você faz o que?

    ...

    B- Você aceita as coisas muito fácil!

    A- Eu nunca sei reconhecer as pessoas. É ela sim!

    B- Não é.

    A- É! Ela fez uma plástica no seio. Outra na bunda e outra no olho esquerdo em cima da pálpebra!

    B- Deve ser por isso que...

    A- Aí ela implantou gordura nos seios da face e mudou de sexo.

    B- Deve ser por isso que não reconheci que...

    A- Mas é ela!

    B- Tá, digamos que seja. Que diferença vai fazer? Ela não vai tirar a gente daqui.

    A- Você tem certeza que quer sair daqui?

    B- Você tem certeza que quer ficar aqui?

    A- O que vamos fazer do outro lado? É tudo sempre igual.

    B- Mas aqui também.

    A- Mas aqui pelo menos temos liberdade.

    B- Será?

    A- Eu olho essas sombras e eu vejo um mundo melhor.

    B- Tenho medo de subir até lá.

    A- Por quê?

    B- Porque as coisas são mais perenes.

    !34

  • A- Mas você aguenta tanta mudança?

    B- Cada um tem que achar sua verdade. A mudança pelo menos permite isso.

    A- O que te seduz tanto na servidão?

    B- Muita coisa seduz. Por isso tenho vontade de voltar. Vai que a gente consegue alguma coisa. Vontade de voltar.

    A- Tem uma saída aqui, ó, por esse lado.

    B- Eu não entendo nada de saídas, pra mim elas são todas iguais.

    A- Mas a gente precisa achar uma saída.

    B- Pra quê se ela se torna uma nova entrada?

    A- Você tem razão. Aí tudo que a gente vai querer fazer é achar uma nova saída.

    B- Não tem jeito, estamos…, nem aqui e nem lá. Nesse meio, nesse mundo do meio.

    A- Eu não gosto muito desse mundo do meio.

    B- É estranho.

    A- É uma saudade do que já conhecemos e ao mesmo tempo um saudosismo do que está por vir.

    B- Eu tenho certeza que o que está por vir é melhor do que de onde a gente veio, mas eu não sei como chegar.

    A- Eu também não.

    B- Mas também não consigo mais voltar pra onde viemos.

    A- Eu também não.

    B- Não sei o que fazer.

    A- Eu também não.

    B- Você só sabe dizer isso?

    A- Mas é o que se tem pra dizer. Eu estou cansado desse mundo do meio. Não há volta do passado e nem uma ida pro futuro.

    !35

  • B- E se aqui for o presente?

    A- E se marcharmos?

    B- Pra onde?

    A- Pra frente.

    B- Mas onde fica a frente?

    A- Aqui, desse lado.

    B- No meio?

    A- Meio não é frente!

    B- Mas onde fica a frente?

    A- Desse lado. Olha só: Deite no chão. Olhe a constelação mãe.

    B- Qual é?

    A- Aquela rosa.

    B- Tá.

    A- Agora dê dois passos pra direita. Não, não, deitado!

    B- Como vou dar passos deitado?

    A- Tente, não custa nada. Levante o braço esquerdo, dê uma giradinha de 127 graus.

    B- Como faço isso?

    A- Assim ó. Agora caia em cima de mim, isso assim, do lado inverso. Agora levanta e anda.

    B- Pra onde?

    A- Pra direção de onde levantou.

    B- Eu tenho medo. Mas não quero viver com medo.

    A- Só pagando pra ver.

    B- Pagando com o quê?

    A- Com a própria vida.

    !36

  • B- Vamos?

    A- Vamos.

    Diálogo VI – DA SENSAÇÃO DE REVIVER PRECISAMENTE O QUE JÁ FOI VIVIDO

    A- Esquisito...

    B- Você está me julgando por não fazer sentido.

    A- Está vendo aquela parede ali no fundo? Todo mundo olha pra ela e não vê sentido.

    B- Eu não vejo sentido algum.

    A- Olhe mais de perto.

    B- O que tem?

    A- É sua.

    B- Minha?

    A- É.

    B- Como assim?

    ...

    A- Aí está escrita toda sua história.

    B- Eu consigo ver, consigo ver: Consigo ver Belinha sentada tomando seu sorvete, o de cereja, aquela que ela gostava. Olha minha mãe, aqui ó, sempre preocupada com sua imagem no espelho. Ah! Eu consigo ver o efeito das coisas no tempo?

    A- Consegue.

    B- Como num filme?

    A- Melhor. Você consegue entrar em cada trecho que você quiser, basta dizer o nome que quiser, ou a data, o ano ou até mesmo o momento.

    B- Mas consigo reviver também o que quiser?

    A- Já não é suficiente só olhar?

