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Rússia vai às Compras

PEDRO ULSEN

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Conhecer a Rússia sempre foi pra mim um sonho. Me lembro que, desde

jovem, ouvia falar sobre as grandes revoluções, a história, a literatura, a arte

russa. E também sobre pontos turísticos mundialmente famosos, Praça

Vermelha, Kremlin, Catedral de São Basílio, Palácio de Inverno, Praça

Dvortsovaya. Como seria este país?

Mas eu queria ver com meus próprios olhos. Li muito sobre a Rússia. Me

cerquei de tudo o que podia. Mas também deixei bastante espaço para a minha

própria descoberta. Eu nunca fui de confiar totalmente em tudo o que leio.

Nunca gostei também de confiar em tudo o que ouço. Todos sabemos que,

estando cerceados pelo modelo ocidental, nunca tivemos acesso a

informações confiáveis sobre aqueles lados. A ideologia e a manipulação de

informações não me deixam exagerar.

Para mim não! Tudo era um grande mistério, e eu o desvendaria. Sabia que um

dia estaria lá e veria tudo com meus próprios olhos.

Na época, outubro de 2006, eu morava na Finlândia, onde trabalhava e fazia

intercâmbio. O plano era conhecer São Petersburgo e Moscou, e já me sentia

próximo destas cidades tão diferentes. Com algum dinheiro no bolso, para

alcançar a vizinha Rússia, bastava um trem e um visto.

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Na embaixada russa, em Helsinque, capital da Finlândia, não se pode entrar

para pedir o visto. Todos aguardam do lado do fora, faça chuva ou sol. Em uma

manhã cinzenta e fria, cheguei ao endereço às 6h30. No portão, uma placa

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indicava, em inglês, que os pedidos são recebidos das nove horas ao meio-dia.

A fila não era longa, tinha apenas 11 pessoas, e logo me animei.

Mas, o dia não era de sorte. A todo momento russos e mais russos chegavam

e passavam na frente de todos: tinham prioridade. Tantas outras vezes,

mulheres com bebês tinham total preferência, eram sempre auxiliadas com

seus carrinhos, malas, bebês: a fila não andava. Passou uma hora, duas horas,

e eu via claramente minhas chances de conseguir aquele visto cada vez

menores.

Meio-dia em ponto. O portão é trancado. Quem entrou, entrou. Tchau aos

demais.

Tive que dormir na cidade, na casa de um brasileiro.

Dia seguinte enfrentei o mesmo problema. Consegui entrar no prédio às 11h53,

apenas sete minutos antes do fechamento do portão, como que por um

milagre. Encaminhei a papelada, deixei meu passaporte lá. Para isso, já havia

confirmado reserva em um albergue de São Petersburgo, Sem isso, sem visto.

Saí, infeliz com a burocracia e a dureza do tratamento. Eu estava lá porque

queria conhecer o país deles, mas a primeira impressão era meio amarga.

Prazo: cinco dias.

Voltei, com meu protocolo e o comprovante de que paguei, no banco, a taxa

(58 Euros).

Mais fila, que não anda.

A passagem já estava comprada para o dia seguinte, 7h27, trem finlandês

Sibelius. 11h45 e tentei entrar, pegando carona indo junto com a pessoa que

estava à minha frente – tinha certeza que 15 minutos não me trariam nem visto

nem viagem no dia seguinte.

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Um grito, em russo, no interfone, me fez recuar. Achei melhor não criar

confusão.

11h55. O portão seria fechado e eu perderia meu visto. Então lembrei que tinha

em mãos o recibo do banco, comprovando que há havia feito a solicitação.

Agitei-o, procurando ser visto. Um grito no interfone, inteligível, e resolvi

arriscar.

Entrei. Ufa!

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O caos é a primeira coisa que chama minha atenção. Sozinho nas ruas,

observo o trânsito, sem nenhuma organização, gente pra todo lado, buzinas,

bondes: enlouquecedor. Caminho um pouco, à barulheira dos carros soma-se o

ritmo de uma cidade que está em reformas. Para todos os lados, britadeiras,

caminhões, muita gente trabalhando nas ruas. Inúmeros prédios estão sob

reforma, as ruas estão sendo refeitas. Toda a cidade está em transformação.

Um enorme prédio antigo, todo embalado em plástico transparente (também

em reforma), chama minha atenção. Resolvo passar em frente. Há uma

enorme placa, inteligível para mim, que provavelmente explicava o que era o tal

prédio. Na entrada, um segurança, que, ao me ver, caminha em minha direção.

– Bom dia, senhor – ele me diz em um inglês péssimo.

– Bom dia – respondo.

– O senhor não gostaria de conhecer o nosso museu?

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– E está aberto? – pergunto, curioso.

– Sim, está! Entre, por favor, é o Museu Ártico e Antártico.

Aceito o convite. Entro. Lá dentro, tudo vazio. Compro os ingressos com uma

simpática senhora gordinha, blusa de lá vermelha e preta, cabelos brancos.

Deixou o tricô de lado, sorriu e me passou o ingresso. O segurança, meio sem

graça, me questiona:

– Posso acompanhar o senhor pelo museu?

Estranho a pergunta.

– É que estou estudando inglês, e gostaria de conversar em inglês com o

senhor, para praticar.

O homem começa a falar, falar sem parar. Seu inglês é péssimo, mas sua boa

vontade insuperável. Escuto suas explicações sobre as peças do museu por

alguns minutos. Ouço sobre o urso empalhado, as expedições russas, e a

fauna do Ártico. Quando achei que já tinha escutado o bastante (e minha

paciência estava meio curta), arrumo uma desculpa, vou ao segundo andar e o

deixo lá embaixo. Preferia ficar sozinho.

Subo as escadas, em curva, piso liso vermelho escuro, e observo mais

algumas peças. Uma funcionária, de nome Natali Kozlova indicado no crachá,

se oferece para me guiar na visita. Só tem um problema: de inglês ela só sabe

dizer:

– No english.

Como eu também não sei nada de russo, nada feito.

Reparo que, no alto de uma parede, ao fundo de uma enorme sala retangular,

há uma pintura muito bem feita, linha reta na parte inferior e recorte circular na

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parte superior, forma de meia-lua. A imagem retrata Lênin reunido com outros

seis revolucionários. Há uma mesa entre eles e sobre ela alguns papéis.

Ao sair do museu, o segurança volta ao meu encontro. Oferece, com muita

satisfação, um livro em inglês sobre o acervo do museu. Diz que estão

arrecadando dinheiro para a reforma. Me solidarizo com sua causa e pergunto

o preço.

– 3000 rublos, senhor – ele responde, empolgado.

Para mim é caro. Agradeço, desejo boa sorte e me vou.

Ao sair, vejo que Natali Kozlova também está saindo do museu. Magrinha,

branquíssima, cabeça baixa mirando o chão. Ela aponta para o mapa que

tenho em mãos, querendo me perguntar para onde eu vou. Também no mapa

aponto que estou a caminho do Museu Dostoiévski, logo ali ao lado. Ela aponta

para si, e para frente. Entendo que ela também vai pra lá. Caminhamos apenas

alguns metros e vejo o museu – fechado para reforma. Com um aceno de mão,

sem dizer nada em russo ou inglês, ela se despede e vai.

Do outro lado da rua um grupo de hare krishnas batuca e agita na calçada:

Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna, Krishna, Hare Hare!

“Aqui também tem krishnas!” – penso, surpreso.

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A Praça Dvortsovaya é, hoje, um dos pontos turísticos mais visitados de São

Petersburgo. Lá tremula, triunfante, a bandeira russa sobre o museu

Hermitage. Em seu centro, está erguida a Coluna de Alexandre, em

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comemoração à vitória sobre as tropas de Napoleão, em 1812. No outro lado,

um enorme prédio, meio escondido pelos andaimes, colocados para reforma.

