S Clemente Maria Hofbauer

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1 SÃO CLEMENTE MARIA HOFBAUER Insigne propagador da CONGREGAÇÃO DO SS. REDENTOR pelo P. OSCAR CHAGAS AZEREDO C.Ss.R. 1928 Edição da Livraria Nossa Senhora Aparecida Ediçªo PDF de Fl.Castro, abril 2002

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SÃO CLEMENTE MARIA HOFBAUERInsigne propagador da

CONGREGAÇÃO DO SS. REDENTOR

pelo

P. OSCAR CHAGAS AZEREDOC.Ss.R.

1928

Edição daLivraria Nossa Senhora Aparecida

Edição PDF de Fl.Castro, abril 2002

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NIHIL OBSTAT.S. Pauli, 22 Februarii 1927.

Can. Dor. Joannes Martins LadeiraCensor.

IMPRIMI POTEST.Pe. Estevam Maria

Vice-Provincial

IMPRIMATURMons. Pereira Barros

Vig. Geral

PRÓLOGOMais uma hagiografia entregue aos católicos da nossa Pátria. Abrindo o

livro esperam alguns deleitar-se na leitura empolgante de sensacionais mila-gres, êxtases contínuos, penitências sobre-humanas, na certeza de que santosó é aquele que opera prodígios estupendos. Julgam que a santidade consistenos milagres e que o Santo, alheio a este mundo, deve habitar uma altura ina-cessível e ser dotado do dom da impecabilidade. Quanto mais estupendos osprodígios, maior o Santo.

Para eles a santidade é coisa que se admira — e que muitos não crêem —e que se não pode imitar. Extasiam-se ante a vida extraordinária de um S. Ge-raldo que desde o berço brincava com os milagres e vivia em êxtases contínu-os; param perplexos ante a poesia perfumosa de um coração santamente infan-til de uma Teresinha, que nas doçuras de uma alma bondosa e calma se desfa-zia nos sentimentos e arroubos místicos da união íntima com Deus — e sentemcerta repugnância daqueles que nos combates se exercem pela prática dasmais acrisoladas virtudes sem as exterioridades de fatos extraordinários.

É um engano. A santidade não consiste absolutamente nos milagres queDeus opera, quando lhe apraz, e que são apenas a manifestação, nem semprenecessária, da santidade interna. A verdadeira santidade está em executar emtudo e do modo mais perfeito possível a vontade santíssima de Deus. Ela de-pende não só do socorro do alto mas também — e principalmente — da coope-ração do homem, sem a qual não pode haver merecimento nem recompensa.

Em São Clemente Maria não encontramos a multidão espantosa dos mila-gres nem os êxtases continuados; em sua vida não se manifesta um coraçãoconvulsionado por violentas paixões internas com os enredos empolgantes quecostumam adornar os romances fantásticos. A grande de São Clemente é bemdiversa; de coração singelo e pacato sabia conviver com a sociedade sem nelase manchar; era simples, amável, alegre, despreocupado a cantar hinos religio-sos e, na intimidade, capaz de gracejos inocentes.

Os combates que São Clemente teve de travar em vida são todos de or-dem exterior: as perseguições que suportou, os desgostos por que passou, ofracasso dos seus esforços, e o aparente insucesso das suas obras: em tudoisto São Clemente tornou-se modelo da mais inabalável constância e da maisinteira confiança em Deus, esperando qual outro Abraão contra a esperança.Em tudo ele é digno da nossa imitação, e isso é para nós a coisa mais importan-te na vida dos Santos.

Clemente recebera de Deus um papel especial a representar sobre a terra.Nas grandes calamidades e nos cataclismos sociais Deus sempre suscita

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um herói que lhes faça frente e lhes possa apresentar remédio salutar. QuandoClemente apareceu reinava na Europa o indiferentismo religioso a par doracionalismo mais declarado, produzido pelas idéias josefinas. Na sua infânciaClemente assistira ao espetáculo desolador da guerra dos sete anos; nos anosdo seu apostolado presenciou o desmembramento da Polônia, e mais tarde foivítima das arbitrariedades de Napoleão. A vida agitada da Europa favorecia otorpor e indiferentismo religioso.

Clemente, com a sua constância de aço e com o seu coração afogueadode amor à santa religião, conseguiu quebrar o gelo e despertar a vida religiosanão só entre o povo, mas ainda nos professores e alunos da Universidade e,com eles, nas altas rodas sociais.

Os nossos tempos são, mais ou menos, como os de São Clemente; vemoso racionalismo dominar as massas, o sentimentalismo avassalar pessoas aliásbem intencionadas. Precisamos de homens que imitem o grande Apóstolo deViena, inflamados do mesmo zelo e do mesmo amor à Santa Igreja. São Cle-mente é um Santo moderno, no sentido verdadeiro da palavra. Também hojepodemos dizer como outrora o vigário de Babenhausen: “Dai-me quatro Cle-mentes... que eu converterei impérios”.

No nosso meio começa felizmente a despertar-se uma nova vida de pieda-de sólida e esclarecida. Do terreno putrefato do racionalismo levantam-se floresmimosas de virtude, centros de piedade. Uma árvore frondosa estende seusramos produzindo os mais saborosos frutos: a “Liga Católica Jesus, Maria, José”.São homens de fé esclarecida que tomaram por lema da sua vida restaurarsantamente a família brasileira. Ora, especialmente para os liguistas quisemosescrever esta biografia, onde encontrarão o modelo consumado e o guia segurona grande obra da restauração social.

Que cada liguista manuseie, estude e saboreie, em família, essa vida cheiade peripécias guiada pela luz da fé! É Clemente o propagador insigne da Con-gregação Redentorista, e quem é que não conhece ainda o redentorista, quecom sua batina preta e colarinho branco, e o rosário da Virgem pendente aolado, percorre as cidades e aldeias de nossa Terra evangelizando e chamandoas almas para Deus? Que Ele pois mereça a confiança e o amor do povo brasi-leiro!

***

E agora, livrinho meu, levanta o vôo e percorre o Brasil de Norte a Sulcantando as glórias de São Clemente; faze-o conhecido e amado dos nossospatrícios! Conta às criancinhas a docilidade e a obediência do filhinho do cortadorde Tasswitz, e aos operários a humildade do padeiro de Znaim; descreve aosinocentes a pureza virginal de Clemente, e aos pecadores o seu zelo e amordas almas. Penetra os conventos e descreve aos religiosos a vida interior erecolhida do grande Apóstolo do Norte; não receies entrar em todos os lares efalar a todos os corações das virtudes do grande Redentorista. Se caíres nasmãos de um sacerdote, sobretudo nas de um vigário, canta-lhe melodiosamen-te os trabalhos de S. Beno e de Viena.

Não canses, livrinho meu, nem desanimes, corre, voa ganhando os cora-

ções para Jesus! Desejo-te, de coração, a melhor viagem e os maiores triunfospara a glória do teu herói.

S. Paulo, Festa do Santíssimo Redentor, 18 de julho de 1926.O AUTOR.

Neste trabalho foram utilizadas as mais conhecidas biografias de São Cle-mente, mormente as seguintes: Hofer, Bauchinger, Innerkofler, Haringer, Pichler,Brunner, Freund, Saint-Omer, autores todos da mais comprovadas competên-cia e dignos de toda a fé.

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ÍNDICE

PARTE PRIMEIRA

LUTA PELO SACERDÓCIO(1751-1786)

CAPÍTULO INo lar paternoA pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de Clemente — Primeiras

dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuroApóstolo.

CAPÍTULO IIOs primeiros estudosProcura um ofício — Os sentimentos nobres — O São Cristóvão — No

convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristasdo Convento — Dificuldade nos estudos.

CAPÍTULO IIIPeregrinaçõesO ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o

ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria etorna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras vonMaul.

CAPÍTULO IVNa universidade de VienaOs estudos na Áustria — Na universidade — Contradiz o professor — En-

contro com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso —Novamente em Roma.

CAPÍTULO VO santo RedentoristaEm Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É

recebido na Congregação Redentorista. — O noviciado — O espírito da Con-gregação — A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia deSto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes.

PARTE SEGUNDA

NA CAPITAL DA POLÔNIA (1787-1808)

CAPÍTULO IOs primeiros anos em VarsóviaEm Viena — Estado lamentável da religião na Áustria — Destina-se à

Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificuldades — Se-nhor, agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégioem Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação.

CAPÍTULO IIO apostolado em VarsóviaPolônia e sua história — Finis Poloniae — O comando da Prússia — Os

trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vidade convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado da im-prensa.

CAPÍTULO IIIViagens de fundaçãoO desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em

Praga — Lindau — Em Viena — Morte inesperada — Novo recrutamento —Novas dificuldades com o governo — A imagem da Virgem.

CAPÍTULO IVOs anos de 1798 a 1802Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas —

A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno— Date et dabitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção doSeminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livrepensadores em ação — S. Beno hostilizado.

CAPÍTULO VNa diocese da ConstânciaEm Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clé-

rigos na Itália — As necessidades do novo convento — Clemente em Jestetten— O rico cardápio — Triberg, santuário da Virgem — Uma noite no paiol —Recepção em Triberg — Reanimação da vida de piedade — Raiva do demônio— Triberg abandonada.

CAPÍTULO VINa SuabiaOndas de soldados — Napoleão e Clemente — O manto ou a vida — Em

Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no ser-mão — A ferreira apostrofada — O violinista convertido — O rapaz libertino —Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas —Perseguições.

CAPÍTULO VIIO último ano em S. BenoUm jantar depois da oração da noite — Perseguições em Varsóvia — Aten-

tado contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Bavierahostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes aconteci-mentos em Varsóvia.

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CAPÍTULO VIIIA expulsãoVerdadeira causa da expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Sole-

nidade da Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução doDecreto — Resignação do Santo.

PARTE TERCEIRA

O APÓSTOLO DE VIENA (1808-1820)

CAPÍTULO IChegada à Viena e primeiros trabalhosChega à Viena — Dificuldades com a polícia — O racionalismo na Áustria

— Napoleão e Francisco da Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha deAspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos —Intimação do governo — Notícias de Valais — Fundação em Friburgo.

CAPÍTULO IIO primeiro ano em Santa ÚrsulaObrigações do Reitor da igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire gran-

de nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas.CAPÍTULO IIIO CONGRESSO DE VIENAClemente na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela

religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dosbastidores — Trabalho depois do Congresso

CAPÍTULO IVO sábio pregadorExposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcioná-

rio josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos —Apreciações populares — Proibição de pregar...

CAPÍTULO VO zeloso auxiliar nas pregaçõesConversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador

dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo —Esses moleques...

CAPÍTULO VIO Santo ao altarO Serafim ante o tabernáculo — O humilde ajudante de missa — As piedo-

sas traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarentahoras.

CAPÍTULO VIIO devoto da VirgemDevoção combatida — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas

— O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoçãoa Maria; uma necessidade — Os Santuários da Virgem.

CAPÍTULO VIIIO prudente Confessor

Confessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca —Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa derapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. Joséno altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessa-se sem o saber.

CAPÍTULO IXO amigo dos doentesO caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa

neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido emcordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma cajadada —Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Con-versão estupenda na hora da morte.

CAPÍTULO XSua dedicação aos pobresO pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multi-

plicação milagrosa — A postulante maravilhada — As dívidas das Ursulinas —O peixe pagador — Os sapatos da Irmã — O batalhão dos pobres.

CAPÍTULO XIO sábio conselheiroO Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma

profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal.CAPÍTULO XIIO Santo SuperiorVida interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vida de simpli-

cidade — Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitosdos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma.

CAPÍTULO XIIIO amigo das criançasPorque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção

— Carlito obediente — A criança judia batizada — O mais belo vestido — Asalunas das Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Pro-messas do arquiduque.

CAPÍTULO XIVSão Clemente e a mocidadeO magnete admirável — Pedagogo ideal — Os êxtases do Santo — Os

passeios pela cidade — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor àpureza — Padre novo — Expor dúvidas — José Lobo — O despertador traidor— Os secretas.

CAPÍTULO XVO bom pastorEm procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo —

Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos— Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés doMestre — O temor da penitência na confissão.

CAPÍTULO XVIO sábio Diretor das UrsulinasQue é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confesso-

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res — Reforma as Ursulinas — Os trabalhos das religiosas — A Religiosa tíbia— A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassourausada — A Irmã tentada — A bruaca velha — As armas da mulher.

CAPÍTULO XVIISua fé profundaA fé profunda — O plano da Providência — O faro católico — O seu tesouro

— O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história— Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigo-so —Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular.

CAPÍTULO XVIIIO amante da pobrezaQue são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O

quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — Aspalavras de Jesus.

CAPÍTULO XIXO Anjo de purezaA virtude angélica — As portas da impureza — As mulheres santas —

Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de cada dia — Suabebida usual — Necessárias explicações.

CAPÍTULO XXO Coração bondosoOs princípios mundanos — Humildade necessária — O defensor dos

oprimidos — O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humil-dade de fato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vida — Oblasfemador arrependido — O perdão generoso.

CAPÍTULO XXIAmor ao clero e à CongregaçãoAmor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacer-

dote francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de seda —Exemplos de severidade e brandura — Enérgico protesto — Difusão da Con-gregação — Fundação na Valachia — Saudades da Polônia.

CAPÍTULO XXIINo combate com os maçonsSabelli imprudente — A causa da perseguição — As acusações — Aqui

não é bom estar... — É cidadão austríaco — A busca na residência — A intimação— A palavra do monarca — Esperanças desfeitas.

CAPÍTULO XXIIIA Congregação na ÁustriaO Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens —

Eu não o verei — Previsões — Resignação.CAPÍTULO XXIVSuspirando pelo céuO cortejo das Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Des-

graça é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe aextrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte san-ta — Na câmara ardente — Sepultamento magnífico.

CAPÍTULO XXV

Retrato do Servo de DeusTestemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de

um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um ex-jesuíta — do cardeal Rauscher.

CAPÍTULO XXVIO Santo na glóriaDeclaração de João Pilat — de Zacharias Werner — das Irmãs Ursulinas.CAPÍTULO XXVIIO bondoso TaumaturgoAs profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas voca-

ções — Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — Opadroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra da morte — Paralisia e trismo —Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta— Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatis-mo — Peritonite.

CAPÍTULO XXVIIINa memória da Congregação e da IgrejaAs reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Atividade do Pe.

Passerat — Difusão da Congregação — A província do Rio — A província de S.Paulo — Aparecida, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira —Quadro sinótico.

CAPÍTULO XXIXAs Irmãs RedentoristasEm Scala — A Ordem das Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O

seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vinda ao Brasil —Seus progressos.

CAPÍTULO XXXO seu sepulcro gloriosoO seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo —

Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final.

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Luta pelo sacerdócio (1751-1786)

CAPÍTULO I

No lar paternoA pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de Clemente — Primeiras

dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuroApóstolo.

Incontestavelmente um dos mais belos recantos da Europa é o sul daMorávia, cujas campinas sorridentes se cobrem de ondas de trigo e lourejar, ecujos outeiros ostentam os vinhedos carregados, riqueza principal daquela zona.Tão linda e poética é lá a paisagem que um dos melhores trovadores, depois depercorrer o mundo e lhe apreciar as belezas, exclamou como que estático dian-te dos encantos da Morávia: “Aqui quisera eu morar e passar o resto de minhavida, tão atraente e sedutora me parece esta região, mesmo debaixo da neve”.Ora nesse pedacinho do globo é que, em meados do século XVIII, viviam duasgrandes e piedosas famílias, pobres quanto aos bens de fortuna, porém muitoricas dos dons sobrenaturais da virtude. Uma delas era oriunda da Boêmia e aoutra, da Áustria.

Tasswitz, pequena aldeia não longe de Znaim, era o lugar onde moravamna mais doce paz e harmonia essas abençoadas famílias. Um jovem cortador,eslavo de nascimento por nome de Pedro Paulo Dworak, uniu-se em matrimô-nio com uma donzela alemã de Tasswitz chamada Maria Steer. Piedosos am-bos viviam, no seio da família, mais contentes e satisfeitos do que se forampoderosos monarcas, embora não possuíssem senão a pobre casa, em quemoravam, e um pequeno vinhedo com uns campos de trigo, onde derramavamos suores de seu rosto. Deus abençoou essa união com doze filhos, dos quaissete voaram para o céu ainda crianças; dos cinco sobreviventes Clemente foi omais novo e o mais santo. O sr. Pedro Paulo Dworak, por ocasião do seu casa-mento, mudou o nome boêmio para o de Hofbauer.

Clemente viu a luz do dia pela primeira vez a 26 de dezembro de 1751sendo batizado no mesmo dia com o nome do evangelista S. João, que deveriadar e que, de fato, deu a seu protegido, junto com a candura virginal do coração,o amor acendrado a Jesus Redentor. Esse nome de João foi mudado para o deClemente alguns anos mais tarde como veremos adiante. Como o Santo é qua-se só conhecido com esse segundo nome, nós nesta biografia chamá-lo-emosClemente e não João.

A mãe do pequeno Clemente soube dar-lhe uma educação firme mais peloexemplo do que por palavras. Em toda a redondeza era ela conhecida como ummodelo consumado de virtudes, salientando-se entre todas a sua piedade tãoprofunda quão esclarecida; a sua ocupação predileta era a oração; gostava de

demorar-se na igreja, sempre que suas ocupações domésticas o permitiam;ajoelhada diante de Jesus Sacramentado mais parecia um anjo do que umacriatura mortal. Terminadas as funções do culto, a missa, a reza etc, era ela aúltima a deixar o recinto sagrado, sentindo sempre dificuldade em abandonar apresença de Jesus no seu Sacramento de amor. Ao chegar e casa depois damissa e da sagrada comunhão, longe de palestrar com os vizinhos para seinformar das novidades da cidade ou das famílias, encetava logo o trabalho quese prolongava até a tarde. Em as múltiplas devoções, porém, não se descuida-va das obrigações do seu estado; como esposa amava enternecida o marido, ecomo mãe olhava desvelada para os filhinhos que procurava educar para o céu.

O seu predileto era Clemente, porque mais piedoso e de índole mais dócilque os outros. Desvelava-se a boa mãe em desenvolver cautelosamente nocoração do filhinho os germes do bem, que Deus nele implantara; ensinou-lhebem cedo as orações e as devoções, que Clemente conservou até o fim davida. A boa mãe bem sabia que a piedade não consiste apenas em pronunciarbelas orações, baixar a cabeça, virar os olhos e ter uma aparência singular eatraente, mas que ela deve apoderar-se de todo o homem encaminhando parao bem tanto a inteligência como a vontade; eis porque lhe ensinara a abnega-ção e a mortificação, insistindo com ele para que amasse o jejum e guerreassea vontade própria. Todas as vezes que o pequeno Clemente se mostrava extra-ordinariamente bem comportado, a mãe o recompensava permitindo-lhe jejuarou dar alguma esmola aos pobres.

Quando Deus ama alguém, não deixa de visitá-lo com sofrimentos e dissa-bores para mais o purificar, desprender do mundo e tornar semelhante a seudivino Filho que tomou sobre si as nossas dores. Ora, sendo a família de Cle-mente agradável a Deus, devia passar desde cedo pelo crisol de duras prova-ções. Contava o nosso Santo apenas sete anos quando perdeu o extremoso ecarinhoso pai. Fortemente golpeada sentiu-se a pobre viúva com a morte doesposo que idolatrava ,mas como o seu coração era todo de Deus não se dei-xou perturbar pelo duro golpe, resignou-se docilmente, beijando com carinho amão de Deus que a feria, e depositando toda a sua confiança na Providênciaque tudo dirige com a maior sabedoria e acerto. O pequeno Clemente que,embora criança, já amava seu pai, chorou sentido a perda daquele que tanto oacariciava e tanta ternura lhe mostrava. A pobre mãe tomando-o um dia pelamão levou-o para a igreja onde se achava um lindo e devoto Crucifixo; mãe efilho contemplavam resignados o Redentor pendente da cruz, haurindo confor-to e alívio das chagas rubras de Jesus. No auge do fervor e da fé, a mãe sentiusubitamente o coração palpitar-lhe fortemente no peito e toda enlevada disseao filhinho apontando para o Cristo pregado na Cruz: “Meu filho, de hoje emdiante é Ele o teu pai, não te afastes nunca do caminho que lhe agrada”. Opequeno Clemente compreendeu essa palavra saída dos lábios maternos emhora tão solene, e conservou-a profundamente gravada em seu coração. A re-cordação dessa cena íntima foi para Clemente, mais tarde, como que uma fontede luz que o conservou no caminho da virtude e o confortou em os penosostranses da sua trabalhosa vida.

Clemente recebeu de Deus um coração extraordinariamente propenso parao bem, um coração reto e sincero, que odiava toda hipocrisia. Amava sincera-

PARTE PRIMEIRA

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mente sua mãe e gostava de falar dela com respeito e veneração. Quando jáavançado em anos, agradecia ainda a Nosso Senhor o ter-lhe dado uma mãetão santa e virtuosa; cada vez que, mais tarde, em suas viagens empreendidaspara o bem da Congregação ou das almas, passava por perto do lugar, onde seachava a sepultura de sua querida mãe, fazia uma visita, breve embora, ao seutúmulo, ajoelhava-se respeitosamente umedecendo com suas lágrimas a terraque ocultava o precioso tesouro do seu coração.

Para o coração filial de Clemente, em extremo impressionável para o bem,tinham grande valor e importância os exemplos de sua mãe. Como esta, amavaClemente a oração e a casa de Deus; ao vê-lo ajoelhado ao lado da queridaprogenitora, as mãozinhas postas, o rosto inocente inspirando santa seriedadee os olhos fitos no tabernáculo ou em alguma imagem da Santíssima Virgem,não havia quem não se comovesse tomando-o por um anjinho descido do céu.

Sentia viva alegria em aproximar-se o mais possível, de Jesus a quemtanto amava; gostava de servir à missa por se achar assim mais perto do Meni-no Deus, vivo sobre o altar debaixo das espécies sacramentais. Já nessa idadeera o rosário a sua oração predileta; aos sábados, consagrados à SantíssimaVirgem, não sossegava enquanto não fizesse alguma devoção especial em lou-vor de sua mãe celestial. Se, às vezes, recebia alguma gratificação por seusservicinhos ao altar, economizava o dinheiro para depois ir ter com o vigário emandar celebrar uma missa por intenção dos seus ou das almas do purgatório.

A sua vocação de apóstolo do bem, recebeu-a Clemente em seus verdesanos. Um belo dia, acompanhando sua mãe a um lugar um pouco retirado deTasswitz, encontrou de caminho algumas pessoas de seu parentesco que sedistraíam em agradável passeio. Como de costume em tais ocasiões, pergun-tou-lhes a mãe de Clemente, como iam de saúde, para onde se dirigiam e o queestavam a fazer; a esta última pergunta os parentes responderam: “Estamospassando o tempo”. Clemente não compreendeu bem essa última expressão;feitas as despedidas retiraram-se, mas o menino preocupado puxa de leve ovestido de sua mãe e pergunta-lhe: “Mamãe, que quer dizer isto: ‘estamos pas-sando o tempo’?” Ao receber a explicação encheu-se o pequeno de santa indig-nação e, com ar de indescritível gravidade disse: “Mamãe, quando a gente nãotem o que fazer, deve rezar!” Que bela palavra! que ensinamento salutar paratantos adultos que, esquecidos da eternidade, se preocupam quase que exclu-sivamente com a terra pensando encontrar nela o paraíso! Essa palavra, pro-nunciada por Clemente em tão tenra idade, foi a norma de sua vida, comoveremos mais tarde; sempre se manifestou inimigo da expressão “passatempose divertimentos” etc.

Bela educação essa, dada por uma mulher simples do meio do povo! e elasoube, segundo os ditames do seu coração reto, desenvolver e educar rica e valo-rosamente as disposições sobrenaturais colocadas tão prodigamente por Deus nocoração de seu filhinho. Já na infância de Clemente se revelaram claramente ostraços que o distinguiram mais tarde: a sensibilidade extraordinária para as oraçõesdo Espírito Santo, a vida num mundo superior, a clara e profunda compreensão daverdade da fé, o apóstolo da oração, o relacionamento com as grandes e as peque-nas questões da vida, o herói da mortificação, o pai dos pobres e dos órfãos. Eis oque vale a educação dada por uma mãe virtuosa e santa.

CAPÍTULO II

Os primeiros estudosProcura um ofício — Os sentimentos nobres — O São Cristóvão — No

convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristasdo Convento — Dificuldade nos estudos.

Clemente havia já entrado nos seus catorze anos. Depois de abandonar obanco escolar onde fora um dos alunos mais aplicados e estudiosos, pôs-se aajudar sua mãe no cultivo do vinhedo e do campo, alegrando sempre a todoscom o seu semblante risonho e com o seu comportamento exemplar; não haviaquem não sentisse viva satisfação em se achar na companhia do filho do cortadorde Tasswitz. Mas na medida que os anos se iam, mudava-se tudo ao redor deClemente. Seu pai, já de há muito, havia falecido e junto dele repousavam nosilêncio do túmulo quatro irmãs e três irmãos de Clemente. Os outros, pobrestambém, já se haviam espalhado em direções diversas a cata de negócios ouocupações que lhes garantissem a subsistência. Era pois tempo de Clementedecidir-se a começar a carreira de sua vida. Um único ideal pairava então anteo seu espírito: sua alma inocente e pura sentia ternas saudades do interior doSantuário do Senhor e ele só desejava alistar-se entre os ministros do Altíssimopelo Sacerdócio. Clemente queria ser padre para oferecer a Deus o santo Sa-crifício dos nossos altares, anunciara do alto do púlpito a palavra divina, conver-ter os pecadores, perdoar as culpas ao pecador contrito depois de investido dadignidade sacerdotal, superior à dos reis e imperadores. Esse era também osonho dourado da sua mãe, cujo coração estremecia de júbilo só em pressentira dita de ver um dia o seu filho sacerdote, intermediário das bênçãos celestesentre Deus e o homem! Mas — pobrezinho! — Clemente não dispunha dosmeios, sem os quais o estudo se torna impossível e por isso, o coração sangra-va-lhe no peito; teve de renunciar, talvez para sempre, à mais querida aspiraçãode sua alma — não podia ser padre. Não havia outro remédio, era forçoso apren-der um ofício qualquer para o sustento da vida. O ofício de seu pai não lhe erasimpático, parecia-lhe demasiado cruel; preferiu o ofício de padeiro. Entrou poiscomo aprendiz na casa de um dos melhores e mais afamados padeiros dacidade, senhor de uma honestidade a toda prova, católico praticante Estavapois bem colocado; seu novo mestre não queria fazer dele somente um bompadeiro mas, sobretudo, um cristão adornado de virtudes, alheio às tabernas,aos divertimentos perigosos e aos princípios subversivos que conduzem o po-bre operário ao desprezo da autoridade, ao ouvido de Deus, às blasfêmias e àvida dissoluta. Clemente lá esteve três anos a trabalhar e a exercer-se na práti-ca das virtudes necessárias a um operário piedoso. Trabalhava sim, mas seu

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coração não se satisfazia, sentia um vácuo indizível na sua alma, uma voz pare-cia soar-lhe constantemente aos ouvidos convidando-o a subir os degraus doaltar; ah! Clemente tinha saudades pungentes do sacerdócio, e ele, como ou-trora Abraão, esperando em Deus contra toda a esperança, suplicava ao céu sedignasse abrir-lhe em par as portas do santuário. Entretanto tudo parecia conju-rar-se contra ele, mas Clemente não desanimava; ao fabricar o pão materiallembrava-se do pão dos anjos, que o padre consagra sobre o altar; ao levar aosfregueses a cesta de pão às costas, pedia a Deus, soluçando, que lhe fossedado um dia, levar o pão do céu aos pobres moribundos.

O mestre tinha um filhinho que contava então seus cinco anos de idade. Opequeno era inocente e, como as almas inocentes logo se conhecem, não tar-dou a travar com Clemente a mais santa amizade, não o querendo mais deixarnem um instante; acompanhava-o em toda parte, seguia-o em suas voltas pelacidade, pois que Clemente sabia falar tão bem e contar tão lindas coisas do céu,dos Santos e da Virgem Santíssima. Para não perder tempo na entrega dospães aos fregueses, pediu Clemente à mãe do pequeno, que o retivesse emcasa nessas ocasiões; porém debalde, a respeitável senhora não acedeu aopedido de Clemente, porque não julgava perdido o tempo, em que o distribuidordo pão se retardava nos negócios, a dar tão santas instruções e tão belos exem-plos a seu filhinho. Que faz Clemente? Toma a cesta às costas e o menino emseus braços, e assim percorre apressado a cidade. Semelhante cena Tasswitznunca presenciara; alguns sorriam-se pela novidade do fato, e outros das jane-las gritavam: “Olha o São Cristóvão”. Clemente desejoso de ver o Santo que opovo anunciava, olhou, no princípio, para todas as direções; como não vissecoisa alguma perguntou admirado onde é que estava S. Cristóvão. Quando lhedisseram que São Cristóvão era ele mesmo, não soube o que pensar; ao che-gar em casa contou tudo ao mestre perguntando-lhe porque é que lhe tinhamdado esse nome tão interessante. Ao ouvir da mulher do mestre, que S. Cristó-vão era um gigante muito santo, que levado da caridade, transportava as pes-soas por sobre um rio destituído de ponte, e que um dia Jesus Cristo mesmolhe apareceu, na forma de um viajante, pedindo o quisesse levar para o outrolado do rio. S. Cristóvão o transportou sobre seus ombros, merecendo depoisver a Jesus e ouvir-lhe as palavras de agradecimento. Clemente não pôde con-ter-se e exclamou: “Quem me dera ser deveras um S. Cristóvão para levar oCristo em minhas mãos!”

Esse pensamento não o deixava sossegar. Mal havia terminado o tempode sua aprendizagem, Clemente, numa esperança que ele mesmo não saberiadefinir, dirigiu-se ao convento dos padres Premonstratenses, apresentou-se aoabade que se mostrou bem impressionado como o moço tão modesto, tão bemvestido e asseado. Clemente conjecturou: “Quem sabe, se lá não será mais fácilremover os obstáculos, superar as barreiras que me impedem de subir os de-graus do altar?!” A Europa inteira gemia naquele tempo debaixo das mais durasprovações. A guerra dos sete anos era já passada, mas as conseqüências fazi-am-se sentir profundamente, levando a miséria e a fome a todos os países; asterras ficaram sem cultivo, muitas cidades foram incendiadas. Nesse tempo dedesolação e miséria eram os conventos o celeiro que fornecia o alimento amilhares de bocas. O abade dos Premonstratenses, homem de grandes virtu-

des, possuía um coração extremamente generoso: novecentas pessoas recebi-am diariamente a alimentação à porta do convento. O trabalho de Clemente noconvento, consistia em preparar o pão para essa multidão de desditosos, e elesentia-se realmente feliz por poder prestar seus serviços aos pobres; dia e noitetrabalhava para não deixar ninguém sofrer, e muitas vezes tirava o pão da pró-pria boca, afim de matar a fome àqueles infelizes. Mas a carestia não veio só;apareceu acompanhada do tifo e de outras moléstias que dizimavam a popula-ção. Centenas de homens arrastavam-se até a porta do convento enfraqueci-dos pela fome e torturados pela febre, recebiam o pão que, às vezes, não podi-am levar à boca, porque a morte os surpreendia naquele momento.

Deus não se deixa vencer em generosidade, dá cem por um a todos os quetrabalham por amor dele; Clemente pois devia receber a sua recompensa: eesta não foi pequena. Na abadia, onde Clemente se empregara, existia umseminário onde trinta rapazes recebiam instrução e donde já tinham saído sa-cerdotes exemplares e santos. O pequeno padeiro conteve-se, dezoito meses,a ver calado os meninos que, os livros debaixo do braço, iam às aulas ou brin-cavam alegres na hora do recreio. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, lágri-mas de uma santa inveja, que ele não podia reprimir porque eram sinceras,saídas do fundo do coração. As lágrimas de Clemente enterneceram o coraçãodivino que lhe outorgou ânimo e coragem. Foi ter com o abade, abriu-lhe a almae, o coração nos lábios, suplicou-lhe uma ocupação mais leve na abadia afimde poder dedicar-se aos estudos e assistir às aulas do colégio. O coração bon-doso do abade, reconhecendo a vocação sacerdotal do seu padeiro, acedeu aopedido de Clemente, nomeando-o seu refeitoreiro e copeiro.

Clemente podia, pois, mais desimpedido dedicar-se às letras — mas o es-tudo já não lhe era tão fácil; o pouco de latim que aprendera com o vigário deTasswitz, já há muito estava esquecido e aos vinte anos, que Clemente nãocontava, a memória já não é tão fresca e firme para reter tanta coisa. Além dissoo estudo era para ele, naquelas circunstâncias, uma coisa secundária. Mas nãohá o que a aplicação constante não vença. Labor improbus omnia vincit. Emquatro anos completou Clemente as classes ginasiais fazendo os mais brilhan-tes progressos em todas as matérias: em religião, latim, grego, geografia e his-tória Clemente avantajou-se a muitos outros alunos mais talentosos do que ele.É certo que o nosso Santo, mais de uma vez, teve de ouvir palavras picantesdos colegas que zombavam da sua idade, mas Clemente sabia suportar tudoaquilo com a maior tranqüilidade, agradecendo a Deus a amarga pílula que lheapresentava.

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CAPÍTULO III

PeregrinaçõesO ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o

ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria etorna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras vonMaul.

Os Premonstratenses, também chamados Norbertinos, foram fundados porS. Norberto em 1120 na França. Têm por fim unir a atividade paroquial às ocu-pações do claustro. A ordem foi aprovada por Honório II em 1126. Dividem-seem sacerdotes Cônegos e leigos conversos. Têm o hábito de lã branca. A or-dem espalhou-se rapidamente na Europa, mormente na França e Alemanha.Em 1250 já contava com 1.200 residências. A reforma protestante fechou mui-tos conventos na Alemanha, e a revolução francesa só poupou algumas resi-dências na Áustria e na Hungria. Desde 1834, porém, recomeçou a Ordem aflorescer e em 1900 já possuía 5 províncias com 17 abadias e alguns prioratos.O abade geral é eleito; em 1905 tomavam mais de 182 paróquias e dirigiam 7ginásios.

Terminados os estudos da abadia, achava-se outra vez Clemente em séri-as dificuldades. A escola abacial tinha só quatro classes. Para entrar na Ordemdos Premonstratenses, não sentia vocação; para continuar os estudos fora, nãopossuía os meios necessários. Que fazer em semelhantes conjunturas? Deusmostrou-lhe um caminho inteiramente novo. Clemente será ermitão. Sem maishesitar atravessou o rio e no meio da floresta construiu uma ermida pequena esimples, não longe da povoação da Mühlfrauen. De manhã ia todos os dias àcidade ouvir a missa, recebia a santa comunhão, e depois voltava ao trabalho, àoração ou à leitura de algum livro piedoso; um pedaço de pão com alguns pou-cos legumes constituía a sua refeição cotidiana. Aos domingos, porém, e diassantos, Clemente quase não se ausentava da igreja; sentia-se lá tão feliz pare-cendo-lhe achar-se na antecâmara do paraíso. Na solidão da floresta sua almaexpandia-se tranqüila aos encantos da natureza, cantava com os passarinhos,com as águas e as árvores sacudidas pelo vento, os louvores e as magnificênciasde Deus; e quando a natureza repousava nas trevas que envolviam a terra,Clemente ainda rezava, até que o sono lhe abatesse as pálpebras sobre osolhos. A vida da floresta, porém, não era sempre assim tão poética; dias chuvo-sos umedeciam-lhe, por vezes, a pobre choupana e as tempestades com seustrovões desencadeavam-se sobre as árvores, curvando os possantes troncos,e não raramente os furacões furiosos das tentações oprimiam-lhe violentamen-te a alma: Clemente, então, humilhava-se, abraçava a cruz alegre por poder

sofrer alguma coisa por Nosso Senhor.As grandes virtudes do ermitão já não podiam permanecer ocultas; espa-

lharam-se pelos arredores e atraíram bem depressa a atenção e a admiraçãodos moradores da cidade e das circunvizinhanças, e em geral de todos quantosiam visitar a Igreja de Nossa Senhora de Mühlfrauen. Os peregrinos, depois desatisfeita a devoção ao pé do altar da Virgem, iam procurar o ermitão, levando-lhe presentes, o que Clemente agradecia retribuindo tão finas gentilezas combons conselhos, úteis admoestações e santos pensamentos. Nas horas vagas,Clemente confeccionava cruzes de madeira extraída da floresta; com esse tra-balho mostrava aos peregrinos sua gratidão, exortando-os a carregarem sem-pre e com verdadeiro amor e espírito de sacrifício a cruz que Deus lhes impu-nha sobre os ombros. Não raras vezes ele mesmo tomava uma cruz grande epesada, que se conservava encostada à porta, e carregava-a acompanhadodos peregrinos, cada um com sua cruz às costas, até ao santuário do BomJesus atado à coluna. Nessa romaria piedosa cantavam e rezavam edificando atodos e despertando neles sentimentos de santa compunção e arrependimen-to.

Eram tempos de fé e de simplicidade; que contraste com a vida moderna!Hoje em dia, em vez do Santuário, visitam-se em geral os lugares de diverti-mentos; em vez da cruz carregam-se os jovens de perfumes; em vez da peni-tência procuram a sensualidade. Mas, que contraste também no interior da alma!Clemente e os seus romeiros sentiam-se felizes no meio das mortificações,porque gozavam a paz da consciência, enquanto que os modernos não se sen-tem bem nas ondas dos prazeres, porquanto a paz da alma só se encontra noscorações inocentes e puros, e a inocência não medra nos divertimentos queenervam, mas na mortificação que eleva o coração.

Apenas um ano pôde Clemente gozar as doçuras da solidão. Naquele tem-po, como agora, os governantes não tinham compreensão da vida de sacrifícioe de devoção; a oração era sinônimo de ociosidade, e o ermitão passava pormandrião e preguiçoso. Entretanto os ermitães eram os melhores cidadãos,que nas horas vagas se dedicavam ao cultivo da terra, empregando assim oseu tempo melhor do que centenas ou milhares de ricaços que vivem a custados pobres, e do que numerosos escritores que envenenam milhares de cora-ções com seus escritos heréticos ou imorais. Um decreto imperial proibiu naÁustria a vida eremítica, como já havia proibido também os conventos. Clemen-te, que nada se simpatizava com a visita importuna da polícia, abandonou apobre choupana e disse adeus à doce solidão. Indeciso vai, sem saber bemporque, à cidade onde nascera seu pai. Era o dedo da Providência que para láo guiava, pois que destinando-o para o apostolado da Polônia, queria que láaprendesse a língua necessária para a sua futura atividade em prol das almas.

Pobre Clemente! as portas do sacerdócio continuavam-lhe fechadas; a vidasolitária tornara-se-lhe impossível; que fazer? Não havia outro expediente se-não voltar ao ofício antigo, à vida de padeiro. Homem de resoluções firmes, nãotrepidou; afivelou a mochila, tomou a bengala e a pé caminhou até Viena, queainda não conhecia. Nem por sonhos lhe passava pela mente, que um dia osvienenses haveriam de pronunciar com respeito o seu nome, gloriando-se detê-lo por apóstolo e protetor. Não tardou a encontrar colocação numa padaria A

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pera de ferro em frente à Igreja das Ursulinas, onde passou três anos; sempreque lhe era possível, ajudava a missa na Catedral ou na Igreja das Ursulinas,que freqüentava com assiduidade. Era esse o seu procedimento e o seu recatoem Viena, porque estava convencido de que um moço não se conserva inocen-te e puro numa cidade grande a não ser por meio da oração e da freqüência dossacramentos.

Nesse lapso de tempo, Clemente havia lido muita coisa edificante sobreRoma, a cidade dos papas, onde tantos mártires derramaram o seu sanguepela fé, a cidade das belas igrejas, onde se conservam preciosas relíquias. Oseu coração sentiu saudades da cidade eterna e Clemente resolveu viajar atélá. Se tantos jovens visitam as grandes capitais, onde se perdem e pervertem,porque é que ele não poderia também satisfazer a esse seu desejo ardente ederramar o coração sobre os tumultos dos santos Apóstolos e dos grandespapas? Manifesta esse seu intento a um dos seus melhores e mais fiéis ami-gos, Pedro Kunzmann e convida-o para a viagem; faz por um tempo as maioreseconomias possíveis, e juntos parte para Roma, vencendo a distância toda apé. Era uma verdadeira romaria de penitência; rezando em voz alta o rosário,que repetiam muitas vezes, cantavam também as ladainhas e outras orações àNossa Senhora, e os hinos devotos que sabiam de cor. A impressão causadasobre as pessoas à beira da estrada, por onde os nossos romeiros passavam,era naturalmente diversa e, às vezes oposta; uns sacudiam a cabeça em sinalde desaprovação, outros, porém, edificavam-se com tamanha devoção; os pe-regrinos, porém, pouco ou nada se importavam com os comentários que sefaziam. Eles só procuravam glorificar o Senhor e tornar-se dignos das bênçãosdivinas na cidade eterna. Cansados de cantar e rezar, punham-se, às vezes, acontemplar a natureza, que se abria belíssima a seus olhos sob o sol encanta-dor da Itália. Dos vinhedos admiráveis, dos campos ondulados de trigo, porentre as alcantiladas montanhas dos Alpes e dos Apeninos, seus olhos levanta-vam-se até Deus, autor dessas maravilhas estupendas, dessas belezas encan-tadoras. Se uma ou outra vez lhes faltava agasalho, à noite, para descansaremseus membros fatigados, lembravam-se do Redentor e sobre a palha, ao relen-to, dormiam mais tranqüilos do que os reis em seus ricos palácios.

Itália, paraíso da Europa! os nossos peregrinos exultaram quando, pelaprimeira vez, sentiram as auras perfumadas e quentes da península. Era Deusque os abençoava do alto do céu; embora não conhecessem a língua italiana,nada lhes faltou e nenhum incidente menos agradável veio perturbar-lhes a paze a tranqüilidade. Ao passo que se avizinhavam da Cidade Santa, os coraçõespulsavam-lhes com mais rapidez e calor dentro do peito. Mal avistaram, da últi-ma colina, a magnífica cidade com suas quatrocentas igrejas e inúmeros santu-ários, pareceu-lhes entrar no paraíso. Clemente não resiste, cai de joelhos, rezae chora de alegria. Apenas chegados, põem-se a percorrer com devoção ossantuários mais conhecidos implorando, em toda a parte, a força na fé, o amorsincero a Jesus e a perseverança no caminho do céu. Ah! eles não tinham ido aRoma em excursão científica para estudarem os estilos das igrejas e as galeri-as artísticas, mas só com o fim de desabafarem os corações e haurirem maisprofundos sentimentos de fé.

Depois de satisfeita a devoção, voltaram para a Áustria alegres e conten-

tes, e com razão, pois que o coração humano precisa de quanto em vez, dessasemoções íntimas que lhe servem de desabafo e ao mesmo tempo de animação.Chegados a Viena, entram novamente na “A pera de ferro”; mas que contrastede vida! Roma com suas festas pomposas, com suas igrejas magníficas e seusaltares suntuosos, com suas procissões solenes, impressionara os visitantes eficara para sempre gravada em seus corações — e em Viena era tudo tão frio,as igrejas tão vazias, a vida religiosa tão diminuta; as irmandades e as ordensreligiosas abolidas e o culto desprovido de seu esplendor antigo: em vez dossermões substanciosos de outrora, ouviam-se agora do alto do púlpito somentepalavras de humanidade e quejandas expressões de filantropia que não satisfa-zem o coração.

Clemente e Kunzmann sentiam-se mal em Viena; não podendo habituar-secom a vida monótona da Capital austríaca pensavam em voltar outra vez para oSul, afim de darem expansão a seus sentimentos de piedade. E quiçá, ser-lhes-ia possível lá consagrar-se a Deus na solidão; na Itália não se consideravacrime a vida de ermitão. Deixando a conversa cair repetidas vezes sobre o as-sunto, animaram-se por fim e tomaram a resolução de voltar para a Itália, destavez provavelmente para sempre. Chegada a hora da partida foram levar suasdespedidas a “A pera de ferro”. Houve lágrimas e protestos do velho mestre queos não queria deixar partir; disposto a tudo para impedir a perda dos dois ami-gos, ofereceu a Clemente grande soma de dinheiro e sua única filha em casa-mento. Tudo porém em vão; Clemente aspirava a coisas mais elevadas. Umúltimo abraço e o sacrifício estava completo. Clemente, sempre generosos, ca-ritativo e de mãos abertas, não possuía recursos para a viagem, mas, em com-pensação, o companheiro mais econômico do que ele, conseguira ajuntar umaquantia não desprezível. Como da primeira vez seguiram a pé, renovando ascenas comoventes da primeira viagem. Chegados em Roma, peregrinaram erezaram a vontade, pois que já não havia pressa como da primeira vez; entre-tanto não podiam nem deviam esquecer que tinham ido em procura da solidão.Seis léguas distante de Roma salientava-se uma cidade célebre, mais antiga doque a cidade dos papas, de nome Tívoli com um ermitério de conhecido nomena Europa.

Vão a Tívoli onde visitam o bispo Gregório Chiaramonti, Beneditino, futuropapa com o nome de Pio VII. Como o bispo era dotado de insignes virtudes e deuma grande prudência, não deixou de colocar ante os olhos dos dois alemãesas dificuldades da vida solitária, que geralmente se enche de cruzes e sacrifíci-os, onde a alma sente muitas vezes a fúria das tempestades e os assaltosfreqüentes dos inimigos, segundo as palavras do Espírito Santo. “Filho, quandoentrares no serviço de Deus... prepara a tua alma para a tentação, vida detrabalhos, de oração, de desprendimentos e de contemplação. A resposta dosdois postulantes foi: “por amor de Jesus estamos dispostos a tudo”. Foi o pró-prio bispo quem lhes deu o hábito e lhes mudou os nomes para que se esque-cessem completamente do século; João recebeu o nome de Clemente, e PedroKunzmann o de Manoel. É dessa ocasião em diante que o futuro Redentoristacomeçou a assinar-se sempre Clemente, tendo por protetor São Clemente deAncyra na Ásia, o qual derramou intrepidamente o seu sangue em defesa dasanta fé, e cuja festa a Igreja comemora no dia 23 de novembro. Revestidos do

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burel escuro de ermitão, viam as suas esperanças em parte realizadas. Oscorações a transbordar de contentamento, não se demoram na cidade de Tívoli,transpõem o Anjo das águas turbulentas e dirigem seus passos para o conven-to e a igreja, construídos na encosta da montanha, circundados de todos oslados, por magníficas oliveiras que adornavam a montanha inteira. Que belaigreja a da Madona coroada com o diadema de ouro, tendo o Menino Deus emseus braços! Era a Madona de Quintiliolo, conhecida e venerada em toda aredondeza. Os novos ermitães foram fraternalmente recebidos pelos quatro ir-mãos que lá se santificavam na solidão. O coração de Clemente, tão sensívelaos encantos da natureza e tão susceptível de emoções, quase não podia con-ter-se de contentamento aos pés da Virgem, na paisagem incomparável doTívoli, no silêncio da sua cela, na misteriosa tranqüilidade do olival. Foi Clemen-te quem se incumbiu de adornar a igreja e o altar da Virgem Santíssima. Depoisde dedicar diariamente algumas horas ao cultivo do terreno que lhe coube porsorte, corria à igreja, que desejava sempre asseada e limpa, percorria o olivalou o jardim, em procura de flores frescas, para com elas mimosear o altar desua querida Mãe. Acendia com cuidado a lâmpada da Virgem, e no meio dasflores e das luzes ofertava à sua Rainha o fogo do seu amor e as flores frescas,para com elas mimosear o altar de sua querida Mãe. Acendia com cuidado alâmpada da Virgem, e no meio das flores e das luzes ofertava à sua Rainha ofogo do seu amor e as flores das suas virtudes. Se de quando em quandoalguém pela estrada solitária passava perto da igreja e do convento, Clementebatia com a mão na janelinha de sua cela, e quando o viandante, sem saberdonde vinha a saudação, perguntava quem é que o chamava, Clemente res-pondia: “É a Virgem de Quintiliolo”, e o viandante entrava na Igreja onde sauda-va a Virgem implorando sua bênção para a viagem.

Quando os romeiros iam ao ermitério para homenagear a Virgem, Clemen-te recebia-os, acendia-lhes as velas rezando e cantando com os peregrinos.Assim escoavam-se os dias; Clemente rezava continuamente e tinha deveraspara quem rezar. Se olhava para a direita, divisava ao longe através da espessaneblina a cúpula do grande Domo, a cobrir os restos mortais do pobre pescadorda Galiléia, que com as armas da graça divina esmagara o paganismo romano,e ele de joelhos agradecia a Jesus o grande benefício da fé; se olhava para aesquerda, os seus olhos contemplavam o Anio que de rochedo em rochedo seprecipitava espumante, formando cachoeiras e despenhando no abismo, e elerecordava-se dos infelizes irmãos separados da verdadeira Igreja, que do altoda verdade se haviam precipitado no abismo da heresia. E ele temia tambémpor sua própria alma, que não estava livre dos perigos, era também homem, epor isso com santo temor e indizível humildade se recomendavaencarecidamente à Virgem, para que lhe conservasse a fé tão firme como osrochedos que contemplava batidos do caudaloso rio; e quando, à noite, a luaprojetava sobre a cidade os seus meigos raios, cobrindo-a de um manto deprata, ele lá no jardim se ajoelhava meditando na dor imensa que oprimira ocoração do Redentor, quando na véspera da sua morte, no jardim das Oliveiras,oferecia o seu sangue pela redenção do homem, implorando o perdão para omundo culpado. Essas cenas eram tão gratas ao seu coração e impressiona-vam tanto o seu espírito que, mesmo em sua avançada idade, ainda se recor-

dava com saudades do doce tempo da solidão do Tívoli. “Se soubésseis quãobelo é o Tívoli! — dizia ele a seus discípulos mais tarde — lá podia-se rezar como coração aberto, a alma sentia-se desprendida do mundo e abismava-se todaem Deus”.

Seis meses durou o noviciado de Clemente em Tívoli. Embora tudo ali lhesatisfizesse o coração e lhe fizesse gozar a mais doce paz da alma, uma coisahavia a realizar-se e cumprir-se a qual, dia a dia, fazia maiores exigências a seucoração: era o desejo do sacerdócio, da vida ativa, do apostolado, que converteas almas e as conduz ao Redentor. Clemente contava já 26 anos e o seu cora-ção, ainda lhe fazia sentir, que ele seria um padre e que faria grandes coisaspara Deus. Mas como? Deus o haveria de providenciar. Num belo dia, deixaClemente na cela o hábito de ermitão e sem se despedir de ninguém, a não serdo bispo que ele acatava, desaparece e põe-se a caminho confiando na Provi-dência e no bom coração dos que haveria de encontrar em seu trajeto.

Em Viena voltou ao emprego antigo de padeiro, esperando que Deus lhemostrasse o caminho do presbitério, e — oh! prodígio da bondade divina! —desta vez o Senhor iria recompensar a confiança de seu fiel servo, tanto é certoque quem põe no Senhor a sua confiança, não será confundido eternamente.— Como no tempo anterior à sua ida a Tívoli, também agora, aos domingos,ajudava uma ou mais missas na Catedral de Santo Estevam em Viena com orecolhimento e a devoção de um anjo diante dos augustos mistérios dos nossosaltares. Não havia na cidade quem não se edificasse com tão exemplar procedi-mento de um jovem de vinte e poucos anos, idade essa que costuma ser fatalpara quase todos os moços, mormente nos grandes centros. Entre os maioresadmiradores de Clemente contavam-se três senhoras solteiras de bastante ida-de, pertencentes à nobreza e possuidoras de grande fortuna e de maior pieda-de ainda; pertenciam à família von Maul. Aconteceu que um dia, quando as trêssenhoras solteiras de bastante idade, pertencentes à nobreza e possuidoras degrande fortuna e de maior piedade ainda; pertenciam à família von Maul. Acon-teceu que um dia, quando as três senhoras saiam da igreja, depois de findas assagradas funções, começou a chover a cântaros e com tal abundância que asruas ficaram alagadas, obrigando as nobres damas a esperar na porta da igre-ja. Clemente pelo mesmo motivo não pôde sair e como era um tanto acanhado,recostou-se a um canto da parede e esperou que o aguaceiro passasse. A horajá ia um tanto adiantada e o céu não cessava de derramar torrencialmente aságuas. Compreendendo o embaraço das nobres senhoras, Clemente aproxi-mou-se delas com todo o respeito e depois de saudá-las atenciosamente, per-guntou-lhes se não desejavam um carro para voltar à casa; as damas aceitarama oferta e Clemente imediatamente se pôs a correr debaixo da chuva torrencialem procura de cocheiro. Gratas àquela amabilidade, convidam o moço a tomarassento no carro, e entretém com ele familiar palestra, perguntando-lhe porseus desejos e intenções; uma delas chegou a indagar, se Clemente por acasonutria desejos de ser sacerdote, pois que ajudava a missa com tanta devoção.Radiante de satisfação o humilde padeiro abriu o coração, manifestou-lhes asua pobreza e completa falta de recursos, e em seguida narrou-lhes toda a suavida desde o banco escolar de Tasswitz e a sua estada em Tívoli até aquelemomento, em que esperava tudo da Providência. As ricas damas sentiram-se

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comovidas e ofereceram-se a cobrir as despesas. Ao ouvir tão lisonjeira ofertaClemente parecia sonhar; tinha já 32 anos de idade e nunca ninguém ainda lhehavia falado assim. Ao voltar para a casado mestre sentiu-se tão fora de si quequeria abraçar a todos, tão grande era a alegria e o contentamento da suaalma. Clemente iria pois estudar, seria padre, veria realizado o sonho de suainfância. Debulhado em lágrimas de satisfação íntima despediu-se de seu mes-tre e foi à universidade.

CAPÍTULO IV

Na universidade de VienaOs estudos na Áustria — Na universidade — Contradiz o professor — En-

contro com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso —Novamente em Roma.

Deus dispusera tudo do melhor modo em favor de Clemente; o encontrocom as três senhoras von Maul dera-se no outono, justamente no início do anoletivo da Universidade de Viena. Embora houvessem já decorrido sete anos queClemente não abria livros escolares, ainda conservava na memória o que apren-dera com tanto afã e a custo de tanto suor, de sorte que lhe foi possível come-çar logo o estudo da filosofia com as matérias anexas, a saber: o grego, a histó-ria universal, as matemáticas e a física.

Felizmente não tinha Clemente de preocupar-se com o sustento, porqueas nobres damas, suas benfeitoras se esmeravam em auxiliá-lo e faziam ques-tão que nada lhe faltasse. Mas Clemente já não era criança, a memória estavajá cansada e a inteligência perdera muito da agudeza e perspicácia antiga; eestudar filosofia é um trabalho penoso, e, naquele tempo, cheio de dificuldades;os professores de então entendiam da matéria, muitas vezes, tão pouco comoos estudantes, o compendio escolar distinguia-se pela confusão das noções edas divisões e não apresentava aos alunos a ciência clara e verdadeira, masum sistema confuso sem precisão e sem ordem. Faltando as explicações dosprofessores, ficava o estudo à mercê dos estudantes; Clemente era aplicado equeria seriamente progredir não só para se mostrar grato às suas generosasbenfeitoras, mas principalmente por ser o estudo a condição necessária para oestado sacerdotal; estudava, investigava, examinava e quando julgava desco-brir algum sentido nas imensas lucubrações do compendio, abanava a cabeçacom asco, achando que aquilo não era católico. De dia Clemente folheava oslivros procurando a dar a sua vida; a clarividência e a firmeza de convicção emsua crença tinham sido, desde a infância, a força carismática de seu ser, desorte que mais tarde ele mesmo afirmou, não esperar de Deus nenhuma re-compensa por causa da fé, visto que nunca sentira tentações contra ela.

Desde cedo familiarizara-se Clemente com as obras ascéticas e dogmáticasde Sto. Afonso Maria, obras essas ditadas pela mais profunda fé e convicção,repletas de santa e celestial unção; o jovem estudante via nelas a mais comple-ta e a melhor refutação dos erros que então se espalhavam na Europa; e de fatoeram elas que reconfortavam a fé já vacilante ou prestes a se extinguir, e queem sua simplicidade e clareza retratavam em quadros magníficos a formosuradivina da religião. Traduzidas para o alemão tornaram-se o remédio salutar para

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aqueles tempos abismados no indiferentismo e racionalismo, e o antídoto pode-roso contra outros erros funestos. Essas obras, maximé o livrinho das Visitas aJesus Sacramentado, encheram o coração de Clemente de veneração e amorpara com o bispo de Sta. Agueda, que na Itália acabava de renunciar a seuhonroso cargo.

Para uma alma assim preparada era impossível freqüentar os semináriosda Áustria; Clemente queria ser padre, mas um padre virtuoso, trabalhador,segundo o coração de Deus. Era pois forçoso dizer adeus à Áustria, que tantoamava, e despedir-se dela, talvez para sempre, pois não podia prever até ondechegaria a impiedade em sua pátria; ele estava pronto ao sacrifício e fê-lo deboa vontade. Procurou seu amigo Thadeu Hübl, informou-o dos seus novosplanos convidando-o a que o acompanhasse. Hübl jazia enfermo no hospital e,irresoluto como era, admirou-se da súbita e brusca resolução do amigo. Doen-te e sem recursos, como empreender semelhante viagem? Como em sua reso-lução Clemente era inabalável, não pôde nem quis admitir as escusas e ospretextos do amigo; quando ao dinheiro, ele mesmo se incumbiria de arranjá-lo,quanto à saúde, Deus providenciaria. E assim foi. Thadeu Hübl restabeleceu-see acompanhou Clemente a Roma.

CAPÍTULO V

O santo RedentoristaEm Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É

recebido na Congregação Redentorista. — O noviciado — O espírito da Con-gregação — A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia deSto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes.

Os dois amigos chegaram a Roma, sem novidade, no mês de setembro de1784. Clemente, nesse interim, havia tomado a resolução firme de ingressarem uma Ordem religiosa: mas por prudência diferiu a entrada para ter maistempo de examinar primeiro o fim particular das diversas Congregações, o fer-vor da observância regular e outras particularidades que haveriam de influir nasua resolução definitiva. Em companhia de Thadeu percorreu a cidade, visitouas igrejas célebres de Roma, observando sempre os religiosos, e indagando devárias pessoas, o que sabiam das diversas Ordens e Congregações que láhavia. Coisas edificantes ouviam eles sobre grande número de Congregaçõescujos membros aspiravam seriamente à perfeição, mas nenhuma delas conse-guiu entusiasmar-lhes os corações. Foi o próprio Deus que se encarregou deindicar a Clemente o lugar, onde o queria.

Numa tarde, depois das visitas feitas aos grandes santuários conferiu como amigo as impressões recebidas durante o dia, e junto compuseram o progra-ma das visitas para o dia seguinte. Clemente teve subitamente uma idéia:“Thadeu, disse ele, a primeira igreja a que iremos amanhã, será aquela cujosino ouvirmos primeiro”. Thadeu concordou.

Na manhã seguinte era ainda escuro, quando ouviram o som melancólicode um pequeno sino, que os convidava à igreja; levantaram-se depressa e fo-ram. Era a pequena Igreja de São Julião, perto da Vila Caserta; entraram, pépor pé, e ouviram rezar; eram sacerdotes desconhecidos para eles, batinaspretas com colarinhos brancos e salientes; rezavam imóveis como se fossemestátuas de mármore; de joelhos, mãos postas, olhos baixos pareciam imersosem profunda contemplação; os padres estavam fazendo a meditação da ma-nhã. Os dois amigos caíram também de joelhos pedindo a Deus, se dignassemanifestar-lhes sua santíssima vontade. Terminada a meditação, Clemente tam-bém se levantou com o coração a bater-lhe fortemente no peito. Ao sair daigreja deu com um rapazinho, coroinha da Igreja de S. Julião, e perguntou-lhe:“Menino, que padres são esses que acabam de rezar agora nessa igreja?” —“São padres Redentoristas, disse o pequeno, e o senhor também será um de-les”.

Essas palavras do menino abalaram o coração do Servo de Deus e bani-

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ram-lhe a tranqüilidade; a todo instante parecia-lhe ouvir: “o senhor será tam-bém um deles”. Não encontrando mais sossego, volta, essa mesma tarde ain-da, à Igreja de São Julião, chama o Reitor ao locutório e informa-se da Congre-gação dos Redentoristas. Quando ouviu que foram fundada por Santo Afonso,cujas obras tanto apreciava, e que tem por fim evangelizar os povos por meio demissões e retiros, dedicando-se de um modo todo particular ao povo abando-nado nos sítios, sentiu que para ela Deus o chamava; não hesitou, relatou aoReitor os estudos que já tinha feito, a idade que então contava, pediu admissãoe o Reitor recebeu-o na Congregação: ei-lo o Redentorista.

A alegria de Clemente Maria foi indescritível: achara enfim a sua vocação,e isso de um modo tão extraordinário, sabia onde é que Deus o queria, e nãoencontrava na língua humana expressões com que pudesse agradecer digna-mente ao Senhor de tê-lo chamado à Congregação do grande Apóstolo e emi-nente Teólogo Santo Afonso Maria, cujas “visitas” afogueadas de amor divinotantas vezes recitara na Igreja de Santo Estevam. Além de tudo isso seria mis-sionário para salvar as almas mais abandonadas e levá-las ao céu; seria oimitador de Jesus na sua vida oculta e no seu apostolado. Contente como quemencontra um tesouro, corre ao encontro de Thadeu para fazê-lo participante dasua indizível felicidade e anuncia-lhe que fora admitido na Congregação dosRedentoristas.

Thadeu porém, que absolutamente não esperava tal resolução, indignou-se, lançou-lhe em rosto sua precipitação e imprudência, exprobrou-lhe sua faltade caridade, perguntando se era para abandoná-lo e deixá-lo só que o trouxerada Áustria para a Itália, cuja língua não conhecia; Thadeu ficaria só num paísdesconhecido, sem recursos para continuar os seus estudos. Isso era, na opi-nião de Thadeu, uma traição vergonhosa. Por mais que se esforçasse, Clemen-te não conseguiu abrandar o coração do amigo, cujas palavras pesadas lhetraspassaram a alma como uma espada de dois gumes; e entretanto a intençãode Clemente era a melhor do mundo, queria fazer feliz o amigo levando-o con-sigo ao convento; este porém obstinava-se em não querer acompanhá-lo.

Mas não há como um dia depois do outro; caiu a noite e Thadeu Hübl foirepousar das fadigas do dia, e mais ainda do dissabor que o prostrara. Clemen-te porém compreendendo que, em semelhantes apuros, só Deus pode ajudar,ajoelhou-se em terra junto do leito do amigo, e rezou a noite inteira pedindo aocéu se dignasse iluminar o companheiro, aliás tão virtuoso e dócil. Ao amanhe-cer estava ele ainda ajoelhado em oração a lutar com Deus como outrora opatriarca Jacó com o anjo na solidão da Palestina. Quando Thadeu acordou,volveu os olhos para o leito do amigo, como que a despertá-lo; mas com grandesurpresa verificou-o intacto, tal qual o deixara na noite anterior; mais surpreen-dido ainda ficou ao contemplar Clemente ajoelhado em terra, os olhos a nadarem lágrimas; compreendeu imediatamente o motivo daqueles preces e sentiu-se comovido, mas não disse palavra. Levantou-se e com o companheiro dirigiu-se a Maria Maggiore atravessando em silêncio as ruas desertas e taciturnas.Os corações de ambos sentiam-se torturados e vazios como as ruas ermas queatravessavam. À graça por fim venceu e Thadeu interrompendo o silêncio disse:“Clemente, eu entrarei contigo na Congregação dos Redentoristas”. Um abraçoforte foi a resposta de Clemente, que não pôde conter as lágrimas; amplexou-o

como se já a muitos anos o não tivesse visto; entraram ambos na igreja e dali apouco, os dois austríacos eram recebidos definitivamente na Congregação doSantíssimo Redentor.

De acordo com a Regra da Congregação, passaram eles uns dias, comocandidatos, em suas vestes seculares na casa do noviciado, preparando-separa o retiro de quinze dias que precede à tomada de hábito. Aos 24 de outubrode 1784 foram revestidos do hábito de Santo Afonso Maria e começaram onoviciado sob a sábia e firme direção do Pe. Landi, Reitor da casa, o qual háanos havia bebido o espírito da Regra, tendo por mestre o próprio santo Funda-dor. Foi Esse o momento da maior importância e relevância para a Congrega-ção transalpina. Nos planos divinos denotava esse momento um movimentoespantoso de salvação, de trabalho, de suores em benefício das almas; a entra-da dos dois estrangeiros na Congregação era o princípio da propagação doinstituto Redentorista além dos Alpes, os limites da Congregação já não seriamcoarctados pelas divisas da Itália, mas iriam de oceano a oceano, estendendo-se pelo mundo inteiro.

Clemente olhando para o seu novo hábito sentia-se outro homem; a batinapreta, o cíngulo tosco com o rosário à cintura, a cruz oculta ao peito enlevavamo seu espírito pela alta significação que tinham. Como noviço fervoroso procu-rava familiarizar-se com as Regras, ou antes, refundir em si o espírito da Con-gregação. A consecução desse nobre ideal não lhe causava a menor dificulda-de; ouvira do mestre dos noviços que o espírito da Congregação Redentoristaconsiste, sobretudo, no espírito de oração, de humildade e de abnegação pró-pria; ora tudo isto era-lhe familiar desde os primeiros anos de sua vida: a oraçãofora sempre o divertimento favorito da sua alma, desde os seus mais verdesanos, a humildade aprendera ele, de sobre, na casa paterna e na oficina dopadeiro; a abnegação da vontade própria fora sempre o seu pão cotidiano; nãolhe era pois necessário transformar muita coisa na sua nova vida, mas só con-tinuar e aperfeiçoar o que praticara no século. E com a graça divina Clementenão foi nada remisso no cumprimento desse dever. A oração tornou-se a almada sua vida religiosa; orava não só quando prostrado ante o altar de JesusSacramentado ou a imagem da Virgem, mas sempre que andava pelos corre-dores do convento e pelas ruas da cidade. Reconhecia de boa mente na Regrado Instituto a expressão da vontade divina. Rijo por natureza e temperamento,fugia da moleza, amando a mortificação e procurando conseguir o domínio com-pleto sobre as suas paixões.

No noviciado de São Julião quis Deus que lhe não faltassem ocasiões paramortificações de todo o gênero. Filho do norte levara ao sul um apetite nãoinsignificante, aumentado ainda pela força de uma constituição robusta, e acozinha italiana do convento de S. Julião era tão parca e tão mesquinha. “Acoisa mais difícil para mim na Itália, disse ele mais tarde, foi o não poder eununca matar completamente a fome”. O seu maior pecado no noviciado foi termandado vir uma fez algumas uvas sem a necessária licença dos Superiores.Isso porém deu-se uma única vez, pois que mesmo nesse ponto Clementesempre se mostrou forte; junto à janela da sua cela, do lado de fora, havia umaparreira, que estendia seus ramos até a altura do quarto e dum dos ramospendia um cacho grande, maduro e apetitoso, que lhe sorria tentadoramente:

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Clemente gostava das uvas doces da Itália; mas não sucumbiu à tentação, foimais forte do que Eva no paraíso, venceu-se e lá deixou ficar o cacho para tercada dia mais ocasião de se mortificar.

Nos companheiros de noviciado não podia o Servo de Deus suportar mole-za nem falta de mortificação. — Com franqueza austríaca — e Clemente era defranqueza rude — não raramente dizia aos italianos: “Os estrangeiros que vêmà Itália esperar e querem que os italianos sejam santos; prestam atenção a tudopara depois contarem lá fora quanto viram e observaram na Itália”. Os noviçositalianos tinham o costume de, no tempo do calor, levar consigo, nos passeios,alguma roupa limpa, para quando estivessem suados. Clemente estranhou se-melhante hábito e uma vez não podendo conter-se foi ter com o mestre denoviços e disse-lhe: “Sr. padre, eu que aqui estou, vim da Áustria com umacamisa, um paletó, um par de calçar, um chapéu e uma bengala caminhando400 horas de Viena até Roma, e nem por isso vi abalada a minha saúde; e aquiem Roma para um passeio de duas horas vejo tantos preparativos, porque tudoisso? O mau costume foi, desde então, abolido no noviciado de São Julião.

Clemente costumava dizer que os meses do seu noviciado oram os maisbelos da sua vida. O conselho que Santo Afonso dava aos seus, de seremcartuxos em casa e apóstolos fora, condizia inteiramente com a sua inclinação.O impulso para a solidão e o desejo ardente do apostolado haviam até entãolutado em sua alma, e agora via esses dois sentimentos harmoniosamente uni-dos em sua Congregação. Tornou-se Redentorista de corpo e alma, entregandoe consagrando à Congregação o amor robusto do seu coração, tomando porlema da sua vida trabalhar por ela, e por ela dar até a última gota do seu san-gue. Eis porque mal entrando na Congregação do Santíssimo Redentor já so-nhava com a propagação desta no Norte da Europa; queria levá-la à sua Pátria,fazê-la conhecida e amada de todos: disso nunca fez segredo durante o novici-ado. As circunstâncias, porém, não pareciam favoráveis aos dois noviços austrí-acos. Os próprios companheiros de noviciado sacudiam a cabeça achando atéatrevimento, o quererem dois pobres padeiros, que não conheciam ainda a fun-do a teologia, implantar a Congregação na Áustria numa época em que tudo seconjurava contra os conventos. Essa notícia transpôs os limites dos EstadosPontifícios e chegou aos ouvidos do Santo Fundador, que residia em Nápoles.O velhinho também sorriu-se ao ouvir falar do desejo de dois austríacos, mas oseu sorriso foi a expressão da alegria e do contentamento. Essa foi uma dasmaiores consolações, que Deus lhe mandara em sua velhice e no meio dasmais rudes provações por que ele tinha de passar nos últimos anos da sualaboriosa vida. Deus iluminou-lhe o espírito, como outrora ao velho Simeão notemplo, e extremamente consolado quis, ele também, pronunciar o seu “Nuncdimittis”. Em tom profético disse Santo Afonso aos seus filhos espirituais: “Nãoduvideis, a Congregação há de persistir até o dia do juízo, porque não é obraminha, mas de Deus; enquanto eu viver ela continuará na obscuridade e nashumilhações; depois da minha morte, porém, ela estenderá suas asas, mor-mente nos países do Norte”. Para Santo Afonso eram Clemente Maria e o seucompanheiro os dois homens da Providência, enviados pelo céu para consoli-darem a Congregação e levarem-na para além dos Alpes. “Esses padres, acres-centou Afonso, farão muito pela glória de Deus, mas necessitam de uma luz

especial do céu”. E o grande bispo resignatário de Santa Agueda dos Godos,que amava a Congregação, por ele fundada, como a pupila dos seus olhos,viveu ainda três anos depois da tomada de hábito dos dois austríacos a rezar esacrificar-se pelos dois noviços; e se Clemente Maria se tornou um grande San-to e a pedra fundamental da Congregação transalpina, deve-o em grande parteàs orações que por ele fez o velhinho Fundador do seu leito de dores em Pagani.

Tão grande e extraordinário foi o zelo e fervor dos dois noviços que o Supe-rior Geral achou que podia abreviar o tempo da provação. No dia de S. José, a19 de março de 1785, cinco meses depois da tomada de hábito, os dois austrí-acos fizeram a profissão religiosa, sendo logo em seguida enviados paraFrosinone, que era a casa de estudos, não longe das divisas do reino de Nápo-les. A sua estada nessa nova residência não devia, contudo, prolongar-se pormuito tempo; em atenção à idade de Clemente e em vista dos estudos feitos naUniversidade de Viena e da premente necessidade de dar início, quanto antes,à fundação além dos Alpes, julgaram os Superiores poder realizar o mais ar-dente desejo do coração de Clemente. Dez dias depois da profissão religiosareceberam os dois austríacos a ordenação sacerdotal na cidade de Alatri, duashoras distante de Frosinone. Debaixo de uma chuva torrencial voltaram osneopresbíteros para casa, jubilosos pela graça extraordinária que Deus lhesconcedera. Segundo o costume na Áustria, esperavam uma recepção festiva esolene, um banquete opíparo, um dia de recreio, adornos em todos os quartose corredores, em sinal de alegria da comunidade. Mas, ó decepção! O Superiorde Frosinone, que bem conhecia a virtude de ambos, quis pô-la em prova já noprimeiro dia. Logo que chegaram em casa, em vez desses sinais externos deregozijo, um deles teve de ler no refeitório enquanto os outros tomavam a refei-ção, e o outro foi auxiliar do irmão copeiro. Nada pois de banquete, de recreio,de distinções. São Clemente mais tarde, lembrando-se desse episódio de suavida, gracejava narrando com vivas cores como ao voltar de Alatri com apetitedevorador e desejo de sentar-se à mesa junto com os confrades — o Reitor,para o mortificar, mandou-lhe que servisse à comunidade e almoçasse depois.Mas isso tudo pouco importava; Clemente era padre, o pobre filho do cortadorde Tasswitz podia subir ao altar, chamar do céu o próprio Deus às suas mãos.Como soe acontecer em tais circunstâncias, a vida parecia um sonho a Cle-mente, que não cansava de repetir: “Sou padre, ministro de Deus, para conduziras almas ao céu”. A mãe de Clemente sobreviveu a esse acontecimento, soubeque seu Joãozinho era sacerdote do Altíssimo, mas não lhe foi dado abraçá-lodepois dessa grande ventura, porque em junho desse mesmo ano veio a falecerem Tasswitz. Clemente contava 34 anos de idade quando, pela primeira vez,subiu aos degraus do altar para o santo sacrifício; era justamente a metade davida, que Nosso Senhor lhe iria conceder. Ainda um ano passaram eles emFrosinone, ocupados com o estudo da teologia, e de um modo especial, damoral composta pelo Santo Fundador da Congregação.

Os Superiores tomaram seriamente a peito a fundação redentorista naÁustria, chamaram a Roma os dois austríacos, que receberam ordens de partirlogo depois do encerramento do Capítulo de Scifelli. Devido às enormes dificul-dades que iriam ter na Áustria, e às circunstâncias especiais desse país, que seachava nas mãos dos “iluminados” e josefinos, receberam eles plenos poderes

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com carta branca para tudo; a própria Regra sofreu pequenas modificaçõesacidentais, devendo provisoriamente amoldar-se às lamentáveis circunstânciasdo Norte, onde não se podia mencionar a palavra “missão” que se detestavacomo sinal de atraso; era, pois, necessário fundar — contra a Regra — escolase colégios, aceitar paróquias, dirigir institutos etc. Clemente foi nomeado Supe-rior, e dele esperavam todos o maior êxito possível para a glória de Deus e asalvação das almas.

PARTE SEGUNDA

Na capital da Polônia (1787-1808)

CAPÍTULO I

Os primeiros anos em VarsóviaEm Viena — Estado lamentável da religião na Áustria — Destina-se à

Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificuldades — Se-nhor, agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégioem Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação.

Em vestes de sacerdotes seculares Clemente e Thadeu Hübl tomaram ocaminho mais breve em direção a Viena; ao avistarem as primeiras casas dagrande Capital sentiram os corações palpitar de contentamento, e prostradosagradeceram à Providência, que lhes fizera ver novamente a cidade onde tan-tos anos haviam labutado pela existência com saudades do sacerdócio; visita-ram as pessoas da sua amizade, maxime as insignes benfeitoras von Maul, oantigo mestre e amigo da “A pera de ferro”, e em geral a todos a quem devi-am algum favor especial.

Depois de cumprindo esse primeiro dever de gratidão, o Pe. Clemente Mariacomeçou a ocupar-se seriamente da missão que lhe fora confiada, de introduzirna grande cidade do Danúbio a sua querida Congregação do Santíssimo Re-dentor. Dificuldades de todo o gênero impediam-lhe os passos e baldavam-lheos esforços. O racionalismo e o jansenismo haviam já escravizado a Áustrialevando tudo a ferro e fogo e procurando abafar e extinguir todo e qualquersentimento católico. O imperador José II, instigado pelos ministros e pela políti-ca contrária, baixava decretos e mais decretos que suprimiam os conventos,perseguiam os religiosos e impediam o exercício livre do culto divino. No espa-ço de apenas cinco anos suprimira nada menos de sessenta e quatro conven-tos na Boêmia e trinta na Áustria, bem como todas as Ordens mendicantes, nãoexcetuando as irmãs de caridade. Os governantes precisavam de quartéis paraos soldados — e para isso os conventos prestavam-se admiravelmente; os reli-giosos foram expulsos, as bibliotecas saqueadas, as obras de arte despedaçadase os próprios esquifes preciosos, que guardavam os restos mortais dos antigosfidalgos, foram postos em hasta pública. A par de todas essas injustiças, forja-vam-se ainda contra os religiosos as maiores calúnias, como se quisessemassim justificar seu nefando procedimento.

S. Clemente considerando tudo isso sentiu a espada traspassar-lhe a alma;não era possível, em tais circunstâncias, nem sequer pensar em fundações deconventos em Viena, e muito menos de uma residência de Redentoristas queninguém ainda conhecia, uma Congregação estrangeira, emissária talvez dopapismo que os governantes detestavam. Além disso S. Clemente havia peca-do gravemente contra o decreto de José II, recebendo o sacerdócio fora da

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Áustria, sem passar pelo seminário organizado pelo governo. De tudo isto S.Clemente informou o Superior Geral em Roma, mas convencido de sua missãoe movido do desejo de não privar sua Pátria dos benefícios da religião, pôs-se àdisposição da Propagação da fé com a licença do Superior Geral.

O Núncio de Varsóvia acabava de pedir sacerdotes alemães para a provín-cia da Curlândia na Rússia por conselho da imperatriz Catarina II, que emboramá em sua vida particular, compreendia que só pela proteção outorgada à reli-gião poderia ganhar para si os católicos da nova província, que lhe ficou caben-do na divisão da Polônia. O Superior Geral autorizou os dois Redentoristas atrabalhar na Curlândia, fundar casas e aceitar noviços. Sem mais detença apron-tam a mala e põem-se a caminho, dispostos a transpor a pé as 200 léguas quevão de Viena a Varsóvia. Já se achavam fora da cidade, quando deram com umpobre ermitão, vestido pobremente com o capuz cinzento às costas e um bor-dão na mão: era o velho eremita de Tívoli, Manoel Kunzmann, amigo de S.Clemente, o qual se achava em viagem de visita às relíquias dos Santos ReisMagos em Colônia. S. Clemente o convidou a entrar na Congregação e aacompanhá-lo à Curlândia. Manoel aceitou gostosamente o convite e tornou-seassim o primeiro noviço, admitido por S. Clemente na Congregação.

S. Clemente, ao partir de Viena, passando por perto de Znaim fez umapequena volta a fim de visitar os seus parentes e amigos; de Znaim foi a Tasswitz,sua cidade natal, onde sentiu renascerem em sua alma as mais gratas recorda-ções da infância: conhecia ainda tudo, a igrejinha era a mesma de outrora semnenhuma modificação, os prédios não apresentavam nenhuma alteração consi-derável; ao chegar à casa, onde nascera, bateu à porta e radiante de satisfaçãoabraçou sua boa irmã, que já não via há muitos anos; dirigiu-se em seguida aocemitério, e diante do túmulo de sua mãe ajoelhou-se e, as lágrimas a correr-lhe pelas faces, rezou por intenção de sua santa mãe, agradecendo-lhe os be-nefícios, sobretudo a boa educação cristã que dela recebera.

