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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Junho de 2008 23 Artigo A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança L. S. Vigotski Prefácio Trechos do presente texto de Lev Semionovitch Vigotski compõem o texto do Capítulo 7, da segunda parte do livro denominado A Formação Social da Mente, organizado por Michael Cole, Vera Jonh-Steiner, Sylvia Scribner e Ellen Souberman e atribuído a Vigotski. Porém, como os próprios organizadores reconhecem no prefácio, alguns capítulos "foram elaborados a partir de Instrumento e Símbolo" (VIGOTSKI, L.S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XIII); outros extraídos de alguns trabalhos importantes de Vigotski como, por exemplo, A história do desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores (Istoria razvitia vischikh psikhitcheskikh funktsii) e O Desenvolvimento Mental das Crianças e o Processo de Aprendizado (Umstvennoie razvitie detei v protsesse obutchenia). Os organizadores explicam também que fazem uma junção de obras do pensador russo que, originalmente, estão separadas e pedem ao leitor que não leia o livro como uma tradução literal, mas sim editada "da qual omitimos as matérias aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as idéias de Vygotsky". (p. XIV). Em seguida, já no final do prefácio, explicita-se uma problemática ética. Os organizadores do volume deixam claro que tinham perfeita noção de que, "ao mexer nos originais poderiam estar distorcendo a história" (p. XV). Porém, preferem fazê-lo e consideram que a simples referência a essa ação absurda deixa-os livres de qualquer crítica, pois, como eles mesmos dizem, "deixando claro nosso procedimento e atendo-nos o máximo possível aos princípios e conteúdos dos trabalhos, não distorcemos os conceitos originalmente expressos por Vygotsky". (p. XV). Não sei, então, se foi equívoco dos tradutores ou dos organizadores do volume, mas o texto com o título O papel do brinquedo no desenvolvimento, que é semelhante ao o original de Vigotski A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança (Igra e ieio rol v psikhitcheskom razvitii rebionka), desde o início, revela distorções. O texto em português que está sendo apresentado nesta revista é inédito e foi traduzido do original, publicado no livro Psikhologia Razvitia Rebionka (2004). Trata-se de uma palestra estenografada, proferida em 1933, no Instituto Gertsen de Pedagogia, de Leningrado. Por isso, no texto, aparecem formas estilísticas próprias da fala, que optamos por manter do modo como estavam. Muitas vezes, a atividade de traduzir é solitária. Felizmente, não foi o caso desta, pois contou com o trabalho competente de várias pessoas interessadas em resgatar a obra original de Vigotski e que, ao longo de dois meses, leram, releram, debateram, discutiram, negociaram e cuidaram do texto de Vigotski em português. Foi um trabalho coletivo que teve a participação de Elizabeth Tunes, Patrícia Pederiva, Janine Mundim e Eric Alberto Lima de Oliveira. O rigor e o cuidado foram uma marca do trabalho desenvolvido. Por isso, além de apresentar o texto de Vigotski completo, a presente tradução faz a revisão dos termos utilizados pelos organizadores do volume A Formação Social da Mente, que pode ser notada logo no título - "brincadeira" e não "brinquedo", para se referir a uma atividade da criança. Além disso, vale destacar que o texto original contém 25 páginas, e não apenas 16. Zoia Prestes

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Artigo

A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança

L. S. Vigotski

Prefácio

Trechos do presente texto de Lev SemionovitchVigotski compõem o texto do Capítulo 7, dasegunda parte do livro denominado A FormaçãoSocial da Mente, organizado por Michael Cole, VeraJonh-Steiner, Sylvia Scribner e Ellen Soubermane atribuído a Vigotski. Porém, como os própriosorganizadores reconhecem no prefácio, algunscapítulos "foram elaborados a partir de Instrumentoe Símbolo" (VIGOTSKI, L.S. A Formação Social daMente. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XIII);outros extraídos de alguns trabalhos importantesde Vigotski como, por exemplo, A história dodesenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores(Istoria razvitia vischikh psikhitcheskikh funktsii) e ODesenvolvimento Mental das Crianças e o Processo deAprendizado (Umstvennoie razvitie detei v protsesseobutchenia). Os organizadores explicam tambémque fazem uma junção de obras do pensador russoque, originalmente, estão separadas e pedem aoleitor que não leia o livro como uma traduçãoliteral, mas sim editada "da qual omitimos asmatérias aparentemente redundantes e à qualacrescentamos materiais que nos pareceramimportantes no sentido de tornar mais claras asidéias de Vygotsky". (p. XIV). Em seguida, jáno final do prefácio, explicita-se umaproblemática ética. Os organizadores do volumedeixam claro que tinham perfeita noção de que,"ao mexer nos originais poderiam estardistorcendo a história" (p. XV). Porém, preferemfazê-lo e consideram que a simples referência aessa ação absurda deixa-os livres de qualquercrítica, pois, como eles mesmos dizem, "deixandoclaro nosso procedimento e atendo-nos o máximopossível aos princípios e conteúdos dos trabalhos,não distorcemos os conceitos originalmenteexpressos por Vygotsky". (p. XV).

Não sei, então, se foi equívoco dos tradutores oudos organizadores do volume, mas o texto com otítulo O papel do brinquedo no desenvolvimento, que ésemelhante ao o original de Vigotski A brincadeirae o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança(Igra e ieio rol v psikhitcheskom razvitii rebionka),desde o início, revela distorções.

O texto em português que está sendo apresentadonesta revista é inédito e foi traduzido do original,publicado no livro Psikhologia Razvitia Rebionka(2004). Trata-se de uma palestra estenografada,proferida em 1933, no Instituto Gertsen dePedagogia, de Leningrado. Por isso, no texto,aparecem formas estilísticas próprias da fala, queoptamos por manter do modo como estavam.

Muitas vezes, a atividade de traduzir é solitária.Felizmente, não foi o caso desta, pois contou como trabalho competente de várias pessoasinteressadas em resgatar a obra original deVigotski e que, ao longo de dois meses, leram,releram, debateram, discutiram, negociaram ecuidaram do texto de Vigotski em português. Foium trabalho coletivo que teve a participação deElizabeth Tunes, Patrícia Pederiva, JanineMundim e Eric Alberto Lima de Oliveira. O rigore o cuidado foram uma marca do trabalhodesenvolvido. Por isso, além de apresentar o textode Vigotski completo, a presente tradução faz arevisão dos termos utilizados pelos organizadoresdo volume A Formação Social da Mente, que podeser notada logo no título - "brincadeira" e não"brinquedo", para se referir a uma atividade dacriança. Além disso, vale destacar que o textooriginal contém 25 páginas, e não apenas 16.

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Quando falamos sobre a brincadeira e o seu papelno desenvolvimento da criança na idade pré-escolar1, emergem duas questões fundamentais:a primeira delas é o modo como a própriabrincadeira surge ao longo do desenvolvimento,o aparecimento da brincadeira, sua gênese; asegunda questão diz respeito ao papel que essaatividade desempenha no desenvolvimento, valedizer, o que significa a brincadeira como umaforma de desenvolvimento da criança na idadepré-escolar. A brincadeira é a atividade principalou, simplesmente, uma atividade predominantequando a criança está nessa idade?

Parece-me que, do ponto de vista dodesenvolvimento, a brincadeira não é uma formapredominante de atividade, mas, em certosentido, é a linha principal do desenvolvimentona idade pré-escolar.

Permitam-me, nesse momento, passar aoproblema da brincadeira em si. Sabemos que adefinição de brincadeira, levando-se em contacomo critério a satisfação que ela propicia àcriança, não é correta por dois motivos.Primeiramente, porque há uma série de atividadesque podem proporcionar à criança vivências desatisfação bem mais intensas do que a brincadeira.