Nada de jardins nem árvores. Parte da praça é pavimentada com asfalto. Outra

porção, mais central, é calçada com paralelepípedos pretos, colocados em

desenhos circulares dentro de quadrados de aproximadamente oito metros

quadrados. Estes quadrados, por sua vez, são separados uns dos outros por

pranchas de pedras marrons, ásperas.

Bem em frente ao museu, uma charrete escandalosamente cor-de-rosa fica à

disposição dos turistas, que são muitos. De quando em quando os cavalos bem

tratados tomam umas chicotadas e levam os gringos para um passeio.

O movimento é menor que o esperado por mim. Além dos turistas, algumas

pessoas passam por ali. Homens com malas nas mãos, mulheres apenas

conversando, jovens reunidos.

Estar pessoalmente naquela praça me causa emoção. Este relato, gravado no

momento em que estive lá mostra um pouco do que senti:

Praça Dvortsovaya! Que loucura! Local onde ocorreu o Domingo Sangrento em

1905 e a rendição do governo provisório em 1917! Agora, jovens aí comendo

uma batatinha, tomando uma cerveja. Essa é a famosa praça que está nos

livros de história! Esse é o lugar onde aconteceu muita coisa que mudou o

mundo!

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Naquele domingo de janeiro de 1905 uma manifestação pacífica marchou em

direção ao Palácio de Inverno do czar Nicolau II, na Praça Dvortsovaya.

Queriam entregar uma petição assinada por cerca de 135 mil trabalhadores

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que reivindicavam reforma agrária, tolerância religiosa, fim da censura, e a

presença de representantes do povo no governo. Há quem diga que durante a

caminhada músicas religiosas eram cantadas, e também a canção nacional

“Deus Salve o Czar”.

A crise política não era novidade. O Império Russo vivia uma rápida transição

do feudalismo para o capitalismo. Os servos estavam libertos das suas

obrigações com seus senhores, mas a miséria era profunda. A construção da

ferrovia trans-siberiana (iniciada em 1891) e as mudanças econômicas atraíram

o capital estrangeiro e estimularam a industrialização. Junto com ela as classes

operária e média cresceram e se diversificaram. E eram favoráveis a reformas

democráticas no sistema político. A nobreza feudal, e o czar, quiseram manter

o absolutismo russo e sua autocracia a qualquer custo. A crise se agravou com

o péssimo desempenho das forças russas na guerra russo-japonesa (1904-

1905), que intensificou essas contradições e precipitou mais revoltas.

Naquele domingo, diante da manifestação, Sergei Alexandrovitch, grão-duque

do Império, deu ordens para que a guarda do czar não permitisse que o povo

se aproximasse do palácio, e mandou-os dispersar a manifestação. O povo, no

entanto, não se mexeu. A guarda, ao ver que não era obedecida, disparou

contra a multidão. A manifestação rapidamente foi dissolvida, mas deixou

centenas de mortos. Este domingo, o Sangrento, foi o estopim para o início de

um movimento revolucionário, que se fortaleceu com a indignação popular com

a atitude do czar.

Doze anos depois a mesma Praça Dvortsovaya era palco de novos conflitos. A

crise generalizada não havia sido resolvida, e estava agora agravada com a

participação da Rússia na I Guerra Mundial. Em março de 1917, e depois em

outubro, o poder foi dominado pela organização popular, que deu fim ao

absolutismo dos czares.

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Um passeio, que tal? Nesta São Petersburgo de tantas histórias, o fim da

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tem deixado a Rússia tinindo para

o turismo. Por onde ando, tudo está sendo restaurado, é impossível não notar

que tudo está mudando. Pedreiros trabalham por toda parte, durante o dia, à

noite. Embora ainda seja difícil encontrar pessoas que falam inglês na Rússia,

os turistas não esperam, se organizam e avançam. Há muitos, em todos os

lados, de todas as partes do mundo. Todos querem descobrir a magia da

cidade.

Aliás, se tem uma imagem que me remete à Rússia, e uma lembrança que

carrego, é o amanhecer em São Petersburgo, a visão dos raios solares

iluminando aos poucos o dia que chega. Uma rua meio caótica, com muitas

placas de propagandas, construções antigas, poeira no ar, operários

restaurando prédios, outros refazendo sistemas de água e de esgoto nas ruas.

Sempre lembro da manhã nascendo e eles se empenhando na reforma,

reconstruindo tudo. Não que eu ache que esta é a imagem do progresso, mas

é a imagem da mudança pela qual passa a Rússia neste século XXI. Com

estas mudanças, os mais jovens vão deixando para trás a vivência e a

experiência dos mais velhos, que enfrentaram guerras e outras provações. O

consumo avança, domina e atrai tudo o que pode.

O turista pode conhecer toda a cidade à pé ou de metrô (são 59 estações),

transporte eficiente e barato. A avenida Nevskiy Prospekt é a grande espinha

dorsal da cidade. No seu início está o rio Neva, e sempre próximo a ela, pontos

turísticos famosos, em uma rica concentração de palácios, praças, museus e

catedrais.

A metros da Praça Dvortsovaya, vou à Praça Dekabristov, em frente à sede da

Marinha russa. Aqui, é comum encontrarmos grupos de jovens reunidos,

muitas vezes bebendo cerveja, e jogando conversa fora. Há outros que

preferem ler. Certa vez quando passei por lá fiquei surpreso quando vi três

homens deitados na grama. Pensei que eram mendigos (o que praticamente

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inexiste lá), mas não. Eram trabalhadores, vestidos com uniformes azuis.

Estavam deitados, todos lendo, cada um com um livro na mão.

Outra atração exuberante é a Catedral de Santo Isaac, na Praça

Isaakievskaya, pertinho de onde estávamos. Este verdadeiro colosso religioso

impressiona pelas suas dimensões (exageradas) e bom gosto. Foi construída

em 1818 pelo francês Auguste de Monferrand, em concurso promovido pelo

czar Alexandre I. A cúpula é dourada, bem ao centro dela. As paredes têm tons

de cinza e marrom. Nas laterais de acesso (que são quatro), enormes pilares

em estilo grego sustentam os portais das entradas, triangulares. A beleza e a

opulência me fazem pensar que catedrais similares só mesmo no Vaticano.

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Seguindo a mais movimentada avenida da cidade, a Nevskiy Prospekt, observo

um pouco mais os russos e a cidade deles.

Em toda parte é nítido: comunismo que nada. Até assusta. São Petersburgo é

uma cidade capitalista normal, cosmopolita. E tem um ar de Europa. Há

sempre muitos jovens, dia e noite. Grande parte deles freqüenta praças

públicas, assim como pessoas mais velhas. Vejo muita gente reunida,

adolescentes bebendo, casais namorando, idosos dando migalhas aos pombos

também há.

Os jovens andam muito bem vestidos, se arrumam uns para os outros. As

mulheres usam botas, saias longas ou jeans da moda. Mantém o cabelo

arrumado, vestem marcas de grife. Os homens, jeans, tênis e camisetas de

grife também. Tenho a sensação de que eles trabalham para consumir.

Aproveitando a caminhada, entro em uma loja, a Nevskiy Souveniers. Há

muitas opções de presentes: bonecas, quadros, espelhos decorados,

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matriochkas. Sou recebido por uma atendente, Anna, rosto largo, redondo,

olhos azuis bem claros, 1,70m, cabelo na altura dos ombros, mãos grandes.

– Pois não?

– Estou dando uma olhada nas opções para presente – digo.

Ela fica em silêncio, aguardando.

– Estou surpreso em observar o consumismo aqui na Rússia. Posso ver

nitidamente que comunismo aqui, ou socialismo, nunca mais.