Entretanto o tempo urgia e Clemente não podia demorar-se muito; a obedi-ência chamava-o à Curlândia, onde tantas almas sedentas da verdade e ávidasdo pão da palavra divina reclamavam seu suor e suas fadigas. Como o NúncioApostólico, D. Fernando Salluzo, nobre napolitano e íntimo amigo de Sto. Afon-so, se achava em Varsóvia nessa ocasião, resolveram os missionários passarpor lá afim de receberem a necessária jurisdição para a Curlândia e as ordensdo Superior Geral. Mons. Salluzo, porém, não os quis deixar ir adiante, reteve-os em Varsóvia confiando-lhes a cura espiritual dos alemães, antigamente en-tregue aos cuidados dos padres jesuítas, e há treze anos já sem pastor. Depoisdos necessários entendimentos com a Congregação da Propaganda Fide e oSuperior Geral dos Redentoristas, e com a permissão de Poniatowski, rei daPolônia, receberam eles a Igreja de S. Beno, construída sobre uma colina noponto extremo da cidade de Varsóvia. Essa igreja, embora não muito vasta,comportava cerca de mil pessoas e possuía três altares. Na capela-mor, abaixoda estátua de S. Beno achava-se o quadro milagroso de Nossa SenhoraAuxiliadora, venerada com amor pela população de Varsóvia; dos outros altaresum era dedicado a S. José e o outro a Jesus preso à coluna na flagelação;invocações essas que condiziam admiravelmente com as devoções de S. Cle-

mente. A casa que lhe serviria de convento era mais do que modesta; além demuito pequena, era úmida e desprovida de tudo; uma mesinha e algumas ca-deiras velhas constituíam a única mobília da nova residência e do primeiro con-vento dos Redentoristas além dos Alpes; não havia livros, nem relógio, nemestampas, nem camas, nem utensílios de cozinha e — o que era ainda pior —nem dinheiro para comprá-los. A igreja participava inteiramente da sorte doconvento: Não possuía um vintém, nem título algum de rendas, de sorte que setornava difícil obter o azeite para a lâmpada, a cera para o altar e o vinho paraa missa.

Os dois padres encetaram logo sua atividade apostólica na igreja, cele-brando, ouvindo confissões e pregando em alemão. Fr. Manoel servia de cozi-nheiro e porteiro; de alfaiate não se precisava, porque cada um remendava oque lhe pertencia. A cozinha, porém, era lastimável em toda a extensão dapalavra, pois que Fr. Manoel, que nunca exercera o ofício de cozinheiro em suavida, por força das circunstâncias, tornara-se o cozinheiro-mor da nova comuni-dade; de uns pedaços de madeira improvisou os talheres para a cozinha; pratose caçarolas recebeu-as de presente de umas pessoas caridosas, que se apie-daram dos pobres religiosos. O mais difícil era digerir o preparado na cozinhado Irmão Manoel; não poucas vezes foi necessário ao Pe. Superior, ao sair doconfessionário ou ao descer do púlpito, ir à cozinha, cingir o avental e preparara refeição. O fazer as camas não fatigava ninguém; Irmão Manoel estendia-sesobre o banco e os dois padres procuravam o repouso sobre a dura mesa. O Pe.Clemente, embora amante apaixonado da pobreza, sentia, ver seu caro confradesofrer tantas privações; não tinha a quem recorrer senão ao melhor de todos osbenfeitores; nos momentos mais penosos, quando faltava o necessário em casa,ia à Igreja, ajoelhava-se diante do sacrário e, sentindo-se com coragem, subiaos degraus do altar, batia à porta do sacrário e, cheio de confiança, pareciaacordar a Jesus como outrora os Apóstolos, e dizia-lhe: “Senhor, agora é tem-po”. E — ó prodígio! — muitas vezes, depois dessas cenas tocantes, batiam àporta do convento; eram benfeitores que traziam alguma coisa para os padresde S. Beno.

Um dos primeiros trabalhos de S. Clemente em Varsóvia, como ele mesmonarra em uma carta, consistiu em fundar e dirigir escolas alemãs, que eram ládesconhecidas até então. O trabalho tornou-se em breve exaustivo pela enor-me afluência de alunos alemães, polacos e russos; até meninos protestantespediram admissão na escola de S. Beno. Os livros escolares compravam-setodos em Viena; o local comportava cerca de 200 crianças, não contando osórfãos, que eram numerosos.

O serviço da igreja, no princípio, não tomava muito tempo aos sacerdotes.Depois de feita a necessária limpeza das paredes e dos altares, os missionári-os puseram-se a trabalhar no confessionário e no púlpito, mas a assistência eradiminuta; no primeiro ano distribuíram apenas 2.000 comunhões. Os alemãeseram frios e indiferentes para as coisas da religião, enquanto que os polacosfugiam ou evitavam propositalmente os Benonitas, aos quais desprezavam comoa estrangeiros e mais ainda como alemães, que o povo considerava luteranos.O fato de que em S. Beno se pregava em alemão e se davam aulas nessalíngua, foi interpretado como um ensaio de germanização dos polacos. A tudo

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isso ajuntava-se ainda a desesperada situação financeira, a pobreza mais quefranciscana. A pobre comunidade só tinha o conforto do céu, que felizmentenão faltava. Deus conhecia a virtude daqueles heróis, a sinceridade e a boavontade de seus corações, e como os queria para instrumento na realização deseus divinos planos na restauração moral da Europa, aprouve-lhe aperfeiçoá-los na prática da mais completa abnegação. Sem abrirem os lábios para a me-nor queixa, suportaram tudo resignados — e Deus mostrou-se contente e satis-feito com eles de um modo visível.

Como que para aprovar a nova fundação, Clemente teve um dia um avisodo céu. Era o dia 1 de agosto de 1787, e não fazia ainda um ano que os padrestinham aberto a residência de S. Beno. Depois do meio-dia, estando os doismissionários a recrear-se no Senhor e a conversar sobre as dificuldades, quese multiplicavam de dia para dia em Varsóvia, ouviram subitamente um ruídoinexplicável, que os fez estremecer nos bancos. Clemente dirigindo-se a ThadeuHübl disse-lhe: “Com certeza este é o sinal de que o nosso Fundador acaba defalecer”. E com efeito, tomaram nota do dia e da hora e, meses depois, soube-ram ter passado à melhor vida justamente naquela data, o grande Sto. Afonso,que, desejoso de conhecer seus filhos e de abençoá-los, foi visitá-los no mo-mento em que subiu ao céu.

S. Clemente, depois dos primeiros meses em Varsóvia, quase se decidira avoltar para a Itália. Quem conhece bem os grandes planos do Santo não estra-nha esse resolução, que à primeira vista, parece um tanto precipitada, e frutode um espírito indeciso, fraco e volúvel. O desejo de S. Clemente não era acharpara si e para o Pe. Thadeu um campo qualquer de trabalho; a missão, de queele se sabia incumbido, era de formar nas terras do Norte um ramo viçoso daCongregação Redentorista, e isso o mais breve possível, pois que não podiamnem queriam viver longe de uma comunidade completa, onde pudessem ob-servar a Regra e executar todos os seus preceitos com a maior exatidão epontualidade. É o próprio Superior Geral que lhe escreve: “Se não houver espe-rança de se fundar ai um convento, o melhor é voltar para Itália”. Apenas chega-do em Varsóvia, dera S. Clemente os primeiros passos para a realização dessagrandiosa missão, mas sem resultado; as circunstâncias declararam-se contraela, e as experiências feitas fracassaram tristemente. Da Itália não lhe podiammandar reforços de pessoal nem de dinheiro, e dois alemães, que entretantopediram admissão no Instituto, abandonaram logo a Congregação.

Uma idéia grandiosa reanimou-lhe ainda a esperança: a fundação de umgrande colégio na Itália, quanto possível em Roma, com o fim de educar eformar os alemães para a Congregação e para o Norte; chegou a expor essaidéia ao Núncio e ao Superior Geral, que aplaudiram e aprovaram o grandiosoplano. Mas onde levantar esse colégio? O Superior Geral ofereceu S. Julião,como único local menos mau para isso. — Em vista da estreiteza da casa e daimpossibilidade de encontrar outro lugar, teve S. Clemente de desistir dessegrande plano, que entretanto o preocupou até os últimos anos da sua vida.

S. Clemente, porém, depositando toda a sua confiança na Providência,pôs-se a trabalhar, na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Deus haveriade ajudá-lo na realização da missão que o céu lhe dera. Conhecedor profundodas almas quis começar seu plano de reforma pelo clero, que não pecava por

exagero de piedade, mas Dalberg e Wessenberg embargaram-lhe os passos;dirigiu seus olhares para os protestantes da Alemanha e da Suíça para convertê-los; chegou a envolver em seus gigantescos planos a América e a Ásia, naconvicção de que Deus não o poderia abandonar na grandiosa empresa, quevisava tão somente a glória divina e o bem das almas. Seus planos eram vastose ilimitados, porque imenso era o zelo pela salvação das almas, e ardente odesejo de difundir o reino de Deus em toda parte; não era apenas fantasia ousonho de uma natureza doentia, pois que, onde Clemente punha os pés, brota-va a vida de piedade e floresciam as virtudes. Em toda parte, porém, colheudesilusões bem amargas; se todos os planos de S. Clemente se tivessem reali-zado, a sua biografia seria uma das mais interessantes, mais variadas pelamultiplicidade e variedade dos pontos de vista com que ele encarava as coisas,sabendo dar a tudo, com admirável precisão, a unidade de ação. É sob esseaspecto que se compreendem as palavras do grande poeta Zacharias Werner,que afirmava, serem Napoleão e Clemente os maiores gênios, os mais abaliza-dos talentos do seu século. Embora não nos seja dado o prazer de contemplar,admirados, a realização dos intentos grandiosos de S. Clemente, curvemo-nosante as suas virtudes excepcionais, sua humildade, seu desprendimento, suaconfiança em Deus e sua fortaleza inabalável.

Para Clemente não havia outro remédio, senão contentar-se provisoria-mente com o movimento localizado na Igreja de S. Beno e ai receber os noviçosque Deus lhe mandasse, e viver da esperança de um futuro mais favorável namais inteira confiança em a Providência.

Aprouve a Deus consolar seu humilde Servo que, batido das adversidades,colocara sob a proteção do Altíssimo a sua pessoa e os seus maravilhososplanos. Além de um Irmão leigo pediu admissão no convento de S. Beno, logono ano seguinte, um saxônio, alto no corpo e grande no coração, de um tempe-ramento pacato e sisudo: O Pe. Jestersheim que mais tarde se tornou uma dascolunas da comunidade de Varsóvia. As esperanças de Clemente readquiriramnovo vigor com a entrada desse esperançoso jovem. Para maior facilidade nodesempenho do seu cargo o Superior Geral nomeou Clemente seu represen-tante com todas as faculdades e poderes além dos Alpes, delegação essa quese tornara necessária, porquanto Clemente se achava, em S. Beno, sobrecarre-gado de trabalhos: era o mesmo tempo Superior de Varsóvia, vigário, mestre-escola, mestre de noviços e pai dos órfãos.

Em 1791 existia já em São Beno uma respeitável comunidade de cincopadres e dois irmãos leigos, com um noviciado de quatro clérigos, que faziamentrever um belo futuro e davam as maiores e as mais consoladoras esperan-ças. Ao ser informado desse estado florescente da Congregação transalpina, oSuperior Geral escreveu a Clemente: “Congratulo-me convosco pelos muitostrabalhos que tendes; quem me dera poder, também eu, ir batalhar ao vossolado! Coragem, não desanimeis na missão sublime que Jesus vos confiou; eusdar-vos-á, pelos vossos trabalhos, a recompensa que esperais”.

As dificuldades financeiras, porém, continuavam sempre mais prementes,e se não fosse um adjutório de cem escudos oferecidos gentilmente pela Pro-paganda para cobrir as grandes e forçadas despesas da comunidade e do cul-to, bem como as palavras reconfortantes do Núncio, que apreciava imensamen-

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te os trabalhos dos Redentoristas, Clemente teria voltado à Itália, e a grandeobra da reforma dos costumes da Polônia e na Áustria ficaria por fazer, Deussabe até quando.

O demônio, que não estava nada contente com a piedade sempre crescen-te em S. Beno, envidou os maiores esforços para destruir a obra começada comtão belos auspícios e tão brilhantes êxitos espirituais para as almas. Por intrigase má vontade de um dos padres, que logo depois abandonou a Congregação,começaram a surgir certas desinteligências entre Varsóvia e Roma, de sorteque o Procurador Geral dos Redentoristas julgou necessário pedir ao NúncioApostólico que verificasse, se de fato Clemente havia falsificado a Regra, e oSuperior Geral, desconfiado pela falta de cartas que explicassem a situação,perguntou a Clemente, se os padres de S. Beno planejavam uma ruptura derelações com a Congregação, pretendendo declarar-se independentes. Essassuspeitas cresciam, dia a dia, por causa da desorganização dos correios e emconseqüência das guerras e outras perturbações sociais, que tornavam difícil,para não dizer quase impossível a comunicação epistolar com Roma. A corres-pondência era feita ou por portadores especiais ou, então, por intermédio daNunciatura.

Devido a tudo isso a questão entre S. Beno e Roma azedou-se de formaque Clemente chegou a pedir ao Superior Geral a exoneração do pesado cargode Vigário Geral da Congregação, pedido esse que ficou sem efeito.

O ano de 1790 começou alvissareiro para a Congregação Redentorista; àscasas do reino de Nápoles, que por decreto real não podiam antes seguir oregulamento aprovado pelo Papa, foi permitido pelo rei seguir a Regra antigasem falsificações, operando-se assim a união delas aos conventos dos EstadosPontifícios; o Capítulo Geral reunido elegeu Reitor-mor o padre Paulo Blasucci,cujo governo abrangia então as dezoito casas da Congregação, existentes nosEstados Pontifícios, na Sicília, em Nápoles e em Varsóvia. São Clemente foiconfirmado pelo Superior Geral no campo de Vigário Geral e de representantedo Reitor-mor para todos os efeitos, além dos Alpes. Clemente, para se tornarmenos impedido no desempenho de seu cargo, procurou dividir um pouco opeso da responsabilidade imediata, nomeando o padre Thadeu Hübl Reitor dacasa e o Pe. Jestersheim ministros do convento. A coisa ia pois desenvolvendo-se admiravelmente a contento de todos e com a garantia da proteção do Reique também se dignou de reconhecer, aprovar e admitir em toda a Polônia, deuma vez para sempre, a Congregação dos Redentoristas.

CAPÍTULO II

O apostolado em VarsóviaPolônia e sua história — Finis Poloniae — O comando da Prússia — Os

trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vidade convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado da im-prensa.

Nos primeiros anos, a contar de 1790, S. Clemente pouco se preocupoucom os trabalhos de fundações, que se tornaram impossíveis devido às nume-rosas guerras encetadas e realizadas nesse lapso de tempo. Varsóvia não foipoupada nesses tempos calamitosos; antes parecia ter sido escolhida para te-atro principal e mais doloroso das graves perturbações européias de então.Desde o primeiro desmembramento a Polônia não conseguiu mais levantar-seda sua ruína. Catarina II da Rússia, de há muito, planejara-lhe a ruína completa;de nada valeu a brilhante vitória conquistada com bravura por Cosciusko emCracóvia. Varsóvia passou a pertencer ao domínio da Prússia. A prepotenteimperatriz da Rússia impôs ao reino da Polônia a Estanislau Poniatowski, seufavorito, rei sem energia e sem amor à Pátria, dado às letras e à estética, porémsem caráter e sem força moral “rei das mulheres e não rei dos heróis”. A nobre-za da Polônia, outrora tão forte e poderosa, acabara de enfraquecer-se noscombates contra a Rússia; a flor da fidalguia polaca sucumbira, em parte, noscombates sangrentos empreendidos em defesa sagrada da Pátria, e em parte,sob o ferro desapiedado dos carrascos. Dentre os nobres restaurantes, quasetodos preferiam comer o pão do exílio e mendigar o sustento longe da Pátria, acurvar-se ante o domínio humilhante da Rússia. Entre os poucos nobres, quese deixaram ficar na Polônia, reinava a mais degradante desunião; porque, en-quanto uns se prontificaram a derramar o sangue pela Pátria, outros venderam-se vergonhosamente à Rússia, cuja devassidão procuravam imitar. Infelizmentetambém alguns prelados seguiram em tudo a nobreza; os que com heroísmocristão se levantaram contra os ataques do cisma russo e da violência do domí-nio estrangeiro, foram deportados para a Sibéria e outros pontos da Rússia. Osseus substitutos não passavam de humildes criaturas da imperatriz Catarina ejuntamente com a nobreza degenerada puxavam o carro triunfante da Czarina.O baixo clero, em grande parte ignorante, deixava-se guiar quase em tudo pe-los seus prelados. O comércio achava-se todo nas mãos dos judeus, que seenriqueciam explorando escandalosamente os cristãos enquanto que a indús-tria pertencia exclusivamente a estrangeiros. Nas guerras de 1764 e 1772 fo-ram arrasadas aldeias, vilas e cidades inteiras pelos cossacos russos, sendo osseus habitantes, homens e mulheres, velhos e crianças, trucidados com a mais

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requintada barbaridade. Em última análise todas essas calamidades e misériasrecaíam sobre os pobres lavradores e operários, oprimindo-os e esmagando-os.

Apesar de tudo isso, o reino conseguiu recolher ainda as últimas forçaspara se levantar de tamanha ruína. O próprio rei colocou-se à frente do povo,restabelecendo assim a ordem e a tranqüilidade pública. Catarina, que ambici-onava para si a Polônia, não podia ver com bons olhos esse estado de coisas;sob pretexto de tutelar a ordem expediu para a Polônia os militares que, desdea paz com a Turquia em 1792, estavam à disposição da Czarina. Os Polacos,em justa defesa, pediram auxílio em toda a parte, porém debalde; a Saxôniaachava-se demasiado enfraquecida, a Áustria estava ainda ocupada com a Fran-ça; a Turquia não se restabelecera bastantemente de última guerra; restavaainda a Prússia, que anciava por receber um bom pedaço da Polônia depois defeita a divisão.

No auge do desespero os polacos pegaram em armas, prontos e dispostosa todas as eventualidades; o rei amedrontado passou vergonhosamente ao ladodos russos e o general polaco traiu o seu exército. Cosciusko, o último herói daPolônia, com seu exército diminuto embora composto só de heróis, não pôderesistir ao número colossal dos soldados russos, e assim em 1793 efetuou-se osegundo desmembramento da pobre Polônia. NO ano seguinte, ao receber-sea ordem do desarmamento completo dos polacos organizou-se em Cracóviaum levantamento com Cosciusko à frente; o povo parecia eletrizado pelo entu-siasmo e pela esperança da vitória, porquanto a sorte das armas estava a sor-rir-lhe favoravelmente; os russos foram esmagados em Varsóvia, e em geral,em todos os pontos do país. O ódio e a indignação popular contra os inimigosda Pátria era tal, que em Varsóvia se improvisaram forcas onde pereceramtodos os grandes amigos dos russos; durante o último combate contra os súdi-tos da Czarina os polacos penetraram nas prisões e trucidaram os prisioneirosprussianos e russos. Em meados de julho apresentou-se o exército prussianoàs portas de Varsóvia, onde se travou um sangrento combate, enquanto osrussos avançaram pelo lado oposto; indignados e exasperados os polacos for-maram um novo exército para debelá-los, e em um só combate, os russos per-deram 9.000 homens. Em 10 de outubro o próprio Cosciusko comandou empessoa o exército polaco, composto de 10.000 heróis; o combate foi tão renhidoque, em seis horas, as forças polacas ficaram reduzidas a 2.000 homens cain-do 8.000 gloriosamente no campo de batalha; Cosciusko atingido por umaespada inimiga exclamou: Finis Poloniae. O caminho para Varsóvia estava poisaberto; em novembro entraram os russos em Praga, que serve de arrabalde aVarsóvia, em cujas ruas os polacos, homens e mulheres, se defendiam comoleões; mas como o exército inimigo era demasiado grande, a vitória declarou-sea favor dos russos, cujo general Suwarow, indignado e enfurecido, mandou pas-sar a fio da espada a população inteira, correndo o sangue em torrentes pelasruas da cidade; os que tentaram fugir foram afogados no Vistula. Varsóvia lutou,porém, debalde; a 13 de junho de 1795 passou a ser uma possessão prussiana.O assédio da cidade pelos russos S. Clemente o descreve a seu Superior Geral:“Mal libertados do assédio prussiano presenciamos o dos russos, o qual, em-bora não demorasse muito, teve um resultado horrível: mais de 16.000 homens,

mulheres e crianças foram trucidados barbaramente; a nós coube a infelicidadede ser testemunhas dessas cenas horrorosas que se deram em frente da nossacasa à margem do Vistula; graças a Deus nada sofremos dos milhares de ar-mas de fogo russas; os tiros passaram por sobre o telhado da igreja e da nossaresidência, estando nós sempre em gravíssimo perigo de morte”. Foi nessaocasião que S. Clemente fez o voto de ir em romaria a S. João Nepomuceno emPraga, se Varsóvia fosse poupada.

Vinte meses esteve Varsóvia sob o domínio russo, o que lhe foi de grandevantagem. O governo verificando serem pequenas as acomodações escolares,destinadas aos pobres, ofereceu generosamente os meios para a construçãode escolas mais espaçosas. O convento de S. Beno foi aumentado e as suasnecessidades providas pelo governo. Esse estado de coisas, porém, não duroumuito tempo, pois que em 1796 Varsóvia foi entregue oficialmente à Prússia,que lá governou durante dez anos. Os tempos normalizaram-se, mas Varsóviadecaiu consideravelmente, baixando de 120.000 habitantes a apenas 68.000.S. Beno lucrou muito com a chegada dos Prussianos, que viam nos padresRedentoristas um reforço do elemento alemão, embora os Redentoristas seconservassem sempre neutros, distribuindo seus benefícios indistintamente aalemães e polacos. De um documento daquele tempo temos a seguinte notícia:“Atualmente sustenta o Instituto (de S. Beno) 40 crianças e fornece instrução a200; esta ramifica-se no ensino do alemão, polaco, latim, religião, história, geo-grafia, história natural...; os professores são homens de talento”.

A atividade espiritual desenvolvida por S. Clemente e seus padres na Igrejade S. Beno excede a qualquer descrição; foi coisa nunca vista na Europa. Opovo, compreendendo que os Benonitas — assim chamavam os Redentoristas— longe de qualquer pretensão política apenas procuravam a glória de Deus eo bem das almas, mormente entre a mocidade, escolheu a Igreja de S. Benopara centro de edificante piedade. Desde o dia do assalto de Varsóvia em 1794a igreja começou a apinhar-se de povo, mais de polacos que de alemães, por-que aqueles se deliciavam em ouvir as pregações polacas do Pe. Podgorski,que possuía um exterior angélico e a eloqüência de um João Crisóstomo. Onúmero das comunhões distribuídas é a prova mais evidente e incontestável doprogresso consolador e sempre crescente da vida de piedade na Igreja dosBenonitas; quando os padres lá chegaram havia 2.000 comunhões anuais, em1800 já houve 100.000. Nas funções religiosas a aglomeração era tanta, quenão cabendo na igreja, que comportava só mil pessoas, os fiéis ficavam a rezarno cemitério e ao longo das ruas para ao menos de longe ouvirem missa aosdomingos. Com a introdução de novas devoções e exercícios, como novenas,tríduos etc. não passava um dia sem pregações, missas solenes etc. Isso foi umsucesso extraordinário, porque Polacos se sentem bem quando as missas e asfunções religiosas se prolongam por muito tempo e são realizadas com pompa.Em 1800 já todos os moradores de Varsóvia e das imediações conheciam eestimavam a Igreja de S. Beno, onde se pregava uma missão contínua. É opróprio S. Clemente quem nos dá a seguinte descrição dos seus trabalhos emS. Beno: “Aos domingos e dias santos, às 5 horas da manhã há instrução paraos operários e empregados, que não podem ouvir, em outra hora, a palavradivina, havendo em seguida uma missa para eles; nos dias úteis omite-se essa

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pregação. Todos os dias á uma missa às 6 horas com exposição do Santíssimo,durante o qual o povo canta, havendo em seguida uma instrução ao povo empolaco; durante a instrução celebram-se missas para aqueles que não compre-endem alemão nem polaco. Às 8 horas, missa cantada a cantochão com umapregação em polaco, e logo em seguida uma outra em alemão. Terminada essainstrução os meninos da escola vão à igreja, onde começa a missa solene agrande orquestra: assim encerra-se o culto da manhã. Depois no meio-dia: aosdomingos e dias santos há catecismo para as crianças às 2 horas, às 3 h. asirmandades cantam o ofício parvo de Nossa Senhora, às 4 h. há pregação paraos alemães, seguida de vésperas solenes; terminadas estas, uma pregação empolaco e enfim a visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora segundoo método do venerável Servo de Deus, Afonso de Ligório. Nos dias úteis osexercícios pomeridianos começam só depois da aula. Todos os dias às 5 horasda tarde há pregação em alemão, visita ao Santíssimo e em seguida outra pre-gação em polaco, via sacra e cânticos sacros em louvor de Jesus Sacramentadoe da Santíssima Virgem; rematando tudo faz-se com o povo o exame de consci-ência, rezam-se os atos cristãos, procede-se à leitura da vida do Santo, cujafesta a igreja celebra no dia seguinte, e por fim a ladainha de Nossa Senhora,findo o que fecha-se a igreja”. Essa era a vida em S. Beno no longo período dedez anos! Cada dia cinco pregações: três em polaco e duas em alemão, aosdomingos ainda duas aulas de catecismo; diariamente três missas solenes etantos outros exercícios. E como tudo isso não se fazia para o mesmo público,mas para diversas classes de pessoas que se revezavam, era aquilo uma mis-são contínua de dez anos.

Alguns talvez sintam tentação de pensar, ser essa atividade um exagero equiçá, um abuso. Quem porém conhece o estado deplorável em que se achavaVarsóvia em matéria de fé e de costumes, certamente se convencerá da grandesabedoria e prudência, que nesse particular guiaram a S. Clemente, cujo dese-jo sincero era a reforma radical e a restauração da sociedade tão decaída. “Es-cândalos, vícios”, escreve ele, “atingiram aqui o seu auge e é difícil encontrar ocaminho mais seguro e o modo mais eficaz de melhorar a situação; desde oclero até o mais miserável mendigo está tudo corrompido; é para se temer queDeus afaste o candelabro do seu lugar”.

E S. Clemente não exagerava. Varsóvia possuía mais ou menos o caráter eas qualidades das grandes cidades modernas, a saber: frivolidade a descrençanas altas rodas sociais, e ignorância e imoralidade no povo baixo. Um outroescritor, conhecedor profundo daquele tempo, descreve a alta sociedade deentão: “Varsóvia da alta aristocracia, que se revolvia e remexia atrás do carrotriunfal da revolução francesa, corroída nas orgias do rei Estanislau pela depra-vação da sensualidade, a Varsóvia de então com seus palácios, com seus adul-térios nos salões, com suas profanações do matrimônio pelo dinheiro vil, nãoqueria saber de Deus nem do bem da Pátria, contanto que lhe fosse dado gozare divertir-se”. S. Clemente ainda supunha pouco o que se fazia então, não pelafalta de sacerdotes e conventos da cidade, que contava 400 padres seculares e15 regulares, mas pela falta de atividade no clero. “Fora da igreja dos Lazaristase dos Reformados”, escreve ele, “só se prega uma vez por semana nas outrasigrejas de Varsóvia e isso mesmo de modo incompreensível para o povo, sem

entusiasmo e sem espírito”.Para necessidades supremas remédios extraordinários: eis a lógica natural

e simples que organizou a missão contínua de S. Beno. Além disso, era essatambém a única missão que se podia pregar naqueles tempos calamitosos. Énecessário notar que, com esses trabalhos múltiplos e constantes, S. Clementenão se mostrava cruel para seus padres martirizando-os, porque o Santo cuida-va sempre para que o serviço fosse bem dividido os diversos sacerdotes dacomunidade. O povo, em extremo satisfeito e contente com as solenidades pom-posas e os esforços aturados dos Redentoristas, não hesitava em ofertar onecessário para o sustento do culto e as despesas da igreja, e São Clementenão conhecia limites em sua generosidade em se tratando da glória de Deus edos Santos.

De um modo todo especial fazia o Servo de Deus revestirem-se de soleni-dade e pompa as procissões do Santíssimo Sacramento, mormente na festa deCorpus Christi, em que a Igreja presta publicamente a Jesus as homenagensde sua gratidão pelos tesouros de graças recebidas da Eucaristia no altar eespecialmente na mesa da comunhão. Nesse dia adornava a igreja com asmais lindas flores que encontrava na cidade, não se preocupando com o preçodelas. Como a procissão só se podia fazer ao redor da igreja, providenciavapara que esta e o largo se achassem profusamente ornamentados de luzes eflores; doze coroinhas caminhavam com turíbulos fumegando, enquanto queuma multidão de meninos, adornados de prata e ouro, espargiam flores diantedo Santíssimo; os sacerdotes compareciam paramentados de pluviaisriquíssimos; sendo o palio, mais suntuoso ainda, carregado pelos seis senhoresmais nobres da cidade; senhoras da mais alta nobreza e até príncipes faziamquestão de trabalhar, cada ano, no adorno do palio no qual pregavam flores eemblemas, da Eucaristia; só o ouro no palio avaliava-se em 3.000 escudos per-to do ostensório formavam a guarda nobre do Santíssimo numerosos rapazes,em cujas vestes reluziam a prata e o ouro, com asas douradas, simbolizando osquerubins que rodeiam o trono do Altíssimo no céu. Na frente da procissãocaminhavam as Associações e Irmandades com seus respectivos estandartes,símbolo da vitória de Jesus sobre o mundo, e logo em seguida, centenas devirgens, vestidas de branco, empunhando velas acesas e entoando, sem ces-sar, piedosos hinos a Jesus Sacramentado, enquanto que os sinos de S. Beno,como se quisessem cantar também, faziam ecoar ao longe os sentimentos defé e o entusiasmo do povo católico. Atrás de Jesus Sacramentado ia a banda demúsica, prestando homenagens ao Rei dos reis, e logo em seguida os milharesde fiéis que cantavam e rezavam em voz alta. Terminada a procissão, São Cle-mente subia ao púlpito e com seu verbo afogueado e empolgante falava doamor imenso do Prisioneiro dos nossos tabernáculos. Terminada a alocução doSanto o Pe. Blumenau, orador arrebatado, ascendia à tribuna sagrada e discor-ria, em polaco, sobre o mesmo assunto, arrancando lágrimas aos ouvintes.

Com essas solenidades externas queria S. Clemente, além de prestar pu-blicamente as homenagens de adoração que competem a Jesus, chamar aatenção do povo e guiá-lo para Deus; “as solenidades públicas”, dizia ele, “atra-em por seu esplendor e aos poucos cativam o povo, que ouve mais com osolhos do que com os ouvidos”.

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No ministério apostólico a coisa principal para S. Clemente não eram essasexterioridades, mas sim o púlpito e o confessionário; durante as longas soleni-dades religiosas, tão queridas dos Polacos, os confessionários achavam-seconstantemente assediados de penitentes. De longe, até de vinte léguas dedistância, iam pessoas a S. Beno para recuperar a paz do coração e da consci-ência. No púlpito um dos temas prediletos de S. Clemente, em essas ocasiõesextraordinárias, era a sublimidade da fé. Nessas pregações mostrava-se incan-sável e inesgotável, realizando à risca as palavras de S. Paulo: praedica verbum,insta opportune et importune (2 Thim. 4, 2). Em S. Beno faziam-se anualmentecerca de duas mil pregações, em que S. Clemente e os seus padres esgota-vam, nas duas línguas, todas as verdades do símbolo e do decálogo.

Tantos esforços não podiam ficar frustrados e sem resultado; a palavradivina, pronunciada por lábios tão santos, devia necessariamente mover os co-rações e ilustrar os espíritos. E de fato; o povo de Varsóvia transformou-se com-pletamente, de sorte que as pessoas, que freqüentavam a Igreja de S. Beno,começaram a levar uma vida de piedade, que se podia quase chamar uma vidade convento: faziam todos os dias o exame de consciência e a meditação, e porocasião das têmporas recolhiam-se à solidão do retiro espiritual; essas pesso-as piedosas, guiadas por tão sábios e prudentes Diretores, tornavam-se após-tolos para os pobres extraviados, não só pelo bom exemplo que davam, massobretudo pelos conselhos, boas palavras que prodigalizavam e pelas oraçõesque, na Igreja de S. Beno, dirigiam ao céu pela conversão dos pecadores. Des-sa forma a atividade desenvolvida no tempo por S. Clemente irradiava-se portoda a cidade e até para mais longe com grande proveito de inúmeras almas. Aatividade religiosa de Varsóvia ficará sendo sempre o modelo clássico de umaparóquia bem organizada nas grandes cidades modernas, onde não é lícitocingir-se ao costume patriarcal das aldeias, mas onde os vigários devem ter emvista as necessidades espirituais não só das classes abastadas, mas tambémdos operários, dos empregados e em geral de todos os que precisam sacrificar-se, o dia inteiro, a fim de ganhar o sustento para si e para os seus.

É claro que esses exercícios de piedade dentro do templo não absorviamtoda a atividade de S. Clemente; constituíam apenas uns pontos de seu vastoprograma, pois que S. Clemente era reformador em grande estilo, de idéiaslargas e vastos horizontes; no momento, porém, não podia fazer muito mais porfora porque todas as portas lhe estavam fechadas e a sua ação tolhida. Suasvistas e sua atenção achavam-se também voltadas para a escola, para a moci-dade, para a organização da imprensa etc. De todos esses meios pretendia eleservir-se afim de restaurar o reino de Deus nos corações dos homens.

A escola, por ele fundada para as crianças pobres, auxiliava poderosa-mente sua ação pastoral: as meninas e os meninos convertiam-se em apósto-los junto de seus parentes; era edificante e comovente ver muitas delas ajoe-lhar-se diante dos pais, as mãos postas e os olhos, não poucas vezes, banha-dos em lágrimas, a pedir-lhes que se confessassem, fossem à igreja e ouvis-sem a palavra de Deus. O método seguido por S. Clemente na educação dainfância, como veremos adiante, era todo dele e ditado por uma fé profunda euma experiência de muitos anos. “No princípio das aulas”, dizia ele, “basta quese leia, todos os dias, para as crianças alguma pericope do Evangelho, isso

causa grande impressão nos pequenos”. Depois da aula conduzia as crianças àigreja, cantava com elas e rezava algumas das orações que haviam decoradona escola. Assim a teoria unia-se à prática, e mais indelevelmente se imprimiana memória das crianças.

Maior caridade dedicava às meninas, que corriam perigo de se perderemdevido à grande imoralidade, que campeava livre e soberana na cidade emtodos os cantos e direções; S. Clemente esmerava-se em preservá-las da se-dução por meio da instrução e da piedade. Em 1795 fundou para as meninasuma escola profissional a fim de assim habituá-las ao trabalho e garantir-lhesno futuro a honesta subsistência; para as donzelas mais piedosas e dedicadasformou-se uma Associação com vida comum, dando-lhes uma Regra própria,por ele esboçada; as Associadas receberam o nome de “irmãs de São José”. Ofim que as donzelas se propunham nessa nova Instituição era, instruir gratuita-mente as meninas pobres nos rudimentos das ciências e nos ofícios própriosde sua idade e sexo, e sobretudo educá-las e formá-las para moças piedosas epuras. Terminado o tempo da instrução as irmãs procuravam interná-las emcasas de boas famílias. O bem que essas escolas produziam naquele tempo,pode-se perfeitamente deduzir do número de meninas que nelas se educavamem Varsóvia: era nada menos de 300 todos os anos.

No tempo em que S. Clemente era ainda estudante em Viena, inscrevera-se na Ordem Terceira de São Francisco, e achava ser essa instituição providen-cial e de magníficos resultados para a conservação da fé e da piedade entre osjovens; procurou fundar também para a sua Congregação uma coisa semelhan-te, e essa idéia ele acalentou desde os primeiros dias da sua chegada em S.Beno. Aos poucos foi aparecendo a realização desse desejo numa espécie deordem Terceira também para os Redentoristas: eram os Oblatos, entre os quaisse achavam sacerdotes e pessoas virtuosas de ambos os sexos e de todas asclasses sociais. Não viviam juntos, como no convento, mas cada um ficava emsua casa, comprometendo-se todos a tomar parte em atos determinados devida ascética, v. g. nas meditações diárias, exame de consciência etc. O objetivode S. Clemente, ao instituir a Associação dos Oblatos, era de promover e se-cundar o apostolado leigo, a defesa da Igreja, da fé e da moralidade, bem comoa santificação pessoal dos membros; a essa Instituição de Oblatos deve S. Cle-mente grande parte dos resultados magníficos que conseguiu as simpatias demuitas famílias, às quais nunca teria podido chegar por outros meios.

Como se ainda não bastasse tudo isso, S. Clemente lançou mão de umoutro apostolado, talvez mais importante ainda: a imprensa. É certo que semprese pregava em S. Beno, mas que era pequena a Igreja de S. Beno para poderconter a população da cidade que ultrapassava o número de 128.000 habitan-tes? E quantos havia ainda fora de Varsóvia, que não chegavam a ouvir a pala-vra de Deus e a instruir-se nas verdades da religião! E quantas pessoas instru-ídas em diversos ramos da ciência ficavam privadas da instrução religiosa pornão quererem no templo ouvir a linguagem desataviada e apostólica, preferindoentreter-se com as obras melífluas e benesonantes dos jansenistas eenciclopedistas1 franceses com seus palavrões de filantropia, fraternidade, li-berdade etc.! ou então deliciando-se com as obras perniciosas dos maçons e“iluminados” da Alemanha, que além de acariciar o orgulho e a sensualidade

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eram escritas em linguagem elegante, poética e atraente, que mais pareciadoce música e delicioso aroma que encantava os leitores e deixava as leitorasenlouquecidas e apaixonadas, mormente quando nada ainda haviam ouvido deDeus ou da religião! Eram desse quilate os livros que se espalhavam então emtoda a Europa, passando de mão em mão e enervando com seu doce veneno,o pobre povo. A S. Clemente não podia passar despercebida a desgraça, sem-pre crescente, produzida por esses livros perniciosos; compreendendo que dopúlpito não lhe era possível por um dique a esses males, recorreu à imprensa.Embora não pertencesse ele mesmo ao número dos escritores fecundos, tor-nou-se o maior propagandista dos livros bons já existentes e o instigador quaseimportuno de pessoas competentes, para que publicassem outros livros novose instrutivos. De um modo especial dedicou-se em propagar e difundir em todaa parte os livros de S. Afonso de Ligório, que Deus suscitara como um Doutorclássico contra Jansenio e a maçonaria; essas obras obtiveram na Polônia umaaceitação tal, que bastava constar serem elas da pena de S. Afonso para teremrápida extração. Os Redentoristas de S. Beno tornaram-se heróis da pena porordem de S. Clemente; o Pe. Thadeu Hübl traduziu para o alemão as obras de S.Afonso, que ainda faltavam, e diversas outras obras ascéticas; o Pe. Podgorskifez o mesmo para o polaco, enquanto que os padres franceses se dedicaram àtradução dessas mesmas obras para o francês. Para facilitar o trabalho da im-pressão S. Clemente tentou montar uma máquina tipográfica em ponto peque-no, e para a mais rápida difusão dessas obras serviu-se da Congregaçãomariana, cujos Associados assumiam solene compromisso de trabalhar embenefício da boa imprensa.

Desejoso de consolidar para sempre o seu trabalho, não hesitou S. Cle-mente e, fundar Associações para todas as classes de pessoas, porém, emparticular para a juventude, porque estava convencido de que baldados sãotodos os trabalhos em prol do povo, quando não se ganha para o bem a moci-dade, de um modo duradouro, e isso com maior razão ainda porque, em geral,a mocidade costuma ser preterida e desprezada por católicos de certa catego-ria e até por sacerdotes, ao passo que os inimigos de Deus não se cansam delhe proporcionar, por todas as formas, meios de perversão. Só Deus sabe, aquantos jovens de ambos os sexos a Congregação mariana dos rapazes e aAssociação S. José das donzelas preservaram da corrupção, mormente naque-les tempos em que tudo parecia conspirar para a perversão da mocidade. Mui-tos dentre eles — mormente entre as donzelas — consagraram-se a Deus noestado religioso.

CAPÍTULO III

Viagens de fundaçãoO desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em

Praga — Lindau — Em Viena — Morte inesperada — Novo recrutamento —Novas dificuldades com o governo — A imagem da Virgem.

Com o fim de consolidar a obra começada em Varsóvia com tanto benefícioespiritual para as almas S. Clemente não saiu da cidade nos primeiros oito anosde seu apostolado na Polônia. Percebendo, porém, que sua presença em Var-sóvia já não era de absoluta necessidade, e vendo, de outro lado, que o númerode seus padres se aumentava dia a dia, sentiu chegada a hora de expandir oseu zelo e de tratar na execução dos seus grandes planos; era tempo de pensarem outras fundações para assim levar a graça da conversão a todos os povos.S. Clemente não ignorava ser esse o seu dever principal, essa a missão queDeus lhe confiara, pois que para isso fora mandado ao Norte. Cheio de cora-gem e de confiança em Deus encetou suas grandes viagens pela Europa emprocura de lugares para a querida Congregação, de campos de atividade paraseus filhos espirituais; o seu desejo imediato era encontrar uma residência es-paçosa e vasta para acomodar os noviços, e outra não menor para os estudan-tes de filosofia e teologia; assim a Congregação poderia desenvolver-se e rami-ficar-se na Europa para regenerar a sociedade tão decaída, levantar o espíritode fé e arrebanhar as almas para o grêmio da Santa Igreja, fora da qual não hásalvação. Mas para onde ir? Onde teria ele esperança de ver seus trabalhoscoroados de êxito? Certamente não podia contar com o norte da Alemanha,com a Inglaterra etc. onde tudo estava eivado de protestantismo; esses paísesdeveriam ser missionados, porém só mais tarde, quando a Congregação tives-se já conseguido firmeza e garantias de existência em outras partes. As suasvistas dirigiram-se, em primeiro lugar, para os países católicos no sul da Alema-nha e na Suíça. Deus, porém, em seus planos divinos dispôs que as primeirastentativas de fundação se fizessem na Curlândia, para onde já desde o princí-pio, teria ido Clemente com seu companheiro P. Thadeu Hübl, se o Núncio Apos-tólico não o tivesse detido em Varsóvia, ainda mais que a Curlândia acabava deser incorporada à Rússia em virtude do terceiro desmembramento da Polônia.No princípio S. Clemente mostrou-se indeciso e um tanto sem vontade de acei-tar essa fundação, apesar dos pedidos reiterados do bispo da Curlândia, quelhe punha ante os olhos a grande falta de padres na sua diocese, pois que dasquarenta e duas paróquias alemãs quase todas estavam vagas, enquanto quenas outras providas os vigários já eram de idade muito avançada. O SuperiorGeral, Pe. Blasucci, veio tirar-lhe toda a dúvida mostrando-lhe numa carta ser a

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vontade divina que se fundassem residências no Norte, ainda mais que eleesperava da Curlândia inúmeras conversões. São Clemente destacou para essamissão dois padres e um clérigo, que se dirigiram a Mitau, capital da Curlândia,e tomaram por residência o antigo convento dos padres jesuítas; poucos anosdepois fundou ainda as residências de Radzynim e de Lutkowka, e mais outrasteria aceito, se não fossem tão maus os tempos, porquanto se achava pronto afazer o bem onde quer que fosse, mesmo nos países mais longínquos. De Mitaunão tardaram a chegar as mais consoladoras notícias sobre a atividade dospadres e sobre o resultado obtido; os padres conseguiram cativar o povo, queneles depositava inteira confiança; os próprios luteranos, vindos de longe, iamreceber a bênção dos missionários. Tudo isso fez com que S. Clemente se com-prometesse, por um contrato, a enviar para lá mais sete padres, contanto que oaumento dos Redentoristas em Varsóvia correspondesse a seus cálculos; de-sejava que Mitau fosse para o Norte e que S. Beno era para Varsóvia e para aPolônia.

Já em 1792 um nobre cavalheiro fôra da Suíça a Varsóvia para pedir a S.Clemente que se dignasse fundar em sua Pátria uma residência, expondo-lheas belezas da Suíça e mais ainda o abandono em que se achava o povo seden-to de ouvir, naqueles regiões, a palavra de Deus; por absoluta falta de pessoalteve S. Clemente de indeferir, embora muito contra a vontade, o pedido do no-bre senhor; essa oferta, porém, tanto o impressionou que não lhe saiu mais dalembrança. Três anos mais tarde o convento de Varsóvia contava já maior nú-mero de religiosos. Um belo dia Clemente, havendo descido do púlpito, dirigia-se à sacristia a fim de paramentar-se para o santo Sacrifício, quando recebeude alguém uma carta; terminada a missa pôs-se o Santo a ler a escrita assina-da por um cônego Lindau na Alemanha, a pedir-lhe que se lembrasse da Suabiacom a fundação de um convento, e a prometer auxiliá-lo nos primeiros anos.São Clemente viu nisso o dedo da Providência e alegrou-se com o antegozo darealização de seus mais lisonjeiros intentos; iria encontrar um convento paraseus noviços e assim garantir a existência dos Redentoristas além dos Alpes. S.Beno teria que sofrer, provisoriamente, com a perda dos padres, dos quais doisjá tinha ido ao Norte e agora mais quatro sairiam em procura de novas casas,pois que também de Constança tinha chegado insistente pedido para uma novafundação. Os três que deviam ficar em Varsóvia, porém, eram fortes e corajo-sos, podendo com facilidade desempenhar-se do serviço da Igreja já bem orga-nizado e consolidado. Clemente toma o bordão do viandante, apronta a suapequena mala, e tendo por companheiro o Pe. Thadeu Hübl, diz adeus aos queficavam, e depois dos paternais conselhos e necessárias recomendações põe-se a caminho para a bela Suíça. A Europa achava-se então mais ou menostranqüila; a França e a Prússia acabavam de entrar em acordo em Basiléia e aÁustria estava já entabolando as negociações para a paz. São Clemente apro-veitou nessa ocasião o ensejo de cumprir o voto feito a S. João Nepomuceno noassédio de Varsóvia. Em Praga permaneceu nove dias em visita ao túmulo dogrande Taumaturgo e às relíquias dos célebres Santos Padroeiros da cidade:São Norberto, Sta. Ludmila, São Wenceslau e São Vito; de lá dirigiu-se a Lindaupassando por Ratisbona. As suas esperanças, porém, foram baldadas; não con-seguiu nada por causa da revolução que acabava de rebentar outra vez; levou

somente para casa a mais viva impressão das necessidades espirituais do povoe o desejo, ainda mais ardente, de socorrer os infelizes. Em uma carta ao Supe-rior Geral escreve: “Entre os católicos do Norte é grande a fome do pão dapalavra divina a distribuir-se pelos operários evangélicos; o estado em que seacham as igrejas é mais triste do que se possa crer; em toda a parte reinaincalculável ignorância a respeito das mais importantes verdades da salvação.Na Boêmia é tão sensível a falta de sacerdotes, que muitas paróquias estãodesprovidas de vigários, os quais, em os dias santificados, devem ir de um lugarpara o outro afim de celebrar a santa missa; os escândalos estão na ordem dodia e não há quem lhes possa dar remédio; em todos os lados há falta de fé e osinimigos da religião difundem os erros da heresia, não havendo que os possarebater”.

Na volta de Lindau visitou Viena, que já não vira há mais de nove anos.Francisco II, católico fervoroso, inimigo dos “iluminados” governava a Áustria;mas o espírito josefino, que tudo perturbara, dirigia a burocracia; aos bisposcontinuava ainda proibida toda e qualquer influência na formação dos teólogos,e nas preleções das universidades ensinavam-se os princípios falsos e heréti-cos do josefismo. S. Clemente, pois, não podia pensar em fazer tentativas dafundação na Áustria. Felizmente não faltavam homens de talento, peso e nobre-za que quisessem levantar o espírito da época. Diversos desses sacerdotesdistintos trabalhavam em Viena para a regeneração religiosa do povo, porém,sempre às ocultas e com medo das perseguições; faziam, entretanto, constan-temente suas conferências pela restauração da fé e empenhavam-se na difu-são de livros católicos e morais. Nos poucos dias que S. Clemente lá esteve,relacionou-se com esses sacerdotes, aumentando assim seus conhecimentose deixando em tão distintos ministros de Deus a mais indelével e a melhorimpressão, como veremos mais tarde. Não havia entre eles quem não reconhe-cesse em Clemente um homem superior, pois que de outra forma não se pode-ria explicar como um religioso sem nome, sem fortuna, sem distinção de famíliae sem maiores sucessos conhecidos, pudesse exercer tanta atração e forçasobre aqueles espíritos inteligentes e experimentados da grande Capital.

Por Tasswitz, sua cidade natal, dirigiu-se para Varsóvia acompanhado dequatro meninos que pediram a admissão no colégio de S. Beno; depois de trêsmeses de ausência São Clemente e Pe. Thadeu Hübl chegaram a Varsóvia emmeados de dezembro.

Entretanto, na Curlândia as coisas não corriam nada bem; o novo governocomeçava a imiscuir-se nos negócios da Igreja. Os padres podiam, sim, traba-lhar e desenvolver sua atividade, mas a comunicação com os Superiores torna-ra-se-lhes quase impossível. De outro lado, em Roma não compreendiam bemas intenções de S. Clemente em seus novos empreendimentos. Fundar casasem tantos lugares ao mesmo tempo parecia exagero aos Superiores de Roma,que viam, em tudo isto, possível enfado de Varsóvia, ou saudades da Pátriaaustríaca por parte de Clemente e seus companheiros. Em uma longa cartaexplica São Clemente as suas intenções, manifesta a vontade que sempre nu-trira de morrer, talvez, em Roma junto dos caros confrades, e declara ser odesejo do seu coração em todos esses trabalhos, empreendimentos e viagens,abrir novos horizontes para a Congregação. Corrigindo, com alguma ironia, o

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pouco conhecimento de geografia lá em Roma, acrescenta, fazendo alusão àspalavras do Superior Geral, i.é que ele desejava ir à Suíça por amor à Pátria: “ASuíça dista da minha terra mais ou menos como Roma dista da Suíça”.

A Suíça pairava-lhe constantemente aos olhos como o país das suas espe-ranças; de fato não tardou a vir nesse sentido, mais um convite por intermédiodo Embaixador de Varsóvia; São Clemente despachou-o com as melhores es-peranças. Preparava-se já para enviar reforço à Curlândia, onde os padres ar-cavam sob o peso dos trabalhos apostólicos quando, num só dia, vê morrer trêsde seus padres mais novos e três dias depois o quarto, talvez em conseqüênciade algum envenenamento. O choque foi tremendo. Ficando a comunidade redu-zida à metade, S. Clemente não podia já pensar na Curlândia e muito menos naSuíça. Deus, porém, não abandonou seu Servo; uma semana antes daquelamorte inesperada, a Providência mandara-lhe quatro noviços franceses de vas-tos e profundos conhecimentos; Passerat, Lenoir, Vannelet e Mercier, que du-rante a revolução havia fugido de sua terra para completar os estudos na Ale-manha; ao rebentar a guerra de 1795, não se sentindo seguros lá, passaram aVarsóvia, onde, depois de breve noviciado na Congregação, fizeram a profissãoreligiosa no dia de Sto. Estanislau Kostka. Dentre eles destaca-se o Pe. JoséConstantino Passerat que teve um papel sobremaneira saliente na vida do nos-so Santo, como veremos mais adiante. Em fins de 1796 S. Beno contava trêspadres, catorze clérigos professores, quatro noviços e dois aspirantes. S. Cle-mente estava satisfeito com a sua comunidade, mormente com o Pe. Passerat,em quem notara disposição declarada para uma perfeição não comum.

Em abril de 1797 Napoleão assinou os preliminares da paz com a Áustria.No Sul, pois, o caminho estava aberto: era necessário aproveitar a ocasião.Clemente toma, pela segunda vez, o bordão do viandante e parte para o Oeste;as coisas porém tornaram-se ainda piores que dois anos atrás; a revoluçãofrancesa precipitara-se, qual furacão violento, contra o Este ameaçando sub-verter a ordem em toda a Europa. Não sabemos, se São Clemente, desta vez,chegou até a Suíça; o certo é, que ele esteve em Ratisbona em visita ao santobispo Wittmann e também na Áustria, onde ainda medrava o josefismo. A Áus-tria pôs-se em guerra com Napoleão que marchara da Itália contra Viena. Nãoera, pois, tempo de fundar conventos. Entretanto a viagem não foi totalmenteperdida para ele nem para a Congregação, porque teve outra vez o prazer devisitar sua irmã e as alegres crianças bem como seu irmão em Bratelsbrunn,donde levou seu sobrinho Francisco Hofbauer, que se tornou um santoRedentorista, vindo a falecer em Altötting, na Baviera, em 1845.

São Clemente não deixou de ficar sentido com o fracasso dessa sua se-gunda excursão, que não teve melhor êxito que a primeira. Como recompensa,porém, da boa vontade de seu Servo, quis Deus conceder-lhe as alegrias ino-centes e santas do seu convento. Ao chegar em casa edificou-se com o movi-mento sempre crescente na igreja; as crianças da escola, cheias de saudadesdo seu benfeitor e pai, rodearam-no e fizeram-lhe festa; a casa de estudos pro-gredia também admiravelmente, de sorte que até de longe iam estudantes aVarsóvia para se aperfeiçoar na teologia em S. Beno. São Clemente pode es-crever a Roma: “O governo prussiano vê com bons olhos os que se dedicam àeducação da mocidade, e por isso muitos nos favorece preferindo a nossa es-

cola a todas as outras”. Tudo parecia correr de vento em popa para osRedentoristas em S. Beno — quando em Berlim nuvens negras se preparavam,às ocultas, para se precipitar contra o convento de São Clemente. Já em 1796 ogoverno proibira a todas as Congregações e Ordens religiosas admitir noviçosà profissão sem a sua alta licença; três anos mais tarde, em 1799, apareceunova proibição de abraçar a vida religiosa aos jovens que não tivessem aindafeito o serviço militar, ou que ainda não houvessem completado 24 anos, e issomesmo com a licença do governo; a ninguém era permitido comunicar-se comRoma, sob as mais severas penas; os noviços não podiam usar o hábito religi-oso; durante o noviciado em vez de livros de piedade deviam dar-se aos novi-ços obras científicas, obrigá-los a compor trechos de literatura em polaco ealemão, e dedicar-se ao estudo da álgebra, geometria, desenho, história natu-ral, física, tecnologia e pedagogia teórica e prática; terminado o noviciado, far-se-iam dois exames diante de examinadores protestantes: o primeiro, antes daprofissão religiosa, o segundo, antes da ordenação que não podia ser feita se-não por bispos alemães, quando se tratava de alunos germanos. Para a fiscali-zação do cumprimento dessa lei constituiu-se, em toda a parte, uma Comissãode conselheiros; os de Varsóvia professavam todos o protestantismo e tinhampor presidente um homem detestável, inimigo fidalgal dos conventos. Além dis-so o governo proibiu protrair as rezas para além das 18 horas, sendo apenaspermitido deixar aberta a igreja até às 20 horas, porém só de 1 de maio a 1 deoutubro. Isso era naturalmente a morte de S. Beno e da florescente fundaçãoredentorista.

S. Clemente mandara vir a Varsóvia uma belíssima imagem da Ssma. Vir-gem, que queria colocar na igreja com a maior solenidade e o maior concursodo povo. Esse desejo foi considerado um crime; o governo protestou, mandouchamar o Superior do convento, que não se deixou todavia amedrontar. Consi-derando que em coisas de religião nada tinha que perguntar a protestantes,Clemente esperou, à noite, o povo ausentar-se da igreja, e ocultamente colocoua imagem no lugar preparado; no dia seguinte foi grande o contentamento doscatólicos, quando viram a belíssima imagem da Virgem sobre o altar, porém,não menor a indignação do governo. São Clemente foi citado perante o consistórioepiscopal protestante, onde relatou o fato sem mais graves conseqüências. OServo de Deus percebeu que as coisas iam de mal a pior e temia, não sem motivo,que o expulsassem da cidade; revestiu-se de toda a prudência e soube tentear osnegócios com tal diplomacia, que nada sucedeu de desagradável à igreja dosRedentoristas durante todo o tempo, que Varsóvia esteve debaixo do poder prussiano,não deixando, porém, nunca de defender os direitos sacrossantos da Igreja comfranqueza e energia apostólica. Tal modo de vida, porém, não agradava nada aClemente, inimigo da guerra, onde nada medra nem prospera; suspirava por umlugar seguro, onde pudesse ver seus noviços tranqüilos e sossegados; não o en-contrando no Norte, lembrou-se da Itália, mas infelizmente lá também a coisa nãoia bem. Foi necessário curvar-se ante a mão de Deus e adorar os juízos do Eterno.Nesse interim os padres da Curlândia receberam de Roma a dispensa dos votos.

Antes de encetarmos a narração da terceira viagem de fundação, lancemosum olhar para os trabalhos do Santo em Varsóvia nesse lapso de tempo.

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CAPÍTULO IV

Os anos de 1798 a 1802Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas —

A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno— Date et dabitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção doSeminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livrepensadores em ação — S. Beno hostilizado.

De 1798 a 1802 S. Beno tinha atingido ao apogeu da grandeza e desenvol-vimento. Achando-se em casa, era S. Clemente que tomava sobre si todo opeso do trabalho; desejava excitar os outros padres ao trabalho apostólico maispelo exemplo do que por palavras. Verba movent, exempla trahunt. Uma senho-ra da alta nobreza polaca, quando já avançada em anos, escreveu o seguintejuízo sobre S. Clemente: “Parece-me ter sempre antes os olhos aquele sacer-dote venerando em sua atitude tão nobre e cheia de dignidade, e entretanto tãosimples; ele irradiava sempre alegria ao derredor de si; suas palestras eramchans não usando nelas palavras rebuscadas, mas traíam sempre a grandezade espírito e inspiravam imediatamente confiança; seu grande amor para comJesus Cristo transluzia em todas as suas ações... de seus olhos percebia-se apureza do seu coração e a paz íntima da sua alma... ele afadigava-se semconhecer descanso”. E realmente S. Clemente era incansável. Não raras vezes,da cozinha onde estava a remediar os poucos conhecimentos culinários doIrmão Manoel, no caso de alguma visita mais nobre, ia ao confessionário ou,tirando o avental, subia do fogão ao púlpito. Era sempre ele que celebrava todosos dias a última missa cantada e pregava os sermão principal; por assunto dapregação costumava tomar a epístola do último domingo, da qual só explicavadois ou três versículos, porém com tal clareza que sobre o tema não restavadúvida alguma por resolver nos ouvintes. Por vezes ele mesmo apostrofava, dopúlpito, os alunos da escola e os estudantes para assim manter sempre viva aatenção; louvava os aplicados e censurava os preguiçosos. Como se vê, eratudo isso muito familiar.

Diversos conventos de religiosas queriam-no para Diretor espiritual, v. g. asBeneditinas, Visitandinas, Carmelitas etc. O confessor ordinário dessas últimasera o Pe. Podgorski; às vezes, porém, era necessário que São Clemente, opróprio Vigário Geral, interviesse no caso. Assim estando uma vez o Pe. Podgorskiquase desesperado com os escrúpulos de uma das Irmãs, por nome Josefa,mandou chamar o Vigário Geral, que logo apareceu e citou a Irmã escrupulosa.Vendo-a tão abatida, as faces encovadas e a nervosia estampada no rosto,disse sorrindo. “A Irmã coma muita galinha e durma bastante, que os escrúpu-

los desaparecerão”. A pobrezinha corou-se, mas sarou completamente em cor-po e alma, vindo a exercer, diversas vezes, o cargo de Superiora antes da mor-te, que só a levou depois de muitos anos de vida religiosa, estando ela em idadebem avançada.

Os convertidos davam muito trabalho aos padres; atraídos pela beleza damúsica, os protestantes também freqüentavam a igreja dos Redentoristas, enão poucos se converteram ouvindo os sermões cheios de unção e erudição donosso Santo. Inúmeros judeus também se apresentaram pedindo o batismo;antes porém de renascerem pelas águas lustrais eram preparados pelo Pe.Lenoir, versado em todas as línguas orientais e conhecedor profundo do Talmud.Uma ou outra dessas conversões judaicas não eram sinceras, mas sim motiva-das pelo interesse; os judeus, odiados pelos católicos, deixavam-se batizar parao aumento da freguesia, continuando todavia em as práticas do judaísmo. É porisso que algumas vezes S. Clemente dizia a sorrir: “O judeu deveria ser afogadonas águas do Vistula logo após o batizado”. As conversões sinceras e duradou-ras eram tão numerosas, que foi necessário alugar um quarto na casa vizinha,para se ter mais comodidade em instruir todos os que queriam abjurar a here-sia.

Nesse mesmo tempo S. Clemente dedicou-se ao aperfeiçoamento da Con-gregação dos Oblatos, que poucos anos antes instituíra, confeccionando osEstatuto que deveriam ser apresentados em Roma à aprovação da Santa Sé.Para a propaganda dessa obra santa serviu-se das viagens pela Alemanha,Suíça, Áustria etc. O número de Oblatos não era grande, porque só se admitiampessoas conhecidamente piedosas, almas de virtudes provadas e acrisoladas.O noviciado devia durar um ano; a formula de profissão continha juramento defidelidade irrevogável à Santa Sé e a promessa de “edificar, quanto possível, opróximo com bons exemplos, desviá-lo dos princípios subversivos da época,difundir o conhecimento da Santa Igreja Romana, implantar os bons costumes,espalhar a leitura de livros bons e piedosos, de escritos segundo o Espírito deJesus Cristo, e destruir nos corações o reinado da culpa”. O Oblato recebia umnome e o hábito da Ordem, que ele trazia somente em casa, para se lembrarconstantemente do seu compromisso; os associados estavam debaixo das or-dens de um Diretor provincial, escolhendo-se um lugar determinado para asreuniões e as conferências. A direção suprema, porém, pertencia ao VigárioGeral dos Redentoristas.

Desde 1800 podia S. Clemente dedicar-se às missões propriamente ditas,que são o escopo principal da Congregação Redentorista. Até então as circuns-tâncias tão desagradáveis, ocasionadas pelas constantes guerras e revoluçõese, não menos, pela má vontade dos governantes, não lhe permitiam pensarnisso; agora parecia viável esse apostolado da palavra. E de fato, em 1801foram pregadas três grandes missões: a primeira em uma das matrizes de Var-sóvia e as outras duas em cidades do interior. Estas últimas estiveram ao cargodo Pe. Thadeu Hübl que saiu acompanhado de cinco missionários; uma delasdurou quinze dias e a outra trinta, ambas com o mais estupendo resultado: maisde onze mil pessoas, em cada uma delas, receberam os santos sacramentosda confissão e da comunhão. Em uma carta ao Superior Geral, descreve SãoClemente uma dessas missões, acrescentando que o maior adversários da

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missão fora justamente o vigário da paróquia, o qual porém, ao ouvir o primeirosermão da tarde, sentiu-se tão comovido que, não podendo já conter-se, diri-giu-se ao quarto dos missionários, caiu de joelhos a seus pés abraçando-os echorando sem poder falar durante um quarto de hora. Desde então pregaram-se diversas missões, no sul da Prússia, ao povo ávido de ouvir a palavra divina.Mesmo então eram as missões apenas uma ocupação secundária devido àscircunstâncias, à grande falta de sacerdotes, à absorção das forças em S. Beno,e a preocupação principal de difundir e consolidar a Congregação Redentoristaalém dos Alpes. Os grandes oradores que emocionavam o povo e arrancavamlágrimas às massas, fazendo encher, à cunha, a Igreja de S. Beno, eram ospadres Podgorski e Blumenau; o Pe. Thadeu Hübl pregava menos, mas era omais procurado no confessionário, mormente pelos nobres e pelos prelados; nacúria metropolitana de Varsóvia era ele uma autoridade em questões teológi-cas; dos doze examinadores sinodais era ele o mais temido dos estudantes,que lhe deram o apelido de “Hobl”, i. é plaina; falava corretamente sete línguase para o uso dos seus alunos compôs tratados de lógica e metafísica. O seutemperamento grave, porém bondoso e serviçal, valeu-lhe o nome “mãe daCongregação”. Em caso de questões com o governo, São Clemente, temendoseu temperamento sangüíneo e irascível, confiava o negócio à prudência do Pe.Thadeu Hübl.

A parte material do convento era administrada pelo Pe. Jestersheim, que,como ótimo cantor, regia o coro da Igreja de S. Beno. Por força das circunstân-cias era necessário fazer então as maiores economias. O ministro tinha mãofirme e passava por ser um administrador econômico; era, pois, o homem emseu posto certo — como dizem os ingleses — porque as rendas da casa nãocresciam e a caixa estava quase sempre vazia. Não poucas vezes ele, um tantocontrariado, chamou a atenção do Vigário Geral, que abria demais as mãospara beneficiar os pobres; São Clemente, porém, abrandava-o sempre com estaspalavras, que bem mostram a confiança ilimitada que depositava na Providên-cia. “Date et dabitur (dar e receber) são duas irmãs”, isto é, se derdes esmolas,recebereis outras, essas irmãs dão-se muito e não querem estar separadas. Ede fato, embora a caixa do convento tivesse estado muitas vezes vazia, a Provi-dência nunca deixou de socorrer os Redentoristas de Varsóvia. Em favor dosórfãos e dos outros meninos pobres ia ele, em pessoa, pedir esmola de casaem casa, expondo-se a vexames e humilhações de toda a sorte; isso porém elefazia com gosto e santa alegria em espírito de humildade sacrificando-se para obem das criancinhas, das quais mais tarde dependeria, em parte, a regenera-ção social da cidade e a conservação do espírito de fé. Foi numa dessas ocasi-ões que ele deu um exemplo admirável de mansidão e paciência. Saiu a esmolar,quando observou que no balcão de uma casa de negócios reinava extraordiná-ria alegria; vendo tanta gente reunida sentiu-se no direito de esperar copiosaesmola. Se um der, pensava ele, os outros por coleguismo ou outros motivos,não poderão negar. Devagar entrou e aproximou-se do lado, onde estavam sen-tados muitos senhores que pelo traje pareciam bastante ricos; chegou-se a umdeles e delicadamente pediu uma esmola para os seus órfãos. O homem queestava disposto a tudo, menos a dar esmolas, e que não era nada amigo debatinas, irritou-se com o pedido, levantou-se espumando de raiva, as veias a

saltar-lhe do corpo, cobriu de injúrias o pobre do padre lançando-lhe em rostoque ele não deveria começar coisa alguma, muito menos um orfanato, não ten-do meios para isso. Clemente ouvia tudo aquilo com calma e tranqüilidade; ohomem porém, na medida que falava, se enchia de cólera e mais se exaltava:esgotado afinal o vasto repertório de palavras injuriosas, enche a boca e escar-ra vergonhosamente no rosto do Santo, o qual com a maior tranqüilidade deespírito toma o lenço, passa-o pela face, dizendo em seguida ao homem: “Istofoi para mim; agora dê alguma coisa para os meus orfãozinhos”. Essa palavratão humilde e tão mansa foi como água na fervura. Não houve entre aquelessenhores quem não admirasse tão heróica virtude; o próprio senhor, que tantose enraivecera, sentiu-se comovido, arrependeu-se, pediu perdão e entregou aS. Clemente uma avultada soma para os seus orfãozinhos. A conversão dessesenhor foi sincera; ele tornou-se um católico fervoroso e um grande benfeitordos órfãos e das demais obras caritativas de S. Clemente.

Não pequeno serviço prestava a comunidade o grande Pe. José Passerat;os sete anos passados na formação dos noviços foram para ele a escada poronde subiu às alturas da perfeição na vida interior; era homem da oração, dignoimitador de seu pai espiritual Santo Afonso com razão intitulado o grande Dou-tor da Oração, porque ninguém como ele soube inculcar tanto o valor e a neces-sidade dela para a salvação. O Pe. Passerat não cessava de fazer de seusnoviços outros tantos mestres da oração. “O primeiro meio, dizia ele, para pro-gredir na perfeição é a oração, o segundo, o terceiro, o quarto, o décimo, ocentésimo meio é outra vez a oração”. O Vigário Geral não poucas vezes fê-lodar a seus noviços o mais heróico exemplo de humildade. O seguinte fato é aprova evidente do espírito de abnegação e humildade que reinava no noviciadode São Beno. Um dia o Pe. Passerat querendo provar a vocação de um de seusnoviços, mandou-lhe conservar-se de joelhos à porta da igreja, do lado de fora,até segunda ordem. Entretanto Passerat esquecendo-se inteiramente de seunoviço que tinha sido posto em provação; à noite, achando falta nele, correu àigreja e encontrou o pobre noviço ajoelhado como lhe tinha sido mandado des-de a manhã; Pe. Passerat abraçou-o e pediu-lhe perdão com a maior humilda-de. Deus quis purificar seu servo Passerat com grandes provações interiores.Era ele um francês nobre e de coração grande; abandonara tudo e queria sóviver para Deus, mas o amor da idolatrada Pátria e da família era-lhe uma ver-dadeira tortura. Filho único de sua mãe, que vivia tão distante, tinha saudadesdela e sabia que a progenitora ardia em desejo de vê-lo ao menos uma vezantes da morte, mas não conseguiu obter licença, porque a Regra dosRedentoristas proíbe a todos a visita à casa paterna, a não ser em caso deperigo de vida para o pai ou para a mãe. Pe. Passerat consumou o sacrifício,curvando-se ao peso da cruz.

Não obstante todo o esforço de São Clemente em contrário, São Benocontinuava ainda a ser a casa dos estudos. Os padres franceses que se distin-guiam por uma instrução vasta e profunda foram incumbidos da formação inte-lectual dos clérigos. Afim de que os estudantes aprendessem praticamente aaparecer em público e a se desenvolver no exercício da linguagem, São Cle-mente designava-os, de vez em quando, para diversos ofícios na igreja v. g.explicar as estações da Via Sacra, o Catecismo, o modo de fazer o exame de

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consciência etc.Em 1800 os Redentoristas de S. Beno aceitaram a direção de um seminá-

rio de clérigos seculares. Com a supressão da Companhia de Jesus em muitosseminários ficaram desprovidos de professores; eis porque muitos seminaristasde fora iam a Varsóvia para lá continuarem seus estudos; e não poucos dentreeles tornaram-se, mais tarde fervorosos Redentoristas. Essa medida extraordi-nária, tomada por São Clemente, garantiu a subsistência ao convento de S.Beno sob o governo da Prússia, que timbrava em proteger todos os que sededicavam à educação da infância e da mocidade. Também outras ordens reli-giosas, como, por exemplo, os Lazaristas2 serviram-se desse estratagema paraa manutenção do Instituto.

A instrução na escola dos meninos pobres foi ministrada pelos padres so-mente nos primeiros anos; mais tarde o Superior Geral entregou esse serviçoaos estudantes que pediam admissão na Congregação. São Clemente consi-derava essas escolas não só como uma obra de caridade para com os pobres,mas como um dos melhores meios de apostolado; e de fato na cidade de Varsó-via nada menos de 700 crianças a saber 400 meninos e 300 meninas, recebiamsempre instrução e educação religiosa nessas escolas, preservando-se assimda corrupção geral que campeava impune na grande cidade; durante a estadarelativamente curta dos padres Redentoristas em Varsóvia nada menos de onzemil crianças passaram por essas escolas. Os prédios em que funcionavam asescolas eram naturalmente bem primitivos, sem luxo e sem as comodidadesque se requerem geralmente em semelhantes estabelecimentos; as paredeseram, em grande parte, de madeira. Isso porém não estranha porque o próprioconvento dos padres era pobre e mais que modesto, o Vigário Geral e o Reitorda casa, residiam no mesmo quarto por falta de acomodações.

É certo que Varsóvia nunca fora lugar apto para casa de noviços e estudan-tes; São Clemente era o primeiro a reconhecê-lo, mas a necessidade o cons-trangia. Quem acreditara, que Deus se serviria dessa circunstância para humi-lhar seu Servo e fazê-lo passar por momentos bem amargos!

Nem todos os Redentoristas de Varsóvia estavam inteiramente de acordocom a atividade extraordinária e estafante, que nos primeiros anos de desen-volveu em S. Beno. — Os padres Passerat e Vannelet, almas dadas à contem-plação e ao recolhimento, não deixaram de estranhar esse moto contínuo naigreja e no convento, com o que achavam incompatível a observância da Regraque manda o recolhimento de espírito. Como bons religiosos e santos sacerdo-tes julgaram-se em consciência obrigados a relatar tudo ao Superior Geral emRoma. Monsenhor Litta, Núncio apostólico, ao voltar de S. Petesburgo a Roma,levou a carta de Passerat; embora o Núncio fosse um acérrimo e eloqüentedefensor da atividade de São Clemente, o Superior Geral esteve mais propensoao Pe. Passerat do que a Litta. Os trabalhos de Varsóvia eram realmente exage-rados e contrários aos princípios na Congregação nas casas da Itália. O Capítu-lo Geral reunido em 1793 para a união das duas partes da Congregação, aboliuas permissões e resoluções de Scifelli que outorgara carta branca a São Cle-mente no Norte, proibiu as escolas, os colégios e semelhantes trabalhos porserem contrários à letra e ao espírito da Regra; Clemente porém nada ouviradesse Capítulo, ou porque os Superiores de Roma se esqueceram de lho parti-

cipar, ou porque as cartas se extraviaram, o que não era coisa rara naquelestempos. O Superior Geral, levando em conta e tomando em consideração acarta do Pe. Passerat, admoestou o Vigário Geral exigindo sossego e tranqüili-dade para a casa dos noviços e dos estudantes, aconselhando apenas duaspregações por dia em vez das cinco usuais, e lembrando-lhe a proibição dedirigir escolas, seminários etc. Às explicações de S. Clemente, que na sua cartaacentuava a ignorância religiosa do povo, a necessidade das escolas para asubsistência da Congregação, o bem espiritual das almas, o desejo e a ânciado povo por ouvir a palavra divina, bem como a afirmação verdadeira de que osestudos não eram de modo algum negligenciados, visto serem os alunosredentoristas sempre os primeiros nos exames dos ordinários, pacificaram com-pletamente o Superior Geral.

Diversas desinteligências amarguraram bem o Vigário Geral, cujas inten-ções eram, sem dúvida, as melhores possíveis. Deus permitiu esses dissabo-res para mais o conservar na humildade e para acrisolar a sua virtude. Não hádúvida de que bem grande era o perigo de uma cisão e separação do ramotransalpino da Congregação, e se S. Clemente não tivesse sido um Superior dealta envergadura, tão prudente e tão afeiçoado à sua querida Congregação,talvez fosse inevitável esse desfecho. Apesar da troca de cartas menos amisto-sas tanto de Roma como de S. Beno, não nos é lícito concluir que tenha havidoestremecimento entre esses dois ramos vigorosos da Congregação Redentorista.Ninguém poderá estranhar que o Superior Geral, obedecendo a um dever sa-grado, tenha tentado tudo para impedir qualquer transformação essencial e con-trária à Regra nos conventos além dos Alpes. Se o Pe. Blasucci, Superior Geral,não se achasse já enfraquecido pela idade e se os tempos calamitosos e incer-tos de então o permitissem, certamente o representante do Santo Fundadoratravessaria os Alpes e iria em pessoa regularizar tudo segundo os seus dese-jos. Os padres da Itália interessavam-se vivamente pela Congregação transalpinae não poucas vezes se lembravam dela enviando saudações e cartas aos pa-dres de São Beno. Assim, p. ex. escreve o Pe. Tannoia de Pagani ao Santo:“Quem nos dera asas para voarmos até ai e vos darmos o amplexo do nossoamor e fraternidade!” Esse grande biógrafo de Santo Afonso, acrescentou aessa biografia interessantes notícias sobre as casas de Varsóvia e Mitau: issomostra o interesse com que os padres italianos acompanhavam o desenrolarda grande atividade apostólica dos Redentoristas, súditos do nosso Santo alémdos Alpes.

Teria sido realmente um verdadeiro desastre se S. Clemente, por causadessas desinteligências tivesse abandonado a “missão continuada” de S. Beno.Ninguém podia desconhecer o grande bem que ela operava entre o povo e emtodas as rodas e classes da população. Isto era mais uma prova de que S.Clemente não seguia apenas um capricho qualquer, mas que tinha em vista tãosomente a maior glória de Deus e o bem das almas. É ele mesmo quem decla-rou uma vez, que após os dez anos de trabalhos em Varsóvia lá se formou umnúmero bem considerável de católicos, de ambos os sexos, que poderiam fazerhonra aos cristãos do primeiro século da cristandade pelo brilho de todas asvirtudes.

A prova mais evidente da conversão radical de muitos e da difusão cons-

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tante do espírito haurido na Igreja de S. Beno, é o combate sempre crescenteque contra os Redentoristas faziam os livre pensadores de Varsóvia, que sesentiam seriamente ameaçados em seu governo absoluto sobre a cidade. Luzsobre a situação de então lança uma carta escrita por um oficial a seu amigo:“Imagine... há aqui uma Ordem, os Benonitas, quase todos alemães, que nãoobstante a grande aversão que todos da cidade sentem contra os germanos,têm conseguido com argúcia jesuítica fazer com que o povo os estime mais doque aos próprios sacerdotes nacionais, e esteja pronto a se deixar trucidar poreles. É certo que são trabalhadores, enquanto que alguns sacerdotes polacossão preguiçosos; são instruídos ao passo que os polacos são uns idiotas queandam sempre bêbados; eles sabem prender o povo conservando a igreja abertadas 6 horas da manhã às 9 da noite, cantando, pregando, incensando... possu-em uma multidão de Irmandades de homens e de mulheres, tirados da maisbaixa camada popular, e servem-se das confissões para terem maior influên-cia... eu quisera oferecer 100 ducados a quem quebrasse o Crucifixo de S.Beno nas costas desses padrecos”. Quem isso escreveu foi o célebre ZachariasWerner, que dez anos depois deveria tornar-se um dos maiores e mais sincerosamigos de S. Clemente em Viena.

Em 1800 S. Clemente mesmo escreve: “Os jacobinos espalham contra nóstoda a sorte de invencionices injustas, somos escarnecidos nos teatros públi-cos, o próprio clero está contra nós, exceto o bispo e alguns cônegos, somospublicamente ameaçados com a forca”. Os inimigos usaram contra osRedentoristas todos os meios vis de combate, de que se costumam servir con-tra as Ordens religiosas em geral: escárnio, calúnia, ameaças. S. Beno foi apre-sentado por eles ao público como uma fonte de desordens e abusos para todaa cidade, como se os Redentoristas disseminassem a discórdia nas famílias;negligenciassem os deveres domésticos, roubassem as alfaias preciosas daigreja, enviassem ladrões para expoliarem os bens da igreja etc. etc. Em plenarua eram os padres escarnecidos e, à tarde, muitas vezes esperados por pes-soas armadas de chicotes nas diversas esquinas, por onde tinham de passar.Nos dias do carnaval os Benonitas eram a fantasia predileta dos rapazes, quese vestiam dos paramentos litúrgicos para se tornarem mais engraçados. Osmais abjetos e indignos panfletos eram contra eles espalhados entre o povo. Oalvo principal dos seus esforços resumia-se na desmoralização completa dospadres junto ao governo, para assim mais desimpedidos e com mais facilidadegolpear de morte a atividade apostólica que tanto os incomodava. E de fato, ogoverno recebeu as mais execráveis acusações contra eles que foram apresen-tados, não só como perturbadores da ordem pública e da paz, mas tambémcomo transgressores da moral e instigadores de revoltas políticas. Ora todasessas acusações e vis calúnias caiam necessariamente sobre São Clementeque era a alma de todo aquele movimento de São Beno, e por isso mesmo oalvo predileto do ódio dos sectários e das nefandas calúnias. Se uns o venera-vam a ponto de lhe beijarem a barra da batina e os vestígios dos pés, outrosconsagravam-lhe o mais entranhável ódio, como a um fanático, não poupandopaus e pedras nem coisa alguma que o pudesse molestar. Mais tarde olhandoretrospectivamente para esses acontecimentos de Varsóvia dizia ele: Uns pros-travam-se diante de mim, para me beijar os pés, outros me cobriam de lama;

aqueles exageravam na honra e estes no desprezo”.A ação do governo prejudicou muito a atividade pastoral de S. Clemente,

mas o ódio dos livre pensadores incentivou ainda mais a coragem do Servo deDeus e o seu desejo de combater o erro e de alcançar a vitória das almas, quequisera depositar aos pés do Redentor. Os olhos fitos no céu aceitou tudo aqui-lo com calma e santo heroísmo, desprezando o desprezo contanto que Deusfosse glorificado e a sua querida Congregação se consolidasse no Norte. O quemais o afligia era ver que também no clero encontrava inimigos, que se obstina-vam em não querer compreender as suas melhores intenções; isso ele mesmodá a entender em uma carta ao Núncio de Viena a 9 de maio de 1802. Emtantos apuros e dificuldades não tinha o Santo a quem se dirigir, a nenhum dossacerdotes seculares de então atrevia-se a abrir o coração ou pedir conselho. Oseu único amigo e confidente era um ex-jesuíta, homem de merecimento epeso que outrora, como membro da Companhia, missionara a Pomerânia, aRússia, a Lituânia e a Polônia — e também a este quis Deus chamar para si,quando na idade de noventa anos, atacado de um colapso, expirou ao rezar aladainha de todos os santos no segundo dia das Rogações. Os outros amigosdo Santo estavam longe, em Viena. Deus, aos poucos, ia rompendo os laçosque o prendiam a Varsóvia e preparava sua ida a Viena, cujo Núncio Severolimuito o desejava.