O princípio da satisfação é relacionado igualmente,por exemplo, ao processo de sucção, pois chuparchupeta proporciona à criança uma satisfaçãofuncional, mesmo quando ela não se sacia.

Por outro lado, conhecemos brincadeiras em queo próprio processo de atividade também nãoproporciona satisfação. São aquelas queprevalecem no final da idade pré-escolar e noinício da idade escolar e que trazem satisfaçãosomente quando seu resultado revela-seinteressante para a criança; é o caso, por exemplo,dos jogos esportivos (jogos esportivos não sãoapenas os que envolvem atividade física, mastambém os que são relacionados a resultados,premiações). Muito freqüentemente, eles sãotingidos de um sentimento agudo de insatisfaçãoquando o seu término é desfavorável para a criança.

Dessa forma, a definição da brincadeira peloprincípio de satisfação, é claro, não pode serconsiderada correta.

1Vigotski refere-se ao longo do texto a diversas idades: primeira infância, que seria acriança até 3 anos, e a idade pré-escolar, que seria a criança acima de 3 e até 6 ou 7 anos(N.da T.)

2Na psicologia soviética denomina-se de Psicologia etária (vozrastnaia psikhologia) aárea da psicologia que tradicionalmente estuda as regularidades gerais dodesenvolvimento e das especificidades etárias do psiquismo em diferentes etapas daontogênese. (N.daT.)

No entanto, significaria intelectualizá-laextremamente recusar-se a admitir o modo comonela as necessidades da criança se realizam, osimpulsos para a sua atividade, isto é, seus impulsosafetivos. A dificuldade de uma série de teoriassobre a brincadeira é, de certa maneira, aintelectualização desse problema.

Inclino-me a atribuir a essa questão um sentidomais geral, e penso que o erro de uma série deteorias2 é o desconhecimento das necessidadesda criança; teorias que entendem essasnecessidades num sentido amplo, começandopelos impulsos e finalizando com o interessecomo uma necessidade de caráter intelectual.Resumindo, há desconhecimento de tudo aquiloque se pode reunir sob o nome de impulso emotivos relacionados à atividade.Freqüentemente, explicamos o desenvolvimentoda criança pelo prisma de suas funçõesintelectuais, ou seja, diante de nós, qualquercriança apresenta-se como um ser teórico que,dependendo do maior ou menor nível dedesenvolvimento intelectual, passa de um degrauetário para outro.

Não são consideradas as necessidades e asinclinações da criança, seus impulsos, os motivosde sua atividade, sem o que, como demonstra oestudo, nunca ocorre a passagem da criança de umestágio para o outro. Particularmente, parece-meque se deve começar a análise da brincadeiraexatamente pelo esclarecimento desses momentos.

Pelo visto, qualquer deslocamento, qualquerpassagem de um estágio etário para outrorelaciona-se à mudança brusca dos motivos e dosimpulsos para a atividade.

O que representa uma enorme riqueza para obebê quase deixa de interessar à criança naprimeira infância. Essa maturação de novasnecessidades, de novos motivos da atividade,deve ser posta em primeiro plano.Particularmente, não há como ignorar que acriança satisfaz certas necessidades, certos

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impulsos, na brincadeira. Sem a compreensãoda peculiaridade desses impulsos, não é possívelimaginar que a brincadeira seja um tipoespecífico de atividade.

Na idade pré-escolar, surgem necessidadesespecíficas, impulsos específicos que são muitoimportantes para o desenvolvimento da criançae que conduzem diretamente à brincadeira. Issoocorre porque, na criança dessa idade, emergeuma série de tendências irrealizáveis, de desejosnão-realizáveis imediatamente. Na primeirainfância, a criança manifesta a tendência para aresolução e a satisfação imediata de seus desejos.O adiamento da realização de seus desejos é difícilpara a criança pequena, pode ser possível somenteem limites bem estreitos; não se conhece umacriança de até três anos que tenha um desejo defazer algo depois de alguns dias. Normalmente,o caminho do impulso para a sua realizaçãomostra-se extremamente curto. Parece-me que,se na idade pré-escolar não houvesse oamadurecimento das necessidades não-realizáveisimediatamente, então, não existiria a brincadeira.Estudos demonstram que a brincadeira não sedesenvolve apenas quando o desenvolvimentointelectual das crianças é insatisfatório, mastambém quando o é a esfera afetiva.

Do ponto de vista da esfera afetiva, parece-meque a brincadeira organiza-se justamente nasituação de desenvolvimento em que surgem astendências irrealizáveis. Na primeira infância, acriança comporta-se da seguinte maneira: ela querpegar um objeto e tem de fazê-lo no mesmoinstante. Caso isso não seja possível, ou elaapronta um escândalo, deita-se no chão e batecom os pés, ou conforma-se e não pega mais oobjeto. Na criança, os desejos não satisfeitospossuem suas vias específicas de substituição,resignação, etc. Se, por um lado, no início da idadepré-escolar, aparecem os desejos não satisfeitos,as tendências não-realizáveis imediatamente, poroutro, conserva-se a tendência da primeirainfância para a realização imediata dos desejos.Por exemplo, a criança quer estar no lugar da mãeou ser um cavaleiro e cavalgar. Isso é um desejoinexeqüível naquele momento. Na primeirainfância, o que costuma fazer a criança quandoavista uma caleche e quer andar nela de qualquer

maneira? Caso seja mimada e caprichosa, poderáexigir que a mãe a coloque na caleche, e até mesmojogar-se na calçada, etc. Caso seja uma criançaobediente, acostumada a abdicar de seus desejos,então se afastará ou a mãe poderá oferecer-lhe umabala ou, ainda, simplesmente distraí-la com umaforte demonstração de afeto e, assim, a criançapoderá abrir mão de seu desejo imediato.

Porém, numa criança com mais de três anos,emergem tendências específicas e contraditórias,de um modo diferente; por um lado, surge umasérie de necessidades e de desejos não-realizáveisimediatamente, mas que, ao mesmo tempo, nãose extinguem como desejos; por outro lado,conserva-se, quase por completo, a tendênciapara a realização imediata dos desejos.

É disso que surge a brincadeira, que deve sersempre entendida como uma realizaçãoimaginária e ilusória de desejos irrealizáveis,diante da pergunta "por que a criança brinca?".A imaginação é o novo que está ausente naconsciência da criança na primeira infância,absolutamente ausente nos animais, e representauma forma especificamente humana de atividadeda consciência; e, como todas as funções daconsciência, forma-se originalmente na ação. Avelha fórmula segundo a qual a brincadeira decriança é imaginação em ação pode ser invertida,afirmando-se que a imaginação nos adolescentese escolares é a brincadeira sem ação.

É difícil imaginar que o impulso que leva a criançaa brincar seja realmente um simples impulsoafetivo do mesmo gênero que ocorre no bebê aochupar a chupeta.

É difícil admitir que a satisfação sentida nabrincadeira, na idade pré-escolar, estejacondicionada ao mesmo mecanismo afetivo queo chupar chupeta. Nada existe nodesenvolvimento da criança em idade pré-escolarque se relacione com isso.