– Já foi o suficiente – ela responde. – Meus pais falam que não foi uma boa

época.

– E agora é uma boa época? – pergunto, curioso.

– Sim, agora temos liberdade, e podemos comprar o que quisermos.

Trabalhamos e compramos o que quisermos – responde, firme.

– Você sabe, há um jornalista, ele é dos Estados Unidos, David Remnick, ele

escreve bastante sobre a Rússia e também sobre seu presidente, Putin.

– Ele não sabe nada sobre a Rússia. Ele não sabe nada sobre a gente. Não

conhece nossa cultura, vê a gente com olhar de americano.

Sem dinheiro, saio da loja e vou andar. Pelas ruas vejo mais obras. Tudo está

mudando, e muito rápido.

Embora os russos em geral sejam bem brancos, muitos com olhos e cabelos

claros, não há uma aparência tão homogênea quanto a dos dinamarqueses,

por exemplo, como certa vez citou Gay Talese: “Vou à Dinamarca e vejo em

toda a parte a mesma pessoa”. Na Rússia a heterogeneidade é maior. De

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negro só vi um único rapaz, bem arrumado, terno e pasta nas mãos, devia ter

uns 30 anos.

Lembro do Brasil. Percebo que na Rússia é raríssimo ver mendigos, ou

pessoas pedindo dinheiro. Vejo algumas vezes velhinhas vendendo panos nas

ruas: cachecóis e tocas. Vi um grupo delas, baixinhas, cabelos brancos,

curvadas. Mas realmente me impressionou não ver gente jogada, miséria nas

ruas, crianças ou jovens pedindo dinheiro aos outros. Devem estar melhor que

nós.

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Entro em um mercado e começo a reparar nos preços. Lembro do bilhete de

metrô, que sai por 15 rublos (aproximadamente R$ 1,20). Observo um pacote

de pão: 25 rublos. Coca-cola em lata: 20 rublos. Maçãs: 55 rublos o quilo.

Retomo meu passeio. Seguindo pela Nevskiy, na esquina com o canal Moika,

visito o Palácio Strogonov, um palacete cor-de-rosa onde viveu o conde que

inventou o estrogonofe. Seu interior é fechado aos turistas, mas no pátio

interno é possível comer no restaurante que oferece o legítimo prato russo.

Perto daqui, visito ainda duas grandes construções. A primeira delas é a

Catedral de Kazan, construída em 1801 e inspirada na Basílica de São Pedro,

de Roma. Lá dentro, muitas senhoras – com lenços sobre suas cabeças –

acendem velas e oram.

Neste dia finalizo esta caminhada com uma visita à Igreja do Salvador sobre o

Santo Derramado. Esta exótica construção, de 1881, foi erguida em

homenagem ao czar Alexandre II, morto em um atentado quando passava com

sua carruagem neste local. A catedral tem cúpulas de cores psicodélicas, que

parecem ter saído de histórias de conto de fadas. Há cores laranjas, azuis,

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marrons, verdes, douradas, brancas. É uma das mais belas catedrais da

Rússia, tanto por fora quanto por dentro, onde é toda revestida de mosaicos.

Além disso, é um dos símbolos mais representativos de São Petersburgo,

recentemente restaurada por 27 anos.

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Ainda nas ruas, se há outra coisa que surpreende em São Petersburgo, são

suas praças. Há inúmeras, amplas, bem cuidadas. Em algumas há catedrais,

colossais de grande, em outras, palácios, teatros, monumentos, estátuas. Mas

cada uma tem suas próprias características, seus próprios arranjos de árvores,

plantas, chafarizes. Todas são freqüentadas, estão sempre cheias. A vida

social por lá, praticada diariamente nestes espaços, é comum. Pessoas de

todos os cantos se reúnem, brindam e bebem cerveja, vodka. Há casais de

namorados, senhores, senhoras.

Muitas delas tem estátuas de Lênin. Enormes, que: apontam em alguma

direção, discursam, lêem, convocam todos à revolução. O regime soviético se

foi mas elas permanecem. Em outros espaços e construções públicas a coisa

mais comum de se ver são os símbolos comunistas. A foice e o martelo estão

em todo lado, em pinturas, esculturas, construções. A história é viva, e faz

parte do cotidiano das pessoas.

Bem em frente à estação de trem Finlândia, por exemplo, onde Lênin

desembarcou em 1917 para comandar a Revolução de Outubro, a praça tem

uma dessas estátuas do líder da Revolução Russa. Está com a mão esquerda

no casaco, altura do peito, e a direita apontando pra frente, dedos esticados,

como quem faz um discurso. O teto da estação de trem, aliás, tem uma pintura

belíssima, enorme, com o rosto de Lênin em uma bandeira vermelha, em um

confronto travado com outro grupo. No dia em que estive lá, ironicamente ou

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não, havia um grupo de crianças com seus pais. Os pequenos tomavam milk

shake do McDonald´s, bem aos pés do líder Lênin.

E por falar em espaços públicos, ideologia e conflitos, aproveitei para visitar o

memorial construído em homenagem aos soldados russos da II Guerra. São

estátuas, pinturas, artefatos, música, em memória daqueles que deram suas

vidas pelo país ou pela ideologia. Tudo é belo e artístico. Os russos adoram

arte.

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Em 1917, no calor das revoltas populares e da revolução que alteraria para

sempre os rumos políticos mundiais, foi ele quem deu o primeiro tiro que

sinalizou o início da Revolução Russa. Foi a partir deste sinal que os

revolucionários tomaram o Palácio de Inverno.

O cruzador Aurora já é um navio aposentado. Ajudou os bolcheviques a

dominar São Petersburgo e, anos mais tarde, foi um verdadeiro herói contra os

alemães, no cerco de 900 dias que estes mantiveram sobre a cidade, durante a

II Guerra.

Ancorado no Neva, principal rio da cidade, tornou-se museu. É, na prática, o

comunismo que virou museu.

Resolvo entrar. Ele está cheio de turistas, tão curiosos quanto eu. Observo

inúmeras bandeiras soviéticas, vermelhas, símbolos de foice e martelo

espalhados em toda parte. Tiro foto ao lado de algumas. Estar lá é como

mergulhar em um livro de história.

Há muitos quadros, medalhas, fotos e pinturas. Tudo representa ou exalta o

comunismo, ou registra conflitos ocorridos durante a Guerra Fria.

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Um senhor muito elegante, postura ereta, firme, trajes de militar, aborda os

visitantes. Resolvo conversar com ele.

– Com licença, o senhor fala inglês? – pergunto.

– Sim, meu jovem. Pois não? – ele responde, em inglês britânico.

– Reparei que o senhor recebe todos, conversa.

– Estou aqui para ajudá-lo. Gostaria de saber algo sobre o Aurora?

– Claro. Sobre a importância dele. – pergunto.

– Ah! O Aurora foi um dos mais importantes navios russos. Participou da

Revolução de 1917 e depois nos defendeu dos alemães na II Guerra.

– Certo. Reparei que o senhor fala muito bem inglês, e isso não é tão comum

aqui.

– É que o inglês sempre foi a língua internacional dos marinheiros.

– O senhor fez carreira na marinha?

– Sim, fiz.

– Se orgulha disso?

– Muito! Me orgulho muito, sempre lutei pela União Soviética – declara,

convicto de suas idéias e solícito às minhas perguntas.

– Já que o senhor comentou isso, tenho muita curiosidade de saber o que acha

do comunismo?

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– Olha, eu gostava daquela época, todos eram iguais. Não tinha distinção de

rico ou pobre.

– Você preferia o comunismo?

– Claro! Tínhamos melhores condições de vida, todos trabalhávamos pelo bem

comum, a coletividade era o importante.

– E agora o senhor trabalha aqui no museu?

– Trabalho. Mas a gente sofre com muita falta de verba. Eles não dão muita

importância pra gente.