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CAPÍTULO V

Na diocese da ConstânciaEm Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clé-

rigos na Itália — As necessidades do novo convento — Clemente em Jestetten— O rico cardápio — Triberg, santuário da Virgem — Uma noite no paiol —Recepção em Triberg — Reanimação da vida de piedade — Raiva do demônio— Triberg abandonada.

Em fins de 1802 São Clemente deixou Varsóvia pela terceira vez, em pro-cura de algum lugar, onde pudesse estabelecer definitivamente a sua Congre-gação na Alemanha; tinha tanta convicção de que conseguiria realizar o seudesejo ardente nessa viagem, que tomou consigo o Pe. Thadeu Hübl, emboraeste parecesse indispensável ao serviço espiritual de Varsóvia e ao andamentodas obras da Igreja de S. Beno. Com essa viagem S. Clemente despedia-sepropriamente da Polônia, porque embora tenha ainda voltado duas vezes aVarsóvia, só o fez por circunstâncias imprevistas — e na opinião do Santo es-sas visitas deviam ser brevíssimas e apressadas. Isso não era indício nem pro-va de aversão que talvez sentisse para com a Polônia, que ele amava como suasegunda Pátria, cuja língua conhecia a fundo, cuja sorte infeliz lhe traspassavao coração. São Clemente convencera-se de que sua Congregação não poderiater verdadeira garantia de subsistência para o futuro no Norte da Europa, en-quanto não lançasse raízes em algum pedaço do território alemão.

São Clemente e o Pe. Thadeu vestem a batina dos sacerdotes seculares —naquele tempo não era permitido de viajar de outra forma — e a pé vão deVarsóvia até a Alemanha não receando a distância nem temendo os perigosprovenientes das constantes revoluções e guerras, mas confiando somente naproteção do céu. Levou consigo também o clérigo Sabelli, passou por Viena, foia Baviera onde se deteve, um dia, no santuário de Nossa Senhora de Altötting,erigido por S. Roberto, seu primeiro bispo, a mais de mil anos. Depois de desa-bafar o seu coração ante a imagem milagrosa da Virgem, recomendando-lhecom fervor a sua pessoa e o feliz êxito das suas pesquisas para o bem daCongregação, sem jamais sonhar que aquele mesmo Santuário, um dia, seriaconfiado aos cuidados dos seus filhos espirituais, continuou a viagem atéJestetten, onde perguntou pelo Monte Tabor, que lhe fora oferecido pelo prínci-pe Schwarzenberg. A nova morada eram as ruínas de um antigo castelo, quasesem telhado e com as paredes encostadas. São Clemente compreendeu que apobreza e a miséria seriam ali companheiras de seus filhos; mas lembrando-sede Varsóvia, cujo convento no princípio se achava em idênticas condições e queele, com poucos vinténs no bolso, conseguiu levantar, criou coragem e aceitou

a fundação, ainda mais que Jestetten se achava na divisa de quatro países:Baden, Suíça, Württemberg e Áustria. De Jestetten esperava poder entrar umdia na Alemanha, e enquanto isso não se realizasse, teriam os seus padres umcampo de trabalho inteiramente novo, onde poderiam pregar as maisconsoladoras missões. Sem mais detença escreveu a Constança pedindo auto-rização para fundar o convento e chamou de Varsóvia o Pe. José Passerat, aquem nomeou Reitor de Jestetten. Nessa nomeação mostrou o Vigário Geraladmirável tato de governo. — Pe. Passerat amigo da pobreza e da abnegaçãoprópria, era o homem para aquela fundação, sobre a qual com o seu espírito deoração e de sacrifício atrairia as mais copiosas bênçãos do céu. Entretanto SãoClemente e o Pe. Thadeu puseram mãos à obra para a restauração da casa e aacomodação do convento. Ao chegar o Pe. Passerat com seus estudantes en-controu a casa mais ou menos em condições de recebê-lo e de agasalhar osbons clérigos.

São Clemente não se demorou muito em Jestetten; levando consigo o Pe.Passerat foi a Joinville na Champagne a ver, se poderia fundar na França algumconvento de Redentoristas, pois que a duquesa de Angoulême, filha de LuizXVI, lhe tinha dado as mais belas esperanças, quando se achava em Mitau comos Redentoristas. Infelizmente não lhe foi possível realizar esse grande planopor a França se achar em guerra naquela ocasião.

Acompanhado do Pe. Thadeu e de três clérigos S. Clemente atravessou osAlpes e foi a Itália para lá conseguir a ordenação dos três teólogos e tratarpessoalmente com o Superior Geral de negócios importantes da Congregação.Essa medida era de necessidade em virtude da nova lei que acabou de serpromulgada pelo governo. Os clérigos não podiam ser ordenados em Varsóviaporque pela lei só se ordenavam lá os súditos alemães nascidos na Prússia; emConstança tampouco era-lhes possível receber as ordens sacras porque o Vi-gário Geral Wessenberg, que governava a diocese em nome de Dalberg, nãoera ainda nem sacerdote. Deixando os clérigos em Spello perto de Foligno,continuou a viagem com o Pe. Hübl até Roma, onde foi recebido em audiênciapelo Papa Pio VII, que o Servo de Deus bem conhecia — era o antigo bispo deTívoli que, anos atrás, lhe dera o hábito de ermitão e lhe mudara o nome deJoão para Clemente; o papa ouviu-o com benevolência, aprovou oralmente osEstatutos da Congregação dos Oblatos, concedendo-lhe muitos privilégios. Nãolhe foi possível avançar até Nápoles e Nocera, onde teria tido o prazer de cele-brar sobre o túmulo do Santo Fundador; prometeu porém ao Superior Geralvoltar no ano seguinte. Essa promessa porém S. Clemente não realizaria maisem sua vida, não obstante ter sido grande e ardente o desejo de cumpri-la.Ordenados a 23 de outubro, os neo-presbíteros celebraram a primeira missa nodia seguinte, e nessa mesma manhã puseram-se a caminho de volta para oMonte Tabor onde chegaram sãos e salvos. São Clemente demorou-se aindasete dias no novo convento para pôr em ordem os negócios das Irmãs, que láhavia; depois disso voltou para Varsóvia com o Pe. Thadeu Hübl.

Mal haviam decorrido uns meses após a saída de São Clemente, quandocartas e mais cartas apareceram em Varsóvia, nas quais o Pe. Passerat expu-nha ao Vigário Geral as duras necessidades por que passava a nova comunida-de de Jestetten pela falta absoluta do mais indispensável; não havia recursos

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de qualidade alguma. O coração bondoso de Clemente ao ler aquelas notícias,dadas pelo santo Pe. Passerat, que não era capaz de exageros, sentiu-se co-movido. As necessidades materiais dos seus padres em Jestetten traspassa-ram-lhe a alma; ele, o homem forte, chorou de compaixão; as lágrimas rolaram-lhe pelas faces como que para apagarem aquelas novas, contidas nas cartas etão tristes ao seu coração. Como bom Superior obrigado a olhar para seussúditos, não hesitou em tomar outra vez o bordão do peregrino para fazer nova-mente, a pé, a caminhada de 300 horas até o Monte Tabor afim de levar auxílioa seus caros filhos; tomou consigo um estudante de Varsóvia, que desejava serredentorista e, passando por Dresden, Augsburgo e Constança onde tinha ne-gócios de urgência, chegou a Tabor a 21 de setembro. Até a primavera do anoseguinte permaneceu lá a compartilhar com os seus súditos as agruras de umavida de privações e pobreza. O edifício, que tinha em vista de comprar, não opôde obter. A comunidade crescia entretanto dia a dia; naquela data lá se acha-vam seis padres, quatro irmãos, nove noviços e diversos estudantes; estes dor-miam no sótão da igreja; como nos cinco quartos, de que se compunha a resi-dência inteira, a comunidade não encontrassem acomodação suficiente, os seispadres e os três teólogos dormiam nas mansardas da casa, enquanto que osnoviços e os irmãos leigos iam procurar o descanso dentro de uma torre nojardim; por uma pequena escada de mão subiam até em cima e ficavam, anoite, expostos ao vento, à neve e em geral a todas as inclemências do tempo.Para defender os padres do rigor do inverno, havia apenas uma estufa no salãoque servia simultaneamente de sala de recreio e de estudos; de acordo com ahabitação, a comida era também pouca e insuficiente; não se tomava café o anointeiro, o almoço consistia num prato de sopa e noutro de legumes com umpedacinho de carne, que não aparecia na mesa às quartas e sextas-feiras eaos sábados: o jantar era o ano todo o mesmo, isto é: sopa e batatas; a únicabebida era a água da cisterna, exceto aos domingos e quintas-feiras em queaparecia à mesa um pequeno copo de vinho azedo. S. Clemente porém não seespantava com tão pouco; com prazer compartilhava essas privações e com oexemplo e santas palavras animava a todos os seus, que esquecidos dos efei-tos daquela pobreza extrema, sentiam-se felizes por estarem debaixo da dire-ção de um Superior tão santo e sábio; era edificante vê-lo, não poucas vezes, aenxada na mão, ir ao campo com seus confrades passando horas e horas na-quele trabalho penoso e rude. Felizmente, como atesta o próprio S. Clemente,com aquele estado miserável das finanças reinava no convento o genuíno espí-rito religioso: era o entusiasmo natural que costuma apoderar-se de gente novanas recentes fundações. Todos os domingos e dias santificados pregava Cle-mente em Jestetten, como o fazia em Varsóvia, e o povo acudia de todos oslados. São Clemente em seu grande zelo apostólico instruía todos nas verda-des da religião e não cessava de convidá-los à confissão e à santa comunhão— e os católicos obedeceram afinal às instâncias do Santo e grande movimentoreligioso desenvolveu-se na Capela dos Redentoristas de Jestetten. O tempoque restava das pregações, audição de confissões e despacho da grande cor-respondência epistolar, S. Clemente o empregava na oração e em outros exer-cícios de piedade.

Deus quis recompensar seu Servo. Umas oito léguas distante de Jestetten

existe uma cidade chamada Triberg, célebre por uma imagem milagrosa daVirgem cuja história é a seguinte: A pouca distância da cidade havia um pinhei-ro à beira da estrada. Aconteceu que um dos muitos transeuntes, para excitarpensamentos de piedade nos que passavam, abriu no pinheiro uma cavidade,onde colocou uma pequena imagem de Maria Santíssima, com a frente voltadapara uma fonte límpida que brotava de um rochedo não muito distante. A ima-gem não tardou a ser conhecida por todos, e havendo um conhecido morféticorecuperado miraculosamente a saúde somente por se ter banhado nas águasda fonte, a devoção à Virgem do Pinheiro começou a aumentar-se até atingir asproporções do entusiasmo. Com o tempo porém a devoção arrefeceu e a ima-gem da Virgem caiu no esquecimento. Depois de receber as homenagens dopovo, fez a Virgem por diversas vezes, ouvirem-se no bosque doces e suavesmelodias que ecoavam pelos arredores. Três soldados atraídos por aquelasvozes misteriosas foram ao bosque, ajeitaram o nicho da Virgem e a romariarecomeçou com tanto fervor, que foi mister derrubar o pinheiro e levantar umtemplo, um santuário que pudesse conter as massas. Nada menos de 153.000pessoas recebiam lá anualmente os santos sacramentos da confissão e comu-nhão. Com o fim de facilitar ao povo o exercício das suas devoções, construiu-se perto do templo um espaçoso prédio com acomodações para quinze sacer-dotes, e assim Triberg tornou-se um dos mais célebres santuários da zona;príncipes e princesas não excetuando o próprio imperador José I, iam, repeti-das vezes, a Triberg cumprir seus votos e homenagear a Rainha do universo.No decorrer dos tempos esfriou um tanto a devoção; as guerras quase contínu-as e os princípios falsos do racionalismo começaram a infiltrar a descrença noscorações, de sorte que o Santuário já não era quase visitado. Além disso ocuidado do santuário foi confiado a sacerdotes idosos, que não davam bonsexemplos em sua vida particular. Os moradores de Triberg, ouvindo que emJestetten havia sacerdotes sérios, animados de zelo, foram ter com o arquiduqueFernando de Modena a quem pertencia Triberg, e instaram com ele para queconseguisse padres como os de Jestetten para diretores do Santuário. Oarquiduque prometeu gostosamente realizar os desejos de seus súditos e che-gou até oferecer 960 escudos para três padres de Jestetten, que quisessemencarregar-se da administração e direção do Santuário. Os moradores de Triberg,satisfeitos com a decisão do arquiduque e a licença concedida, foram expor asúplica também a S. Clemente, a quem fizeram ver as grandes dificuldades comque se achavam, o desejo ardente do povo e a promessa do arquiduque. S.Clemente depois de uma breve viagem a Lucerna, aonde levou dois clérigospara serem ordenados pelo Núncio Testaferrata que lá se achava, partiu paraTriberg com quatro padres e alguns estudantes. Embora o tempo ameaçassemuita chuva, S. Clemente não teve receio, partiu; não tardou porém a desabaruma chuva torrencial que molhou os nossos caminhantes até a medula dosossos. Depois de marcharem umas doze horas sentiram-se cansados, alémdisso a escuridão da noite chuvosa não lhes permitia ir adiante. A beira daestrada viu S. Clemente uma casa e perto dela um paiol e uma estrebaria,entrou na casa e adiantando-se para o dono pediu-lhe um pouso para aquelenoite. O pobre do homem vendo os padres, inteiramente molhados e ouvindo opedido de S. Clemente ficou perplexo sem saber como sair do embaraço: ele

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era pobre, não possuía casa digna de hospedar pessoas tão distintas comoaquelas que o apostrofavam, gostaria de oferecer tudo, mas não tinha o quedar. — O nosso Santo compreendeu logo o motivo da perplexidade do homeme sem mais rodeios lhe disse: “Diga a sua mulher que nos prepare uma sopa;para o sono temos o paiol e isso basta”. O dono mais atônito ainda diante detanta modéstia e humildade, agradeceu a Deus tê-lo honrado com a visita detão santos sacerdotes. Aos cansados caminhantes apeteceu a pobre sopa maisdo que se tivessem, em outras ocasiões, saboreado um bocado de paca ouqualquer outra iguaria preciosa. Na manhã seguinte tiveram de vestir a batinaainda molhada; não deixaram porém de escapar de seus lábios nenhuma pala-vra de queixa, porquanto viam ser o Superior o primeiro a fazer com alegriaaquele ato de mortificação.

Algumas horas depois chegaram a Triberg, cuja população os recebeujubilosa. Repicaram os sinos solenemente como nos dias de grande festa, opovo acorreu em multidão e assim entraram os novos padres no Santuário paraa missa cantada. Terminadas as cerimônias da igreja, o povo levou-os à resi-dência, casa espaçosa e bem construída de dois andares; o andar superiorficou reservado aos sacerdotes, encarregados do governo do Santuário, en-quanto que o primeiro andar e a rez do chão foram entregues aos Redentoristas.Poucos dias depois da chegada dos padres celebrava a Igreja a festa da Ascen-são do Senhor; o templo encheu-se de povo ávido por ouvir a palavra de Deusem sua simplicidade e verdade. Era a repetição daquelas cenas emocionantesda Palestina em que as multidões se agrupavam ao redor de Jesus, pendentesdos lábios divinos, a beberem em largos tragos a água da doutrina sagrada.Desde esse dia não faltaram pregações em Triberg, aos domingos e dias santi-ficados; os confessionários, em que as almas se purificam das suas manchasrecebendo conselhos salutares para o seu progresso na virtude, começaram aser freqüentados pelas massas, que se comoviam com as pregações dos zelo-sos apóstolos do bem. Aos poucos a alegre nova difundiu-se por toda a redon-deza, de sorte que os romeiros recomeçaram suas peregrinações a Triberg,não só em cumprimento das promessas feitas, mas também com o fim de seinstruírem nas verdades da religião, receberem os santos sacramentos da con-fissão e comunhão, e assim deixarem a vida do pecado para a da graça. Otemplo em pouco tempo se restaurou completamente, porque S. Clemente nãoconhecia economias quando se tratava da glória de Deus ou da SantíssimaVirgem. O povo, que tudo observa e comenta, dava a Clemente o nome de“Padre santo” e tinha razão para isso.

Todos achavam-se satisfeitos, menos o demônio que não podia ver combons olhos o desenvolvimento sempre crescente do Santuário, que se tinhatornado um oásis abençoado de fé e inocência no meio do deserto tremendo doindiferentismo e da incredulidade daqueles tempos. Para instrumentos da suacólera tomou os sacerdotes idosos que lá residiam e que não davam, infeliz-mente, o melhor exemplo ao povo; excitou o ciúme nos seus corações bemcomo nos dos sacerdotes circunvizinhos que começaram a maquinar, às ocul-tas e também às claras, a expulsão dos Padres Redentoristas por meio de calú-nias e intrigas; escreveram à cúria eclesiástica de Constança, a Wessenberg,que infelizmente havia bebido o espírito do tempo e era inimigo declarado dos

santuários, afirmando serem os Redentoristas, em Triberg, uns fanáticos semprudência e sem ciência, que alucinavam o povo enlouquecendo-o. Wessenberg,que, embora vigário geral da diocese, era um dos “iluminados” e maçons, jurouperder aqueles sacerdotes ignorantes, fanáticos e carolas, e suspendeu imedi-atamente do uso de ordens dos dois sacerdotes novos que tinham chegado deJestetten, pelo simples motivo de terem sido ordenados pelo Núncio Apostólico,não se lembrando que os Redentoristas têm um privilégio papal que lhes dá odireito de receber a ordenação das mãos de qualquer prelado amigo, e que elepróprio — Wessenberg, por não ser ainda nem sacerdote, não podia conferiressas ordens a ninguém. Aos outros padres mandou intimação a que se sub-metessem a um exame de teologia. Como os examinadores eram também “ilu-minados”, cuja moral não se pautava pelos princípios do Evangelho mas simpelos enciclopedistas franceses, e protestantes alemães, reprovaram S. Cle-mente e seus companheiros, declarando-os incapazes de fazer as pregações ede ouvir as confissões dos fiéis.

São Clemente viu, mais uma vez, ruírem suas esperanças e, o coração asangrar, teve de deixar aquele excelente povo de Triberg sem pastores, entre-gue a dois sacerdotes contaminados pelo espírito da época, sem vontade nemintenção de lhe mostrarem a vereda da virtude e o caminho do céu. Não tinha aquem recorrer, porquanto o nobre arquiduque Fernando de Modena, na paz dePressburg em 1805 fora despojado de todos os seus bens e domínios que pas-saram primeiro a Württemberg e depois a Baden, cujo grão-duque era protes-tante. De nada valeu uma deputação do povo a Carlsruhe, pedindo que os pa-dres continuassem em Triberg. S. Clemente curvou-se resignado ante a mãopoderosa do Eterno que o feria em suas mais belas esperanças, mas não per-deu o ânimo. Sabia que quem confia no Senhor, não será confundido eterna-mente. Aos seus ouvidos soavam as palavras de Jesus: “Orai pelos que vosperseguem e caluniam”, e ele perdoando de coração a Wessenberg e aos sa-cerdotes que o perseguiam, rezou por eles, e sacudindo o pó dos seus sapatosretirou-se com toda a comunidade.

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CAPÍTULO VI

Na SuabiaOndas de soldados — Napoleão e Clemente — O manto ou a vida — Em

Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no ser-mão — A ferreira apostrofada — O violinista convertido — O rapaz libertino —Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas —Perseguições.

Vendo S. Clemente que Triberg estava perdida para a Congregação e quetambém Jestetten não lhe estava segura por haver essa cidade passado aodomínio protestante de Baden, volveu suas vistas para Augsburgo, onde tinhaum amigo sincero na pessoa de Antônio Nigg, que ocupava o honroso cargo devigário-geral da diocese, e que, desde há muito, desejava um ginásio bem orga-nizado em Babenhausen. Em novembro de 1805 partiu para lá com Sabelli afim de se entender com o bispo Clemente Wenceslau e conseguir dele a per-missão necessária para a fundação de uma residência em Babenhausen. Foiessa uma viagem bem penosa para o nosso Santo; as trinta léguas que vão deTriberg a Augsburgo fê-las S. Clemente o coração oprimido pelos mais sinistrospressentimentos. Em Varsóvia a revolução tornava-se sempre mais ameaçado-ra para S. Beno, no Tabor não encontrava garantia alguma, em Triberg estavacondenado à inação e entregue às mãos de poderosos inimigos; olhava paraAugsburgo, mas não com muitas esperanças ao contemplar a multidão de sol-dados que inundavam toda aquela região. No dia 1 de outubro Napoleão à fren-te de um exército de 180.000 homens atravessara o Reno perto de Strassburgoem direção a Stuttgart contra Mack, o general austríaco, que o esperava emUlm com 80.000 soldados; aos 13 de outubro Napoleão cercou Mack em Ulm eem sete dias a cidade se rendeu devendo 23.000 austríacos depor as armasaos pés do imperador dos franceses. O caminho estava aberto a Napoleão atéo coração da Áustria, e seus soldados debandaram para todos os lados naBaviera, roubando e saqueando quanto encontravam sem atenção à miséria,em que iriam cair os pobres saqueados. É pelo meio dessa multidão que SãoClemente teve de passar; felizmente porém nada de mal lhe aconteceu.

Quando S. Clemente chegou em Augsburgo, lá se achava Napoleão. Quecontraste entre essas duas personagens que se encontravam na mesma cida-de! entre o vitorioso Napoleão e o perseguido S. Clemente! Aquele triunfou dezanos percorrendo a Europa ao sorriso das armas, vendo reis e imperadorestremer diante dele como a vara batida do vendaval; este perseguido, desconhe-cido e desprezado, ia de cidade em cidade procurando não a sua glória, mas ade Jesus Cristo. Depois de alguns anos morreu S. Clemente e teve o enterro de

um imperador; um ano depois de Clemente faleceu Napoleão e teve o sepulta-mento de um mendigo. São desígnios da Providência!

Depois de recebido amavelmente pelo bispo, volta a Babenhausen paratratar com o príncipe Fugger da fundação da nova residência. De caminho umsoldado avança contra ele, e prevendo que Clemente não levava dinheiro consi-go, puxa da espada, aponta-lhe o peito e diz: “O manto ou a vida”. Sem o menorsinal de temor ou de impaciência, S. Clemente tira o manto, que nada tinha deprecioso, e entrega-o ao soldado, que saiu contente por possuir mais um meiode se resguardar contra o frio.

São Clemente, apesar dos esforços feitos, não pôde conseguir senão umahabitação provisória, tão úmida que dos trinta religiosos que a inauguraram,quase todos adoeceram; somente alguns meses depois, foi-lhe possível conse-guir uma casa mais espaçosa, porém ainda insuficiente para tanta gente; essacircunstância obrigou alguns a hospedar-se na vizinha aldeia de Weinried nacasa do vigário, grande amigo de S. Clemente. De dia o Pe. Clemente ficavacom os seus padres em Babenhausen a rachar lenha, cuidar das estufas etc.;na quaresma ele mesmo tomava conta da cozinha; às horas das refeições, nosdias de jejum, ele sentava-se a mesa com a comunidade, mas não tocava nascomidas, porque, em espírito de penitência, nesses dias só tomava algumacoisa depois do sol posto. A atividade apostólica era muito limitada emBabenhausen porque, não tendo eles igrejas própria, eram obrigados a ir àmatriz, onde o vigário só lhes permitia celebrar e ouvir confissões, ao púlpitoera-lhes proibido subir. Os vigários dos arredores imitavam o vigário deBabenhausen, menos os de Illerberg, que tendo tido S. Clemente dois dias emsua companhia, escreveu no diário. “O Pe. Clemente é um homem muito delica-do, tem boa declamação, é muito lido e de muito zelo pela religião; fala umalemão puro, é vienense e tem relações de amizade com todos os senhores deViena e até com a corte do imperador; à noite a nossa ceia passa-se entreconversas edificantes e científicas... O fim da Congregação é propagar a reli-gião nestes tempos sem fé. “O vigário de Weinried era o mais entusiasta peloSanto e entregou-lhe a paróquia dando-lhe carta branca; desde a chegada dosRedentoristas o vigário não subiu mais ao púlpito que deixara aos padres, ecom íntima satisfação acompanhava o aumento da vida religiosa em sua paró-quia. Em Babenhausen visitava ele constantemente os doentes a quem conso-lava e dava bons conselhos, animando-os e ouvindo-lhes as confissões. De ummodo todo especial tomava a peito a direção espiritual das almas; em Weinriedquase não saia do confessionário; se as vezes se levantava do tribunal da peni-tência, ficava ajoelhado perto a rezar o seu breviário. Quando alguém entravana igreja por curiosidade ou qualquer outro motivo, Clemente levantava-se, iadevagar até onde se achava a pessoa, e com toda a cortesia e amabilidadeperguntava, se por acaso desejava se confessar. Esse estratagema produziu osmelhores resultados; pessoas que há dezenas de anos já não se tinham recon-ciliado com Deus, não podendo resistir ao convite do Santo, faziam com arre-pendimento a confissão e mudaram de vida.

O púlpito entretanto era o lugar predileto, onde com ardor discorria sobreas verdades da fé, corrigia os erros, cortava os abusos e mostrava a todos, comargumentos irrespondíveis e fortes, quais os deveres para com Deus e o próxi-

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mo. Um dos vigários, admiradores de S. Clemente, disse uma vez: “Dai-mequatro homens para o púlpito como o Pe. Clemente, e quatro para o confessio-nário como o Pe. Passerat, e eu converterei reinos inteiros”. O modo de pregarde S. Clemente era de uma simplicidade admirável; abria o Evangelho a qual-quer hora do sermão, apostrofava o povo, fazia perguntas prometendo umamissa a quem respondesse bem etc. Uma vez discorrendo com fogo sobre asverdades eternas, comoveu o povo a ponto de todos prorromperem em prantose soluços, menos um moço que continuava a rir-se criticando as palavras dopregador. São Clemente parou bruscamente no meio do sermão, fitou por unsmomentos o rapaz e disse-lhe com voz firme: “Moço, a igreja não é lugar parabrincadeiras; teu procedimento bem mostra que não queres converter-te”. Oauditório voltou-se para o jovem, que corou de vergonha, e reconhecendo oerro, pediu perdão e mudou de vida: foi esse o mais proveitoso sermão, que omoço ouvira em sua vida.

Em Weinried havia uma senhora, esposa do ferreiro do lugar, já bem idosa,que não gostava muito de se confessar com freqüência, contentando-se comuma única confissão anual pela Páscoa. Encontrando-a casualmente admoes-tou-a S. Clemente a que se aproximasse mais vezes do santo tribunal da peni-tência, porquanto já estava velha e não longe da hora em que deveria prestarcontas a Deus. A ferreira porém olhou para S. Clemente e disse-lhe: “Mas pa-dre, que diria a gente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes?”No domingo seguinte São Clemente pregou sobre a recepção freqüente dosSacramentos, mostrando sua utilidade para o tempo e a eternidade, pois quecomunicam força e vigor espiritual à alma para os combates com os inimigos,consolam-na na hora da morte etc., e no fim acrescentou: “Vedes pois que é útile salutar receber amiúde os Sacramentos; mas a velha ferreira diz: ‘que diria agente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes’ — e em seguidaolhando para a ferreira que lá estava, apostrofou-a perguntando: ‘Ó boaferreirinha, que diria a gente se a ferreira estivesse no inferno?’” Não só nopúlpito, mas também em suas relações de amizade procurava S. Clemente con-verter os pecadores e levar as almas para o céu.

Uma vez encontrou-se com um músico que tocava violino em todos osbailes e sempre que se apresentava ocasião em qualquer divertimento. Porcausa dessa alegria o Santo certamente não o repreenderia, pois que Deusama os corações alegres e S. Paulo duas vezes, em seguida, aconselha osFilipenses a se alegrarem no Senhor; o rei Davi também dançava diante da arcae tocava sua harpa cantando os salmos do Senhor. — Mas o violinista de Weinriednão tocava a harpa sagrada nem cantava os salmos de Davi, mas modinhasinconvenientes, ditadas pelo espírito impuro e pelas vis paixões, escandalizan-do a todos e levando muitas almas à perdição. S. Clemente, compadecido dopobre violinista, chamou-o às ordens pondo-lhe antes os olhos o estado deplo-rável de sua alma, a ignobilidade daquele modo de ganhar a vida, o escândalocausado a tantas almas, e o contentamento do demônio, que o queria levarpara o inferno. As palavras tão sinceras quão severas de S. Clemente penetra-ram profundamente no coração do pobre músico que refletindo seriamente ne-las, deixou para sempre a vida cômica e pecaminosa que levava e tornou-se umexcelente cristão tendo sempre antes os olhos as palavras do Espírito Santo.

“Não te comprazas de ir às assembléias de grande tumulto, nem ainda às pe-quenas; porque ali são freqüentes os pecados que se cometem” (Eclo 18,32)

Lá em Weinried havia um indivíduo que se chafurdara em todos os vícios ecrimes, seduzindo a quantos podia; detestava a igreja e seus ministros; blasfe-mava contra a religião e em seus lábios só se encontrava palavras injuriosas eofensivas contra os padres, os bispos e o próprio Deus. O vigário trabalhara emvão procurando todos os meios possíveis de conversão, a fim de o levar para ocaminho da virtude; mas vendo a perversidade do rapaz, desesperou da suaconversão. S. Clemente porém não desanimou, orou e orou bastante pelo infelizao Pai, cuja misericórdia é infinita. Em seguida, com toda a ternura de um cora-ção amigo, aproximou-se do grande pecador; aos poucos foi-lhe mostrandotoda a fealdade do vício, e conseguiu que ele rezasse e fosse a igreja. A mise-ricórdia divina tocou-lhe o coração e ele se converteu sinceramente fazendo asua confissão debulhado em lágrimas.

Depois de reparar com o arrependimento sincero os escândalos que cau-sara, perguntou a S. Clemente como deveria agir para desfazer o mal ocasiona-do aos outros por sua vida escandalosa. Como bom pai aconselhou-lhe o Santoque fizesse quanto estivesse ao seu alcance, pois que o escândalo é como umgrande incêndio que se ateia com uma pequena faísca, e não se apaga nemcom o maior cuidado e trabalho; mas que confiasse na misericórdia divina epedisse perdão a todos a começar pelo vigário e de fato levou-o ao pároco, queficou atônito ao ver o Pe. Clemente e o criminoso entrarem juntos em sua casa;mais perplexo porém se sentiu quando o rapaz escandaloso se prostrou a seuspés chorando de compunção, como outrora Madalena aos pés de Jesus; nãopôde conter-se de alegria o bom vigário, chorou com o penitente e no excessode contentamento deu três saltos no quarto como se fosse ainda rapazinho naflor da idade.

Meio anos apenas estivera S. Clemente em Babenhausen, e a cidade jámostrava um aspecto inteiramente novo quanto à vida de piedade e à práticadas virtudes; e esse progresso espiritual não era conseqüência de um entusias-mo passageiro que se extingue como um fogo de palha, mas real e duradouropois que, dezenas de anos depois, ainda se encontraram na cidade pessoasque levavam uma vida santa, recordadas dos sábios ensinamentos de S. Cle-mente. Os habitantes de Weinried agrupavam-se em redor de São Clementecomo os filhos em torno do pai, amavam-no sinceramente, e não poucas vezes,vendo a grande pobreza do Santo, levavam-lhe o necessário para a sua subsis-tência; respeitavam-no como a um Santo e beijavam o chão por onde ele passa-va. Por mais que São Clemente procurasse esconder o brilho das suas virtudese corresse atrás das humilhações e até do desprezo dos homens, a sua santi-dade se fazia sentir a todos com tanto maior admiração quanto maior cuidadotinha o Santo em ocultá-la. A fisionomia e a lembrança de Clemente imprimi-ram-se tão indelevelmente na alma daquele bom povo, que muitos e muitosanos depois que o Santo já se achava na eternidade, ele ainda falava comgratidão e saudades do bom e santo padre Clemente. Sessenta anos depois dasaída do Pe. Clemente de Babenhausen, mostraram a sua fotografia a umavelhinha, que vendo o retrato derramou lágrimas de contentamento exclaman-do como que fora de si de alegria: “É o Pe. Clemente!” A velhinha, quando vira o

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Santo, tinha apenas 10 anos de idade, esquecera desde então muita coisa quese passara em sua vida, mas os traços da fisionomia e da bondade de S. Cle-mente permaneceram gravados em sua memória e muito mais ainda em seucoração. Em sinal de respeito e veneração para com São Clemente, deixaramvazio, durante muitos anos, o quarto em que ele residia em a casa paroquialdurante a sua permanência em Babenhausen, e na parede do quarto pendura-ram o retrato do Santo, que quase todos conservavam no coração. Um indiví-duo de Babenhausen, que não possuía nem religião, nem fé disse um dia: “Te-nho um estômago de soldado, mas gostei imensamente desse homem” — eraS. Clemente.

Em Weinried porém havia também alguns que não se simpatizavam com S.Clemente, e que nem queriam ouvir pronunciar-lhe o nome; mas isso não admi-ra, porque os maus não podem suportar o brilho da virtude; o próprio JesusCristo, a Bondade infinita, teve inúmeros adversários que o desprezaram, dene-griram e por fim lhe deram a morte infame da cruz. Também em Babenhausenhavia um rapaz libertino e malcriado, a quem as pregações de S. Clementecausavam dor de cabeça e mau estar, porque o Santo se aprazia em discorrer,repetidas vezes, sobre a obediência, temperança, castidade e semelhantes vir-tudes, que o jovem detestava tanto na teoria como principalmente na prática. Oinfeliz perdendo-se na leitura dos filósofos da Revolução francesa e nas máscompanhias, julgava-se liberto dos mandamentos da lei de Deus e supunha jánão existir o sexto mandamento. E como S. Clemente sempre pregava sobreesse assunto, as moças começavam a revestir-se de grande seriedade, as se-nhoras casadas tornaram-se modelos de virtude, e as próprias infelizes, queantes se entregaram ao vício, caíram em si, mudaram de vida e fizeram peni-tência. O rapaz libertino via pois em S. Clemente o seu maior inimigo, enraive-ceu-se contra ele e entregou ocasião oportuna em que pudesse vingar-se. Acon-teceu passar uma noite má o pobre rapaz; não pregou os olhos pois que estavafortemente excitado da paixão, e tocado do calor do álcool; achava-se conse-qüentemente de mau humor, cabeça pesada, olhos cansados e consciênciacarregada. Ao amanhecer lembrou-se de descarregar a sua cólera no pobre Pe.Clemente, que em sua humilde cela estava a fazer a meditação da manhã.Colocando-se em frente à janela do Santo desatou a língua nas mais grossei-ras imprecações, nos nomes mais injuriosos contra Deus e seu Servo; e quantomais impropérios soltava, mais se enraivecia; não encontrando, em seu copiosovocabulário, palavras que lhe traduzissem todo o rancor que nutria contra oSanto, colecionou umas pedras na rua, e com elas fez em cacos a vidraça doquarto onde estava São Clemente, de sorte que os pedaços iam cair aos pés donosso Santo, que chorava não de medo das pedradas nem de raiva das pala-vras injuriosas, mas de compaixão para com o infeliz, que assim ofendia a Deuse escandalizava o povo. Ao clamor do rapaz e ao som das pedradas acordaramas pessoas dos arredores, que vendo o procedimento do moço, se amaram decacetes, bengalas e chicotes para lhe darem uma boa lição de urbanidade.Quando S. Clemente percebeu que a vizinhança se pusera em movimento, des-ceu também, não para se vingar, mas para tomar em sua defesa o rapaz liber-tino que o acabava de injuriar tão covardemente. Recomendando a todos quetivesse compaixão do infeliz, disse: “Não lhe façais mal; vou agora à igreja,

celebrar a missa por intenção dele”. Os lavradores que acorreram, voltarampara casa descontentes por perderem uma ocasião tão boa de ensinarmoralidade ao libertino, porém edificados com o procedimento de São Clemen-te, que executava o conselho do divino Mestre: “Orai pelos que vos persegueme caluniam”.

Como esse pobre rapaz havia também outros, mesmo entre o clero, quenão podiam ver com bons olhos a atividade apostólica e os resultados estupen-dos obtidos por S. Clemente. Não encontrando outras armas, nem descobrindona vida de Clemente coisa alguma que depusesse contra ele, recorreram àcalúnia que forjaram com tanta habilidade, que muitos deram crédito às suaspalavras. Assim acusaram o Santo ao delegado de polícia, de haver arrombadoviolentamente o sacrário para levar a comunhão a um dos seus doentes contraa vontade do vigário que lhe havia negado a chave. Como o delegado era pru-dente chamou o respectivo vigário, que aproveitou a ocasião para tecer oficial-mente os mais elogiosos encômios ao zelo apostólico e às virtudes consuma-das daquele Servo de Deus, que trouxera à sua paróquia as mais copiosasbênçãos do céu.

As más línguas porém não cansam, quando querem vingar-se ou fazer mala um sacerdote; eram tantas as calúnias inventadas pelos maus, que S. Cle-mente pôde escrever a seus confrades na Itália: “São tantos os inimigos que selevantam contra nós nesta terra, onde estamos há pouco tempo, que sentimosnecessidade de amigos verdadeiros que nos consolem e nos levantem o âni-mo”. Durante todo tempo em que o príncipe Fugger dominou em Babenhausen,estavam os Redentoristas bem amparados, porquanto esse bondoso príncipeera amigo de São Clemente, escolher o Pe. Sabelli para educador de seus filhose tinha já em vista construir, em seu território, um convento e uma igreja para ospadres Redentoristas. Mas naquele tempo andava Napoleão pela Europa mu-dando e transferindo reis e coroas, como se fossem figuras de xadrez; em 1806Fugger foi pelo poderoso monarca dos franceses despojado de suas terras quepassaram a pertencer à Baviera cujo príncipe eleitoral fora mimoseado porNapoleão com a coroa real, por lhe haver prestado auxílio contra a Alemanha.Embora Maximiliano José fosse um monarca de bom coração e um cristão deconvicção, deixou-se rodear de maus auxiliares, a cuja testa se achava o ímpioMontgelas, maçom e “iluminado”, que possuía tanta fé como a sua escrivani-nha, arrogando-se poderes papais, espoliando as igrejas e abolindo todos osconventos da Baviera. Um dos seus primeiros atos foi, baixar um decreto, queproibia os Redentoristas toda e qualquer atividade no reino da Baviera.

Entretanto recebia S. Clemente as mais desoladoras notícias do seu queri-do convento de São Beno, que desde o momento em que Varsóvia passou parao governo prussiano, fora o alvo do ódio dos maçons e dos “iluminados” que oqueriam arrasar. Grave acusação acabava de ser feita contra os Benonitas aorei da Prússia; estando o Reitor da casa, Pe. Thadeu, gravemente enfermo teveo Pe. Jestersheim de ir pessoalmente a Berlim desfazer a calúnia e defender-sejunto ao rei, o que conseguiu felizmente com o mais brilhante êxito.

Todas essas circunstâncias alarmantes faziam S. Clemente compreenderque não se achava seguro em Babenhausen nem em Varsóvia. Mas para ondeir? Pensou primeiro na Itália e nesse sentido escreveu a Severoli, que infeliz-

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mente nem com a melhor vontade pôde servir a seu amigo por não ter, na hora,nenhum colégio disponível na diocese, mas que aconselhou Clemente a nãosair da Alemanha. Guiando-se por esse conselho resolveu dirigir-se a Würzburgno caso que a situação em Babenhausen se tornasse insuportável e insusten-tável, o que infelizmente sucedeu. Por ordem de Montgelas os vigários recebe-ram proibição expressa e terminante de chamar Redentoristas para as suasparóquias, e o povo, de confessar a eles, dar-lhes intenções de missa, presen-tes etc. Tudo isso era anunciado e comentado publicamente do alto do púlpito.

São Clemente sentiu o coração partido; todas as suas esperanças ruírampor terra; o Santo via-se só, perseguido de todos os lados. Um pensamentoporém o consolava: era perseguido de todos os lados. Um pensamento porém oconsolava: era perseguido tão somente por causa do bem que Ele e seus pa-dres operavam; e Jesus dissera: “Bem-aventurados os que sofrem persegui-ções por amor da justiça”.

Mas ele responsabilizara-se diante dos Superiores em Roma pela implan-tação do Instituto redentorista além do Alpes, e era esse o ideal da sua vida.Vendo que lhe era de todo impossível fixar-se na Europa, volveu seus olhospara a América, a terra clássica da liberdade, que cheia de vida e vigor semostrava aos europeus, prometendo as maiores esperanças para o futuro. Cle-mente era homem prudente, mas de decisões rápidas, quando necessário; es-tava pois decidido: durante o inverno ficaria em Würzburg com os seus e logo,ao entrar na primavera, atravessaria os mares em demanda do Canadá; de lámandaria missionários para cristianizar a Europa. — A única coisa que ainda opreocupava então, eram as dificuldades da viagem por causa da guerra daFrança com a Inglaterra. Ele escreveu ao Pe. Thadeu: “Já estão feitos os prepa-rativos para a viagem, porque sinto mandar embora e demitir da Congregaçãotão boa gente... muitas palavras causar-te-ão surpresa e dir-me-ás que o cami-nho do Canadá é longo; não faz mal, contanto que tenhamos um lugar, ondeesperar tempos melhores, e formar missionários para a infeliz Europa! Da Suabiamuitos se unirão a nós porque eles gostam de viajar; a dificuldade única é agoraarranjar as passagens por causa da guerra... nunca me sinto tão bem comoquando me lembro do Canadá... quero cuidar dos meus filhinhos antes de dei-xar este mundo... estamos estudando o mapa e a geografia... só Deus sabe,onde os meus ossos aguardarão a ressurreição...; se tiveres algum plano me-lhor, peço-te comunicar-me... do Canadá poderemos com o tempo mandar mis-sionários para o Oriente”. E continuando a carta dá ao Pe. Thadeu a notícia deque todo o peso recai sobre os seus ombros: “... Aqui o Pe. Passerat detém-seno confessionário o dia inteiro, de sorte que nem lhe posso falar; ele pensa quetodo o merecimento de um padre consiste em sentar-se no confessionário dia enoite; os outros são crianças, nem refletem na possibilidade de sermos expul-sos da noite para o dia; tudo pois se acumula sobre a minha pessoa”.

A 6 de agosto S. Clemente recebeu do Pe. Thadeu uma carta pedindo umaentrevista em Viena. Clemente com os mais negros pressentimentos abandonaa idéia de ir a Würzburg e dirige-se a Viena; antes porém escreveu a S. Beno:“Coragem, Deus é o Senhor, que dirige tudo para a sua glória e o nosso bem;quem se levanta contra nós, leva-nos para onde Deus quer; caros confrades,conservemos a inocência e a perfeição: é só a isso que devemos aspirar; um

anime o outro”. Partiu para a capital da Áustria, e o seu coração lhe dizia que jánão haveria de ver a muitos dos seus filhos. Com as lágrimas a rebentar-lhe dosolhos despediu-se: “É forçoso deixar-vos, caros confrades; em Varsóvia há mai-ores dificuldades ainda do que aqui em Babenhausen; rezai pela Congregaçãopara que ela não venha a perecer; os tempos são maus; quem sabe o que seráde nós; talvez não nos vejamos mais”. Recomendando ainda a todos a mais fielobediência ao Pe. Passerat, do qual ninguém deveria separar-se, abraçou pa-ternalmente a todos apertando-os contra seu coração; depois de uma breveoração levantou suas mãos ao céu e deitou sua bênção sobre a comunidade,implorando para ela as bênçãos de Deus. Em seguida tomou o bordão do via-jante e com o clérigo Martinho Starck partiu para Varsóvia passando por Viena.Os moradores de Weinried, que idolatravam seu apóstolo e benfeitor, foram aSão Clemente dizer-lhe o último adeus — e em sinal da sua gratidão oferece-ram-lhe cem escudos para a viagem. Era a última vez que eles veriam SãoClemente sobre a terra.

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CAPÍTULO VII

O último ano em S. BenoUm jantar depois da oração da noite — Perseguições em Varsóvia — Aten-

tado contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Bavierahostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes aconteci-mentos em Varsóvia.

A pé, debaixo de um sol ardente, partiram S. Clemente e o clérigo MartinhoStarck para Viena passando por Linz. Não levaram dinheiro consigo, porque S.Clemente presenteara a comunidade de Babenhausen com o valioso donativorecebido dos habitantes de Weinried, e para a viagem muniram-se de uma boaporção de confiança na divina Providência. Muitas vezes tiveram de esmolar, decaminho, uma fatia de pão e de padecer fome não poucos dias. Uma vez acon-teceu andarem o dia inteiro sem provarem um pedacinho de pão. Cansado edebilitado pela fome queixou-se Martinho Starck de não poder mais caminharde fraqueza. S. Clemente consolou o súdito pedindo-lhe que tivesse paciência,porque o dia não passaria sem que ele recebesse suculento jantar. Embora apromessa não parecesse muito crível, Martinho fez um esforço supremo e emsilêncio acompanhou o Superior até a cidade, onde Clemente pediu um agasa-lho por ser já noite. Ainda que contrariado com a visita importuna, o dono dacasa, querendo passar por hospitaleiro, mandou buscar no paiol algumas pa-lhas, que estendeu no chão para servirem de cama aos hóspedes e retirou-se.São Clemente agradecendo a Deus que lhes proporcionava mais uma ocasiãopara a mortificação, disse ao companheiros: “Vamos fazer a oração da noite”. Oclérigo, espantado, puxa a batina do Santo com as palavras: “E o jantar...?” SãoClemente sorriu-se: “Reze e vá deitar-se, que a refeição virá”. O pobre clérigoabriu uns olhos que denunciavam tristeza e desaponto. Deitar-se para comerdepois: isso lhe parecia uma ironia. Entretanto sabia que seu Superior nuncamentira. Foi deitar-se sobre as palhas sem todavia conciliar o sono por fome ecansaço. Na sala, entretanto, desenvolveu-se uma luta furiosa: dois jogadores,descontentes, gritava, imprecavam e blasfemavam contra Deus; das palavraspassaram aos fatos e a coisa ia-se tornando bem desagradável quando derepente aparece S. Clemente, olha a cena de longe, percebendo porém que aluta não queria terminar, entra no meios dos lutadores, pede por amor de Deusque deixem de ofender Nosso Senhor, se perdoem mutuamente para evitaremos remorsos das consciência e os castigos do outro mundo; toma as dextrasdos adversários, fita-os com mansidão e bondade, e depois de os apaziguarcom boas palavras consegue que eles se dêem amigavelmente as mãos. Umdeles deixou-se tomar de veneração para com S. Clemente, e lembrando-se

que os dois senhores de batina tinham ido acomodar-se sem jantar, mandou aohoteleiro aprontar uma suculenta ceia para a qual convidou São Clemente eseu companheiro, que se levantou bem depressa e se assentou à mesa. Termi-nada a refeição, disse São Clemente sorrindo: “Martinho, está vendo como Deusé bom e não desampara os seus servos?”

Na manhã seguinte partiram para Viena, onde o Pe. Thadeu Hübl os espe-rava; lá demoraram-se cerca de dois meses. São Clemente preparava-se jápara voltar a Varsóvia, quando em outubro, rebentou a guerra entre França ePrússia, de cujo êxito dependia a sorte de Varsóvia e conseqüentemente tam-bém de S. Beno. As batalhas de Iena e Auerstädt foram decisivas; Napoleãoentrou triunfante em Berlim depois de derrotar, ou antes, aniquilar o exércitoprussiano. Varsóvia pois pertencia à França; em 1806 Napoleão em pessoa foivisitar a capital da Polônia depois que seu general Davoust lá tinha entradodebaixo das aclamações delirantes do povo. No ano seguinte Napoleão elevoua Polônia à categoria de grão-ducado entregando-a a Frederico Augusto, quefora rei da Saxônia. Embora católico e até piedoso, Frederico Augusto era ape-nas um manequinho na Polônia, devendo obedecer servilmente aos magnatasda França e dançar ao compasso da batuta de Napoleão. O ódio e a persegui-ção aos sacerdotes estendeu-se também à Polônia, na medida que eram prati-cados na França. Os maçons e “iluminados” de Varsóvia exultavam, pois que avitória lhes estava garantida, e sem detença começaram a mais encarniçadaguerra contra o convento de S. Beno. Momentos amargos foram esses para S.Clemente que, mais tarde, o manifestou com as palavras: “Ninguém no mundopode fazer idéia, e só no dia do juízo final ficará patente o quando padeci emVarsóvia nesses tristes dias”.

Os maçons3 de Varsóvia excogitaram um plano de campanha ardiloso con-tra os Benonitas e contra a religião, o que aliás costumam fazer em toda parte,também em nossos dias. Esforçaram-se primeiro para ridicularizar os Benonitasatravés da imprensa e de folhetos avulsos que distribuíam grátis entre o povo;em versos chulos adaptados a melodias conhecidas e triviais zombavam-sedos sacerdotes e de Deus; e essas cantilenas ouviam-se nos cafés, nas esqui-nas, nos teatros etc.; para figuras cômicas nos teatros usavam a batina dosBenonitas; e o povo ébrio de divertimentos e novidade ria-se e aplaudia a tudo,como outrora os judeus que gritavam Crucifique contra Jesus.

As pessoas piedosas de Varsóvia, porém, firmes na sua fé continuaram afreqüentar ainda com mais assiduidade a igreja dos Redentoristas, onde rece-biam com devoção os santos sacramentos, pois que as almas verdadeiramentereligiosas não se incomodam com as irrisões dos maus e chegam-se tantomais aos sacerdotes, quanto mais estes são perseguidos e caluniados pelosinimigos de Deus. Em plena rua eram eles escarnecidos pela corja maçônica,que os apontava entre assobios de escárnio com o grito: “Benonitas, Benonitas!”

Vendo os maçons que não conseguiam demover o povo de freqüentar aigreja dos Redentoristas, procuravam incutir temor aos padres, proibindo-lhespregar sobre pecados, vícios etc. e mandando espiões à igreja. Quando umpadre era chamado a confessar algum doente, ou quando ia pregar em outraigreja, os tais de combinação se punham se punham a assobiar, a populaça sereunia e o pobre padre se via desacatado publicamente. Ao Pe. Blumenau, ora-

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dor fogoso que não só empolgava, mas também arrebatava as massas, amea-çaram de morte se continuasse a fazer as suas pregações; como o Pe. Blumenaunão se deixasse atemorizar pelas pistolas carregadas dos emissários da maço-naria, a raiva dos inimigos se transformou em fúria, de sorte que o pobre dopadre não pôde mais sair de casa.

O zelo apostólico dos Benonitas crescia na medida que os maçons se en-fureciam; de sorte que em 1807 pôde S. Clemente escrever a Roma: “A nossaigreja está sempre repleta; admiradíssimos estão os confessores do rei e darainha da Saxônia que vêm freqüentemente à nossa igreja e à nossa casa... emcada missa distribuem-se mais de cem comunhões; muitos protestantes con-vertem-se... É um verdadeiro milagre poder sustentar 64 pessoas nestes tem-pos calamitosos sem o auxílio de um vintém de esmola”.

Entretanto o Pe. Passerat estava lá para tratar das passagens para o Cana-dá e São Clemente participou isto ao Vigário de Mitau, que lamentando intima-mente a resolução do Santo, escreveu-lhe para o demover do seu intento: “Que-res abandonar um povo que se nutriu a teu peito, somente porque sua cerviz édura e seu coração corrompido? porque procuraste três anos os frutos e não osencontraste, queres agora cortar a figueira? Deus tal não permita”. Como po-rém o vigário não queria contrariar o Santo deu-lhe uma carta de recomenda-ção para Lord Douglas em Londres.

Em tudo isto o coração de S. Clemente sangrava, não tanto por causa dasua pessoa, mas por causa dos seus padres, da sua querida Congregação, eainda mais, da glória de Deus ultrajado — previa grandes males para o futuro etemia pela grandiosa obra que estabelecera na capital da Polônia.

Em todos esses duros transes procurava ele, depois de Deus, o coração dogrande e sincero amigo Pe. Thadeu Hübl para se desabafar e encontrar novoalento e coragem; e o Pe. Thadeu, homem de grande prudência e de vastosconhecimentos sempre sabia um bom conselho a dar e um expediente parasair das dificuldades. É por isso que S. Clemente não poucas vezes o denomi-nava “um outro eu” e a outra metade da sua alma.

Havia pouco que Clemente e Thadeu tinham chegado a Varsóvia, quandoeste foi vítima de um nefando atentado. Sob pretexto de que um penitente, achan-do-se muito mal, o chamava para os últimos sacramentos, foram buscar o Pe.Thadeu em um carro. Mal o padre tinha entrado, quando o amarram de mãos epés e lhe vendam os olhos. Depois de muitas voltas chegam a uma choupana,onde não havia nenhum enfermo, mas alguns senhores e empregados. O padrerecebe afrontas de toda a sorte e por fim a intimação de nunca mais ouvir deconfissão certas senhoras, ao que o nobre Redentorista respondeu que nãorecuaria um passo do cumprimento do seu dever. A um aceno dos senhores, osempregados começam seu trabalho: despem o padre, lançam-no por terra, epõe-se a vergastá-lo com bengalas e outros instrumentos até rebentar o san-gue de muitas chagas. Em estado grave foi ele, de olhos vendados, reconduzidoa Varsóvia. Só S. Clemente ficou sabendo desse acontecimento.

Mal restabelecido desses maus tratos foi o Pe. Thadeu chamado ao hospi-tal. Era ele o único sacerdote que em Varsóvia falava sete línguas e por isso sóele estava em condições de consolar nos hospitais os soldados alemães italia-nos, franceses, polacos e boêmios que lá se reuniram com a entrada do exérci-

to francês e do regimento italiano. O bom do padre, embora doente, mostrou-seincansável no cuidado dos enfermos, acudindo a todos com carinho e presteza,até que Deus lhe mandou o aviso de que não estava longe o dia em que iria nocéu receber a recompensa dos seus grandes trabalhos; a febre tifóide, apanha-da à cabeceira dos doentes, reduziu-o à fraqueza extrema; S. Clemente nãosaía de perto do seu confrade; vendo que a doença era grave administrou-lheos santos sacramentos dos moribundos. Dia e noite passava o Santo junto doleito do seu caro Pe. Thadeu Hübl. À 4 de julho de 1807 rodeado de toda acomunidade esperava Thadeu a morte com o rosto sereno e a conformidade deum Santo; depois de receber a última bênção de S. Clemente, que conservavaas mãos do moribundo entre as suas, o Pe. Thadeu voou para o céu deixandoseus caros confrades imersos na mais profunda dor. A morte desse prestimososacerdote foi uma das maiores provações para S. Clemente, porque amavaThadeu Hübl coo a seu irmão com amor santo e forte; a consternação no con-vento foi tal que ninguém teve ânimo nem a lembrança de fazer o necessáriopara o enterro. Foi preciso que de foram viessem as providências nesse sentido.O arcebispo mandou que por três dias cessassem as cerimônias da Igreja de S.Beno, providenciou para que a noite, empregados de confiança cobrissem otemplo de luto pesado e arranjassem o maior número possível de velas. Nostrês dias que se seguiram à morte do Pe. Thadeu, as comunidades religiosas deVarsóvia rezaram, revezando-se, o ofício dos defuntos na igreja e todos essesdias, os sinos de Varsóvia dobraram tristemente durante uma meia hora. Oenterro do antigo estudante mendigo foi pomposo como o sepultamento de umgrande do mundo. A dor de S. Clemente, nessa ocasião, foi lancinante. Quatromeses depois, escreveu ainda a um amigo na Itália: “Tenho a convicção de queHübl está no céu... conformo-me com a vontade santíssima de Deus, contudodevo confessar que, desde a sua morte, não tive mais nem uma hora feliz navida”. Em uma carta ao bispo, falando da dor que sentira pela morte de seuamigo Hübl, acrescentou: “No tempo da meditação, aos pés do Crucifixo, pare-ce que estamos dispostos para tudo, mas logo que o Senhor nos quer impor asua cruz, não sentimos coragem de carregá-la”. Semelhantes cartas repassa-das dos mais dolorosos sentimentos escreveu ele ao Pe. Passerat, que do seulado também sentia a morte do amigo e companheiro Pe. Vannelet, falecidoquase ao mesmo tempo que Hübl. Desconsolado escreveu Passerat a Varsóviadesfazendo-se em pensamentos tristes e desejando a morte, ao que S. Cle-mente respondeu: “Devemos adorar a santíssima vontade de Deus e beijar cemvezes a mão que nos feriu, porque ele pode curar-nos novamente as chagas. Tuqueres também morrer? será isso por amor de Jesus Cristo ou da carne, quereluta contra a cruz? melhor do que morrer é sofrer e permanecer pregado comCristo na cruz”.

São Clemente tencionava ira Cur em visita ao Pe. Passerat e a seus pa-dres; mas a morte inesperada de Thadeu Hübl o impediu; era difícil achar umsubstituto para o falecido: “O escudo está quebrado, Deus sabe o que agoravirá sobre nós” disse ele a sua comunidade em uma das suas conferências.

Em meados de novembro anunciou o Pe. Passerat sua provável ida a Cur.Essa carta parecia ditada pelos mais graves pressentimentos; são as últimaspalavras de despedida a transbordar de amor e intimidade. “Sede santos, aceitai

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bastante noviços... Procede de forma como se fosses o Vigário Geral, dou-tetodas as faculdades, os padres José e Francisco Hofbauer são teus auxiliares;alegrem-se eles contigo por serem as primeiras pedras do edifício; na eternida-de alegrar-se-ão certamente com os santos patriarcas, quando virem seus fi-lhos sentados à direita de Deus; mas lembrem-se também que hão de suportaras dores da maternidade; o temor dos sofrimentos não os intimide de dar filhosa Nosso Senhor. Saúdo a todos, apertando-os contra o meu coração. Adeus,irmãos, vós sois a minha alegria, a minha coroa, a minha glória em Cristo;adeus, Jesus Cristo queira encher-vos a todos das bênçãos celestiais, dê-vos oseu Santo Espírito como aos apóstolos. Santificai o mundo, caríssimos irmãos,nada poderá contra vós o inimigo, se Cristo for por vós; rezai por nós como ofazemos por vós para que cumpramos a santíssima vontade do nosso Pai. Sau-dações de todos os irmãos”. Essa carta não alcançou o seu destino porque oPe. Passerat tinha abandonado Luzi em Cur justamente uma semana antes dadata da carta.

Já em junho Passerat escrevera a Varsóvia, que as calúnias contra osRedentoristas haviam já chegado a Paris. O Pe. Passerat, francês patriota, de-pusera toda a sua confiança e esperança em Napoleão, no grande imperador,“protetor da inocência oprimida”; pedira ao Vigário Geral que se dirigisse a ele,pois que com uma só palavra o imperador faria calar todos os adversários.Pobre Passerat, em breve teve de sentir que o homem só pode confiar emDeus, que tem os corações dos reis em suas mãos! O adversário principal dosRedentoristas foi, naquele tempo, o governo bávaro, que fazia passar pela cen-sura todas as cartas enviadas ou recebidas pelos padres da Congregação; vin-te e quatro delas estão ainda guardadas no arquivo do governo, cartas inocen-tes que só se referem a coisas de negócios e que bastariam para provar aosfuncionários públicos que os Redentoristas não se envolviam em política nemse intrometiam em negócios do Estado. Alguns trechos dessas cartas são tes-temunhas evidentes do bom espírito que existia entre os bons religiosos. Assima resposta a um postulante que perguntava o que deveria levar para ser recebi-do na Congregação, dizia: “Não compreendemos o que o sr. entende por requi-sitos da entrada... aqui nada se prescreve a respeito; quer traga bastante, quertraga pouco o sr. será recebido da mesma forma; se trouxer um coração dócil ebom, estimaremos mais do que todas as riquezas e tesouros; aviso que o sr.não encontrará entre nós comodidade alguma, mas sim uma vida simples epobre que não afaga nem a carne nem as paixões, mormente em nossos tem-pos, em que se exige uma alma forte para o sacerdócio; se estiver resolvido aisso, venha, venha quando quiser; não tenha cuidados por causa do temporal,pense só em salvar a sua alma”. Mesmo dessa carta quiseram deduzir que ospadres da Suíça chamavam para o estrangeiro os súditos da Baviera. Os pa-dres Redentoristas receberam ordens de sair do território bávaro; não houvepois remédio. O Pe. Passerat aprontou-se e, em grupos de quatro, saíram todospara Valais na Suíça pelo caminho mais breve.

Como as dificuldades se aumentavam dia a dia, o Pe. Passerat resolveuenviar para as suas casas os quatro estudantes, que o acompanharam; masqual não foi o seu espanto, quando estes, assustados com a triste nova, seajoelharam diante da Imagem de Nosso Senhor suplicando-lhe que não os de-

samparasse nem os julgasse indignos da santa vocação. O Pe. Passerat nãopôde resistir, tomou-os consigo dizendo: “A Providência que cuida das aves docéu, não nos abandonará”. Os diversos grupos encontraram-se em Visp. Nomeio de tantas desilusões São Clemente teve uma consolação bem grande:nesse ano de perseguições nenhum dos seus filhos se tornou infiel à sua santavocação; pelo contrário em santa emulação exerciam-se todos de modo admi-rável na prática das virtudes convertendo a milhares com suas palavras e maisainda com seus exemplos. Tudo isso parecia menos mal a S. Clemente, mas odesejo ardente de achar um lugar e uma casa para os seus noviços e suaCongregação, ainda não se tinha realizado nem parecia querer realizar-se embreve. A ida ao Canadá, tornara-se impossível devido às circunstâncias.

Em Varsóvia as coisas pioraram de dia para dia, só não na igreja, onde ospadres no último ano tiveram nada menos de 104.000 comunhões, e mais ain-da teriam se os padres fossem mais numerosos; mas o ódio dos maçons au-mentava-se sempre mais. São Beno tinha-se tornado o baluarte contra o livrepensamento que tudo avassalara. Já temos falado do atentado contra o Pe.Thadeu Hübl, que nos últimos anos era o representante de S. Beno; gozava nasrodas católicas uma influência única; via-se o seu retrato até nos cachimbos enas caixas de rapé; as princesas e as damas nobres tinham-no por confessor. Ocontraste entre os Benonitas e os Jacobinos acentuava-se sempre mais.

A São Clemente não pouparam os maçons; à semelhança do Pe. ThadeuHübl esteve ele atado de mãos e pés numa adega escura e funda onde não sepôde afastar os sapos e rãs que pulavam sobre o seu rosto; ele mesmo afirmouuma vez, “haver sofrido na Polônia coisas que só serão manifestadas no dia dojuízo final”.

Os Redentoristas ficaram afinal inteiramente isolados; não podiam traba-lhar com o clero tão numeroso da cidade porque as idéias divergiam demais.Davoust pôde com verdade participar a Napoleão, que o clero de Varsóvia de-testava os Benonitas, e um dia S. Clemente perguntado, por quem haviam sidoexpulsos os Redentoristas de Varsóvia, respondeu laconicamente: “pelos falsosirmãos”. Em geral porém, S. Clemente não tinha motivos mais sérios para sus-peitar perigosa a sua posição no grão-ducado; suas últimas cartas não traemcuidados nem receios. À 9 de março escreveu ainda ao Procurador geral dosRedentoristas em Roma: “Aqui não há novidades; o tempo difícil, em que todossofrem, não nos poupa, mas, Deus louvado, nossa Congregação faz dia a dianovos progressos”. Isso era apenas uma pausa. O Santo iria em breve sofrer amais dura provação em sua vida, pois que se preparava a ruína de São Beno.

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CAPÍTULO VIII

A expulsãoVerdadeira causa da expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Sole-

nidade da Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução doDecreto — Resignação do Santo.

A expulsão dos Redentoristas e a ruína de S. Beno devem sua realização,em parte, à loja maçônica de Varsóvia, a qual, desde muito, não podia ver combons olhos a atividade dos padres e os resultados estupendos que haviam con-seguido quanto à piedade e moralização do povo. Embora tivessem os maçonstrabalhado nesse sentido e contribuído para isso, não é bem a eles, mas àsconseqüências desastrosas de Babenhausen, que se deve atribuir a expulsãodos padres de Varsóvia. O governo bávaro fez o que pôde não só para desmo-ralizar os Redentoristas, mas também para denegri-los aos olhos do povo, eapresentá-los ao público como uma sociedade inútil e prejudicial. Os diáriosmais importantes e mais lidos na Baviera v. g. o Postzeitung de Augsburgo, ojornal de Frankfurt etc. publicavam as maiores infâmias contra os padres deBabenhausen e de Cur.

De uma dessas notícias teve conhecimento o comandante militar de Varsó-via, o marechal Davoust, a saber, que os Redentoristas haviam sido expulsosda Baviera, por haverem conspirado contra a paz e a tranqüilidade públicas, eque os Congregados estavam em correspondência epistolar com um tal Cle-mente Hofbauer, Vigário Geral dessa Ordem em Varsóvia. Essa notícia foi ocomeço do fim para o convento de S. Beno. O marechal, desejoso de informa-ções, escreveu a Montgelas, ministro do interior na Baviera. A carta-respostadeu a Devoust a informação desejada, isto é, que os Redentoristas eram oscausadores da perturbação da ordem em Babenhausen, fanatizando o povo,indispondo-o com o governo e o clero. que seus penitentes se distinguiam peladevassidão etc. Ainda mais perigosa foi a declaração de que em Cur se verifi-cou ser sua presença prejudicial ao recrutamento dos regimentos para o Impe-rador dos franceses. Era o suficiente para Devoust mandar fazer buscas noconvento e seqüestrar o arquivo da casa. Alguns trechos da correspondênciaepistolar confiscada, como: as relações dos Redentoristas com os Bourbons,com os jesuítas e os amigos dos jesuítas, as expressões do Pe. Eduardo deMitau pouco honrosas para Napoleão e os franceses, o projeto da fundação noCanadá, deviam realmente parecer comprometedoras a Davoust que selecio-nando as passagens mais obscuras escreveu a Napoleão a 12 de abril: “... Te-nho certeza de que essa gente é realmente inimiga de todo governo, mormentedo de Vossa Majestade; em breve terei a honra de enviar a V. M. os papéis, dos

quais V. M. poderá ver a constituição dessa Associação e quais as suas ramifi-cações... Um tal Litta, Núncio do papa, é um dos grandes organizadores...Hofbauer esteve de viagem pela Suíça e França, mas já voltou faz pouco; asobservações por ele feitas, levam à convicção de que é um homem perigoso...Hofbauer está em correspondência ativa com o confessor do rei da Saxônia...Peço a V. M. mandar a esta região homens experimentados e fiéis”.

Os inimigos de São Beno tinham pois o jogo ganho. As acusações foramtodas acreditadas e aceitas sem mais indagações, mesmo as que eram eviden-tes mentiras e calúnias. Assim p. ex. aconteceu que devido à grande carestia davida os padeiros, açougueiros etc. de Varsóvia fecharam suas portas para nãosofrerem prejuízos: e na cidade correu que os Redentoristas os haviam instiga-do a isso para oporem dificuldades ao novo governo. Poucos meses antes eramos Benonitas considerados inimigos figadais dos Prussianos, e agora acusadosde amizade exagerada com eles. Davoust desejava liquidar logo com osRedentoristas ainda mais que para isso não encontrava oposição no governode Varsóvia; o único que protegia os Benonitas era Estanislau Breza, secretáriode Estado na Polônia. O rei católico da Saxônia fez o papel de Pedro no átrio doSumo Sacerdote: negou estar relacionado ou conhecer os Benonitas, exigiutambém que Davoust examinasse pessoalmente a coisas com exatidão, e lhemandasse as atas. Isso desagradou a Davoust. O marechal para não dar satis-fações ao rei da Saxônia, só procurou uma ocasião em que pudesse provar aanimosidade dos padres contra os franceses, o que não tardou a dar-se. A 19de abril de 1808 celebrava o mundo cristão a festa da páscoa da Ressurreiçãodo Senhor. Em S. Beno costumava essa festa ser celebrada com a maior sole-nidade possível. No sábado de Aleluia prolongaram-se as cerimônias até às 10horas da noite, como é costume na Polônia; a igreja naquela ocasião asseme-lhava-se a uma noiva no dia das suas núpcias, resplandecente ao clarão dasinúmeras velas e adornada das mais lindas flores. O templo regurgitava de povode sorte se tornara impossível encontrar mais um lugar vazio na igreja. Quandoo sacerdote no altar entoou o “Surrexit Dominus” o Senhor ressuscitou, milha-res de vozes acompanharam o celebrante cheias de entusiasmo. Terminadasas cerimônias voltou novamente a tranqüilidade ao templo, e as pessoas puse-ram-se a caminho para suas casas, passando, como de costume, por uma por-ta estreita perto da sacristia. Naquele aperto apareceram dois senhores à pai-sana que queriam, à força, penetrar na igreja, dizendo serem oficiais francesesmas portando-se como embriagados. Não sendo atendidos, puseram-se a ba-ter por todos os lados e a gritar contra o povo. Naturalmente as pessoas quesaíam, ofenderam-se com aquele procedimento, e alguns mais valentes retri-buíram na mesma moeda as cortesias dos oficiais franceses; o sangue chegoua correr. Passando por ali um oficial polaco encheu-se de cólera contra os fran-ceses e estava já de espada em punho para acabar com eles, quando apareceuo Pe. Jestersheim, Reitor dos Redentoristas, pedindo por amor de Deus querespeitassem aquela noite tão santa. Como tudo aquilo não passava de umafarsa, em que se procurava acusação contra os Benonitas, logo se propalouque o Pe. Reitor havia dado uma violenta bofetada em um dos oficiais france-ses; e isso era um crime perante a lei. Davoust ouviu os oficiais e remeteu aNapoleão as acusações junto com um resumo da correspondência de S. Cle-

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mente.Napoleão leu com atenção as informações de Davoust e respondeu: “Eles

parecem ser da mesma corporação como aqueles que expulsei da Itália e daFrança; pedirei às cortes alemãs que os expulsem, e farei o mesmo ao rei daSaxônia: esses padres começaram a existir há poucos anos e já se tentou inun-dar deles a França; já proibi suas reuniões, mandei fechar seus conventos edispersar-se todos indo cada um para sua casa...!” E no mesmo dia mandou oMinistro do Exterior expulsar esses sacerdotes da Polônia... “por serem eles orenascimento dos jesuítas”. Era essa a sentença de morte contra S. Beno!Napoleão, em sua leviandade, afirmou que os Redentoristas inundavam a Fran-ça quando não havia nenhum deles lá!

São Clemente iludira-se muito tempo a esse respeito; confiava demais nalealdade do rei católico da Saxônia, a quem pertencia Varsóvia. Deus entretantoquis preparar seu Servo para o grande golpe. À 9 de junho, num dos dias daoitava de Pentecostes, lera no breviário as palavras do salmo 87: “Eu sou pobre,e em trabalhos estou desde a minha juventude, e embora exaltado e elevado,sinto-me humilhado e contristado”; nesse momento sentiu o corpo tremer comouma vara verde; pôs-se a meditar no que podia significar aquilo e tornou a sentiro mesmo tremor em todo o corpo; convenceu-se de que era aviso do céu parauma grande tribulação; curvou-se antecipadamente, com toda a resignação,ante a vontade de Deus, e a tranqüilidade tornou a voltar à sua alma.

Nesse mesmo dia foi assinado em Pilnitz o decreto que expulsava osRedentoristas de S. Beno. Essa ordem fora confeccionada por dois amigos doSanto: pelo rei da Saxônia e por Breza, secretário do Estado! O rei FredericoAugusto com lágrimas nos olhos tomou a pena para confirmar o decreto daexpulsão — fizera-o debaixo da pressão do imperador dos franceses. Pelo de-creto era permitido aos padres levar consigo suas propriedades pessoais e aviagem deveria ser feita às custas do governo.

Aos 14 de junho o decreto chegou às mãos de Davoust, que com a maiorcircunspecção se preparou para desfechar o golpe; um funcionário, porém, amigodos padres traiu o segredo; entrou no convento disfarçado por causa da grandevigilância dos soldados, e na maior reserva contou tudo a S. Clemente, o qual,convocada a comunidade, impôs-lhe o mais rigoroso segredo e narrou o queestava por acontecer. Foi como se um raio, naquele momento, caísse sobre oconvento: uns até choraram e soluçaram de dor. Mas não havia tempo a perder;da igreja e da sacristia foram retiradas as alfaias mais preciosas; os ornamen-tos foram colocados na cripta; as relíquias repartidas entre os padres e os ir-mãos; estes aprontaram as malas e cada qual recebeu um pouco de dinheiropara as maiores e mais urgentes necessidades eventuais.

No dia seguinte houve as cerimônias na igreja como de costume sem queninguém pudesse suspeitar a menor sombra de novidade.

O dia 17 de junho foram determinado para a execução do decreto. Pelotemor de possível sedição popular, foram guardadas militarmente as ruas queiam ao convento; ao meio-dia apareceu em S. Beno a comissão da expulsão;era hora do culto. São Clemente estava no púlpito a pregar e os padres noconfessionário a ouvir as confissões. A citação foi feita sem mais preâmbuloscom a obstupefação do povo que viu o Pe. Clemente interromper bruscamente

o sermão, e os irmãos ir de confessionário a confessionário chamar os padres,que se levantaram imediatamente. Fecharam-se as portas e o povo ficou presodentro da igreja. Os comissários assustaram-se ao perceber a calma dos pa-dres, que não se mostravam surpreendidos; temeram uma revolta, mas S. Cle-mente tranqüilizou-os assegurando-lhes que o povo ignorava tudo e que elesnão usariam violência. Os Redentoristas, desde aquele momento, estavam pre-sos por ordem de Davoust e incomunicáveis — só então é que abriram as por-tas da igreja e deixaram o povo sair.

Davoust não era contrário à ida dos padres à Galícia como haviam pedido,mas, como o coronel austríaco nada podia decidir sem primeiro consultar Vie-na, o comandante indignou-se e mandou os presos para Küstrin, donde cadaum iria para sua casa; isto se daria a 20 de junho. Os comissários francesesinsistiram com os clérigos e estudantes de Varsóvia, a que rompessem de vezcom os padres e de lá mesmo voltassem para suas casas; só um foi infiel àvocação; todos os outros preferiram partilhar a sorte dos demais padres indojuntos ao exílio. A comunidade de S. Beno contava então quarenta membros,dos quais vinte eram padres e vinte estudantes e irmãos leigos. No dia 20 dejunho, levantaram-se os religiosos às 3h30min, prepararam-se para a viagem eesperaram os carros que os haviam de separar da cela querida. Os veículosnão tardaram a chegar a S. Beno munidos de soldados. Embora de madrugada,as ruas e as janelas das casas achavam-se repletas de povo; os padres entre-tanto consolaram-se ao verem que os carros seguiam na mesma direção espe-rando poder juntos beber o cálice da amargura e do desterro; mas essa conso-lação também evanuiu-se quando, ao sair da cidade, perceberam que os carrosse dirigiam para direção diversa; separavam-se, talvez para sempre, sem sedespedirem. São Clemente, sentando em seu carro baixara a cabeça resignan-do-se com a vontade santíssima de Deus, enquanto que seus dedos desfiavamas contas do rosário da Virgem, e seu coração rezava pelos filhos perseguidose pelos perseguidores. Nenhuma palavra de queixa ou reprovação saiu de seuslábios; colocara tudo nas mãos da Providência.

Era o fim de S. Beno.Durante cinco dias, de carros fechados, foram conduzidos para o Oeste

parando apenas ao meio-dia e à tarde para o descanso dos cavalos — enfimchegaram a uma cidade cingida de muralhas de todos os lados. Lá havia umafortaleza, como São Clemente nunca vira na sua vida; — e agora ia vê-la bemde perto; a cidade era toda protestante. Os carros pararam em frente a essafortaleza no meio da cidade, abriram-se as portas e os padres receberam oconvite de entrar dentro do soberbo prédio. Foi na cidade e na fortaleza deKüstrin, perto de Berlim que se reuniram os exilados. A habitação era espaçosae o tratamento não deixou nada a desejar. Cada um recebeu um quarto separa-do; na sala grande levantaram um altar, e a comunidade reencetou os seusexercícios, prescritos pela Regra, como se os Congregados se achassem noconvento. Os protestantes sentiam compaixão dos exilados e não tardaram asimpatizar-se com eles; em grandes grupos detinham-se perto das janelas aouvir os cânticos que ecoavam pela sala; os pastores protestantes chegaram atemer a influência dos sacerdotes católicos sobre as suas ovelhas.

Aos 28 de junho S. Clemente dirigiu uma carta ao arcebispo de Posen,

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agradecendo todos os favores recebidos e dando algumas informações sobre asituação “... conformamo-nos com a sorte que nos coube pela vontade de Deus;é-nos suave o sofrimento porque nossa consciência de nada nos acusa; o de-creto nos foi anunciado sem preceder-lhe processo, e foi executado com maisdureza do que fora lavrado... estamos separados de todos e não sabemos por-que; estamos aqui na fortaleza e só Deus sabe a sorte que nos espera... porémem tudo reconhecemos a vontade de Deus que seja sempre glorificado Deuspermitiu isto, porque não éramos o que deveríamos ser”.

A prisão na fortaleza durou quatro semanas passadas na mais escrupulo-sa observância regular, semanas de mortificação e de resignação com a vonta-de divina; São Clemente nutria ainda a esperança de poder conservar unida asua querida Comunidade; confiava sempre na lealdade e amizade do rei quetudo faria para o seu regresso a Varsóvia ou a alguma residência na Saxônia.Eram sonhos! Em meados de julho anunciou-se aos exilados a cassação dodesterro, indo cada um para sua casa. Tremendo golpe para S. Clemente! Se-parar-se dos seus, ver seus planos esfacelados, sua grande obra aniquilada, oideal da sua vida para sempre frustrado! O fechamento do convento de SãoBeno significava não só a perda de uma residência como Triberg, Babenhausenetc., mas a dissolução da Congregação além dos Alpes. Quando, na fortaleza,ele abraçou os seus súditos por despedida, fê-lo pela última vez, porque a mui-tos dentre eles não veria mais em sua vida.

Só restava ainda salvar as propriedades da Congregação em Varsóvia: asnovas construções, os terrenos adquiridos etc. O Pe. Jestersheim, saxônio denascimento, foi incumbido desse negócio, ainda mais que fora ele o Reitor dacasa desde a morte do Pe. Thadeu Hübl. São Clemente esperou em Viena asolução final de tudo, para de lá tomar a decisão sobre sua futura residência.Consigo levou o clérigo Martinho Stark e o irmão Mathias Wildhalm, os únicosaustríacos da comunidade dissolvida.