    B- “O dia em que Belinha foi ao mar pela primeira vez”. Está vendo ela ali, ali ó, é ela,

    !37

  • Belinha. Eu coloco o seu vestido de rendinha, todo bonitinho, está vendo? Aquele ali, preto e branco.

    A- Existe renda preta?

    B- Ela anda o caminho todo olhando para o chão, ela não sabia que o mar existia, nunca tínhamos mostrado foto, nem nada, não deixamos que ela soubesse da existência do mar. Queríamos que fosse um momento especial, como receber um presente de uma coisa que você nunca imaginou que pudesse sequer existir, era isso que queríamos. Ela achou que o presente do dia tinha sido o vestido de rendinha, esse aqui ó, o preto e branco. Ela ficou brava que levamos ela ali naquele chão de terra, olha ela com cara emburrada, por causa do pó subindo na parte preta do vestido, na parte branca também, mas da parte branca a gente não vê que sujou. Olha agora, presta atenção, ela vai toda quietinha, olhando para o chão, observando cada pó que sobe em seu vestido e aí ela ouve um barulho grande, aquele barulho que vem de uma concha, aquela concha que toda vó dava e a gente punha no ouvido, sabe? Ela ouve esse barulho e levanta a cabeça. Olha lá, olhou pra mim, fez aquela boca torta pra baixo, dos dois lados, de quando a gente não está feliz e chorou.

    A- De medo?

    B- De medo.

    Diálogo VII – DO AZAR DO JOGO

    A- Sabe, eu já tive medo.

    B- Já?

    A- Várias vezes.

    B- Mas você parece tão seguro.

    A- Eu pareço muita coisa, mas nunca sei o que sou de fato, sei muitas coisas também.

    B- Engraçado.

    A- Eu?

    B- Não, as coisas. Outro dia eu precisei buscar uma rosa lá no quintal do lado de fora, uma rosa. Minha mãe precisava de alguma coisa pra enfeitar a prateleira da sala. Eu cheguei no canteiro e vi rosas de todas as cores, azuis, vermelhas, amarelas.

    !38

  • A- Qual delas você escolheu?

    B- Nenhuma.

    A- Por quê?

    B- Não sei, minha mãe ficou brava e acabou enfeitando a prateleira com uma santa que ela ganhou no bingo da paróquia.

    A- Você joga?

    B- Minha mãe joga, mas eu jogo também, sempre fui de jogar.

    A- Que jogo?

    B- Qualquer jogo que seja possível jogar.

    A- Eu tenho um jogo pra gente. Está vendo aquela folha pendurada naquela árvore? É a única folha que existe, uma folha única, uma folha assim ó, bem só, a mais esverdeada de todas, aquela lá, mais clara, tem uma certa luminosidade dela.

    B- Aquela?

    A- Pega ela lá.

    B- Desde quando isso é um jogo?

    A- O jogo é você achar a folha.

    B- Mas você já me mostrou!

    A- Mostrei.

    B- Então não é mais jogo.

    A- Continua sendo até você achar.

    B- Então! É aquela.

    A- Então se é aquela, vai lá buscar.

    B- Pra quê se já é aquela?

    A- Então se realmente é aquela, quero ver em minhas mãos.

    B- Aquela.

    !39

  • A- Prova.

    B- Nossa!

    Personagem vai até a árvore e volta com a folha.

    B- É essa?

    A- Não.

    B- Mas você me apontou essa.

    A- É aquela.

    Personagem vai novamente e volta com outra folha e entrega.

    A- Não.

    B- Essa é a mais brilhante!

    A- Você está enxergando errado! A brilhante é aquela.

    B- Esta, pronto. Ela estava escondida atrás de outras folhas, umas menos brilhantes.

    A- E daí?

    B- E daí mesmo.

    Diálogo VIII – DE UM ENCONTRO E DO RECONHECIMENTO.

    B – Por que você veio?

    A – Eu lá tinha alguma opção? Você não se lembra mesmo de mim, né?

    B – Não.

    A – Já vim aqui antes.

    B – E o que falamos?

    A – Nada com nada.

    B – Então não falamos nada?

    A – Não, falamos nada.

    B – Nada, isso que eu disse.

    !40

  • A – Não, nós falamos alguma coisa, mesmo sendo nada.

    B – Mas então que raio falamos?

    A – De um tal trovão.

    B – Paradisíaco?

    A – Que importa a raiz de um trovão? Ele vem e pronto. E a gente se acostuma com ele.

    B – Por que você voltou?

    A – Já disse que não tinha opção. Mas como você não se lembra de mim, então não faz a menor diferença se voltei, não é?

    B – Quantas vezes você já veio?