– Senhor, eu sou do Brasil, e sou jornalista. Se importa se eu anotar o seu

nome? Quem sabe um dia escrevo sobre seu país.

Ele mesmo pegou um pequeno papel e escreveu, em alfabeto cirílico e latino:

Viktor Stepanov.

– Muito obrigado senhor. Se importa se eu anotar também seu telefone, para

contatá-lo, se um dia no futuro eu resolver escrever sobre a Rússia, para uma

reportagem no Brasil?

– Sinto muito, não passo o telefone.

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O Palácio de Inverno dos czares russos, instalado na Praça Dvortsovaya (onde

ocorreram as Revoluções de 1905 e 1917) abriga hoje o museu Hermitage.

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Ao redor da dinastia dos Romanov, czares que durante três séculos mandaram

e desmandam no Império Russo, cresceu uma corte entregue à festas,

gastanças e futilidades. Mas, que também admirava arte, literatura e teatro.

Embora a Revolução de 1917 tenha acabado com os privilégios da minoria, o

gosto deles pela arte já havia reunido um dos maiores acervos do mundo.

Muita coisa está no Hermitage.

Entrei disposto a ficar quatro ou cinco horas, para visitar pouco mais de 20

salas. Já sabia o caminho das pedras, não queria me perder. Deixei meus

pertences no guarda-volumes, com uma simpática senhora de óculos redondos

e cabelos longos, lisos, ralos e claros. Peguei minha câmera e, com a

permissão de fotografar, disparei centenas de fotos.

O Hermitage tem mais de três milhões de obras, em 1057 salas, espalhadas

em cinco prédios. É o terceiro maior museu do mundo, menor apenas que

Louvre (Paris) e Britânico (Londres). Seguindo meu roteiro, a surpresa vem a

cada sala. Uma é mais impressionante que a outra. Percorri seus corredores,

olhei muitos quadros e esculturas. Muitos nem suspeitam, mas lá estão em

exposição obras de Matisse, Picasso, Gauguin, Rodin, Cézzane, Monet,

Renoir, Van Gogh, Rembrandt, Leonardo da Vinci, Michelangelo, El Greco,

Goya, entre milhões de outras.

E na verdade todas estas obras de arte competem com a arquitetura e a

decoração das próprias salas do palácio. Há riqueza de detalhes em cada

canto, a decoração embeleza tetos, paredes, lustres, janelas. Há um apelo

muito forte à cor dourada, e em outros momentos as cores naturais de

mármores e outras pedras se destacam mais.

Indescritível.

Exausto de tanta informação, saí.

Fui visitar a Fortaleza de Pedro e Paulo. Para quem gosta de história, lá dentro

a catedral de mesmo nome guarda os sarcófagos com os restos mortais de

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czares e czarinas. A família de Nicolau II, o último Romanov, executada pelos

bolcheviques em 1918 em Yekaterinburg, na Sibéria, está lá.

Visitei também o museu da fortaleza. Uma exposição sobre a Inquisição,

“temperada” com canções de Sarah Brightman relembra o horror do período

das trevas. Para cada máquina de tortura, belas descrições, em russo e inglês,

como funcionava e para o que servia. Haviam sido trazidas da Alemanha,

Áustria, Itália e França. Saí de lá com o estômago em nó, e me arrependi de ter

entrado.

A prisão da fortaleza, a terceira das suas instalações, é para os amantes de

literatura. Em 23 de abril de 1849 o grande escritor Fiódor Mikháilovitch

Dostoiévski foi preso e permaneceu nesta cadeia, antes de ser mandado à

Sibéria. Hoje a prisão está sendo reformada e não é permitido visitá-la por

dentro. Suas paredes externas, cor mostarda, estão destruídas. Há alguns

detalhes nelas em quadrados de cor branca, e as portas de madeira têm listras

inclinadas nas cores branca e preta. Uma placa na parede, cores da bandeira

da Rússia, anuncia algo, provavelmente a reforma. Escrito em russo, não leio.

Há outro papel, colado à porta, com dizeres em russo e inglês: “Prisão fechada

para restauração”.

No dia 23 de abril de 1849, exatamente 96 anos antes do Exército Vermelho

avançar sobre Berlim e 158 anos antes de Boris Yeltsin morrer, Dostoiévski foi

preso por participar das reuniões de um grupo de socialistas utópicos, o círculo

Petratchévski, e condenado à morte. Ficou retido na prisão da Fortaleza de

Pedro e Paulo e, no momento do fuzilamento, teve sua pena alterada. Foi

mandado para a Sibéria. Cumpriu quatro anos no presídio de Omsk, sob

trabalhos forçados, e mais cinco como soldado na cidade de Semipalatinski.

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Dia de partir. Passo pela Praça Dvortsovaya (a famosa Dvortsovaya), e

observo os russos se empolgando com canções de amor no show do tenor

italiano Andrea Bocelli. Vou ao albergue fazer as malas.

Para Moscou há vários trens noturnos. O meu sai às 22 horas.

– Uma passagem por favor. – peço ao atendente.

Mostro Moscou no mapa. (Em russo, Mockba).

– E da mais barata. – completo.

A plataforma de embarque está lotada. Caminho calmamente até o vagão de

número 18. Estamos todos com roupas pesadas. Faz frio de cinco graus

centígrados. Quase todos são russos, há poucos turistas.

Sou facilmente notado. Mochilão de 85 litros nas costas, pochete, câmera

fotográfica. Sou turista. Uns me olham, outros não estão nem aí. Não são de

sorrir, por mera simpatia.

No vagão, deitamos em camas, não vamos sentados. Mas, mais barato que é,

o vagão é um grande quarto coletivo, sem divisões. O corredor: do lado

esquerdo do trem, mas não colado aos vidros. Seguindo o corredor, a cada

metro e setenta mais ou menos, dentro de cada vagão, os aposentos se

repetem. À esquerda do corredor duas “camas”, colocadas no mesmo sentido

do comprimento do trem. Uma na altura dos joelhos, e outra à altura dos

ombros, uma sobre a outra. À direita do corredor, quatro camas,

perpendiculares ao comprimento do vagão. Duas lado a lado, duas acima

destas. Devem medir 1,70m por 0,50m. Insuficientes para mim.

Me acomodo na cama de cima, e espio a janela. Oito horas de viagem e,

pimba! Estarei em Moscou.

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As pessoas demoram a se arrumar. Cada um pega um cobertor nas

prateleiras, eu pego o meu e aguardo, meio sentado, meio deitado. Antes

mesmo de estarmos acomodados, o trem parte.

Há gente de todas as idades, mas muitas senhoras e senhores. Fico em

silêncio curtindo aquele momento de realização, e lembro da minha motivação

inicial. Observo as pessoas. Conversam muito entre si. Gosto de escutar. Não

entendo nada mas me agrada estar lá naquele momento.

Tento dormir e não consigo. Tenho que dividir espaço com minha mochila. Há

muita gente roncando e o ar está abafado. Me distraio com a paisagem e meus

pensamentos.

Na chegada à estação, antes de desembarcar, reparo que todos dobram seus

lençóis e cobertores caprichosamente. Sem exceção, homens e mulheres,

deixam tudo arrumado e recolocado nas prateleiras do trem, para a próxima

viagem. A cena me faz concluir que há um sentimento de coletividade entre

eles.

13

Desembarquei sob chuva em Moscou. Já tinha o endereço do albergue

comigo, e um pequeno mapa, em cópia preto e branco, bem mal feito.

Peguei o metrô e com muita dificuldade consegui ajuda de alguém que falasse

inglês para me ajudar a encontrar a estação do albergue. Havia um grande

problema: a grafia do meu mapa estava em alfabeto latino, inteligível para eles,

que lêem em cirílico. Depois de abordar muita gente encontrei enfim um

homem, 40 anos mais ou menos, barba por fazer, baixo, olhos azuis bem

claros, que me ajudou. Falava um pouco de inglês, disse que estava

estudando. Perguntou de onde eu era.