A viagem a Viena não se deu sem dificuldades e dissabores para o Servode Deus. No passe recebido do governo estava, com toda a exatidão, determi-nada a marcha de Küstrin até Viena. Como porém S. Clemente desejava cele-brar todos os dias o santo Sacrifício da missa tinha de fazer, às vezes, algumpequeno desvio para chegar a uma igreja católica, o que não era fácil naquelasregiões onde dominava o protestantismo. Na Silésia Superior saiu-se mal umavez, porque encontrando tropas francesas, teve de lhes apresentar o passe,que o clérigo Martinho Stark, na grande pressa, perdera com os outros papéis.Levaram-no ao Comandante que o tomou por espião e já estava para ordenar oseu fuzilamento, quando apareceu um oficial polaco, conhecido do Santo, oqual deu informações favoráveis; devido a isso o Santo foi detido em um con-vento até chegar de Küstrin a notícia de que Clemente e Martinho Stark haviamrecebido o passe. Assim, debaixo de agruras e dissabores, chegou o nossoSanto às últimas fronteiras do país, ao qual tantos benefícios prestara, em osdias do seu ativo apostolado. O novo país, que haveria de receber dele as maisinsignes bênçãos do céu, recebeu-o mal até com injuriosa suspeita. Atravessa-das as fronteiras da Áustria foram logo aprisionados por faltarem, mais umavez, os necessários passaportes, e tiveram de esperar até que uma nobre se-nhora polaca, que se interessara por S. Clemente, lhes procurou novos docu-

mentos em Viena.Conseguidos os papéis reencetaram a viagem por Olmütz e Brünn até

Tasswitz, onde S. Clemente esteve com sua irmã Bárbara. Depois de uma brevedemora na pátria, apressou-se o Santo a partir para a nova residência ao en-contro de novos esforços e trabalhos.

Quem poderia imaginar que aquele sacerdote pobre, perseguido e desco-nhecido seria por Deus escolhido como instrumento para a restauração do es-pírito cristão, da verdadeira piedade e da salvação de inúmeras almas na gran-de cidade, em que acabara de entrar, e em toda a Áustria, para não dizer nomundo inteiro! Quem acreditaria que aquele homem sem nome, avançado jáem anos, seria o médico enviado por Deus para inocular nova vida e nova forçaà Igreja na Áustria que definhava sob o jugo do josefismo nas garras da maço-naria!

Deus assim apraz-se em brincar com os homens; fá-los passar por dificul-dades e parece querer aniquilá-los, quando os escolhe para instrumentos daexecução dos seus grandiosos planos. Deus escolhe o fraco para confundir oforte, e destruir aquilo que o mundo preza, com aquilo que o mundo despreza.

Vinte anos passaram desde a ordenação sacerdotal de São Clemente atéa expulsão de Varsóvia, período bastante longo, repleto de trabalhos, de gran-des planos, de belas esperanças, de grandiosos sucessos, mas também deamargas desilusões, de cruéis perseguições, de nefanda ingratidão; foi uma viacrucis de vinte anos e de outras tantas estações, cada qual mais doída e tortu-rante. Quem tudo olha só com os olhos da carne, terá compaixão de Clemente,a quem olhará como a um infeliz sem sorte, que trabalhou em vão. Os desígniosde Deus são imperscrutáveis; todas essas peripécias só serviram para mostrarao mundo a grandeza da alma de S. Clemente, que qual rochedo inabalávelsustentado pelas mãos do Eterno, resistia a tudo depositando inteira confiançaem Aquele que não desampara seus filhos. Nessas desilusões é que admira-mos a santidade do herói, que não abre sua boca para proferir uma palavrasequer contra as disposições admiráveis da Providência.

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PARTE TERCEIRA

O apóstolo de Viena (1808-1820)

CAPÍTULO I

Chegada à Viena eprimeiros trabalhosChega à Viena — Dificuldades com a polícia — O racionalismo na Áustria

— Napoleão e Francisco da Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha deAspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos —Intimação do governo — Notícias de Valais — Fundação em Friburgo.

Viena não recebeu com as devidas honras o seu grande Apóstolo, que avisitou no intenso inverno de 1808. Apenas chegado à Capital da Áustria, tevede avir-se coma polícia, que lendo no passaporte o nome de Clemente Hofbauer,vindo da fortaleza de Küstrin, se deixou levar pelas mais graves suspeitas; semmais preâmbulos conduziu o pobre padre com seu companheiro ao posto poli-cial, onde ambos ficaram detidos os três dias inteiros, que foram necessáriospara o exame dos papéis e as informações a respeito dos prisioneiros. Termina-do e protocolado esse exame, originou-se na polícia nova suspeita, ao verificarque ricos paramentos de igreja acondicionados em dois enxergões e um gran-de caixão, se achava em poder daquele sacerdote. A modéstia excessiva dabatina do padre contrastava por demais com a riqueza dos paramentos; daí aconclusão, de que muito provavelmente deveriam ter sido roubados a algumaigreja das imediações; e essa suspeita atingiu a seu auge quando o agentepolicial encontrou em poder de S. Clemente uma boa quantia de dinheiro. Nãofoi difícil ao Santo provar à polícia que aqueles paramentos preciosos, ele oscomprara legitimamente quando Superior em Varsóvia, e que aquele dinheiroele o recebera da família Bourbon na Polônia como intenções de missa. Depoisde três dias presos foram postos em liberdade, mas as investigações prolonga-ram-se durante meses tantos em Dresden como em Varsóvia e Viena. Foi ne-cessária a intervenção do Núncio Apostólico, que pediu informações oficiaisdas autoridades civis e eclesiásticas de Varsóvia a respeito dos objetos levadospor S. Clemente; somente depois dessas declarações oficiais é que a políciarestituiu os paramentos. Foi nessa ocasião que Severoli escreveu ao bispo deVarsóvia: “Deus tem permitido que esse seu Servo fiel seja provado por muitascontrariedades, para fazê-lo ainda mais digno da sua divina complacência; amoe venero imensamente esse homem de Deus tanto por simpatia pessoal comoprincipalmente por ele trabalhar tanto pelo rebanho de Jesus Cristo”.

Chegados em Viena necessitavam de algum albergue, ao menos para asprimeiras semanas. S. Clemente lembrou-se do seu velho mestre Weyrig, epara lá foi com o Fr. Stark num dos arrabaldes de Viena; o Irmão Widhalm hos-

pedou-se com os Servitas enquanto que o Irmão Manoel Kunzmann, que entre-tanto chegara a Viena, encontrou um lugar no convento dos Cistercienses. Qua-tro Redentoristas achavam-se em a Capital austríaca, porém separados semformarem comunidade. Na casa de Weyrig S. Clemente era o cozinheiro e asrefeições obedeciam sempre ao mesmo cardápio a saber: pão negro e bolo defarinha. Não lhe faltaram contudo convites feitos pelos bons amigos que pos-suía em Viena; às sextas-feiras e aos sábados ia sempre à casa do padeiro “Apera de ferro” para suas modestas refeições. A pequena Pepi, filhinha do padei-ro, a qual não era pouco curiosa, observava atentamente, nessas ocasiões,quanto cada um comia; muitos anos mais tarde ela contou: “Quanto mais insípi-da a comida, mais parecia ser do gosto de Clemente, que deixava de lado todoo manjar agradável e apetitoso; creio que ele nunca matou a fome lá em casa”.

Clemente porém não se demorou muito na casa do seu antigo mestre nosarrabaldes da cidade; os católicos de Viena, edificando-se desde logo com oprocedimento santo de Clemente, fizeram questão que esse homem de tantasvirtudes se hospedasse no centro da Capital.

Clemente, homem de ação, habituado às lutas, afeito aos grandes empre-endimentos, não podia acostumar-se à vida de completa inação a que se viacondenado sem nenhuma atividade apostólica. Sem esperança de breve alte-ração em seu modo de viver, Clemente pensava em abandonar Viena. Nashoras em que a aflição oprimia sua alma pela solidão em que se via imerso, iavisitar o Santuário da Virgem do Socorro, não distante de Viena; lá desabafavaseu coração apostólico, que clamava constantemente com S. Francisco Xavier.“Da mihi animas” dai-me almas, Senhor, dai-me a possibilidade de sacrificar-me, de imolar-me inteiramente em prol das almas abandonadas, para reconduzi-las ao aprisco e levá-las ao céu. “Prostrava-se em seguida ante o altar doSantíssimo, onde passava, por vezes, horas e horas a fio em procura de confor-to, de animação e de conformidade. O povo de Viena, pouco habituado a seme-lhantes transportes de devoção e fervor, admirava e, em magníficos comentári-os, enaltecia aquele sacerdote que em todo o seu porte, mormente nos mo-mentos da prece, fazia resplandecer um que de extraordinário e divino. Essaadmiração, originada da santidade não comum daquele sacerdote recém-che-gado em Viena, não se apoderara só do povo simples, mas sobretudo de pes-soas altamente colocadas como: o arcebispo de Viena Mons. Hohenwart, oNúncio apostólico Mons. Severoli, Mons. Muzzi, auditor da Nunciatura, o Provin-cial dos Carmelitas e o dos Servitas, os quais se tornaram todos amigos íntimosdo nosso Santo.

Nesses primeiros anos de solidão dedicou-se o Servo de Deus, de ummodo todo especial, à oração, que sabia ser a arma poderosa que conquista ocoração do próprio Deus. Orava por seus caros confrades expulsos da Polôniae dispersos pelo mundo para que Deus lhes concedesse a perseverança; oravapor aqueles confrades que sob a direção do grande Pe. Passerat erravam deum lugar para o outro em busca de um seguro abrigo para a Congregação;orava porém com especial ardor por sua pobre Pátria, presa do racionalismoimplantado da França, o qual na Áustria levava o nome de josefismo. Como ointuito do racionalismo é extinguir a fé no coração do povo, projetando sobretodas as verdades, mesmo de ordem sobrenatural, apenas os fracos lampejos

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da limitada razão humana, compreende-se que os seus defensores se empe-nhavam em estancar, o mais possível, todas as fontes que pudessem alimentarou fomentar o sentimento religioso; eis porque na Áustria as leis do josefismo4

proibiam as pregações substanciosas da palavra divina, a impressão e difusãode livros piedosos, o adorno dos templos, as rezas e devoções públicas, asmissas solenes, a freqüência dos sacramentos etc.; as irmandades foram qua-se todas abolidas, as procissões restringidas, as romarias formalmente interdi-tas. O josefismo chegou até a determinar o número de velas e acender-se nosaltares durante as cerimônias religiosas; não se podia introduzir nenhuma rezanem cantar hino algum a não ser com a alta aprovação e licença do governo.Essas leis causaram no princípio a indignação geral; mas, aos poucos, foi-se opovo habituando a elas na medida que desaparecia a fé e o sentimento religio-so. Era desolador o estado da religião na Áustria pelos anos de 1808; a vidacristã com seus encantos espirituais era desconhecida entre o povo; os quefreqüentavam a igreja, aos domingos, faziam-no quase só por costume e tradi-ção; os homens envergonhavam-se da prática das devoções católicas, que de-nominavam crendices e superstição e temiam ser conhecidos na sociedadecomo católicos da têmpera dos antigos, que não baseavam sua crença na pala-vra do homem nem nos ditames da falível e fraca razão humana, mas sim naautoridade de Deus que tem poder e direito de manifestar sua vontade ao ho-mem e de lhe revelar seus mistérios e suas verdades.

Nos templos as pregações não eram vazadas nos moldes da simplicidadee liberdade apostólicas, nem versavam sobre as verdades substanciosas dodogma ou da moral cristã e muito menos sobre as verdades eternas, mas limi-tavam-se a frases vazias de sentido, períodos altissonantes, floreados retóricos,terminologia insípida de humanidade e filantropia e quejandas expressões, in-ventadas para o engano da humanidade. Isso eram, aliás, muitíssimo natural, enem se podia esperar outra coisa dos sacerdotes formados nos semináriosgerais do governo, onde os jovens bebiam a largos tragos o espírito envenena-do das leis e da doutrina do josefismo.

No ano em que S. Clemente foi a Viena, i. é em 1808 já não existiam essestais seminários, mas o seu espírito ainda perdurava. Nas escolas públicas ensi-nava-se às crianças o catecismo explicado segundo as normas do racionalismo5,de acordo com os princípios de Pestalozzi e de Rousseau. Nos ginásios confir-mava-se o racionalismo, que atingia seu auge nas universidades, onde se ouviaa filosofia de Kant sem palavra alguma que pudesse abrir aos alunos os hori-zontes sublimes da verdade católica, que enleva o espírito e conforta os cora-ções. A conseqüência natural de tudo isso era o ódio ou, pelo menos, o despre-zo ao clero, a liberdade mal entendida de cada um poder formar a sua religião eforjar a sua crença de acordo com as suas comodidades, os seus interesses eos seus caprichos.

São Clemente, ao chegar a Viena, viu logo o abismo em que se precipitavasua pátria, e a ruína de milhares e milhares de almas; quis logo levantar a voz,clamar, ensinar, persuadir, mover, converter, porém debalde; foi-lhe imposto omais rigoroso silêncio tanto no púlpito como no confessionário. Só uma coisapodia ele fazer: rezar e rezar bastante — e Clemente orava, pedia a Deus seamerceasse do pobre povo e lhe mandasse homens de valor e de peso, capa-

zes de combater com vantagem o josefismo e de implantar na Europa a Santareligião que produz os heróis da virtude e da santidade. S. Clemente, em suagrande modéstia estava longe de suspeitar ser ele mesmo o homem escolhidopela Providência para debelar o racionalismo e converter a Áustria e a Europacom a sua palavra e o seu exemplo

O próprio Deus se incumbiu de preparar o terreno para a admirável ativida-de apostólica que S. Clemente haveria de desenvolver em Viena. Em 1809 oimperador Francisco da Áustria, confiado no auxílio do céu e no patriotismo deseus súditos resolveu guerrear o imperador dos franceses e humilhar a arro-gância de Napoleão; convocou seus soldados, dos quais 176.000 se postaramnas fronteiras da Polônia, enquanto que 80.000 defendiam a Áustria contra aItália. Os príncipes alemães acharam mais prudente e seguro combater ao ladode Napoleão e abandonaram vergonhosamente o imperador Francisco da Áus-tria cobrindo-o de injúrias, taxando de loucura e megalomania o seu procedi-mento em conjunturas tão arriscadas. Napoleão indignado resolvera esmagar aÁustria e perder a família dos Habsburgos. A 20 de abril Napoleão, a frente deseu exército entra na Alemanha e desbarata os austríacos em Abensberg e emEckmühl, avançando até Viena; a 10 de maio assedia a Capital, cujo imperadorfugira para a Hungria com toda a família. Nenhuma potência ousou levantar-separa terçar armas em defesa da Áustria. A 12 de maio começou Napoleão abombardear Viena — e de momento a momento crescia o furor do bombardeio;bombas sibilavam pelos ares, penetravam nas casas dos particulares produzin-do o pânico em toda a cidade. Todos tremiam, só Clemente conservava a sere-nidade d’alma, depositando toda sua confiança em Deus, e qual outro Moisésdirigia ao céu as mais ardentes preces em favor de sua pátria enquanto fervia ocombate; da oração levantava-se ele apenas para animar e consolar as famíli-as; não era fácil a sua tarefa porque as bombas caíam sobre a cidade como asgotas d’água numa chuva impertinente. A família Weyrig, onde se achava Cle-mente, parecia desesperar, quando Clemente a sorrir mandou que todos seajoelhassem para implorar do céu a proteção; rezava a família quando umabomba penetrando pela janela passou por cima das cabeças dos que oravam e,sem explodir, rolou tranqüila a um canto do quarto. O bombardeio não tardou acessar porque Viena se entregou depois de algumas horas; a casa em queestivera o Servo de Deus não sofreu a menor arranhadura, não obstante achar-se no ponto da cidade, onde o fogo era mais violento e terrível.

Napoleão entrou na cidade, onde não se demorou muito; correu com seuexército contra o grão-duque Carlos, que se aproximava para à defesa de Vie-na. As primeiras bombas de combate de Aspern foram ouvidas na Capital daÁustria a 21 de maio. Clemente sabia que daquela batalha dependia a sorte dasua pátria, que ele queria salva e grande; corre pressuroso a Jesus notabernáculo, ajoelha-se e de braços abertos pede a Deus a vitória, ou pelomenos, a salvação da sua pátria. Entretanto lá fora o combate tornava-se renhi-do e feroz; as bombas pareciam querer escurecer o sol e o combate perdurouaté a noite sem resultado definitivo; ao romper da aurora Napoleão recomeçouo ataque saudando os austríacos com uma salva de bombas que fizeram estre-mecer as vidraças de Viena; foi para São Clemente o sinal de que era chegadaa hora de ele se prostrar novamente aos pés de Jesus no tabernáculo. E a

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oração de S. Clemente foi atendida pelo céu. No último ataque feito por Napoleão,tornou-se a luta encarniçada; o desespero apoderou-se dos franceses, o grão-duque Carlos saltou do cavalo e à frente dos seus soldados empunhou a ban-deira animando com seus exemplos e com seu valor os soldados que o segui-ram vibrando de entusiasmo; mais umas poucas horas e o campo de batalhaachava-se em poder dos austríacos; era a primeira batalha aberta que Napoleãoperdia. Quem reconhece que é Deus quem distribui as vitórias segundo ossapientíssimos desígnios da sua Providência, não hesitará em crer que a famí-lia Habsburgo foi salva mediante as súplicas do grande Apóstolo de Viena, poisque Deus não deixa de atender os pedidos dos seus Santos. Se a Áustria nãovenceu em Wagram, foi por disposição da Providência; pois que no caso devitória o josefismo ter-se-ia consolidado na Áustria e produzido à pátria de S.Clemente maiores males do que poderia fazer a derrota dos austríacos porNapoleão.

Porém não foi só com suas orações que o servo de Deus prestou à suaPátria relevantes serviços nessa ocasião. Os soldados feridos nas grandes ba-talhas foram conduzidos em massas para a cidade e, como conseqüência natu-ral, a febre tifóide começou a grassar desastradamente em Viena, cujos habi-tantes se alarmaram. O bispo convocou o clero, e ele, ancião de seus 79 anos,deu a todos o bom exemplo trabalhando incansável nos hospitais da cidade edos arrabaldes. S. Clemente recebeu especial convite para os hospitais milita-res, onde dia e noite se cansava no cuidado espiritual e temporal dos pobresenfermos, esquecendo-se de si próprio, do sono e da fome para que aos doen-tes nada faltasse. Foi nessa ocasião que um soldado sem religião no auge dodesespero clamou ao avistar S. Clemente: “Venha aqui, que lhe quero arrancaros olhos”. S. Clemente foi ter com o infeliz e com suas palavras repassadas debondade e de fé converteu-o para Deus inoculando-se na alma sentimentos dearrependimento e de confiança em Deus. Muitos sacerdotes perderam sua vidanessa época de heroísmos. A S. Clemente Deus reservara para coisas maiorese mais importantes empreendimentos. As portas do apostolado em Viena esta-vam abertas dessa data em diante, ao nosso Santo.

Como nos hospitais militares de Viena havia uma infinidade de soldadosfranceses e italianos, foram destacados para o serviço dos soldados enfermostodos os sacerdotes da Capital, que pudessem prestar serviços nessas duaslínguas; entre esses distintos sacerdotes achava-se também o Pe. Luiz Virginio,Diretor da Igreja dos Italianos em Viena. Tendo Deus levado para melhor vida oPe. Virginio, que faleceu vítima de seus trabalhos em prol dos soldados, cujamoléstia contraíra, passou a direção da Igreja dos Italianos ao venerando Pe.Caselli, que não podendo lá trabalhar em virtude de sua idade avançada, rece-beu um coadjutor na pessoa de S. Clemente, a quem deu carta branca no ser-viço espiritual da igreja. Era pois S. Clemente quem desempenhava todas asfunções religiosas na vasta e bela igreja; o trabalho porém era pouco, porquequase não havia pregações durante o ano, e porque na quaresma, o únicotempo em que se podia anunciar a palavra de Deus, era costume chamar daItália algum orador de celebridade mundial, para deliciar os ouvidos dos italia-nos de Viena. O serviço principal de Clemente era o confessionário, onde elepassava boa parte do dia, sendo procurado mormente pelos polacos que residi-

am em Viena; aos poucos tornou-se bem considerável o núcleo de vienensesque se agrupavam ao redor do confessionário do nosso Santo.

Em 1809 os padres Mechitaristas6, acossados pelos franceses, de Triesteforam procuram um abrigo em Viena, onde o imperador lhes cedera o antigoconvento dos Capuchinhos. No princípio o povo assustado por aquelas figurasbarbadas e de rito tão diverso, não quis freqüentar a igreja dos recém-chega-dos. S. Clemente compreendendo o embaraço daqueles sacerdotes, foi ter comeles e lá permaneceu três semanas auxiliando-os no arranjo da casa, pregandoe ouvido as confissões, numa palavra, envidando os maiores esforços para queos Michitaristas fossem conhecidos e estimados do povo. É por esse motivo queesses religiosos, reconhecidos e gratos para com S. Clemente, lhe dão o honro-so nome de “Anjo da Guarda da Congregação”.

Como uma das virtudes mais características do nosso Santo era a cons-tância em todos os seus trabalhos, quando neles entrevia algum aumento daglória divina, ou algum proveito espiritual para as almas, permaneceu quatroanos quase inteiros na igreja dos Italianos a ouvir pacientemente as confissõesdas numerosas pessoas que o procuravam, e a apurar conversões estupendasque só Deus conhece. São Clemente pregava apenas uma ou outra vez nasigrejas dos arrabaldes de Viena, porém a sua pessoa não tardou a empolgar apopulação vienense. Crianças, jovens e adultos de todas as classes procura-vam avizinhar-se dele, para de seus lábios ouvirem falar de Deus e da religião.Um senhor de Würzburg que gostava de freqüentar a igreja dos Italianos, jánaquele tempo pôde escrever: “De 1811 a 1812 fui eu diversas vezes à igrejados Italianos, que se achava sob a direção do Pe. Clemente Maria Hofbauer;sua humildade e devoção edificaram-me tanto, que me parecia ver um anjo docéu. Desejava muito falar com esse distinto sacerdote, mas um notável númerode moços que o rodeavam, não me deixou chegar até ele; nunca em minha vidatinha eu visto um homem como o Pe. Clemente”. O nome de S. Clemente come-çava a ser pronunciado pelas altas rodas da cidade com admiração e amor; aspessoas mais distintas pelo nascimento ou pelas belas qualidades pessoaisalistaram-se no rol dos penitentes do nosso Santo, a quem abriam seus cora-ções. Uma das mais notáveis figuras femininas de Viena, Júlia Zichy, a maisnobre matrona da Capital, em a qual, como disse alguém, no mais puro ideal dofeminismo resplandecia a maior beleza, a expressão da inocência e da virtudeem toda a plenitude, depois de conhecer o Pe. Clemente, cuja vida santa e cujaciência sobre-humana admirava, deixou-se vencer pela graça e tomou-o pordiretor espiritual. O mesmo deu-se com a donzela distinta tanto por sua belezae espírito como por sua ilustração e nobreza de sentimentos, Nina Hartl; dei-xou-se guiar em tudo pela mão firme e santa de Clemente, encontrando na vidaaustera a maior consolação para sua alma.

Enquanto tudo parecia correr às mil maravilhas, preparava Deus amargosgolpes para o coração de São Clemente. A polícia continuava a persegui-lo semlhe permitir sossego. Ao perceber o governo que o arcebispo de Viena protegiaa Clemente dando-lhe até uma colocação na igreja dos Italianos, indignou-se eprotestou contra o Ordinário, que se defendeu com um tanto de azedume. Ochanceler Ugarte que em nome do governo, desejava ver o nosso Santo pelascostas, propôs a S. Clemente a alternativa: “Ou emigrar ou abandonar a Con-

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gregação que não era reconhecida na Áustria”. Clemente, torcendo da alterna-tiva, declarou querer terminar a vida em sua pátria. O nosso Santo assim res-pondeu ao chanceler porque nutria a convicção íntima de trabalhar pela Con-gregação e conseguir para ela a confirmação e a consolidação na Áustria.

Em Valais ia tudo bem como diziam cartas do Pe. Passerat. Os padresRedentoristas trabalhavam lá assiduamente na vinha do Senhor, e esperanço-sos olhavam para o futuro, pois que tinham vinte jovens a completar o estudo dafilosofia e teologia. Foi nessa ocasião que o Pe. Passerat, fatigado de tantosesforços, rogou a S. Clemente, se dignasse nomear o Pe. José Hofbauer Reitorda Suíça, pois que tudo estava em ordem e o futuro da Congregação parecia jágarantido. S. Clemente porém que pensava de outra forma escreveu ao Superi-or Geral; “Pe. Passerat é um homem extraordinário em prudência e piedade,exige de todos a observância exata das Regras e Constituições sendo em tudoa paciência personificada; possui extraordinário zelo e não foge dos trabalhosnem teme os perigos...; nele tem a Congregação o modelo de todas as virtudes;se aprouver a Deus chamar-me deste mundo, desejo e peço que ele seja meusucessor no cargo que ocupo”.

Não obstante toda a tranqüilidade do momento, Passerat procurava umlugar seguro de refúgio e suas vistas dirigiam-se para Würzburgo, e com razão,porque, como pressentira, ainda nesse mesmo ano Valais tornou-se um depar-tamento francês, passando os Redentoristas com essa mudança de governo asúditos de Napoleão, que os não podia tragar; era pois necessário fugir. Maspara onde? Na incerteza em ponto de tanta relevância foi a Viena consultar S.Clemente e o Núncio apostólico. Este opinou que em vista das circunstânciasalarmantes e excepcionais os padres deveriam continuar na Suíça trabalhandoe vivendo cada um em seu canto. Estava pois novamente dissolvida a Congre-gação além dos Alpes. Na Polônia e na Suíça viviam os padres, em grupos dedois, nas paróquias ou no seio das famílias. A única coisa que Clemente podiafazer era esperar e confiar em Deus, e para isto não havia lugar melhor do queViena, ainda mais que de lá lhe era mais fácil do que de qualquer outro lugar,entender-se e cartear-se com os confrades dispersos na Polônia e na Suíça.Sendo Viena a cidade mais central de toda a Europa, de la acompanharia commais facilidade os acontecimentos e com mais vantagem trabalharia na execu-ção dos seus gigantescos planos.

Entretanto o Pe. Passerat corria todos os países e cidades da Europa emprocura de um abrigo para os seus estudantes; rechaçado de todos os ladosnunca perdeu a coragem nem a confiança em Deus. Em Friburgo encontrouenfim uma casa, para onde transferiu os seus estudantes, que deveriam fre-qüentar a universidade lá existente, os outros padres permaneceram nos luga-res onde se achavam na Suíça e na Alsacia. Desejoso de conservar nos seuspadres o espírito religioso, não obstante as dificuldades dos tempos, Passeratvisitara ora um ora outro nas paróquias. Os que estavam mais perto iam procurá-lo em Friburgo. O quanto rezava Passerat por seus súditos testemunham seusdedos calejados de passar as contas do rosário. S. Clemente entregou por es-crito todas as suas faculdades de Vigário Geral ao Pe. Passerat, porque vigiadoe espionado sempre pela polícia não lhe era possível manter com a Suíça acorrespondência epistolar regular.

Na Polônia ia tudo de mal a pior. O governo do arquiducado de Varsóviacaíra em poder da loja, muitas igrejas foram profanadas e entregues a fins me-nos dignos. São Beno não conseguiu escapar à sorte infeliz: tornou-se primeiroarquivo nacional e depois cutelaria. Pobre Polônia! S. Clemente nunca maispôde olvidar a bela Polônia que ele amava sinceramente e onde derramara osprimeiros suores do seu intenso apostolado. As saudades torturavam-lhe o co-ração. Parecem não ser mais do que um eco das conversas prolongadas com oNúncio apostólico as palavras, que este escreveu ao bispo de Varsóvia: “Pode-remos ainda esperar a volta desse homem extraordinário e de seu Instituto aessa cidade? oh! quem dera, quem dera!”

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CAPÍTULO II

O primeiro ano em Santa ÚrsulaObrigações do Reitor da igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire gran-

de nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas.

Em 1813 houve uma pequena mudança na vida externa de S. Clemente.Falecendo nessa data o diretor espiritual das Irmãs Ursulinas de Viena, S. Cle-mente foi investido desse cargo pelo bispo Hohenwart, e nomeado Reitor daIgreja de Santa Úrsula. Com esse ato do Arcebispo de Viena S. Clemente davamais um passo para a realização dos seus grandes desejos: possuía enfim umaigreja da qual podia dispor e onde podia pregar a palavra de Deus livremente.

Como continuasse ainda no posto que tinha na igreja dos Italianos, deixoulá o Pe. Martinho Stark fazendo as suas vezes, enquanto ele com o Pe. Sabelli,que viera da Suíça, passou a residir na nova casa contínua à padaria “A pera deferro”. Dois quartos no andar superior e uma pequena sala de expediente for-mavam então a sua nova morada; mais tarde ele ocupou os outros dois aposen-tos do terceiro andar. As refeições vinham da cozinha do convento em umaespécie de marmita. A única obrigação a que se sujeitava aceitando o novocargo, consistia em ouvir semanalmente as confissões das religiosas. As confe-rências não estavam então em uso. Menos trabalho tinha ainda ele na igreja doconvento, porque lá não era costume fazer pregação, e além disso o Reitor daigreja era coadjuvado por um capelão. Não obstante, esse novo posto marcavaum dos pontos mais importantes para a vida de S. Clemente em Viena: pois queSta. Úrsula se tornou propriamente o lugar do seu apostolado na Capital daÁustria, como veremos adiante.

Empossado no seu cargo começou S. Clemente por reformar a igreja quelhe acabava de ser confiada: refez o assoalho, caiou as paredes, providenciouos bancos, encomendou novas estátuas, levantou novos altares, conseguiu novosparamentos para o Santo Sacrifício e para as demais funções do culto, introdu-ziu o cântico piedoso, celebrou com pompa as festas religiosas, numa palavra,reformou de tal modo a igreja, que nas imediações não se encontrava umaoutra que se lhe pudesse comparar. Vendo a boa vontade do Reitor, o povo nãose negou aos pedidos de S. Clemente: nunca lhe faltaram flores, velas, adornosnem dinheiro para a casa de Deus; São Clemente não conhecia economias. Asemana Santa, a festa de Corpus Christi e a adoração das quarenta horas eramcelebradas com toda a pompa na Igreja de Santa Úrsula. Para esse fim S. Cle-mente convidava sacerdotes e clérigos que abrilhantassem as cerimônias reli-giosas; não poucas vezes ia o próprio Núncio apostólico pontificar na Igreja deSanta Úrsula. O povo que já não estava habituado a essas solenidades afluía

de todos os pontos da cidade, de sorte que a igreja se tornava demasiado pe-quena para conter a multidão, que desejava assistir as santas cerimônias doculto que em sua beleza e majestade empolga os corações. Os sacerdotes dacidade percebendo o movimento religioso que se desenvolvia em a Igreja deSta. Úrsula, edificados com a devoção da multidão e com os cânticos devotosque ecoavam pelas abóbadas do templo, faziam questão de participar daqueleambiente de santidade e iam celebrar diariamente em Sta. Úrsula, de sorte quelá havia ininterruptamente missas desde manhã até o meio-dia. A polícia poucose incomodou com essas cerimônias proibidas pelo josefismo, porque os gran-des do império, entre eles o próprio irmão do imperador, freqüentavam a igrejae se edificavam com a piedade e devoção do povo. Aos poucos também outrasigrejas de Viena começaram a imitar o Reitor de Sta. Úrsula.

Esse movimento todo porém não se realizou da noite para o dia. Só com otempo, com paciência e com um trabalho aturado é que se pôde desfazer aprevenção de um povo. Já no primeiro domingo depois de empossado no cargo,perguntou Clemente a que hora costumava ser a pregação naquela igreja. Ou-vindo não ser costume pregar em Viena senão nas maiores festividades do ano,o novo Reitor admirou-se e mandou ao sacristão tocar festivamente para que opovo soubesse que lá haveria pregação naquele dia; embora no princípio, sópoucas pessoas fossem à igreja nem por isso deixava ele de anunciar a palavradivina; pregou sempre todos os domingos e dias santificados. A pregação erapara ele uma necessidade, queria converter o mundo inteiro e naqueles temposcalamitosos, a pregação era quase que o único meio de restabelecer a fé emtantas inteligências extraviadas e de afervorar a piedade nos corações bemintencionados.

E, coisa admirável, o povo começou a interessar-se pelas pregaçõessubstanciosas de S. Clemente, de sorte que a igreja se enchia já muito antes decomeçarem as cerimônias, devendo o resto ouvir as pregações das ruas e doslargos; e entre os ouvintes de Clemente não se encontravam apenas velhas ecrianças, empregadas ou cozinheiras, mas também pessoas da mais fina soci-edade, homens de peso e de talento, doutores e professores e até pregadoresde fama, que iam a Santa Úrsula aprender o segredo de empolgar o povo. Osprimeiros anos do esconderijo do Santo tinham pois desaparecido; seu nomede pregador era pronunciado com admiração e amor em quase toda a cidadede Viena, e seu confessionário permanecia assediado desde a manhã até aomeio-dia. Com o aumento diário do trabalho em sua igreja viu-se ele obrigado alevantar-se diariamente as quatro horas da manhã, às vezes até um poucoantes; para não perder a hora, na falta de um despertador, combinou com oguarda noturno da cidade que o despertasse. Depois da meditação ia ao con-fessionário, donde não se levantava antes das 10 horas em que subia ao altarpara o santo Sacrifício.

Duas vezes por semana levantava-se ainda mais cedo porque costumavalevar à igreja dos Mechitaristas, distante meia hora, pão e outros objetos paraos pobres que lá se reuniam. À tarde fazia suas excursões pela cidade e pelosarrabaldes em visita aos pobres, doentes e moribundos. Quantas vezes não selevantou ele, alta hora da noite, o solidéu na cabeça e uma lanternazinha namão para sacramentar moribundos nos arrabaldes da cidade!

CAPÍTULO III

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O Congresso de VienaClemente na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela

religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dosbastidores — Trabalho depois do Congresso.

As guerras contínuas daqueles anos arruinaram política e economicamen-te a Europa inteira, que se sentiu aliviada com a derrota final do imperador dosfranceses, que terminou sua vida no exílio de Sta. Helena. A Igreja ressentiu-seimensamente de todas essas devastações. Wessenberg descreve o estadotristíssimo em que se achava a religião na Alemanha e Áustria do modo seguin-te: “Há doze anos que a Igreja na Alemanha, a qual antes gozava do maioresplendor, se acha em um estado de abandono sem igual na história. Rouba-ram-lhe os bens que possuía, subtraíram-lhe o apoio legal às suas mais antigasConstituições; negaram a subvenção a seus estabelecimentos e institutos maisessenciais; os bispados acham-se devastados, o cabido catedrático está a expi-rar, sua atividade reprimida, a execução de suas leis impedida”. A todos essesabusos deveria o Congresso de Viena trazer um remédio eficaz. Segundo odisposto no tratado de Paris de 10 de maio de 1814, reuniram-se as potênciaseuropéias em Viena para tratar da reorganização da Europa, cujo equilibro pe-recera de todo. Nesse grande senado europeu estiveram pessoalmente pre-sentes os monarcas da Prússia, da Rússia e da Áustria com a maior parte dossoberanos secundários da Alemanha. O Papa foi representado pelo cardealGonsalvi.

Nesse congresso reunido em fins de setembro de 1814 tratou-se, entreoutras coisas, da abolição do decreto sobre as nomeações dos bispos, poisque, por causa dele, das trinta e quatro dioceses só cinco estavam providas.Para o provimento desses bispados foram apresentadas duas listas, numa dasquais se achava o nome de Clemente; corria o boato de que S. Clemente serianomeado bispo dos Balcãs; isso causou protesto entre os numerosos amigosdo Santo, que o reclamavam para qualquer diocese na Áustria ou na Alemanha.Severoli escreveu ao cardeal Litta: “A estima que esse homem goza na Alema-nha é muito grande, porque ele conhece as necessidades do povo em todos ossentidos... V. Excia. o ficou conhecendo qual Jeremias por seus lamentos... masesteja certo que ele é também um Daniel por sua prudência e um grande Santoem sua vida”. E Litta respondeu: “... aprovo o plano de dar ao Pe. Clemente umbispado na Alemanha; fique certo de que terei imenso prazer se isso se der”.Isso tudo porém ficou sem efeito devido ao mau êxito da concordata entre aAlemanha e a Santa Sé.

O maior perigo para a Igreja na Alemanha e na Áustria não era tanto a suadesorganização externa mas sim a desorientação dos seus governantes. A par-te mais influente do clero, inspirada por Wessenberg que governava a diocesede Constança na qualidade de vigário geral de Dalberg, primaz da Germânia,pretendia a emancipação completa e absoluta do episcopado alemão em rela-ção à Cúria Romana; com outras palavras, trabalhava para a formação de umaIgreja nacional e independente. O Núncio Severoli que esperava tudo do Con-gresso, já meses antes começara os preparativos, aprontara os papéis, tomaraas informações necessárias, aconselhara-se com todos os católicos de nomena Áustria, e de um modo todo especial, com S. Clemente, cuja prudência ezelo apostólico faziam jus à admiração universal. Em princípios de setembroescrevera ao cardeal Litta: “O nosso Pe. Clemente tem idéias grandiosas; dese-jara que ele estivesse em Roma para expor tudo a V. Eminência”. Uma dessasidéias grandiosas, de que fala o Núncio, era estreitar e tornar mais íntimas asrelações entre Roma e a Germânia, o que se poderia facilmente conseguir, pelointeresse que Roma deveria tomar pelas coisas e pelo povo do Norte e pelaabertura de um grande Colégio em Roma para os alemães, que assim entrari-am em contato com a Igreja, amando-a com mais calor, trabalhando por elacom melhor vontade. O nosso Santo lamentava amargamente o pouco interes-se manifestado em Roma e a pouca vontade de ela se amoldar ao gênio e aomodo de pensar dos germanos, cujos corações com facilidade se poderiamentusiasmar pelas belezas e grandeza da Igreja de Roma.

Não obstante tudo isso era grande a esperança no resultado do Congres-so, do qual dependeria a prosperidade da religião de Nosso Senhor na Europa.

Foi providencial a estada de S. Clemente em Viena nessa época, comoveremos em breve.

Os príncipes congressistas pouco ou nada se interessavam pela religião,tendo em vista apenas o bem material e financeiro dos seus Estados e reinos. Oúnico que de coração se batia pela causa de Deus era o príncipe da Baviera.Entre os que deviam defender a Igreja, havia grande deficiência e desunião devistas; o cardeal Gonsalvi, representante da Santa Sé, estava pouco enfronhadonos negócios e intenções da Alemanha. Severoli carecia de toda influência; otrunfo do Congresso era Wessenberg que representava o arcebispo Dalberg.Diplomata consumado sabia torcer-se para todos os lados, distribuindo sorrisosa gregos e troianos; por suas maneiras gentis, suas palavras amáveis e suapouca consciência soube conquistar a simpatia dos príncipes e dos adeptos dojosefismo, e como maçom que era, envidou todos os esforços, abusando dasua influência, para conseguir a formação da igreja nacional. A seu lado eramincansáveis os representantes da Prússia, Hannover, Nassau e Münster. O pró-prio cardeal Gonsalvi, que nada suspeitava de Wessenberg, em cuja probidadeconfiava cegamente, não poucas vezes a ele se dirigiu pedindo conselhos econsultando-o em questões da maior relevância.

A defesa dos interesses da Igreja estava toda nas mãos de três homens,que agiam independentes e em nome próprio, a saber o barão Francisco deWambold, José Helfferich, deão de Spira, e José Spies, sacerdote de Worms;junto com eles agia incansavelmente José Schlegel, adido ao ministério do Ex-terior na Áustria. Só por um verdadeiro milagre explica-se o fato de poderem

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esses três homens, aliás sem influência extraordinária, resistir a todos os diplo-matas do Congresso, que não eram poucos, e impedir a realização dos planosde Wessenberg e de todos os seus grandes amigos e admiradores. Atrás dosbastidores trabalhava um outro, que por sua prudência e santidade valia maisque todos eles: era S. Clemente. O Reitor da Igreja de Santa Úrsula, emboranão tivesse assento no Congresso, nada deixou por fazer a fim de evitar a ca-tástrofe tão sinistra, que parecia inevitável. Não passava um dia, sem queHelfferich fosse ter com S. Clemente a examinar com ele os papéis e as propos-tas que iria fazer no Congresso, a provar os argumentos e os arrazoados quepretendia desenvolver com energia na presença dos nobres Congressistas. Osoutros amigos e discípulos de São Clemente preparavam a opinião pública pormeio de artigos calorosos nos principais diários de Viena, expondo com clarezae entusiasmo o que ouviam do seu Mestre; até o príncipe da Baviera ia pedir asinstruções e os conselhos de Clemente, que tomara por confessor nos dias dasua estada em Viena; é notório que ele uma vez ficou conferenciando com oReitor de Santa Úrsula das 8 horas da noite até à 2 da madrugada ventilandoas mais intrincadas questões e dilucidando os pontos mais importantes a tratar-se na seguinte sessão do Congresso. Zacharias Werner, o discípulo e amigo deS. Clemente, recebeu de seu Diretor ordem expressa de pregar em todas asigrejas de Viena, durante o tempo do Congresso, sobre os pontos religiosos emdiscussão orientando o povo e preparando os ânimos. A forma literária de seussermões, sua conversão sensacional, seu modo original de expor as teses, suabela linguagem, suas descrições poéticas e franqueza rude atraíam as multi-dões para a igreja onde pregava; a afluência, por vezes, era tamanha, que al-guns por falta de espaço no templo, subiam em cima dos altares e dos confes-sionários para não perderem a ocasião de ouvi-lo. O inspirador de ZachariasWerner era o nosso Santo que, em tudo isto, visava o triunfo da Igreja e a glóriade Deus.

Se Clemente não conseguiu quanto desejava do Congresso, teve a glóriade salvar a Áustria do cisma que a ameaçava, e de destruir por completo osplanos da separação excogitados e defendidos pelo poderoso Wessenberg. Essavitória foi uma das mais gloriosas, que S. Clemente alcançou em sua vida.

Terminado o Congresso, o nosso Santo não quis descansar à sombra doslouros colhidos; colocou-se de atalaia para que não perigasse o que com tantoesforço conseguira. Em qualquer perigo mobilizava os seus, e com exatidãopunha Roma ao par de tudo quanto se passava na Áustria. Em 2 de julho de1818 escreveu entre lágrimas a Pio VII, expondo-lhe as dificuldades da Igrejaem sua Pátria e os perigos que lá ameaçavam a cristandade. “Não tememospela Igreja, cuja pedra fundamental foi lançada por Jesus Cristo, mas receamosuma lamentável separação, cujos inícios parece-nos já perceber, e essa sepa-ração começa a efetuar-se com tanta petulância e progride tão espantosamen-te, que quase já não podemos esperar consolação nem auxílio senão do céu,da intercessão dos Santos”.

Clemente entretanto rezava com insistência pela conversão dos que per-seguiam a Santa religião. Dalberg, logo depois do Congresso converteu-se sin-ceramente, separou-se de Wessenberg, detestou sua ação separatista e mui-tas vezes repetia a seus alunos em Ratisbona: Meus senhores, não andeis com

o mundo; eu confiei nele, e o mundo me enganou vergonhosamente; não confieisnele mas permanecei fiéis à Igreja”. Dalberg teve uma morte edificante em 1817.Vagando com sua morte a diocese de Constança S. Clemente apressou-se aescrever a Roma, em nome do Núncio Severoli, apresentando para sucessorde Dalberg o seu amigo Wambold, o grande batalhador pela causa da Igreja.Com esse último ato S. Clemente terminou a obra grandiosa que começara noCongresso de Viena: destruiu os planos dos inimigos da Igreja e consolidou aobra de Cristo assegurando-lhe brilhante futuro.

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CAPÍTULO IV

O sábio pregadorExposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcioná-

rio josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos —Apreciações populares — Proibição de pregar...

São Clemente era um sacerdote e um apóstolo segundo o coração de Deus;exercia o munus sacerdotal com santo entusiasmo e escrupulosa exatidão; nessaesfera de pregador e diretor de almas é que ele se mostrou, à evidência, overdadeiro apóstolo de Viena. O modo original com que se havia no exercíciodesse cargo, tornou-o popular na grande Capital e rompeu com todo o pedan-tismo introduzido pelo josefismo na Áustria. Um professor de teologia pastoralem uma preleção científica sobre as medidas de prudência a tomar-se na admi-nistração dos sacramentos aos enfermos, notou que conhecia em Viena umsacerdote muito distinto que não observava nenhuma das regras expostas eque, não obstante, conseguia os mais estupendos resultados: era São Clemen-te. Essas palavras referiam-se a todo o seu apostolado que se distinguia e so-bressaia pela sua originalidade; por isso nem todas as particularidades da suaatividade apostólica são para todos indistintamente a serem imitadas literal-mente. O jovem sacerdote Dom Pajalich edificado e encantado com o resultadoobtido por S. Clemente, quis em tudo imitar seu mestre, mas saiu-se mal: assimcomeçou a andar pelas ruas da cidade de cabeça descoberta, como o faziasempre S. Clemente, mas as vaias estrondosas da criançada fizeram-lhe cobri-la novamente; entrou uma vez sem cerimônias na casa de um luterano paraconvertê-lo, mas foi tão infeliz que quase não teve tempo de abrir a boca, por-que o despediram logo pela porta fora etc. São Clemente, nesse particular doapostolado, era simplesmente inimitável. Zacharias Werner dizia acertadamen-te referindo-se a ele: “Não há outro como ele; da boca desse homem fala oEspírito Santo”.

Para termos uma idéia mais ou menos nítida e certa da atividade apostóli-ca de S. Clemente basta-nos contemplá-lo no púlpito, no confessionário, aoaltar, à cabeceira dos doentes, no seio das famílias, e até nas ruas da cidade,nas suas relações com as diversas classes da sociedade, no seu modo de agircomo diretor das religiosas e como superior do convento.

Como temos visto em diversos lugares desta biografia, Clemente celebrizara-se em toda a parte na qualidade de pregador fluente e arrebatador.

Não possuímos na íntegra nenhum sermão de São Clemente, porque elenão costumava escrever os sermões nem mesmo os esboços; os seus contem-porâneos dão-nos porém informações exatas do seu modo de pregar. Seus

sermões não eram pregações temáticas nem homilias propriamente ditas, masqualquer coisa intermediária entre essas duas espécies de manifestação orató-ria. Do púlpito ou do altar lia o Evangelho ao povo, e durante a leitura intercalavaobservações oportunas; continuava em seguida, sentença por sentença, demo-rando-se em uma menos e em outra mais, explicando em cada uma delas umdogma da fé ou um mandamento qualquer; com os princípios do Evangelhoconfrontava os costumes em voga e as idéias do tempo, exortando sempre compalavras quentes e insinuantes a que todos se convertessem e praticassem avirtude e a piedade. Por vezes acontecia que em um só sermão tratava deassuntos diversos; assim, p. ex., na festa do nome de Maria a 10 de setembrofalou ele sobre a santificação do domingo, a infalibilidade da Igreja, a devoção aNossa Senhora e a vida religiosa. S. Clemente não era orador; a sua estada noestrangeiro durante muitos anos pode ter sido causa de a sua linguagemvernácula não ser castiça nem escorreita. Ele pouco se preocupava com a ele-gância da forma; vestia seus possantes pensamentos em roupagem simples,repetindo e repisando muitas expressões que se tornaram estereotípicas. Enão obstante, S. Clemente empolgava e eletrizava como nenhum outro prega-dor em Viena; sabia o segredo de arrebatar enchendo as almas de uma unçãosobrenatural, de sorte que até os mais eruditos profundamente consternadosdiziam: “Uma só palavra da sua boca basta-nos para a semana inteira”. Emparte explica-se isso por ser seu modo de pregar um contraste com o adotadoem Viena e pelo tom de convicção e de fé com que São Clemente discorriasobre as verdades da religião; mas o segredo dessa força mágica está na san-tidade de Clemente e no seu zelo apostólico.

A simplicidade da sua pregação não prejudicava em nada a profundeza eperfeição de suas explicações e argumentações, e não o impedia de expenderseus vastos conhecimentos da Escritura e dos Santos Padres. Com facilidadeestupenda sabia explicar e expor a seus ouvintes os mais profundos mistériosda fé satisfazendo igualmente aos ignorantes e aos doutos.

Muitos iam assistir os sermões de Clemente com o fim de ridicularizar aoração e o orador; entravam no templo e, logo às primeiras palavras, ficavampresos pela eloqüência, pela convicção e unção sobrenatural do Santo, voltan-do para casa contritos e, muitas vezes, confessados.

Uma vez um jovem médico, passando pela Rua de São João em Viena viuimensa multidão de povo atropelar-se para entrar na Igreja de Sta. Úrsula comose lá houvesse alguma representação teatral, algum cinema ou coisa seme-lhante. Admirado perguntou pela causa de tão estranho movimento; a respostafoi: “O Pe. Clemente vai pregar”. A curiosidade subjugou-o, entrou; o pregadorarrebatado falava sobre a necessidade que têm os homens de trabalhar para asalvação de sua alma; expunha com clareza que o céu não se compra comfortunas, honrosas patentes, belos títulos ou robusta saúde, mas sim com a boavontade, com o desejo sincero e efetivo de cumprir a vontade de Deus. O médi-co gostou da pregação e desde aquele dia não perdeu mais nenhum sermão daIgreja de Sta. Úrsula.

Um outro senhor vivia em Viena como funcionário público, admirador pro-fundo do imperador e adepto fanático do josefismo, cujos princípios mais lhesabiam do que as máximas do Evangelho. Como muitos do seu tempo, formara-

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se ele a sua religião que praticava ou não de acordo com os seus caprichos,nada detestava tanto como aquilo que costumava denominar fanatismo religio-so, porquanto seu íntimo se revoltava sempre contra a intolerância da IgrejaCatólica, que reprova as outras religiões impondo aos homens dogmas incom-preensíveis e contrários à razão humana.

Por felicidade o velho funcionário tinha um amigo, que embora antes co-mungasse com as suas idéias, agora lhe falava do célebre pregador de SantaÚrsula, dos doutores que o ouviam com religiosa atenção e das conversõesmaravilhosas que ele operava em Viena. Mais por atenção para com o amigo doque por outro motivo, foi ele também ouvir as pregações de Clemente, e debu-lhado em lágrimas de comoção voltou para a casa sinceramente convertido,abjurando o josefismo e tornando-se um católico prático. Mais tarde, referindo-se a essa sua conversão, admirava-se de como isso sucedera; para ele era ummistério a sua conversão; nenhum dos muitos oradores por ele apreciados lo-grara convertê-lo de josefino em católico fervoroso. Tais pecadores converteu-os São Clemente aos milhares com a sua pregação e conseguiu até entusias-mar os hereges pelas belezas da santa Igreja Católica.

Mais interessante ainda é que a não poucos dos amigos, veneradores eaté futuros membros da Congregação, Clemente conquistou-se dentre os queiam a suas pregações para o ridicularizarem. Uma vez percebeu S. Clementeque alguns estudantes falavam e se riam durante a pregação. Sem perder osangue frio, voltou-se para eles com as palavras: “Meus senhores, continuai arir, mas quem se rir por último rirá melhor”. Foi o suficiente para encher devergonha e de arrependimento os jovens que mudaram de vida.

Se era apostólica a sua simplicidade, não o era menos o modo com quepregava; falava com vivacidade, entusiasmo, ardor e sentimento tal que não sóconvencia, mas também prendia e arrebatava. “No púlpito, disse o cônego Veith,seu rosto se transfigurava dando-lhe as aparências de um Serafim”. Suas pala-vras eram chamas ardentes que inflamavam os corações, e espadas que tras-passavam as almas.

“Percebia-se perfeitamente, contra a Irmã Thadéa, que o Pe. Clemente nãoprocurava a si próprio nas pregações mas tão somente a glória de Deus e obem das almas; falava com força e vida, inflamado de zelo ardente; suas pala-vras saiam do coração e por isso penetravam também os corações; não discor-ria com doutas palavras de humana sabedoria, mas com a doutrina do Espírito;por isso os que ouviam as suas pregações não podiam resistir e davam-se porvencidos”. Mais adiante acrescenta a mesma Irmã: “Durante as suas pregaçõesreinava um silêncio sepulcral entre os numerosos ouvintes, que freqüentes ve-zes se sentiram comovidos a ponto de não poderem conter as lágrimas e repri-mir os soluços”.

Nem no auge do maior entusiasmo perdia Clemente a dignidade e a calmaem seus movimentos e gestos; na expressão do seu rosto e na viveza de seusolhos estampava-se a sua convicção profunda e fé viva. As vezes a sua açãoexpressiva produzia maior efeito do que suas palavras. Discorrendo, uma vez,sobre o mistério da Encarnação ao pronunciar as palavras: “Ele assumiu a nos-sa natureza, revestiu-se da nossa carne” bateu as mãos com tanta gravidade ecomoção que arrancou lágrimas aos ouvintes dissipando qualquer dúvida pos-

sível sobre a divindade e a humanidade de Cristo.Naquele tempo, desde José II, já não se ouvia mais sermão algum genui-

namente católico em Viena, porque quase não se falava mais nas verdades dafé, mas quase exclusivamente em elegantes e agradáveis temas, como: cristia-nismo, filantropia etc. Muito significativa é a observação que faz um discípulo denosso Santo, de que a pregação sobre a Igreja católica era coisa tão rara, queos moços se alegravam quando o orador proferia a palavra “Santa Igreja Cató-lica”. As pregações de S. Clemente produziam o efeito das bombas. Eucaristia,culto da Virgem e dos Santos, confissão, indulgências, purgatório, inferno, de-mônio, eram temas proibidos então pelo josefismo, mas verdades que S. Cle-mente expunha no púlpito com a maior clareza e firmeza. O tema prediletoporém era a Igreja e sua autoridade. São Clemente ressuscitou em Viena apregação católica; a sua expressão física contrastava imensamente com a poseelegante e vaidosa dos pregadores da moda; ele era um pregador popular nosentido verdadeiro da palavra: falava segundo as impressões do momento enão segundo esboços aprendidos.

Quem ouvia o servo de Deus não se sentia somente satisfeito; voltavamudado para a casa. “Ficava-se banhado em lágrimas, odiava-se o pecado eabraçava-se resolutamente a virtude”, diz resumindo, um dos ouvintes do nos-so Santo. Não era raro ficarem homens esperando na sacristia a volta de Cle-mente para fazerem a sua confissão. A pregação de Clemente era a revelaçãoda fé que quase atingia os limites da visão; não argumentava muito, mas anun-ciava como quem via, ouvia ou tocava, sendo seus sermões verdadeiros atosde fé.

Dentre os atributos divinos gostava Clemente de salientar a misericórdiainfinita do Eterno. Mesmo quando falando da Justiça esmagava os corações,reanimava-os com a confiança na misericórdia sem limites de Deus descreven-do com vivas cores e ternura filial o amor de Jesus Cristo, o sangue que derra-mou e a morte que por nós sofreu.

Esforçava-se por consolar os pusilânimes e reanimar os tímidos, e com vozcomovida repetia com freqüência: Jesus, filho de Davi, tende compaixão denós, e Porque queres perecer, casa de Israel?

Era tocante quando nas prédicas sobre o Santíssimo Sacramento, subju-gado pelo amor, se ajoelhava no púlpito para adorar o Deus sacramentado;nessas ocasiões ele parecia um Serafim e de seus olhos abertos saiam raiosde amor, que se concentravam na Hóstia consagrada.

O seu auditório compunha-se geralmente de pessoas simples; não falta-vam todavia representantes de todas as classes; estudantes, literatos, artistas,funcionários públicos, aristocratas etc.; Clemente porém nunca sucumbiu à ten-tação, aliás comum aos oradores, de sacrificar o povo simples para agradar àclasse erudita, talvez até nunca sentiu essa tentação nem mesmo quando aopé do púlpito via os seus grandes e eruditíssimos amigos. O seu princípio erasempre o mesmo: pregar com toda a simplicidade de modo a ser compreendidopelo mais ignorante dos ouvintes e até pelas crianças. S. Clemente que comsua pregação simples conseguiu empolgar homens de envergadura intelectualde um Werner, Günther, bem como estudantes e professores das universida-des, é uma prova evidente de que a pregação genuinamente católica agrada e

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satisfaz tanto a pequenos como a grandes, a sábios como a indoutos. É certoque nem todos os pregadores podem ser como S. Clemente, ao qual faltaramos atrativos naturais, mas não os encantos da fé e de uma convicção profunda.Clemente recebera de Deus a missão de esmagar os pregadores da moda, quese perdiam nas frases rebuscadas com detrimento da clareza requerida pelasverdades religiosas. O povo notara logo a diferença; não era raro ouvir-se: “Queresouvir um orador brilhante? vai à igreja tal; queres porém ouvir um apóstolo, vaia Santa Úrsula, onde prega o Pe. Clemente”.

A pregação de Clemente tornou-se em breve um espinho aos olhos dogoverno josefino e da polícia austríaca; temiam farisaicamente que, por essaspregações, os austríacos se tornassem ultramontanos e quisessem obedecermais ao Papa do que ao Imperador; olhavam tudo aquilo com um fanatismoperigoso, que as autoridades deviam abafar, ainda mais que as leis austríacasproibiam terminantemente esse exagero de pregações, mormente a cerimôniada bênção papal que Clemente dava quatro vezes ao ano, sem haver para issorequerido licença do governo.

O resultado foi uma ordem da polícia em 1816, que proibia de vez a Cle-mente, pregar em Viena ou onde quer que fosse na Áustria. Ao receber essaproibição Clemente sentiu o seu coração como que estracinhado; teve compai-xão de milhares de almas que ficariam para sempre privadas do pão da palavrade Deus. Mas não havia remédio; Clemente teve que sujeitar-se e de fato, cur-vou sua fronte confiado na proteção divina. No domingo seguinte calaram-se ossinos, mas o povo afluiu da mesma forma. O Reitor da Igreja ao ver a massaque se apinhava no templo, sentiu tentação de transgredir a ordem recebidados homens, mas soube conter-se; de sobrepeliz e estola subiu ao púlpito edepois de lido o Evangelho, com voz entrecortada e trêmula começou: “Mascaros irmãos, foi-me proibido fazer-vos pregações para o futuro, e eu devo obe-decer; no santo Sacrifício da missa pedirei a Deus, se digne inspirar a cada umde vós, o que eu hoje queria pregar”. O povo desatou em prantos e soluços,indignando-se uns e chorando outros, de sorte que o próprio governo se deixouintimidar e retraiu nos dias seguintes a proibição que fizera a São Clemente.

Esse golpe tão brusco quão inoportuno serviu apenas para preparar aindamais os ânimos, encher as almas de admiração pela pessoa do Reitor de SantaÚrsula, e animar o Apóstolo à anunciar sempre mais destemidamente o Evan-gelho, segundo a ordem do divino Mestre: “Ide e ensinai todas as gentes... ensi-nando-as a observar todas as coisas que vos tenho mandado (Mt 28,19-20).

O leitor poderá ainda, levado de uma inocente curiosidade, perguntar, como éque S. Clemente se preparava para as suas pregações. As muitas ocupações epreocupações da vida apostólica não lhe permitiam dedicar muito tempo à prepa-ração; no princípio da semana lia o Evangelho do próximo domingo, meditando eponderando cada palavra e, nessa meditação, os pensamentos assaltavam-no emmultidão; aos sábados, à noite, ordenava as idéias e os argumentos de acordo coma lógica e a psicologia; só então é que regularmente subia ao púlpito. Sem prepara-ção, embora breve, ele nunca pregou, porque sabia que do contrário tentaria aDeus e faltaria ao respeito devido à palavra divina. Uma vez Clemente perguntou aum dos seus amigos: “Qual é a melhor preparação para a pregação?” e sem espe-rar a resposta apontou para os joelhos dizendo: “a oração é a coisa principal naspregações”.

CAPÍTULO V

O zeloso auxiliar nas pregaçõesConversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador

dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo —Esses moleques...

Com certeza o leitor ainda se recordará da cena tristíssima que Varsóviapresenciou em 1808, quando S. Clemente, internado numa carruagem todafechada, o terço a deslizar-lhe pelos dedos, foi expulso do seu querido conventode S. Beno e conduzido ao exílio, à fortaleza de Küstrin perto de Berlim. Um dosprincipais perseguidores dos Redentoristas e mais encarniçados inimigos deClemente, foi um funcionário prussiano, de estatura elegante, estilo fluente, fan-tasia viva acalentada por uma veia poética arrebatadora. Chamava-se ZachariasWerner; filho de sua época, joguete das mais desenfreadas paixões, só procu-rava os divertimentos mundanos; educado no protestantismo pusera sua pena,aliás brilhante, a serviço da heresia compondo poesias, romances, peças tea-trais, vazadas nos moldes do filosofismo de Kant, atacando o clero, a Igreja, ojesuitismo etc. Seus amigos prediletos eram Rousseau, Goethe e Schiller, quelhe representavam o expoente máximo da cultura e da inteligência humana.Além de adepto do josefismo e da maçonaria levava vida licenciosa, pois quealém das três mulheres que possuía simultaneamente, era, em Varsóvia, o es-cândalo das boas famílias. Poeta fino e artista consumado introduziu-se Wernerna mais alta sociedade européia, mas descontente e irrequieto ia de cidade emcidade em procura de novos gozos e prazeres, até que, quas sem o perceber,chegou a Roma; ao penetrar os umbrais da cidade dos Papas, o seu coraçãosuspirou e sua alma vibrou aos bafejos das auras acalentadas do Sul; seusolhos ficaram-se naquelas monumentos da fé enquanto que seus lábios, enter-necidos e arrependidos, pronunciavam a prece que brotava espontaneamentedo seu coração. E a oração salvou-o; retirou-se à solidão, meditou as verdadeseternas, e qual outro Saul no caminho de Damasco, levantou-se convertido edecidido a pertencer inteiramente à Igreja católica, a única que apresenta e dáa seus filhos paz e sossego, verdade e esperança. A 19 de abril de 1810 ZachariasWerner abraçou a religião, da qual, três anos depois, se constituiu ministro pelaordenação sacerdotal. Por seu temperamento sangüíneo era volúvel e incons-tante passando bruscamente do auge do entusiasmo ao mais completo abati-mento moral. Necessitava pois de um guia seguro e prudente; ao chegar a Vie-na encontrou-o em S. Clemente, que ele outrora perseguira, mas que agora lheestendia amavelmente as mãos pronto a encaminhá-lo na vereda do céu pelasárduas montanhas da perfeição cristã. Desde então a história de Werner é

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inseparável da de São Clemente, o qual, vendo em seu amigo as qualidadesexcepcionais e os dotes admiráveis que Deus lhe concedera tão prodigamente,procurou servir-se delas para a difusão do reino de Deus e a salvação dasalmas. A fama literária de Werner, os ecos da sua antiga vida efeminada, oscomentários que sobre ele se faziam abertamente, atraiam as multidões para aIgreja de Santo Agostinho onde pregava o antigo discípulo de Schiller e Goethe.A impressão causada por Werner na tribuna era deslumbrante. A figura esbelta,o rosto pálido, as sobrancelhas cerradas e negras, os cabelos compridos quelhe caiam em cachos abundantes sobre os ombros preparavam o auditório; equando ele descerrava os seus lábios e com a magia da sua palavra inflamadadescrevia a felicidade, que goza um católico no seio da sua Igreja, e depois,abrindo sua alma e apelando para sua experiência própria, expunha a insipidezdo luteranismo ou pintava ao vivo o contentamento e o bem estar que se senteno estado de graça santificante, um como choque elétrico tocava os milharesde corações que o ouviam, não havendo quem pudesse resistir às suas pala-vras fascinantes. Quando sua fantasia se inflamava e com ardente fervor invo-cava as musas mais fagueiras, a poesia jorrava em borbotões de seus lábiostrêmulos a descrever os magníficos quadros da formosa Itália, onde em ondasde púrpura o sol se esconde por entre os píncaros dos Apeninos; os ouvintestinham então a sensação do assombro, ficando indelevelmente gravada em osespíritos e corações a lembrança das verdades da fé, que o orador nunca dei-xava de ligar a seus quadros. Quando com voz possante anunciava ao povo osterrores do juízo final, ou abria ante seus olhos os abismos infernais, pareciaum dos velhos profetas ressuscitados, e o temor e o espanto se estampavamnos rostos dos ouvintes que tremiam diante do juiz eterno. É por causa dessessermões impressionantes que São Clemente lhe pusera o nome de “trombetado juízo universal”. Quando, pelo contrário, o pregador poeta, com uma humil-dade impressionável, falava dos desvarios da sua vida passada e mostrava amisericórdia com que Deus o tirara do abismo da perdição, corriam-lhe as lágri-mas pelas faces e os ouvintes choravam de comoção. Werner era original emsuas pregações; não se perdia em frases vazias, mas fazia transpirar a convic-ção íntima de que se achava possuído, era o pregador dos eruditos e literatos.As suas pregações puseram toda Viena em movimento; durante o famoso Con-gresso de 1815 todos os reis e príncipes congressistas foram ouvir o maravilho-so pregador. Ora esse homem tão grande aos olhos do mundo, era como umacriança nas mãos de S. Clemente, em cuja escola ia constantemente aprendera arte da pregação apostólica; obedecia-lhe em tudo, porque nele via o homemde Deus, o oráculo do Espírito Santo. Do seu lado, Clemente que o estimava,não poupava esforços para lhe mostrar o caminho seguro da perfeição.

Num domingo voltara Werner de uma estação de águas num carro, que lhemoeu o corpo inteiro; embora extenuado foi cumprimentar seu bom amigo nasacristia da Igreja das Ursulinas. Sucedeu chegar ele justamente na hora, emque no coro se cantava o solo para a pregação. S. Clemente sem mais preâm-bulos mandou a Werner subir ao púlpito, ao que ele respondeu: “Como? se eunão tive tempo nem de ler o Evangelho?” Clemente respondeu secamente: “Issonão é desculpa”. Werner curvou-se, fez o sacrifício acrescentando: “A isso nin-guém poderia obrigar senão V. Revma. a quem obedeço com gosto e alegria”.

Uma vez ao pregar em Santa Úrsula escapou a Werner uma expressãoque cheirava ao protestantismo, e S. Clemente ouviu o sermão inteiro, sentadona sacristia. Terminada a alocução desceu Werner, mas ao entrar na sacristiaouviu dos lábios de seu Mestre: “O que hoje disseste não era católico, e por issono próximo domingo tens de retificá-lo”. E Werner obedeceu.

Como Werner era, por natureza, altivo e voluntarioso, S. Clemente nãoperdia vaza para humilhá-lo às vezes até com certa aspereza. “Werner é atrombeta de Deus, dizia ele, mas o seu orgulho prussiano nunca se poderábastantemente rebater”.

Werner depois da sua conversão não abandonou a pena que sempre ma-nejara com maestria. Compôs peças teatrais, romances, poesias tão lindas,que ele mesmo se deliciava em sua leitura, e não raras vezes quis repartir aalegria com seu querido Diretor, esperando naturalmente os parabéns. Cle-mente porém levantava apenas o dedo e movendo-o dizia: “Dalila” como sedissesse: “Cuidado, meu filho, como Dalila seduziu Sansão e foi a sua ruína,assim também a tua poesia será a tua ruína, se te ensoberbeceres”. Werner,qual criança amorosa, procurava achar-se, o mais possível, na companhia deseu Mestre; mas como Clemente sempre andava rodeado de estudantes, Wernerdificilmente conseguia estar a sós com seu Diretor. Uma vez por certo azedumelhe disse queixoso: “Quando é que lhe poderei falar! sempre que venho encon-tro aqui esses moleques”. Ao que Clemente respondeu: “Gosto mais dessesmoleques, que de você”.

Nessa santa amizade passaram-se cinco anos de verdadeiro esforço paraa perfeição religiosa. Eram duas almas que se fundiam e se amavam em NossoSenhor; era a verdadeira amizade que se não perdia em sentimentalismo, masque se espiritualizava sempre mais, a medida que os anos se iam. Werner foipara Clemente um poderoso cooperador; por isso, como seu santo Diretor,mereceu que os vienenses o denominassem “o apóstolo de Viena”.

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CAPÍTULO VI

O Santo ao altarO Serafim ante o tabernáculo — O humilde ajudante de missa — As piedo-

sas traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarentahoras.

Para se compreender bem a atividade apostólica e o efeito admirável dapregação de Clemente, seria necessário contemplá-lo ao altar. Os que tiverama ventura de vê-lo perto do sacrário, não encontraram na língua humana pala-vras capazes de definir ou descrever a impressão recebida. Sua intimidade comJesus Sacramentado era uma outra manifestação da sua fé, talvez ainda maisarrebatadora do que seu verbo inflamado no alto da tribuna sagrada. À imitaçãode seu Pai espiritual Santo Afonso não sentia maior prazer do que em permane-cer diante do Prisioneiro dos nossos sacrários; lá era indescritível o seu recolhi-mento. Quando na igreja dos Italianos tinha de transportar o Santíssimo dacapela-mor para qualquer altar lateral, que se achasse um tanto afastado, suafronte inclinava-se amorosamente sobre a ambula, os olhos conservavam-sesemicerrados, fitos sobre o cibório, que ele apertava jeitosamente contra o pei-to. Clemente não precisava lutar para conservar a atenção e o recolhimento;pelo contrário era-lhe, às vezes, difícil conter as chamas que o devoravam, semas manifestar por fora. Uma das suas ocupações prediletas era distribuir a san-ta comunhão, por se sentir assim mais perto do seu Deus. Nessas ocasiões nãolhe era sempre fácil disfarçar os soluços e conter as lágrimas de comoção, quelhe brotavam dos olhos e corriam, a fio, pelas faces traindo o que se passavadentro do coração. Nos dias da exposição solene do Santíssimo, de joelhosfixava os olhos na Hóstia consagrada, seu rosto se transfigurava e ele pareciaum Serafim a contemplar face a face a Jesus, encanto da sua vida.

Embora idoso gostava de ajudar a missa a qualquer sacerdote, emboranovo, porque tinha assim mais uma ocasião de se achar perto de JesusSacramentado.

Homens de conhecida piedade, como v. g. Mons. Muzzi auditor daNunciatura, iam nos dias de grande festa, à Santa Úrsula, unicamente para seedificarem com a devoção íntima de S. Clemente. O coração do Servo de Deustransbordava de delícia e expandia-se docemente quando se julgava desperce-bido, a sós com Jesus Sacramentado. As religiosas de Santa Úrsula costuma-vam ser as traidoras piedosas dessas cenas comoventes. A Irmã Thadéa es-condeu-se um dia na igreja, e pôs-se a contemplar Clemente que se julgava sódiante do sacrário. “O rosto do Santo, diz ela, estava como que transfigurado erefulgente de amor; ele estendia muitas vezes seus braços a Jesus, como a

dar-lhe o coração, falava com o seu Deus com a ternura de um filho que depo-sita no coração de seu pai amado a expressão suma do seu amor e confiança;com a ponta dos dedos reunidos atirava em cheio para o sacrário o ósculo dosseus lábios e do seu coração”. Comovida a Irmã Thadéa chamou também asoutras irmãs, que se edificaram com aquela devoção e fé viva, que para elastiveram mais valor e efeito do que amais tocante pregação.

Jesus presente na Eucaristia é o centro de toda fé e piedade, e por isso adevoção ao Santíssimo ocupa sempre um lugar saliente na vida de todos osSantos. Mas em S. Clemente essa devoção tinha um caráter especial, produzi-do talvez em parte pelo espírito da época; o jansenismo e o racionalismo con-servavam afastado dos olhos e do coração do povo esse grande mistério danossa fé. Para combatê-los São Clemente instituíra a missão permanente em S.Beno, que não era senão semanas, meses e anos eucarísticos. E de fato, odesejo ardente de São Clemente era difundir por toda parte e introduzir emtodos os corações o amor ao Santíssimo, e o desejo de receber a Jesus fre-qüentes vezes na santa comunhão. Para a adoração do Rei dos reis, solene-mente exposto no ostensório, não lhe era permitido fazer em Viena o que fizeraem S. Beno, porque lhe faltavam os meios e a permissão dos governo.

Durante a adoração das 40 horas, porém, em Santa Úrsula, na igreja dosItalianos e na dos Mechitaristas era ele quem mais se interessava e trabalhavapara que Jesus Sacramentado recebesse a homenagem merecida dosadoradores. Durante o ano visitava sempre a igreja em que se achava expostoo Santíssimo na espaçosa cidade de Viena, sendo quase sempre ele que, emprópria pessoa, adornava de flores naturais os altares e o tabernáculo. Clemen-te parecia ter abolido em Viena a diferença do domingo e dos dias úteis. Oconfessionário achava-se assediado todos os dias e a mesa da comunhão eraum encanto diariamente pelo avultado número de almas eucarísticas; famíliasinteiras, e das melhores, permaneciam ajoelhadas no pavimento, horas e horasa fio, na mais profunda devoção diante de Jesus Sacramento. Santa Úrsula erao centro, donde se difundia pela cidade toda esse amor e devoção a Jesus-Hóstia, de sorte que um dos amigos de Clemente pôde afirmar sem exagero,que depois de dez anos de trabalho de S. Clemente, Viena se tornou o lugar,onde Jesus era mais visitado, mesmo nos dias de semana, e onde mais serecebia a santa comunhão.

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CAPÍTULO VII

O devoto da VirgemDevoção combatida — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas

— O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoçãoa Maria; uma necessidade — Os Santuários da Virgem.

A devoção à Santíssima Virgem era um ponto atacado e combatido naque-les tempos de frieza religiosa e de jansenismo detestável.

Até teólogos, que se diziam católicos, julgavam dever impugnar o culto deMaria Santíssima. O rosário era desconhecido em bastante centros católicosde sorte que em Viena se tinha em conta de curiosidade o fato de que na Igrejade Santa Úrsula havia um padre que benzia terços e rosários.

São Clemente era um digno filho espiritual de Sto. Afonso de Ligório, odedicado cantor e defensor acerrimo das Glórias de Maria, e por isso não podiadeixar de consagrar à Virgem um amor terno e filial. O divino Mestre afirmouque a boca fala ex abundantia cordis, daquilo que enche o coração; para S.Clemente, o decantar no púlpito e nas palestras familiares as glórias da Mãe deDeus, era uma das maiores alegrias e consolações da sua alma. No púlpito,quando discorria sobre algum mistério da vida de Nossa Senhora, tornava-seexcepcionalmente eloqüente e as palavras jorravam fáceis dos seus lábios: erao filho amoroso que enaltecia os encômios de sua Mãe. A Imaculada Concei-ção, as Sete Dores de Maria, e sobretudo o mistério da Anunciação, em queveneramos conjuntamente a encarnação do Verbo e a maternidade da Virgem,eram o objeto da sua mais terna devoção desde os dias da sua infância, e oassunto predileto dos seus eloqüentes sermões. Dificilmente passava-lhe des-percebido o toque do “Angelus” de manhã, ao meio-dia e à tarde; onde quer quese achasse, punha-se de joelhos e com devoção e amor saudava sua Rainha eMãe.

A exemplo de Sto. Afonso nutria uma devoção toda especial para com aVirgem sob o título do Bom Conselho, de cujas luzes tanto necessitava naque-les tempos turbulentos; e a Virgem diversas vezes deu mostras de que aceitavaos obséquios do seu devoto Servo, guiando-o, qual estrela indeficiente atravésdos escolhos e abrolhos da vida tempestuosa do seu século.

Característica era a sua devoção para com o rosário de Maria, que deno-minava a sua “biblioteca”. Em todos os seus passeios pela cidade e em casa,nos momentos livres, Clemente desfiava as contas do rosário. Para consolidaressa devoção entre os seus discípulos impôs aos Oblatos da Congregação odever de defender sempre o rosário, mormente quando escarnecido pelos he-reges. No púlpito, no confessionário e nos entretenimentos familiares recomen-

dava com fogo essa devoção; nas pausas do confessionário rezava o terço, ou,ao menos, algumas “Ave-Marias”, afirmando que por essa devoção conseguiaquanto pedia a Deus. Por vezes, à cabeceira dos doentes, esgotados os meiosde persuasão, ajoelhava-se, rezava o terço, e a conversão era garantida. Cha-mado a algum doente, que morava um tanto afastado, punha-se a rezar o terçode caminho e gostava de dizer: “Quando tenho tempo de rezar o terço, não hápecador que se não converta!” Para S. Clemente a devoção a Nossa Senhoraera uma necessidade imperiosa. Não podia ouvir falar em nome de Maria semalgum predicado glorioso para Ela. Quando em suas longas viagens encontra-va algum santuário da Virgem, não prosseguia seu caminho sem primeiro sau-dar sua Mãe celeste e depositar em seu altar o ósculo ardente do seu amor filial.Em Viena os únicos passeios, que fazia fora da cidade, eram consagrados àVirgem em seus santuários. Todas as igrejas de Nossa Senhora eram-lhe ca-ras, porque em todas elas encontrava ocasião de homenagear sua Mãe e Rai-nha; porém o santuário que mais atraia era o de Mariazell onde se desenvolvia,como em nenhum outro, a vida de fé católica, aliás abaladíssima na Áustria notempo do josefismo. Quando o Santo contemplava as multidões que, de perto ede longe, invadiam o Santuário da Virgem, os corações a vibrar de amor, oscânticos a ecoar pelas planícies, as orações a repercutir na vasta abóbada doSantuário, sua satisfação era sem limites, seu peito estremecia, e seu coraçãoparecia saltar fora a desafiar os incrédulos a virem em sua incredulidade expli-car aquele espetáculo de fé. — “Que os incrédulos, exclamou ele, venham expli-car-me, se puderem, o que impulsiona este povo, o que o traz de tão longeterras, a custo de mil fadigas, a estas montanhas! Tem-se de reconhecer que éo poder da fé. Oh! se o Santo Padre pudesse ver toda esta gente e esta devo-ção, havia de chorar de alegria”.

No púlpito e no confessionário exortava continuamente os fiéis a recorre-rem à Rainha do céu — “Não se pode ir para o paraíso senão por meio deMaria”, gostava ele de repetir.

Mormente aos pecadores apontava Clemente a devoção a Maria comoâncora de refúgio e de salvamento. “Meus irmãos, exclamou ele um dia levadode entusiasmo, se entre vós existir algum que perdeu a fé, ou nela se sentefraco, ouça o remédio eficaz que eu conheço ser infalível: reze diariamente dejoelhos e com devoção uma ‘Ave Maria’ à Mãe de Deus, e sua alma atribuladarecuperará a paz”.

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CAPÍTULO VIII

O prudente ConfessorConfessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca —

Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa derapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. Joséno altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessa-se sem o saber.

Desde a chegada de Clemente a Viena, o lugar principal de sua atividadeapostólica em prol das almas já não era o púlpito como outrora em S. Beno, maso confessionário, onde passava horas e horas na direção espiritual dos seuspenitentes, sendo procurado por pessoas de todas as classes da sociedade. Osprediletos eram os homens e os moços que iam procurar em casa para lá faze-rem sua confissão. E não era em vão que tantos o procuravam. Clemente pos-suía, como confessor, qualidades extraordinárias que deixavam nos penitentesa certeza de uma direção segura e sã. Sempre que o estado da alma o exigia eas circunstâncias o permitiam, Clemente aconselhava a confissão geral, à qualfazia preceder bastante tempo de exata preparação. E Clemente não perdia apaciência, ouvia tudo como bom médico e depois dava o necessário remédio.Muitas vezes passava o dia inteiro no confessionário. Uma vez sentindo-se maltomou uma sangria, como era costume naquele tempo, e para não perder tem-po, correu ao confessionário, onde os panos se desataram, dando livre fluxo aosangue que se pôs a correr sem parar, pelo pavimento; enfraquecido pela perdade sangue Clemente desmaiou, e certamente ter-lhe-ia sucedido coisa pior, selá por acaso não se encontrasse um médico, que acudiu com prontidão. Nãoera raro ficar o Santo no confessionário até alta hora da noite. Quem uma vez seconfessava a São Clemente sentia necessidade de voltar outra vez, não porqueClemente gostasse de agradar com palavras adocicadas, mas porque sabiainfundir nas almas o verdadeiro amor a Jesus Cristo. Antes de sentar-se noconfessionário costumava ajoelhar-se diante do tabernáculo a fim de pedir aocéu prudência e amor para tão espinhoso cargo. Ao ouvir as confissões S. Cle-mente evitava os longos entretenimentos com os penitentes e procurava serbreve quanto possível; as poucas palavras de conselho e animação que dirigiaaos penitentes eram paternais e por isso calavam profundamente nas almas.