Entretanto, não se quer dizer que a brincadeirasurja como resultado de cada desejo não satisfeitoisoladamente: a criança quis passear de caleche eesse desejo não foi satisfeito naquele momento;então, ela dirige-se ao quarto e começa a brincarde caleche. Mas, de fato, nunca acontece assim.Isso quer dizer que a criança não tem apenas

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reações afetivas isoladas em relação a fenômenosisolados, mas tendências afetivas generalizadasexternas aos objetos. Vejamos um caso decomplexo de baixa auto-estima, por exemplo, umacriança com microcefalia. Ela não podia participarde um agrupamento infantil por ter sido alvo demuito deboche, que a levou a quebrar todos osespelhos e vidros que refletiam sua imagem. Eisa profunda diferença da criança na primeirainfância. Nesta, como um fenômeno isolado(numa situação concreta), por exemplo, cada vezque é debochada, surge uma reação afetivaisolada, ainda não generalizada. Já na idade pré-escolar, a criança generaliza sua relação afetivacom o fenômeno independentemente da situaçãoconcreta real, pois a relação afetiva está ligadaao sentido do fenômeno. Por isso, a todomomento a criança demonstra o complexo debaixa auto-estima.

A essência da brincadeira é que ela é a realizaçãode desejos, mas não de desejos isolados e sim deafetos generalizados. Na idade pré-escolar, acriança tem consciência de suas relações com osadultos, reage a eles com afeto, mas,diferentemente do que acontece na primeirainfância, generaliza essas reações afetivas (aautoridade dos adultos impõe-lhe respeito, etc.)

A presença de tais afetos generalizados nabrincadeira não significa que a criança entendapor si mesma os motivos pelos quais a brincadeiraé inventada e também não quer dizer que ela ofaça conscientemente. Portanto, ela brinca semter a consciência dos motivos da atividade dabrincadeira. É isso que, essencialmente, distinguea brincadeira de outros tipos de atividade, comoo trabalho. Em geral, deve-se dizer que a esferade motivos, ações, impulsos está relacionadaàquelas esferas menos conscientes e se tornaplenamente acessível à consciência apenas naidade de transição. Somente o adolescenteconsegue responder por que ele faz isso ou aquilo.

Momentaneamente, deixaremos por algunsminutos a questão relativa à esfera afetiva. Vamostratá-la como certa condição prévia e, nesseinstante, veremos como se desenrola a própriaatividade de brincar.

Na brincadeira, a criança cria uma situação

imaginária. Parece-me que é esse o critério quedeve ser adotado para distinguir a atividade debrincar dentro do grupo geral de outras formasde atividade da criança. Isso torna-se possível emrazão da divergência, que surge na idade pré-escolar, entre o campo visual e o semântico.

Essa idéia não é nova, posto que a existência debrincadeiras com situação imaginária sempre foiconhecida, mas analisada como um dos tipos debrincadeira. Assim, atribuía-se um significadosecundário à situação imaginária que, segundo aopinião de autores mais antigos, não seria aqualidade principal que faz a brincadeira serbrincadeira, visto que apenas um determinado grupode brincadeiras caracterizar-se-ia por esse atributo.

Parece-me que a principal dificuldade dessa idéiaapresenta-se em três momentos. O primeiro é aexistência do perigo de uma abordagemintelectualista da brincadeira; caso seja entendidacomo simbólica, teme-se que, em sua ação, elase transforme numa atividade semelhante aocálculo algébrico; que ela se transforme numsistema de sinais que generalizam a atividade real.Assim, não encontraríamos algo peculiar àbrincadeira e imaginaríamos a criança como umalgebrista fracassado que não sabe escrever ossinais no papel, mas imagina-os na ação. Énecessário demonstrar a relação dos impulsoscom a brincadeira porque, parece-me, elaprópria nunca é uma ação simbólica no sentidoestrito da palavra.

O segundo momento é, parece-me, que essa idéiarepresenta a brincadeira como um processocognitivo e aponta para o significado desse processocognitivo, deixando à margem não só o momentoafetivo, mas também o de atividade da criança.

O terceiro momento é a necessidade dedesvendar aquilo que essa atividade promoveno desenvolvimento, ou seja, aquilo que, com oauxílio da situação imaginária, podedesenvolver-se na criança.

Permitam-me começar pela segunda questão, jáque abordei brevemente a que está relacionadaao impulso afetivo. Vimos que, no impulsoafetivo que leva à brincadeira, existem rudimentosda necessidade da situação imaginária, e não da

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simbologia, pois, caso a brincadeira realmente sedesenvolva dos desejos não satisfeitos, dastendências irrealizadas, se ela consiste em ser arealização, em forma de brincadeira, dastendências não realizadas naquele momento,então, involuntariamente, na própria naturezaafetiva dessa brincadeira estarão presentesmomentos da situação imaginária.

Iniciemos pelo segundo momento, o da atividadeda criança na brincadeira. O que significa ocomportamento da criança na situação imagináriaSabemos que existe uma forma de brincadeira quetambém foi destacada, há muito tempo, e que,normalmente, era relacionada com o períodotardio da idade pré-escolar, considerando-secentral o seu desenvolvimento na idade escolar.Estamos falando dos jogos3 com regras. Váriospesquisadores, apesar de não pertencerem aocampo dos materialistas dialéticos, seguiram nessaárea pelo caminho recomendado por Marx,quando ele dizia que "a anatomia do ser humanoé a chave para a anatomia do macaco." Elescomeçaram a analisar a brincadeira na primeirainfância à luz dessa brincadeira tardia com regrase seu estudo levou à conclusão que a brincadeiracom situação imaginária representa,essencialmente, os jogos com regras. Parece-meaté possível admitir a hipótese de que não existebrincadeira em que não haja comportamento dacriança submetido a regras, uma relação singularda criança com as regras.

Permitam-me esclarecer esse raciocíonio.Tomemos qualquer brincadeira com situaçãoimaginária. A situação imaginária em si já contémregras de comportamento, apesar de não ser umabrincadeira que requeira regras desenvolvidas,formuladas com antecedência. A criançaimaginou-se mãe e fez da boneca o seu bebê. Eladeve comportar-se submetendo-se às regras docomportamento materno. Isso foi muito bemdemonstrado por um estudioso com umexperimento original que tinha por base asconhecidas observações de Sully4. Esse autor,como se sabe, descreveu que a brincadeira éadmirável porque a situação em que ela ocorre ea situação real coincidem nas crianças. Duas irmãs- uma de cinco e outra de sete anos - certa vezcombinaram: "Vamos brincar de irmãs". É dessa

forma que Sully descreveu o caso de duas irmãsbrincando de serem duas irmãs, ou seja, elasbrincavam de uma situação real. A base dométodo do experimento mencionado era abrincadeira das crianças sugerida pelopesquisador, porém uma brincadeira que envolviarelações reais. Tive a oportunidade de, em certasocasiões, com muita facilidade, provocar esse tipode brincadiera nas crianças. Assim, é muito fácillevar a criança a brincar com a mãe de que ela éuma criança e a mãe é a mãe, ou seja, brincardaquilo que é realidade. Uma diferençasubstancial da brincadeira em relação à realidade,assim como a descreve Sully, é que a criança, aocomeçar a brincar, tenta ser a irmã. Na vida real,a criança comporta-se sem pensar que ela é irmãde sua irmã. Ela nada faz em relação à sua irmãporque ela é, realmente, sua irmã, a não ser,provavelmente, nos momentos em que sua mãeindica-lhe ou ordena-lhe essa ação, por exemplo,dizendo-lhe: "Dê a ela". Mas, durante abrincadeira de "irmãs", cada uma delas, o tempotodo, ininterruptamente, demonstra a sua relaçãode irmã; o fato de as duas terem iniciado abrincadeira de irmãs propicia-lhes a oportunidadede admitirem as regras de comportamento. (Eutenho de ser irmã da outra irmã, no decorrer detoda a situação da brincadeira). As ações dabrincadeira que combinam com a situação sãosomente aquelas que combinam com as regras.