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– Sou do Brasil.

Imediatamente, simpatizou comigo. Segui na mesma linha que ele. No vagão,

enquanto conversávamos, todos nos olhavam. Não gostei muito. Estava na

cara que todos sabiam que eu era de fora, e não sorriam simpaticamente.

Para fazer a baldeação ele me explicou:

– Você pega esta linha aqui, a cinza, e desce na estação Tsvetnoi Bulvar.

Ok. Peguei a linha cinza. Na estação Chekhovskaya, uma antes da que eu

desceria, a porta se abriu e fiquei no canto direito. Um homem veio em minha

direção, e de repente me pressionou pela frente, enquanto a porta ainda estava

aberta. Em instantes, senti outro homem me pressionando pelo lado esquerdo.

Estavam querendo me roubar, desgraçados! Senti quando o segundo colocou

a mão no bolso da minha calça, para pegar minha carteira, e reagi. Dei-lhe uma

cotovelada, agindo por instinto, e ambos saíram correndo, sem levar nada.

Fiquei puto, principalmente porque o vagão não estava muito cheio, e muitos

viram a tentativa de assalto, e não fizeram nada. Desci na próxima estação

ainda nervoso. Procurei um canto pra me acalmar.

A chuva reinava lá fora. Mas, cansado e com fome, não quis esperar. Saí em

busca do hostel com a mochila (pesando 14,7 kg) nas costas e mapa do

albergue em mãos. Pela ansiedade, me perdi, fiquei furioso de novo, tomei

muita chuva e a água começou a desfazer o mapa com o endereço do

albergue nas minhas mãos. De repente, perdido, achei uma estação de metrô.

Estava muito longe do albergue, esta era outra estação. Entrei e fiquei quieto.

Precisava me acalmar ou não conseguiria fazer nada, estava por minha própria

conta naquela terra que já me dava sinais de estranhamento.

Peguei novamente o metrô e desci de novo na Tsvetnoi Bulvar. Desta vez, com

mais calma (mas ainda sob chuva), tentei seguir as indicações do mapa. Com

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a ajuda de um jovem magricelo, vestido como roqueiro, achei o albergue

Godzillas.

A reserva já estava feita. Me apresentei, fui bem recebido por um inglês muito

simpático, de nome Oliver, que morava em Moscou há dois anos.

– Então fala português! – ele me disse, na língua de Camões, sotaque de

gringo.

– Claro! E você também, pelo jeito – respondi, mais animado.

– Sim, morei quatro anos no Brasil.

– Foi bom?

– Ótimo. Até hoje sinto falta das mulatas.

14

Saí às pressas do albergue e fui pra Praça Vermelha! A famosa Praça

Vermelha, palco de tantos desfiles militares, epicentro do embate ideológico

bilateral de proporções mundiais. Colocaria meus próprios pés lá e conheceria,

por mim mesmo, a tal Praça Vermelha.

Desci a rua Mokhovaya, entrei à direita no fim dela e ali, atrás do Museu de

História Nacional, não compreendi como alcançá-la. Então percebi que na

lateral do museu, sob dois grandes portões de ferro poderia acessá-la.

Entrei, feliz. Após alguns meses trabalhando na vizinha Finlândia, conseguira

juntar meu próprio dinheiro para realizar este sonho. Neste momento, afinal, eu

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estava por mim mesmo, sozinho e sem ninguém mais, vivendo a grande

satisfação de estar lá.

Me surpreendi com a Catedral de São Basílio, era o que eu mais queria ver.

Uma das caras que a Rússia tinha pra mim, antes de conhecê-la. O exotismo

único da catedral, suas cores psicodélicas e formato irregular. Ver esta igreja

era como estar frente-a-frente com a meta da viagem.

Para quem nunca viu, a Catedral de São Basílio possui cúpulas em forma de

cebola, uma branca e azul, outra verde e amarela, outra vermelha e verde,

outra branca e vermelha, e outras mais. A mais alta é dourada. E, cada uma

destas cúpulas está aparentemente sobre torres próprias, mas que se juntam

discretamente em suas porções mais inferiores.

Também olhei bem de perto o Kremlin, os muros vermelhos, as paredes

internas do prédio amarelas, as torres com enormes relógios. Peguei carona

com um grupo de turistas que ouvia atentamente um guia turístico,

devidamente contratado. Colado ao muro, e acessível pela praça, a tumba de

Lênin convidava para uma visita, gratuita.

Do lado oposto desta fortaleza política, entro na antiga Loja de Departamentos

do Estado, GUM, que agora abriga as mais refinadas lojas de grife, como

Prada, Gucci, Tiffany, Benetton e Dior. Se este era o berço do comunismo,

agora é o terreno do capitalismo, concluo.

Ao sair da Praça Vermelha, uma situação inusitada. Bem no portão, ao lado do

Museu de História Nacional, um senhor baixinho, pele do rosto frouxa,

enrugada, barriga saliente, sem óculos, nem barba, sapatos desgastados,

casaco e boina marrons. Com um mega-fone, uma placa amarela com dizeres

em vermelho (e em russo), discursa. Dois policiais acompanham, meio de

perto, a manifestação, mas apenas observam. Não entendo o que ele quer

dizer, mas fico curioso. Observo, tento entender algo. Então vejo alguns jornais

em suas mãos, me aproximo e peço um. Ele me dá, me olha nos olhos, mas

não entendo nada. Pelos símbolos, cores do jornal e fotos, concluo que é algo

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sobre o comunismo. Com a tradução feita depois pelo recepcionista do

albergue, descubro o que ele pede: comunismo novamente.

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Rosa Maria Tolón Marín é natural de Cuba. Pianista, leciona música na

Universidade do Sagrado Coração, no interior de São Paulo. Depois de se

dedicar aos estudos do instrumento em seu país, foi contemplada com uma

bolsa do governo russo e doutorou-se em Moscou, em uma das mais exigentes

instituições de música do mundo. O que ela conta sobre a Rússia é, além de

vivo, revelador. Acompanhe:

– Rosa, hoje em dia, a gente vê muita reforma na Rússia, o turismo crescendo,

a economia mudando, de comunismo nada se vê, a não ser o turismo e o

consumismo. Sei que a pergunta é muito genérica, mas o que procuro é um

relato, uma impressão sobre como você vê a Rússia? Você morou lá no início

da década de 1990, não foi?

– Morei lá de 1989 a 1994. Em 1988, fui pela primeira vez. Em 1989, fiquei

para começar o doutorado. Fui fazer o que vocês chamam de doutorado

sanduíche. Então, peguei o período que muitos chamavam de comunista, mas

não era, nunca foi, seria um socialismo em fase avançada, o nível de vida era

alto. Não havia muita variedade, o consumismo ainda não era muito, mas do

ponto de vista cultural, o nível era muito alto. A gente via uma população com

muita superação, aprendizados e conhecimento. O nível social da família

também era alto. Não sou economista nem nada, mas havia grande

quantidade, mas as coisas eram muito parecidas. Os sapatos eram parecidos,

as roupas eram parecidas. A qualidade era alta e a variedade era pouca.

Naquela época, muitos já estavam querendo virar consumistas. Porque eles

tinham aparelhos de TV, ventiladores que eram feitos para durar e eles tinham

de tudo. Quando caiu o sistema, a opinião ficou dividida, e de repente, pobreza.