Clemente possuía o dom extraordinário de penetrar com seu olhar atravésdos corações, e não poucas vezes, antes da confissão, desfazia as dúvidas queo penitente desejava expor. “Em um dos nossos conventos, escreve a IrmãThadéa, havia uma candidata que se via atormentada por inúmeras tentaçõescontra a vocação, até que, um dia, se decidiu abandonar o convento. Quando

menos o esperava, S. Clemente aproxima-se dela com as palavras: ‘Francisca,fica no convento, porque és chamada por Deus’. Como a ninguém ainda haviaela manifestado os seus pensamentos nesse sentido, reconheceu nas palavrasde S. Clemente a vontade de Deus, e as dúvidas sobre a vocação desaparece-ram instantaneamente”. Permaneceu na ordem e na idade de 83 anos foi umadas depoentes na causa da beatificação de S. Clemente.

Um caso semelhante; conta-o a Visitandina Luiza Xavier: “Thereza Gonzaga,atual superiora do nosso convento em Gleink, era, no mundo, penitente de SãoClemente. Ao ouvir um sermão do Santo sentiu em si o desejo de entrar nasUrsulinas; manifestou ao pai esse seu intento, mas este a dissuadiu prometen-do não dar jamais, para isso, o seu consentimento. Embora continuasse a ouvira voz de Deus, que a chamava, desanimou diante das dificuldades e desistiu doseu piedoso intento, ocultando tudo isso a seu diretor espiritual. Na confissãoporém Clemente disse-lhe abruptamente: ‘Deves ser Visitandina, e eu mesmome encarrego de arranjar-te um lugar’. A penitente sentiu um peso deslizar-sedo seu coração, entrou para as Visitandinas, onde viveu 50 anos no gozo damais perfeita paz, graças ao esforço do seu bom diretor espiritual”.

Com poucas palavras sabia Clemente aplicar o remédio conveniente àschagas da alma. Era com todos bondoso, delicado, porém sempre enérgico efirma em seus conselhos. A penitência que impunha não era sempre a mesmapara todos porque para cada doença há remédio especial. Homem de prudên-cia reprimia em seus penitentes qualquer exagero ou imoderado zelo, e acon-selhava a todos o caminho ordinário ao céu, por ser mais seguro do que todosos excessos que enfraquecem a alma e que muitas vezes se tornam contrapro-ducentes.

Uma vez um moço, comovido por um sermão, pediu a Clemente que oouvisse de confissão imediatamente depois da pregação. O Santo tomou-o pelamão, fitou-lhe os olhos e penetrando toda a sua alma disse-lhe: “Ainda não,venha comigo” e levou-o para o convento provisório, onde o jovem no silêncio ena oração se devia preparar para as contas a dar a Nosso Senhor; ao entrar noquarto a ele destinado, Clemente apontou para um magnífico Crucifixo pendu-rado na parede, e disse ao jovem: “Francisco, aprende aqui a tua lição”. O jovempôs-se a meditar, sua vida inteira passou novamente ante os olhos da sua alma,recordou-se do tempo da infância e das diabruras efetuadas por ele nas ruas deViena; rememorou o tempo da sua primeira juventude dedicada à vida militar,da qual desertara para ir viver em Paris, onde o não puderam suportar pormuito tempo. Chafurdado em toda lama, lavado em todas as águas voltou aViena e não teve coragem de se apresentar à sua mãe, que era uma senhorasevera. Foi nessa ocasião que o seu bom anjo o levou à Igreja de Sta. Úrsula,onde a voz de Clemente a discorrer sobre os tormentos da consciência crimino-sa, se fez ouvir ao coração do pobrezinho.

Fez sua confissão derramando lágrimas de arrependimento; mas o temorda mão o perturbava. Clemente porém consolou-o dizendo: “Não temas, que eudisporei tudo”. No dia seguinte a mãe do jovem não ficou pouco espantada aoreceber o convite de tomar café na sala do convento. Clemente, muito de indús-tria, fez a conversa cair sobre os filhos e pediu-lhe que contasse a história deles.A mãe falou de todos menos de Francisco, cujo nome nem quis mencionar por

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vergonha e indignação. Clemente não se deu por vencido e perguntouinteressadamente por ele; foi a hora em que a mãe perdeu as estribeiras e falouquanto seu coração sentiu num destampatório horrível, afirmando que, prova-velmente, o tal já estaria enforcado. Clemente sorriu-se paternalmente notandoque a forca não é coisa tão barata, levantou-se, abriu a porta, e Francisco,debulhado em lágrimas, prostrou-se diante de sua mãe, que longe de se como-ver, desatou numa filípica até então desconhecida contra o filho. No meio da-quela tempestade Clemente fez um sinal com a mão dizendo: “Agora basta,vamos tomar juntos o café”. E a paz se fez. Francisco porém estava devendoainda alguma diabrura às irmãs, que compravam todos os dias o leite na casade Francisco. Clemente anunciou às irmãs que lhes iria levar um Agostinho. ASuperiora agradeceu com toda a cordialidade afirmando possuir já diversasimagens desse Santo e por isso, não precisar de outra. Clemente levou-lhesporém o Agostinho vivo, e a paz completa se restabeleceu com Deus e os ho-mens. Francisco já não quis abandonar seu protetor, pediu admissão na Con-gregação Redentorista, e depois de terminar seus estudos, tornou-se o grandemissionário que enalteceu o nome da Congregação e que salvou inúmeras al-mas na Valachia e em diversas regiões da Áustria e da Inglaterra. Não satisfeitocom esses trabalhos penosos, atravessou os mares, foi a América do Norte,indo morrer, em idade avançada, no convento redentorista de Leoben na Áus-tria. Houve milhares de pessoas que como Francisco ficaram devendo a S. Cle-mente a sua salvação eterna. O Santo redentorista empenhava-se seriamenteem encaminhar as almas segundo o espírito de Sto. Afonso. É por causa dessacircunstância que um pintor se lembrou, em boa hora, de representar S. Cle-mente na forma do Bom Pastor, que apoiado em seu cajado levanta para o céua ovelha desgarrada. O Servo de Deus recebera do céu o dom singular depenetrar com o olhar o íntimo dos corações.

Ao andar pelas ruas de Viena bastava-lhe observar, de longe, os transeun-tes para saber o que lhes faltava. Uma vez ao passar por uma das ruas maismovimentadas da Capital deu com um rapaz de muito mau humor, que acabavade ser expulso da aula. São Clemente dirige-se a ele com as palavras: “Menino,venha cá um pouco; você tem qualquer coisa de anormal”, tomou-o pela mão,levou-o para casa, animou-o com bons conselhos transformando completamenteaquele coração, que mais tarde havia de tornar-se um benemérito da pátria. Emuma outra ocasião encontrou-se com um indivíduo, que enojado da vida nutriadesejos de ser afogar no Danúbio. Sem conhecer anteriormente a resoluçãoíntima do infeliz, aproxima-se dele, tira do bolso a caixa de rapé e sorrindoamigavelmente oferece-lhe uma pitada cativando assim o coração do infeliz,que lhe contou sua triste história, abriu sua consciência numa sincera confis-são; foi Clemente quem o salvou guiando-o para melhores idéias.

Caso semelhante deu-se com uma senhora, nascida na opulência e noluxo, a qual pela quebra de um banco comercial ficou reduzida à miséria. S.Clemente passeava com um amigo ao longo da margem do rio, quando subita-mente interrompe a conversa e corre para uma senhora que se aproximava,devagar e com hesitações, das margens do Danúbio. Clemente percebera ime-diatamente o intento daquela senhora, que não lhe era conhecida. Sem religiãoe dada às vaidades e ilusões do mundo, a pobre mulher não possuía a força

moral para se conformar com a nova posição, em que acabava de ser lançadada noite para o dia, e por isso desesperada resolvera pôr termo à vida atirando-se nas águas do Danúbio. Sem mais preâmbulos Clemente a interpela, e asenhora, que não esperava naquela hora a visita de um sacerdote, conta-lhe oque sucedera em sua casa com a quebra do banco, onde perdera toda a suafortuna caindo em extrema miséria. O Santo compadecido com a dor da pobremulher, inclinou-se, tomou um punhado de pó dizendo: “Que é dinheiro, minhasenhora? é um punhado de terra e nada mais”. Conseguindo dissuadi-la desem nefando intento, levou-a à cidade onde lhe arranjou um lugar no conventodas Ursulinas. No dia seguinte ouviu-a de confissão; a senhora converteu-seinteiramente servindo de edificação para todos da cidade, que a ficaram consi-derando como a uma santa.

Ao lado dos grandes pecadores, também muitas almas tímidas e pusilâni-mes procuraram a direção de tão experimentado Diretor. O pior de todos essesmaçadores, que roubavam muitas horas ao Santo, era um tal Kraus, que quan-do se confessava ou se dirigia em particular ao Santo, não achava fim na enu-meração de seus escrúpulos e dúvidas de consciência. Referindo-se a ele diziaS. Clemente a sorrir: “Um Kraus, ainda vá, mas dois, me matariam”. Escrúpulose dúvidas de consciência ele os afastava com poucas palavras. Um dos seusconfrades Pe. José Forthuber dava-lhe ocasiões de sobra para exercer a virtu-de da paciência por causa dos seus escrúpulos; quando celebrava o santo Sa-crifício, ao chegar o momento de purificar a patena, gastava uma eternidade emprocura dos fragmentos que não havia na patena molestando assim os ouvin-tes, que começavam já a evitar a missa do Pe. José. Uma vez estando SãoClemente a assistira missa desse padre, e percebendo que ele não terminava apurificação levantou-se devagar, subiu os degraus do altar e sussurrou ao ouvi-do do celebrante: “Padre José, deixe alguma coisa também para os anjos”. Foio suficiente para corrigi-lo. Embora pacientíssimo no confessionário, às vezesparecia perder a calma, quando pessoas que nunca se haviam confessado emsua vida, afirmavam não ter nenhum pecado a acusar. Nesses casos o Santo sedesabafava com um pouco de sarcasmo: “Ah! o senhor é um santo; vou mandarlogo acender algumas velas para o novo santo”. Como o mundo é malicioso einventa anedotas para todos, inventou uma também para S. Clemente. Contamque estando uma vez o Santo a ouvir confissões na sacristia da Igreja dasUrsulinas, deu com uma pessoa que não tinha absolutamente nenhum pecadoa se acusar. Clemente interrogou-o sobre todas as possibilidades a respeitodos dez mandamentos da lei de Deus, dos cinco preceitos da Igreja, dos peca-dos capitais, esmiuçou suas perguntas sobre as mais sutis imperfeições, porémdebalde. Clemente, então, não podendo já conter-se, disse ao sacristão: “André,venha cá e coloque esta mulher no altar; ela é uma santa”.

Das pessoas que semanalmente se confessavam e que, em geral, levavamuma vida piedosa não exigia São Clemente preparação muito prolongada. As-sim quando às vezes chegava inesperadamente ao convento para ouvir as con-fissões das Irmãs e estas, desapontadas, se escusavam pretextando falta depreparação dizia o Santo: “Venham que eu as ajudarei”. Um belo dia chegou aoconvento e as irmãs deixaram-no esperar muito tempo; queriam preparar-sebem, porque receavam qualquer repreensão de S. Clemente, se se aproximas-

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sem do tribunal da penitência sem estarem bem preparadas. As mais velhas,com o fim de evitar qualquer palavra mais pesada, foram ter com a Irmã maisnova e convidaram-na a ir ao confessionário e demorar-se lá dando às outras otempo necessário de fazer o exame de consciência. A Irmãzinha que nada sus-peitara, ajoelhou-se no confessionário pedindo desculpas ao confessor por nãoter tido o necessário tempo de preparação. Clemente com todo o carinho epaciência auxiliou a jovem Religiosa que fez uma confissão tão boa como pou-cas vezes na vida. Lá fora as outras puseram-se a contemplar o rosto daIrmãzinha, para se formarem uma idéia do que as esperava no confessionário.Vendo a Irmãzinha alegre e satisfeita, encheram-se de coragem, mas na confis-são recebeu cada qual o sermão que não esperava. A Irmãzinha nova encheu-se de curiosidade e, com a maior ingenuidade, perguntou às mais velhas queconselhos tão doces haviam recebido, que as fizeram chorar, ao que elas res-ponderam: “O Pe. Clemente nos disse que para a confissão e para a morte cadaqual deve estar sempre bem preparada, porque ninguém sabe quando o Se-nhor virá”.

Em Viena havia naquele tempo um célebre ator de teatro, chamado JoséPassy. Quando ainda pequeno, seu pai o queria para a vida comercial não per-dendo nunca vasa de o entusiasmar para esse ramo de atividade. O rapazporém deu-se à leitura de romances cavalheirescos, amorosos e teatrais; coma fantasia efeminada, detestando todo o trabalho sério, fugiu para a cidade dePraga, onde se colocou numa companhia dramática. O pai ao ter conhecimentodo caso, mandou o filho mais velho ao encalço de José Passy para reconduzir àcasa paterna.

Reconhecendo José a sua incapacidade para a vida de teatros, e tendo aexperiência de que o romance escrito é bem mais atraente do que o da vidareal, acompanhou o irmão com o qual voltou para Viena. Sem fé e sem religiãoo pobre jovem levava uma vida bem triste e sem consolação, quando percebeuos primeiros sintomas da enfermidade que o levaria fatalmente ao túmulo. Mor-rer na flor dos anos, ficar privado de todos os prazeres, dizer adeus a todos osdivertimentos... isso tudo torturava-lhe o coração.

Cheio de compaixão para com o pobre irmão, João Passy levou-o, a títulode visita, ao Servo de Deus, que o convidou a voltar outra vez no dia seguinte;José que se edificara com as boas maneiras do velho sacerdote, para lá voltouconforme prometera em busca de nova palestra agradável. Clemente olhandopara o jovem disse-lhe: “Amigo, deves fazer a tua confissão; só assim é queuma nova luz iluminará a tua alma”.

Percebendo o desaponto do jovem, Clemente pareceu mudar de assunto,perguntou-lhe por sua idade, sua vida, suas ocupações, seu desejos na infân-cia e na juventude, interessou-se por seus sucessos em Praga, pelos livros desua predileção, pelas orações que mais gostava de fazer, pelas igrejas quemais freqüentava aos domingos, pelos amores que lhe prenderam o coraçãoetc. O jovem, comovido por tanto interesse e delicadeza, abriu o coração edesabafou-o no de Clemente fazendo-o confidente da sua vida inteira, descre-veu-lhe minuciosamente os seus desejos, as suas aspirações, os seus dissabo-res, os seus fiascos e mais alguns pormenores. Quando o jovem terminou anarração, Clemente sorrindo paternalmente disse-lhe: “Meu caro amigo, tua

confissão está feita, ajoelha-te, pede perdão a Deus de todo o mal que fizeste epromete ao Senhor não mais ofendê-lo em tua vida”. Em seguida perdoou-lheem nome de Deus todos os desvarios cometidos. Completamente transforma-do, o coração a nadar de contentamento voltou Passy para casa contando atodos, como se confessara sem o saber, e como recuperara a paz que há tantosanos fugira da sua alma.

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CAPÍTULO IX

O amigo dos doentesO caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa

neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido emcordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma cajadada —Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Con-versão estupenda na hora da morte.

A exemplo do divino Redentor, que nos dias da sua vida mortal, visitava osdoentes derramando-lhes nas chagas da alma o bálsamo de consolo ou restitu-indo-lhes miraculosamente a saúde do corpo, os Santos de todos os tempos setêm distinguido no amor para com os doentes consagrando-lhes boa parte desua vida. Visitar os enfermos, consolá-los nas suas dores e aflições, e reanimaros seus corações encaminhando-os para Deus, é uma obra de caridade genu-inamente cristã, um trabalho verdadeiramente apostólico, tão útil como a prega-ção ou a audição das confissões. São Clemente era admirável nesse particular.O seu coração nobre não podia ouvir, sem se comover, os ecos dos gemidosprofundos ou das dores lancinantes dos pobres enfermos.

Como já tivemos ocasião de observar, S. Clemente consagrava a primeiraparte do dia ao serviço divino e ao confessionário, e a segunda parte, ao cuida-do dos seus queridos doentes na cidade ou nos arrabaldes de Viena sem seperturbar com a neve e o vento, a chuva ou a tempestade. Qual anjo consoladoré cabeceira dos doentes, suas palavras eram sempre fortes e animadoras emtodas as enfermidades, porque extraídas da Escritura e umedecidas no sanguedo Crucificado. Após as visitas do Santo, os enfermos abraçavam resignados asua cruz mandada por Deus, beijavam-na com amor, como a escada miraculosaque os conduziria ao paraíso.

No caso de pobreza levava-lhes Clemente, debaixo do manto, a esmolaque lhes devia mitigar a fome. Não tinha o pobrezinho quem lhe pensasse aschagas e lhe apresentasse o remédio na hora certa, Clemente lá ficava horas ehoras, exercendo caridosamente o ofício de enfermeiro e não julgava perdido otempo que passava junto da cabeceira do doente.

Mesmo no caso de não ser grave a enfermidade, Clemente sentia igualcompaixão com o doente, e como não pudesse ver ninguém sofrer, ia visitá-lo elembrar-lhe que o tempo da doença é a colheita dos maiores merecimentospara o céu. No seminário de Viena havia um rapaz, penitente do nosso Santo,de constituição franzina e fraca, a quem ninguém profetizava cabelos brancosno futuro. Ordenado sacerdote foi participar sua alegria ao velho amigo e ben-feitor. Clemente mostrou viva satisfação pela felicidade do seu penitente e con-

vidou-o para o almoço, que o neo-presbítero aceitou, julgando-se ditoso porpoder passar umas horas em companhia do Santo.

Qual não foi o seu espanto, quando viu a Clemente, não sentado a seulado, mas a exercer com toda a delicadeza o ofício de copeiro. Terminada arefeição, subiram ao andar superior, onde Clemente lhe preparara um leito maciopara a sesta... “porque é bom, disse ele, que gente nova e fraca durma umpouco depois das refeições”. O neo-presbítero não se deixou rogar segundavez, entregou-se ao sono, enquanto que São Clemente lá fora se aprofundavaem santas meditações.

Na enfermaria do convento das Ursulinas achava-se uma Religiosa já ido-sa e um tanto fraca do juízo, que com suas impaciências e impertinências mo-lestava as outras religiosas. Clemente, para ganhar aquele coração, ia todos osdias ao jardim, onde colhia alguma flor, que levava à pobre enferma; na falta deflores, no inverno, procurava qualquer presente, de que a doente pudesse gos-tar, entretinha-se com ela sobre coisas e assuntos indiferentes, porque a velhanão se simpatizava com ascese nem misticismo. Aos poucos conseguiu domaraquele coração, que completamente se rendeu, quando Clemente, convidan-do-a para um passeio pelos corredores do convento, lhe apresentou o braçopara lhe facilitar os passos. Tal amizade e compaixão converteram a pobre en-ferma, que alegre e contente dai por diante não molestou mais a enfermeira.

São Clemente tornava-se incansável à cabeceira dos doentes, mormentequando a morte se aproximava prostrando a pobre vítima. A Irmã Thadéa narra-nos um fato que comprova admiravelmente essa verdade.

“No nosso instituto de educação, havia uma aluna por nome Rosa, que játinha feito a primeira comunhão. Aconteceu a pequena adoecer, e às portas damorte, sentir temores indizíveis; levantava os braços e clamava: ‘O cão preto mequer tragar”. Uma das Irmãs correu em procura do Pe. Clemente, que chegouimediatamente; mal havia o Servo de Deus penetrado no quarto, a aluna excla-mou tranqüilizada: “O cão preto já se foi”. O Servo de Deus abençoou a peque-na, deu-lhe a absolvição geral e ela morreu com a placidez dos justos. “Temosno céu mais um anjo que reze por nós”, disse então o Servo de Deus dirigindo-se às irmãs.

O amor do Santo Redentorista para com os doentes não se limitava à en-fermaria do convento, mas abrangia a cidade de Viena inteira desde os paláciosdos grandes até as míseras choupanas dos pobres. Seria difícil, para não dizerimpossível, enumerar os doentes que S. Clemente visitou e consolou no tempoda sua estada em Viena. Não havia na grande Capital quem não conhecesseesse amor excepcional de Clemente para com os doentes; por isso chamavam-no sempre, mormente em se tratando de infelizes, que perderam a fé e seobstinavam em não receber os santos sacramentos.

Um dia foi chamado para sacramentar um senhor da alta nobreza; nin-guém na família ousava manifestar ao infeliz a gravidade da doença, e o enfer-mo, ignorando a seriedade do caso, não se lembrou de pedir os últimos sacra-mentos. Ao chegar Clemente à casa do doente, pediu-lhe a esposa que poramor de Deus não espantasse o marido. O Servo de Deus deixou-a falar eentrou no quarto do enfermo; como este se achasse deitado atrás da porta,Clemente não o vendo, gritou: “Onde está o doente que não quer confessar-

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se?” O temor da esposa era felizmente infundado, o enfermo com gosto seconfessou, consolando-se com a palavra de Clemente, que lhe assegurou asalvação.

E sempre que Clemente afiançava a alguém a salvação e o céu, ninguémdisso duvidava porque a voz de Clemente era a de um anjo que falava em nomede Deus.

Uma jovem princesa, prostrada em seu leito de morte, sofrendo horrivel-mente, não cessava de dizer radiante de consolação: “O Pe. Clemente prome-teu-me o céu”.

Em Viena havia um barão, católico prático, porém só de confissão anual. Jáde há muito vinham os bacilos da tuberculose roendo os seus pulmões. Emborao pobre barão se prometesse longa vida, a boa esposa não o deixava sossegar,insistia com ele para que recebesse os sacramentos a fim de não morrer comoum pagão. Como o nobre senhor não prestasse ouvidos a esse conselho, abaronesa foi procurar S. Clemente, que saudando o enfermo lhe disse com vozdecidida: “Sr. Barão, confesse os seus pecados, que o sr. pode estar certo de irpara o céu”. O nobre senhor estranhou aquela saudação, refletiu um pouco eperguntou: “Que é que V. Revma. está dizendo? será verdade mesmo?” — “Sim,é verdade”. — Achando o barão que para ele era um bom negócio comprar océu por coisa tão fácil, respondeu: “Pois então eu quero confessar-me agoramesmo”. Confessou-se, recebeu o viático e a extrema-unção.

A morte porém não chegou tão depressa como se esperava; e estando elejá cansado de rezar e não sabendo sobre o que conversar com a baronesa odia inteiro, comprou umas cartas de baralho e pôs-se a matar o tempo divertin-do-se com seus amigos. A pobre esposa escandalizou-se com esse modo sin-gular de se preparar para a morte; mas ele tranqüilo respondeu-lhe: “Sabesduma coisa? o Pe. Clemente não me proibiu de jogar; se fosse pecado, ele nãom’o teria permitido”. Foi o suficiente para terminar a desavença.

Um senhor idoso e rico em Viena estava já desenganado dos médicos epor isso sem esperança alguma de recuperar a saúde. Os parentes fizeram-lhever o estado em que se achava e aconselharam-no a ajustar as contas comDeus; porém debalde. O ancião estava decidido a não procurar os sacramen-tos. Chamaram diversos sacerdotes, que foram visitá-lo, um depois do outro; eo doente a cada um que entrava dirigia a saudação: “Vai-te para os diabos”. Eos sacerdotes retiraram-se rezando pelo infeliz. Os parentes encheram-se deterror diante daquelas palavras blasfemas dirigidas aos ministros de Deus, masnão desanimaram; lembraram-se do Reitor da Igreja de Santa Úrsula. Conta-ram-lhe todo o ocorrido, mas Clemente não perdeu nem a coragem nem a es-perança; tomou o rosário e, pelas ruas de Viena, conjurou o céu que lhe desseaquela alma. Mal chegara o Servo de Deus à porta da casa, quando chorosaslhe correram ao encontro a esposa e as filhas, pedindo que tivesse paciênciapois que já doze sacerdotes, antes dele, nada haviam conseguido do doente.Clemente entrou perguntando: “Onde é que está o doente?” Quando lhe mos-traram o leito, viu o Servo de Deus o enfermo imóvel sobre a cama e exclamou:“Ah! é ele; estaremos logo prontos”. Saudou o doente, que mando como umcordeiro, fez sua confissão, recebeu a comunhão e extrema-unção e morreu naamizade de Deus.

Um jovem da aristocracia vienense, filho de pais católicos e piedosos, dedi-cando-se ao estudo da filosofia racionalista, perdeu a fé, como acontece a to-dos que fazem seus estudos superficialmente sem procurar aprofundar-se naciência. Como a incredulidade, embora originada do orgulho humano, não tempoder para afastar as enfermidades e a morte, o jovem foi atacado de doençamortal, que lhe roubou a tranqüilidade e a paz, pois nada tinha a esperar nestavida nem na outra. Chamaram o Pe. Clemente para lhe endireitar a cabeça queos professores haviam entortado. Compreendendo S. Clemente que a fé, bebi-da nas fontes de uma boa educação doméstica, não se perde facilmente emseus princípios, deixou de lado toda e qualquer argumentação e convidou omoço a recitar com ele o “Creio em Deus Padre”. Porém debalde, o jovem nãoproferia palavra. O Santo percebeu que não podia ser outro senão o demônio,que lhe segurava a língua para não rezar; tomou um pouco de água bentaaspergiu-a sobre o doente, com as palavras: “Reze agora!” E sem mais dificul-dade o jovem recitou o credo inteiro. Sua alma estava outra vez transformadapara o bem, possuía novamente fé, cria como nos dias da sua infância. Seusolhos derramaram lágrimas, enquanto seus lábios proferiam o desejo íntimo docoração: “Padre, eu quero confessar-me”. Pouco depois deu a alma a Deus,consolado por haver recebido os Sacramentos.

Um barão de Viena, embora filho de mãe católica e sobrinho de um trapista,era calvinista como seu pai, de acordo com o contrato pecaminoso feito pelospais na hora do casamento, de educar os meninos no calvinismo e as meninasno catolicismo. O jovem entrou logo para a universidade, como aluno do grandematemático João Madlener, discípulo de São Clemente; os estudos porém, aba-teram logo o barão calvinista; o mal agravou-se sendo o pobrezinho em brevetempo desenganado dos médicos. Seu antigo professor visitou-o freqüentesvezes lamentando estar ele emaranhado no calvinismo e, por isso mesmo, pri-vado dos confortos dos Sacramentos da Igreja; não teve porém coragem dedizer uma palavra sequer ao jovem barão. Foi ter com S. Clemente, participan-do-lhe o estado deplorável do seu discípulo na universidade. O Santo franziu orosto e com toda a seriedade disse a Madlener: “Por essa alma o senhor éresponsável; diga-lhe que ele vai morrer”.

O professor toma o chapéu e corre à casa do barão para lhe comunicar asentença de morte; mas ao ver o infeliz perdeu a coragem contentando-se comas palavras: “Pe. Clemente interessou-se por ti e pretende fazer-te uma visita”.O jovem edificando-se com tamanha gentileza por parte de um homem tãoconhecido e estimado na cidade, sorrindo-se de contentamento murmurou comvoz sumida: “Diga-lhe que agradeço a visita, e que, quando sarar, quero ter oprazer de pagar tanta amabilidade”. Madlener, compreendendo que o doentepodia morrer a cada instante, voltou depressa a seu Diretor, pedindo-lhe quenão se demorasse, que o doente estava já nas últimas. S. Clemente acompa-nhava Madlener, porém em silêncio; por entre os seus dedos deslizaram-se ascontas do Rosário, enquanto que ele pedia à Virgem a conversão do infeliz. Aoaproximar-se do enfermo pergunta-lhe por seu estado, ao que o interrogadoresponde: “Padre, estou muito mal”. Clemente sentiu-se comovido com aqueladeclaração, mandou que todos se retirassem, e em seguida sentando-se à ca-beceira do jovem barão, tomou-lhe a mão e, com o coração nos lábios, falou-lhe

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da verdade e do erro, de Cristo e Calvino, da verdadeira Igreja e da falsa, daconsolação que o católico tem na vida e na morte, e do desespero do calvinismoque condena os seus adeptos, quer tenham culpa, quer não. Passado um quar-to de hora, Clemente chama os amigos com as palavras: “O doente é católico,vou buscar a santa comunhão”, e ele recebeu o Corpo do Senhor com umadevoção tal, que arrancou lágrimas dos que presenciaram tão comovente cena.Depois de quatro horas de oração o enfermo entregou sua alma santificada aoSenhor. — O irmão do falecido, calvinista como ele, ao saber da gentileza deClemente, julgou seu dever visitar o Santo e agradecer-lhe quanto fizera porseu falecido irmão. O Servo de Deus compadeceu-se também daquela alma eaproveitou-se da ocasião, que Deus lhe mandava, para convertê-lo. Clementedescreveu ao visitante a morte santa que tivera o jovem barão, e começou afalar de Calvino cuja vida era cheia de vícios, e que por isso Deus não o podiater escolhido para reformar sua Igreja etc. Passada uma hora Carlos Rieger —assim se chamava ele — estava convertido, era católico; anos depois foi orde-nado sacerdote trabalhando ainda muito tempo, em Viena, para a santa causade Deus.

Um velho funcionário público vivia em Viena ao lado de sua esposa, senho-ra distintíssima, que se desvelava dia e noite, para tornar agradável ao seumarido a vida doméstica. O funcionário, porém, desejoso de uma vida mais livree divertida, começou a sentir-se mal junto da sua esposa, cujas virtudes lheexprobravam continuamente a vida desregrada que levava. Achou melhor divor-ciar-se dela, o que fez sem se comover com as lágrimas e os pedidos de suasanta esposa; filiou-se à maçonaria7, que então era proibida por lei na Áustria,como sociedade perigosa que ocultamente trabalha contra o trono e altar, em-bora proclame altamente filantropia e altruísmo. A pobre esposa, que tudo per-doara de coração, orava sem cessar pela conversão de seu marido, e, comopenitente de São Clemente, pediu-lhe que em suas orações não se esqueces-se do infeliz esposo do santo Sacrifício da missa. Por uma casualidade qualquerentrou o velho funcionário em uma igreja durante a pregação de Clemente.Empolgado pela eloqüência, convicção e unção do Servo de Deus, começou asentir os remorsos da consciência, até que subjugado pela graça fez sua confis-são geral e chamou a esposa para sua companhia depois de lhe pedir humilde-mente perdão. Como sua conversão era sincera entregou ao confessor as in-sígnias da maçonaria, vivendo dali por diante como bom católico. Pouco tempodepois da sua conversão, a tuberculose galopante o prostrou, tirando-lhe toda aesperança de restabelecimento. O convertido não se perturbou por isso; estavabem com Deus e assim poderia com tranqüilidade comparecer perante o seuJuiz Eterno. São Clemente não cessou de o visitar, repetidas vezes, a fim deassim melhor prepará-lo para a morte. Estando já em seus últimos momentosClemente apresentou-lhe o Crucifixo, que ele beijou entre lágrimas e soluçosaceitando de boa vontade a morte como expiação das suas numerosas culpas;chamou sua esposa, agradeceu-lhe as orações, o generoso coração, os cari-nhos, e em seguida com voz entrecortada de soluços disse-lhe: “Mulher, per-doa-me todas as mágoas e dissabores que te causei”. E depois de receber operdão de Deus e da sua esposa, entre os braços de São Clemente, expirouplacidamente no Senhor.

Milhares de casos semelhantes poderíamos mencionar para a edificaçãodos leitores; mas esses bastem como prova da solicitude e do amor com que S.Clemente procurava o bem-estar temporal e espiritual, mormente daqueles queestavam prestes a ajustar suas contas com Deus.

Quando percebia que seus esforços eram insuficientes, corria a Jesus notabernáculo e não o deixava enquanto não sentisse em seu coração o pressen-timento da conversão dos pecadores, por quem rezava. Era um outro Israel quenão cedia em sua luta com Deus. Um dia Clemente trabalhara em vão na con-versão de um moribundo: recorreu ao pastor de todas as almas, escondido nosacrário. Era meio-dia, as Ursulinas estavam reunidas no refeitório e a igrejavazia, inteiramente vazia; Clemente julgando-se só, ajoelhou ao pé do altar; suaoração não era tranqüila como de costume, era santamente violenta: “Senhor,dai-me essa alma... dai-m’a eu vo-lo peço; se não m’a derdes irei a vossa Mãe...”Mais não pôde compreender a Irmã Thadéa que nessa ocasião se conservavaescondida no coro da igreja. O rosto do Santo estava banhado em lágrimas,seus olhos fitos no sacrário, seus braços em forma de cruz, ora levantados, oracolocados sobre o altar; como que para obrigar a Jesus a conceder-lhe a almaprostra-se por terra osculando o pavimento sagrado do templo, humilhando-se,o mais possível, para mover o coração Daquele que disse: “Pedi e recebereis”.À cabeceira dos enfermos debatia-se muitas vezes para arrancar as almas àperdição eterna. Disso temos uma prova clássica no exemplo seguinte.

Um oculista, lente da Universidade de Viena, intoxicado pelas más leiturase pelo espírito da época abandonou não só a prática da piedade, mas tambéma fé, homenageando tão somente os sábios racionalistas; alistou-se na maço-naria e chegou até a negação da existência de Deus. Oculista do corpo precisa-va de alguém que lhe abrisse os olhos da alma. Chamaram o Servo de Deus,que conhecia remédios para semelhantes males — e o infeliz estava já às por-tas da eternidade. Clemente entrou, e o oculista que se dedicara à estéticadesde os tenros anos, fitando o Santo, sua fronte alta, seu rosto espiritualizado,seus traços nobres, saudou-o: “Na verdade, tem a cabeça de um apóstolo”, aoque o Santo replicou, pagando na mesma moeda: “Na verdade, o sr. tem acabeça de um Sócrates”. O doente sorriu, e Clemente lhe principiou a falar deDeus e da eternidade. Tudo porém foi em vão. Clemente retirou-se de perto dopecador obstinado, o coração traspassado por uma espada de dor, porém es-perançoso ainda de ganhar aquela alma para Deus. Pouco depois volta nova-mente o Santo, saúda com toda a cortesia o doutor oculista que o cumula depalavras grosseiras, o injuria, protestando contra padres que só sabem enga-nar a humanidade e não deixam a gente sossegada nem na hora da morte;mandou-o retirar-se da casa antes que chegasse a polícia. São Clemente rece-beu todo aquele destampatório com a costumada calma, oferecendo tudo aDeus pela conversão do pecador obstinado; cheio de bondade aproximou-se doleito do moribundo com a observação: “Meu amigo, quando alguém vai fazeruma viagem, leva dinheiro consigo; o senhor vai fazer uma longa viagem, edespreza os meios que lhe são necessários no caminho: os Sacramentos daIgreja; não seja tolo”. O doente enfureceu-se novamente, apontando a porta aoServo de Deus. Clemente vendo que aquela alma se achava toda em poder deSatanás, retirou-se um pouco, sentou-se em uma cadeira e pôs-se a desfiar as

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contas do rosário. O enfermo indignado até o íntimo da alma, quis saltar sobreo Servo de Deus e, não o conseguindo, clamou-lhe: “Que quer o Senhor? vá-seembora e deixe-me em paz”. Com calma e tranqüilidade respondeu o Santo:“Tenho visto muitas vezes morrer o justo, agora quero ver como morre um con-denado”, e continuou a rezar. Essas palavras despertaram o racionalista; ódio earrependimento, temor e remorsos, confiança e desespero borbulharam em seucoração; nos seus ouvidos repetiam-se os ecos: “Quero ver como morre umcondenado”. Não podendo já resistir à graça chama o Servo de Deus e pede-lhe: “Reverendo, perdoe-me todas as injúrias que lhe acabo de dirigir”. Assegu-rando-lhe o Santo haver já esquecido tudo, acrescentou: “Mas Deus perdoar-me-á os meus pecados?” A essas palavras o doente desatou em prantos dearrependimento. — “Deus é bom, meu filho, faça o ato de contrição, peça-lheperdão, que ele perdoará tudo”.

Em seguida o doente confessou-se com as mostras de maior contrição edali a pouco expirou brandamente apertando contra o peito a imagem do Cruci-ficado e as mãos do seu salvador.

Se era raro um doente resistir aos esforços do Servo de Deus, não deixacontudo de haver exemplo disso. Eis um fato.

Um maçom gabava-se de não acreditar em coisa nenhuma e até zombavados que tinham fé. Apesar da impiedade notória desse inimigo da Igreja, SãoClemente não hesitou emir ter com ele. Esgotou todos os recursos do seu zelo,mas não pôde chegar a converter o infeliz. — A conversão de um maçom écoisa dificílima: os juramentos que o prendem ao demônio são obstáculos terrí-veis à operação da graça no seu coração. São Clemente conseguiu, todavia,várias conversões, mesmo entre os maçons como temos visto. Em Varsóvia eem Viena teve a alegria de levar para Deus grande quantidade deles.

CAPÍTULO X

Sua dedicação aos pobresO pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multi-

plicação milagrosa — A postulante maravilhada — As dívidas das Ursulinas —O peixe pagador — Os sapatos da Irmã — O batalhão dos pobres.

São Clemente era incansável quando se tratava dos pobres. Embora vives-se muito modestamente, não podia ver os outros padecer fome ou miséria,achava sempre benfeitores dos quais recebia esmolas abundantes para osdeserdados da fortuna; muitos contos de réis passaram por suas mãos embenefício dos necessitados. Às crianças que o rodeavam mimoseava o Santocom maçãs e doces, aos estudantes, que todas as noites se reuniam em suacasa, franqueava os armários; diariamente convidava para o almoço cinco ouseis estudantes pobres, aos quais não dava apenas do que lhe sobrava, mastirava muitas vezes da sua própria boca o pão que recebia, para com ele matar-lhes a fome. Quando alguém nessas ocasiões se lembrava de dizer-lhe que nãoera bom privar-se do necessário para dá-lo aos outros, respondia o Santo: “Quelhe importa isso, se eu me sinto satisfeito assim?” Em benefício dos estudantese dos órfão Clemente mendigava muitas vezes, de porta em porta não recean-do os vexames e as humilhações que por vezes passava.

Especial solicitude manifestava o servo de Deus para com os pobres en-vergonhados, que se acanhavam de pedir; enchia as algibeiras fundas do seumanto e ia de casa em casa em procura desses infelizes, aos quais forneciacaridosamente mantimentos e dinheiro, conforme as necessidades deles. Deti-do por qualquer doença ou ocupação muito urgente, mandava seus padres emnome dele, visitar os pobres, levando-lhes o conforto material e espiritual.

Nas suas esmolas São Clemente era prudente, não querendo, em sua ca-ridade, favorecer a indolência de ninguém, pois que o trabalho é uma necessi-dade e uma virtude, enquanto que a preguiça é um pecado e a mãe de muitosoutros. Naqueles tempos vivia em Viena um pintor que, no ano magro de 1817,ficou reduzido à miséria, por falta de encomendas de pintura. Para trabalharnão tinha incentivo, para mendigar não tinha ânimo e para roubar não tinhavontade. Não conhecendo outro recurso foi expor a S. Clemente o mísero esta-do em que se achava, pedindo seu apoio e conselho. E o pobre pintor não ficouenganado, o Santo olhou por ele todos os dias, enquanto durou a carestia; nãoquerendo porém deixá-lo sem ocupação recomendou-lhe que pintasse muitosquadros de Sto. Afonso que mais tarde conseguiu vender com bastante lucro.

Era interessante e edificante ao mesmo tempo. Os ricos procuravam a Cle-mente, e Clemente procurava os pobres. Não sabemos muitos detalhes porme-

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norizados da vida do Santo nesse sentido, e é natural, pois que os pobres es-quecidos e desprezados, não deixaram nenhures consignadas as suas impres-sões nem a gratidão de seus corações; além disso a caridade oculta-se o maispossível, e Clemente trabalhava não para conquistar os louros da admiraçãomundana, mas unicamente para agradar a Deus.

O Pe. Madlener escreve com muita razão: “Clemente gostava muito maisda companhia dos pobres e dos simples do que da dos ricos e grandes”.

Os pobres, que conheciam a grande generosidade de Clemente, usavam,às vezes, de astúcias para conseguir esmolas. Um belo dia um rapazinho deolhos tristes e melancólicos bateu à porta do Santo, pedindo-lhe que fosse veruma senhora doente num dos arrabaldes da cidade. Era já tarde e começava aescurecer; o Servo de Deus cansado dos trabalhos e fadigas do dia preparava-se para o descanso noturno. O recado do menino, porém, alarmou-o. A senho-ra, já idosa, poderia estar muito mal, talvez à morte, e quiçá com a consciênciapesada, e Clemente era responsável por aquela alma perante Deus. Vencendoo cansaço e sacrificando o sono pôs-se a caminho, atravessou a cidade e de-pois de três quartos de hora chegou ao lugar indicado pelo rapaz. Ao entrar nasala não viu nenhuma pessoa doente, mas uma velhinha assentada à mesa, aqual não parecia precisar nem de médico nem de padre. Como porém, as apa-rências enganam, perguntou-lhe o Santo por sua saúde e por seus desejos, aoque a velha respondeu com toda a simplicidade: “Doença eu não tenho nenhu-ma, mas como eu ouvi dizer que o sr. gosta muito de ajudar os pobres, mandeichamá-lo, eu estou precisando de 30$”. São Clemente admirou a esperteza davelha, não franziu a fronte nem proferiu palavra de repreensão por aquela im-prudência, sacou da bolsa e fez-lhe o presente dos trinta mil réis desejados.

O Servo de Deus dava sempre, e embora pobre e nada possuísse, sempretinha o que dar. Os padeiros da cidade e as irmãs Ursulinas forneciam-lhe pães,com que matava a fome aos pobres. Quando era convidado a algum almoço oujantar, e lhe ofereciam a sobra da mesa, ele aceitava com alegria e levava-apara os seus pobres. Os vienenses generosos não tardaram a perceber a cari-dade de Clemente e, aos poucos, enviaram-lhe comidas, roupas e até dinheiro,para que os pudesse distribuir entre os mais necessitados. Confiado na bonda-de dos benfeitores Clemente, às vezes, dava mais do que tinha.

Uma vez alugou uma casa para um estudante; chegando o dia do paga-mento o Servo de Deus viu-se em apuros, porque não tinha com que satisfazero cobrador. Rezou e tornou a rezar e Deus parecia surdo às suas súplicas.Como os Santos sempre têm confiança ilimitada em Deus, também Clementenão desanimou: faltavam apenas 12 horas para o dono da casa aparecer com acobrança. Clemente estava orando em seu quarto, quando batem a campainha.“Mais um pobre, supunha o Servo de Deus, mais um pobre que vem pedir es-mola, e eu com as mãos vazias!” Abriu a porta e uma senhora tira da bolsa umpequeno pacote e retira-se. Clemente abre o presente, vê e admira: uma belaquantia para pagar a casa e fazer mais alguma esmola.

Deus não poucas vezes mostrou quanto lhe era agradável a caridade deseu Servo, dando-lhe o poder de multiplicar os pães como outrora Jesus nasencostas da montanha, o qual com cinco pães e dois peixinhos sustentou maisde cinco mil homens, não contando as mulheres e crianças.

Entre os discípulos do Santo havia um por nome Antônio Passy, que des-confiando, ou antes, percebendo qualquer coisa de extraordinário na distribui-ção das comidas, quando feita por Clemente, pôs-se a observar a coisa comespecial atenção. Uma tarde chegou, como de costume a comida do conventodas Ursulinas para o Santo e o Pe. Martinho seu companheiro; este, jovem erobusto, comeu com apetite a parte que lhe cabia, e Clemente tomando a suaporção, distribuiu-a entre os 16 estudantes que lá se achavam, ficando todossatisfeitos. Em seguida o Santo tomando o pão de sobre a pesa, cortou-o em 16grandes pedaços, que distribuiu aos estudantes. Passy viu sobrar apenas umpedacinho, que o Santo guardou para si. — Como os estudantes, em geral, têmbom apetite, os pedaços de pão desapareceram-lhes bem depressa entre osdentes. O Santo, alegrando-se com os discípulos, sadios e contentes, tornou atomar o pedacinho de pão que sobrara, e dele cortou novamente mais 16 peda-ços. Passy observou que o pão crescia nas mãos de seu Mestre.

O mesmo fato deu-se milhares de vezes, não só com o pão, mas tambémcom as outras comidas. Como já ficou dito, as refeições eram mandadas doconvento das Ursulinas em porção suficiente só para duas pessoas i. é para oSanto e seu auxiliar Pe. Martinho Stark; este último, moço e robusto, servia-se,com honra, da sua porção, ficando a outra metade de S. Clemente para ele ecinco estudantes: e todos comiam e ficavam fartos. Se acontecia aparecer maisalgum inesperadamente, o Santo mandava-o sentar-se e das marmitas vaziastirava tanta comida que lhe saciava a fome e o satisfazia.

Numa sexta-feira apareceu na casa de S. Clemente uma postulante dasUrsulinas para dar um recado ao Pe. Sabelli. Como era justamente a hora doalmoço S. Clemente convidou-a para tomar parte da frugal refeição; isto causoucerto espanto à pobre postulante, porque o Servo de Deus não convidava nun-ca senhoras para almoçar com ele. Para não fazer desfeita ao Santo, aceitou oconvite, ainda mais que a curiosidade a impelia a observar a mesa do Diretorespiritual do convento. Ao ver a pequena marmita e o número de estudantessentiu-se envergonhada raciocinando consigo: “A comida é tão pouca, e os con-vivas são tantos, eu não posso, seria imprudência da minha parte, aceitar oamável convite”, e foi dando escusas e mais escusas; mas já era tarde, o Santoinsistiu e ela ficou. Sobre a mesa viu a postulante: sopa de macarrão, dois peda-ços de peixe, um prato de farinha de trigo, e perto um litro de vinho tinto. Depoisde feita a oração antes da refeição, como todo cristão a faz, o Santo levantou-see começou a servir os estudantes; cada qual recebeu mais sopa do que haviana terrina; o mesmo fez com os peixes e o prato de farinha, em seguida encheutodos os copos, que não eram pequenos, e a garrafa de vinho ainda ficou cheiapelo meio. A postulante das Ursulinas testemunha ocular do fato afirmou queaquelas comidas admiráveis eram mais deliciosas do que as refeições prepara-das pelo melhor cozinheiro de Paris.

De um modo especial socorria ele às pobres irmãs Ursulinas; embora pos-suidoras de algum recurso pecuniário nos primeiros anos, perderam tudo em1811, ano fatal em que o Estado fez bancarrota, os bancos se quebraram, e acarestia se manifestou horrível em Viena e, em geral na Áustria. As religiosassofreram mais que todos os outros, porque não podendo transpor a clausura,só esperavam socorro da Providência e da generosidade de quem as quisesse

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beneficiar. S. Clemente não as desamparou; esmolava para elas entre os ami-gos e, radiante de alegria, levava-lhes o que recebia dos benfeitores. Uma vezbateu à porta do arquiduque Rodolfo, arcebispo de Olmütz e irmão do impera-dor, pedindo-lhe que intercedesse pelas irmãs junto do monarca, que se dignousaldar todas as dívidas das Ursulinas. — Uma outra vez a carestia e a fomeinvadiram novamente a cidade de Viena. A pobre ecônoma do convento viu-sequase no desespero não sabendo donde tirar o necessário para matar a fomedas suas religiosas: já não havia pão no refeitório, nem carne na dispensa, nemfarinha no armário, nem dinheiro na caixa e nem crédito nos negócios. A pobreirmã procurou nas lágrimas um alívio para a sua dor. Uma Religiosa que passa-va, compreendendo a causa daqueles prantos, consolou-a com as palavras:“Precisamos de um peixe pagador como nos tempos de São Pedro”. A Irmãreferiu-se a um caso sucedido com S. Pedro e narrado por S. Mateus (17,23-26): Estando a Judéia sujeita aos romanos, tinham os judeus de lhes pagaranualmente os impostos, como também hoje em dia é costume em todos oslugares. Indo S. Pedro com Jesus a Cafarnaum, lá encontrou os cobradores,que o saudaram pouco amistosamente: “Pedro, como é, o vosso Mestre nãopaga os impostos?” São Pedro não deixou de sentir o arrepio em todo o corpo,pois que não estava absolutamente prevenido na hora; reanimando-se porémrespondeu: “Paga, sim” e foi contar tudo a Jesus que lhe disse: “Não há dúvida,Pedro; vai ao lado, lança o anzol, o primeiro peixe que apanhares terá na bocao dinheiro para o pagamento”. Embora admiradíssimo com semelhante ordem,Pedro obedeceu e com mais admiração ainda encontrou entre as guelras dopeixe o dinheiro exigido pelos cobradores. — Coisa semelhante desejava a boaIrmã que se desse com os peixes do Danúbio, que passa em Viena; esse peixepagador estava mais perto das Irmãs do que elas o poderiam imaginar. Algu-mas horas depois aparece São Clemente no convento das Ursulinas e, olhandopara a Irmãzinha ecônoma disse-lhe: “Irmã, eu sou o peixe pagador”; tirou suabolsa e entregou à Superiora uma boa soma de dinheiro, que recebera dosbenfeitores.

A Irmã Thadéa conta o fato seguinte que se deu com ela: “Recebi o santohábito no tempo que Viena gemia sob o jugo da carestia e da fome: a Superioradisse-me: ‘Sapatos como os que as irmãs usam, não lh’os posso fornecer, con-tente-se, por enquanto, com os que a senhora trouxe’. Durante os santos exer-cícios preparatórios para a tomada de hábito, veio o Pe. Clemente, mostrou-meum par de sapatos com as palavras: ‘Experimente se lhe servem; se não, com-prarei outros’. Os sapatos serviam perfeitamente, continua a irmã, e eu os useisomente nos dias de grande festa durante 34 anos”.

O que São Clemente era para os pobres viu-se claramente por ocasião doseu sepultamento; os pobres de Viena — batalhão incalculavelmente grande —apareceram chorando o seu defunto pai e benfeitor. Por causa dos seus cons-tantes passeios pelos arrabaldes da cidade em procura dos pobres, Clementeera muito conhecido em Viena. Além disso Clemente gostava de andar de bati-na Redentorista, embora a Congregação não fosse ainda aprovada na Áustria,e as outras Congregações preferissem, por prudência, andar em trajes secula-res. Isso atraía no princípio a curiosidade, e em seguida a admiração, o respeitoe amor para com o grande Apóstolo.

Não obstante toda essa atividade, não se notava em Clemente aquela pre-cipitação que facilmente se apodera de pessoas muito atarefadas. A impressãoque Clemente causava, habitualmente a todos, era a de uma alegria modesta euma tranqüilidade serena e imperturbável. É como diz a Imitação de Cristo:“Uma alma pura, simples e firme no bem, nunca se desorienta nas preocupa-ções mais agres da vida, porque todo o seu procedimento visa a glória de Deus,e serena dentro em si, esquece-se sempre de si própria” (I. 3.3).

CAPÍTULO XI

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O sábio conselheiroO Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma

profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal.

São Clemente não era apenas Diretor de almas no confessionário; suaprudência, zelo e santidade faziam dele um firme conselheiro para todos osestados e classes de pessoas. Os seus princípios seguros e sãos, manejadossabiamente segundo as necessidades dos que pediam conselhos, nunca erra-vam o alvo. Havendo uma senhora em Viena perguntando ao Pe. ZachariasWerner, quem poderia ser o seu diretor e conselheiro, teve por resposta: “Nãolhe posso propor para Diretor nenhum outro melhor do que Clemente; porémmais bem servida ficaria a senhora, se conseguisse, mesmo fora da confissão,pedir-lhe os sábios conselhos”. — “Desde o dia que tive a felicidade de meaproximar dele, dizia Maria Rizy, educadora dos filhos do conde Gilleis, tenhosentido sempre alegria e consolação apesar dos meus muitos e graves padeci-mentos; quando se achava muito ocupado ou sem tempo de me ouvir prolonga-damente, dava-me a bênção com as palavras: ‘o que eu não lhe posso dizeragora, dir-lhe-á por mim o Espírito Santo’ e — coisa admirável — nessas ocasi-ões eu adivinhava sempre o que o Pe. Clemente me iria dizer; muitas vezes sóa sua aproximação fazia desaparecer da minha alma todas as angústias e pre-ocupações”. Quando uma vez uma dessas almas pediu a S. Clemente licençapara se deliciar na leitura de um romance, disse-lhe o Santo: “Se quiser tornar-se mais sábia, leia; mas se quiser ficar mais piedosa, não leia, porque a Sra.não precisa disso”. A uma das penitentes disse um dia: “A senhora precisa tirarfora o que é de mulher e mudar-se em homem, se quiser prestar para algumacoisa”. Quando alguém querendo falar-lhe, o encontrava a rezar o breviário,sorria-se o Santo com as palavras: “Se o sr. não está com muita pressa, espereque eu rezo ainda um pouco, para não ter de começar outra vez; mas se estácom pressa faço pausa já”. Especial prazer sentia em presentear alguém comsantinhos, terços, medalhas, para que os distribuísse aos outros, dizendo: “Ar-ranje com isto bastante amigos para Nosso Senhor”; só dois santinhos ele guar-dou sempre consigo e não os deu a ninguém por mais que os tivessem pedido.Uma donzela que queria entrar no convento, queixou-se ao Santo, de que ascondições da vida a obrigavam a ficar no mundo ainda muitos anos, e que porisso temia não poder ser recebida mais tarde no convento por causa da avança-da idade. Clemente baixou os olhos, ficou uns momentos silencioso e pensati-vo, dizendo depois: “Fique sossegada, daqui a pouco a senhora será aceita emum convento, mas não faça nenhum plano a respeito”. E de fato, pouco depois,

ela entrou no convento das Irmãs Redentoristas, que naquele tempo eram ain-da desconhecidas na Áustria.

Cuidado especial dedicava ele às vocações religiosas ou sacerdotais. Sem-pre muito cauteloso e extremamente reservado nesse assunto, não deixavanada sem tentar quanto se convencia de que alguém era realmente chamadopor Deus para a vida religiosa, que ele, em sua fé profunda, só olhava à luz daeternidade.

A uma Religiosa da Visitação disse o Servo de Deus uma vez: “Só na horada morte é que a senhora irá avaliar quão grande e sublime é a graça da voca-ção religiosa; toda a grandeza do mundo não é nada em comparação dela” —Quando se tratava de levar alguma donzela ao convento, não olhava as dificul-dades por grandes que fossem. Uma filha de boa família desejava ardentemen-te entrar no convento das Carmelitas em Praga, mas a oposição dos pais eraformidável; como não encontrasse meios de os convencer, a pobrezinha recor-reu a São Clemente pedindo seus conselhos e auxílio. O Servo de Deus deter-minou a hora em que ela deveria expor novamente aos pais a resolução inaba-lável do seu coração. Chegada a hora, Clemente estava já à porta. Ao cair oassunto sobre o ponto delicado, batem à porta. Era Clemente que simulandoignorar o caso, perguntou, a sorrir, sobre que versava a conversa, e com tantaeloqüência, vivacidade e calor discorreu sobre a beleza da vocação, que ospais deram de boa vontade o consentimento. Muito significativa é a notícia queAntônia Ott nos narra sobre S. Clemente a esse respeito,, quando escreveu: “Jáde há muito eu sentia o mais ardente desejo de me consagrar inteiramente aDeus na vida religiosa, mas roceira e ignorante, não sabia como realizar o meudesejo... um dia vi passar pelas ruas de Viena um sacerdote venerável, que meparecia transfigurado. Dois anos mais tarde, tive de ir novamente à Viena... en-trei na Igreja de Santa Úrsula; indizível alegria apoderou-se de mim quandoreconheci o padre que oficiava nas cerimônias e que levava o Santíssimo doaltar-mor à uma capela lateral... Abri-lhe o coração... O Santo interessou-se pormim, fez-me instruir, aprendi a ler, escrever, contar, e até a falar francês parapoder entrar na Visitação”.

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CAPÍTULO XII

O Santo SuperiorVida interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vida de simpli-

cidade — Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitosdos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma.

Clemente, homem de ação, alheio a todo o sentimento estéril, amava epromovia entre os seus a vida interior, que para ele era a alma de toda a vidareligiosa. Alegrou-se vivamente quando Deus lhe mandou os dois franceses Pe.Passerat e Pe. Vannelet, que tinham propensão especial e declarada para avida de piedade e que a compreendiam e praticavam, servindo de modelo paraos demais confrades; por esse motivo entregou ao Pe. Passerat a formação edireção dos noviços, e mais tarde, quando precisou do Pe. Passerat para umposto de maior responsabilidade ainda, confiou o noviciado ao outro amigo davida interior, isto é, ao Pe. Vannelet.

Clemente era todo olhos e cuidado para os seus caros confrades; amava-os com amor forte e esclarecido; era antes severo que benigno, não era todaviapedante escravo da letra que mata; quando necessário sabia adaptar, com ge-nerosidade, a Regra às circunstâncias. Em se tratando porém da observânciaregular e da manutenção da disciplina era simplesmente inexorável.

Em ponto de pobreza religiosa não admitia concessão alguma nem nasmenores coisas. Quando se tratou em Nápoles de introduzir na Congregação opecúlio, para a maior comodidade dos súditos, Clemente protestou com ener-gia. Aconteceu uma vez que um padre, por descuido, aceitou uma fita de sedae a pregou em seu manto. Era uma falta contra a Regra, que proíbe aos padreso uso da seda, a não ser nas igrejas; essa falta custou-lhe caro. Tendo o Pe.Clemente de fazer uma visita a uma família muito conhecida, levou consigo oreferido sacerdote; no meio da palestra perguntou aos presentes, se queriamconhecer um redentorista não observante da Regra, e apontou para o laço deseda, preso no manto do Pe. Martinho Stark, e em seguida despediu-o seca-mente dizendo: “Pode ir-se embora”. A família edificou-se com a modéstia e ahumildade do padre, que com serenidade se retirou sem nenhum sinal de con-fusão ou desaprovação.

Do mesmo rigor usava Clemente em se tratando da obediência. Estava eleuma vez em Babenhausen, cujo Reitor era o Pe. Passerat, homem de extraordi-nária virtude e de observância regular exemplar. Aconteceu demorar-se o Rei-tor um pouco mais que de costume nas confissões e retardar sua chegada aorefeitório. Clemente aproveitou a ocasião para humilhá-lo; passou-lhe uma for-midável descompostura e por castigo fê-lo tomar a refeição sentado no chão.

Procedendo assim queria Clemente dar aos padres e irmãos daquela residên-cia uma ocasião de conhecerem a grande virtude de seu Reitor e se edificaremcom a heróica humildade e vida interior dele.

A simplicidade devia ser a virtude predileta dos seus padres, e por isso elenada se poupava para vê-la praticada por todos os seus filhos espirituais, econseguiu-o admiravelmente, de sorte que nas maiores dificuldades e priva-ções das novas fundações todos se conservavam satisfeitos e contentes. Osábio Pe. Vannelet não julgava indigno da sua pessoa rachar lenha, varrer oquarto, adornar a igreja, ajuntar os materiais para a nova igreja etc. Queria queos Redentoristas aprendessem a vencer-se constantemente e desprezar asvaidades do mundo: eis porque, às vezes humilhava seus padres contra o amorpróprio. O Pe. Martinho possuía um exterior atraente e manifestava certa ten-dência para a elegância e belas maneiras na sociedade; com o fim de abater-lhe o amor próprio Clemente, estando em Viena, mandou-o buscar em um gran-de jarro água fresca dum poço distante fora da cidade, e num vaso enormecomprar meio litro de leite. Ninguém estranhava tal procedimento porque Cle-mente era o primeiro a proceder dessa forma e a dar o bom exemplo. A esserigor unia sempre o sorriso da bondade nos lábios. Quantas vezes sentava-se àmesa sem provar coisa alguma! jejuava com gosto enquanto os outros se ali-mentavam abundantemente. Não admitia queixas quanto ao preparo das comi-das tendo isso como coisa indigna dos discípulos de um Deus Crucificado. Per-cebendo, às vezes, que o cozinheiro, pouco entendia do ofício, o próprio Vigáriogeral da Congregação abalançava-se até a cozinha e preparava as refeiçõespara os súditos. Quem com ele viajava, tinha de ir a pé; o exemplo de Clementeporém adoçava o cansaço da viagem.

Clemente suportava com calma e tranqüilidade as maiores ofensas e osdesacatos feitos à sua pessoa, mas era-lhe extremamente difícil conservar acalma, quando um Religioso que é de um modo especial consagrado a Deus,maxime um súdito seu, cometia alguma falta. Nem sequer os maiores Santossão inteiramente livres de certas imperfeições, que Deus permite para os con-servar na humildade. Sendo S. Clemente de um temperamento violento e pos-suindo uma vontade de aço, por vezes deixava-se levar um tanto por algunsmomentos de santa ira e indignação por causa de Deus. Clemente conheciaesses defeitos; logo depois do primeiro ímpeto deixava seguir o arrependimen-to, levantava então os olhos ao céu e batia no peito dizendo: “Homo nequamsum, sou um servo indigno”.

Com tal temperamento do Superior, os súditos tinham, às vezes, de sofrerum pouco. Quem, porém, mais lutava e padecia com isso era o próprio Servo deDeus, não só um ano ou dois, mas sempre até o fim da sua vida, como prova ofato seguinte que ele mesmo contou a um amigo com todos os pormenores. Umbelo dia os dois padres Martinho e Sabelli causaram-lhe um desgosto maior doque o Servo de Deus esperava receber. Indignado disse-lhes Clemente que,nesse caso, fizessem o que bem lhes parecesse, que não ficaria mais com eles,mas iria para a América, e sem mais esperar, aprontou a mala em sinal dedesaprovação, e retirou-se.

Os dois padres ficaram perplexos e confusos sem saberem o que fazer oupensar. Clemente dirigiu-se à Igreja de N. Sra. Auxiliadora que costumava visi-

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tar todas as semanas. Enquanto, prostrado diante do altar, fazia suas preces àMãe de Deus, compreendeu o mal da sua precipitação, arrependeu-se; quiseravoltar, mas a sua posição de Superior não lhe permitia rebaixar-se diante deseus súditos. Clemente esperou que os padres arrependidos o fossem procu-rar. Seria essa a melhor solução; mas os dois padres nem se lembravam disso.Com o coração pesado e pesaroso levantou-se e devagar e pensativo dirigiu-seao norte da Áustria rezando sempre. Já estava longe quando ouviu um rumorcomo de alguém que se aproximava: eram os dois padres que arrependidos lhesuplicavam que voltasse para casa. Nunca acedera Clemente de tão boa vonta-de a pedido algum como dessa vez. De caminho para Viena disse Clemente:“Infelizmente eu sou assim; dou graças a Deus que tenho esse defeito porquedo contrário eu poderia ser tentado a beijar-me as próprias mãos por pura vai-dade e consideração para comigo mesmo”.

Em geral, porém, Clemente combatia-se e procurava tratar a todos com amaior mansidão possível a exemplo do divino Mestre. Um rapaz de seus 19anos, de muita boa vontade, mas de uma susceptibilidade única, desejava ar-dentemente tornar-se redentorista; pediu a Clemente que o recebesse e o San-to colocou-o entre os seus discípulos. Aconteceu que havendo o moço cometi-do uma falta qualquer, Clemente repreendeu-o como de costume não com lu-vas de pelica mas com termos claros e concisos. O jovem indignou-se interior-mente, fechou carranca e silencioso retirou-se para seu quarto, onde se pôs ameditar sobre a injustiça da repreensão recebida. Não demorou muito bateramà porta; era Clemente que ia ter com o moço; não tinha já a severidade no olhare no rosto, mas o sorriso nos lábios e um papel na mão; chegou-se e levantandoum pouco a fronte ao jovem perguntou-lhe em tom suave: “Você conhece estecântico? vamos cantá-lo juntos” e em seguida lançou-lhe um olhar de ternuracomo se dissesse: “Não seja mau, eu não quis magoá-lo” Clemente pôs-se acantar e o jovem acompanhou-o: era um dueto abençoado. No fim do cântico omoço estava outro, alegre e satisfeito.

Clemente era não só respeitado mas também amado de seus súditos; al-guns até quase se tornaram fanatizados por ele devido às boas qualidades doseu coração, como o provam as cartas dos súditos ausentes, que manifestamas saudades e o desejo ardente de tornar a ver o pai e abraçá-lo ternamente. —Clemente conseguiu conservar o bom espírito entre os seus, conduzindo-oscom brandura e energia à própria fonte: Jesus Sacramentado. Educou-os paraa oração que dá força e coragem; na meditação de manhã, era ele quem faziamuitas vezes a consideração em voz alta. “Na meditação da manhã, escreveCzech, Clemente nos inspirava seu espírito, o seu amor a Jesus e Maria, a suadedicação à Congregação e o seu zelo para todas as virtudes”. É essa a chavede todo o segredo.

CAPÍTULO XIII

O amigo das criançasPorque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção

— Carlito obediente — A criança judia batizada — O mais belo vestido — Asalunas das Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Pro-messas do arquiduque.

Sendo certo que São Clemente, em seu zelo apostólico, não se descuidoude nenhuma classe social procurando levá-la a Jesus, se trabalhou incansavel-mente pela conversão dos pecadores, parece ter-se distinguido ainda mais noamor às crianças. E quem o diria! ele, o homem de têmpera de aço, de forçamáscula, de planos gigantescos, de relações íntimas com as rodas mais aristo-cratas de Viena, sentia verdadeiro prazer em estar com as criancinhas, empassar com elas bons momentos de sua labuta apostólica. É que o lema da suavida era a imitação completa da vida do divino Mestre: e Jesus afagava ascrianças e com elas se entretinha. Além disso Clemente subordinava tambémessa atividade ao plano grandioso, que se propusera de restaurar a sociedadepelos princípios sãos do Evangelho. Como for a infância e em geral a mocidade,também será a vida futura; das disposições e da educação das crianças depen-dem os destinos da sociedade; e por isso Clemente devia começar pela infân-cia. O Servo de Deus ligava à educação uma importância capital, porque, pen-sava ele, se acaso as más companhias vierem mais tarde, conjuntamente comas paixões, arrastar os pobres corações para o abismo, estes, nos momentosda reflexão e da desilusão, facilmente se recordarão do que ouviram ou apren-deram na infância, e espontaneamente se lançarão nas mãos do Redentormudando de vida.

Como o Servo de Deus, em todos os seus trabalhos, não procurava senãoo bem das almas e a glória de Deus, gostava dos afazeres, que facilmentepermanecem encobertos aos olhos do mundo; é também por mais essa razãoque se dedicava de um modo todo especial à educação da infância. No alto dopúlpito um dos assuntos mais freqüentemente tratados, explicados e inculca-dos era a educação dos filhos. “Pais e mães, disse ele uma vez, não vos esqueçaisque é de vós que, em grande parte, depende a bênção ou a maldição da socie-dade humana, porque a vós é que está confiada a educação da humanidade;formareis uma boa geração se souberdes reprimir a rebeldia de vossos filhos; oque se semeia no coração da criança produzirá fruto na velhice; convencei-vosde que, se fizerdes o que está em vós, Deus dará o incremento e a prosperida-de”. O leitor ainda se recordará do quanto S. Clemente trabalhou e fez para ascrianças, mormente para os órfãos de Varsóvia. Ora esse mesmo zelo desen-

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volveu-o S. Clemente em Viena. Ele mesmo, em pessoa, reunia as crianças dagrande Cidade, ensinava-lhes as verdades principais da religião, instruía-as paraa confissão e a santa comunhão. O Servo de Deus tinha sorte nessas suaspesquisas para Deus, via-se constantemente rodeado de crianças, que sabiaagradar e atrair, segredo esse que nem todos conhecem. A criança gosta deagrado e carinho, contanto que procedam de um coração bondoso e sincero, eo Servo de Deus não regateava os presentes aos pequerruchos: santinhos,medalhas, frutas e doces eram distribuídos com profusão entre a criançada. AIrmã Thadéa descrevendo o Santo nesse particular conta-nos que “quando oServo de Deus andava pelas ruas da cidade, os meninos corriam para ele,beijavam-lhe as mãos e o rodeavam como um enxame de abelhas; e comoClemente se entretivesse muito alegre e familiarmente com eles, permaneciamem companhia do Santo um bom pedaço de tempo e, não raro o acompanha-vam até a residência, onde o Servo de Deus os instruía e os presenteava comsantinhos, doces, frutas etc”.

Quem toma em consideração o grande plano que S. Clemente se esboçarapara a restauração religiosa da Europa, compreenderá facilmente porque é queo Santo se dedicara à educação da infância também nos colégios. É sabido queos Redentoristas se dedicam, por lei, exclusivamente às missões, aos retirosespirituais e a outras ocupações congêneres; e a fim que eles possam maisdesimpedidamente dedicar-se à vida apostólica, S. Afonso proibiu-lhes ter adireção de colégios, de seminários etc. Ora São Clemente não podia pregarmissões, por a Congregação não ser ainda reconhecida na Áustria e nos outrospaíses do Norte, e por causa dos tempos turbulentos de então, que não lh’opermitiam. Com a licença expressa dos seus Superiores da Itália, que lh’a con-cederam como por exceção, foi-lhe permitido abrir colégios, cuidar de orfana-tos, instruir as crianças nas escolas etc. Nesse ponto o zelo de São Clementeera inexcedível.

As crianças, sentindo o afeto carinhoso do Servo de Deus, amavam-nocom sinceridade deixando-se influenciar grandemente pela palavra de Clemen-te, que aceitavam como se fora a palavra do próprio Deus. Ao voltar, uma vez,para casa numa sexta-feira, São Clemente teve, como sempre, a companhia dediversas crianças entre as quais se achava um rapazinho vistoso e de bonsmodos, por nome Carlos, filho do Conselheiro de Sua Majestade o imperadorFrancisco I. Como era de manhã, o Servo de Deus perguntou ao pequeno, queé que sua mãe lhe iria preparar para o almoço, ao que o menino ingenuamenterespondeu que iria comer carne etc. como de costume. O Santo não perdeuvasa de ensinar o pequeno e disse-lhe compassadamente: “Carlito, temos obri-gação de executar todos os preceitos da Santa Igreja, e por isso não podemoscomer carne nas sextas-feiras; temos de fazer esse pequeno sacrifício por amorde Nosso Senhor que morreu por nós em uma sexta-feira”8. Em seguida pôs-sea falar, com coração, na Paixão e Morte de Jesus descrevendo-a em vivas co-res de modo acessível às crianças, e no direito que a Igreja tem de nos dar suasleis etc. Por fim o rapazinho depositou um ósculo na mão do venerando sacer-dote, que conquistara um trono em seu pequeno coração, e foi-se para casa. —A hora do almoço percebeu o pequeno que a cozinheiro preparara carne elembrou-se das palavras de São Clemente; com toda a modéstia e respeito

aproxima-se do pai e diz-lhe: “Papai, hoje eu não como carne”. Supondo que opequeno estivesse doente, perguntou-lhe a causa, ao que o menino respondeu:“É por ser sexta-feira; a Santa Igreja proíbe comer carne no dia de hoje emmemória da sagrada Paixão de Nosso Senhor”. O pai, despeitado pela liçãoque o próprio filho lhe passava, cerrou os sobr’olhos, como que a mostrar supe-rioridade e a abafar os remorsos da consciência, e perguntou: “Quem foi que t’odisse?” — “O Pe. Clemente”. — O nobre senhor indignou-se, enraiveceu-se,exasperou-se afirmando que nenhum padre mandava em sua casa, que nãoera o padre que comprara a carne e que não tinha que determinar o que deviaser preparado na cozinha; em seguida com um tom de espantar, dirigindo-se aomenino, intimou-o: “Põe-te já a comer!” O pequeno pôs as mãozinhas e, osolhos a derramar lágrimas, pediu ao pai que por amor de Deus o dispensassedaquela ordem. Mais enfurecido ainda com a resistência do pequeno, com vozimperiosa e sobr’olhos carregados diz ao pequeno: “Retira-te da minha vista;hoje não comerás mais coisa alguma”. O menino levanta-se e, os olhos baixos,arrasados de lágrimas, vai ter com a mãe e enxuga as lágrimas no avental dela.Enternecida pergunta esta ao filho o que se passara. Ao tomar conhecimentodo caso, consola-o dizendo: “Não chores, meu filho; vou preparar-te uma comi-da de farinha”. Carlito, porém, sacudindo brandamente a cabecinha inocentediz: “Não, mamãe, papai disse que eu não comesse nada hoje, devo e queroobedecer-lhe; o Pe. Clemente nos disse tantas vezes ‘meninos, obedecei a vos-sos pais’; mamãe, não tenho medo, eu agüento passar o dia sem comer”. Amãe, tomando as dores do filho tão obediente e amoroso, dirige-se ao pai, edepois de eloqüente filípica pergunta-lhe na certeza do triunfo: “Então queresque nosso filho morra de fome? carne ele não come, e outro alimento não quertomar porque tu lh’o proibiste; isso estão é coisa que se faça?” Ao perceber aobediência do filho o coração paterno enterneceu-se; o pai chamou o pequeno,louvou-o dizendo: “Pois bem, meu filho, às sextas-feiras não comerás carne dehoje em diante, e agora come o que tua mãe te vai dar”. O conselheiro doimperador encheu-se de admiração e respeito para com o Pe. Clemente quesoube infiltrar no ânimo da criança tanto respeito e obediência aos pais, e emprópria pessoa levou o pequeno a Santa Úrsula para que fosse o coroinha doPe. Clemente.

O que atraía São Clemente para as crianças, não era nenhum motivo natu-ral de sentimentalismo doentio, mas unicamente a inocência que via estampa-da no rosto da criança e que queria conservar e adornar. Nos primeiros anos daestada de Clemente em Viena deu-se lá um caso edificante, mas singular. Umafamília judia tinha uma empregada católica de grande piedade, mas também deinconcebível ingenuidade. Na família havia uma menina em extremo galante deseus dois anos de idade. A empregada, amiga íntima da criança, contristou-secom o pensamento de que a menina, embora tão boa e tão formosa, não pode-ria nunca entrar no céu por não ser batizada; e esse pensamento a contrariavae incomodava dia e noite. Por fim julgou encontrar uma solução, que lhe pare-ceu uma inspiração do céu. quando criança aprendera nas aulas de catecismo,que em caso de necessidade qualquer pessoa pode e deve batizar, e isso semhaver distinção de homem ou mulher, cristão ou pagão, sem padrinhos ouvelas, sem cerimônias e, mesmo, sem ser da Igreja. Raciocinou, como pôde, e

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convenceu-se de que o caso da criança judia era um caso de extrema necessi-dade, porque do contrário, a criança nunca seria batizada e por isso nunca veriaa Deus no céu por toda a eternidade. Fechando-se no quarto com a criança,tomou água limpa e despejando-a sobre a cabeça da menina pronunciou aomesmo tempo, as palavras: “Eu te batizo em nome do Padre e do Filho e doEspírito Santo”. Idéia tão geniosa ela nunca a tivera em sua vida, guardou se-gredo inviolável e o coração a transbordar de contentamento pela ação heróicae generosa que acabava de praticar, foi triunfante participar tudo a uma dasIrmãs Ursulinas, que não sabendo o que dizer a respeito, mandou-lhe exportodo o caso ao Servo de Deus, o que ela fez sem o menor acanhamento, espe-rando receber do Santo os mais rasgados elogios. Ao ouvir o caso, porém,Clemente abriu os olhos, mostrando admiração, que não era nada sinal de apro-vação. A criança estava batizada, era pois necessário registrar-lhe o nome nolivro dos batizados, participar o caso à autoridade, dar-lhe uma educação cristã;ora tudo isso comprometia a pobre empregada que tudo fizera com tão boaintenção. Que fazer em semelhantes conjunturas? Clemente teve uma idéiasingular. Não querendo que a criança batizada fosse educada no judaísmo evivesse como os hebreus, disse à empregada: “Recomendemos o caso a Nos-so Senhor; talvez queira Deus levar a criancinha para o céu. “Em seguida pôs-se a rezar e mandou que as Ursulinas também rezassem nesse sentido. E defato, poucas semanas depois veio a pequena a falecer e Deus levou-a ao para-íso. Esse caso encerra uma bela instrução e ao mesmo tempo uma grandeconsolação para os pais. A alma vale infinitamente mais do que o corpo, a vidano céu é imensamente preferível à vida terrena cheia de misérias e amarguras.Quando Deus chama a si uma criança, na flor dos anos, Ele o faz por misericór-dia prevendo talvez a perdição futura da criancinha. É pois justo, que os pais seconformem com as disposições divinas, e longe de se rebelarem contra os juízosde Deus, se curvem reconhecidos diante Dele, aceitando de suas mãos benig-nas essa provação. É escusado dizer que somente por causa da salvação daalma da pequena criança é que S. Clemente pedira a Deus, se dignasse tirá-ladeste mundo. Só assim é que nos compreendemos a palavra do Espírito Santo:“Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o entendimento, ou paraque não seduzisse sua alma o aparente” (Sb 4,11).

Prazer especial sentia São Clemente, quando podia preparar alguma cri-ança para fazer com fruto sua confissão e receber pela primeira vez a santacomunhão. Entre essas crianças havia uma menina galante chamada CarolinaZichy, filha de uma rica e nobre condessa. Essa menina esteve sob a sábiadireção de S. Clemente até a morte dele e sentiu sempre um ardente desejo deabandonar o mundo e voar para um convento, o que porém não conseguiu, porter de tratar de uma tia que dela não podia prescindir; quando esta porém veioa falecer, Carolina, embora avançada em anos, entrou para o convento dasVisitandinas em Bruxelas. Quando menina era ela de uma ingenuidade encan-tadora. Uma vez numa das aulas de catecismo, S. Clemente falou sobre o céu,mostrou a beleza empolgante, arrebatadora dos Anjos e Santos, animando ascrianças com as palavras: “Todas as crianças boas para lá irão, pois que lámora Jesus com sua Mãe e os Santos e os Anjos; a beleza do céu é semprenova, lá não há doenças nem morte, nem fadigas nem trabalhos, mas só alegria

e regozijo em N. Senhor”. A menina era toda olhos e ouvidos às palavras fluen-tes e interessantes de Clemente; de repente porém uma como nuvem sombriapassou-lhe pela fronte. A pequena lembrou-se do seu vestidinho e temendonão o receber novamente no céu, perguntou interessada ao Santo: “Lá no céu agente também tem um vestidinho bonito?” O catequista sorriu-se da ingenuida-de da interlocutora dizendo-lhe: “Ó tolinha, o mais belo vestido que pudessester neste mundo, não passaria de uma hediondez em comparação da glória quetu receberás um dia no céu”. Esse belo vestido a que se referiu o Santo é aglória celeste tecida dos raios puríssimos do céu, reduzindo às sete cores doarco-íris, mais fulgurante que o esplendor do sol no auge do seu brilho, é agraça santificante que nos tornará semelhantes aos Anjos de Deus.

Considerável era a influência exercida pelo Santo sobre as alunas dasUrsulinas, embora não fosse ele o seu professor. As boas irmãs reconhecendoa fundo a santidade do Diretor espiritual não deixavam facilmente passar umaocasião sem levar a S. Clemente as numerosas alunas a fim que as abençoas-se e assim a bênção do céu pairasse sobre o instituto. O Santo do seu lado,grande amigo das crianças, era todo desvelo e solicitude para com as meninas,que o veneravam e lhe obedeciam como a um pai e protetor. Entre outras haviauma natural da Silésia prussiana, que ouvia sempre com a maior atenção einteresse os sermões do Servo de Deus deixando seu coração receber emcheio os ensinamentos tão prudentes e salutares do Santo, os quais a haviamde acompanhar a vida inteira; não poucas vezes dirigia-se ao Santo para lheexpor suas dúvidas e receber os seus conselhos e a sua bênção. Terminado ocurso colegial, a pequena teve de voltar para casa; o pai foi buscá-la, mas aochegar a hora da despedida, a menina pôs-se a chorar, desatou-se em prantosao pensamento da separação das boas irmãs e das companheiras do colégio, emais ainda, do seu pai espiritual. De nada porém valeram suas lágrimas, foiforçoso partir; ao aproximar-se do Santo a quem queria agradecer os bons con-selhos e cuja bênção desejava receber pela última vez, não pôde proferir pala-vra; soluçando de dor ajoelhou-se aos pés de Clemente, que colocando a mãosobre a fronte da menina, levantou os olhos ao céu, como se quisesse arrancaras bênçãos de Deus para a sua dirigida, e disse: “Minha filha, guarda profunda-mente em teu coração os ensinamentos recebidos nesta casa; serás semprefeliz e chegarás a uma idade avançada”. Essa bênção teve efeito duradouro eas palavras de Clemente foram uma profecia que se realizou à risca. A moçacasou-se com o barão de Pongrácz e, sessenta anos depois desse aconteci-mento ela ainda contava, com gratidão, os benefícios recebidos de seu santoDiretor. Mais tarde ela deixou tudo escrito afirmando que a devoção a S. Cle-mente se tornara o patrimônio da família, que nos transes difíceis sempre re-corria a sua valiosa proteção.