Na brincadeira, toma-se a situação que destacaque essas meninas são irmãs, pois estão vestidasde maneira igual, andam de mãos dadas, ou seja,destaca-se aquilo que indica a situação delas deirmãs em relação aos adultos, em relação aosestranhos. A mais velha, segurando a mais novapela mão, o tempo todo fala daqueles que estãorepresentando pessoas: "São estranhos, não sãoconhecidos". Isso significa: "Eu e minha irmãagimos do mesmo modo uma com a outra, osadultos que nos conhecem tratam-nos de formaigual, mas com os outros, com estranhos, édiferente". Aqui, o que se destaca é tudo o que éigual e que está contido, para a criança, no3Em russo, a palavra igra é empregada tanto para referir-se à brincadeira quanto aojogo. (N.daT.)

4James Sully (1842-1923). (N.da T.)

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conceito de irmã. Isso significa que a minha irmãestá para mim numa relação diferente das quetenho com os estranhos. Aquilo que existe e éimperceptível para a criança, na vida real,transforma-se em regra na brincadeira.

Dessa forma, revela-se que, se criarmos umabrincadeira sem uma situação imaginária, então,o que resta Resta a regra. A criança começa a secomportar conforme o que dita a situação.

Vamos deixar, por um minuto, esse notávelexperimento no campo da brincadeira e examinaruma brincadeira qualquer. Parece-me que sempreque há uma situação imaginária na brincadeira,há regra. Não são regras formuladas previamentee que mudam ao longo da brincadeira, mas regrasque decorrem da situação imaginária. Por isso, ésimplesmente impossível supor que a criança podese comportar numa situação imaginária semregras, assim como se comporta numa situaçãoreal. Se a criança faz o papel da mãe, então elatem diante de si as regras do comportamento damãe. O papel que a criança interpreta e a suarelação com o objeto, caso este tenha seusignificado modificado, sempre decorrem dasregras, ou seja, a situação imaginária, em simesma, sempre contém regras. Na brincadeira, acriança é livre. Mas essa liberdade é ilusória.

Se, no início, a tarefa do pesquisador era a dedesvendar a regra oculta contida em qualquerbrincadeira com situação imaginária, pois bem,recentemente, obtivemos a comprovação de quea chamada brincadeira pura com regras (doescolar e do pré-escolar até o fim dessa idade)consiste, essencialmente, na brincadeira comsituação imaginária, pois, exatamente da mesmaforma como a situação imaginária contém em si,obrigatoriamente, regras de comportamento,qualquer brincadeira com regras contém em si asituação imaginária. O que significa, por exemplo,jogar xadrez Criar uma situação imaginária. Porque Porque ainda que sejam conceitos própriosdo xadrez o peão poder andar somente de umaforma, o rei de outra, a rainha de outra; "comer",perder peças, etc., mesmo assim há uma certasituação imaginária que está sempre presente enão substitui diretamente as relações reais da vida.Pensem na mais simples brincadeira de criançascom regras. No mesmo instante em que a

brincadeira começa a ser regulada por algumasregras, ela se transforma numa situaçãoimaginária, pois uma série de ações reais revela-se impossível nessa situação.

Da mesma forma como, no início, foi possíveldemonstrar que qualquer situação imagináriacontém regras ocultas, demonstrou-se também oinverso: que qualquer brincadeira com regrascontém em si uma situação imaginária oculta. Odesenvolvimento que parte de uma situaçãoimaginária às claras e regras ocultas para abrincadeira com regras às claras e uma situaçãoimaginária oculta compõe os dois pólos, demarcaa evolução da brincadeira infantil.

Qualquer brincadeira com situação imaginária é,ao mesmo tempo, brincadeira com regras e qualquerbrincadeira com regras é brincadeira com situaçãoimaginária. Parece-me que essa tese está clara.

No entanto, surge um mal-entendido que énecessário eliminar desde o início. A criançaaprende a comportar-se, segundo a regraconhecida, desde os primeiros meses de sua vida.A vida de uma criança pequena está repleta deregras como: tem de ficar sentada à mesa e calada,não mexer nas coisas dos outros, ouvir a mãe. Oque, então, há de específico nas regras dabrincadeira A solução dessa questão torna-sepossível à luz de alguns trabalhos.Particularmente, nesse caso, o novo trabalho dePiaget dedicado ao desenvolvimento das regrasmorais na criança trouxe um enorme auxílio. Nele,há uma parte dedicada ao estudo das regras dabrincadeira na qual Piaget apresenta, ao que meparece, uma solução extremamente convincentedessas dificuldades.

Como ele mesmo se expressa, Piaget reconhece doiscomportamentos morais na criança, duas fontes dedesenvolvimento das regras do comportamentoinfantil que se diferenciam uma da outra.

Na brincadeira, isso evidencia-se com muitaclareza. Algumas regras surgem na criança, comodemonstra Piaget, pela influência unilateral doadulto sobre ela. A proibição de mexer nas coisasdos outros é uma regra que foi apresentada pelamãe; a exigência de ficar quieta à mesa é aquiloque os adultos apresentam como uma lei externapara a criança. Essa é a primeira moral da criança.

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Outras regras surgem, como diz Piaget, pelacolaboração mútua do adulto com a criança, oudas crianças entre si; a própria criança participado estabelecimento delas.

É claro que as regras das brincadeirasdiferenciam-se substancialmente de regras comonão mexer nas coisas dos outros e ficar quieto àmesa. Em primeiro lugar, por serem estabelecidaspela própria criança. São regras da criança para siprópria, como diz Piaget, regras de auto-limitaçãoe auto-determinação internas. A criança fala a simesma: tenho que me comportar assim e assimnessa brincadeira. Isso é totalmente diferente dequando lhe dizem que pode fazer isso e não podefazer aquilo. Piaget demonstrou um fenômenomuito interessante no desenvolvimento da moralinfantil, denominando-o de realismo moral. Eleindicou que a primeira linha de desenvolvimentodas regras externas (o que pode e o que não pode)conduz ao realismo moral, ou seja, leva a criançaa confundir as regras morais com as físicas. Elaconfunde regras como não poder acender, pelasegunda vez, um palito de fósforo que já foi acesoe não poder acender palitos de fósforos ou pegarcopos de vidro, pois podem se quebrar. Todosesse "nãos" para a criança pequena são o mesmo;todavia, é totalmente diferente sua relação comas regras que estabelece por conta própria5.

Passamos, agora, para a questão sobre o papel dabrincadeira e sua influência no desenvolvimentoda criança. Para mim, essa influência é enorme.

Tentarei apresentar duas idéias principais. Pensoque a brincadeira com situação imaginária é algoessencialmente novo, impossível para a criançaaté os três anos; é um novo tipo decomportamento, cuja essência encontra-se no fatode que a atividade, na situação imaginária, libertaa criança das amarras situacionais.

O comportamento da criança pequena,principalmente do bebê, como demonstraram asexperiências de Lewin e outras, é determinadopela situação em que a atividade ocorre. Umexemplo famoso é o da pedra, descrito por Lewin.Essa experiência é a ilustração real de como acriança pequena está ligada, em cada atitude, àsituação em que sua atividade ocorre.