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Caiu o nível, mas eu sempre notei que tinha abundância. Não faltava nada de

jeito nenhum. Você percebia que estava morando entre pessoas honestas em

qualquer lugar. Duas coisas chamavam muito minha atenção. Nos mercados,

era costume as mães colocarem seus bebês em carrinhos que não entravam

no mercado! Ficavam lá fora, e ninguém tocava nos bebês, e isso era normal,

deixar eles lá. No verão, eles também deixavam as bicicletas, eu mesma tinha

a minha bicicleta, e não trancava nada, na entrada de qualquer mercado,

teatro, e voltava e estava lá! [risos]

– Havia sentimento de coletividade?

– O sentimento de coletividade era muito grande. Quando caiu o sistema, a

gente via muita alegria das pessoas mais jovens, de ver produtos norte-

americanos, como se tivesse chegado a liberdade, mas a geração velha chorou

muito. Na época o consumo era quase todo de produção nacional, não era tão

bonito, mas durava a vida toda. Minha mãe tem uma geladeira russa, tá há

quase 35 anos lá! [risos] Mas então houve este conflito. A primeira etapa,

quando caiu o sistema, a pobreza foi muito grande. Eu lembro quando não

estava lá nem há um mês, era dezembro e quase meia-noite, retornava de uma

visita e estava muito frio, desci do ônibus para pegar o metrô, e esqueci a bolsa

no ônibus, então fiquei desesperada. A minha bolsa tinha todos os meus

documentos, passaporte, dinheiro, tudo! Eu arrumei uma carona, lembro que

num caminhão imagina, naquela hora, e me levou até o ponto final do itinerário

do ônibus. Quando cheguei lá, o motorista do ônibus me entregou a bolsa. Ele

disse: “Foi um passageiro que me entregou sua bolsa e estou entregando sem

mexer para você.” Aí estava tudo! Minhas colegas daquela época, as russas,

quase todas saíram de lá, porque dizem que quem está agora, trabalhando na

pesquisa, na cultura, nas ciências, está muito mal remunerado. Quando saí, já

tinha muita variedade nas ofertas, já tinha um McDonald´s, faziam filas de

horas para entrar! E na TV, na minha época não existia quase propaganda

comercial incentivando o consumo.

– O que tinha?

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– Tinha muitas atividades culturais, teatro, a qualquer teatro que você ia, fazia

fila para entrar. Na platéia, você encontrava médicos, engenheiros, e também

pessoas simples. Agora não sei, na época o ensino da música estava ao

alcance de todos, não só a música como qualquer arte. A instrução deles era

muito elevada, mas não acho que por isso eles eram muito afáveis. Eram meio

rudes, grossos, fortes no trato. Então era capaz de uma pessoa super sensível,

que estava em um concerto refinadíssimo de música erudita te trombar na

saída. Uma contradição até, mas a instrução era muito alta, eu acho que as

pessoas das culturas eslavas são assim, meio rudes. Tinha algumas pessoas

que me falavam que os russos só andavam na marra. Agora, não sei. Quando

cheguei, não tinha nada de Ocidente, mas quando saí, já tinham restaurantes,

lojas, muitas coisas, tudo muito caro!

– Havia um certo conflito entre os jovens e os mais velhos?

– Sim. A população mais jovem estava querendo abertura, os mais velhos não

aceitavam, e ainda caíram em miséria. Eu comecei como estudante, eu era

bolsista, e com a bolsa que eu ganhava lá, hoje em dia não paga nem um café

da manhã. Em 1989, a moeda era muito forte. Um rublo valia até mais que um

dólar. E na música, Moscou tinha tudo. Tudo passava por lá. As bibliotecas

eram incríveis, você poderia encontrar qualquer coisa.

– Em que instituição você estudou?

– Estudei no que hoje se chama Academia Russa de Música, era o antigo

Instituto Pedagógico Musical Gnessin, que, junto com o Conservatório

Tchaikovsky, são as duas instituições de nível superior na música. O sistema

acadêmico era muito desenvolvido, e o ensino era muito forte também, muito

bom.

– Você acredita que os cidadãos eram importantes, tratados como

importantes? Havia uma política voltada para eles?

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– Sim, eles discutiam muita política lá, e acho que o que motivou a abertura foi

a liberdade dos jovens de discutir política abertamente. Mas quando cheguei lá,

a atenção do Estado era muito boa. Fui bolsista do Estado russo. Cuba só

pagou a passagem para mim. E tinha tudo. Agora, o que eles são, eles são

muito fortes, na parte acadêmica, de te transmitir muito conhecimento, são

muito exigentes com o rendimento do aluno. O latino lá, apanhava, não é

aquela bagunça dos brasileiros [risos]. Não existe aquela de te passar a mão,

você tem os seus problemas, problema seu. A forma deles te tratarem, era

meio estranha, até chocante porque chegam a ser grossos. Por outro lado,

problemas com sistema público, social, saúde, não tínhamos. Essas eram as

prioridades, você era atendido na hora, não demorava nada. Agora, não sei

como está. Uma amiga russa, quando o sistema caiu, ela chorou, chorava

muito, muito. Depois, ela foi para a Alemanha. Ela era muito culta, o marido

dela era muito culto também. Ela dizia: “A ciência não vale mais nada, o

conhecimento não vale mais nada. Agora, só se fala em consumo, em

dinheiro.” E eles falam: “Ser bom lá não vale mais nada. O que vale é o

comércio.” São as contradições do mundo moderno. Para você equilibrar isso é

muito complicado. Tinha muitas colegas russas lá, que saíram de lá, porque

entraram em profunda miséria. Vivi três épocas. A abundância de roupas,

eletrodomésticos, tudo muito bom. Depois, quando o sistema caiu, o mercado

era horrível! Só tinha leite, vagem, batata e mortadela, as prateleiras estavam

muito vazias. Sai de lá em 1994, quando o mercado já estava levantando. Vi o

Lênin, também. Na minha época isso era algo muito emocionante, depois li que

estavam querendo tirar ele de lá. As coisas mudaram muito, se perdeu a

consciência e outros valores, e aumentou o consumismo. Esse é o preço de

troca, né!

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Sergio Souza é professor de Literatura, doutor pela USP (Universidade de São

Paulo). Esteve na Rússia no final de década de 1970, a passeio. Hoje, a meu

convite, produziu um texto em que expõe suas impressões sobre este país.

Estive lá

Por Sergio Souza

O ano era o 1979, já sobra por lá um vento frio que iria caracterizar a

Perestroika que sem sombra viria e poria fim na então combalida guerra fria

sem sentido que tanto assombrou o mundo em décadas pós-guerra, mas o fato

aqui não é discorrer sobre o estado político da então URSS, mas sim falar de

um povo hospitaleiro, porém desconfiado, se é que é possível juntar-se as duas

coisas numa única. Moscou me marcou pela amplidão, pela tradição, pela

história que se respira em cada quadrante. Moscou me marcou pela

imponência de sua não menos famosa Praça Vermelha. Moscou me marcou

pelo frio penetrante do clima e o frio das autoridades, que muito se pareciam a

estátuas de gelo, tamanha a frieza no gestual e nas atitudes. Difícil foi naqueles

idos conversar com alguém sem que não estivesse sendo vigiado por alguém,

eu, em especial, marco pelo tom de pele e jeito tropical de ser. Moscou é uma

cidade que me pareceu burocrática demais, com os seus painéis de

propaganda comunista, com sua quase devoção religiosa a Lênin. Ir a Moscou

e não visitar o insepulto seria quase uma heresia, passagem obrigatória era

passar diante do esquife de Lênin. Moscou marcou-me e marca pela obra de

arte que são suas estações de metrô. Enfim Moscou é uma poesia feita de gelo

frio, um verso incrustado nos Bálcãs com a singeleza da tradição e o aval

inconteste da história, saber que por ali passaram Ivan, o terrível e Catarina, a

grande ou Pedro. O grande faz tremer as pernas e a imaginação voar no gélido

espaço de uma cidade que era o refúgio do mistério da guerra fria, à sombra da

temida KGB. Parece roteiro turístico preparado por alguma agência mais afoita,

mas ir a Moscou e deixar de visitar o que for permitido do Kremlin, a belíssima

Catedral de São Basílio, é ter deixado de ir a esta acrópole eslava protegida

por imensas muralhas, sem, é claro, esquecer-se de admirar o Rio Volga.