A narração seguinte é mais uma prova do seu zelo pela educação religiosada infância. “Uma vez, escreve a Irmã Thadéa, encontrou S. Clemente um rapazcompletamente abandonado; a fome transparecia de seus olhos fundos e desuas faces encovadas, a pobreza mostrava-se nos farrapos e trapos miseráveisque o cobriam, o descuido via-se no rosto imundo do pobrezinho; isso tudodava a entender que o menino não tinha nem podia ter uma educação decente.Depois de lhe matar a fome, foi conversando com ele pelas ruas de Viena,

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sobre catecismo e religião, em que o rapaz era tão leigo como o sapateiro emjurisprudência. Por fim chegaram ao prédio escolar; Clemente mandou chamaro Diretor do estabelecimento, apresentou-lhe o menino rogando-lhe que o ins-truísse, que a gratificação correria por conta do apresentador. O Diretor era umdos espíritos fortes e independentes, que julgavam ser a religião boa só para osvelhos, que já tem um pé na sepultura, mas não para gente nova que quergozar da vida, e muito menos para homens que se sacrificam pelo bem-estarda sociedade, e que tem muita outra coisa mais importante a fazer. Enquanto S.Clemente lhe falava, com todo interesse, sobre a necessidade da educação einstrução do menino, começaram a ecoar pela cidade os primeiros sons melodi-osos e harmoniosos do sino de Santa Úrsula; momentos depois os outros sinosda cidade, com seus afinados acordes, produziam uma música admirável, quese fazia ouvir até os fundos dos arrabaldes. O Diretor que ignorava a significa-ção daquele concerto harmonioso, julgou-se autorizado a fazer um gracejo demau gosto a S. Clemente dizendo: “Escute, estão tocando para a bóia”. A essapalavra o Santo mudou de cor, tristeza e compaixão oprimiram-lhe o coração:era um insulto a sua Mãe Santíssima e a Jesus seu divino Filho. “O que? — o sr.é professor e deve ensinar religião às crianças e nem sabe o que significa essetoque de sinos?” Depois de lhe dar uma explicação sobre o Angelus que se tocatrês vezes ao dia, a saber, e manhã, ao meio-dia, e à tarde em recordação domistério da encarnação, e depois de lhe mostrar a grande conveniência dessesinal, a qual resulta da obrigação que temos de saudar a Virgem Santíssima emreconhecimento dos inumeráveis benefícios recebidos, instruiu o professor compalavras delicadas, fez-lhe ver o quanto estava longe da verdadeira pedagogia,e o professor, envergonhado das suas palavras descabidas, balbuciou umasfrases de desculpa e retirou-se; os ensinamentos do Santo, porém, gravaram-se-lhe tão profundamente na alma, que arrependido não pôde continuar nomundo, abandonou-o e internou-se num convento para servir a Deus e a Ss.Virgem com mais fidelidade e amor.

A idéia da educação da infância era sempre uma das suas mais solícitaspreocupações. Olhando para a grande cidade de Viena deplorava o abandonoem que se achavam milhares e milhares de crianças, não só nas classes po-bres, mas até entre os nobres e ricos, de sorte que só com temor encarava ofuturo religioso da sua Pátria. Já em 1813 acalentara a idéia de fundar um colé-gio para os meninos das melhores famílias, e não o podendo fazer pessoalmen-te, insistiu com o célebre Adam Müller a tomar em mãos e a levar avante tãoimportante empresa. Esse literato conselheiro da corte, aceitou gostosamentea idéia e pôs-se imediatamente a realizar o nobre e grandioso projeto. Paramais o animar na filantropia empresa São Clemente prometeu-lhe três padresRedentoristas para professores. O princípio foi auspicioso, alentado pela maisfagueira esperança; quando porém recorreram ao governo pedindo a aprova-ção, encontraram as maiores dificuldades; os funcionários públicos temiam queos alunos desse Colégio, orientados por São Clemente, só aprendessem a re-zar o terço e cantar ladainhas, e tivessem maior amor a Roma do que a Áustria.O resultado foi que o colégio teve a sorte das demais belas empresas quefracassam pela má vontade de certos indivíduos, dos quais afinal tudo depen-de. O Servo de Deus porém não era desses que desanimam com qualquer

fracasso. O demônio havia triunfado, e Clemente aguardava oportunidade me-lhor em que Deus haveria de vencer e de manifestar-se indubitavelmente. Al-guns anos mais tarde, quando o ruído dos canhões e das guerras já tinhamacabado de soar ao longe, Clemente bateu à porta de um senhor nobre deViena, pedindo-lhe se interessa-se pela idéia e abrisse um colégio para as clas-ses nobres da sociedade vienense, pois que os pobres já possuíam colégios eoutros estabelecimentos desse gênero. Naturalmente o Colégio a fundar-sedeveria basear-se sobretudo na instrução religiosa, sem a qual toda formaçãointelectual e moral é necessariamente falha e quase sempre, prejudicial. Essesenhor era Afonso Klinkowström que descreve a idéia do modo seguinte: “Trata-se de difundir a consciência católica há pouco despertada em Viena, e limitadaentão a um pequeno número de homens escolhido, bem como de conseguir pormeio da educação cristã uma nova geração não eivada do indiferentismo religi-oso do tempo, porquanto as ordens religiosas, incumbidas dessa missão, sehaviam desviado desse objetivo desde o período da reforma josefina”. Haviatudo, menos o dinheiro para tão grandiosa empresa. Clemente, porém, confia-do na Providência, que não os poderia abandonar, saiu com o futuro Diretor aosarrabaldes de Viena, e ao avistar um prédio que se prestava, disse sem maishesitações: “Compre esse, que Deus providenciará pelo dinheiro”. E Klinkowströmcomprou-o sem um vintém na algibeira; a confiança do Santo não foi desmentida:Deus enviou um ricaço que emprestou o necessário a juros módicos. A aprova-ção a obter-se do governo era a questão mais difícil. Clemente pediu a Deus, sedignasse mostrar-lhe, desta vez, o modo mais seguro de conseguir a aprova-ção desejada. Em vez de se dirigir diretamente ao monarca, foi ter com oarquiduque Maximiliano José, primo do imperador, o qual, católico prático, sedeixou entusiasmar pela idéia, e de olhos baixos, depois de fazer seus cálculos,prometeu alcançar do imperador a necessária aprovação desejada. Ora acon-teceu que enquanto fitava o chão para não se distrair em seus cálculos, viu queos sapatos de São Clemente estavam rotos, de forma a aparecem as meios dediversos furos. Embora qualquer outro membro da nobreza ou da aristocraciaestranhasse semelhante procedimento, tornando-o em conta de pouco caso outendo como desconsideração o aparecer assim esfarrapado em audiência ofici-al, o arquiduque edificou-se com a santidade e desapego do Santo, que seesquecia de si próprio para só se lembrar dos outros. Comovido tomou a peitoos rogos do Servo de Deus, e chegou até a fazer a promessa de não tomaraçúcar no café, em sinal de penitência se Deus ouvisse o seu pedido e moves-se o coração do imperador a aprovar o projeto e o novo estabelecimento deensino. A aprovação foi concedida pelo monarca e o arquiduque cumpriu comescrupulosa exatidão a sua promessa, não provando mais açúcar em toda suavida, nem mesmo quando se sentava à mesa com príncipes ou monarcas. Quan-do alguém lhe chamava a atenção respondia laconicamente, que estava habitu-ado a não tomar açúcar no café. Só ao aproximar-se da morte, é que ele reve-lou a seu confessor o motivo dessa sua abstinência. O instituto fundado pelosesforços de Clemente, e em parte dirigido pela sua prudência, prosperou admi-ravelmente recebendo alunos de quase todos os países da Europa v. g. daAlemanha, Áustria, Nápoles, Polônia, Constantinopla etc. Mais de duzentos edez alunos, que se celebrizaram mais tarde nos diversos ramos da ciência,passaram por ele e prestaram os mais relevantes serviços à Igreja e à Pátria.

CAPÍTULO XIV

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São Clemente e a mocidadeO magnete admirável — Pedagogo ideal — Os êxtases do Santo — Os

passeios pela cidade — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor àpureza — Padre novo — Expor dúvidas — José Lobo — O despertador traidor— Os secretas.

Com toda a razão comparavam São Clemente ao magnete, pois que co-nhecia o segredo de atrair a si todos os corações. Realmente não havia emViena classe alguma de pessoas que não o procurasse em sua pobre residên-cia para receber seus conselhos ou para procurar consolo em alguma dor ousofrimento físico ou moral; entre essas pessoas encontravam-se também pro-testantes, gregos cismáticos e até indivíduos que, em geral, se sentem mal nacompanhia de algum padre católico. Um atrativo especial sentiam os rapazesque a ele corriam, e a ele se apegavam não o querendo deixar nunca, como sepertencessem à família do Santo. Quando o Servo de Deus descia do púlpito, jáalguns estudantes o esperavam na sacristia para o cumprimentar, beijar-lhe amão ou travar amizade com ele; desejavam achar-se ao seu lado e em suacompanhia nas reuniões que se efetuavam, todas as tardes, em sua residência.Um estudante servia de chamariz para o outro; aos poucos aumentou-se consi-deravelmente o número dos alunos de Clemente, entre os quais se achavamestudantes de medicina, teologia, jurisprudência etc. Grande parte desses es-tudantes haviam já perdido a fé, outros haviam sido panteístas, ateístas,racionalistas etc. S. Clemente converteu-os radicalmente em grandes amigosda Igreja. Vinte e sete dentre eles abandonaram o mundo e entraram na Con-gregação do Ss. Redentor, tornando-se colunas da Congregação na Áustria eno resto da Europa além dos Alpes. Era belo e encantador ver os moços jubilosos,sem respeito humano, ajoelhados todos os domingos à mesa da comunhão naIgreja de Santa Úrsula a receber o corpo sacramentado de Jesus. Diariamenteachavam-se mais de 60 rapazes na igreja das Ursulinas para à missa das 7horas empunhando algum livro piedoso, o terço da Virgem, ou rezando todosem voz alta e clara. Quando alguém admirado perguntava a São Clemente comoé que conseguira tantos rapazes para Nosso Senhor, respondia ele: “Eu tam-bém não sei como é que Deus quis reunir tantos moços ao redor de mim, comose fossem minha guarda de honra”. Isso o Santo dizia com grande humildade,porquanto não desconhecia que amor atrai amor. Ele amava muito a mocidade,e os rapazes retribuíam-lhe na mesma moeda. Para cada estudante era o Ser-vo de Deus pai e mestre, conduzindo todos com a maior prudência no caminhoda virtude à prática exata da religião, mesmo nos pontos que pareciam insigni-

ficantes. São Clemente era um pedagogo consumado, de uma prudência extre-ma e comprovada por uma experiência de muitos anos. A virtude principal deClemente, como pedagogo, era a caridade incomparável, que o animava a to-dos os atos e lhe traçava a norma de proceder para com cada um dos estudan-tes. Dos principiantes exigia pouco, porque os achava ainda fracos na virtude, enão poucas vezes os agradava com algum carinho especial, alguns elogiosmerecidos, ou com palavras de animação. Aos mais provectos na virtude rega-teava aplausos, que excitam a vaidade, fomentam o orgulho e tiram a força davirtude; não poucas vezes dizia-lhes verdades sérias, naturalmente com bon-dade e a seu tempo: em tudo isso porém transparecia o amor que S. Clementeconsagrava a seus queridos rapazes, que por isso aceitavam tudo quanto oSanto lhes dizia. Nessas reuniões e, em geral sempre que se achava com osestudantes, falava pouco e isso mesmo com muita ponderação e prudência; umsorriso amável enflorava-lhe constantemente os lábios e a placidez e a bonda-de resplandeciam de todo o seu físico espelhando a grandeza da sua alma.Sempre que algum estudante a ele se dirigia, Clemente o recebia e ouvia, en-tretendo-se com ele como se não tivera coisa mais importante a fazer; mesmonas horas em que a enfermidade lhe acabrunhava o corpo e abatia a alma, SãoClemente era para seus estudantes a amabilidade personificada.

Depois dos trabalhos penosos do dia, das corridas pela Cidade em visitaaos enfermos e aos pobres, ou em benefício da causa santa, encontrava Cle-mente, à noite, uma multidão de estudantes que já o esperavam, alegres, diver-tindo-se na residência do Santo cuja casa não tinha nem tranca nem trinco paraos rapazes que podiam nela entrar ou sair à vontade. Ao chegar em casa, Cle-mente os saudava ordinariamente com as palavras originais, que os faziam rir atodos: “Oh! que raça! que grandes marotos!” e depois de pendurar sua capa,entretinha-se um tempo com eles, e em seguida abrindo o armário velho distri-buía-lhes o que para esse fim havia reservado dos presentes recebidos: maçãs,nozes, peras, pão, doces etc. Clemente servia-se dessas reuniões familiares eíntimas para infiltrar nos corações e inteligências dos rapazes os princípios só-lidos da religião, e animá-los à prática constante das virtudes cristãs. Depoisque os moços se haviam divertido bastante, Clemente abria um livro, geralmen-te da história eclesiástica, e mandava um dos estudantes fazer a leitura, duran-te a qual o Santo semicerrava os olhos: quando ocorria algum caso maisedificante o Santo interrompia a leitura, para fazer suas explicações e conside-rações, tendo sempre em vista nesses comentários o bem espiritual dos rapa-zes. O mais interessante é que os estudantes se sentiam, nessas ocasiões,mais felizes do que se passassem aquelas horas no jogo, nas vendas, noscabarés e teatros ou talvez em namoros pouco recomendáveis, que excitam aspaixões e fazer perder a calma e a saúde. Por vezes sucedia que durante aleitura, mormente quando se tratava da bondade e misericórdia divina, Clemen-te inclinava a fronte e fechava os olhos a meditar nesses atributos divinos. En-tão parecia ter a fronte cingida de uma auréola e o rosto resplandecia-lhe combrilho desusado, saindo-lhe dos lábios palavras que traíam os seus transportesinteriores, as faces tornavam-se rubras como a púrpura, e os estudantes que onão perdiam de vista, comovidos derramavam lágrimas. Era para nós — contauma testemunha — o sinal de que a conversa estava acabada, e retiravamo-

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nos dizendo um para o outro: “O padre Clemente sente outra vez alguma coisaextraordinária”. Os rapazes não se enganavam. O Servo de Deus sentia que iaentrar em êxtase e, com grande humildade, despedia todos os que pudessemser testemunhas desse prodígio.

No verão ou no outono, quando o tempo era bom e convidativo, o Servo deDeus encurtava a leitura e saía com os seus rapazes pelas ruas da Cidade,escolhendo para seus passeios os lugares mais movimentados de Viena. Em-bora Clemente andasse sempre com o hábito religioso, manto já usado e sapa-tos de sola grossa, nenhum dos estudantes se acanhava de sair com ele apasseio. Às vezes detinham-se no meio das ruas, muito de indústria; os estu-dantes agrupavam-se ao redor dele a ouvir algum caso interessante. A curiosi-dade atraía então para Clemente a multidão de transeuntes ou dos desocupa-dos, aos quais o Servo de Deus não deixava de fazer algum sermão necessárioou útil.

Quando das torres de Viena soava pela cidade o poético toque do Angelus,os estudantes descobriam e, em plena rua, rezavam, silenciosos, as três Ave-Marias em louvor da Mãe de Deus. Não poucos dos que passavam recorda-vam-se então que eram católicos, imitavam o bom exemplo dado pelos rapazesagrupados ao redor do Servo de Deus e habituavam-se a esse ato tão louvável,que havia já desaparecido em Viena.

Não era sem motivo que São Clemente gostava de reunir, à noite, os seusrapazes: sabia que as horas noturnas são as mais perigosas para os jovens,cujos corações inocentes facilmente se deixam perverter e ilaquear pelo inimi-go das almas; é por isso que o Santo em geral os detinha até a hora em quedeviam ir acomodar-se.

Numa dessas reuniões desencadeou-se uma vez, horrível tempestade: osrelâmpagos cruzavam-se nos ares, os trovões sucediam-se sem cessar, o tem-poral era medonho ficando todos transidos de terror. Mesmo depois de cessadaa tormenta via-se ainda o pavor estampado no rosto dos rapazes. São Clemen-te não deixou passar a ocasião: fez a seus estudantes uma preleção sobre aspalavras de Jesus no Evangelho de S. Mateus (24,27): “Do modo como umrelâmpago sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser também avinda do Filho do Homem”. “Isso acontecerá, disse Clemente, no dia da nossamorte, em que a nossa vida inteira há de patentear-se aos nossos olhos com avelocidade e claridade de relâmpago; a luz com que a veremos, será inteira-mente outra, bem diversa daquela com que agora encaramos a vida, será a luzda eternidade”. A pregação foi tão forte e a ocasião tão asada, que nenhum dosestudantes se distraiu nem perdeu palavra alguma saída dos lábios do Servode Deus. Terminada a alocução não houve quem não quisesse fazer sua confis-são geral.

Entretanto nem todas as pregações de São Clemente eram graves comoessa do trovão; isso seria naturalmente contraproducente porque os rapazesgostam, em geral, de novidade e de expressões e expansões de alegria; aliás ocoração bondoso de São Clemente não lhe permitia tratar com aspereza osseus caros estudantes que constituíam a sua coroa e a sua glória. “Há tempopara tudo, diz o Espírito Santo, para descansar e trabalhar, para chorar e rir”. OServo de Deus gostava de ver seus rapazes alegres e contentes, e mostrava-se

magoado quando percebia algum deles entristecido.Ele mesmo permitia-se algum gracejo inocente contribuindo assim, de sua

parte, para a hilaridade geral. Em Viena havia um senhor muito rico e religioso,por nome Szecheny; esse conde húngaro era dono de uma vivenda magnífica,ou antes, de um castelo suntuoso, circundado de um elegante jardim e vistosoparque. Uma das maiores alegrias do conde era receber a visita de S. Clementee tê-lo consigo nas horas das refeições para assim se entreter com ele familiar-mente e ouvir os sábios e práticos ensinamentos, que abundavam dos lábios doSanto, que era seu Diretor espiritual e o educador dos seus filhos. Madlener, odiscípulo predileto de Clemente, costumava acompanhá-lo nessas ocasiões;Madlener era panteísta e gostava de filosofar. Num desses passeios à casa doconde Szecheny, o filósofo esquecendo-se da terra pôs-se a considerar as nu-vens pardacentas encasteladas no firmamento a forma figuras curiosas de ho-mens e animais, de castelos e cidades, sempre novas e interessantes, figurasessas, que só Madlener via. Na próxima reunião dos rapazes Madlener nãopôde conter-se e pôs-se a descrever as belezas das nuvens do castelo do con-de Szecheny; os estudantes riam-se a bandeiras despregadas da ingenuidadedo filósofo panteísta, com a aprovação de Clemente que não deixava de tomarparte ativa na hilaridade geral. Quando no dia seguinte Madlener quis entrar eabriu a porta, Clemente a sorrir-se com os estudantes saudou-o com a pergun-ta: “Então Madlener, no jardim do conde há nuvens bonitas, não é”? Essas pa-lavras, que não ofendiam a Madlener, tornaram-se por algum tempo a sauda-ção com que era recebido o filósofo panteísta, que mais tarde se tornou umsanto Redentorista.

Por causa da bondade de seu coração, muitas vezes uma única palavra doSanto era bastante para alegrar sincera e intimamente os jovens. Clementeexercia sobre eles uma verdadeira fascinação, em que tudo nos permite ver umcondão sobrenatural. Um dia, conta Werner, encontrei um grupo de rapazesque saíam da casa dele, os olhos a faiscar contentamento, o júbilo estampadono rosto; supondo que ele lhes houvesse dirigido algum discurso singular eextraordinário que os impressionasse, perguntei-lhes o que é que os fazia entu-siasmar tanto. — “Ah! responderam eles, coisa tão linda que jamais temos ouvi-do na vida”. — “Mas que coisa disse hoje o Pe. Clemente?” Ah! ele disse: “Rapa-zes, sede bons e tende juízo”.

Além da convicção religiosa, procurava Clemente, de um modo todo espe-cial, implantar nos corações dos jovens o amor à bela virtude, muni-los para oscombates renhidos, que a mocidade costuma travar com os inimigos da pureza.A conversação com o Santo inspirava aos jovens compreensão e amor para abeleza dessa virtude angélica. João Pilat, um dos seus discípulos, disse: “Sem-pre que ele me abraçava, sentia eu em mim o amor divino”. Os conselhos nessesentido eram mais do que abundantes; a cada passo Clemente falava da pure-za como adorno da alma e fonte de paz e alegria espiritual; aconselhava arecitação do terço nos passeios pelas ruas da cidade, proibia terminantementea leitura dos romances e poesias eróticas, chamava-lhes a atenção prevenindo-os contra as más companhias que costumam ser um dos mais perigosos laçosde Satanás, aconselhava a recepção devota e freqüente dos santos sacramen-tos, maxime da santa comunhão. Com um empenho todo especial pedia aos

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jovens que fugissem da ociosidade e procurassem estar sempre ocupados aexemplo de S. Jerônimo que dizia: “Semper ter diabolus occupatum inveniat” i.é, o diabo deve encontrar-te sempre ocupado. Mormente quando tinha de tratarcom sacerdotes novos ou com teólogos, acentuava ainda mais: “um padre novodeve estar ocupado o dia inteiro, do contrário acabará mal”. O Servo de Deusgostava quando os moços expunham, nas reuniões, suas opiniões, dúvidas,desejos etc. Quando por acaso se originava entre eles alguma contenda oudiscussão mais forte, Clemente intervinha com toda calma e restabelecia a har-monia abalada.

O Santo, detestava a hipocrisia e não admitia, nem de leve, em seus rapa-zes; era difícil enganar o Santo, porque ele, no dizer de Werner, enxergavaatravés das paredes.

Entre os discípulos de Clemente não havia só santos, nem só estudantesde boa vontade que aspiravam à perfeição: havia também alguns velhacos, masisso não admira porquanto entre os doze Apóstolos também houve um traidor.Ao número dos rapazes, que freqüentavam a casa do Santo, pertencia um que,judeu de nascimento, se fez batizar na idade de dezessete anos. De inteligênciaaguda e perspicaz, passou muitos meses em Constança, comensal de Talberg,pelo qual foi recomendado à Propaganda, que aceitou em Roma, com intuito deo formar para missionário a trabalhar futuramente na conversão dos judeus.

José Lobo era o seu nome, e de lobo era seu procedimento, pois que obatismo não conseguiu convertê-lo em cordeiro de inocência e sinceridade. DeRoma mantinha correspondência secreta com os protestantes, seus amigos,defendendo a heresia, e ridicularizando os dogmas e os ritos da Santa Igreja.Depois de ano e meio de experiências reconheceram os professores que orapaz não se prestava para a carreira sacerdotal e fecharam-lhe as portas doseminário. Fixando residência em Viena não tardou a sentir a fome que lhebateu à porta, horrível e desesperada; lembrou-se da generosidade de Cle-mente, escreveu-lhe pedindo auxílio e declarando o desejo ardente de ser ad-mitido entre os zelosos filhos de Sto. Afonso.

Movido de compaixão o Servo de Deus foi visitar o autor da carta para seconvencer de tudo e tomar-lhe o pulso. No meio da palestra percebendo certasvacilações na fé e nas opiniões religiosas, o Servo de Deus procurou convencê-lo; o hipócrita ouviu tudo com o maior interesse e protestou querer sempre e emtoda parte viver como um filho obediente da Santa Igreja, pela qual estava pron-to a derramar o sangue e dar a vida. Embora não se sentisse bem na compa-nhia do rapaz, Clemente o aceitou franqueando-lhe as portas da sua casa, ematenção aos reiterados pedidos dos grandes amigos Werner, Madlener etc, epor deferência para com o Núncio Leardi e Cardeal Litta que o recomendaramvivamente.

O sr. José Lobo tornou-se em breve o mais piedoso dos estudantes; naigreja não levantava os olhos curiosamente, conservava as mãos sempre pos-tas, permanecia imóvel qual estátua de mármore, ajoelhado no pavimento du-rante todo o tempo das funções religiosas, por mais que elas se prolongassem,só entretinha conversas espirituais, mostrando enfado e desaprovação quandoalguém se lembrava de desviar o assunto para coisas mundanas; ao receberhumilhações de seu santo Mestre, baixava humilde a cabeça e calado e calmo

aceitava as repreensões. Não obstante tudo isto São Clemente não se iludia arespeito do sr. Lobo. As Ursulinas que, do coro, assistiam às cerimônias daigreja, ao ouvirem a voz melodiosa e limpa que do meio dos estudantes ecoavasonora pelo templo, admiradas não puderam resistir à curiosidade e erguendo-se nas pontas dos pés puseram-se a olhar para baixo, a fim de descobrirem odono da voz que tão suave lhes deliciava os ouvidos.

Viram o sr. Lobo e encheram-se de admiração por ele, como outrora asfilhas de Judá que subiram aos muros encantadas pela formosura excepcionalde José, e foram ter com o Servo de Deus para lhe apresentarem os parabénspela bela e feliz aquisição do moço que edificava o povo com seu comporta-mento exemplar e com sua devoção sobrenatural. São Clemente franzindo orosto disse com laconismo: “Não o conservarei comigo”. Como as irmãs semostrassem estupefatas com essa palavra que não esperavam, o Servo deDeus continuou: “Olhai bem para o rapaz, o rosto, os modos, tudo nele denotaum coração irrequieto”. O Santo desconfiava do moço que parecia sofrer êxta-ses contínuos e fingir exagerada piedade, e por fim não podendo já suportar-lhea hipocrisia, disse-lhe sem rebuços: “Lobo, Lobo, és um velhaco e acabarás naforca”. O Servo de Deus enviou-o a Suíça para ser provado pelo Pe. Passerat,que não tardou expulsá-lo por seu mau comportamento. O rapaz tornou-seluterano, membro da sociedade bíblica da Inglaterra, percorreu a Ásia e a Amé-rica, procurando nas cinco partes do mundo as dez tribos de Israel; como po-rém não as encontrasse voltou para a Inglaterra, onde morreu na forca da here-sia.

Uma vez deram a São Clemente, a guardar, um belo relógio despertadorde grande valor. O Santo guardou-o com cuidado em um lugar separado e se-guro, pois que se tratava de um objeto alheio e de grande estima; porém mesmoassim, sem se saber como, o relógio desapareceu. São Clemente examinoutodos os cantos de sua pequena casa, mandou aos estudantes que o ajudas-sem, e todos ao verem o Santo um tanto inquieto puseram-se prontamente àprocura do despertador. Um aluno do ginásio que lá se achava, manifestou uminteresse especial, e mais solícito que os outros remexeu tudo em busca dodesertor, entrou por baixo da cama, inclinou-se em todos os cantos, vociferoucontra o malicioso que assim causara o transtorno da casa, o desgosto do San-to, a perturbação da alegria geral. Qual não foi o espanto de todos quando odespertador disparou na algibeira do tal aluno do ginásio, traindo-o vergonho-samente! Todos ficaram perplexos, porque naquele canto ninguém o supunhaescondido.

Clemente fitou-lhe um olhar de compaixão, mas também de repreensãopor seu vergonhoso procedimento. O pobre rapaz esconjurando o relógio quebatera, quando menos o devia fazer, tremendo como varo verde entregou aClemente o despertador, tomou o chapéu e retirou-se envergonhado e confun-dido.

Como é fácil adivinhar, a reunião efetuada todas as noites na residência doSanto, não deixou de alarmar a polícia, cujas suspeitas cresciam dia a dia. Doisdesconhecidos que se diziam estrangeiros, apresentaram-se numa dessas reu-niões e encantaram os rapazes, um por sua simplicidade e fingida piedade,outro pela narração maravilhosa de suas viagens. Só Clemente permaneceu

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frio e impassível. Deus lhe revelara tudo. Depois deles se retirarem disse aosamigos: “Esses senhores moram em Viena, são emissários da polícia secreta”.Como esse fato se repetisse muitas vezes, Clemente combinou uma senhacom os estudantes, era “Que há de novo?” Essa medida era necessária porque,em geral, como os rapazes no momento da exaltação e do entusiasmo nãomedem palavras, podiam talvez, inconscientes comprometer a sociedade todae perturbar a alegria geral.

CAPÍTULO XVO bom pastorEm procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo —

Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos— Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés doMestre — O temor da penitência na confissão.

Lemos no Evangelho do discípulo amado a belíssima parábola do bomPastor, que não é outro senão o divino Redentor, que conhece suas ovelhas e épor elas conhecido. Repleto de amor promete dar e dá efetivamente sua vidapara salvar as ovelhas fiéis. Jesus porém afirma possuir ovelhas ingratas, queabandonaram o aprisco; lastima sua ingratidão, mas declara-se pronto a traba-lhar por elas: “importa que eu as arrebanhe, elas ouvirão a minha voz e haveráum só rebanho e um só Pastor!” A exemplo de Jesus queria o Servo de Deusser um pastor zeloso das almas, trabalhar por elas, e reconduzi-las ao caminhoda verdade e da fé. O seu coração sangrava ao ver a multidão dos protestantese judeus que não pertenciam ao redil do Redentor. Do alto do púlpito exclamouuma vez: “Oh! quem me dera receber de Deus a graça de converter os heregese incrédulos do mundo inteiro, em meus braços e sobre os meus ombros leva-los-ia ao aprisco seguro da Santa Igreja Católica”. Essas palavras nos lábios deClemente, não eram apenas figuras retóricas ou belas frases, filhas de um en-tusiasmo momentâneo, mas a expressão da pura realidade. Heróicos eram osesforços que fazia continuamente pela conversão dos extraviados. Em todas asocasiões que se apresentavam, em todas as formas que a prudência lhe suge-ria, falava o Santo da Igreja Católica, da sua instituição divina, das suas doutri-nas consoladoras, dos seus sacramentos, da felicidade que se sente no seio daIgreja; e tudo isto despejava-se de seus lábios com tamanha eloqüência e tãoprofunda convicção, que dificilmente alguém poderia resistir à força de suaspalavras. Os protestantes e judeus sentiam prazer em assistir as suas reuniões,em que o Santo usava de uma delicadeza extrema mostrando sempre compai-xão para com os hereges; fustigava o erro, porém sempre com palavras bran-das e delicadas. Como a conversão é uma graça que vem do céu e que só Deuspode conceder, consagrava ao Senhor todo o seu apostolado, pedindo ao bomPastor que lhe desse as almas dos extraviados, movendo os seus corações eiluminando as suas inteligências. A oração que Clemente rezava constante-mente, era a seguinte: “Jesus meu Senhor e Redentor, do trono da vossa ma-jestade e misericórdia, laçai sobre nós um olhar de bondade; Vós nos remistescom o preciosíssimo sangue que derramastes no madeiro infame da cruz. Ovosso Pai celestial é também o nosso, pois que sois nosso irmão por vossa

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natureza humana. Deverão acaso perder-se eternamente tão inumeráveis al-mas? Se quiserdes, podeis salvar-nos; olhai para as lágrimas da santa Igreja,vossa Esposa, reconduzi-lhe os filhos que apostataram da religião, difundi so-bre os extraviados a luz celestial da fé, a única que pode nos salvar e santificar.Se os suspiros do meu amor não merecem ser atendidos por ser eu um míseropecador, atendei a súplica da vossa santíssima Mãe, a Virgem poderosa e Mãede misericórdia, que por nós intercede; assim todos se converterão e louvar-vos-ão eternamente”.

Deus recompensou o seu Servo concedendo-lhe conversões estupendasde inúmeras almas à Santa religião. Não passava, geralmente, uma semanasem que Clemente trouxesse ao seio da Igreja protestantes, calvinistas, judeusetc. As vezes bastava uma única palestra com o Santo para se operar umaconversão dessas. Ao Servo de Deus iam também pessoas que se diziam espí-ritos fortes, instruídas em muitas coisas, menos em religião, para com ele dis-cutirem, apresentando dúvidas que supunham insolúveis; desejavam confundira Clemente, mas enganavam-se. Muitas vezes com a explicação de uma únicapalavra o Servo de Deus desfazia os sofismas, dissipava as dúvidas, solvia asobjeções, e, o que era ainda mais admirável, fazia as pessoas saírem converti-das e reconciliadas com Deus. Entre muitos outros converteu o Servo de Deusum dos que se achavam a serviço da arquiduquesa Henriqueta, fazendo queele em suas mãos abjurasse o protestantismo. O companheiro e comparsa doconvertido indignou-se sobremaneira com esse ato, embora fosse um dos quesempre têm nos lábios palavras de filantropia e tolerância religiosa. Como bomprotestante resolveu descompor o Santo em plena rua. E de fato, encontrando-se pouco depois com o Servo de Deus, lançou-lhe em rosto publicamente o seuprocedimento, taxando-o de perturbador da ordem, zelote fanático, afirmandoque ninguém deve mudar de religião, mas permanecer até a morte naquela emque nasceu. O Santo recebeu toda aquela afronta com tranqüilidade a exemplode Jesus, esperando que o infeliz compreendesse a insensatez das suas pala-vras, pois que nada é mais natural do que a conversão, isto é o abandono doerro e do vício para a recepção da verdade e a prática da virtude; foi para issoque Jesus desceu do céu, quis converter os judeus e os pagãos fazendo-osabraçar a religião verdadeira, que ele nos trouxera do alto, do seio de Deus.Terminado o arrazoado do protestante, Clemente contentou-se em dizer-lhe:“Mas então, porque é que Martinho Lutero não quis viver e morrer na fé em quenasceu?” Embora embaraçado, o Luterano não quis dar a mão à palmatória epuxou outra objeção como soem fazem os protestantes para dar certa aparên-cia de erudição e de grandeza. “Nós todos somos filhos de um mesmo pai queestá nos céus, sejamos deste ou daquele credo”. O Santo porém não lhe ficoudevendo resposta e disse: “Quem tem um pai, deve ter também uma mãe: sevós, luteranos, tendes a Deus por Pai, onde é que está a vossa mãe? nós cató-licos temos por mãe a Santa Igreja Católica”. O Luterano era teimoso e deseja-va mais uma resposta. “A veneração dos Santos, disse ele, é uma superstiçãocatólica”. — “Não é verdade, o sr. está enganado, entre Deus e os pecadoressão necessários intercessores, e esses são para nós os Santos; assim comonecessitamos de intermediários junto dos grandes senhores da terra, assimtambém nós míseros e indignos pecadores precisamos de intercessores junto

de Deus infinitamente santo”. O protestante achou melhor calar-se, porque te-mia converter-se também, se continuasse a discussão.

Seria difícil, para não dizer impossível enumerar nos moldes de uma sim-ples biografia as conversões efetuadas por São Clemente nos anos que passouem Viena; entretanto para a glória do Santo e para edificação de todos coloca-mos aqui algumas das mais notáveis.

O filho do bispo protestante de Hannover por nome Frederico Schlegel foipelo pai, que desejava fazer fortuna, colocado no comércio, e para isso enviadoa Leipzig. — O rapaz inteligente não afeiçoando-se à profissão a que seu pai odestinara, fugiu para longe, e em Göttingen estudou humanidades, entrandoem seguida para a universidade de Leipzig, onde se dedicou à filosofia, e pôs-se a escrever, e isto com uma fecundidade espantosa. Desejoso de mais ex-pansão a seus vastos conhecimentos, foi a Berlim onde se relacionou com umajudia de rara beleza e de dotes poéticos invejáveis, a qual aos 15 anos se uniraem matrimônio a um judeu riquíssimo, banqueiro em Berlim por nome SimãoVeith. Esse casamento foi infeliz para ambos, porque a poetisa, afeita aos vôosda fantasia, não se habituou à convivência com um indivíduo frio e contador dedinheiro.

A bela judia apaixonou-se pelo poeta Schlegel, que era também artista, esentiu-se correspondida, embora Frederico fosse oito anos mais novo, e ela jácasada há vários anos. Sem mais preâmbulos tratou do divórcio e correu atrásde Frederico. Depois de viverem algum tempo juntos, foram a Paris onde a judiapassou ao luteranismo para agradar a Frederico, e recebeu no batismo o nomede Dorotéia e casou-se luteranamente com Schlegel. De Paris dirigiram-se aColônia onde Frederico esperava uma colocação que, porém, nunca chegou aconseguir. Nesse meio tempo, os dois espíritos irrequietos dedicavam-se aosestudos; percorreram a história e chegaram a conclusão de que a verdade nãopode achar-se nem no judaísmo, nem no protestantismo, mas só na Igreja Ca-tólica; rezaram e imploraram as luzes do céu, e em 1808 na magnífica catedralde Colônia abraçaram o catolicismo, ajoelhados ao pé do altar da Virgem: doisdias depois receberam a santa comunhão e casaram-se religiosamente com adevida dispensa do Ordinário. Só então é que conseguiram a paz pela qualtanto suspiravam, como escreve a própria Dorotéia em uma carta: “... nesse anode 1808 derramei lágrimas de íntima gratidão por causa de minha tão grande,nunca merecida felicidade”. Depois da conversão os dois esposos foram à Vie-na onde Frederico encontrou a colocação desejada. Clemente foi logo escolhi-do para Diretor espiritual de ambos. Desde então Clemente parecia ser ummembro da família Schlegel; quando em 1809 Frederico teve de ir à guerra, onosso Santo foi o anjo consolador de Dorotéia no assédio e bombardeio dacidade pelos franceses. Dorotéia teve dois filhos do primeiro matrimônio: Jonase Philippe, que se dedicaram respectivamente ao comércio e à pintura; amboseram judeus e desejavam abraçar a religião católica, praticada pela mãe, queidolatravam e cuja inteligência admiravam, mas o ambiente em que se achavame a companhia que freqüentavam na Alemanha fizeram-lhes adiar sempre oseu propósito. Desejosa de vê-los convertidos a mãe chamou-os a Viena, ondeos apresentou a S. Clemente que em poucos meses lhes desfez todas as dúvi-das, e os entusiasmou para a beleza divina da religião. Pediram o batismo que

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lhes foi conferido por Severoli, Núncio Apostólico de Viena.Foi esse o dia mais belo, o dia em que Dorotéia com dificuldade pôde con-

ter a veemência da alegria que lhe inundava a alma. São Clemente tornou-se oDiretor espiritual de toda a família, porque esses dois se tornaram piedosos,dóceis e obedientes aproximando-se com freqüência dos santos Sacramentos.Clemente não os perdeu nunca de vista, nem mesmo quando mais tarde semudaram para Roma; escreveu-lhes diversas cartas animando-os à perseve-rança na prática da virtude. A relação íntima com a família e o interesse que oSanto por ela tomava, deduzem-se perfeitamente de uma carta de Dorotéia aSão Clemente: “... hoje, véspera da festa dos grandes Apóstolos, não possodeixar de vos escrever uma palavra; não há uma festa de mais importância emque eu não sinta desejo de me achar aos pés do meu pai espiritual para lheouvir os conselhos, os ensinamentos e as palavras de sabedoria... Abençoai omeu filho que se abandonou inteiramente à vossa direção, porque ninguém,melhor do que vós, caro pai, sabe guiar-nos para Deus; de coração unidospeçamos a Deus, se digne inflamar o coração do rapaz e iluminar o seu espírito;Vós que conheceis todas as boas e más qualidades, bem como o gênio do meufilho, continuareis a guiá-lo e a dar-lhe conselhos; é disso que depende tudo;peço-vos, queirais amparar-nos com vossas orações, em que tanto confiamos”.

O que porém mais admira é que o próprio Frederico Schlegel, o grandeliterato, o meteoro da sua época, se deixou guiar por Clemente com a ingenui-dade de uma criança. O Servo de Deus visitava-o diariamente, já por amizadejá porque em sua casa reuniam todas as mentalidades científicas de Viena eaté das mais célebres cidades dos outros países. O grande cientista era verda-deiramente piedoso: rezava todos os dias, tinha água benta em seu quarto, oCrucifixo e um genuflexório onde se ajoelhava para as suas meditações diárias;quando pelas ruas de Viena via passar um sacerdote, abandonava a compa-nhia em que se achava e ia cumprimentar o ministro de Deus e beijar-lhe res-peitosamente a mão, em plena sem a menor sombra de respeito humano; eninguém tinha nada que dizer de Frederico Schlegel, porque não havia em Vie-na quem pudesse medir-se com ele em sabedoria ou em qualquer ramo deciência; Frederico escreveu muitas obras, mas nunca publicou nenhuma delas,senão depois de ouvir o parecer de Clemente, a quem constituíra juiz dacatolicidade dos seus escritos.

Uma vez havendo composto uma obra primorosa foi lê-la a seu santo Dire-tor que a aprovou in totum; terminado a leitura Frederico lançou um olharperscrutador ao Servo de Deus, como se quisesse ler na fisionomia do Santo aimpressão do seu escrito; S. Clemente abraçou o amigo dizendo: “Bem, meucaro Frederico, muito bem, porém melhor é ainda amar Nosso Senhor de todoo coração”. Essa amizade de Clemente não era nada sentimental, visava tãosomente o bem espiritual de Frederico, que embora sábio, tinha, como conver-tido, opiniões singulares a respeito do cristianismo. Uma vez terminada que foiuma das composições que Frederico julgava excelente e magnífica, correu aoseu Diretor para lhe participar a alegria e fazê-lo também deliciar-se com o frutotão belo do seu espírito; certo do triunfo esperava que Clemente abrisse osbraços para o amplexar com felicitações; mas não foi assim; durante a leitura oSanto meneava, por vez, a cabeça em sinal de desaprovação e repetia: “nada,

nada, não serve”. O doutor não se deu por achado, tornou-se mais eloqüentena esperança de converter o Santo para as suas idéias, mas debalde; Clementepercebendo que a coisa ia muito além do genuíno sentir da Igreja, interrompeu-o bruscamente, mas para não o ofender deu-lhe um abraço com a palavra ami-ga: “Não deixas de ser o meu Frederico”. Aborrecido com a interrupção e desa-pontado com o abraço, quis continuar, mas viu-se novamente interrompido porClemente que desviou a conversa para outro assunto. Desse episódio tiramos aprova de que o amor do Santo, embora sincero, nada tinha de sentimental.Clemente também nos ensina com seu exemplo que em certas ocasiões é umcrime permanecer calado; mesmo aos amigos e, às vezes, necessário dizer averdade com bons modos, e desviá-los do mal, do erro e do vício.

Em 1808 estavam reunidos num dos hotéis de Hamburgo diversos rapazesde várias nacionalidades na mais cordial alegria, divertindo-se aos sons de va-riados cânticos. Entre os rapazes, destacava-se um sueco, protestante, filho deum nobre cavalheiro, que o destinou à vida militar, na qual devia, de degrau emdegrau, ascender ao apogeu da glória em magníficos triunfos para o engrande-cimento da Pátria. O rapaz, porém, mais se simpatizava com o pincel do quecom a espada. Abandonando a carreira militar, dedicou-se à pintura em quenão tardou a fazer rápidos progressos. O seu nome era Frederico AugustoKlinkowström; todos os anos, no verão, aproveitava-se das férias para visitarum seu amigo em Hamburgo.

Como facilmente se compreende, a alegria no hotel era grande, indescritível,os rapazes cantavam e riam-se, comiam e bebiam sem preocupações de espé-cie alguma. A companhia crescia na proporção das horas que escoavam, ecomo nem todos os rapazes tinham a mesma educação esmerada, com cadacopo excitava-se mais a conversa, que não tardou a descambar para o ladosensual e livre. Klinkowström, nobre de caráter e sério em sua vida, detestavasemelhantes abusos e sentia nojo de gracejos daquele teor; calou-se arrepen-dido de haver entrado naquela casa; pensativo levanta-se e vai à janela paradescobrir a causa do barulho que chegava a seus ouvidos. — Qual não foi suaconsternação quando viu uma meretriz entrar pela porta que ficava em frente àjanela. Chamada pelos estudantes ia ela aumentar a alegria dos rapazes.

Seminua aproximava-se ela dançando e sorrindo com a desenvoltura pró-pria de semelhante classe, de forma a endoidecer os pobres moços que não lheregateavam palmas e aplausos. O nobre sueco horrorizou-se com aquela cena,mas o que mais o impressionou foi a visão que teve no momento; um anciãovenerando, sacerdote católico, de batina preta e sobrepeliz branca, estola epluvial magníficos, olhou para ele sério e, levantando a mão direita, deu-lhe umsinal com o dedo como que a preveni-lo contra o vício e a admoestá-lo a fugir doperigo. O sueco que nunca vira semelhante padre nem outro, que com ele separecesse, compreendeu o aviso, tomou o chapéu e retirou-se.

A impressão daquela aparição, porém, nunca mais se desfez de sua alma;ao chegar em casa lançou na tela a figura majestosa e grave do sacerdote quelhe apareceu em Hamburgo. Depois de andar pelo mundo, e de ver muitascidades, entre elas Paris e Roma, fixou sua residência definitiva em Viena, ondeo príncipe Metternich lhe deu uma boa colocação; na capital da Áustria uniu-seem matrimônio com Luiza Mengershausen que conhecera em Paris. Em Viena

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Klinkowström não tardou a relacionar-se com a família de Frederico Schlegel,que embora católica, se afeiçoava ao protestante Klinkowström. Num domingo,além de ir a missa, como é obrigação de todo católico, Frederico quis tambémassistir à reza e levou consigo o amigo protestante, que o acompanhou comgosto. Era um pouco tarde e, terminada a reza, o padre voltava já para a sacris-tia. Ao avistar o sacerdote Klinkowström abriu os olhos como que a perguntar,se estava a sonhar ou acordado; aquele padre era o mesmo que lhe apareceraem Hamburgo, o pluvial era da mesma cor, tinha os mesmos adornos e era domesmo feitio, fitou o rosto do sacerdote e reconheceu os mesmos traços, po-rém um tanto mais amáveis. Ao sair da igreja o nobre sueco interessou-se pelosacerdote que acabava de presidir às funções, perguntou por seu nome e suaresidência. Frederico Schlegel, penitente de Clemente, deu naturalmente todasas informações, fez-lhe as melhores referências a respeito do Santo, de sorteque Klinkowström não se demorou em fazer-lhe uma visita na igreja dos Italia-nos, em que ele então se achava. O protestante foi recebido com toda a amabi-lidade e delicadeza pelo Reitor da igreja que o cativou totalmente. Como essasvisitas se reproduzissem muitas vezes, teve Clemente ocasião de falar-lhe so-bre a Igreja Católica, que é a única arca de salvação, sobre a falsidade doProtestantismo e sobre a obrigação de pertencer à verdadeira Igreja de JesusCristo.

Klinkowström, temendo ofender sua esposa que o idolatrava, não teve co-ragem de dar o passo decisivo, mas de lá em diante deixou de freqüentar otemplo protestante; sentia gosto especial pelo culto católico na igreja dos Servitas,tomava porém cuidado em ocultar tudo isso à sua esposa. Como as mulheressão em geral desconfiadas e finas nas suas observações, esta não tardou aperceber a mudança em seu marido e já o supunha católico. Cheia de malíciaperguntou um dia a seu esposo, porque é que não freqüentava mais o cultoprotestante, e porque ia todos os domingos ao templo católico. Surpreendido edesapontado com a pergunta, procurou Klinkowström um pretexto qualquer,que não lhe foi difícil encontrar: “É que amo a música, e esta lá na igreja dosServitas é celestial e quase divina”. Embora a mulher não acreditasse muitonessas palavras do seu esposo, Klinkowström deu graças a Deus por haverencontrado tão depressa uma desculpa tão verosímil. Clemente do seu ladonão insistia com o sueco, porque queria dar tempo ao tempo. Em 1813 rebentoua grande guerra com os franceses e Klinkowström com seu cunhado João Pilatteve de pegar em armas para defender a Pátria, ficando as duas jovens espo-sas a chorar a ausência dos maridos e a consolar-se mutuamente; nesses du-ros transes era Clemente o anjo consolador daquele lar. Embora protestantes,essas duas senhoras passavam os dias na oração e prática das virtudes, paraque Deus se compadecesse dos seus maridos. Para a ceia de Quinta-feira San-ta prepararam-se com especial desvelo e cuidado e em chegando o grande dia,com todo o respeito se aproximaram do templo, executando a cerimônia doritual protestante; nas orações, porém, permaneceram frias não sentindo ale-gria espiritual nem paz da alma. Nós católicos, compreendemos perfeitamentea causa da aridez espiritual das duas senhoras, pois que os protestantes nãotêm verdadeira comunhão, nem sacerdócio como nós o temos, consagrado aDeus por um sacramento especial. Entristecidas voltaram as duas para casa

silenciosas e cabisbaixas, sem coragem de comunicar uma à outra o que selhes passava na alma. Em casa recomeçaram seus trabalhos costumados, atéque uma interrompeu o silêncio: “Hoje tudo me enfastiou no templo; que modosgrosseiros tinham os fiéis ao aproximarem-se da ceia do Senhor, fiquei indigna-da!” Enquanto assim desabafavam seus corações, ouviram bater à porta; eraClemente que ia curar as duas almas. Notando a mudança operada naquelacasa, perguntou pela causa da tristeza inconcebível naquele dia de alegria, diada ceia do Senhor, para a qual elas tanto se haviam preparado; as senhorasabriram os corações e não deixaram nada por contar. Foi para Clemente umaocasião azada para falar da insipidez do protestantismo; discorreu com entusi-asmo e fogo e por fim acrescentou: “Se quiserdes a paz, fazei o que já vos tenhodito tantas vezes, despi as meias pretas9 e renunciai ao protestantismo”. Assenhoras ficaram pensativas; a Igreja Católica com suas belas cerimônias agra-dava-lhes deveras, mas encontravam um grande empecilho para a sua conver-são: era a confissão. Elisa, a mulher de Pilat, a sorrir, um tanto maliciosa levan-tou a voz e acentuou: “Mas a confissão... a confissão!” ao que S. Clementerespondeu: “A confissão não vos custará a cabeça; fica por minha conta”. Expe-rimentado na arte de dissipar temores, Clemente pôs-se a indagar delas ascircunstâncias pormenorizadas da sua vida, as alegrias e as tristezas que hou-veram no mundo etc. Percebendo que o Servo de Deus se interessava por elas,contaram muito mais do que Clemente perguntara. Terminada a conversa oSanto dirigindo-se à Elisa disse: “Que quer mais? a senhora já fez a sua confis-são, pouca coisa falta ainda”. Foi água na fervura, a nobre dama caiu em si,reconheceu que suas dúvidas não passavam de preconceitos, estreiteza deidéias, orgulho herético; estudou ainda mais recebendo de Clemente instruçõesespeciais, e poucas semanas depois foram as duas senhoras acolhidas no grê-mio da Igreja Católica. Luiza, a esposa de Klinkowström, tornou-se tão piedosa,que, na expressão de Clemente, poderia transportar montes em sua fé tão pro-funda. A alegria de Klinkowström foi indizível; ao voltar do campo de batalhaabjurou, com prazer, o protestantismo nas mãos de seu amigo.

Elisa e Luiza tinham ainda uma irmã solteira, por nome Augusta que, ape-sar de conhecer a falsidade do protestantismo e a sublimidade divina da IgrejaCatólica, não se animava a abandonar a sua religião por ser filha de um pastorprotestante, cuja crença julgava dever seguir por ser ainda solteira. Sincera emunida de boa vontade expôs toda a dificuldade a S. Clemente e mais algumascoisas que a desanimavam. A primeira dificuldade que a abatia era o dever de,como católica, adorar o papa, porque ela só adorava Deus, Criador do céu e daterra, e não podia prestar essa homenagem a uma criatura, como fazem oscatólicos segundo o catecismo.

Clemente sorriu-se, com toda paciência fê-la ver que, segundo o catecis-mo, nós só adoramos Deus e mais ninguém, pois que o contrário seria crime deidolatria, e que por isso, se ela se fizesse católica, não precisaria adorar o papa,mas respeitá-lo e obedecer-lhe como representante de N. Senhor. — Uma ou-tra dificuldade impedia-lhe a entrada na Igreja Católica: não lhe era possívelgostar dos paramentos com que os padres celebram por terem a forma derabecão. O Servo de Deus revestiu-se ainda de paciência e respondeu, queisso não tinha importância e que ela podia ser católica fervorosa e achar feios e

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até hediondos os paramentos, porque isso não era questão de religião, mas sóde sentimentos estéticos. Uma terceira dificuldade, a maior de todas, causava-lhe espanto, não podia compreender, como é que alguém pode rezar aos San-tos e implorar-lhes a proteção; achava que era uma ingratidão monstruosa paracom Deus, depositar em outros e não nele a sua confiança. Na hora não quis oServo de Deus dar-lhe uma explicação completa e teológica sobre a veneraçãodos Santos, contentou-se em dizer-lhe: “Se a senhora não quiser invocar osSantos, não os invoque; isso não impede que a senhora seja católica”.

Augusta estava satisfeita, não tinha já dúvidas em seu espírito: não preci-sava adorar o papa, nem louvar os paramentos, nem rezar aos Santos, e podiaassim mesmo ser católica como suas duas irmãs. Em pouco tempo abjurou aheresia e, anos depois, entrou no convento das Visitandinas onde professou emorreu santamente. — Enquanto tudo isso se passava Pilat, achava-se na Françae ignorava o ocorrido em Viena. Ao voltar estranhou a mudança, mas não seperturbou; embora católico de batismo, pouco ou nada se incomodara com areligião, nunca sofrera dor de cabeça nem reumatismo nos joelhos por causade orações demasiadas, nem dor de estômago por rigorosos jejuns; era umdesses que acham a religião boa para as mulheres que não têm o que fazer epara as crianças que se deixam facilmente atemorizar, mas nunca para os ho-mens, espíritos fortes, que só crêem o que vêem, e que não têm tempo a perdernas igrejas, reuniões etc; achava que toda a religião é boa, contanto que se sejaum homem honesto. Essa idéia que bebera na maçonaria, acompanhou-o sem-pre, fazendo dele um adorador da humanidade e da vida cômoda. Sua esposatornou-se-lhe anjo da guarda e incansável apóstola. E Pilat a idolatrava! Supli-cou-lhe com lágrimas nos olhos, renunciasse à maçonaria que sob o manto dahumanidade e filantropia, só tem por fim exterminar a Igreja, derrubar os altarese os tronos e sobre as suas ruínas levantar o trono da revolução, pediu-lhe quese tornasse católico prático, para assim possuir a paz da alma. Aos pedidospessoais uniu orações fervorosas e por fim levou-o ao Santo para que o instru-ísse e arrancasse das garras da maçonaria. Clemente não tardou a ouvi-lo deconfissão, tomou-lhe as insígnias da maçonaria: o avental, a colher, o diploma.Desde esse dia Antônio Pilat foi um dos mais assíduos penitentes de São Cle-mente, e isso não obstante a posição nobre que ocupava na qualidade de se-cretário do príncipe Metternich.

Para se fazer idéia da probidade de Pilat, basta ouvir o que escreveu deleseu confessor depois de Clemente: “Para ir ao escritório, Antônio Pilat tinha depassar perto da Bolsa; um dia chegou-se perto dele um cambista que lhe sus-surrou alguma coisa ao ouvido. Prometeu-lhe enorme quantia, se, quando pas-sasse no dia seguinte, lhe dissesse uma palavra ao ouvido, ainda que fosse só‘Bom dia’. Embora com essa única palavra pudesse ganhar uma boa fortuna,Pilat não a quis pronunciar para não concorrer para um manejo injusto. Com-preendeu que o homem se queria servir da palavra, que ele, secretário do prín-cipe Metternich, lhe diria com ar misterioso para lançar uma notícia de sensa-ção a assegurar assim o êxito de uma especulação arriscada”.

Na casa de Pilat encontrou-se Clemente com um senhor muito conhecidonas altas rodas sociais, por nome Frederico Schlosser, aparentado com o céle-bre Goethe. Poliglota e poeta, escreveu numerosas obras sobre poesia, arte e

política, merecendo ser encarregado pela cidade de Frankfurt de importantesnegócios no congresso de Viena. O caráter de Schlosser era nobre, e seu cora-ção bondoso e amigo dos pobres e necessitados. Era protestante somente porter nascido e ser educado na heresia. Sua esposa, francesa e calvinista, levavao belo nome de Sofia. Deus chamou-os à Igreja por caminhos bem diversos dosoutros. Sofia notou logo com bastante dissabor que as pessoas, que a rodea-vam, não tinham verdadeira paz, nem encontravam alegria para o seu coração,embora fossem abastadas e se pudessem conceder todos os gozos imagináveis.

Compreendendo que a paz da alma não se compra com dinheiro nem seaspira como o ar, por ser ela uma flor que só nasce no jardim do coração, pôs-se a refletir sobre a causa de ela não nascer nos corações protestantes. Fredericotambém carecia dessa tranqüilidade íntima e de bom grado daria tudo paraconsegui-la. Desanimada pôs-se Sofia a rezar e a freqüentar com mais assidui-dade o templo calvinista; porém debalde. Em Viena, na residência de Pilat, teveocasião de considerar a estranha visão que tanto procurava; lá foi-lhe dadocontemplar um homem de cujos olhos transparecia a calma e a tranqüilidaded’alma: era São Clemente, que sempre a sorrir possuía o condão de atrair oscorações com suas palavras serenas e seus modos delicados. Sofia pôs-se aestudar aquele sacerdote católico e não tardou a descobrir que aquela paz erao efeito do amor de Deus e da dedicação à Santa Igreja; assistiu às pregaçõesdo Servo de Deus em Sta. Úrsula que lhe satisfizeram plenamente tanto pelasimplicidade do fraseado como pela profundeza da argumentação. Um dia ou-viu Clemente sobre o seu trema predileto: a Igreja Católica, sua beleza celeste,e glória admirável, salientando-a com a destreza de seu pincel de mestre e aschamas da sua fé; na peroração disse o Santo: “Conhecem-na, porém, só aquelesque nela vivem e que têm a felicidade de ser seus filhos”. Sofia sentiu-se tocadada graça, foi ter com Clemente, levou-lhe também seu esposo, e depois deinstruídos foram recebidos os dois no mesmo dia, na Igreja Católica. Tornaram-se amigos do Servo de Deus, que muitas vezes os convidou ao café, servindo-os por suas próprias mãos e entretendo-os familiarmente, de sorte que maistarde Sofia pôde afirmar, nunca ter tido horas tão felizes na vida como aquelasque passaram em companhia de Clemente. O Santo sacrificava seu tempo aten-dendo a essa família, porque previa o grande bem espiritual que dos seus es-forços proviria às almas. E de fato, essa senhora tornou-se benemérita do cultoreligioso pelas inúmeras poesias sacras que traduziu do italiano, espanhol, por-tuguês, francês, inglês etc. Essas poesias, belíssimas na forma, foram publicadaspor madame Schlosser em 7 volumes.

Entre as muitas almas reconduzidas por São Clemente ao seio da IgrejaCatólica, contava-se a esposa de Adam Müller, célebre filósofo, estadista con-sumado, e homem de confiança de Metternich, que o encarregara de negóciose cargos importantíssimos. O próprio Adam Müller no meio de tantas honrariasconservou-se sempre humilde e deixou-se guiar em tudo como uma criança porSão Clemente, seu diretor espiritual. Sua esposa porém era luterana; ao ouviras pregações e instruções do Servo de Deus começou a admirar a beleza daIgreja e a compreender o erro do protestantismo, mas receava passar ao cato-licismo pelo temor de uma bagatela que lhe causava extraordinária impressão:temia a penitência que São Clemente lhe iria impor na confissão por ela se

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achar tanto tempo no luteranismo. Chegado o dia determinado para a recepçãodesse sacramento, fez um esforço supremo, e confessou-se com todo o arre-pendimento e sinceridade. Clemente, como de costume, pôs-se a dar-lhe con-selhos e instruções para a sua vida prática; de tudo isso porém ela nada perce-beu, tão preocupada estava com a penitência horrível que iria receber. Qual nãofoi seu espanto, quando o confessor lhe deu uma penitência insignificante, tãopequena, que ela mesmo julgou pouca para tantos pecados e pediu uma maior.

Clemente porém lhe respondeu: “Aceite também por penitência aquilo queN. Senhor lhe vai mandar”. Madame Müller levantou-se consolada; ao chegarporém em casa foi acometida de uma dor de dentes tão aguda que lhe arrancoulágrimas; lembrada das palavras do seu confessor, aceitou com gosto mais aquelapenitência, beijando a mão de Deus que a castigava.

CAPÍTULO XVI

O sábio Diretor das UrsulinasQue é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confesso-

res — Reforma as Ursulinas — Os trabalhos das religiosas — A Religiosa tíbia— A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassourausada — A Irmã tentada — A bruaca velha — As armas da mulher.

Entre as pessoas que São Clemente conservava guardadas no fundo deseu grande coração e com as quais mais se entretinha, eram as Ursulinas, semdúvida, as primeiras. E com razão, pois que via em cada uma das religiosas aesposa, que Jesus se escolhera entre milhares, tirando-a do meio do mundosedutor, e introduzindo-a em sua casa e santuário.

Cada convento era, a seus olhos, um templo e cada alma uma pedra preci-osa engastada nesse santuário.

É por essa razão que ele, sempre que passava por perto de um conventode religiosas, inclinava duas vezes a cabeça: uma para saudar o Redentor ocul-to no Santíssimo Sacramento, e outra, por respeito às esposas de Jesus que sesantificam no claustro. Das religiosas consagradas a Deus tinha mais estima doque dos vasos sagrados. A Religiosa era, no seu modo de encarar, um ostensóriovivo, preparado pelo próprio Deus para nele habitar com suas virtudes e comsua graça. A Religiosa é também uma heroína que possuiu força bastante paradesprezar o mundo com seus encantos, alegrias e esperanças, e levar umavida de pobreza, desprendimento e abnegação na casa de Deus. Clementetinha gosto especial em falar sobre a virgindade, consagrada a Deus por voto,sua excelência e beleza angélica. “A vida claustral é uma graça assinalada,dizia ele, e quem nesse ponto conheceu claramente a vontade de Deus, devesegui-la mesmo contra a vontade dos pais ou parentes”. Para prova disso ale-gava a palavra de Jesus à sua Mãe que, durante três dias o procurara chorosanas ruas de Jerusalém: “Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é do meuPai?” Falando a uma Religiosa disse um dia. “Não sabeis como sois felizes; nahora da morte compreendereis o que é a graça da vocação, em cuja compara-ção as grandezas da terra são um puro nada”.

Do alto do púlpito falava sempre com fogo sobre a vocação religiosa, queera assunto desconhecido em outros púlpitos naquele tempo. Tendo de pregar,um dia, na igreja das Visitandinas, depois de ler o que o catecismo romano dizsobre os conselhos evangélicos, falou sobre a vida religiosa com tanta unção eacerto que as religiosas choraram de consolação e comoção.

Todas as vezes que São Clemente percebia sinais certos de vocação emuma alma, ajudava-a com seus conselhos e trabalhos para que com mais pres-

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sa e segurança, conseguisse entrar no convento e consagrar-se inteiramente aDeus. São inúmeras as almas que o Servo de Deus enviou aos conventos dasUrsulinas, Visitandinas, Carmelitas etc. etc. não só das classes populares, masainda da alta aristocracia e até da nobreza. Quando se tratava de donzelaspobres, ele mesmo dava os passos necessários, arranjava-lhes o lugar e facili-tava-lhes a entrada.

Uma donzela pobre dos arrabaldes mais afastados de Viena ia diariamenteda chácara ao centro da cidade onde, sobre uma mesinha, colocava os ovos, amanteiga e a gordura, e lá ficava à espera de compradores. Fazia isso por ne-cessidade, pois que precisava ganhar a vida, mas o desejo ardente de seucoração era entregar-se e consagrar-se inteiramente a Deus na vida religiosa;sentia uma santa inveja das Ursulinas que moravam lá perto, e suspirava porencontrar um Diretor espiritual prudente e caridoso, que a quisesse introduzirna casa de Deus. Aconteceu passar por ali um sacerdote venerando com umgorrinho na cabeça, grave, sério, sem olhar para ninguém; notava-se que eraum Santo. A donzela, quando o viu, sentiu em sua alma uma voz que lhe dizia:“A esse deves manifestar o anhelo do teu coração, porque ele te levará aoconvento”. A coisa porém não era tão fácil. A vendedora de ovos nunca vira oSanto, não sabia quem era aquele sacerdote, nem onde morava, nem paraonde ia: a fisionomia do padre, porém, ficou bem impressa em sua memória.Dois anos depois, na quinta-feira santa de 1818 foi a donzela, casualmente,ouvir missa na Igreja de Sta. Úrsula. Exultou quando no altar viu o sacerdoteque conhecera pela primeira vez há dois anos atrás; procurou-o depois no con-fessionário, abriu-lhe o coração e manifestou-lhe o seu desejo ardente. Cle-mente prometeu auxiliá-la, mas querendo primeiro certificar-se da sua voca-ção, mandou-lhe mudar-se para a cidade, onde lhe arranjou um lugar, instruiu-a a um ano inteiro na vida religiosa, e convencendo-se que a moça era chama-da por Deus para o convento, fê-la entrar nas Visitandinas.

Às vezes sucedia que alguma penitente do Santo, sentindo a voz de Deusque a chamava, não tinha coragem de participar a seu Diretor esse chamamen-to divino; nesses casos Deus mesmo incumbia-se de revelar miraculosamentea seu Servo a vocação das penitentes. Um belo dia uma tal Teresa, ouvindo umsermão de São Clemente sentiu-se fortemente tocada da graça e do desejo deentrar no convento das Ursulinas.

Prelibando as doçuras da vida religiosa, ao chegar em casa ajoelhou-seaos pés de seu pai pedindo-lhe permissão de seguir a voz de Deus que a queriapara sua esposa. O pai era um daqueles que julgam serem os conventos umaespécie de hospício para as mulheres fanáticas e histéricas, um recolhimentode pessoas imbecis ou asilo de mulheres sem préstimo; franziu sobr’olhos edeclarou que, enquanto vivesse, não lhe daria a licença pedida. A donzela ca-lou-se julgando haver cumprido o seu dever e nem mais cogitou em entrar noconvento. A sua consciência porém não emudeceu, a voz de Deus fazia-seouvir sempre mais clara. Teresa não sabia o que fazer: se obedecer ao pai ou aDeus que a chamava; em vez de pedir conselho ao confessor expondo-lhe todaa dificuldade, preferiu conservar-se calada. Deus porém não a desamparou; demodo sobrenatural iluminou o confessor a respeito da pobre donzela; — quan-do esta foi ao confessionário, em lugar dos conselhos disse-lhe Clemente a

queima-roupa: “A senhora deve ser Visitandina, eu mesmo lhe arranjarei umlugar”. Essa palavra bastou para enchê-la de coragem; não temendo já as ame-aças paternas, foi para onde Deus a queria e tornou-se uma piedosa e santaReligiosa na Visitação.

Sempre que o Servo de Deus enviava alguma donzela ao convento, faziarecomendações especiais à Superiora para que velasse constantemente sobreela e a tornasse uma santa esposa de Jesus, guardando a inocência e a boavontade do coração. A uma que ia entrar no convento, deu o Santo uma cartacom os seguintes dizeres à Superiora: “O meu desejo é que esta donzela cres-ça sempre na inocência e piedade em que foi educada; que ela cultive em simesma a perfeição da sua sublime vocação, e depois procure implantar tam-bém nas demais irmãs o mesmo zelo e os mesmos sentimentos, para assimconduzi-las todas para Deus”. Em se tratando do convento das Ursulinas, Cle-mente era incansável. Nos sete anos, que exerceu o cargo de Reitor da Igreja eDiretor das Irmãs, reformou completamente esse jardim do Senhor. Em 1813 adisciplina regular achava-se quase toda em completa decadência devido àscircunstâncias desfavoráveis do tempo. Clemente bateu-se como um herói pararestabelecer no claustro a antiga disciplina, e não descansou enquanto nãoconseguiu introduzir no convento a observância regular. Como é natural istonão se deu sem grandes dificuldades e declarada oposição daquelas irmãs,que não queriam ouvir falar de reforma.

Clemente não se intimidou com os obstáculos nem se alterou com asincriminações de algumas irmãs. Com paciência e caridade conseguiu ganharos corações de todas as religiosas para Nosso Senhor, e, no fim recebeu maio-res provas de gratidão justamente daquelas que antes mais se declararam con-tra ele.

Se uma ou outra vez usava de rigor, fazia-o tão somente por amor da ob-servância regular.

Quanto mais santo é o estado a que Deus chama uma pessoa, maioressão os deveres que lhe impõe. Na fronte da Religiosa, elevada à dignidade deesposa do Rei dos reis, coloca uma coroa de espinhos, por vezes bem pene-trantes, sobre os seus ombros uma cruz pesada, tornando-a semelhante a Je-sus Cristo. A donzela não entra no convento para gozar ou levar uma vida cô-moda, mas para se santificar e subir a montanha escabrosa da perfeição — eisto não só de passagem, um ou outro dia, mas constantemente, sem tréguas,de dia e de noite. São Clemente, a personificação da energia, gostava de de-senvolver esses temas e explicar essas verdades às suas religiosas. Ao dar ohábito, uma vez, a quatro irmãs disse: “Uma Religiosa deve unir em si as duasirmãs Maria e Marta, isto é a oração e o trabalho; por amor dessas duas irmãsJesus ressuscitou a Lázaro; por meio da oração e do trabalho devem as Virgensconsagradas a Deus, contribuir para a ressurreição dos mortos pelo pecado,isto é, dos pecadores, para a vida da graça, porque o Senhor, que ama as suasEsposas, não deixará de atender as suas ardentes súplicas; mesmo entre ospagãos romanos eram as virgens alvo de honrarias, de sorte que o governochegava a perdoar a um criminoso pelo qual uma virgem intercedesse; quantomais valerão as súplicas de uma esposa de Jesus Cristo junto ao Altíssimo emfavor dos pecadores”.

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A oração contínua, as meditações longas são um trabalho pesado, mor-mente no convento onde elas se repetem diariamente a vida inteira; e entretan-to a oração não é o único trabalho das religiosas; no convento Maria deve mui-tas vezes ceder o lugar a Marta. Há religiosos que consomem o dia no confes-sionário a perdoar pecados, ou no púlpito a converter os pecadores, ou à secre-tária a cultivar as ciências, achando somente à tarde uma parcela de tempopara lançarem um rápido olhar para sua própria alma. Quantas religiosas, demanhã até à noite, cansam-se nas aulas instruindo as crianças, ou velam anoite inteira à cabeceira dos doentes nos hospitais, a combater o sono e ocansaço em seus membros entorpecidos pelas longas vigílias! quantas Espo-sas de Cristo por seus esforços heróicos e labutações aturadas em prol dahumanidade sofredora, se têm lançado, na flor dos anos, aos braços da inexorávelmorte! E mesmo que uma Religiosa não tivesse de sujeitar-se a nenhum des-ses trabalhos físicos ou intelectuais, nunca poderia esquecer, sob pena de con-denação, o mais penoso de todos: o trabalho da santificação própria: domar aspaixões, combater os vícios, cultivar as virtudes. Esse trabalho aturado e peno-so só pode ser feito por almas generosas e fortes, a quem Deus chamou a suacasa. A vida claustral exige abnegação e pressupõe grande energia espiritual evigilância constante — não admira pois que uma ou outra alma, menos forte, sesinta esmorecer e abandone seu Deus voltando-lhe as costas. Outras, cansa-das do combate, permanecem, sim, no convento, mas o coração vaga pelomundo, caem na tibieza causando prazer a Satanás que em seus coraçõesdeposita os germes das imperfeições, da impaciência, hipocrisia, inveja, ciú-mes, murmurações, loquacidade, apego às coisas do mundo, ao amor próprio,à vanglória etc. Embora o mundo não tenha direito de exprobrar coisa alguma aesses abusos que não o prejudicam, porquanto uma Religiosa tíbia é sempremelhor do que uma pecadora no mundo, todavia o Esposo divino contrista-se,subtrai muitas vezes sua luz divina, retira seu braço, diminui as consolaçõesespirituais, das quais a Religiosa tíbia se torna indigna por suas imperfeições einfidelidades, e cheio de amargura lhe repete as palavras aterradoras: “Oxaláfosses quente ou fria!” (Ap 8,15). Abandonada pelo Esposo, a pobre Religiosa àbeira do precipício, sem luz divina, sem o auxílio do céu, facilmente resvala parao abismo e precipita-se no pecado mortal. Nesse deplorável estado a míseradebate-se sem consolo, não tem as alegrias do mundo a que renunciou no diada sua profissão, nem as consolações do céu, porque é infiel a seu Esposo.Como é triste uma Religiosa tíbia, suspensa entre o céu e a terra! Ela deve serpobre, em virtude do voto, e nutre tantos desejos de possuir... deve ser pura,porém não goza as carícias do amor divino... deve obedecer, e não sente o fogodo céu... deve rezar e não sente consolação! pobrezinha, deve abnegar-se,porém sem merecimentos, vive sem esperança e morre se ma graça de Deus!

Toda essas verdades eram expostas por São Clemente com animação ecalor. No dia de sua nomeação para confessor das Ursulinas, foi felicitado porum Barão, pela honrosa colocação obtida, na qual lhe era dado fazer tanto bemàs almas puras, às Esposas de Jesus Cristo. Clemente, porém, meneou a ca-beça e respondeu com seriedade: “Vós me felicitais por um cargo que eu temo;quisera antes ouvir de confissão a metade do exército austríaco do que a dezreligiosas tíbias”. Quanta verdade não encerra essa palavra! E de fato, entre

tantos milhares de soldados que perfazem o número da metade do exércitoaustríaco, quantos blasfemadores, profanadores sacrílegos dos lugares santos,ladrões, libertinos, hereges, perjuros, beberrões! e por isso também quantoscrimes e pecados, que reunidos num só muladar, talvez o tornassem mais altodo que a Torre de Babel!... e entretanto o Servo de Deus tinha mais esperançana salvação deles do que na de dez religiosas tíbias! E quando em um conventoexistem, ainda que poucas, religiosas tíbias, a comunidade inteira corre perigode ser infeccionada pelo espírito mundano, que a porá a perder. É certo que omosteiro das Ursulinas não estava em decadência completa, mas também écerto que lá penetraram, com o espírito da época, os bacilos do josefismo rela-xando a disciplina claustral.

São Clemente que em uma de suas expressões fortes disse: “Eu tenho umfaro católico”, percebeu imediatamente o qual e descobriu sua origem e causa;pôs-se a agir com energia pouco se incomodando com as palavras, por vezespesadas, que teve de ouvir dentro e fora do convento, e conseguiu restabelecero antigo espírito, o amor a Jesus Cristo e a observância regular em todos ospontos.

Por meio de numerosas conferências ascéticas às religiosas, o Servo deDeus procurava torná-las dignas do seu divino Esposo, e proporcionar-lhes ale-grias e consolações em seu convento. Uma vez falando da vida humana, da suabrevidade e importância para a salvação, instou com elas a que aproveitassemo tempo... “porque o tempo, disse ele, é um tesouro infinitamente precioso, umbem inestimável; quem se aproveita bem do tempo, ganha o céu e o próprioDeus”. Embora seja o tempo uma criatura de Deus, que é o Senhor absoluto detudo o e se acha infinitamente acima de todo criado, Clemente punha o próprioDeus em paralelo como tempo dizendo às Ursulinas: “O tempo vale tanto comoo seu Autor divino, porque com ele podemos, por assim dizer, comprar o próprioDeus, se fizermos bom uso do tempo. Deus mesmo será a nossa recompensano céu”.

Homem eminentemente prático, não se perdia em teorias ou belas frases aque não corresponde realidade, e por isso explicava também às religiosas omodo de empregarem bem o tempo, e de usarem desse capital para dele per-ceberem os maiores juros possíveis, coisa que não é difícil no convento. A or-dem do dia no claustro é a vontade de Deus, e executá-la com fidelidade émerecer copiosos juros de merecimentos e de virtudes, porque a vontade divi-na deve ser sempre a norma da nossa vida, a única guia do nosso procedimen-to; as religiosas não devem ter vontade própria por ser contrária à de Deus, quefala interiormente à nossa alma, ou exteriormente pela boca dos Superiores,que são para nós os representantes de Deus. E como as religiosas a isto seobrigam por um voto especial, o da obediência, Clemente repetia-lhes constan-temente: “Não sejais voluntariosas, mas obedecei sempre em tudo!” “Até a mor-te, disse ele em outra ocasião, é mister obedecer; é preferível morrer a desobe-decer. Se a uma Religiosa fosse dado escolher entre a morte e a desobediênciaa qualquer preceito do Superior, não deveria hesitar em sacrificar a própriavida, que é o melhor dos bens terrenos, para não ser infiel a Deus. A morte seriaum sacrifício e holocausto agradável ao Eterno, a desobediência porém umpecado; ora é muito mais nobre sacrificar-se que pecar; a morte pela obediên-

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cia é um martírio que abre as portas do céu. Não terá dificuldade em obedecera Religiosa ao contemplar seu divino Esposo que não quis outro epitáfio sobreseu sepulcro senão a afirmação de que Ele foi obediente até à morte, sim até amorte da cruz”.

Como a hera entrançada à estaca cresce viçosa arrostando os furacões eas tempestades, a alma obediente torna-se grande e forte, resistindo sem difi-culdade aos vendavais das paixões, atirando-se, arrojada, para o alto da perfei-ção e cantando vitórias e mais vitórias, como o afirma o Espírito Santo; torna-setão forte, que vence o coração de Deus, a fortaleza substancial. Um dia ordenouClemente a uma das Irmãs que rezasse uma Ave-Maria pela conversão de umpecador que parecia obstinado. A Religiosa, achando que uma Ave-Maria seriapouca coisa para um efeito tão importante como é a conversão de um pecador,ofereceu-se a recitar mais Ave-Marias naquela intenção. Clemente porém res-pondeu-lhe: “As almas que pelo voto da obediência sacrificaram a vontade pró-pria, rezam com mais fruto, obedecendo, do que fazendo a sua vontade e se-guindo os seus caprichos”. Quem faz a vontade de Deus merece ser por Eleatendido mesmo que faça uma oração tão breve como é a Ave-Maria.

Em Sta. Úrsula havia uma irmã de bom coração, de muito bom espírito e,em geral, de muito belas qualidades, mas geniosa, de sangue quente que nãosuportava a menor contradição nem opinião alguma contrária à sua; quandocontradita por alguém, desfazia-se em palavras pouco edificantes. Entre ela euma outra Irmã levantou-se, um dia, forte discussão, onde as palavras jorravamcom eloqüência espantosa, tornando-se sempre mais altas e fortes. Nesse so-lene e animado bate-boca, entrou Clemente que não ficou nada edificado comtais desabafos contrários à caridade. As duas interromperam instantaneamentea batalha envergonhando-se do Diretor espiritual, que depois de indagar a cau-sa, dirigiu-se à Irmãzinha nervosa, fez-lhe um sermão em regra, dando-lhe depenitência a proibição de comungar o dia seguinte, porque a ninguém é permi-tido receber Jesus com rancor e ódio no coração. A Irmã, longe de se irritar eperturbar com a repreensão, aceitou humildemente o castigo, de olhos baixos,sem proferir uma única palavra de queixa ou desculpa. O Santo edificado com avirtude heróica dirigiu um olhar complacente para a Irmã, perdoou-lhe tudo,tirou a proibição que acabava de fazer, e em recompensa de sua obediência,permitiu-lhe receber mais uma comunhão além das permitidas pela Regra.

Clemente inculcava a obediência sobretudo às noviças, porque sabia que,de pequenino se torce o pepino.

Aprouve-lhe dar uma vez às noviças o seguinte enigma em forma de per-gunta: “Qual é a melhor noviça?” As respostas foram certamente edificantes ebelas: “A que mais reza” — “a que melhor cumpre sua Regra” — “a que vivecontente no convento” — “a que comunga muitas vezes” — “a que faz amiúde oexame de consciência” etc. Como nenhuma acertasse com a solução desejada,respondeu por elas o Servo de Deus: “A melhor noviça é aquela que, obedecen-do com humildade se sente feliz quando, qual vassoura usada, é lançada a umcanto da casa”.