Encontramos nisso um traço excepcionalmentecaracterístico do comportamento da criançapequena em sua relação com um ambiente quelhe é familiar, com uma situação real na qualocorre sua atividade. É difícil imaginar a grandecontradição que há entre as experiências deLewin, que mostram as amarras situacionais daatividade, com o que vemos na brincadeira: nabrincadeira, a criança aprende a agir em funçãodo que tem em mente e não do que vê. Parece-me que essa fórmula transmite com precisãoaquilo que ocorre na brincadeira: a criançaaprende a agir em função do que tem em mente,ou seja, do que está pensando, mas não estávisível, apoiando-se nas tendências e nos motivosinternos, e não nos motivos e impulsosprovenientes das coisas. Gostaria de lembrar oestudo de Lewin sobre o caráter impulsionadordas coisas para a criança na primeira infância,segundo o qual os objetos ditam a ela o que temde fazer - a porta induz-lhe o querer abrí-la efechá-la; a escada, a querer subir, o sininho aquerer tocá-lo. Ou seja, nas atividades da criançana primeira infância, a força impulsionadoraprovém dos objetos e determina ocomportamento dela, tanto que Lewin chegou apensar em criar uma tipologia psicológica, ou seja,a expressar matematicamente a trajetória domovimento da criança no campo, dependendo decomo para ela estão dispostos os objetos com umaforça diferente de atração e de impulsão.

Onde está a raiz das amarras situacionais dacriança Nós a encontramos num fato central daconsciência, característico da primeira infância,e que diz respeito à união entre o afeto e apercepção. Em geral, nessa idade, a percepçãonão é um momento independente, mas ummomento incial na reação motora-afetiva, ou seja,qualquer percepção é estímulo para a atividade.Como, psicologiacamente, a situação sempre édada por meio da percepção que, por sua vez,não está separada da atividade afetiva e motora,então, fica claro que, tendo esta estrutura de

5Apontamos, na aula passada, para o caráter da percepção das regras externas decomportamento pela criança pequena; falamos que todos os tipos de "nãos" - ossociais (proibição), os físicos (impossibilidade, por exemplo, de acender pela segundavez um palito de fósforo já queimado) e os biológicos (não poder, por exemplo, tocaro samovar porque pode se queimar) - confluem para um único "não" "situacional" quepode ser compreendido como uma "barreira" (no sentido da expressão de Lewin)(N.do A.)

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consciência, a criança não poderia agir de formadiferente a não ser ligada à situação ou ao campoem que se encontra.

Na brincadeira, contudo, os objetos perdem o seucaráter impulsionador. A criança vê algo, mas agede forma diferente em relação ao que vê. Assim,percebe-se que a criança começa a agirindependentemente daquilo que vê. Há pessoasdoentes que, tendo uma certa área do cérebroafetada, perdem a capacidade de agirindependentemente daquilo que vêem; aoobservar essas pessoas, pode-se entender que aliberdade da ação, existente em cada um de nós ena criança de idade mais avançada, não é dadade imediato e, certamente, passa por um longocaminho de desenvolvimento.

A ação na situação que não é vista, mas somentepensada, a ação num campo imaginário, numasituação imaginária, leva a criança a aprender a agirnão apenas com base na sua percepção direta doobjeto ou na situação que atua diretamente sobreela, mas com base no significado dessa situação.

Nos experimentos e nas observações diárias, ascrianças na primeira infância revelam que, paraelas, há impossibilidade de divergências entre ocampo do significado e o visual. Esse é um fatomuito importante. Até mesmo uma criança dedois anos, quando tem de repetir, olhando para acriança sentada à sua frente: "Tânia estáandando", modifica a frase e diz: "Tânia estásentada". Em algumas doenças encontramos amesma situação. Goldstein e Gelb descreveramvários doentes que não conseguiam referir-se aalguma coisa que não correspondesse à realidade.Gelb tem registros sobre um doente que sabiaescrever bem com a mão esquerda e nãoconseguia escrever a frase: "Eu sei escrever bemcom a mão direita"; que, olhando pela janela, numdia de sol, não conseguia repetir a frase: "Hoje otempo está ruim", e dizia: "Hoje o tempo estábom". Freqüentemente, nos doentes comdisfunções na fala, constatamos o sintoma daimpossibilidade de repetição de uma frase semsentido, por exemplo, "A neve é preta", aindaque consigam repetir uma série de outrasfrases bem difíceis tanto no aspecto gramaticalquanto semântico.

Na primeira infância, há uma união íntima da palavracom o objeto, do significado com o que a criançavê. Durante esse momento, a divergência entre ocampo semântico e o visual faz-se impossível.

Não é difícil compreender isso, levando-se emconta o processo de desenvolvimento da fala dacriança. O adulto diz à criança: "relógio". Elacomeça a procurar e encontra-o, ou seja, aprimeira função da palavra diz respeito àorientação no espaço, à distinção de lugaresseparados no espaço; a palavra, inicialmente,significa um lugar conhecido na situação.

Na brincadeira da idade pré-escolar temos, pelaprimeira vez, a divergência entre o camposemântico e o ótico. Parece-me ser possível repetiro raciocínio de um pesquisador que diz que, nabrincadeira, a idéia separa-se do objeto e a açãodesencadeia-se da idéia e não do objeto.

Devido ao fato de, por exemplo, um pedaço demadeira começar a ter o papel de boneca, um cabode vassoura tornar-se um cavalo, a idéia separa-se do objeto; a ação, em conformidade com asregras, começa a determinar-se pelas idéias e nãopelo próprio objeto. É difícil avaliar, em todo oseu sentido, essa guinada na relação entre acriança e a situação real, tão próxima e concreta.A criança não faz isso imediatamente. Separar aidéia (significado da palavra) do objeto é umatarefa tremendamente difícil para a criança. Abrincadeira é uma forma de transição para isso.Nesse momento em que o cabo de vassoura, ouseja, o objeto, transforma-se num ponto de apoio(pivô) para a separação do significado 'cavalo' docavalo real, nesse momento crítico, modifica-seradicalmente uma das estruturas psicológicas quedeterminam a relação da criança com a realidade.

A criança não consegue separar a idéia do objeto;ela precisa ter um ponto de apoio em outro objeto.Temos, aqui, a expressão de uma fraqueza dacriança: para pensar sobre o cavalo, ela precisaprojetar, no cabo de vassoura, no pivô, suas açõescom esse cavalo. Porém, nesse momento crítico,muda radicalmente a estrutura principal quedetermina a relação entre a criança e a realidade,mais precisamente, a estrutura da percepção. Aespecificidade da percepção humana, que surgena primeira infância, constitui-se no que se

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denomina de percepção real. Na percepçãoanimal não há nada que se assemelhe a isso.Essencialmente, isso quer dizer que eu vejo omundo não apenas de cores e formas, mas vejo-ocomo um mundo que possui significado e sentido.Vejo não algo redondo, negro, como doisponteiros, mas vejo o relógio e posso separar umacoisa da outra. Existem doentes que, ao veremum relógio, dizem ver algo redondo, branco, comduas faixas finas de aço, mas não sabem que éum relógio. Perderam a relação real com o objeto.Então, a estrutura da percepção humana poderiaser expressa, de modo figurado, em forma defração, onde o numerador é o objeto e odenominador é o sentido. Isso expresa umaconhecida relação entre o objeto e o sentido quesurge baseada na fala e significa que cadapercepção humana não é única, mas generalizada.Goldstein diz que essa percepção-em-forma-de-objeto e generalização é a mesma coisa. Nacriança, o objeto é o dominante na fração objeto-sentido; o sentido está diretamente ligado aoobjeto. No momento crítico, quando o cabo devassoura transforma-se em cavalo para a criança,ou seja, quando o objeto - cabo de vassoura -transforma-se no pivô para separar o significado'cavalo' do cavalo real, essa fração, como diz opesquisador, inverte-se e o dominante passa a sero momento semântico: sentido/objeto.