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Leningrado, a bela e fragmentada São Petersburgo, lembra a linda e misteriosa

Veneza, não sei se construída às margens ou dentro do rio Neva. São

Petersburgo, trás um aroma de romantismo frio e calculado como o frio da

região, mas trás consigo a imponência de um dia ter sido a capital dos czares,

de uma gente gentil, porém aristocrática, os tempos de regime fechado não

empanaram, nem mesmo nos mais jovens, este espírito legado pela história de

uma terra centro do império, porém há de se observar que este povo é menos

fechado ou denso que o de Moscou, a cidade é de um colorido mais vivo e

mais participativo do que o cinzento aspecto moscovita, a visita inconteste é o

túmulo dos Romanov na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, cuja catedral

guarda um acervo digno da história e tradição do barroquismo russo ou barroco

do norte como por ali se fala. A catedral de Santo Isaac é a maior da cidade e

imperativa para quem tem olhos de um pesquisador.

Você me pede uma breve alusão à literatura russa, por lá nos idos tempos a

velha cultura russa estava sufocada ainda pela massacrante propaganda

soviética e tudo que por ali escrevia era sobre o estado, a grandeza do estado

e do povo que jamais se submeteu e que crescia forte e robusto por seus

próprios esforços sem nunca se submeter a ninguém. Tempos depois, com a

abertura, percebeu-se que não era bem assim. Hoje posso afirmar, por

informações, que a cultura literária russa retomou seu tradicional lugar histórico

no mundo, com os clássicos imorredouros e o aparecimento de gente muito

boa que, nascida nos tempos de chumbo, retrata uma terra de sofrimento e

certa intolerância política e social, ponteiam por lá nomes como os de:

Maiakovski, a poetiza Anna Akhmátova, porém a prosa russa ainda está à

sombra de Gorki e outros clássicos.

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Num primeiro momento Moscou não é tão atraente quanto São Petersburgo.

Não se compara com as praças, os palácios e os museus da outra cidade.

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Moscou é mais austero. Respira um clima mais sisudo, as pessoas são mais

fechadas e há menos cores nas ruas. Mas o valor político é inegável. Só

estando lá mesmo para ver uma enorme estátua de Karl Marx, bem em frente

ao teatro Bolshoi (também em restauração), com a famosa frase: “Proletários

de todo o mundo, uni-vos!”

E, a Praça Vermelha, a antiga Loja de Departamentos Soviéticos (GUM), além

do Kremlin que ainda há poucos anos concentrava o poder de quase meio

mundo.

O caos é uma das primeiras coisas que chama à atenção. Principalmente no

trânsito. São buzinas, xingamentos, o semáforo parece um adereço, pois não é

respeitado.

Muita coisa antiga convive com muita coisa nova, uma oposição avassaladora,

que parece ter agora mão única. Em meio a carros caindo aos pedaços,

trólebus das décadas de 1950, 1960 e 1970, muitos carros novos, muitos

luxuosos, Mercedez, BMWs, Volvos, Toyotas, inúmeras limusines.

E não precisa andar muito para vermos também lojas para a alta sociedade,

muitas de jóias, outras tantas de roupas. E, se em São Petersburgo a moda

está em alta, e são principalmente os jovens que abraçaram as novas

tendências ocidentais com seu modo de viver, na capital russa o apelo não é

tão escandaloso. As pessoas são também mais velhas, buscam mais o luxo e

não tanto o estilo.

Mas, claro, o luxo que contrasta com outros espaços mais simples, mais

básicos. E se há esta classe emergente, que cresce no capital, ela freqüenta os

cassinos, os clubes seletos. A sensação de impessoalidade é marcante.

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Nos subterrâneos de Moscou, há uma beleza escondida, que se revela até aos

transeuntes mais desatentos.

São imensos corredores detalhadamente decorados, pinturas nos tetos e

paredes, esculturas em bronze, enormes lustres dourados.

O ambiente não é dos mais modernos. Contém peças envelhecidas, símbolos

de outros tempos, cores que não se usam mais.

Os usuários, são os de sempre e outros de novas gerações. Passam todos os

dias por aqui, muitos a trabalho, outros a passeio, alguns por turismo. Sempre

que usam as escadas rolantes, se mantêm à esquerda. Difícil ver uma

exceção. A fila indiana se forma. Quem tem pressa, corre pelo lado direito.

Quem prefere a velocidade da escada, se mantém do lado esquerdo. Simples.

Mas a exuberância é o maior chamativo, pela arte utilizada. Cada estação é

decorada de um jeito, enaltecem uma pessoa ou um significado. Em algumas

delas os lustres são as peças mais trabalhadas; outras são mais admiradas por

pilares, paredes e tetos, repletos de detalhes ricamente trabalhados. No caso

de outras, as esculturas em bronze nos fazem parar; em várias delas há

pinturas de Lênin.

Ele é carregado em bandeiras vermelhas, fala ao povo. Lênin está em toda

parte, líder onipresente.

Tive a oportunidade de visitar: Kropotkinskaya, Mayakovskaya, VDNKh,

Partizanskaya, Sportivnaya, Borovitskaya, Biblioteka Meni Lenina,

Konsomollskaya, Tetralnaya, Ploshchad Revolyutsii, entre outras.

Números, não faltam: em Moscou há 171 estações, em 12 linhas, que

movimentam diariamente oito milhões de pessoas. Os trens passam a cada 90

segundos, são eficientes, rápidos e baratos. As estações, profundas, foram

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construídas para passar por baixo do rio Moscou e para proteger a população

em caso de bombardeios. A mais profunda delas, a Park Podeby, tem “meros”

120 metros de profundidade.

Exuberância para demonstrar poder? Gosto pelas artes? O metrô de Moscou

tem esta peculiaridade. É impossível passar por ele sem se impressionar.

Muitos músicos, interpretando canções clássicas, estão nas portas, tocam por

trocados doados. Algumas pessoas param para admirar este verdadeiro mundo

subterrâneo. De repente, um enorme grupo de turistas japoneses desce de um

vagão e invade a plataforma. Fotografam tudo, perguntam, soltam

exclamações:

– Oh!

A história está viva, nas estações de metrô de Moscou.

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Agora, se você não quer correr o risco de ser extorquido, não vá a Moscou.

Parece determinismo, mas não é.

Lamentavelmente, para os turistas e também para o país, a policia é corrupta e

extorsiva. Principalmente em espaços turísticos famosos, sempre visitados,

eles estão lá, e é bom ficar esperto.

Não digo por experiência própria, e só por isso. Tive três situações

desagradáveis sim, mas lá todos sabem que com a polícia russa não se brinca.

Certa vez, já esperto com a conduta deles, por ter sido abordado duas outras

vezes para apresentar meus documentos, passeava nos arredores do Kremlin.

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Alguns minutos antes, saía do albergue quando escuto, em inglês:

– Oi. Você vai pra perto da Praça Vermelha?

– Sim. Vou.

– Se incomoda se eu for com você?

Era uma mulher, 35 ou 40 anos, branca, um pouco de sobrepeso, cabelos

longos, castanhos e encaracolados. Rosto triangular, olhar de ingenuidade,

fragilidade.

– Você também vai pra lá? – pergunto.

– Sim, me desculpa, é que não queria ir sozinha. Andei escutando umas coisas

sobre os policiais daqui, não queria me arriscar.