A uma pessoa pouco entendida em vida espiritual isso parecerá talvez umrebaixamento ignóbil e indigno; ser o homem comparado a uma coisa tão vilcomo é a vassoura, que se usa nos mais baixos serviços da casa. Entretanto

nada mais acertado do que essa comparação. A vassoura, antes de colhida eenfeixada, lá fora se elevava orgulhosa a receber as homenagens e os beijosdos zéfiros e os banhos de luz da aurora, e, depois de presa a um cabo, em umcanto atrás da porta, jaz sem o direito de permanecer no salão mais nobre; e láno canto tem de esperar até que a última das empregadas a tire da sua prisão,porque a dona da casa se acanha de tocar nela com medo de se manchar; eessa empregada dela não se serve para os mais nobres empregos, mas pararecolher o lixo, varrer as imundícias, e executar outros serviços semelhantes;terminado o trabalho, a vassoura não recebe palavra de gratidão e reconheci-mento, nem ninguém se lembra de lhe tributar louvores; a criada atira-a para ocanto, onde antes se achava e ela não tem direito de se queixar, mas só deobedecer calada; quando já não pode mais prestar serviços, é lançada a ummuladar ou atirada ao fogo. — Como a vassoura deve ser a noviça do convento,por mais nobre e elevada que tenha sido no mundo a sua dignidade ou ascen-dência sobre os outros; só assim poderá ser boa noviça e prestar para o con-vento. Clemente nessa comparação não quer que as religiosas sejam vis comoas vassouras, mas que tenham intenção e desejo de ser tratadas como elas,com toda a submissão e humildade; — somente com esse desprendimento davontade e do amor próprio é que a alma se sentirá verdadeiramente feliz nacasa de Deus. “Se alguém quiser vir após mim, abnegue-se a si próprio” disse odivino Salvador. Isso naturalmente refere-se exclusivamente aos sentimentos edisposições das noviças, porquanto às Superioras impõe Deus o gravíssimodever de tratar suas súditas com todo carinho e amor, de auxiliá-las com odesvelo de uma terna mãe, e de cuidar das suas necessidades temporais eespirituais.

Convencido dessa importante verdade, o Servo de Deus não cessava deadmoestar as Superioras a que estudassem seriamente as aptidões, o tempe-ramento e as forças físicas e morais de cada Religiosa, e só então dessem assuas ordens. É em vista disso que muitas vezes dizia às irmãs: “Como é fácil eagradável obedecer, e quão difícil é mandar! a obediência dá plena segurançaem todos os transes da vida; quem obedece não pode errar, mesmo que oSuperior caia no erro e se engane”.

Com a entrada no convento não cessam as dificuldades para a alma queteme a Deus, pois que diz o Sábio: “Filho, quando entrares no serviço de Deus,tem-te firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a tentação” (Eccl.2. 1).

Clemente tratava suas noviças com toda a brandura e delicadeza. Se acon-tecia ver alguma delas entristecida ou cabisbaixa, procurava dissipar-lhe a tris-teza e levantar-lhe o ânimo.

Uma donzela, munida das melhores intenções abandonara o mundo e en-trara no convento das Ursulinas, para lá glorificar a Deus e salvar a sua alma. Oinimigo de todo o bem pôs-se logo a sussurrar-lhe aos ouvidos toda a sorte detentações contra a vocação. “Tu não és chamada por Deus à vida religiosa,dizia-lhe, nunca poderás suportar os rigores do convento; vivendo na casa deDeus sem vocação expões-te ao perigo de condenação eterna; além disso nãoés digna absolutamente de ser Esposa de Jesus Cristo por causa dos teusmuitos pecados”. Do outro lado o inimigo pintou-lhe o mundo como um templo

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magnífico onde poderia servir a Deus com liberdade e amor, entregando-se àsdoçuras e às delícias da vida no século que lhe seria um paraíso, mostrou-lhe aincomparável beleza da liberdade, que nos dá direito de viver à vontade, osencantos da vida familiar, os enlevos do matrimônio etc. Tentada dessa forma apobre donzela sentiu saudades do mundo e asco da vida religiosa; lágrimas,em torrentes, lavavam-lhe as faces encovadas, lágrimas de arrependimento dehaver entrado no convento. A única consolação que ainda lhe restava era apossibilidade de voltar ao mundo e aos seus encantos e divertimentos. A donzelaaprontou a roupa e todos os seus apetrechos, resolvida a voltar as costas aJesus. Marcada a hora da saída, sentia na ância de partir a vagareza do relógio.

Momentos antes de abandonar o convento apareceu Clemente a quem elanão participara coisa alguma a respeito, aproximou-se dela e disse: “Francisca,fica no convento, porque foi Deus quem te chamou”. A donzela tremeu vendo-seconhecida por seu confessor, a quem tudo ocultara; percebeu que o Servo deDeus lia não só nos livros mas também nos corações, sentiu-se envergonhadae implorou o perdão. Pouco depois a postulante pediu e recebeu o hábito, eviveu uma vida santa e exemplar, atingindo a idade de oitenta anos, sem com-preender jamais como é que o demônio a podia enganar daquela forma.

Havia em o convento uma Irmã por nome Jacoba, que entrara na Congre-gação no mesmo dia em que o Servo de Deus tomara posse do cargo de con-fessor das Irmãs. Sentia-se em extremo feliz no convento, donde não queriasair por coisa nenhuma deste mundo. Satanás, que não ignorava isso, começoua tratá-la por outra forma. Enfermidades fortes abateram o físico da pobre novi-ça, que enfraquecida e extremo temeu ser, por imprestável, expulsa do conven-to; a tristeza apoderou-se de sua alma, prostrando-a ainda mais que o corpo;sincera e franca, foi desabafar o coração junto do seu sábio Diretor espiritualque, o sorriso nos lábios, derramou em sua alma torturada o suave bálsamo dereal consolação dizendo-lhe: “Farás a profissão religiosa, recuperarás a saúdee sobreviverás a muitas que agora estão de faces rosadas”. Essas palavrassoaram doces e agradáveis aos ouvidos da boa noviça, que todavia não lhesdeu muito crédito, por não terem nenhuma aparência de verdade. A noviça, defato, continuou a guardar o leito, e a enfermidade se agravava na medida que seaproximava o dia da profissão. Desconfiada a noviça manifestou novamenteseus temores ao santo Diretor, declarando ter pouca esperança de recuperar asaúde e permanecer na Congregação: O Santo, longe de se perturbar, disse-lhe ainda com mais energia:... “farás a profissão, e na idade de 28 anos estarásinteiramente curada e ficarás ainda uma bruaca velha”. A enferma necessitavada saúde aos 24 anos em que deveria professar, e o Santo só lhe prometia acura quatro anos mais tarde!

As irmãs conselheiras reuniram-se para tomar uma resolução definitiva arespeito de Jacoba e, a uma voz, declararam que o convento não é hospital,mas casa de oração e trabalho, e já que a condição para alguém ser recebidona Congregação é possuir não só boa vontade e nobre coração, mas tambémsaúde bastante para executar os pesados deveres da vida religiosa, decidiramque a noviça Jacoba não podia fazer os votos, devendo voltar quanto antes paracasa. Antes porém da execução definitiva, a Superiora pediu o parecer de Cle-mente, que disse sem mais preâmbulos: “Deixem-na fazer os votos, ela recupe-

rará a saúde e prestará relevantíssimos serviços à comunidade”. A autoridadede Clemente foi decisiva e a noviça fez a profissão dos votos. A profecia deClemente realizou-se à risca: Jacoba sobreviveu a todas as irmãs que naquelaépoca se achavam no convento; cinqüenta anos mais tarde festejou as bodasde ouro de sua profissão religiosa com saúde perfeita e força invejável, emboracontasse então nada menos de 76 anos de idade!

Os cuidados paternais de Clemente não se limitavam apenas ao conventodas Ursulinas, estendiam-se em geral a todas as religiosas procurando suavi-zar-lhes o jugo da vida claustral. A Irmã Jacoba, da qual acabamos de falar,nobre de nascimento, era extremamente nervosa e irascível. Ao voltar uma vezda escola achou-se exausta de forças e sentia necessidade de repouso no si-lêncio da sua cela. Possuidora porém de grande força de vontade, venceu-se eobedeceu à Regra que a chamava, e na capela diante de Jesus Sacramentado,desabafou, em fervorosas preces, o seu coração. Inesperadamente chega aMestra das noviças e manda-a ao confessionário. Ah, isso era demais para anobre baronesa que enfraquecida cai de nervosia e susto. Obediente e virtuo-sa, faz um esforço sobre-humano, levanta-se e dirige-se ao confessionário, ondedeclara suas culpas com a sinceridade de uma criança, mas não diz palavrasobre sua doença e fraqueza. Clemente que conhecia bem a penitente e ouviraquanto se passara na capela, quis dar-lhe uma boa lição de que nunca se es-quecesse em sua vida; no fim da confissão acrescentou: “As mulheres têm umgosto especial de prorromper em suspiros e lamentações”.

A noviça meditou nas palavras do Santo e achou que realmente as mulhe-res se servem das lágrimas e dos soluços como armas poderosas, para moveros corações dos homens, para os dominar e para chamar sobre si a atenção detodos. Jacoba sentiu-se envergonhada dessa fraqueza e dali por diante esfor-çou-se por sofrer calada e com calma por amor de Deus.

O sonho dourado de Clemente era de transformar os corações das suasdirigidas em outros tantos jardins mimosos, onde brotassem e medrassem asmais belas flores das virtudes cristãs e religiosas. Além da obediência e humil-dade aprazia-se em inculcar-lhes o amor da cruz, que ele próprio pregava cons-tantemente com o seu exemplo; costumava dizer: “Amar a Deus é um bem tãogrande que não o poderemos descrever com palavras humanas, porém umbem ainda maior é sofrer por amor de Jesus. Deus e os sofrimentos são bem-aventurança suprema”. Sempre que alguma Irmã conversa tinha de carregarlenha, escada acima, Clemente mandava rezar: “Ó Jesus, permiti que eu vosajude um pouco carregando convosco esta cruz pesada”.

A Irmã Thadéa nos deixou escritas as admoestações que o Servo de Deuscostumava fazer às irmãs: “Amar a Deus é um bem indizível; o amor de Jesusseja o motivo de todas as vossas boas ações; a vontade divina seja a vossa lei;a honra e o contentamento divino o vosso alvo; nas tentações não percais apaciência, mas alegrai-vos; atirai-vos nos braços da Providência; não murmureisnunca contra as disposições divinas, mesmo que vos sintais interior e exterior-mente abandonadas; a tristeza vem do inferno e oprime o coração”.

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CAPÍTULO XVII

Sua fé profundaA fé profunda — O plano da Providência — O faro católico — O seu tesouro

— O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história— Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigo-so —Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular.

O antigo padeiro de Tasswitz jamais se teria tornado o Apóstolo de Viena eo modelo de virtudes, se não tivesse possuído em grau heróico, e comunicadoà toda sua vida, interior e exteriormente, aquela energia maravilhosa, que ou-trora transformara os pobres pescadores da Galiléia em colunas inabaláveis daIgreja, tornando-os aptos para o apostolado e a conversão do mundo pagãochafurdado na lama de todos os vícios. A fé, fundamento da verdadeira justiça ede todo edifício espiritual, achava-se profundamente arraigada no coração doServo de Deus, a quem transformou em um facho luminoso; aparecendo nomundo Clemente iluminou-o dissipando as trevas do erro, e aqueceu-o ateandoo fogo divino nos corações frios e indiferentes. Ouçamos o que dele nos afirma-ram com juramento as testemunhas que depuseram no processo da beatifica-ção: “A fé que animou Clemente, era mais firme do que o granito ou o ferro; emse tratando da fé ele não cedia nem um palmo”. — O cardeal Rauscher, um dosseus mais ilustres discípulos, diz que “ele abraçava com fé viva e inabaláveltudo quanto Deus revelou e a Igreja propõe para crer”. — “Não conheci jamaisem minha vida, diz outro, homem algum que possuísse como ele, uma fé tãofirme e inquebrantável; a fé essencialmente católica era então uma raridade,mormente entre as pessoas instruídas; a literatura estava toda eivada deracionalismo e heresia; Clemente agradecia a Deus efusivamente, o grandebenefício de nascer de pais católicos, sobre tudo de receber de sua queridamãe uma educação firmada na verdadeira religião e temor de Deus; sua fé eratão inabalável que muitas vezes ele afirmava não esperar recompensa algumapela fé, porque nunca teve de combater tentações contra ela”.

A luz da fé, escreve a Ursulina Jacoba, guiava-o em todas as ações e era aregra constante de todos os seus passos, pois que ele vivia da fé! No púlpito enas palestras com os amigos falava sempre e com especial ardor do grandebenefício da fé acrescentando amiudadas vezes: “A quem não possui fé viva, asmais sublimes verdades da religião têm aparência de fábulas!” E enaltecendo ogrande mérito da fé: “se eu pudesse ver com os meus olhos as verdades dareligião, não lhes daria tanto crédito como a afirmação da Igreja, pois que estaé infalível nesse ponto, ao passo que os meus olhos estão sujeitos a muitoserros”. Apontando uma vez para uma imagem pendurada na parede fez a ob-

servação: “Duvido menos na Trindade de Deus do que na presença dessa ima-gem”.

A fé inabalável de Clemente era superior a qualquer sentimento de dúvida;esse era o plano da Providência, que o destinara a avivar a fé quase mortanaquele tempo no norte da Europa, e a fazê-la produzir abundantes frutos nasalmas desorientadas pelo espírito da época. Uma só coisa tinha ele ante osolhos e dentro do coração em seus numerosos trabalhos espirituais: Deus e aeternidade. Todos os meios empregados na conversão e direção das almas,Clemente os hauria da fonte límpida e copiosa da fé; embora acatasse os co-nhecimentos humanos, dava preferência à ciência dos Santos e tinha especialprazer em repetir as palavras do Salmo: Quoniam non novi literaturam, introiboin potentias Domini (Ps. 70, 16) isto é, porque não conheço a sabedoria doslivros, entrarei na força do Senhor. “Para mim tenho por incompreensível, diziaele, o fato de um homem poder viver sem fé; um tal parece-me um peixe forad’água”.

Outros ouviram-no dizer: “Sou orgulhoso e vaidoso, sou um pobre pecadore nada aprendi, mas uma coisa eu tenho pela graça de Deus: sou católico até amedula dos ossos; não trocaria com ninguém a minha fé”. Segundo o atestadode Madlener, para o Servo de Deus, as provas da religião tiradas da razão sótinham valor para os principiantes; para os mais adiantados julgava ele de maiorimportância as provas históricas, que ele reconhecia sobretudo na existênciada Igreja”.

A simplicidade e humildade com que submetia sempre seu entendimento àfé, não ficaram sem recompensa. Deus esclareceu-lhe tão profundamente oespírito, que ele ficou tendo das coisas espirituais e divinas a mais extraordiná-ria intuição. Com grande humildade diz Clemente não haver aprendido nada,mas é fato que todos admiravam seus vastos conhecimentos; isso leva a crerque Nosso Senhor o iluminou de modo sobrenatural dando-lhe a faculdade deinstruir os homens mais inteligentes e sábios. Produtos literários e poéticos,hipóteses científicas em qualquer ramo da ciência, especulação dogmática edoutrinas da alta ascese ou de misticismo, ele os julgava e decidia com preste-za espantosa e agudeza de espírito; como a gracejar, dizia ele possuir um “farocatólico”, afirmação essa que não queria certamente indicar outra coisa senãoa luz superior que recebia do céu.

Essa visão sobrenatural não era para Clemente apenas objeto de belasmeditações, de êxtases suaves e de doçuras espirituais, mas ainda norma se-gura e certa para a vida prática; o que o Servo de Deus via à luz da fé e reco-nhecia grande, sublime e atraente, pairava-lhe constantemente aos olhos e erao objeto dos seus pensamentos, desejos e saudades. Da sua fé íntima brota-vam indizível alegria na oração, contínuo recolhimento de espírito, respeito pro-fundo de todas as coisas divinas, numa palavra, todas as virtudes que caracte-rizam a vida orientada pela fé. Em São Clemente verificou-se a palavra de Je-sus: “Onde está o vosso tesouro, ai se encontra também o vosso coração”; oraDeus era o tesouro de Clemente, que o conhecia pela luz sobrenatural, e porisso era Ele o objeto dos seus pensamentos e das suas mais fervorosas súpli-cas. Mesmo nas mais movimentadas ruas de Viena e nas praças públicas, ondefervilhavam as multidões, o Santo conservava-se recolhido em Deus, enquanto

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que seus dedos desfiavam as contas do rosário, oculto debaixo do manto; em-bora acompanhado de alguns dos seus confrades, falava pouco, a fim de poderrezar mais. Nos seus passeios obrigatórios gostava de recitar, como diz o car-deal Rauscher, o terço do Senhor, isto é, 33 Padres-Nossos em louvor dos trintae três anos que o Filho de Deus passou sobre a terra.

O seu espírito elevava-se, como que naturalmente, das coisas terrenas aoCriador; era o resultado de sua união íntima com Deus; dessas alturas desciaapenas quando a caridade para com o próximo o exigia. Nas cidades ou nasroças, durante o verão ou o inverno, andava sempre de cabeça descoberta parahonrar assim a presença de Deus que via em toda parte. Sua constante uniãocom Deus deduz-se facilmente do cuidado que tinha de renovar com freqüênciae com amor a boa intenção, que aconselhava também encarecidamente a to-dos. A cada passo ouvia-se-lhe dos lábios a oração predileta: “Tudo para aglória do meu Deus...”

Amor filial consagrava o Servo de Deus à Santa Igreja Católica. Se eleamava as almas e se esse amor era uma gota, a dedicação e o amor para coma Igreja era um verdadeiro oceano, para onde corriam todas essas gotas deamor; como dizia alguém: Se cada alma era para ele como uma pedra preciosaque o divino Arquiteto se escolheu e preparou, a Igreja Católica era o grandetemplo do Eterno, repleto da Majestade divina e feito para a sua glória; se emcada alma contemplava uma jóia de valor inestimável, para cuja aquisição oFilho de Deus sofreu tantas dores e amarguras e para cujo resgate Ele derra-mou seu sangue divino, a Igreja representava o diadema magnífico e adornar afronte augusta do Rei Eterno; se a alma é a imagem de Deus e destinada àunião admirável com o Infinito e à participação da sua grandeza e glória, aIgreja é o corpo místico de Cristo e por isso a manifestação divina, indizivelmentebela, da uma sabedoria sobremaneira digna de amor e veneração”. É sob esseprisma e debaixo da orientação desses princípios e dessa convicção que oServo de Deus encarava as almas, irmãs entre si e filhas da santa Madre Igreja,que as gera nas águas lustrais do batismo, as sustenta com o pão dos anjos eas conforta com a luz das verdades reveladas — é por meio da Igreja que Deusse vela nosso verdadeiro Pai”. As palavras e a doutrina da Igreja eram-lhe do-ces e suaves como o mel, porque anunciadas por sua mãe; mais de uma vezele mesmo declarou que não acreditaria nem nas Escrituras sagradas, se lhenão fossem propostas pela Igreja.

A demonstração clara e convincente da verdade da nossa santa religiãonão eram para ele os milagres operados por Deus ou as profecias realizadas nodecorrer dos tempos, mas a existência da Igreja. E de fato, depois de 1.900anos, a Igreja construída sobre as ruínas e os destroços dos impérios, maisfirme do que todos os reinos do mundo, ainda hoje é cheia de vida e vigorapesar das perseguições de inimigos poderosos, que procuram dar-lhe a mortee devastá-la a ferro e fogo, e apesar das inúmeras heresias excogitadas nodecorrer dos séculos e das mais negras calúnias contra sua doutrina sagrada.Viu o sangue dos filhos regar os circos romanos por mais de trezentos anos equando todos a supunham agonizar, e Dioclesiano anunciava ao orbe estardestruído o nome cristão sobre a terra, a Igreja preparava-se o maior triunfo noimpério de Constantino, no qual a cruz gloriosa começou a cintilar no alto de

magníficas e soberbas catedrais. Ora isto não se explica naturalmente, e nemse concebe senão por uma proteção toda singular de Deus; e essa proteçãonão seria possível se não se tratasse da obra prima do Homem-Deus, do corpomístico de Jesus Cristo, isto é da Igreja. Tão profunda era a convicção de Cle-mente que ele dizia: “Tirai-me tudo, mas não me priveis do tesouro precioso dafé: é melhor perder a vida que naufragar na fé”.

Quem conhece e avalia a fé viva e prática do Servo de Deus, compreende-rá a compaixão que ele sentia dos seus patrícios de Viena, extraviados do cami-nho da verdade, o zelo apostólico que o devorava e o impelia a procurar, semdescanso, as almas abandonadas, a converter os hereges esclarecendo-lhes ainteligência. “Ah! que não devem acreditar os homens para não crerem nasverdades da fé! preferem crer as coisas mais absurdas para não se curvaremdiante da revelação; acreditam que só eles têm a verdade; que toda a cristanda-de há 19 séculos tateia nas trevas do erro; que em matéria de fé eles entendemmais do que os mais ilustrados e santos bispos e doutores da Igreja; que osmilhões de mártires eram fanáticos ignorantes; que Deus com seus milagresaprova o erro e a mentira sobre a terra; que Cristo foi um infeliz iludido ou umfino enganador, quando se declarou Filho de Deus, embora o mundo inteiro atéagora não tenha encontrado nele o mais leve defeito, mas só sabedoria e san-tidade sobre-humana e até divina; que tudo se acaba com a morte, emborasinta o homem uma sede insaciável da imortalidade; que o mundo é eterno,quando nele tudo envelhece e morre etc. etc. Ah! realmente, incredulidade esuperstição são duas irmãs gêmeas e inseparáveis, amparadas por hediondaignorância”.

Clemente não podia compreender a possibilidade do respeito humano;parecia-lhe impossível, uma pessoa estar convencida da verdade da fé e sentirvergonha dela na presença dos homens. O católico deve ufanar-se de sua fé,louvar publicamente o Senhor, que lhe concedeu tão insigne favor, e em sinalda sua profunda gratidão prestar sempre e aos olhos de todos o obséquio doseu amor ao maior dos Benfeitores. Em suas pregações sobre a fé e sobre aIgreja Clemente era simplesmente inexcedível, como já o temos visto em diver-sos pontos desta obra.

Falava da fé às criancinhas, aos rapazes que o rodeavam, aos amigos queo visitavam, aos pecadores que queria converter e em geral a todos que comele se relacionavam. No púlpito e no confessionário inculcava a fé como basede toda santidade e da vida devota. Como ele vivia da fé desejava que estafosse também para os outros a alma da inteligência, a estrela polar da vida, afonte dos grandes ideais, das generosas abnegações e dos sublimes heroísmos.

A fé é um dom de Deus, que o homem não pode merecer-se com todas assuas boas obras; é por isso que S. Clemente orava e mandava orar muito pelaconservação e propagação da fé.

Vai aqui uma oração que o Santo gostava de recitar e que pode ser útil aosque talvez em sua casa ou família têm alguém que não crê ou não pratica areligião por não a conhecer convenientemente. É a seguinte:

“Ó meu Redentor, chegado será então o momento terrível, em que nãorestarão mais do que poucos cristãos, animados do espírito de fé? o momentoem que, provocado pelos crimes, nos retirareis vossa proteção? as faltas e a

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vida criminosa de vossos filhos terão enfim impelido irrevogavelmente a vossajustiça para a vingança justiceira? Ó autor e consumador da nossa fé, nós Vosconjuramos na amargura dos nossos corações contritos e humilhados, nãopermitais que a bela luz da fé se extinga em nós. Lembrai-vos das vossas mise-ricórdias e lançai um olhar de compaixão para a vinha que foi plantada pelavossa dextra, regada com o vosso sangue e com o de milhares de mártires,com as lágrimas de tantos penitentes e com os suores e orações de tantosapóstolos, confessores e virgens. Ó divino Mediador, olhai para as almas fervo-rosas que se levantam puras até o vosso trono e vos rogam pela conservaçãodo precioso tesouro da fé; diferi, ó Deus justíssimo, o decreto da vossa reprova-ção, não escuteis as nossas blasfêmias, fixai o vosso olhar sobre o sangueadorável que, derramado sobre a cruz para nossa salvação, intercede aindacotidianamente por nós nos nossos altares; conservai-nos a verdadeira fé e oamor à Santa Igreja, conservai-a pura e ilibada, guardai-nos na barca de Pedrofiéis e obedientes a seus sucessores, vossos vigários na terra, a fim de que aunidade da Igreja se conserve intacta, a santidade fomentada, e a Sé Apostóli-ca protegida, a Igreja dilatada para o bem das almas. Aflijam-nos muito emboraas enfermidades, consumam-nos os pesares, acabrunhem-nos as desgraças,mas conserve-se a santa fé, porque enriquecidos com esse dom precioso, su-portaremos de boa mente as dificuldades sem que coisa alguma possa pertur-bar nossa felicidade. Ó Jesus, autor da nossa fé, protegei, fortalecei e iluminaios governantes; humilhai e convertei os inimigos da vossa Santa Igreja; concedeia todos os reis, a todos os chefes cristãos, a todo o povo fiel a verdadeira unida-de e concórdia; conservai-nos em vosso santo serviço no qual queremos viver emorrer. Ó Jesus, por vós vivo, por vós quero morrer; quero ser vosso toda aminha vida, também na hora da minha morte. Assim seja” (300 dias de ind. LeãoXIII, uma vez ao dia).

Clemente conservava os olhos continuamente abertos para descobrir oserros que pudessem danificar a fé, para os combater e extirpar. Em Praga haviaum professor por nome Bernardo Balzano, que embora lente de religião, nãopassava de um racionalista refinado, que pervertia os pobres alunos educando-os para o racionalismo e a incredulidade. Esse sr. lembrou-se de publicar umaobra intitulada “Palestras edificantes para acadêmicos”, na qual expendia oserros que vinha ensinando, a muito anos, do alto da cátedra. Clemente pediuum exemplar, e percebendo o dano incalculável que o professor fazia às almas,foi incontinenti ter com um dos vigários de Viena, pedindo-lhe falar com o impe-rador sobre aquele abuso em Praga.

O monarca, católico de convicção, mandou examinar a obra, e depois deproscrevê-la, baniu o seu autor do magistério público.

Os tempos de São Clemente eram tempos maus de josefismo e dejansenismo; a literatura toda estava eivada de erros e de falsas doutrinas que seespalhavam entre o povo, arrancando a convicção católica ou pelo menos incul-cando a dúvida. Para reformar a Europa era necessário não descurar da im-prensa, dos bons livros, das boas revistas etc., que mais do que os sermõespenetram nos lares, desfazem as dúvidas, ensinam a verdade, animam a virtu-de e fortalecem a fé. São Clemente não desconhecia a importância da impren-sa. “Os maçons, dizia ele, trabalham, dia e noite difundindo os livros mais perni-

ciosos; querem banir Jesus Cristo da Europa, e não recuam diante de dificulda-de alguma, contanto que consigam seu nefasto intento. Oxalá fôssemos nóscatólicos animados do mesmo zelo pela Santa religião!” “Os alemães gostamde ler, repetia Clemente, mas não há nada que se lhes possa dar para a leitura”.Embora Clemente não escrevesse, pessoalmente, animava e encorajava osoutros a que se dedicassem à grandiosa missão da imprensa. E os amigos doServo de Deus escreviam nos mais importantes jornais da Áustria. FredericoSchlegel ideou a fundação de um órgão central católico para todas as esferasda vida intelectual. Embora não desprezasse as revistas, novelas, hinos, poesi-as, dramas e semelhantes obras, Clemente dava a preferência aos escritosascéticos e dedicava-se com ardor à impressão e tradução de obras novas. EmSão Beno esse trabalho constituiu uma parte importante do programa apresen-tado pelo Santo a seus padres; em Viena eram os seus amigos que se esforça-vam para reformar a literatura frívola do tempo, e enriquecer a Alemanha e aÁustria de livros católicos e de piedade sólida. A pedido de São Clemente, Silbertpublicou mais de cem obras e traduziu para o alemão as melhores obras daFrança, Espanha e Itália; Veith editou 55 volumes de sermões e homilias commuitos outros volumes de tratados filosóficos, poesias, composições mistas etc.O mais incansável porém foi o Dr. Francisco Schmid, amigo íntimo e confessordo Santo, o qual não podendo pregar por fraqueza pulmonar, se dedicou àelaboração de livros de orações e piedade em alemão, latim, italiano, francês,inglês e grego enviando-os, quase sempre gratuitamente, a esses países paramais facilmente ganhar todos para Jesus Cristo; introduziu esses livros noshospitais e nos quartéis, repartindo-os entre os enfermos e os militares.

São Clemente entusiasmado por esse zelo admirável não hesitou em ex-clamar: “Se em Viena houvesse apenas três Schmids, converter-se-ia a cidadeinteira”.

Com o fim de tornar os livros mais acessíveis a todos, formou-se, a conse-lho do Santo, uma biblioteca popular em Viena. Para a Áustria começava entãouma nova era, era de renascimento espiritual, devido em grande parte, aosesforços de São Clemente. Os grandes artistas, os conhecidos mestres, os he-róis da pena como Frederico Schlegel, Adam Müller, não publicavam suas obrasmonumentais sem antes receberem a aprovação do Servo de Deus. E o juízode Clemente era pronto, rápido não só em matéria de teologia teórica e prática,mas também em assuntos profanos, como literatura, poesia e arte. Todo essemovimento literário estava pois colocado nas mãos do Santo, que obrigava osartistas e os sábios à oração e assim levava a Deus a arte e a ciência; Clementeregava as raízes, e as folhas e flores vinham por si mesmas; e esse seu trabalhofoi decisivo para a reforma espiritual, a conservação e restauração da fé e olevantamento da vida moral.

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CAPÍTULO XVIII

O amante da pobrezaQue são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O

quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — Aspalavras de Jesus.

A opinião de Clemente a respeito das fortunas e grandezas da terra, erabem diversa da dos filhos do século; a sua alma de escol não se prendia àscoisas vis do mundo, que afinal não passam de lama e podridão. Clementeprocurava a pobreza como os mundanos a riqueza e o fausto; amava-a comooutrora o pobrezinho de Assis. “Que valor, dizia ele, terá no fim do mundo oouro? certamente não valerá mais do que o vil estanho”. Queria dizer: no dia dojuízo nenhuma riqueza terá valor perante Deus; com nenhum ouro ou prata sepoderá comprar o Juiz Eterno; e os ricos lá estarão como pobres mendigos senão se tiverem provido dos bens imortais e imperecíveis da graça. Uma dasmais freqüentes exclamações do Santo era: “Meus irmãos, procuremos só océu”. Seguindo o conselho de Jesus: “não vos preocupeis; procurai o reino deDeus e a sua justiça, o resto Deus vô-lo dará de acréscimo” não se incomodavanem preocupava com as coisas terrenas, em se tratando da sua própria pes-soa. Deus que reveste os lírios dos campos, pensava ele, e alimenta as aves docéu, não me abandonará se eu nele depositar inteira confiança. Às irmãs costu-mava dizer: “O que a Religiosa tem é apenas um empréstimo, só Jesus é o seutesouro”.

O Servo de Deus amava tanto a pobreza, que só lhe dava o nome de “pri-meira bem-aventurança”; tinha por certo ser ela o caminho mais seguro para océu, como nô-lo mostrou o Filho de Deus desde a pobreza do presépio até adesnudação completa na cruz e o seu sepultamento em túmulo alheio. Assimdisso sabia o Servo de Deus que o Senhor derrama maior soma de consola-ções sobre uma alma desprendida e desapegada das cousas da terra do quesobre as que se prendem voluntariamente, por laços desprezíveis, às ninhariasdo mundo.

Uma vez estava Clemente sentado entre os seus discípulos em palestraanimada pela caridade cristã. Um deles, sacerdote, pôs-se a narrar com entusi-asmo, fogo e visível contentamento, que durante o dia tivera em suas mãos umornato belíssimo, precioso, no valor de muitos contos de réis. Clemente, a seugrande pesar, percebeu que aquele sacerdote conservava o seu coração ape-gado àquele objeto de luxo; querendo dar-lhe uma lição proveitosa, disse: “Eutambém tive hoje em minhas mãos um tesouro infinitamente mais precioso doque esse ornato: Jesus no Santíssimo Sacramento! e o sr. gloria-se de ter segu-

rado lama e pó!” Devido à grande consideração em que era tido em Viena, e aoconsiderável número de amigos, muitos dos quais ricos e generosos, Clementepoderia possuir objetos preciosíssimos em grande número; o Santo porém nãoos aceitava, não só por haver feito, como todo Religioso, o voto de pobreza, massobretudo por dedicação a essa virtude que amava como sua esposa.

Tendo uma vez feito um favor de maior vulto a uma senhora, quis estamostrar-se grata para com o Servo de Deus e procurou em seu guarda-jóias oque pudesse oferecer a seu benfeitor; entre outras preciosidades encontrouuma cruz toda cravejada de diamantes, lembrança dos tempos antigos, e imedi-atamente dirigiu-se ao Santo para lhe dar de presente. Clemente agradecendo-lhe a boa intenção e ótimo coração, recusou aceitar o presente por amor àpobreza. A nobre senhora porém não se deixando vencer em generosidade,pediu ao Santo não desprezasse a oferta feita de tão bom coração, e não adesfeiteasse dessa forma, ao que o Servo de Deus respondeu: “Guardai-o paraos vossos pobres que terei nisto maior alegria e consolação”. Mas debalde;sentindo-se desprezada a senhora pôs-se a chorar até que o Santo compadeci-do das suas lágrimas, aceitou a cruz de brilhantes, porém com a condição de acolocar, como oferta, perto do altar do Sagrado Coração na igreja das Ursulinas.

Uma prova do grande amor que Clemente consagrava à pobreza, possuimo-la no mobiliário do quarto do Santo em Viena. Era o número 989 da rua quepassava pela igreja das Ursulinas. Toda a residência do Santo consistia em umpequeno quarto que servia, ao mesmo tempo, de refeitório, dormitório, locutórioe capela; junto dele uma pequena alcova em que o Santo guardava seus livrose algumas alfaias e coisas de dispensa; a cela que lhe servia de habitação nãoera profanada pelo luxo dos mundanos; lá não se encontravam elegantes pintu-ras nem ricas tapeçarias; era pequena, sem aparência vistosa, caiada comoqualquer quarto de camponês, desprovida dos ornatos que os grandes do mun-do prezam; em vão lá se procurariam grandes molduras, suntuosos espelhospara a humana vaidade, macios divãs, reposteiros ou cortinados; ao contrário,tudo lá era simples: dois armários velhos servindo de guarda-roupa, um relógiode parede, um leito duro com palhas por colchão, um velho sofá e perto dele umgenuflexório com um Crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora das Dores aopé da cruz; no centro do quarto uma mesa comprida com umas cadeiras, nasparedes alguns quadros de Santos: eis toda a mobília do Pe. Clemente; e todosesses trastes eram pobres, simples e velhos. A única riqueza que lá se encon-trava era o asseio e a ordem em tudo. A batina e, em geral, toda a roupa doSanto era simples e sem a menor sombra de luxo; mormente a batina queusava, era tão estragada e sem cor, que todos se admiravam de não ser oSanto escarnecido e ludibriado pelos garotos de Viena, e de ao invés inspirartanto respeito e chamar tanto a atenção de todos.

Durante o tempo que passou em Viena não usou senão hábito redentorista,embora isso não fosse costume naquela época, em que todos se vestiam àsecular. E se hoje os Redentoristas não usam fazenda fina em seus hábitos, abatina de S. Clemente era ainda mais ordinária. Os sapatos pesados e de solagrossa nunca se recomendaram pelo lustro, embora estivessem bem assea-dos; não poucas vezes conservavam-se largo tempo rasgados por falta de di-nheiro que, nas mãos de Clemente, era dos pobres; as meias ele mesmo as

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remendava por suas próprias mãos. Alguém que lhe perguntou, porque nãodava a consertar a roupa rasgada ao alfaiate, respondeu a sorrir: “O padre deveentender de tudo no governo da casa”.

Durante os sete anos que esteve em Viena, como confessor das Ursulinas,só teve um hábito, que quase já não possuía um palmo de pano que não fosseremendado. Só uma vez vestiu uma batina nova; foi esse um dia de festa paraas irmãs que espantadas exclamaram alto: “Que milagre! o nosso Pai espiritualcom uma batina nova!” No tempo do inverno usava sobre o hábito um manto depano escuro, que recebeu em Varsóvia uns quinze anos atrás. No verão a capaera de pano pouco mais leve, porém ordinário como o outro. O chapéu velho eusado não destoava do resto; sendo de notar que o uso de andar de chapéunas ruas Clemente não o conhecia, a não ser no tempo de chuva... Para sedefender do frio, mesmo no mais rigoroso inverno, o Servo de Deus nunca usouluvas; relógio de algibeira ele tinha por coisa desnecessária, visto haver tantosrelógios nas torres de Viena, que marcavam com exatidão o tempo. Às vezes oServo de Deus olhava para o seu uniforme usado e quase sem cor, e ao arran-car um ou outro pedaço da batina rasgada em qualquer parte dizia a sorrir:“Que belo vigário geral!” Embora Clemente pronunciasse essa palavra por gra-cejo e fina ironia, não fazia senão dizer a verdade, pois que a verdadeira belezanão consiste tanto nos atavios externos, nos adornos principescos, nas jóias ouna seda, no enfeite do corpo, mas sim na nobreza do coração e na formosurada alma. Não passa de uma tolice infantil ligar importância à beleza do traje e aoadereço do corpo; os espíritos superiores, embora sempre asseados como oexige a sociedade, não se prendem a essas bagatelas, mas cuidam da virtude,preocupam-se com a beleza incomparavelmente superior da inteligência, e muitomais ainda com a formosura sobrenatural da alma. A beleza física e o adornodo corpo nem sempre dependem de nós, ao passo que a formosura da almaestá em nossas mãos e em poder de cada um. Deus não olha para o exteriormas para a alma tão somente. Jesus deu-nos o mais belo exemplo do completodesapego das vaidades e futilidades da vida, abraçando voluntariamente a po-breza, nascendo em uma estalagem, vivendo como um pobre artífice numapequena e insignificante oficina em Nazaré e morrendo desprovido de tudo noalto da cruz. Clemente olhava para Jesus Cristo, que era o seu ideal supremo, enele encontrava o motivo do seu amor à pobreza. “Beati pauperes, bem-aventu-rados os pobres”, disse Jesus e acrescentou ainda em outro lugar: “Vae divitibus,ai dos ricos, pois é mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do queum rico entrar no reino dos céus”. “Se alguém quer ser perfeito, vá, venda o quetem, dê-o de esmola aos pobres, depois venha e siga-me”. “Não vos ajunteisriquezas sobre a terra, onde os ladrões as furtam e a traça as roe; acumulai-vostesouros no céu”. Todas essas palavras da Verdade Eterna, Clemente as guar-dava em seu coração, fazendo delas suas meditações e tomando-as por guiada sua vida desprendida das ninharias do mundo.

CAPÍTULO XIX

O Anjo de purezaA virtude angélica — As portas da impureza — As mulheres santas —

Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de cada dia — Suabebida usual — Necessárias explicações.

Entre todas as virtudes praticadas por Clemente, a mais mimosa foi a pure-za, a inocência de coração. Em seus discípulos não admitia nem sombra deimpureza ou moleza efeminada. “Permanecei puros e castos” era o estribilho demuitas conferências e alocuções. O Servo de Deus tinha a pureza como a con-dição necessária para a fé e a vida cristã. E de fato a impureza tem sido sempreuma das causas da incredulidade não só de indivíduos, mas até de reinos enações inteiras, porquanto a fé é como uma luz finíssima que se extingue facil-mente ao contato com o ar impuro impregnado de nojentos miasmas exaladosda podridão dos cadáveres. O impuro, não podendo suportar os remorsos daconsciência, quisera que Deus não existisse, procura abafar a voz importunaque lhe exprobra sua indignidade e baixeza, e foge de quanto lhe possa fazerlembrar a virtude que não quer praticar. A impureza enerva o coração e enfra-quece a alma, que, presa à lama, não tem força de levar uma vida cristã, que écomo a coroa de todas as virtudes, e por isso, não conseguindo dominar-se, aalma cai, ou antes precipita-se de abismo em abismo. O impuro não compreen-de as coisas do céu, não sente alegria na religião nem pode respirar o ambientepuro que conserva a saúde da alma e a faz alcandorar-se às mais elevadasalturas da grandeza sobrenatural. É por essas razões que o Servo de Deusinvectivava o vício impuro mais do que qualquer outro. “É ele, dizia, que lançano inferno a maior parte dos jovens”; e acrescentava: “Almas virgens são irmãsdos anjos”. Conhecendo que o vício contrário à bela virtude oferece à alma osmais renhidos combates, às palavras unia também os esforços práticos e ne-cessários para preservar a juventude desse grande mal: conselhos, avisos, exem-plos, boa companhia, tudo isso ele empregava com solicitude para o bem damocidade. Quando se despedia de algum jovem, o último conselho era sempre:“Guardai a pureza do coração e a retidão da intenção”.

Clemente amava a infância, porque via a pureza estampada na alma e norosto da criança, que ainda não conhece o ardor do vício e os ataques da con-cupiscência; a inocência tinha para ele um atrativo todo singular. Sobretudocom o exemplo é que o Servo de Deus fazia as mais belas pregações sobre apureza. Sua alma santa era como um lírio viçoso, que despregando-se da sor-didez da terra, subia, atirava-se para o alto; em toda a sua vida de setenta anosjamais deixou cair ou macular-se uma só pétala desse lírio cândido; conservou

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intacta, até a morte, a inocência batismal. Por mais curiosos que fossem osvienenses, não puderam descobrir a menos sombra de culpa ou de suspeita arespeito da virtude de Clemente; ao contrário, todo o exterior do Servo de Deus,mormente os olhos, pareciam desprender de si raios fulgurantes de virtudes,obrigando todos a admirar e a amar a pureza; quando abraçava a um jovem,uma como faísca de pureza ia ferir o coração do moço que se sentia impelidoao amor e à prática da virtude angélica.

Sendo essa virtude um tesouro precioso, inúmeros são os que o preten-dem roubar às almas, que para guardá-lo necessitam às vezes impor os maio-res sacrifícios e praticar rasgos de heroísmos. O nosso corpo propende natural-mente para o lodo, é feito de barro e para a terra pende; os cinco sentidos, queo põe e contato com o mundo externo, são um perigo para a bela virtude. Afantasia e o coração são as duas portas por onde entra geralmente a morte e aruína dessa virtude; a primeira porta ainda mais se abre pelas más leituras,figuras indecorosas, cinemas sem moral, teatros sem respeito, bailes livres,onde a promiscuidade dos sexos, a música lasciva, os olhares curiosos, trajesinconvenientes excitam as paixões. S. Clemente era inexorável na proibição dosromances, das poesias amorosas, dos divertimentos ilícitos, que depositam naalma os bacilos deletérios da impureza. Pela segunda porta — o coração —entra o amor com as manifestações de afeto, carinho, galanteios etc. Clemente,o defensor intrépido da virtude angélica, com língua de fogo e ardor de serafiminterditava a todos as amizades suspeitas e perigosas, mormente em se tratan-do de pessoas de outro sexo. Gostava de citar o exemplo do velho patriarca Jó,que não obstante sua avançada idade, sua grande e experimentada virtude,sua vida matrimonial, tremia diante do perigo e, como ele mesmo afirma, che-gou a fazer um pacto com seus olhos de nunca fixá-los em uma donzela. Cle-mente não queria que os seus discípulos se entretivessem com mulheres, erepetia muitas vezes aos jovens: “As senhoras piedosas, encomendai-as aoSenhor”. Nesse ponto o Servo de Deus não conhecia condescendência, e mui-tas vezes mostrava-se indelicado.

Uma vez estava ele, à noite, a trabalhar em seu aposento particular, quan-do alguém bate à porta; vai abri-la e dá com uma senhora que lhe pede mandarum padre novo a um dos arrabaldes ouvir a confissão de uma mulher enferma.

Ao ponderar as duas palavras do pedido: padre novo e mulher enferma,franziu os sobr’olhos e com serenidade disse à senhora: “Aqui não há padrenovo para eu mandá-lo”, e bateu a porta no rosto da senhora que ousara fazer-lhe semelhante pedido.

Nas palestras íntimas com os seus discípulos era em extremo rigoroso,aconselhando-os a fugirem de todo e qualquer agrado das mulheres. “As mu-lheres são sempre mulheres, dizia ele; enquanto não se desfizerem de todo ofeminismo como uma Santa Teresa e outras santas mulheres, são sempre peri-gosas”. Ele até era de opinião que uma mulher nunca se tornará santa, enquan-to não se despojar de tudo que é mulheril. “Todas as mulheres santas, afirmavaele, possuíam um espírito masculino e robusto; todas as mulheres que nãodepuserem o ser efeminado são repugnantes para mim”.

Clemente conhecia a fraqueza humana comprovada nos fatos tristes dahistória e da experiência; conhecia a queda de homens como Adão, Ruben,

Davi, Salomão, Holofernes e tantos outros, e por isso evitava o mais possívelqualquer aproximação com as suas penitentes; com elas era sempre breve evi-tando qualquer conversa desnecessária. Ao falar com senhoras, nunca lhesolhava o rosto, fitava o chão ou fechava os olhos de sorte que nenhuma mulherpôde saber a cor de seus olhos. Um dos seus discípulos afirmou que o Servo deDeus olhava para dentro e não para fora como os outros; era uma expressãoforte que diz tudo: Clemente olhava mais com os olhos do espírito, com asvistas em Deus, do que com os olhos carnais. Afirmam os seus estudantes queClemente não conhecia a nenhuma de suas penitentes, nem sequer as irmãs,pela fisionomia, mas só pela voz.

São Clemente refreava os sentidos e mortificava o corpo para subjugá-lose obrigá-los à escravidão gloriosa da alma; aceitava das mãos de Deus, comânimo alegre, todas as inclemências do tempo, enfermidades ou dissabores;alegrava-se, interiormente, sempre que recebia dos homens alguma afronta ouinjúria, para assim se mortificar, pois que as mortificações que Deus nos man-da, sem as procurarmos, são as mais úteis e proveitosas para as nossas almas,e mais próprias para nos conservarem na humildade e na prática das demaisvirtudes.

Durante muitos anos foi ele confessor das Ursulinas, e diversas vezes tevede ficar esperando, longo tempo, na antecâmara, onde não havia nenhumacadeira, e o Santo nunca se queixou disso, nem o disse a ninguém; quando secansava muito por causa das contínuas visitas aos doentes, esperava sentadono chão, onde uma vez o surpreenderam. Não tinha piedade do corpo, açoita-va-o mais vezes por semana e, para maior penitência, atava às pontas da disci-plina pontinhas de ferro, que lhe dilaceravam o corpo e arrancavam sangue.Desse instrumento de martírio servia-se para abater o corpo e assim com maissegurança guardar o tesouro da virgindade. Qual preciosa relíquia conserva-seessa disciplina no convento dos Redentoristas em Viena. O Servo de Deus usa-va quase sempre, um cilício agudo que lhe feria o corpo não lhe permitindonenhum descanso. A respeito de tudo isso o Santo guardava a mais completareserva, não querendo que alguém percebesse a austeridade da sua vida; fugiada ostentação e dos louvores humanos procurando nessas mortificações so-mente a glória de Deus e a santificação da sua própria alma. Embora de nature-za robusta, em um clima frio, Clemente alimentava-se mui parcamente, arran-cando a admiração de todos que não chegavam a compreender como é que elepodia viver com tão pouco e trabalhar tanto! Nunca tomou café nem coisa algu-ma de manhã em toda a sua vida, a não ser nos últimos anos por preceitomédico e a pedido dos amigos que se compadeciam da grande debilidade emque se achava, mas isso mesmo nunca antes das 10 horas; do confessionárioonde ficava desde as 3 horas da madrugada, levantava-se às 10 horas e cele-brava a santa missa, na qual fazia sempre uma breve pregação; só depois éque, nos últimos anos, ia tomar um pouco de caldo com alguma leve mistura.Na hora das refeições não se sentava à mesa, como os outros, a fazer-se servirde assados e iguarias delicadas, mas com o pranto em uma das mãos e acolher na outra, andava pelo quarto a tomar os restos de uma comida qualquerde farinha com um minguado pedaço de carne fria, ou, às vezes, apenas asopa. Com isso contentava-se até à noite, em que não tomava mais que ao

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meio-dia.Aos sábados abstinha-se de todo e qualquer alimento até à noitinha, em

louvor da Santíssima Virgem; a sua única bebida era a água fresca. “Olha, disseele uma vez a um de seus padres, o missionário deve ser mortificado, porquedo contrário não dará conta do recado; até a idade de 40 anos eu não proveiuma gota de vinho”. Só nos últimos três anos de vida é que tomava, à noite, umpequeno cálix de vinho quando voltava muito cansado e extenuado de algumavisita aos doentes ou aos pobres de Viena. Nessas ocasiões levantava os olhosao céu em sinal de gratidão para com Deus e dizia: “O vinho é um dom de Deuspara restabelecer as forças aos velhos”. O gosto da cerveja o Santo não chegoua conhecer nos setenta anos da sua vida. Quando convidado a outras casaspara as refeições, nunca louvava as comidas, como geralmente se faz, nemprocurava adular o cozinheiro; comia pouco deixando intactos os pratos delica-dos e de luxo.

Não queremos terminar estes capítulo, sem dar aos leitores uma explica-ção necessária. As expressões fortes que conhecemos de São Clemente a res-peito do sexo feminino, como as já mencionadas e outras como esta: “Dou gra-ças a Deus que não sou mulher nem tenho mulher” não denotam, absolutamen-te, aversão do Santo ao sexo feminino e às suas excelentes qualidades. Seriaum engano pensar assim. Para compreendermos bem essas expressões deve-mos ter ante os olhos o fim pedagógico delas; foram dirigidas geralmente aestudantes ou a jovens clérigos. Além disso São Clemente queria acentuar,com elas, as fraquezas do caráter feminino, que podem ser um perigo tantopara a mulher como para o homem. Mas quem é que ignora os grandes elogios,a ilimitada admiração que ele tinha e exprimia a respeito dos grandes vultosfemininos de Viena, que se impunham por suas excelsas virtudes e profundapiedade? É certo que no trato com senhoras ele era bem mais retraído do quequando lidava com homens ou rapazes. E justamente esse retraimento, em vezque se manifestava a sua ilibada pureza, é que atraía irresistivelmente paraDeus as senhoras santas e piedosas, infiltrando-lhes ilimita da confiança noSanto.

CAPÍTULO XX

O Coração bondosoOs princípios mundanos — Humildade necessária — O defensor dos opri-

midos — O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humildade defato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vida — O blasfemadorarrependido — O perdão generoso.

Não há coisa tão desprezível aos olhos dos mundanos como a humildade.Outrora humildade era sinônimo de baixeza e vileza — aos pagãos modernos éela um atentado contra a razão humana, uma indignidade para o homem. Comos princípios do mundo contrasta a idéia da virtude cristã. A humildade comovirtude é o conhecimento efetivo da completa sujeição da criatura ao Criador edas imperfeições, fraquezas e pecaminosidade do nosso ser. Para que a humil-dade seja uma virtude cristã, deve conter não só o reconhecimento do nossonada, mas ainda a aceitação voluntária desse reconhecimento, e a sua aplica-ção à vida. Essa virtude brilhou de modo heróico em todos os Santos que pro-curaram imitar a Jesus que disse: “Aprendei de mim que sou humilde de cora-ção”. Modelo consumado dessa virtude era o nosso São Clemente.

Esquecido de quanto fizera em Varsóvia e em Viena dizia com convicção:“Nada posso fazer; o pouco que trabalhei e consegui, foi Deus quem fez pormim; não passo de indigno instrumento nas mãos de Deus”. Sempre que lheacontecia algum mau resultado atribuía-o a seus pecados e à sua inabilidade:“Oh! se em toda a minha vida eu tivesse correspondido à graça, dizia ele, quan-to bem não teria Deus operado por meu intermédio!” Isso não era só amplifica-ção retórica ou frase vazia nos lábios de Clemente, mas pura convicção pesso-al, embora saibamos ser isso simplesmente fruto da sua profunda humildade.Clemente era de natureza irascível, possuía um temperamento fogoso que logofazia o sangue ferver nas veias; o Santo porém vencia-se, domava o seu natu-ral, e mesmo que a alma sentisse os ímpetos furibundos de uma cólera violen-ta, não perdia o equilíbrio conservando-se tranqüilo no meio das tempestades,e até nessas horas críticas, muitas vezes, o sorriso enflorava-lhe os lábios, comose nenhuma luta sentisse interiormente. Nos momentos mais difíceis, nos com-bates mais renhidos, percebendo que a força resistente se lhe esgotava, levan-tava os olhos ao céu pedindo a proteção d’Aquele que estendia seus braços eas ondas encapeladas e revoltosas se acalmavam. “A mortificação da carne,dizia ele, não é absolutamente necessária à salvação, nem é tão difícil, mas arepressão interna da própria vontade e do amor próprio é penosa, e não obstante,imprescindível para a aquisição das virtudes cristãs”. O Servo de Deus longe dese entristecer com o seu temperamento ríspido e colérico, conformava-se com

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a vontade divina e dizia: “Agradeço a Deus diariamente por me ter deixado essairascibilidade: ela conserva em mim a humildade e me preserva do orgulho”. Oquanto apreciava a humildade já o vimos em outro lugar, quando explicava àsnoviças de Sta. Úrsula a grande arte de agradar a Deus. “A humildade, dizia, éa raiz de toda a virtude”. Em suas pregações e conferências gostava de comen-tar a palavra de Sto. Agostinho: “A humildade é a mãe, a educadora, a compa-nheira e o complemento das outras virtudes; mesmo as mais estupendas obrassão sem valor, se não procederem da humildade e não forem por ela guiadas”.“Sede humildes, exortava a todos, porque do contrário a palavra de Deus serápara vós como uma fábula”. Por ser humilde Clemente não se envergonhava dereconhecer e confessar as suas faltas, e com toda a devoção rezava: “Perdoaias nossas dívidas...” A tempestade interna desencadeava em sua alma foi, umavez, tão violenta, que não pôde evitar em seu exterior uns leves movimentos deira, que bem mostravam o que lhe ia na alma. Humilhado e confundido disse napresença de todos: “Sim, sim, eu sou um pobre coitado”.

Essa grande humildade fazia-lhe desculpar as faltas nos outros. Quandoalguém, esquecendo-se da caridade devida ao próximo, se punha a criticar oucensurar a outrem em presença do Servo de Deus, este constituía advogado doofendido ou injuriado. Uma vez caiu a conversa sobre os santinhos que se dis-tribuíam às crianças, os quais não eram artísticos nem bem feitos; os entendi-dos na estética indignaram-se com os santinhos e criticaram o autor, que rebai-xavam e deprimiam sob o ponto de vista. São Clemente cheio de compaixãoobservou: “Não levem isso a mal; o pobrezinho fez o que pôde, teve a melhorvontade de agradar e isso basta”. Uma outra vez um médico pôs-se a descom-por uma família, que nada de mal lhe havia feito: possuía ela em casa umaltarzinho e nas paredes da casa belos quadros de Santos, em vez de tantasfiguras indecentes, más e indignas que se encontram infelizmente em tantascasas para escândalo das famílias e dos visitantes; o médico desgostou-se coma pouca arte dos quadros, e pôs-se a censurar com acrimônia o pobre do pintor,a quem não queria consentir o prazer de se dedicar à arte da pintura, afirmandoserem as suas obras um abuso e uma afronta à humanidade. O Servo de Deus,sempre bondoso, chamou-o à parte e repreendeu-o com brandura censurandoo seu juízo tão severo, com as palavras: “Cuidado com o que dizes; não convémmagoar um homem em coisas que lhe causam prazer”.

Ele porém julgava-se muito mau, e admirava-se de que Deus o pudessesuportar prodigalizando-lhe tantos favores e graças, e, o coração nos lábios,agradecia ao Senhor sua grande generosidade e pedia aos amigos agradeces-sem a Deus em seu lugar, acrescentando: “Sempre que agradecemos a Deus,alcançamos dele novos favores”.

Também para com os homens era Clemente extremamente grato por qual-quer serviço ou favor recebido. Em sinal de gratidão distribuía tercinhos, santinhose semelhantes coisas, que todos aceitavam com prazer por serem presentes deum Santo e dádiva de um coração bondoso que não possuía coisas mais preci-osas ou luxuosas para dar; às crianças que lhe faziam algum pequeno favor,davam os seus recados, ou cumpriam as suas ordens, presenteava com maçãsou outras frutas, bem como com um abracinho cheio de carinhos e ternura quealegrava o coração infantil.

Quando Clemente não tinha na ocasião coisa alguma para dar em retornode algum favor recebido, dizia de coração um “Deus lhe pague”, que aliás nuncadispensava; comovia-se ao contar a história de S. Félix de Cantalício, que comopobre capuchinho, não tendo nada para retribuir aos amigos, dizia sempre aoreceber algum presente: “Deo gratias”, isto é, Deus lhe pague, o que lhe valeu osignificativo nome de Frei Deogratias que o povo lhe deu. Quando Deus mesmopaga, a recompensa é infinitamente maior do que quando nós retribuímos; éessa a simples razão por que o Servo de Deus não podia simpatizar-se com aexpressão: “Muito obrigado”.

Clemente sentia-se verdadeira e sinceramente incomodado quando perce-bia haver causado involuntariamente a qualquer pessoa alguma ofensa ou des-gosto. Numa ocasião alguém o informou de o haver procurado muitas vezessem conseguir encontrá-lo; Clemente disse sentido: “Sinto-me envergonhadode tê-lo feito assim dar essas caminhadas; mas Deus tê-las-á contado e escritono livro da vida para a recompensa”. Clemente era frio para os louvores huma-nos. “Que são as palavras humanas?” perguntava ele, e respondia: “São ape-nas uma pressão passageira do ar”. Ao ouvir algum elogio feito a seus mereci-mentos, ou a seus trabalhos, interrompia imediatamente o panegirista com aspalavras: “Acabe com isso; a gente só louva as crianças e os loucos”. Por vezessentia até asco dos encômios que lhe faziam. “Quem me louva, açouta-me”dizia ele servindo-se das palavras que aprendera na escola do mártir Sto. Ináciode Antioquia. Por uma longa experiência da vida conhecia a falsidade dos lou-vores pronunciados por lábios humanos: “Alguns beijaram-me os vestígios dospés, e três vezes mais atiraram sobre mim a lama da estrada; na medida queuns me louvavam, outros me enchiam de apodos e injúrias”. — Clemente mani-festava não só por palavras, mas também por obra a sua profunda e verdadeirahumildade. Embora sacerdote acatado pelos mais finos representantes da aris-tocracia de sua terra, embora Vigário geral da Congregação Redentorista, ser-via a todos com a maior prontidão, lavava com suas próprias mãos os meninosórfãos, ia à cozinha, acendia a estufa nas celas dos confrades, costurava assuas vezes, procurava os pobres e com eles se entretinha familiarmente; comos ricos e grandes do século só ia ter em se tratando de ganhá-los para Deus;na igreja ajoelhava-se ao lado dos pobres, cuja piedade o encantava; e fugia dahaute volée repetindo a miudo: “Os pobres procuram a igreja por devoção eamor de Deus, que adoram e saúdam já desde o romper da manhã”. Quandoalgum neo-presbítero cantava sua primeira missa, Clemente gostava de servirao altar, e em geral nas missas solenes servia de subdiácono que é o ofício demenor saliência. “A humildade é a saudade de servir; a alma que, livre do amorpróprio, procura em tudo estar submissa e servir, ajudar e alegrar os outros, éverdadeiramente humilde”. Com essas palavras Clemente, sem o saber, des-crevia a sua própria vida, e desenhava o seu retrato.

O Santo, em geral, evitava falar de si mesmo, mormente quando o assuntopodia reverter em louvor ou glória para ele; calava-se e nada dizia aos outros,quando recebia alguma visita honrosa, ou quando era alvo de parabéns oufelicitações merecidas. — Embora desde 1793 ele fosse Vigário geral, isto é,possuísse o primeiro posto na Congregação depois do Reitor-mor em Roma,muitas pessoas, mesmo entre as mais íntimas, o ignoravam completamente,

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chegando a sabe-lo só depois da morte do Santo. Ocultava com cuidado asgraças singulares que Deus lhe concedia com tanta profusão, e disfarçava osmais estupendos milagres que operava. Uma vez disse a Madlener, um dosseus prediletos: “Meu caro Madlener, comigo vão muitos segredos ao túmulo,quiser t’os contar, mas não sabes guardar segredos”.

A esposa de Klinkowström tinha um filho, que era ídolo da mãe; mas Deusparecia tê-lo reservado para o céu em seus tenros anos; as escrófulas apodera-ram-se da criança, tendo por conseqüência a tuberculose, e o pequeno ema-greceu que mais parecia um cadáver do que um ser vivo. Clemente, que sedava muitíssimo com a família, foi visitá-la para colher notícias a respeito dopequeno. A mãe desconsolada, debulhada em lágrimas, apresentou a criançaao Santo: era só pele e osso, o corpinho já frio, os olhos vidrados, voltados paraum lado, as lágrimas maternas que caiam, a fio, sobre o rosto do pequeno, nãoconseguiam aquecê-lo. Clemente olha o menino e com um sorriso nos lábios,bate-lhe mansamente com a mão na face, faz-lhe na fronte um sinal da cruz ediz à mãe: “Isso não é nada; hoje à tarde o pequeno terá fome e pedirá decomer”. E rapidamente dá uma volta firmando-se no salto do sapato, e retira-se.À tarde o sangue apareceu nas faces do pequeno que pediu alimento, e conser-vou dai por diante o seu apetite. A mãe, quase não acreditando em seus própri-os olhos, chorou, porém, de contentamento e amor. O pequeno cresceu comsaúde e atingiu uma idade bem avançada.

Clemente era ávido dos sofrimentos e das humilhações, como os outros osão das honras e grandezas humanas. Muitas vezes convidado às refeições porpessoas nobres ou altamente colocadas, aceitava o convite não pela honra quelhe podia advir disso, mas pela ocasião que se lhe oferecia de sofrer um poucopor Nosso Senhor. Nessas ocasiões era, às vezes, posposto e deixado de lado;muitos dos que o conheciam e veneravam, envergonhavam-se do manto usadoe velho, dos sapatos rotos, da batina remendada, das maneiras não muito finase da linguagem, às vezes, incorreta; muitos padres não lhe prestavam a aten-ção devida, deixando-o só e sem entretenimento. Isso era um achado para SãoClemente, que em tudo se queria tornar semelhante ao divino Mestre, que emsua vida mortal foi desprezado, preterido e até injuriado por amor de nossasalmas. Executava em si e em sua vida aquilo que tantas vezes pregava àsUrsulinas: “Sede humildes e convencei-vos que ninguém vos faz injúrias; sóassim podereis suportar com resignação, e até com alegria todo o desprezopelo amor de Deus”. Só esse é o caminho reto e verdadeiro da humildade: “Ahumildade é a verdade; falar e agir com humildade é bom, porém só quandonisso há sinceridade, porque diz a Escritura que alguns se humilham astuta-mente ficando o coração repleto de orgulho; o sinal mais certo e mais seguro daverdadeira humildade tem aquele que aceita e suporta as humilhações compaciência, amor e alegria.

São Clemente atingiu tão alto grau de desprendimento de si próprio quepôde dizer com verdade: “Ser louvado ou censurado tem para mim o mesmovalor; só somos aquilo que valemos diante de Deus”.

Na medida da sua humildade crescia o seu amor também para com osinimigos, isto é, para com aqueles que o desprezavam e cobriam de injúrias.

Tendo uma vez de fazer uma viagem Clemente, que não possuía muito

dinheiro para gastar, tomou o carro do correio, onde por acaso teve de fazercompanhia a um Senhor desconhecido. Como todos sabem, é agradável, emviagem, mormente longa, ter um companheiro com o qual se possa trocar idéi-as e passar menos aborrecido o tempo — mas nessa ocasião não se deu omesmo com o Servo de Deus, porque o seu companheiro era lavado em todasas águas, e de religião e piedade ou antes de educação e filantropia não pos-suía nem a mais rudimentar noção. Embora jovem achava-se já envelhecidopelo vício, todo cheio de sensualidade e de ódio ao sacerdócio. No princípiolançou para o Santo, que se sentara em frente, um olhar sinistro, que bemmostrava a ira de que estava possuído; não tardou a abrir a boca imunda paraexpectorar sua bílis. Quanto mais falava, tanto mais eloqüente e violento setornava; vendo que o Santo não reagia, indignou-se, desatou em blasfêmiashorrorosas contra Deus e todo mundo, mormente contra Clemente, que deseja-va ver estraçalhado, picado e reduzido a sabão.

Ao ouvir as blasfêmias o Servo de Deus estremeceu e pediu-lhe que ces-sasse tamanha ofensa contra Deus, porém debalde, a cólera do companheiroaumentava-se a cada palavra que o Santo proferia. Percebendo serem os seusconselhos improfícuos, o Servo de Deus calou-se e pôs-se a rezar pelo infeliz,continuando por muito tempo sentado em frente do blasfemador.

Ao chegarem ao primeiro restaurante, o jovem senhor sentiu o estômagovazio e conseqüentemente apetite devorador e sede ainda maior. Quis levantar-se, mas o corpo, apodrecido pelos vícios, não teve força para erguer-se. SãoClemente, vendo a dificuldade do infeliz, esquece-se das injúrias recebidas,toma-o em seus braços, ajuda-o a descer conduzindo-o em seguida ao restau-rante com todo o cuidado. Terminada a refeição Clemente torna a tomá-lo emseus braços e transporta-o ao carro tratando-o como uma mãe desvelada. Oblasfemador sentiu-se confundido, reconheceu o papel feio que acabava defazer, admirou a delicadeza, caridade e santidade daquele sacerdote, cujos lá-bios só se moviam para a oração, pediu perdão com toda a humildade dizendo:“Se tivesse conhecido, a mais tempo, um sacerdote como vós, nunca teria caí-do em tão mísero estado”.

Quando Clemente praticava atos heróicos de caridade e paciência comoesse, não se preocupava tanto com a fragilidade humana, mas visava tão so-mente a alma imortal criada à imagem e semelhança de Deus. O Servo deDeus amava os inimigos e os perseguidores e chegava a dizer: “Os inimigosdevem ser tidos na conta de benfeitores, porque nos auxiliam a ganhar o céu”.E de fato eles nos dão ocasião para a prática das mais belas virtudes como dapaciência, mansidão, confiança em Deus, submissão à vontade divina e mag-nanimidade, virtudes essas que não existiriam se não fossem os inimigos ou osmal-entendidos sobre a terra. Clemente tinha inimigos gratuitos que o odiavamentranhavelmente, desejavam destruir a sua obra e impedir a execução dosseus planos; o Santo porém nunca se queixou nem deixou escapar a menorpalavra de murmuração ou de desgosto contra os seus perseguidores. Ao con-trário conservava-se sempre alegre e sorridente no meio das tempestades in-ternas, que se moviam em seu coração, e das externas que se desencadeavamcontra ele. Uma Ursulina mostrando-se uma vez compadecida com o Santo porcausa das muitas perseguições, de que era alvo, dirigiu-se a ele para lhe abrir o

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coração. Em seguida, desejando edificar-se com as palavras do Santo, pergun-tou-lhe se não sentia algum rancor no seu coração. A sorrir-se Clemente levan-tou a mão para o alto dizendo: “Eis, minha mão não está manchada de sanguenem nunca o derramou”.

A sua única vingança consistia em rezar pelos inimigos afim de os ganharpara Nosso Senhor. No número desses adversários achava-se um sacerdoteque o detestava e não perdia vasa em denegri-lo e caluniá-lo, fazendo tudo paravê-lo expulso de Viena. Clemente sabia disso, e para mostrar que não guardavadaquilo nenhum ressentimento, todos os domingos ia assistir-lhe a pregaçãopara dela haurir proveito para a sua alma; louvava-o em toda a parte salientan-do e enaltecendo-lhe as boas qualidades e desculpando qualquer falta ou defei-to que o dito padre pudesse ter cometido.

Do púlpito o Servo de Deus não se cansava de recomendar o amor aosinimigos e o perdão das injúrias, e com o Evangelho na mão, repetia constante-mente que ninguém deve ir acomodar-se, à noite, sem antes perdoar de cora-ção a quem o ofendeu. “Perdoai e ser-vos-à perdoado”, dizia ele com suaspalavras e seu exemplo. Uma vez voltava o Santo da Igreja das Ursulinas paracasa, os olhos semicerrados, todo reconcentrado nas suas meditações. No ou-tro lado da rua, na mesma direção, ia um par de noivos, de braços dados,palestrando com animação fora do comum; falavam do Santo e tão alto que eleos ouvia; lançavam-lhe de quando em vez olhares sarcásticos, permitindo-segraçolas, ditos picantes e até ofensivos. Na intenção de magoarem o Servo deDeus, que não os ofendera, puseram-se a insultá-lo, dando-lhe os nomes de“santo taumaturgo” “ligoriano”, desfazendo-se em risadas, e até em gargalha-das por causa desses nomes, que eles nem compreendiam. O Santo fez comose não ouvisse aqueles gracejos, sentindo sincera compaixão dos pobrezinhos.Aconteceu que no meio das risadas e dos vitupérios a senhoria deixou cair olenço, sem o perceber. Clemente que casualmente vira aquilo, foi até o lugaronde estava o lenço, levantou-o do chão e andando um pouco mais depressaalcançou a dona, a quem entregou o objeto perdido. Envergonhada a senhori-nha nem sabia para onde olhar, e o seu muito digno companheiro não ficoumenos perplexo. Uma única palavra lhes veio aos lábios: “Queira perdoar-nos,padre”.

CAPÍTULO XXI

Amor ao clero e à CongregaçãoAmor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacer-

dote francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de seda —Exemplos de severidade e brandura — Enérgico protesto — Difusão da Con-gregação — Fundação na Valachia — Saudades da Polônia.

AMOR AO CLERO! — É impossível amar a Esposa mística de Jesus Cris-to, a Santa Igreja, sem se sentir animado de santa veneração para com os seusministros, a saber: o Papa, os Bispos e os Sacerdotes. Quantas vezes não disseo Servo de Deus do alto do púlpito: “Quem não honra e venera o Papa, nãohonra nem venera nossa mãe, a Santa Igreja; quem não obedece às ordens eaos preceitos do Sumo Pontífice, é um filho indigno da Igreja; quem não rezapor seu pai, é um filho desnaturado, e quem não ora pelas intenções do SantoPadre, é um mau cristão”.

Ele mesmo sentia-se animado de profundo respeito e sincero amor paracom o Papa, que sabia revestido da dignidade suprema no mundo, o represen-tante de Deus sobre a terra, o rochedo sobre o qual Jesus edificou a sua Igreja,o Pastor dos pastores, o pai espiritual de todos os milhões de católicos queexistem, o possuidor das chaves do reino dos céus, o oráculo do Espírito Santo,que o protege e ampara contra os erros, sempre que ele se apresenta comopastor supremo da cristandade a ensinar uma doutrina de fé ou de moral. Sen-tia orgulho santo por poder dar-lhe o nome de pai e declarar-se filho obedientee humilde da Santa Sé. As saudades que sentia do Papa, levaram-no, maisvezes, a Roma; quando não podia ir pessoalmente, escrevia-lhe cartas infor-mando-o dos acontecimentos tristes ou alegres da religião na Europa, maximena Áustria.

Ao falar da pessoa augusta do Pontífice usava sempre as expressões maisrespeitosas, os termos mais reverentes, como se falasse de um Santo, ou dopróprio Jesus Cristo. Uma vez foi-lhe dada a honra de receber do Santo PadrePio VII um rosário da Ss. Virgem; Clemente conservou-o, toda a sua vida, qualrelíquia preciosa, que o acompanhava em toda a parte. Dando uma vez pelafalta do precioso tesouro ficou inconsolável, rezou e mandou as Ursulinas rezara Sto. Antônio que costuma achar coisas perdidas. Quando uma das Irmãs en-controu o rosário, Clemente exultou de contentamento; porque aquele terçonão lhe recordava somente sua Mãe celestial, mas também a pessoa do repre-sentante de Jesus sobre a terra.

Ao Núncio Apostólico de Viena tributava o Santo toda a veneração e res-peito, porque nele via incorporada a pessoa do Santo Padre em sua Pátria. Os

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bispos eram-lhe como anjos de Deus, verdadeiros príncipes, elevados a essadignidade pelo Sacramento da ordem, que eles possuem em toda a plenitude;de coração e com alegria executava pontualmente as suas determinações eordens, que considerava a expressão da vontade divina. Ao encontrar-se casu-almente com algum sacerdote saudava-o, onde quer que fosse, com todo orespeito e atenção. Dos padres só falava como convém a ministros de Deus;não consentia que em sua presença alguém faltasse à reverência devida aocaráter e à dignidade sacerdotal. Sempre que algum sacerdote aparecia naigreja para celebrar, Clemente ia-lhe ao encontro, recebia-o com demonstra-ções de contentamento, ajudando-o, em pessoa, a paramentar-se para o SantoSacrifício. Aos padres gostava de dar o nome tão lindo quão significativo queencontrara na Escritura Sagrada: “pupilas de Deus”. E realmente esse nomequadra admiravelmente com o sacerdote, quando encarado à luz da fé. Como apupila dos olhos, embora pequenina, pode abranger um mundo de coisas quenele se refletem, e exerce uma força admirável sobre homens, que se deixamprender, muitas vezes, por um olhar, diante do qual tremem ou choram, assim opadre é, diante de Deus, uma pobre criatura, mas possui uma força sobre-humana, leva em suas mãos o Criador dos céus e da terra, com uma palavrafaz baixar do céu o Filho de Deus, encerrando-o em uma hóstia, e com a mes-ma facilidade restitui a graça e a amizade de Deus ao coração arrependido. Osacerdócio é uma maravilha do poder e bondade de Deus. O homem preza amenina dos seus olhos mais do que todas as riquezas terrenas; assim Deusama os seus ministros e quer vê-los amados e obedecidos por todos. “Quemvos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza”. Não permite quealguém os maltrate ou ofenda “Nolite tangere Christos meos”, isto é, “não toqueisos meus sacerdotes”, e raras vezes deixa sem castigo, já neste mundo, a quemofende a pessoa do padre, que lhe é consagrado.

Mesmo quando um ou outro sacerdote, por fragilidade humana, se desvia-ra do cumprimento do dever, tornando-se talvez uma pupila inflamada, ou enco-berta por densa catarata, Clemente o venerava e pedia a Deus, se dignasseiluminá-lo e convertê-lo. Em 1816 apareceu no quarto do Santo um indivíduomaltrapilho, que dava aparência de um vagabundo de botas rotas, calças esqu-álidas, paletó esburacado, chapéu amarrotado: era um sacerdote francês, que,seduzido pelos revolucionários, prestara o juramento à constituinte francesa, oque o papa proibira sob pena de suspensão. Pobre sacerdote! esperava gran-des coisas da revolução, talvez uma colocação rendosa no novo governo, umavida flauteada como lhe tinha sido prometido. Mas o contrário se dera. Despre-zado pelos seus e atormentado pelos remorsos da consciência, o pobrezinhonão teve sossego desde aquele dia infeliz; peregrinava de um lugar para o outrosem descanso e definhava a olhos vistos. Não suportando mais a vida em suapátria, dirigiu-se ao Núncio Apostólico de Viena, a quem, arrependido, narrousua triste história, a página negra da sua vida, pedindo remédio para seus gran-des males. O Núncio compadeceu-se do infeliz e enviou-o a Clemente, a quemdera poder de o absolver da excomunhão em que incorrera. O Servo de Deusrecebeu-o com amor, hospedou-o, matou-lhe a fome, cortou-lhe os cabelos,fez-lhe a tonsura e pregou-lhe durante uns dias o santo retiro preparatório paraa execução da sentença, que era a absolvição da excomunhão e o perdão dos

pecados que cometera em sua vida.Amor é Congregação. Entre todas as coisas da terra o que lhe ficava mais

perto do coração, a receber as suas cálidas pulsações, era, sem dúvida, a Con-gregação. Clemente era Redentorista e gloriava-se dessa honra; pela Congre-gação estava pronto a dar seu sangue e sua vida. Não se esquecia jamais domomento em que, pobre padeiro de Viena, fora em Roma recebido no noviciadode São Julião, onde se preparou para a vida, emitindo, depois do noviciado, ossantos votos que o prenderam para sempre à Congregação. Em Roma bebera,em largos tragos, o espírito de Sto. Afonso, que não é outro senão o espírito deoração e de amor ardente a Jesus e a Virgem Santíssima. A Congregação ficousendo sua mãe espiritual, e as santas Regras, o livro santo, que lhe interpretavaa vontade divina , o código pelo qual seria julgado um dia pelo Juiz eterno.

Lia e decorava esse complexo de leis e avisos, observava-os com o maiorescrúpulo, não só nos pontos capitais e de maior importância, mas em todos ospormenores e no espírito, com que foram confeccionados. Embora nos últimosanos da vida não pudesse residir em um convento propriamente dito, mas sóem uma casa particular, nunca deixou de observar o horário prescrito pela Re-gra, mesmo nos dias de maior trabalho e ocupação. Com seus Superiores emRoma entretinha a mais exata correspondência epistolar, pondo-os sempre aopar de tudo quanto se passava na Áustria e na Suíça, ou consultando-os arespeito dos mais importantes projetos. Isso é tanto mais admirável, quantomais difíceis eram as circunstâncias do tempo, em que o josefismo procuravaimpedir toda e qualquer comunicação com Roma.

Quanto à observância regular era ele de uma exatidão admirável. AosRedentoristas é proibido, pela Regra, o uso da seda, por ser esta objeto de luxoe não ficar bem a um simples Religioso. Aconteceu ficar Clemente atacado nalaringe de um incômodo, proveniente dos esforços feitos na pregação da pala-vra de Deus. Embora vítima de dores atrozes por causa dessa enfermidade,nem por isso deixava de pregar oferecendo esses sofrimentos a Nosso Senhorpela conversão dos pecadores. Uma nobre senhora de Viena, notando que avoz lhe saia com dificuldade, teve compaixão e comprou-lhe um cache-nez deseda, para o defender do frio e da constipação. Clemente meneou a cabeça, asorrir, e disse: “Minha filha, a um Redentorista não é permitido o uso de objetosde seda”. Notando que a pobre senhora se entristecera com essa palavra, nãoquerendo magoá-la, acrescentou: “Se a senhora deseja obsequiar-me e fazquestão disso, eu aceito um cache-nez de lã”. Em outro lugar desta obra temosjá considerado o Santo como Superior, e visto o seu zelo pela observânciaregular entre os confrades, mormente em se tratando do amor à pobreza, que éa essência da vida religiosa. Clemente não deixava de repreender qualquerdefeito ou falta contra a santa obediência. O Pe. Sabelli era um tanto voluntario-so, e não poucas vezes gostava de seguir a sua opinião com prejuízo da obser-vância e da ordem; estando ele um dia já paramentado para começar a missa,o Santo, querendo provar-lhe a obediência, entrou na sacristia e sem outrospreâmbulos mandou-o desparamentar-se. Sabelli que estava então de bomhumor, tirou os paramentos sem nem franzir a fronte em sinal de desaprovação.O Santo ficou satisfeito com a obediência do padre e permitiu-lhe celebrar. Emoutra ocasião mandou chamar à sacristia o padre Martinho Stark, que estava

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ouvindo confissões na igreja. Como perto do confessionário se achava aindauma pessoa esperando a sua vez, Martinho não obedeceu prontamente e aten-deu mais aquele último penitente. São Clemente esperou-o com paciência, nasacristia; quando o súdito chegou, perguntou-lhe secamente: “Onde é que ficoutanto tempo?” O padre deu a explicação que julgava justificar o seu procedi-mento, ao que o santo acrescentou com certo azedume: “Isso o Sr. não fez paraDeus, mas para o demônio”. Uma outra vez, esse mesmo padre, não se sabebem por que, não chegou a tempo como devia; São Clemente desejando cha-mar-lhe a atenção e fornecer-lhe uma bela ocasião de se humilhar, mandou-oajoelhar-se e passou-lhe uma tremenda descompostura, de sorte que o padretremia como se tivesse chegado para ele a hora do juízo. Dr. Madlener achava-se presente, e ao ouvir semelhante trovoada, encheu-se de compaixão e pôs-se a desculpá-lo; o Santo, fitando-lhe os olhos, disse com laconismo: “Isso nãoé da sua conta, o sr. não entende nada disso; por ele não, o sr., mas eu tenho deprestar contas a Deus”.