Entretanto, todas as características do objetocomo tal conservam um significado importante:qualquer cabo de vassoura pode assumir o papelde cavalo, mas, por exemplo, um cartão postalnão pode ser um cavalo para a criança. A tese deGoethe de que, para a criança, na brincadeira,tudo pode transformar-se em tudo, está errada.Para os adultos, no simbolismo consciente, éclaro, até um cartão postal pode ser um cavalo.Caso eu queira fazer uma demonstraçãoexperimental, coloco um palito de fósforo e digo:cavalo. Basta isso. Para a criança, isso não podeser um cavalo, tem que ser um palito. Por isso, abrincadeira não é simbólica. O símbolo é umsigno, mas, no caso que estamos tratando, o palitode fósforo não é um signo do cavalo. Nabrincadeira, as características dos objetosconservam-se, mas o significado deles muda, ouseja, o sentido torna-se o ponto central. Pode-se

dizer que, nessa estrutura, os objetos passam deponto predominante para subordinado.

Dessa forma, na brincadeira, a criança cria aseguinte estrutura sentido/objeto, em que oaspecto semântico, o significado da palavra, osignificado do objeto, é dominante e determinaseu comportamento.

Até certo ponto, o significado emancipa-se doobjeto a que, antes, estava diretamente unido. Euaté diria que, na brincadeira, a criança opera como significado separadamente do objeto, mas osignificado é inseparável da ação com o objeto real.

Assim, surge uma contradição extremamenteinteressante: a criança opera com os significadosdos objetos separados dos significados das ações,mas opera com eles sem interromper a relaçãocom qualquer ação real e com qualquer outracoisa real. Esse é exatamente o carátertransitório da brincadeira que faz com que setransforme num elo intermediário entre asamarras situacionais da primeira infância e opensamento isolado da situação real.

Na brincadeira, a criança opera com objetos comosendo coisas que possuem sentido, opera com ossignificados das palavras, que substituem osobjetos; por isso, na brincadeira, ocorre aemancipação das palavras em relação aos objetos(um behaviorista descreveria a brincadeira e suascaracterísticas da seguinte forma: a criançadenomina os objetos comuns com nomesincomuns; denomina suas ações comuns comrepresentações incomuns, apesar de saber seusverdadeiros nomes).

Para que a palavra se separe do objeto, necessita-se de um pivô em forma de outro objeto. Mas, nomomento em que o cabo de vassoura, ou seja, oobjeto, transforma-se em pivô para a separaçãodo significado "cavalo" do cavalo real (a criançanão consegue separar o significado ou a palavrado objeto de maneira diferente, a não serencontrando um pivô em outro objeto, ou seja,ela tem de, com a força de um objeto, roubar onome do outro) - isso parece forçar um objeto aagir sobre o outro no campo semântico. Atransferência dos significados é facilitada, pois acriança recebe a palavra como se fosse umacaracterística do objeto; a criança não vê a

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palavra, mas vê por detrás desta o objeto que elasignifica. Para a criança, a palavra "cavalo",atribuída ao cabo de vassoura, significa: "lá estáum cavalo", ou seja, mentalmente, ela vê o objetopor detrás da palavra.

Na idade escolar, a brincadeira desloca-se paraos processos internos, para a fala interna, amemória lógica e o pensamento abstrato. Nabrincadeira, a criança opera com significadosseparados dos objetos, mas sem interromper aação real com os objetos reais. Porém, a separaçãodo significado 'cavalo' do cavalo real, a suatransferência para o cabo de vassoura (um pontode apoio palpável, pois de outra forma osignificado sumiria, evaporar-se-ia) e o manejoreal deste como se fosse um cavalo constituemuma etapa transitória necessária para operar comos significados. Ou seja, a criança opera antescom os significados da mesma forma que com osobjetos; depois, toma consciência deles e começaa pensar. Isto é, assim como antes da falagramatical e da escrita, a criança possui saberes,mas ela não sabe, não tem consciência de que ospossui e não os domina voluntariamente, nabrincadeira, ela usa inconsciente einvoluntariamente o significado que pode serseparado do objeto, ou seja, ela não sabe o que oobjeto faz, não sabe que fala em prosa, fala semperceber a palavra.

Disso decorre a definição funcional dos conceitos,ou seja, dos objetos; disso decorre que a palavraé parte do objeto.

Então, gostaria de dizer que o fato de criar umasituação imaginária não é casual na vida dacriança. Ele tem como primeira conseqüência asua emancipação das amarras situacionais. Oprimeiro paradoxo da brincadeira é que a criançaopera com o significado, separadamente, masnuma situação real. O segundo é que a criançaage na brincadeira pela linha da menor resistência,ou seja, ela faz o que mais deseja, pois a brincadeiraestá ligada à satisfação. Ao mesmo tempo, aprendea agir pela linha de maior resistência: submetendo-se às regras, as crianças recusam aquilo quedesejam, pois a submissão às regras e a recusa àação impulsiva imediata, na brincadeira, é ocaminho para a satisfação máxima.

Observando crianças num jogo esportivo veremoso mesmo. Apostar corridas revela-se difícil porqueos competidores estão prontos para disparar dolugar assim que ouvem o "1, 2..." e nãoconseguem aguardar o "3". Pelo visto, a essênciadas regras internas está na necessidade da criançater que agir não por impulso imediato.

A cada passo, a brincadeira requerconstantemente da criança agir contra o impulsoimediato, ou seja, agir pela linha de maiorresistência. Naturalmente, o desejo é correr - issoé claro, mas as regras da brincadeira ordenam quefique parado. Por que a criança não faz o quedeseja naquele momento? Porque toda a estruturada brincadeira, se as regras forem seguidas,promete uma satisfação que é bem maior do queo impulso imediato. Em outras palavras, comodeclara um pesquisador lembrando-se daspalavras de Spinoza "Um afeto não pode serrefreado nem anulado senão por um afetocontrário e mais forte do que o afeto a serrefreado"6. Dessa forma, na brincadeira, é criadauma situação durante a qual surge, como diz Noll,um plano afetivo duplo. Por exemplo, ao brincar,a criança chora como um paciente, mas alegra-secomo um dos brincantes. Ela recusa o impulsoimediato, coordenando seu comportamento; cadaatitude sua está ligada às regras da brincadeira.Isso foi descrito maravilhosamente por Gross. Suatese é que a vontade de uma criança nasce e sedesenvolve nas brincadeiras com regras. Numasimples brincadeira de bruxa, descrita por Gross,para que não seja pega, a criança deve correr dabruxa; ao mesmo tempo, deve ajudar o colega etirar-lhe o feitiço. Assim que a bruxa tocá-la, acriança deve parar. Desse modo, a cada passo,enfrenta um conflito entre a regra da brincadeirae o que faria se pudesse agir imediatamente. Nabrincadeira, a criança age contra o que desejanaquele momento. Nol demonstrou que, nacriança, a maior força de autocontrole surge nabrincadeira. Ele induzia nas crianças uma vontademáxima de brincar, apresentando-lhes bombons,mas estes deveriam ser recusados durante a

6Spinoza, B. Ética. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2007. Tradução de TomazTadeu, p. 275.

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brincadeira, pois, segundo as regras desta, elesrepresentavam coisas não comestíveis.Normalmente, a criança vivencia a submissão à regrana recusa daquilo que quer fazer, mas, nesse caso, asubmissão à regra e a recusa de agir por impulsoimediato é o caminho para a satisfação máxima.