    A – 3.768.302 vezes.

    B – Puta que pariu!

    A – A sua!

    B – Minha o quê?

    A – Mãe!

    B – Que pessoa! Que pessoa! Quer dizer que nós já nos conhecemos?

    A – Opa! De outras Carnavais. Teve um carnaval nosso nos lençóis maranhenses que foi maravilhoso.

    B – Ai que saudade de um lençol.

    A – Eu te trouxe um da última vez que vim.

    B – E cadê ele?

    A – Eu vou lá saber onde estão suas coisas?

    B – Mas o que falamos? O que eu falei? Eu queria alguém que me falasse as coisas que eu falei.

    A – Só você sabe as coisas que você falou.

    B – Não sei. Você disse que veio aqui mais de 3 milhões de vezes e não se lembra de

    !41

  • nada.

    A – Nada.

    B – Nadica de nada?

    A – Nadica de nada. Tive uma prima uma vez que se chamava “Nadica”. Eu só lembro das coisas que trocamos.

    B – O que trocamos?

    A – Lençois, carnavais.

    B – Mas trocamos palavras também, como estamos fazendo agora, não?

    A – Trocamos. Mas não é o que lembro. Eu só lembro das nossas trocas.

    B – Como você é estranho!

    A – Claro que sou, pessoa. Olha pra mim. Você acha mesmo que eu ia conseguir ficar por lá? Por isso eu venho pra cá e fico com você.

    B – E depois você volta?

    A – Para onde?

    B – Sei lá. Para onde você vai quando vai embora daqui?

    A – Eu volto.

    B – Eu já entendi que você volta, mas para onde?

    A – Eu vou lá saber para onde vou. Me levam sempre para algum lugar para falar com pessoas como você.

    B – Mas...

    A – Chega de perguntas. Quais são as trocas de hoje?

    B – Não tenho nada aqui.

    A – O que é isso?

    B – Uma foto.

    A – De quem?

    !42

  • B – Da minha mãe.

    A – Me dá essa foto.

    B – Não posso.

    A – São as regras do jogo. Sempre há de haver uma troca! Sempre!

    B – Essa foto não!

    A – Quero essa foto! Agora!

    B – Não.

    A arranca a foto da mão de B.

    A – Olha ela!

    B – O que você vai me dar em troca?

    A – Sua mãe.

    !43

  • 8.3 Rider Técnico

    RIDER TÉCNICO

    Espetáculo: Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio Companhia Ruídos de Arte - São Paulo/SP - Brasil Direção: Artur Ramos - Texto: Diego Antunes Contato:

    [email protected] Artur Ramos - (11) 95989-0557 Diego Antunes - (11) 95144-6764 Victor Hugo Sorrentino - (11) 97195-8421 Rafael Sandoli - (11) 99123-0078

    Espaço: Teatro, auditório, sala multiuso, área comum. Dimensões mínimas: 4m x 6m

    Cenografia: O espetáculo se desenvolve sobre o palco vazio, sem qualquer cenário. Não há portanto necessidade de tempo antes do espetáculo para montagem de cenografia.

    Sonorização: O espetáculo não faz uso de trilhas ou equipamentos de som, ele se desenvolve somente com os sons realizados em cena pelos atores. O uso de microfones pode ser necessário a depender das características do espaço em que ocorrerá a apresentação.

    Iluminação*: - (7) refletores tipo PAR64 ou PC

    *O espetáculo permite adaptação para ambientes com disponibilidade apenas de luz geral ou luz natural, sendo os refletores utilizados somente nos ambientes em que estiverem disponíveis.

    Mapa de luz:

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    Equipe: 9 pessoas: 1 diretor, 7 atores, 1 operador de luz

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    mailto:[email protected]

  • Release: Neste espetáculo, que inaugura as atividades da Cia. Ruídos de Arte, um indivíduo mergulha na sua própria (in)consciência e aborda, através de diálogos fragmentados e simbólicos, diversos aspectos de sua personalidade e individualidade diante do mundo, da família e de si próprio. Surgido como resultado da primeira etapa de uma pesquisa sobre o inconsciente do autor em conexão com o inconsciente coletivo do público, Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio convida a se envolver e se identificar com os dilemas de um personagem que em sua essência é um espelho de todos nós.

    Ficha técnica: Ruídos do Inconsciente - Parte I: O Espaço Vazio Direção: Artur Ramos Texto: Diego Antunes Elenco: Victor Hugo Sorrentino, Diego Antunes, Rafael Sandoli, Gustavo Panoni, Mariana Bueno, Julia Rosa e Luitha Miraglia Duração: 50 minutos Apoio: Oficina Cultural Oswald de Andrade

    Fotos:

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