Eu estava de saída, satisfeito com minhas “aventuras solitárias”. Nem a

conhecia, nem queria companhia. Mas, ela tinha razão.

Ann Timers era belga, concluí que não estava acostumada a situações mais

“perigosas”, não sabia lidar com estas necessidades.

Descemos a pé até a Praça Vermelha, ela falando bastante. Nos Jardins de

Alexander, atrás da Praça Vermelha e do Kremlin, dois policiais, que estavam

sendo fotografados por turistas japoneses, se irritam. Pegam a câmera da

senhora fotógrafa, abruptamente:

– No photo! – Não queriam que tirassem fotos deles.

Percebi que a situação era imprópria. Disse a Ann Timers:

– Vamos sair daqui.

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Bastou o primeiro passo e a mesma dupla de policiais nos abordou, obrigando-

nos a parar. Bateram continência, estalando as botas e lançando a mão direita

à testa. Junto com o estalar das botas, e a mão à testa, a frase:

– Passaporte!

No inglês deles, a sonoridade é algo como:

– Pásspórt! – falado bem rápido.

Agiam como militares.

Peguei meu documento, entreguei a eles, ressabiado.

– Brasil! – o mais sério deles respondeu.

Acenei com a cabeça, confirmando meu país. Voltaram-se à Ann, que,

tremendo, lhes entregou o seu.

– No visa! No visa! – gritaram, querendo dizer:

– Sem visto! Sem visto!

Entendi depois. O passaporte dela tinha sim o visto, mas não a aprovação da

polícia de Moscou para ela estar legalmente na cidade.

Ann ficou sem saber o que fazer, nem o que dizer. Ficou nervosa. Eu fiquei em

silêncio.

Mais silêncio.

Mais um pouco de silêncio. (...)

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– Sixty rublos! – abriu a boca o policial, exigindo sessenta rublos, extorquindo.

Não sei o que passou pela cabeça de Ann. Eu voltei a ficar em silêncio. Pensei

que ela ia se ferrar, não gostei. Pensei que eu ia me ferrar também. Gostei

menos.

Não sei se ela travou de medo. Estava branca, pálida demais.

Mais silêncio.

Acho que quase meio minuto sem ninguém dizer nada.

Percebi que o outro policial, de olhar menos duro, deu um suspiro de cansaço,

e saco cheio.

Amoleceram. Eu simulei sair daquela situação, dando minúsculos passos para

o lado, de fininho mesmo, tendo a certeza de que Ann me seguia.

Len_ta_men_te, va_ga_ro_sa_men_te nos retiramos. Não houve maiores

explicações.

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Ele está lá. Pode ser observado, admirado, rejeitado. Em exposição há anos, o

corpo embalsamado de Lênin sempre foi e continua sendo atração em Moscou.

Na lateral do Museu de História Nacional, fui obrigado a deixar meus pertences

em um guarda-volumes. Nada de mochilas, nem máquina fotográfica ou

celular. Apenas roupa do corpo e nada mais. Passei pelo detector de metais e

fui revistado por um policial.

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Segui pelo corredor rente ao muro do Kremlin, onde só é permitido entrar após

esta aprovação.

Há muitos turistas, de toda parte, e muitos russos também, de outras cidades.

O mausoléu do líder da Revolução Russa fica na Praça Vermelha, grudado no

Kremlin.

Na entrada, um outro policial controla o acesso e a velocidade de todos. Entro

vagarosamente, controlando minha ansiedade para aproveitar melhor aquele

momento.

Desço as escadas. E vejo o corpo de Lênin dentro de uma caixa de vidro,

intacto. Deitado, pulsos cerrados na altura da cintura, cavanhaque. O ambiente

é meio escuro e deve medir cerca de 15 metros quadrados. Em cada canto,

policiais acompanham o caminhar de todos. Alguns turistas olham com

curiosidade, outros demonstram respeito, alguns fazem reverência, e se

emocionam. Quantas pessoas já devem ter passado por aqui? – me pergunto.

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Me despedi da Praça Vermelha para algum dia voltar. Mesmo tendo estado lá

pessoalmente, toda a Rússia segue me intrigando.

Enchi minhas garrafas d´água, jantei macarrão com salada de cenoura no

albergue, fiz as malas e peguei o metrô para a Estação Finlândia, onde, 2h11

da manhã, me encontrei com o trem que me levaria para São Petersburgo

novamente, de onde eu retornaria à Finlândia.

Desta vez arrumei um amigo de viagem. Descobri Carlos Mantese brasileiro no

albergue. Ele usava uma camiseta da operadora de celulares Vivo, o suficiente

para o início da conversa.

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Viajamos juntos. Entramos no trem e todos nos descobriram turistas. Nos

acolhiam com o olhar. Comentavam entre si sobre nossa presença, e sorriam.

Hora de partir.

Enquanto me acomodava, um jovem senhor, baixinho e simpático, de jaqueta

vermelha, calça cáqui, olhos azuis claros, cabelo ralo, veio em nossa direção.

Chegou tropeçando, estava completamente bêbado. Trazia duas latas da

cerveja Baltika, russa, e entregou uma a mim e outra a Carlos. Não quisemos

aceitar, agradecemos, mas não aceitamos. Ele insistiu, e não.

Mas este novo amigo era cômico demais. Além de estar bêbado, sentou-se ao

nosso lado, e quer conversar, em russo! Todos ao redor riem da situação, riem

dele e de nós. Ele é perseverante, além de falar, gesticula, pega meu braço,

pede um brinde.

De repente, se levanta. Vai ao fundo do trem e alguns minutos depois aparece

com mais quatro latas de cerveja. Coloca-as sobre a mesa, insistindo nossa

participação.

Um filme passa em minha cabeça. Reflito sobre a viagem, que passou muito

rápido, e eu já estava voltando. Penso nos aprendizados que colhi naquela

terra distante porém não estranha. Relembro cenas, situações e diálogos. São

muitas informações, uma realidade bem diferente e intrigante. Vou com

vontade de um dia retornar, estar lá novamente. Valeu todo o esforço.

É, o brinde é uma ótima maneira de terminar a viagem. Здоровье!

***

Making Of

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38

Depois de conhecer a Rússia, escrever sobre ela foi um novo desafio.

Recuperei anotações feitas nos momentos da viagem, pesquisei mais sobre o

país, e na minha memória puxei recordações.

Percebi que, para compensar a carência de anotações de que dispunha, a

pesquisa e principalmente a memória foram parceiras de trabalho.

Relembrei cenas vividas, e, pelas anotações e memória, resgatei diálogos e

cenas ocorridas com os personagens apresentados. Procurei, acima de tudo,

estabelecer uma visão heterogênea sobre a Rússia, e busquei, sempre que

possível, destacar a participação das pessoas, para humanizar o texto e trazer

ao leitor uma tentativa de compreensão sobre este povo.

A imersão durante a viagem foi total. Houve grande motivação da minha parte

e tantas outras vivências que, se fossem aqui contadas, dobrariam a extensão

do texto.

Após a leitura do livro “Na Patagônia”, procurei utilizar recursos parecidos,

como cortes abruptos na narrativa, personagens em destaque, e relação dos

locais retratados no presente com sua história.

Para acrescentar qualidade à narrativa, pude contar com a colaboração de dois

grandes professores, que, de muito bom gosto, contribuíram com seus relatos

para trazer outras visões sobre a realidade tratada.

Considero as narrações, observações e descrições, isentas de preconceitos e

idéias precipitadas, pois a busca de compreensão da realidade apresentada

extrapola o sentido de texto ou jornalismo, e tenta alcançar a compreensão da

vida do outro.

Ainda, para mim, uma oportunidade única de escrever sobre um país tão

distante de nós em inúmeros aspectos, em um momento marcante, buscando

alcançar o Jornalismo Literário.