Dessa forma, uma característica essencial dabrincadeira é a regra, que se transformou em afeto."A idéia que virou afeto, o conceito que viroupaixão" - o protótipo desse ideal de Spinoza, nabrincadeira, que é o reino da liberdade. Ocumprimento da regra é a fonte da satisfação. Aregra vence o impulso mais forte (para Spinoza, oafeto pode ser vencido com um afeto fortíssimo).Disso decorre que essa regra é interna, ou seja,uma regra de autolimitação, autodeterminaçãointerna, como diz Piaget, e não uma regra a que acriança se submete como se fosse uma lei da física.Resumindo, a brincadeira dá à criança uma novaforma de desejos, ou seja, ensina-a a desejar,relacionando o desejo com o "eu" fictício, ou seja,com o papel na brincadeira e a sua regra. Por isso,na brincadeira são possíveis as maiores realizaçõesda criança que, amanhã, se transformarão em seunível médio real, em sua moral.

Agora, podemos falar sobre a atividade da criançao mesmo que falamos sobre o objeto. Da mesmaforma que existe uma fração objeto/sentido,existe também a fração ação/sentido.

Se, anteriormente, o momento dominante era aação, agora, a estrutura inverte-se: o sentidotorna-se o numerador e a ação o denominador.

É importante entender qual liberdade de ação acriança atinge na brincadeira, quando a açãotorna-se, ao invés de real, por exemplo, não ocomer real, mas representado com o movimentodos dedos, ou seja, quando a ação é realizadaem função do sentido que tem e não ditada pelaação em si mesma.

Na criança pré-escolar, inicialmente, a ação épredominante em relação ao sentido; é umaincompreensão dessa ação. A criança sabe fazermais do que entender. Na idade pré-escolar, pelaprimeira vez, surge uma estrutura de ação em queo sentido constitui-se em determinante; porém,a própria ação não é secundária, um momentosubmisso, mas um momento estrutural. Noll

demonstrou que as crianças comiam compratinhos, fazendo com as mãos movimentos quelembravam a verdadeira ação de comer, mas asações que não diziam respeito ao comer,propriamente, tornavam-se impossíveis. Colocaras mãos para trás, ao invés de estendê-las para oprato, tornava-se impossível, ou seja, isso influíana brincadeira de maneira transgressora. Acriança não simboliza na brincadeira, mas deseja,realiza vontades, vivencia as principais categoriasda atividade. Por isso, numa brincadeira, um diatranscorre em meia-hora e 100 quilômetros sãopercorridos com cinco passos. Ao desejar, acriança realiza; ao pensar, age; a não separaçãoentre a ação interna e a ação externa é aimaginação, a compreensão e a vontade, ou seja,processos internos numa ação externa.

O principal é o sentido da ação, mas a ação porsi só não é indiferente. Na primeira infância, haviauma situação contrária, ou seja, a ação eraestruturalmente determinada e o sentido era ummomento secundário, suplementar, subordinado.A mesma coisa que falamos sobre o significadoque se separa do objeto ocorre com as própriasações: a criança que está parada num lugar,pisando ora num pé ora no outro, imaginando queestá cavalgando num cavalo, ao mesmo tempoinverte a fração ação/sentido para sentido/ação.

Novamente, para desprender da ação real o seusentido (cavalgar num cavalo sem ter apossibilidade de fazer isso), a criança necessitade um pivô para substituir a ação real. Mas, denovo, se, anteriormente, na estrutura "ação -sentido", o determinante era a ação, agora, aestrutura inverte-se e o sentido transforma-se emdeterminante. A ação é passada para segundoplano e transforma-se no pivô - novamente, osentido desprende-se da ação com o auxílio deoutra ação. Esse é um ponto que se repete emdireção à possibilidade de operar exclusivamentecom os sentidos das ações, em direção à escolhavolitiva, à tomada de decisão, ao conflito demotivos e a outros processos bruscamentedesprendidos da efetiva realização da ação, ouseja, o caminho para a vontade, assim comooperar com os sentidos das coisas é o caminhopara o pensamento abstrato, pois na decisãovolitiva o ponto determinante não é a realização

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da própria ação, mas o seu sentido. Nabrincadeira, a ação substitui outra ação, assimcomo um objeto substitui o outro. Como a criança"refunde" uma coisa em outra, uma ação em outraIsso é realizado por meio de um movimento nocampo semântico e não está atrelado a coisasreais, ao campo visual, que submete a si todas ascoisas e as ações reais.

Esse movimento no campo semântico é o maisimportante na brincadeira: por um lado, é ummovimento num campo abstrato (o campo, então,surge antes de a criança começar a operar comsignificados), mas a forma do movimento ésituacional, concreta (ou seja, movimento nãológico, mas afetivo). Em outras palavras, surgeum campo semântico, mas o movimento neleocorre da mesma forma como no campo real.Nisso está a principal contradição genética dabrincadeira. Resta-me responder a três perguntas:a primeira é demonstrar que a brincadeira não éum momento predominante no desenvolvimentoda criança, e sim principal; a segunda, demonstrarem que consiste o desenvolvimento dabrincadeira em si, ou seja, o que significa omovimento que vai da predominância da situaçãoimaginária para a predominância das regras; e aterceira, demonstrar quais as reestruturaçõesinternas que a brincadeira provoca nodesenvolvimento da criança.

Eu penso que a brincadeira não é o tipopredominante de atividade da criança. Nasprincipais situações de vida, a criança comporta-se de forma diametralmente oposta ao modo comose comporta na brincadeira. Nesta, a ação dacriança submete-se ao sentido, mas, na vida real,a ação, é claro, prevalece em relação ao sentido.

Dessa forma, temos na brincadeira, se desejarem,o negativo do comportamento da criança na vidaem geral. Por isso, considerar a brincadeira comoprotótipo de sua atividade de vida, como umaforma predominante, é completamente semfundamentos. Nisso está a principal falha da teoriade Koffka que analisa a brincadeira como umoutro mundo da criança. Tudo aquilo que dizrespeito à criança, segundo Koffka, é atividadede brincar e, ao adulto, é atividade séria. Nabrincadeira, um mesmo objeto possui o mesmosentido; fora dela, possui outro. No mundo infantil

predomina a lógica dos desejos, a lógica dasatisfação dos impulsos, mas não a lógica real. Oilusório da brincadeira é transferido para a vida.Isso seria assim caso a brincadeira fosse a formapredominante de atividade da criança. Mas é difícilimaginar o quadro insano, que seria representadopela criança, se esse modo de atividade da qualestamos falando fosse transferida para a vida reale se transformasse na forma predominante deatividade na vida da criança.

Koffka apresenta uma série de exemplos de comoa criança transfere a situação de brincadeira paraa vida real. Porém, essa transferência decomportamento do brincar para a vida real podeser analisada somente como um sintoma dedoença. Comportar-se em situação real comonuma situação ilusória quer dizer apresentar osprimeiros brotos de delírio.

Como demonstrou um estudo, o comportamentonormal de brincar é observado quando abrincadeira tem um caráter de brincadeira de irmãs"de serem irmãs", ou seja, sentadas à mesa erealmente almoçando, as crianças podem brincarde almoçar, ou (no exemplo que apresenta Kats)as crianças, que não querem ir dormir, dizem:"Vamos brincar como se agora fosse de noite etemos de ir para a cama". Essas crianças começama brincar do que, na realidade, fazem, pelo visto,criando outras relações, aliviando com isso arealização de uma ação desagradável.

Dessa forma, parece-me que a brincadeiranão é um tipo de atividade predominante naidade pré-escolar. Somente nas teorias queanalisam a criança, não como um ser quesatisfaz as principais exigências da vida, mascomo um ser que vive à procura de prazeres,em busca da satisfação desses prazeres, podesurgir a idéia de que o mundo da criança éum mundo de brincadeira.

Seria possível no comportamento da criança umasituação tal que ela agisse sempre segundo osentido? Seria possível um comportamento áridodo pré-escolar tal que, com um bom-bom, secomportasse de forma diferente da que desejariaapenas por causa da idéia de que deve secomportar de forma diferente. Esse tipo desubmissão às regras é completamente impossível

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na vida; já na brincadeira, torna-se possível.Dessa forma, a brincadeira cria uma zona dedesenvolvimento iminente7 na criança. Nabrincadeira, a criança está sempre acima da médiada sua idade, acima de seu comportamentocotidiano; na brincadeira, é como se a criançaestivesse numa altura equivalente a uma cabeçaacima da sua própria altura. A brincadeira emforma condensada contém em si, como na mágicade uma lente de aumento, todas as tendências dodesenvolvimento; ela parece tentar dar um saltoacima do seu comportamento comum.

A relação entre a brincadeira e o desenvolvimentodeve ser comparada com a relação entre ainstrução e o desenvolvimento. Por trás dabrincadeira estão as alterações das necessidadese as alterações de caráter mais geral daconsciência. A brincadeira é fonte dodesenvolvimento e cria a zona dedesenvolvimento iminente. A ação num campoimaginário, numa situação imaginária, a criaçãode uma intenção voluntária, a formação de umplano de vida, de motivos volitivos - tudo issosurge na brincadeira, colocando-a num nívelsuperior de desenvolvimento, elevando-a para acrista da onda e fazendo dela a onda decúmanado desenvolvimento na idade pré-escolar, que seeleva das águas mais profundas, porémrelativamente calmas.

Em última instância, a criança é movida por meioda atividade de brincar. Somente nesse sentido abrincadeira pode ser denominada de atividadeprincipal, ou seja, a que determina odesenvolvimento da criança.

A segunda questão é como a brincadeira semovimenta É interessante o fato de que a criançacomeça pela situação imaginária, sendo que essasituação, inicialmente, é muito próxima dasituação real. Ocorre a reprodução da situaçãoreal. Digamos que, ao brincar de boneca, a criançaquase repete o que sua mãe faz com ela: o doutoracaba de examinar a garganta da criança; ela sentiudor, gritou, mas, assim que ele foi embora, nomesmo instante, a criança enfia uma colher naboca da boneca.

Então, na situação inicial, a regra está num estágiosuperior, em forma comprimida, amarfanhada. O

7Ainda que contrariando o uso já estabelecido por outras traduções (zona dedesenvolvimento proximal ou imediato), optamos pela palavra iminente porque elatraduz com mais propriedade a idéia de proximidade e possibilidade, ao mesmo tempo.(N.daT.)

imaginár io na s i tuação também éextremamente pouco imaginário. É umasituação imaginár ia , mas e la torna-secompreensível em sua relação com a situaçãoreal que acabou de ocorrer, ou seja, ela é arecordação de a lgo que aconteceu. Abrincadeira lembra mais uma recordação doque uma imaginação, ou seja, ela parece sermais a recordação na ação do que uma novasi tuação imaginár ia . À medida que abr incadeira se desenvolve, temos omovimento para o lado no qual se tomaconsciência do objetivo da brincadeira.

É incorreto imaginar que a brincadeira é umaatividade sem objetivo. Ela é uma atividade dacriança com objetivo. Nos jogos esportivos, existeo vencedor e o vencido, pode-se chegar primeiro epode-se ser o segundo ou o último. Resumindo, oobjetivo decide o jogo. O objetivo é aquilo graçasa que se empreende todo o resto. Como o momentofinal, ele determina a relação afetiva da criançacom o jogo; apostando corrida, ela pode preocupar-se demasiadamente e aborrecer-se muito; de suasatisfação pouco pode restar porque correr paraela é difícil fisicamente e, caso a ultrapassem, sentirápoucas satisfações funcionais. Ao final dos jogosesportivos, o objetivo torna-se um dos momentosdominantes sem o qual o jogar perde seu sentido,assim como seria colocar na boca uma balagostosa, mastigá-la e cuspí-la.

No jogo, tem-se a consciência antecipada doobjetivo definido - quem chegará primeiro.

No final do desenvolvimento, aparece a regra e,quanto mais rígida, mais adaptação exige dacriança; quanto mais regula a atividade da criança,mais tenso e acirrado torna-se o jogo. No jogo, asimples corrida sem objetivo, sem regras, é umjogo indolente que não empolga as crianças.

Noll simplificou as regras do jogo de croquet paracrianças. Assim fazendo, demonstrou como issodesanima, ou seja, como para a criança o jogoperde o sentido à medida que as regras são

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dispensadas. Conseqüentemente, até o final dodesenvolvimento, no jogo, aparece nitidamenteo que estava no início em forma de embrião.Aparece o objetivo, ou seja, as regras. Isso estavapresente anteriormente, mas em formaamarfanhada. Surge mais um momento que éessencial para o jogo esportivo - é a idéia derecorde que também está muito ligada ao objetivo.

Tomemos, por exemplo, o xadrez. É muitoagradável jogar uma partida de xadrez e não éagradável para o jogador perdê-la. Noll diz quepara a criança também é agradável chegarprimeiro, assim como para uma pessoa bonitaolhar-se no espelho; o resultado é umsentimento de satisfação.

Conseqüentemente, no final do desenvolvimentoda brincadeira, surge um conjunto de qualidadesque salta à frente na mesma proporção em queestá amarfanhado no início; os momentos que sãosecundários ou colaterais no início, tornam-secentrais no final e, ao contrário, os momentosprincipais no início, tornam-se colaterais no final.

Finalmente, a terceira questão - qual é o gênerodas alterações de comportamento da criança quea brincadeira produz Na brincadeira, a criança élivre, ou seja, ela determina suas atitudes, partindodo seu "eu". Mas, é uma "liberdade" ilusória. Acriança submete suas ações a um determinadosentido, ela age, partindo do significado do objeto.

A criança aprende a ter consciência de suaspróprias ações, a ter consciência de que cadaobjeto tem um significado.

Do ponto de vista do desenvolvimento, a criaçãode uma situação imaginária pode ser analisadacomo um caminho para o desenvolvimento dopensamento abstrato; a regra que se liga a issoparece-me levar ao desenvolvimento de ações dacriança com base nas quais torna-se possível, emgeral, a separação entre a brincadeira e os afazerescotidianos, separação esta com que nos deparamos,na idade escolar, como um fato principal.

Gostaria, ainda, de chamar a atenção para maisum momento: a brincadeira é realmente umaespecificidade da idade pré-escolar.

Segundo a expressão figurada de um estudioso, abrincadeira da criança de até 3 anos de idade temum caráter de brincadeira séria, assim como o jogopara o adolescente, é claro, em diferentes sentidosdessa palavra. A brincadeira séria da criança naprimeira infância consiste em que ela brinca semdiferenciar a situação imaginária da situação real.

Na criança em idade escolar, a brincadeira começa aexistir em forma limitada de atividades,predominantemente, como jogos esportivos quedesempenham um papel conhecido nodesenvolvimento geral dessa criança, mas que nãotêm o significado que desempenha para o pré-escolar.

Por seu aspecto, a brincadeira parece com aquiloao que ela conduz e somente sua análise internaprofunda mostra a possibilidade de determinar oprocesso de seu movimento e seu papel nodesenvolvimento da criança em idade pré-escolar.

Na idade escolar, a brincadeira não morre, maspenetra na relação com a realidade. Ela possuisua continuação interna durante a instruçãoescolar e os afazeres cotidianos (uma atividadeobrigatoriamente com regras). Toda a análiseda essência da brincadeira demonstrou-nosque, nela, cria-se uma nova relação entre ocampo semântico, isto é, entre a situaçãopensada e a situação real.