São Clemente procedia dessa forma, não para se mostrar grande ou fazersentir sua autoridade, mas única e exclusivamente em prol da Congregação eda observância regular. Se, às vezes, parecia um trovão de severidade, logo emseguida se transformava em cordeiro de mansidão e bondade personificada, desorte que ninguém levava a mal essa sua energia e firmeza. Clemente nãoqueria caracteres efeminados na Congregação, padres sem energia e incapa-zes de ação firme, mas só homens de resolução e força de vontade, heróis naobservância regular, caracteres lídimos e amantes da virtude e do trabalho.

Mesmo a seus Superiores em Roma escrevia, com respeito sim, mas comfranqueza, quando se tratava da observância regular. Aconteceu que na Itáliaalguns padres Redentoristas, sentindo demasiado o rigor da pobreza e nãoquerendo romper de vez com a Regra, encontraram um meio termo, decretan-do que cada padre pudesse ter algum dinheiro, à sua disposição, na gaveta doReitor; isso chegou a ser aprovado por um Capítulo Geral. O Santo, compreen-dendo que isto era inteiramente incompatível com o voto de pobreza, emitido naCongregação, escreveu a Roma protestando contra semelhante determinação,“que dizia ele, é prejudicial ao voto de pobreza, multiplica os desgostos, preparaa ruína completa da Congregação pelos inúmeros abusos e perturbações daordem, a qual se abre a porta com esse decreto”.

Consolidando interiormente o bom espírito dos seus padres e preparando-os para a prática de todas as virtudes religiosas, pensava Clemente em engran-decer a sua querida Congregação e difundi-la pelo mundo inteiro para a maiorglória de Deus e para o bem das almas. Concebeu os mais arrojados planos,percorreu, a pé, em viagens de fundação, numerosos países da Europa, son-dou inúmeros lugares, onde pudesse encontrar um ponto tranqüilo para o de-senvolvimento da Congregação e para a fundação de novos conventos.

A Alemanha, a Áustria, a França, a Suíça, a Rússia fizeram parte de seusprojetos, porém em parte alguma viu luzir esperança de resultado para os seusplanos; volveu seu pensamento para a América, e tinha já destacado dois pa-dres para início da fundação nessa terra nova, onde se aspiravam as aurasrisonhas da liberdade religiosa, quando apareceu em Viena Mons. Ercolani,bispo da Valachia, e pediu ao Santo, desistisse da América e mandasse para a

sua diocese os padres Redentoristas que tanto se distinguiam pelo bom espíri-to e amor ao trabalho. Ponderando os motivos apresentados pelo bispo e consi-derando, que em Bucareste havia muitos mil alemães desprovidos de socorroespiritual, sem nem um padre sequer, que lhes pudesse quebrar o pão da pala-vra divina, em iminente perigo de se tornarem luteranos ou calvinistas mandouo Servo de Deus três de seus padres e um irmão leigo, que começassem láuma fundação. Com a sua bênção deu-lhes os necessários conselhos e instru-ções, e mais uma boa soma de dinheiro, que lhes deveria facilitar o trabalho nosprimeiros anos. São Clemente achava-se animado da mais fagueira esperançapela nova fundação, chegando a escrever a um amigo: “A seara é grande, láexistem gregos cismáticos e seitas de todas as nações, que é preciso conduzirao redil da Igreja de Cristo; a Ásia não dista muito de lá”. Uma outra vez desaba-fou o seu coração no de seu amigo Frederico Schlosser escrevendo-lhe: “Buca-reste é o escoadouro de todas as nações; muitos moços — até de 18 anos —não sabem nem a que religião pertencem, porque não há instrução religiosanas escolas; nas povoações rurais as igrejas estão caindo por não haver quemdelas se compadeça”. As primeiras notícias eram em extremo consoladoras; ostriunfos dos seus padres e da Congregação enchiam seu nobre coração dealegria e satisfação. Após o recebimento dessas novas escreveu a um seu ami-go: “O bom Pe. José faz milagres naquela terra selvagem, prega em alemão; e,em caso de necessidade ouve confissões também em valacho; essa cidade(Bucareste) é o valhacoito de todos os foragidos, uma mata virgem por ondecorrem todas as feras; lá reina a mais crassa ignorância em coisas do céu... ospais só tratam de dar de comer a seus filhos e de trabalhar; o bom Pe. Joséprecisa correr de um lado para o outro, pedindo aos pais que permitam aosfilhos freqüentarem a escola, que lá erigiu em casa alugada, e Deus tem-seservido dele para operar uma transformação maravilhosa de costumes”. Notíci-as tristes e alarmantes, porém, não tardaram também a chegar aos ouvidos doVigário Geral da Congregação em Viena. Ao ouvir que os seus caros confradeseram perseguidos injustamente pelos sacerdotes cismáticos, e que se acha-vam reduzidos à maior miséria, não tendo teto sob que se abrigassem, por obispo não haver sustentado sua palavra nem cumprido o trato, Clemente cho-rou, arrependido de haver causado, embora involuntariamente, esses desgos-tos e sofrimentos a seus confrades.

Confiando sempre na Providência que tudo governa, deixou seus padresna Valachia, esperançoso de que melhorassem as condições de vida, e afinal,se encontrasse um lugar favorável ao desenvolvimento da Congregação. — Em1818 um dos padres da nova fundação foi a Viena ter com o Santo e dar-lhe asnecessárias informações.

É fácil imaginar-se o interesse com que Clemente o recebeu; tornava a vero seu querido José Forthuber, jovem de seus trinta anos, bela e robusta figura,adornada de uma barba longa e espessa que mais ainda o recomendava. Asnarrações dos trabalhos empreendidos animaram a Clemente, mormente quandoouviu que em toda a parte os missionários eram recebidos como anjos do céu.

“Quando os missionários chegam a um povoado qualquer, conta o Pe. José,e se alojam em algum albergue ou casa de pau a pique coberta de sapé, ondehomens e animais habitam conjuntamente, ouvem, ainda à noite, as confissões

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dos homens, e no outro dia de manhã, depois de enxotados da habitação osanimais e feito o necessário e possível asseio, levantam um altar provisório,confessam as mulheres e, em seguida, celebram a missa e distribuem a comu-nhão. Depois dão aula de catecismo aos presentes, visitamos doentes, põemem ordem os diversos negócios e decidem todos os litígios, porque nessa terraos padres devem ser tudo, até juízes”.

Não obstante tudo isso, o Servo de Deus estava pouco resolvido a deixaros seus padres partir novamente para a Valachia; temia que o excesso de traba-lhos arruinasse os seus caros confrades. Como, porém, os jovens redentoristasse sentiam com força e coragem, sedentos das almas abandonadas e semnenhum receio ou medo das perseguições, que são geralmente inevitáveis nosgrandes empreendimentos, deixou-os partir provisoriamente; porém, o seu co-ração se enchia de sérias apreensões e lhe dizia que aquela fundação nãohavia de durar muito tempo. E de fato, já em 1821, um ano depois da morte doSanto, o Pe. Passerat, que lhe sucedeu no governo da Congregação transalpina,recolheu para Viena os padres, que o tomaram depois direções diversas.

Clemente, no meio de tantos trabalhos e preocupações, não podia esque-cer-se de sua querida Polônia, onde experimentara tantas consolações, ondeencetara sua vida apostólica; nutria ainda esperança de fundar na Polônia con-ventos da Congregação. “Dai-me os cânticos polacos tão simples, e na suasimplicidade mais lindos do que os que aqui se cantam”, gostava de repetirfreqüentemente. Queria essa fundação, de cuja conveniência e possibilidade seconvencera não obstante as guerras e as revoluções que dilaceravam essepobre país. No congresso de Viena deu para isso os passos necessários, po-rém, sem resultado. Para lá enviou seu grande amigo Zacharias Werner, a pes-soa mais competente para esse negócio por seus conhecimentos como porsuas virtudes, com o fim de sondar o terreno e ver, se se poderia conseguiralgum resultado favorável. As negociações pareciam bem encaminhadas e oPe. Martinho Stark pôde escrever a Roma: “As coisas vão bem na Alemanha:também na Polônia acabam de nos oferecer um convento, e o Pe. Clemente jáaceitou a proposta; parece que no verão deste ano ele mesmo irá à Polônia”.Circunstâncias imprevistas vieram desfazer as belas esperanças do Santo. Oplano que São Clemente se propusera de operar grandes coisas por Deus e deimolar a sua vida pela religião, transparecia certamente de todas as suas açõese em todas as frases da sua existência, mas sobretudo e de um modo particulardos esforços sobre-humanos pela consolidação interna e externa da Congre-gação; por ela sacrificou os 34 anos do seu trabalhoso apostolado, passadosem Varsóvia, em Viena e em outros lugares onde procurara estabelecer a Congre-gação Redentorista. Embora o céu não lhe tivesse querido conceder a doce conso-lação de ver, com seus próprios olhos, o fruto abençoado da sua operosa atividade,conseguiu, graças aos seus ingentes esforços, a aprovação da sua Congregação,a formação dos primeiros Redentoristas transalpinos, a difusão da Congregaçãoem diversos países da Europa e da América. O sonho dourado da sua vida era,enviar a todas as partes do globo, uma legião de operários evangélicos, e ele orealizou maravilhosamente. Os cinco mil Redentoristas do mundo veneram-no nãosó como confrade, mas também como seu segundo Fundador.

CAPÍTULO XXII

No combate com os maçonsSabelli imprudente — A causa da perseguição — As acusações — Aqui

não é bom estar... — É cidadão austríaco — A busca na residência — A intimação— A palavra do monarca — Esperanças desfeitas.

O crepúsculo da vida de Clemente foi bem diverso do que se imaginara;não foi o céu tranqüilo, repleto de bonança como nos meses inolvidáveis passa-dos nos poéticos e arrebatadores bosques do Tívoli, mas a tempestade furiosados derradeiros anos de São Beno. Um ano antes da morte, cansado já e alque-brado pelos trabalhos exaustivos de um ativo apostolado, por pouco não foiexpulso da sua pátria, como outrora de São Beno. A Providência, que queriafazê-lo passar grandes tribulações, nos últimos momentos interveio ainda, nãosó permitindo-lhe passar seus últimos dias na Pátria, que tanto amava, mastambém realizando, de um momento para o outro, o sonho que o afagava nosdias do seu noviciado. O que parecia impossível, realizou-se: a Áustria josefistaabriu, em par, as portas à Congregação. Mas não precipitemos os fatos.

Ocasião imediata para os últimos desgostos do Servo de Deus, deu-a o Pe.Sabelli, que São Clemente denominava “a cruz da casa”. Aborrecido e contrari-ado, Sabelli dirigiu-se ocultamente a Roma, pedindo transferência para um dosconventos da Itália, a qual lhe foi naturalmente concedida. Mas a viagem? era-lhe necessário obter o passaporte e o governo austríaco fazia as maiores difi-culdades em conceder passaportes para a Itália. Devido a esses obstáculosSabelli recebeu ordem de se dirigir ao convento de Valsainte na Suíça. Ao tratardo passaporte para lá, parece que o bom do padre, sem o pensar, comunicou àpolícia o fato de ele pertencer a uma Congregação não aprovada na Áustriabem como a sua transferência por ordem dos Superiores de Roma, a Valsainte.Desde esse dia a polícia abriu ainda mais os olhos para observar o confessordas Ursulinas, de quem Sabelli era súdito.

Procuraram um motivo, ou um pretexto para o acusar, porém não o encon-traram. Os maçons queriam ver-se livres daquele sacerdotes molesto, que re-volucionava pacificamente a cidade de Viena. Que ele se sentasse no confessi-onário e se interessasse pelos pobres e pelos enfermos, ainda passava; tam-bém perdoavam-lhe o levar à Igreja os protestantes, pois que se tratava quasesó de estrangeiros que os vienenses desprezavam, mas a influência exercidasobre os jovens, maxime sobre os acadêmicos, não podiam os maçons permitir.O modo de pregar do Servo de Deus era suspeito, mas o seu auditório consistiaem grande parte de gente simples sem perigo algum para os maçons. O queeles não podiam absolutamente perdoar era, que o espírito de São Clemente

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começava a invadir a universidade, em cujo corpo docente encontrava já trêsgrandes amigos e admiradores, a saber: o professor do Antigo Testamento, o dateologia dogmática e o do Novo Testamento; eram justamente essas as matéri-as mais importantes da universidade. Dois dentre eles, imitando o modo depregar do Santo, procuravam corrigir a pregação usual em Viena e instruir apos-tolicamente o povo. Alguns dos alunos do Servo de Deus, dia a dia, enchiam-sede mais coragem na universidade protestante, às vezes, contra os professoresem plena preleção; formavam um como partido sempre crescente na universi-dade. O próprio São Clemente não ignorava que com isso havia de crescertambém a ira dos adversários. Ele escreveu, um ano antes, à família Schlosser.“A graça divina age sobretudo nos jovens, que se dedicam ao estudo das ciên-cias. Se alguém pudesse e quisesse, efetuaria logo aqui uma grande mudançana mocidade estudiosa; os estudantes já sentem asco das doutrinas ensinadasna universidade. Já tenho sido acusado muitas vezes de desencaminhar osrapazes”.

Os maçons sentiam as forças que se levantavam cheias de vida, e temiampelo futuro; recorreram à polícia, acusando a Clemente de virar a cabeça dosestudantes. A universidade de Viena era o foco da iluminação intelectual; catolizara universidade seria o mesmo que desfechar o golpe de morte aos hereges.

A coisa era pois do maior interesse e dai a luta; uma série de atas públicasbem mostraram, que na Áustria se trabalhava para fechar a boca ao Servo deDeus e, se possível, expatriá-lo para longe.

É interessante ouvir as acusações feitas contra o pobre sacerdote que nãopossuía outra arma senão a oração e a boa vontade. Em 1817 aparecem asseguintes acusações contra a sua pregação: “Esse homem velho não condizmais como tempo; é necessário afastá-lo do púlpito e mandar espiões paraescutarem as pregações”. Mas porque tudo isto? as acusações são motivadas:“Clemente apoia-se com as duas mãos sobre o púlpito, abaixa muito cabeçapara seus ouvintes... subitamente levanta-se e inclina-se para trás, grita, àsvezes, desumanamente e bate com as mãos no púlpito”. Apresentaram essasacusações ao Arcebispo, que era um grande amigo pessoal de Clemente, e quepara combater a pregação da moda em Viena publicara uma circular, louvandoo procedimento e o modo de pregar do Servo de Deus. — Os inimigos não secansaram. Acusaram-no de não observar as leis do império, mormente na liturgia,pois que se atrevia a fazer procissões proibidas, excitava o povo às romarias,espalhava entre as massas escritos supersticiosos de indulgências, recomen-dava o rosário, a freqüente recepção dos Sacramentos, o culto das imagens,livros de piedade etc, relacionava-se demais com os Núncios, combatia os pro-fessores liberais de teologia, correspondia-se com Roma, procurava iludir osjovens a saírem da Pátria para entrarem em conventos estrangeiros. Um fatomerece especial menção por sua originalidade.

Um belo dia desapareceu de Viena a filha de um senhor muito conhecido; asuspeita recaiu imediatamente sobre o Servo de Deus, que nada tinha que vercom o caso. A polícia interveio e Clemente teve que comparecer perante o tribu-nal eclesiástico para responder sobre isso e mais outras acusações.

O consistório compunha-se de pessoas sem fé como Gruber, cônego ediretor da faculdade de filosofia, e de outros sem religião como ele. Os capitula-

res sentados ao redor da mesa formavam o tribunal; o Arcebispo, ancião vene-rando e amigo de Clemente, não tinha força para impedir as exigências do seuCabido. Clemente teve de comparecer e, não obstante sua dignidade sacerdo-tal e a inocência da sua vida, deve permanecer em pé diante de seus juízes. Ointerrogatório começou com todas as formalidades de um tribunal.

“Qual o seu nome? onde nasceu? donde vem? a que religião pertence?” Aesta última interrogação Clemente sentiu-se ofendido e respondeu com calmasim, porém com toda a expressão do tratamento indigno: “Ora essa? todo omundo sabe que eu sou um padre católico!” A isso naturalmente seguiu umaforte repreensão. Percebendo a ira e a indignação com que procediam contraele, Clemente inclinou-se respeitosa e cortesmente diante dos juízes dizendo:“Aqui não é bom estar; retiro-me”, e serenamente foi saindo pela porta fora.Ninguém esperava por aquilo e o tribunal viu-se repentinamente privado do seuréu. O velho e nobre Arcebispo, longe de se desgostar, aprovou o procedimentodo Santo dizendo: “Ele procedeu bem indo-se embora, fez como os Apóstolos;sacudiu a poeira dos seus sapatos”. Essa expressão compreende-se facilmen-te, considerando-se que aquele julgamento não procedera da autoridade ecle-siástica, mas fora imposto pela polícia contra a vontade do digno Arcebispo,que naqueles tempos lutuosos não podia agir contra a força bruta do governo.

Os capitulares de sentimentos religiosos olharam-se reciprocamente e ri-ram-se, não do ancião que com tão bela resposta se retirara, mas da situaçãocômica em que ficaram colocados. As pesquisas sobre o desaparecimento damenina ficaram sem efeito.

Nos meses seguintes permaneceu Clemente debaixo da vigilância da polí-cia. O Santo, embora não se deixasse intimidar por coisa alguma, achou maisprudente pôr-se de sobreaviso. Clemente era perseguido até por parte do clero.— O perigo era grande, mas ninguém tinha coragem de agir abertamente con-tra ele devido à amizade que gozava junto do Arcebispo e da cotação e estimaem que era tido por homens de peso e valor público como Pilat, secretário deMetternich, Adam Müller, Frederico Schlegel, arquiduque Maximiliano, barãoPenkler e semelhantes.

Os maçons recorreram ao conde Saurau. chanceler da corte da Boêmia eMorávia, e josefino consumado, denunciando-lhe Clemente como fanático, es-pião de Roma, o qual punha os italianos ao par de tudo quanto se passava emViena. Saurau encheu-se de cólera, foi ter com o Monarca, pedindo-lhe ou an-tes exigindo a expatriação de Clemente, que era um verdadeiro perigo para anação. O Imperador, porém, respondeu-lhe com o laconismo que lhe era pró-prio: “Isso não, não posso expatriá-lo, porque ele é cidadão austríaco”.

Desfeita a primeira tentativa, era necessário achar um ponto legal, sobre oqual eles se pudessem apoiar para se apoderar da pessoa do humildeRedentorista. Como não encontrassem pretexto algum por mais que indagas-sem dos conhecidos e amigos de Clemente, lembraram-se das palavras deSabelli que acabava de ser transferido para a Suíça por ordem dos Superioresem Roma. Numa busca na residência de Clemente talvez pudessem descobrirqualquer motivo de fundada acusação.

Em janeiro de 1819 apareceram inesperadamente três homens na resi-dência do Santo numa hora, em que ainda se achava ocupado na Igreja de Sta.

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Úrsula; no quarto de Clemente achava-se somente o professor Dr. Madlener,seu discípulo predileto, que recebeu os três, a saber: o professor do direitocanônico no Theresianum, o ex-beneditino Braig, vice-diretor dos estudos, e umoutro sacerdote, relator do governo austríaco; com eles foi também um ajudan-te ou secretário.

Esperaram que o Santo chegasse, mandaram Madlener ausentar-se e fe-charam a porta. Quatro horas inteiras ficou lá a comissão inspecionando tudo,remexendo todas as gavetas, abrindo os armários, revistando todas as cartas— mas não acharam coisa alguma em que se estribar para as suas acusações.Desesperados de suas pesquisas interrogaram o Santo, que não negou serRedentorista, e como tal, súdito de um Superior na Itália. “Ipsi audivimusblasphemiam”. Os senhores estavam contentes, não era necessário mais nada;exclamaram: “A ordem não é reconhecida na Áustria, e superiores estrangeirossão proibidos pela lei; ele deve ou renunciar à Ordem ou abandonar a Áustria”.

Procederam ao protocolo, e, terminada a revista, chamaram a Clementeque em seu genuflexório rezava o rosário da Virgem, suplicando a sua proteçãopara aquela hora tão sinistra. Seguiu-se o interrogatório e a intimação, feitos aSão Clemente por Braig, o ex-beneditino.

— O Senhor deve renunciar a sua Ordem ou abandonar os Estados austrí-acos.

— A minha Ordem não renuncio, respondeu Clemente.— O senhor pode secularizar-se.— Nunca o farei.— Então abandone a Áustria.— Antes isso.— Mas para onde vai?— Para a América, somente peço que se adie a viagem para depois do

inverno por causa da minha avançada idade (Clemente tinha então 68 anos).Por fim o Santo teve de escrever tudo, de próprio punho, e prometer que

abandonaria a sua Pátria.Depois de obedecer à comissão e assinar à sua expatriação, o Santo per-

guntou, se tinha mais alguma coisa a fazer, ao que responderam negativamen-te.

— Ainda resta uma coisa, disse o Santo.— Qual? perguntou curioso o primeiro comissário.Levantando o dedo para o alto Clemente exclamou:— O juízo final.Toda essa farsa não passava de uma detestável intriga; os comissários não

tinham sido delegados por ninguém, nem pelo consistório nem pela polícia. Opresidente do juízo de apelação declarou ser tudo isso uma vil e ilegal usurpaçãodo poder.

Os comissários retiraram-se pouco antes do almoço. Clemente, como decostume, deu o sinal para o exame particular e as ladainhas. À mesa, na palidezdo rosto do Servo de Deus suspeitaram alguma coisa de anormal, mas de seuslábios não conseguiram arrancar palavra alguma; só depois da morte de Cle-mente é que os discípulos souberam o que se passara dentro das portas fecha-das. O Santo via aniquilada a esperança que há tempo, nutria de ver a sua

Congregação introduzida na Áustria.Sendo a expatriação um direito imperial, era para isso necessária a licença

do monarca, e por isso toda a história foi levada ao conhecimento do Imperador,que declarou por intermédio de seu chanceler, que a expatriação só poderia seconcedida a pedido de Clemente, a quem deu liberdade de fazer o que bementendesse. O chanceler, que estava inteiramente de acordo com os inimigosdo Santo, participou ao Arcebispo o decreto, como tratando de uma ordem domonarca que exilava o Servo de Deus.

Chamado pelo Arcebispo, Clemente compreendeu que não devia nem po-dia calar-se ocultando a verdade, narrou-lhe todo o ocorrido. Enquanto isso sepassava, de Santa Úrsula chegou ao palácio arquiepiscopal um pedido insis-tente pela conservação do Santo como Reitor da igreja. O Arcebispo foi ter como Imperador declarando-lhe que com Clemente perderia o melhor sacerdote dasua diocese, e o Monarca, ciente do ocorrido, confirmou a permanência doSanto... que não obstante ficou intimamente amargurado com o procedimentode seus adversários. “O Pe. Clemente está tão desgostoso e contrariado, escre-veu um dos padres a Passerat, e tão aborrecido em Viena, que já por essemotivo se decidiu fazer sua viagem em maio”. Mas para onde? O Servo de Deusestava ainda indeciso, se para Friburgo ou para Roma. Nesse interim entregou-se Clemente a seus trabalhos habituais. O jejum da quaresma enfraqueceu-odevido ao aumento do trabalho pela saída de Sabelli; adoeceu tão gravementeque o Pe. Martinho, ao participar a Passerat a doença do Santo acrescentourecear muito pela vida dele. Felizmente pôde resistir devido a sua forte e robus-ta constituição. Depois dessa doença recebeu o Santo a visita de uma senhora,que muito se congratulou pelo restabelecimento do Servo de Deus, que a sorrirexclamou: “Ora muito bem, como são bons os meus amigos, que nem sequerme desejam o a posse do céu”, e acrescentou em tom solene: “Desta vez euquisera morrer, ah! seria esse o meu maior prazer; mas Deus não o quis, estábom assim”.

A primeira metade do ano 1819 foi para o nosso Santo uma das épocasmais penosas da sua vida; em toda a parte, para onde dirigia seus olhares, viaesperanças desmoronadas, planos abatidos, cuidados prementes, dificuldadese contrariedades.

É que Deus o preparava para o último e decisivo combate...

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CAPÍTULO XXIII

A Congregação na ÁustriaO Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens —

Eu não o verei — Previsões — Resignação.

A questão referente a São Clemente ficou indecisa, mas a vigilância polici-al continuou. Tentaram conseguir do arquiduque Maximiliano a expatriação deClemente, porém debalde; esse grande amigo do Santo disse em resposta:“Viena não precisa só de um Clemente; seria para desejar que houvesse láainda seis outros homens como ele para reformar a religião”. Entretanto o NúncioApostólico, Mons. Leardi, partiu para Roma a fim de informar o papa Pio VIIsobre o estado da Igreja na Áustria, e narrou ao Sumo Pontífice as persegui-ções de que estava sendo alvo o Pe. Clemente, tido pelos maus como espiãoromano. Pouco depois chegou a Roma também o Imperador que foi congratu-lar-se pessoalmente com o Papa pela libertação que acabava de conseguir daescravidão francesa. Com fina diplomacia soube Pio VII interceder por São Cle-mente, dando a sua Majestade os parabéns pelos sacerdotes zelosos que pos-suía em Viena, mormente por Clemente, “homem verdadeiramente apostólico,adorno do clero e coluna da Igreja”. Como o Papa não ignorava que o maiorcrime, atribuído a São Clemente, era a sua dedicação e amor à Santa Sé, men-cionou o que Clemente muitas vezes dissera a Muzzi, auditor da nunciatura:“Vós, romanos, não sabeis tratar os alemães; entre eles poderíeis conseguirmuito mais, se os compreendêsseis e os soubésseis tratar”. Essa observaçãoagradou imensamente ao Imperador; a palavra do Papa causou-lhe impressãoe a sinceridade do Servo de Deus mais ainda. Ao retirar-se da audiência, havidacom o Chefe da cristandade, o Monarca narrou tudo a seu confessor, Pe. Darnaut,e ao capelão Pe. Job, que o acompanharam a Roma e acrescentou com majes-tosa benevolência: “Ofenderam e magoaram o bom Pe. Clemente, estou senti-do com isso, se eu soubesse como reparar tanto desgosto a ele causado...!”

Darnaut conhecia e estimava profundamente o Servo de Deus, e desde hámuito ouvira que ele não tinha maior desejo do que conseguir um lugar seguropara a Congregação na Áustria, e por isso pôde dizer ao Monarca: “O Pe. Cle-mente só tem um desejo: o de ver a Congregação aprovada na sua Pátria; se V.Majestade realizasse esse seu desejo, ele ficaria inteiramente satisfeito”.

A 26 de abril o Imperador partiu para o Sul em visita a Nápoles, onde pro-vavelmente se informou sobre a Congregação Redentorista que lá tivera o seuberço, e sobre o grande fundador dela, Sto. Afonso de Ligório. Que o Imperadorse interessou vivamente pelo pobre perseguido de Viena deduz-se do fato deter ele, no meio das festas e outras manifestações de regozijo, escrito de Nápo-

les uma carta ao Santo, pedindo-lhe apresentar à corte as Regras da sua Con-gregação, e indicar o modo como se poderia introduzir também na Áustria oInstituto do napolitano Afonso de Ligório. É fácil compreender a alegria e a con-solação de Clemente, grato em tudo aquilo ao dedo da Providência. Salutem exinimicis nostris. — O que ele não conseguira diretamente com seus trabalhos esofrimentos, desgostos e cuidados, obteve-o por meio dos inimigos que o per-seguiam. Grande Clemente! por ele interessaram-se os maiores poderes sobrea terra: o Papa e o Imperador!

Sem mais detença pôs-se o Santo ao trabalho, compôs o Memorandum,em que expôs com prudência o fim da Congregação. Como a palavra “missão”era detestada em Viena e facilmente irritaria os nervos dos burocratas, Clemen-te suprimiu-a escrevendo simplesmente que a Congregação se ocupava emministrar a instrução aos ignorantes e o socorro espiritual aos necessitados,sendo assim útil à Igreja e ao Estado.

O Imperador ao voltar de Roma, mandou chamar o Servo de Deus parauma audiência especial, ficando agradavelmente impressionado com a aparên-cia enérgica, firme e jovial do nobre ancião, a quem tratou com benevolência; oMonarca deu-lhe permissão de fazer mais algum pedido; Clemente somenteacrescentou o desejo de obter a Igreja de N. Sra. da Escada em Viena para aCongregação, e a permissão de se poder interessar pelos Boêmios da Capitalcom um culto especial na língua deles.

Esse pediu encheu todas as medidas dos desejos do Imperador.A 29 de outubro de 1819 o Santo apresentou o Memorandum com a Regra,

que o Monarca entregou a uma comissão especial, composta de amigos doSanto e de pessoas da confiança do Imperador. Tudo parecia sorrir esperanço-samente ao Santo, mas a coisa não deixava de ter suas dificuldades devido àscircunstâncias desfavoráveis da época e ao fato de exigir tempo demasiadolongo para pôr o novo Instituto em acordo com as leis vigentes.

Enquanto a comissão gastava tempo em examinar a Regra, os bons e osmaus trabalhavam, todos com a certeza da vitória; os amigos de Clemente nãoperderam vasa de agir ativamente em prol da Congregação dando as melhoresinformações sobre ela, fazendo-lhe as mais lisonjeiras referências e, mais quetudo pedindo a Deus com fervorosas orações pelo feliz resultado das negocia-ções. Os maus não desistiram, embora se sentissem bem humilhados e não seatrevessem a contrariar abertamente os desejos do Imperador; procuravam pro-telar o andamento da revisão esperando do tempo o arrefecimento do entusias-mo do Monarca, ou algum caso imprevisto que desfizesse os planos. O Servode Deus não duvidava da aprovação, contava até com o resultado consolador edispunha as coisas para não haver retardamento de espécie alguma, quandochegasse o decreto imperial. O Santo tinha apenas consigo o Pe. Martinho Stark,jovem de seus 33 anos, confiava porém no zelo dos seus discípulos, com osquais queria dar início à sua grande obra. Alguns dentre eles eram teólogos,outros já haviam terminado os estudos, e outros até já haviam recebido opresbiterado, exercendo o cargo de coadjutores para passar o tempo, até aadmissão no Instituto. Nesse interim Clemente dedicou-se ainda com mais ca-rinho à formação esmerada dos seus jovens, que eram para ele o futuro daCongregação, e sentia-se feliz por encontrar em todos a maior boa vontade.

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Aos jovens poupava paternalmente, como vemos do caso narrado por Pajalich.Uma vez, escreveu ele, o Servo de Deus humilhou publicamente, não sei porque motivo, a um dos seus confrades; um penitente e discípulo de Clemente,“Dr. Madlener”, estranhou a severidade com que o Santo tratava seus congre-gados, e atreveu-se a perguntar-lhe, porque é que não procedia com a mesmaseveridade, mas antes com tanto carinho, para com os outros penitentes e dis-cípulos, ao que o Santo respondeu: “Vós ainda não me pertenceis e por issonão terei de prestar a Deus contas tão rigorosas de vós, como por ele que émeu súdito”. Isso está inteiramente de acordo com o que ele uma vez disse aum dos seus estudantes e futuros Redentoristas: “Quando estivermos uma vezno nosso posto, deveremos começar seriamente a fazer penitência e a santifi-car-nos antes de pregar aos outros”; e em outra ocasião: “É preciso começarcom os jovens, porque com os velhos pouco se poderá fazer”. Essas repetidasexpressões do Santo mostram o desejo que nutria de abrir em breve o novicia-do para ensinar aos jovens todas as virtudes e introduzi-los e consolidá-los navida interior do convento.

Não menos se preocupava o Santo com o lado material, isto é, com aaquisição do necessário à comunidade a instalar-se confortavelmente no novoconvento. “Quando a Congregação estiver aprovada na Áustria, disse ele, man-darei o Pe. Martinho para a Suíça, porque ele ainda não presta para Superio-res”. Em outra ocasião afirmou que chamaria o Pe. José Passerat, homem san-to e excelente Diretor de almas. Num dos seus armários, na gaveta mais larga efunda, havia grande quantidade de doces, pacotes de café etc. que lhe tinhamsido ofertados por alguns amigos; apontando para esses objetos, tão agradá-veis ao paladar, disse a um dos seus discípulos: “Isso tudo é para os nossosconfrades em N. Sra. da Escada”.

Entretanto a aprovação diferia-se mais do que se supunha, e Clementepercebia que Deus, provavelmente, não lhe queria conceder a alegria de intro-duzir a Congregação na Áustria; o que ele semeara a custo de abundantessuores, outros deveriam colher. Como outrora Moisés só pôde avistar de longea terra da promissão sem ter o prazer de levar lá o povo que dirigira e governaraquarenta anos na travessia do deserto, repartindo com ele alegrias e dores,assim Clemente antegozava, sim, a aprovação da sua Ordem, mas percebiatambém que não seria ele o escolhido por Deus para organizar o primeiro novi-ciado e introduzir firme e definitivamente, além dos Alpes, a Congregação quetanto amava.

Teria Clemente sentido no princípio esse duro golpe da Providência? UmaIrmã Ursulina contava que, quando no convento deram ao Servo de Deus osparabéns pelo decreto imperial, que em breve garantiria legalmente a subsis-tência da Congregação na Áustria, ele suspirando exclamou: “Mas eu não overei”, disse-o com precisão, embora se esperasse a cada momento a aprova-ção, e Clemente não apresentasse propriamente nenhum sintoma de enfermi-dade grave. Os discípulos do Santo, as irmãs e, em geral, os amigos tinham aconvicção certa de que Clemente viveria pelo menos ainda uns anos, pois queDeus não o podia tirar no momento em que ele mais necessário parecia ser àCongregação. O Servo de Deus, porém, era inabalável nas suas palavras, fala-va como profeta que contempla e conhece o futuro. Uma outra vez, conversan-

do com um amigo médico disse: “Enquanto eu viver, nada se fará, mas depoisda minha morte conventos se erguerão”. Entretendo-se outra vez com a IrmãJacoba que lhe expunha suas dúvidas interiores etc. afirmou o Santo: “Primeiroé preciso que eu morra, só depois é que a Congregação se difundirá”. A umaoutra irmã, falando familiarmente sobre o futuro da sua Ordem na Áustria esobre o bem imenso que os Padres Redentoristas haviam de operar pela glóriade Deus e o bem das almas imortais e abandonadas naqueles tempos tãotristes, o Servo de Deus assegurou “que o Imperador não haveria de assinar odecreto aprovando a Congregação na Áustria, enquanto ele não tivesse dadosua alma ao Criador”. Expressões idênticas empregou o Servo de Deus emdiversas ocasiões, de sorte que podemos afirmar, sem medo de erro, que Deuslhe manifestara essa disposição da sua vontade.

De um lado exultava o Servo de Deus prevendo o futuro da obra, pela qualse batera, garantido e seguro, do outro sentia, humanamente falando, o golpeda Providência, que assim o provava e privava da maior consolação dos seustrabalhos. O Servo de Deus, porém, resignou-se com a vontade santíssima doAltíssimo, e em certo ponto sentia-se mesmo consolado, conforme se externouuma vez: “Devo morrer antes que a Congregação se propague, então podereifazer mais para os meus junto do trono de Deus do que agora em vida”.

Como é próprio dos Santos, esquivar-se à vista dos homens, para que todaa glória, nas grandes obras, recaia sobre o Autor de todo o bem, que é Deus,Clemente, prevendo a grandeza da Congregação, desejava com toda a humil-dade desaparecer do cenário da vida. Manifestou esse seu desejo com as pala-vras: “Grande honra se me está preparando dentro em breve, prefiro morrer já,antes que isso se realize”.

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CAPÍTULO XXIV

Suspirando pelo céuO cortejo das Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Des-

graça é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe aextrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte san-ta — Na câmara ardente — Sepultamento magnífico.

Na igreja dos Minoritas o Servo do Deus estava uma vez a ouvir confissõese a reconciliar os pecadores com Deus. Terminado o trabalho restava ainda notemplo apenas um homem que viu abrir-se, subitamente, a porta da igreja eentrar um cortejo de virgens em uniforme branco, todo adereçado de ricas flo-res, empunhando magníficas guirlandas, que agitavam no compasso, e assimcaminharam até perto de Clemente que se achava sentado no confessionário;quando as Virgens passaram, o Servo de Deus inclinou-se profundamente comas palavras: “Sim, eu vou logo”, e elas desapareceram. Admirado de tão estra-nha cena o homem aproximou-se do Santo perguntando-lhe, qual a significa-ção daquilo. “Fique quieto, disse Clemente, e não o conte a ninguém”. —

Já havia algum tempo que Clemente se achava mal, o seu estado, porém,piorou consideravelmente no inverno de 1820. Embora atacado de fortes e vio-lentas dores hemorroidais não cedia, atirando-se sempre ao trabalho; a febretornou-se tão aguda que o pulso acusava 150 pulsações por minuto; no delírioClemente recitava trechos inteiros dos Santos Padres, passagens da SagradaEscritura, sem omitir uma única palavra nas citações. Passada a crise Clemen-te continuava seus trabalhos. No caminho que ia da sua residência a SantaÚrsula, encontravam-se por vezes, copiosas gotas de sangue; na igreja, embo-ra sofresse dores atrozes, permanecia sentado no confessionário para não in-comodar as irmãs. Os discípulos, tendo ante os olhos a constituição robusta e aenergia indomável do Santo, julgaram-no fora de qualquer perigo; Clemente,porém, não se iludia sobre a proximidade de seu fim; a quem dizia que a vidalhe era necessária e que por isso ele não podia morrer, respondia com laconismo:“Deus não precisa de ninguém!” Entretanto o Santo definhava dia a dia; diminu-íram-se as forças, mas não cessaram os trabalhos, que se lhe tornaram umasegunda natureza.

Deus sabe provar as almas, e quando as quer fazer passar pelo crisol dastribulações não envia apenas uma cruz, mas uma multidão delas a oprimir ocorpo e a alma. Enquanto Clemente gemia ao peso da enfermidade, enviouDeus uma doença grave ao Pe. Martinho Stark, único auxiliar de Clemente emque a igreja das Ursulinas; como em casa não havia empregados e nem irmãosleigos que o pudessem assistir, o pobre Clemente teve que fazer o papel de

enfermeiro, subindo e descendo constantemente as escadas para atender aopadre enfermo e ao povo que o reclamava.

A um amigo disse uma vez o Santo referindo-se à enfermidade do Pe.Martinho Stark: “Não sei qual de nós está mais doente!” É escusado dizer que otrabalho de Clemente se duplicou com a doença do seu auxiliar.

A 4 de março, sábado, achavam-se, à noite, reunidos os discípulos no quartodo Santo, para a conferência; Clemente ouviu-os de confissão; depois desseserviço começou a sentir o peso da enfermidade que o levaria ao túmulo. Nesseestado de prostração mandou ainda fazer a leitura, à mesa, com as observa-ções que costumava entremear ao texto, porquanto o seu espírito conservava-se vivo e fresco como nos outros dias.

Durante a leitura dessa tarde, por exemplo, perguntou aos discípulos, qualo motivo porque no Antigo Testamento não se imolavam os peixes a Javé; comoninguém soubesse responder, ele mesmo disse: “É porque o peixe não tem vozpara anunciar os louvores de Deus”, e tirou logo a conclusão, que para ele erasempre a coisa principal: “... os homens devem com mais razão louvar a Deus,porque não possuem só a voz, mas também o entendimento, e esses louvoresmanifestam-se sobretudo na oração em comum”. Os discípulos, notando a fra-queza física do Santo, quiseram ausentar-se um pouco mais cedo, mas ele osdeteve dizendo: “Pouco se me dá, que eu vá dormir mais tarde”.

No dia seguinte, 3.º domingo da quaresma, o Santo fez ainda um esforço epregou pela última vez em sua vida; tomou por tema as contas, que cada umdeve prestar a Deus, de todas as suas ações, dos favores e graças recebidas;uma sentença calou profundamente no ânimo de todos impressionando-os for-temente: “Se durante toda a minha vida eu tivesse sempre correspondido àgraça, quanto bem Deus não poderia ter operado por mim!” Foi essa a suapalavra de despedida do alto do púlpito. Nesse dia e nos dois que se seguiram,o Santo trabalhou como se nada houvesse de anormal; apesar do frio extraordi-nário ia de manhã à igreja dos Minoritas e depois à das Ursulinas, ouvia asconfissões, recebia as visitas, fazia, à noite, as reuniões e entretinha os rapa-zes.

No dia 8, quarta-feira, celebrou pela última vez em Sta. Úrsula, e das 9 às11 horas ouviu as confissões das religiosas. Antes de retirar-se chamou a IrmãThadéa e disse-lhe: “Reze bastante por mim, que estou muito doente”, e deixouo convento para nunca mais voltar. “Em seguida, conta a Irmã, olhei para elecom o coração repassado de dor e pus-me a chorar, pois que não podia famili-arizar-me com a idéia de que não o tornaria a ver; aquelas palavras eram as dadespedida; o Servo de Deus parecia um cadáver, e a minha consternação tor-nou-se tanto maior, quando me recordei do que, há um mês atrás, ele me ga-rantira que morreria brevemente... Pedi então ao Santo que me permitisse orarde modo especial pela cura do Pe. Martinho. “Sim, sim, disse ele, o Pe. Martinhosara logo, mas eu morrerei em breve”. Eu então continuei: “pedirei a Deus sedigne conceder a V. Revma ainda muitos anos de vida e saúde”, ao que elerespondeu: “Não se faça a nossa vontade, mas a de Deus assim na terra comono céu”; mas, continuei, seria para nós grande desgraça, se tivéssemos deperder a V. Revma., e ele: — “Desgraça é só o pecado”.

Para o dia 9 estava marcada na igreja dos Italianos uma missa solene de

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Requiém pela princesa Jablonowska, que o Santo venerava como benfeitoragenerosa do convento de S. Beno em Varsóvia; em homenagem a essa insignebenfeitora Clemente fez um esforço heróico e foi a pé a dita igreja e cantou oRequiem; abateu-se, porém, de tal modo, que necessitou de um carro paravoltar à sua residência.

Entretanto Pe. Martinho sentia-se melhor e achava-se já fora de perigo; opróprio Pe. Clemente parecia restabelecer-se e recuperar as forças... mas infe-lizmente eram só aparências; o estado não tardou a agravar-se espantosamen-te desde a missa da princesa Jablonowska. O Servo de Deus jazia em seu leitode dores, longe dos seus confrades e quase fora da Congregação; o únicoconfrade que o acompanhava estava guardando o leito, e ele sem um criado ouIrmão leigo que o assistisse! Os amigos, discípulos e penitentes do Santo nãolhe podiam prestar seus serviços, por se acharem também ocupados fora. OServo de Deus pouco se entretinha com os homens, porque se conservavasempre recolhido em oração aos pés de Jesus Crucificado, a quem oferecia asdores e sofrimentos, que o acabrunhavam.

Foi numa dessas ocasiões que um dos discípulos do Santo, pensando nofuturo da Congregação, expôs ao Servo de Deus as ingentes dificuldades quehaveriam de ter para construir os conventos, devido à grande falta de recursosmateriais; o Santo olhando para ele disse com gravidade: “Quereis edificar igre-jas e construir conventos, e não tendes força para combater e refrear as pai-xões; tende paciência, Deus nos dará bastante conventos; pobre eu fui a Varsó-via, onde não encontrei morada nem recurso de qualidade alguma; um anodepois, possuía já tanto dinheiro que me foi possível distribuir diariamente es-molas aos pobres e matar a fome aos necessitados; — enquanto eu estivervivo, não tereis conventos, mas depois da minha morte, te-los-eis em abundân-cia”. Foi por essa época, que tomando a mão de Madlener, seu discípulo predi-leto, lhe disse “que consigo levava ao túmulo muitos segredos, que quisera co-municar-lh’os, mas não o fazia porque Madlener não podia guardar segredos”.

As Ursulinas tinham uma empregada muito boa e fiel, por nome Mariana;mandaram-na a S. Clemente para se informar do estado de sua saúde; quandoa pobrezinha viu o Servo de Deus em tão triste estado e em perigo de vida,desatou em pratos: “Mariana não chores, disse, em breve me acompanharás”.A empregada era robusta e não apresentava nenhum vestígio de enfermidade,e não obstante — poucos dias depois era um cadáver.

Durante a última enfermidade o Servo de Deus recebeu relativamente pou-cas visitas; os amigos supunham que a enfermidade não fosse de morte e porisso não o queriam molestar; somente os penitentes, que desejavam algumconselho particular, iam ter com ele; mesmo no leito o Santo os reconciliavacom Deus.

Aos 13 de março o Dr. Veith achou conveniente dar-lhe a extrema-unção; oPe. Madlener, depois de muito hesitar, aproximou-se de Clemente com a per-gunta: “V. Revma. quer receber o seu Deus?” ao que o Santo respondeu corri-gindo a expressão pouco dogmática: “A santa comunhão? sim, sim”. Chama-ram o confessor, e durante a absolvição Clemente delirou, um pouco, repetindoas palavras da absolvição, como se ele fosse o confessor e não o penitente. Acomunhão o Santo a recebeu com tocante devoção, permanecendo longo tem-

po de mãos postas, com o rosto voltado para o lado da parede, para maiorrecolhimento. Antes da sua morte teve o Santo algumas horas de sossego, esatisfeito pôs-se a cantar o seu hino predileto: “Tudo para a glória de Deus”. Aoentrar o Santo em agonia, que durou 2 horas, o seu rosto, aliás tranqüilo esereno, cobriu-se de palidez dando sinais de indizíveis dores; Clemente pelaveemência da dor erguia do leito quase continuamente, procurando alívio. Aqueleespetáculo enchia de consternação e de compaixão os assistentes, que amar-gurados viam o Santo sofrer indizivelmente sem poderem aliviá-lo. Madlener nacerteza de que aqueles movimentos, longe de dar ao Santo algum alívio, servi-am apenas para aumentar os seus sofrimentos, aproximando-se do leito disse-lhe aos ouvidos: “Pe. Clemente, por obediência fique sossegado na cama”. OSanto obedeceu como uma criança; chamaram o confessor e, momentos de-pois, a tranqüilidade estampou-se novamente no rosto do Servo de Deus, cujoslábios se puseram outra vez em movimento para a oração.

Chegou enfim o dia 15 de março. — Nesse dia sucedeu em Viena um fatosingular. A família Biringer, cujo pai falecera há tempo, era dirigida do Santo,que a socorrera em muitos casos difíceis; a mãe mandou sua filha perguntarpela saúde do Santo; enquanto esta executava as ordens da mãe, teve a viúvauma visão clara: o Servo de Deus apareceu-lhe, sentou-se como de costumeno sofá, queixou-se da falta de fé no mundo, mormente entre os funcionários epessoas altamente colocadas, acrescentando três vezes: “vou para o meu reti-ro” e desapareceu.

No correr da manhã reuniram-se diversos discípulos do Servo de Deus emsua residência; o Santo silencioso rezava de mãos postas. Chegou o meio-dia,e de todas as torres de Viena começaram os sinos a soar festivamente o AngelusDomini. Clemente fez um esforço para recolher as forças e disse aos presentes:“Rezai, estão batendo o Angelus”. Enquanto os presentes ajoelhados sauda-vam a Mãe de Deus, Clemente expirou placidamente para saudar no céu suainesquecível e estremecida Mãe. No momento da morte um leve sorriso veioestampar-se em seu rosto, antes convulsionado pelo excesso da dor.

Providência divina! — Nesse mesmo dia à tarde o Imperador assinou odecreto permitindo e aprovando a Congregação para a Áustria. Realizou-secom pontualidade a profecia do Santo.

A impressão da morte de Clemente nos assistentes foi diversa: uns chora-vam, outros enchiam-se de uma santa alegria. As irmãs Ursulinas, reunidospara a refeição, ao ouvirem a notícia da morte do Servo de Deus, chorosasabandonaram o refeitório e dirigiram-se à igreja a fim de rezar pelo santo con-fessor. Os discípulos, que não contavam com aquele desfecho rápido, ficaramperplexos e confusos.

O Núncio Leardi por sua vez escreveu a Gonsalvi: “O bom Pe. Clementepassou, ao meio-dia, à eternidade; todos os bons estão consternados com aperda dessa coluna da boa causa; ele é simplesmente insubstituível”.

Aprontaram o quarto vazio do coadjutor no primeiro andar térreo e expuse-ram o corpo do Santo, vestido do hábito redentorista com uma bela estola roxa,em que estavam ricamente bordados os instrumentos da paixão e a imagem deNossa Senhora das Dores. O rosto do Santo, que recuperara sua cor natural eos traços de serenidade com o sorriso admirável nos lábios, causava a todos a

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melhor e mais santa impressão. A notícia da morte de Clemente espalhou-secom a rapidez do relâmpago para tristeza dos bons e contentamento dos maus.No dia seguinte uma multidão imensa, na expressão do Pe. Rinn, veio visitar ocorpo do Santo, pois que todos queriam beijar-lhe as mãos pela última vez ereceber por relíquia algum objeto que lhe tivesse pertencido. A condessaSzecheny osculava, entre lágrimas, as mãos do Santo, não podendo ausentar-se de perto do seu antigo Diretor espiritual, que tanto a confortara em seussofrimentos e angústias. Quando alguém se lembrou de avisá-la que tivessecuidado para não contrair, por contágio, a moléstia do Santo (supunham que eletivesse sofrido o tifo abdominal), a condessa respondeu: “Não tenho medo por-que os Santos não infeccionam a ninguém”. O desejo de levar relíquias do San-to era tamanho, que foi mister vigiar o caixão, porque uns cortavam pedaços dabatina e do cabelo, outros levavam fragmentos quebrados ao caixão, enquantoque outros limpavam a casa levando tudo o que sabiam ter pertencido ao Servode Deus. A voz geral que se faziam ouvir em Viena era: “Temos um Santo nocéu”.

No dia seguinte iam ser entregues à terra os despojos mortais do grandeApóstolo de Viena. Como a morte fora simples e assistida apenas pelos amigosdo Santo, supunha-se que da mesma simplicidade se revestiria também o seusepultamento. Encarregado dos funerais era o Pe. Martinho que, adoentadoainda, se achava distante na fazenda de um nobre senhor; dos estranhos ne-nhum se lembrou disso. A um ou outro que perguntava pelo enterro, respondia-se que tudo seria feito com simplicidade. Uns dias antes havia o Pe. Martinhointerrogado ao Santo, que é que se deveria fazer caso ele viesse falecer, ao queo Santo respondeu: “Fique sossegado, Deus há de providenciar”. E aquela pa-lavra foi uma profecia. “Naquela quinta-feira, escreve Pajalich, houve um certosossego, do meio-dia às 2 horas, sem que pessoa alguma se lembrasse dosepultamento; parece que o padre Martinho dera ordem de se fazer tudo domodo mais simples e oculto possível... Mas Deus providenciou para que o en-terro se tornasse pomposo. Os admiradores do Servo de Deus sentiram umdesejo irresistível de contribuir para o realce do sepultamento do Apóstolo deViena.

Desde as 2 horas começaram a chegar homens e mais homens, vindos detodas as direções para a Igreja de Sta. Úrsula, onde agradeceram ao Senhor osinúmeros benefícios recebidos por intermédio do falecido; pouco depois apare-ceu na residência de Clemente um caixão de madeira consistente, destinadoao Santo; era presente do conde Szecheny. Na medida que se aproximava ahora do enterro crescia o número de penitentes, amigos e admiradores que lhevinham prestar as últimas honras. Chegada a hora do préstito fúnebre as duasruas que conduzem a Sta. Úrsula, achavam-se apinhadas de povo; da mesmaforma chegou grande número de sacerdotes, e enfim precedidos da cruz apa-receram em nobre cortejo os clérigos e padres do seminário arquiepiscopal,sem que para isso tivessem recebido ordem ou permissão; atrás dessa procis-são caminhava o célebre Zacharias Werner de pluvial rico ao lado de numerosaassistência. Pobres e ricos, nobres e plebeus, pessoas de todos os estados eposição, até soldados, compareceram ao acompanhamento do cadáver. Termi-nadas as orações prescritas e entoado o Miserere, pôs-se o magnífico préstito

em movimento. Os discípulos de Clemente, futuros Redentoristas, pegaram asalças do caixão, que carregaram com profundo respeito e devoção, acompa-nhados por outros que empunhavam velas. Coisa admirável! ninguém haviaconvidado o povo, e a multidão apareceu empunhando velas acesas; uma mul-tidão incalculável, no maior recolhimento, formando a guarda de honra do cadá-ver! Não sendo Sta. Úrsula igreja matriz, devia o préstito dirigir-se à catedral deSto. Estevam. Era tocante e emocionante aquele cena! a multidão se desfaziaem prantos e, às vezes, soluçava; senhoras com os filhinhos nos braços chora-vam como crianças. Em frente ao convento das Ursulinas fez-se uma segundaencomendação entre as lágrimas das Irmãs que pranteavam seu pai espirituale insigne benfeitor; nas exéquias revezaram-se o Pe. Zacharias Werner e o Pe.Schmid, confessor do Santo. A tarde era magnífica, o ar tranqüilo, o ruído habi-tual dos carros de praça cessara naquelas ruas, por onde ia passar o préstitofúnebre até a catedral. Reinava silêncio profundo, em que tanto mais se ouviamos dobres, as marchas fúnebres e os sons plangentes da banda musical bemcomo os hinos e as orações, entrecortadas de soluços, que se elevavam ao céupelo falecido. Era um verdadeiro triunfo; o préstito movia-se vagaroso por causada multidão de povo e dos inúmeros carros que acompanhavam o cadáver.

Obstupefação geral causou o fato de se achar aberta, em par, a porta prin-cipal de Sto. Estevam, a qual nunca se abre por ocasião dos enterros, a não serque se trate de pessoas altamente colocadas, ou de muita influência na socie-dade, mediante o pagamento de cem florins de prata. E ninguém sabia quemtinha aberto, ainda mais que o capelão havia dado ordens terminantes em con-trário. Ao chegar o préstito em o largo de Sto. Estevam começou a escurecer;isso só servir para dar ao enterro o aspecto de triunfo; as milhares de pessoasque enchiam a vastíssima praça e as ruas vizinhas, empunhavam velas, queacesas, formavam um como mar de luzes ondulantes no meio da multidão. Erauma coisa nunca vista! donde aquelas velas? quem tivera a idéia de comprá-lastodas? ninguém o poderia dizer. A catedral gigantesca ficou apinhada; depoisdo Libera-me o Pe. Zacharias Werner com o coração comovido e a voz a tremercantou a absolvição e as orações prescritas. Por ser já noite fechada, os restosmortais do Santo foram depositados no necrotério por aquela noite.

Viena jamais vira enterro tão comovente e magnífico como aquele; foi umaverdadeira apoteose em que tomou parte a Capital da Áustria em sua quasetotalidade, e o que é mais admirável ainda, tudo isto sem convite algum. No diaseguinte o corpo foi levado ao cemitério de Enzersdorf, ao cargo dos PadresFranciscanos. Sobre o túmulo humilde de Clemente colocaram simples epitáfio:“Fidelis servus et prudens, isto é, Servo fiel e prudente”.

Nesse dia apareceu uma notícia sobre o Servo de Deus, publicada pelocélebre cientista Adam Müller no mais afamado órgão de imprensa vienense,nos termos seguintes: “A 15 de março de 1820 faleceu aqui, pelo meio-dia, naidade de 69 anos o R. Pe. Clemente Maria Hofbauer, Vigário geral da Congrega-ção do Santíssimo Redentor, fundada pelo bem-aventurado Afonso de Ligório,e confessor do convento das Ursulinas. A atividade fecunda e estupenda, quesó ele pôde desenvolver em circunstâncias difíceis e posições arriscadas, con-firmam-nos os muros de São Beno em Varsóvia, além dos milhares de testemu-nhas que ele alimentou, vestiu e conduziu a Deus por meio de uma vida cristã.

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Dissolvida lá a Congregação pelo dominador dos franceses (Napoleão)dirigiu-se ele a sua Pátria onde viveu desde 1808 em Viena. Os frutos de suavida ativa, verdadeiramente apostólica, os pósteros os hão de colher. Nobres eplebeus, sábios e ignorantes deploram a perda irreparável do seu pai e guia, emesmo os mais afastados, que só o conheciam de nome, sentem-lhe a morte,porque com ele esmoronou-se mais uma coluna da fé e da religião, e por isso,também da Pátria. Só o pensamento de que ele continua a viver no gozo infini-tamente grande, pode mitigar a amargura causada por seu passamento”.

CAPÍTULO XXV

Retrato do Servo de DeusTestemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de

um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um ex-jesuíta — do cardeal Rauscher.

Diversos amigos e admiradores de Clemente têm-nos descrito o Servo deDeus tanto no seu físico como em sua vida íntima, no seu modo de agir e noseu caráter másculo. Quanto ao exterior descreve-nos um dos seus primeirosdiscípulos: “O Servo de Deus era de tamanho regular, de constituição forte eboa estatura; fortes eram sobretudo os ombros e o peito; o pescoço era umtanto curto, a cabeça redonda e bem formada, o rosto antes redondo que oval.Embora cheio de dignidade eram sempre amável e sorridente. Nunca o vi rir,mas sempre sorrir-se levemente, os olhos ele os tinha sempre semicerrados;quando porém falava com entusiasmo de alguma verdade da fé, via-se um comoresplendor irradiar-se deles; andava sempre reto, inclinando apenas a cabeça.Embora se alimentasse pouco e se sobrecarregasse de muitos e pesados tra-balhos, não era magro. Homem enérgico não manifestava nenhum vestígio deorgulho. Andava sempre com o hábito da ordem, no verão usava um mantopreto e leve, debaixo do qual escondia o terço, que lhe não saía da mão. Noinverno vestia um manto azulado. À cabeça ele tinha sempre coberta por umgorro, mesmo quando andava pelas ruas. Os cabelos do Servo de Deus eramescuros e, nos últimos tempos da sua vida, um tanto grisalhos”.

O retrato do seu caráter descreve-o admiravelmente o Dr. Veith, grandeamigo do Santo e preclaro médico e cientista do seu tempo. “Ao Servo de Deustenho antes os meus olhos, agora depois de 44 anos, tão vivo e fiel como nosdias da sua vida mortal, homem extremamente amável, manso, simples, humil-de, prudente, profundamente arraigado na caridade, ardendo em amor de Deuse do próximo, inabalável como um rochedo em sua fé, extraordinariamente com-passivo, esquecido de si e ávido da glória divina, verdadeiro apóstolo, procuran-do ser tudo para todos e possuidor das riquezas da graça. Não duvido colocá-loao lado de São Filippe de Nery e de São Vicente de Paulo. Tive sempre a con-vicção de que ele praticou as virtudes cristãs em grau heróico no emprego detodas as energias com extraordinária abnegação própria, com a maior purezade intenção, ânimo inquebrantável tanto nos trabalhos como nos sofrimentossuportados por Nosso Senhor e pela Igreja, com aquela comiseração denomi-nada na Escritura viscera misericordiae. Que ele praticava todas essas virtudesposso atestar ao menos quanto aos últimos anos de sua vida”.

Um outro amigo do Santo, cônego Greif escreve: “Clemente era um homem

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segundo o coração de Deus, cheio de simplicidade e amor, um modelo de virtu-des para todos; conhecia a arte de atrair todos os corações e de tratá-los se-gundo as propensões de cada um. Qual pastor vigilante corria atrás das almaspara convertê-las; a sua caridade desarmava os próprios inimigos. Não tinhaem conta alguma a sua pessoa; distribuía tudo o que tinha: essa era a sua vida”.

Eu admirei nele, escreve outro, a agudeza da inteligência, a sobriedade doespírito, a oração contínua, a firmeza inabalável, a sede de perfeição, a gentile-za de trato tanto com os nobres e ricos como com os pobres, a grande prudên-cia, a sincera gratidão pelos benefícios recebidos, a inquebrantável intrepideznas perseguições, a modéstia nas palavras e ações, a delicada brandura emansidão em instruir e repreender, a inesgotável caridade para com os pobres,a extraordinária temperança, o cuidado pela conservação da pureza de cora-ção, a prudência na direção das almas, a atividade abençoada pelo céu, o amore a dedicação à Santa Sé, a vigilância pela pureza da doutrina católica, a fé vivae constância inabalável, o amor de Deus e do próximo, pronto a qualquer sacri-fício, a resignação da sua vontade em todos os sofrimentos físicos ou morais, afortaleza em todas as contrariedades de vida, a fidelidade imutável em o exercí-cio de todas as virtudes até o fim da sua vida”.

Uma outra testemunha, Jacoba de Welschenau, que conhecia muito bem oServo de Deus, escreve: “Ele nunca se mostrava enfadado nem entristecido,nem exageradamente alegre; nos traços do seu rosto podia-se ler a paz interiore a união com Deus”.

“Da sua fisionomia”, escreve Luiza Pilat, “irradiava-se a pureza da alma e apaz, fruto da santa alegria que provinha da sua íntima união com Deus; em seurosto estampava-se uma seriedade amável, pacata jovialidade, paz não pertur-bada por nenhuma paixão, e um perfeito recolhimento de espírito”.

Todos esses testemunhos, depostos por pessoas inteiramente fidedignas,foram extraídos do processo de beatificação do Servo de Deus. As pessoas,que depuseram no processo, não unânimes em chamá-lo “serafim”, anjo deconsolação e de paz, apóstolo infatigável e ardoroso, bom odor de Cristo pelasacrisoladas virtudes, mártir da liberdade da Igreja, pai dos pobres, modelo devirtudes etc.

Um ex-jesuíta, que logo depois da morte do Servo de Deus, publicou emAugsburgo uma história eclesiástica, fala de Clemente com os maiores elogios;denomina-o “homem apostólico, trabalhador incansável na vinha do Senhor,pregador da penitência”; afirma que a sua atividade em Viena era a de umgrande apóstolo, tornando-se o refúgio dos pecadores e modelo de penitência,convertendo milhares de pessoas, conduzindo outras tantas à perfeição, sendoum outro João Batista, munido de força especial para operar conversões estu-pendas e converter os pecadores mais obstinados”. — Clemente era despreza-do e até perseguido por muitos, acrescenta o historiador, mas herói de virtudes,amava o desprezo sem jamais descerrar seus lábios para a queixa, procuravasó a glória de Deus e o bem das almas; luzia como uma estrela de primeiragrandeza no meio das trevas, combatia constantemente a impiedade do sécu-lo”. O cardeal Rauscher, encarando o Santo em seu papel providencial, afirmater sido São Clemente o restaurador da vida da Igreja na Áustria: “O Pe. Cle-mente tornou possível a conclusão da concordata e deu uma nova e melhordireção ao espírito do tempo”.

CAPÍTULO XXVI

O Santo na glóriaDeclaração de João Pilat — de Zacharias Werner — das Irmãs Ursulinas.

No capítulo anterior vimos a descrição dos traços físicos do Santo e daformosura de sua alma que foi heróica na prática das virtudes teologais e mo-rais. Ora uma vida tão exemplar e virtudes tão heróicas não podiam ficar sem amerecida recompensa. Aprouve a Deus manifestar-nos um raio da glória, quegoza S. Clemente no céu, como vemos nas três declarações abaixo, feitas sobjuramento por pessoas incapazes de engano.

A primeira declaração procede de João Pilat, moço correto e inteligente,nomeado preceptor dos alunos no colégio nobre fundado por Klinkowström,que já conhecemos de outro lugar desta biografia. Demos-lhe a palavra: “Erapouco depois da morte de Clemente... eu morava então no instituto deKlinkowström. Já de há muito tempo tinha resolvido não só deixar o empregodas finanças, mas consagrar-me inteiramente ao serviço de Deus no sacerdó-cio. Educado no espírito do Pe. Clemente procurei levar uma vida verdadeira-mente cristã e piedosa e consagrar-me a Deus no sacerdócio. Contra esseplano de me enfileirar entre os levitas do Senhor, só encontrei oposição noGoverno que me fazia as maiores dificuldades por eu não haver cursado filoso-fia na universidade de Viena, mas só privadamente na Hungria. Essa má vonta-de da faculdade filosófica abateu-me tanto que quase sucumbi; julguei deverdesistir do intento de me tornar Redentorista. Justamente naqueles dias o Pe.Passerat chegou a Viena. Numa daquelas tardes estava eu ajoelhado perto domeu leito a fazer a minha meditação costumada, para a qual me servia do livrodo Pe. Crasset, se me não engano; na minha frente achava-se um quadro deSão José com o menino Jesus no braço. Sei com toda a certeza que naquelemomento não me lembrei do Pe. Clemente, nem de Santo Afonso e muito me-nos do Pe. Passerat: os olhos conservei-os fixos no quadro de São José. Possoainda declarar que nunca em minha vida me deixei alucinar nem física, nemmoralmente, pois tenho uma aversão natural a toda a sorte de visões.

Nessa disposição corporal e física vi repentinamente o seguinte: Na minhafrente achava-se Santo Afonso em sua figura característica, circundado de umaluz branda e celestial; lançou para mim um olhar de bondade.

A seu lado reconheci o Pe. Clemente que também me olhava, estava todotransfigurado, irradiando a mesma luz celestial como o santo Fundador. Semproferir palavra, parecia que ambos me apontavam o Pe. Passerat que se mos-trava à esquerda de Sto. Afonso; em seguida vi como misteriosa e espiritual-mente o Pe. Passerat se transformou na pessoa do santo Fundador.

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Sem mais detença veio-me o pensamento de que Deus me dava a enten-der que no céu S. Clemente goza a mesma glória como Santo Afonso, e quecuida ainda agora dos seus filhos, enviando-me, os dois, para o Pe. Passerat,que com certeza desfaria todos os obstáculos à minha entrada na Congrega-ção. E de fato assim foi. O Pe. Passerat foi comigo ao Imperador, que com gran-de bondade, baixou o decreto declarando válidos os meus estudos, para eu metornar um dos filhos espirituais do Pe. Clemente. Já lá se foram 40 anos desdeentão, e essa visão ainda me paira tão viva ante os olhos, que dela me lembrocomo se fosse ontem”.

Isso narra com juramento o Pe. Pilat, que, devido a essa aparição entrou naCongregação professando em 1823; ordenado dois anos depois foi a Lisboa e àBélgica; em Bruxelas foi o confessor de Leão XIII, então Núncio Apostólico dosPaíses Baixos, o qual duas vezes por semana ia ao convento dos Redentoristas.

Uma segunda manifestação da sua glória no céu, fê-la Clemente a seugrande amigo, o Pe. Zacharias Werner, que a narrou ao povo do alto do púlpito,como nô-lo transmitiu, com juramento, a Irmã Thadéa de Sta. Úrsula: “Era oprimeiro domingo do advento de 1822; Zacharias Werner deu início a seu ser-mão em nossa igreja com as palavra que ainda retenho na memória com toda aexatidão: ‘Já não viverei muito tempo, porque o Pe. Clemente m’o disse. Estavaeu deitado depois da oração da noite, quando subitamente vi o quarto aclaradopor uma luz mais viva que a do sol, e no meio do resplendor contemplei o Pe.Clemente, meu pai, amigo e mestre; tinha em suas mãos um lírio, um ramo deoliveira e uma palma, apostrofou-me com as palavras: Zacharias vem, vem,vem logo, e desapareceu em seguida. Essa aparição não é fantástica, pois eunão estava dormindo; é tão certo que vi o Pe. Clemente, como é certo que vivoe aqui estou na igreja na presença do meu Deus no Santíssimo Sacramento.Desde essa hora senti-me fraco e sei, sem dúvida alguma, que morrerei embreve’. E de fato sucedeu tudo quanto Zacharias Werner afirmou; morreu pou-cas semanas depois, se me não engano, depois da festa da epifania de 1823”.

Todos consideram típica essa aparição, mormente por causa dos três sím-bolos: o lírio representa a pureza virginal do Santo, jamais manchada com olabéu da culpa; o ramo de oliveira é o símbolo da paz interior, que gozava cons-tantemente, e dos trabalhos que empreendeu pela paz da Igreja e do mundo; apalma simboliza o martírio que suportou, à vida inteira, pela difusão da religiãoe da fé.

O Servo de Deus queria, com isso, preparar o seu amigo para o últimocombate e para a despedida deste mundo. Zacharias Werner morreu como umSanto, conforme as palavras de Bruner: “Werner sabia de antemão que se apro-ximava a sua dissolução, pois que a tuberculose já se lhe apoderara dos pul-mões; morreu e foi sepultado ao lado de seu amigo e mestre São Clemente.

Mais um fato desse gênero encontramo-lo no convento de Santa Úrsula.“No nosso convento, assim escrevem, tínhamos uma Irmã conversa muito pie-dosa, por nome Sebastiana, que edificava a todas com a sua vida exemplar. OPe. Clemente estimava-a também por causa de sua sincera e profunda pieda-de, e uma vez, gracejando, chegou até a dar-lhe o apelido de ‘Santa’. Ela, po-rém, protestou logo com delicadeza dizendo: ‘Quem sou eu? um vermezinhomiserável, — V. Revma. sim, converte grandes pecadores, batiza judeus, ensina

o povo, leva Nosso Senhora aos moribundos em suas casas, aconselha a ou-tros padres que façam o mesmo: é isso que santifica a gente’. Com sorriso noslábios disse Clemente, ‘agora fui eu que tomei’, e olhando para a Irmã acres-centou:: ‘Eu te ajudarei a morrer e te levarei ao céu’, ao que Sebastiana repli-cou: ‘Pois bem, quando eu morrer tomarei V. Revma. pela palavra’. Muitos anosdepois da morte do Servo de Deus, estava a Irmã Sebastiana em seu leito dedores; lembrando-se da promessa de Clemente invocou-o pedindo-lhe auxílio.Num dado momento prorrompe nas palavras: “o padre Clemente! o Pe. Cle-mente! o Pe. Clemente!” e expirou deixando estampada no rosto a tranqüilidadedos justos.

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CAPÍTULO XXVII

O bondoso TaumaturgoAs profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas voca-

ções — Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — Opadroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra da morte — Paralisia e trismo —Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta— Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatis-mo — Peritonite.

No decorrer desta biografia temos tido ocasião de apreciar diversos e estu-pendos milagres que Deus operou por meio do seu Servo. Clemente não eradesses Santos que brincavam com os milagres como v. g. um S. Geraldo, cujavida já era em si mesma uma maravilha do céu. A humildade sincera e profundade Clemente fazia-o fugir de tudo quanto pudesse dar na vista, e — feito omilagre — sabia disfarçá-lo com engenho e arte.

O leitor lembra-se ainda do ocorrido com a Irmã Jacoba, Ursulina, que porser muito doentia, temia ser expulsa do noviciado por inútil; Clemente, porém,com a maior convicção e firmeza afirmou-lhe que faria os votos religiosos, sara-ria e sobreviveria a muitas que tinham então as faces rosadas. Poucos diasantes da profissão a Irmã caiu novamente enferma; quiseram expulsá-la, Cle-mente porém disse com clareza: “Tu farás profissão, quando tiveres 28 anos deidade sararás e ficarás ainda uma bruaca velha”. A essa palavra a noviça foiaceita; dentre as Ursulinas foi ela uma das três que viveram até a época dabeatificação do Servo de Deus.

Vimos também como a comida se aumentava e multiplicava em suas mãos;muitos amigos do Santo contam isto com todos os pormenores.

O leitor não terá ainda esquecido o caso miraculoso, narrado pelo Dr. Veith,que longe de ser crédulo era conhecido como cético, explicando tudo de modonatural e humano. “Na casa de um dos amigos de Clemente reinava tristezainconsolável por causa da doença mortal de um dos filhos da casa, o meninoAfonso; tinha um ano de idade e já se achava frio, de cor cadavérica, inclinadosobre os joelhos da inconsolável mãe; o médico, depois de examinar a criança,não sabia outra prognose senão que à noite ela seria cadáver. Inesperadamen-te entra Clemente que sabia da amargura da família. A pobre mãe corre paraele desesperada, mostrando-lhe, entre prantos, o filhinho desenganado domédico. Clemente, porém, diz-lhe tranqüilamente: “Não é nada, não é nada;hoje à tarde a criança terá fome e comerá”; em seguida deu uma leve pancadinhana face da criança e virou-se para o outro lado apoiando-se no salto do sapato,o que costumava fazer em semelhantes ocasiões para desviar a atenção. A

predição do Servo de Deus realizou-se à risca.A uma senhora da sua amizade, que mostrava muito medo de perder seus

filhinhos, disse o Servo de Deus: “A senhora não perderá nenhum dos seusfilhos”, e de fato, ela morreu pouco tempo depois deixando viva toda a suaprole.

Um outro milagre de Clemente com meios tão insignificantes pôde conse-guir resultados tão extraordinários. Um jovem libertino entrando, uma vez, naigreja das Ursulinas, que se achava repleta de povo, maliciosamente foi abrindocaminho por entre o povo, para da frente melhor ver as mulheres e as moças.

Nesse mesmo instante Clemente ia com o Santíssimo da capela lateralpara a capela-mor, a cabeça inclinada segundo o seu costume; ao chegar pertodo moço lançou-lhe um olhar semelhante ao que Jesus lançou a Pedro no átrioda casa de Caifás; o rapaz não pôde resistir, e saiu desfeito em lágrimas dearrependimento. Bastava, por vezes, fitar energicamente as pessoas para lhesinfiltrar a fé. O seu olhar tinha um quê de extraordinário e indefinível.

Depois da sua morte o Servo de Deus não se esqueceu dos amigos edevotos. São inúmeros os favores e as graças que Deus tem operado por suaintercessão.

Em todos os transes difíceis da vida, em todas as amarguras, o Santo temmanifestado a força do seu braço, o poder que goza junto do Altíssimo. Para oaumento da nossa confiança em seu poder e bondade, citemos apenas algunsfavores obtidos por novenas, devoções e orações a ele feitas.

***

Protege nas vocações: Um jovem piedoso desejava ardentemente entrarna Congregação Redentorista, pois que se sentia chamado por Deus ao estadoreligioso, e ardia em desejos de pregar missões, converter os pecadores, tor-nar-se um apóstolo a exemplo de Jesus, que passou os três anos de sua vidapública a pregar e a doutrinar as massas. Ser Redentorista era o ideal da suavida, mas na realização dessa sua nobre aspiração encontrava a mais declara-da oposição dos pais e irmãos; fez o possível para convencer os seus; vendo,porém, que eram baldados os seus esforços, lembrou-se de São Clemente efez-lhe uma novena. Poucas semanas depois, sem que ele tornasse a insistir,os parentes inteiramente mudados em sua opinião, deram unanimemente oconsentimento para a sua entrada no convento. José Horny — assim se chama-va ele — entrou para a Congregação, onde, depois de trabalhar dezoito anos,faleceu santamente.

***

Em grande falta de recursos — achavam-se uma vez as duas irmãs Ana eRosalina Biringer, como nos conta uma delas: “Estávamos em grandes apuros;era preciso pagar o aluguel do quarto, o tempo urgia, e nós não tínhamos odinheiro necessário nem de quem tomá-lo emprestado. Subitamente veio-nos alembrança de invocar o Pe. Clemente, fazer-lhe uma visita à seu túmulo e exporas nossas necessidades. Fomos ao seu sepulcro, abrimos-lhe o nosso coração,

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lembrando-lhe que tínhamos sido suas filhas espir ituais e rogandoencarecidamente o seu socorro. Consoladas e cheias de esperança voltamospara a casa, e — ó milagre — já no dia seguinte recebemos uma carta queabsolutamente não esperávamos, e onde se lia: “Talvez as senhores precisemdo dinheiro que vai junto para o pagamento do aluguel”. Eram justamente oscinqüenta florins que faltaram para se inteirar a conta.

***

Mesmo em os negócios de cozinha tem-se implorado o auxílio de Clemen-te. Embora não sejam milagres, mas simples favores, mostram a grande confi-ança que os devotos depositam na proteção do bondoso Pe. Clemente, queajuda até em coisas pequenas e insignificantes.

Eram justamente passadas sete semanas depois da morte de Clemente;aproximava-se a festa do Sagrado Coração de Jesus, que naquele ano de 1820caiu no dia 9 de junho. Querendo a Superiora das Ursulinas, que suas súditascelebrassem essa festa também no refeitório, mandou que a cozinheira se es-forçasse por alegrar e contentar as irmãs apresentando-lhes alguma coisa es-pecial, não faltando a sopa de bolos de farinha, prato muito apreciado pelosvienenses. A cozinheira, que não era outra senão a Irmã Thadéa, fez o possível,mas debalde, justamente naquele dia nada lhe saia bem, nomeadamente osbolos que não queriam formar-se. A pobre cozinheira quase perdeu a cabeça;por fim lembrou-se do Pe. Clemente; ajoelhou-se na cozinha e rezou um PadreNosso com as palavras: “Pe. Clemente, agora é tempo de me valerdes, nãoconsigo nada hoje na cozinha”. Levantou-se e, daquele momento em diantetudo lhe correu às mil maravilhas. A Superiora durante a refeição chamou acozinheira ao refeitório — caso virgem no convento — e perguntou-lhe como éque conseguira preparar tão apetitosa refeição, ao que Thadéa respondeu: “Ah!hoje foi o Pe. Clemente que cozinhou!” As irmãs sorriram-se ao ouvirem o quese passara na cozinha. O mais curioso é que a comida preparada em porçãocostumada, apesar de repetidos os pratos por todas as irmãs, sobrou em gran-de quantidade, podendo ser servida também ao jantar.

Também com as Visitandinas deu-se um caso semelhante. A cozinheiraficou uma vez bastante incomodada com a fumaça que não queria absoluta-mente sair pela chaminé. No desespero invocou o Pe. Clemente, que lhe des-pertou uma lembrança singular: a de examinar, se talvez na parede houvesseuma outra chaminé; bate na parede que responde com um som oco; abrem-nae encontram uma outra chaminé, da qual não tinham conhecimento nem asirmãs mais idosas do convento; desde então a fumaça nunca mais molestou apobre cozinheira.

Caso semelhante deu-se no convento do Bom Pastor em Viterbo. A pragada fumaça era tal, que quase cegava as irmãs. Fizeram-se as possíveis repara-ções na chaminé, porém, debalde. Por acaso achava-se no convento uma Irmã,que mais de uma vez, experimentara de modo maravilhoso o valimento do Ser-vo de Deus; invocou-o com grande confiança, pendurando a imagem de Cle-mente ao lado de fora da chaminé, e incontinenti a ordem estava restabelecida:a fumaça encontrou o caminho para fora sem ser necessário outro expediente.

Favores semelhantes contam-se aos milhares, mormente em Viena, ondese conhecia bem a bondade proverbial do Pe. Clemente Maria Hofbauer. Ora éum operário que procura trabalho, ora um rapaz que procura colocação, orauma professora que deseja uma cadeira etc etc. etc.

Todavia existem ainda sinais mais estupendos e extraordinários, que mos-tram o poder e a força do valimento do nosso Santo junto de Deus.

***

O padroeiro dos enfermos. O primeiro e principal depoente no processo debeatificação do Pe. Clemente declara: “A cura da pequena baronesa Ignez Fiathcausou grande sensação, dando muito que falar em Viena; também em Pragaocuparam-se pormenorizadamente do fato sem nenhuma contestação.

Ignez Fiath, filha de um conhecido barão húngaro, vivia desde 1863 noinstituto das Visitandinas em Viena. Adoecendo por ocasião da festa de Natal foirecolhida à enfermaria. No exame o médico verificou uma úlcera e pequenasferidas na região inguinal; as feridas desapareceram, mas as dores localiza-ram-se nas pernas e nos joelhos, de sorte que a menina andava só com muitadificuldade, manquejando por não poder levantar, sem grande esforço, o péesquerdo; já no ano anterior havia ela sentido semelhantes dores em casa, aocair dentro de um valo, que queria atravessar de um salto; as dores da pernaesquerda aumentavam-se dia a dia. O médico da casa consultou o célebre ci-rurgião Dr. Schuh, que declarou temer um resultado mau caso não desapare-cessem as dores no prazo de três semanas mediante repouso absoluto, com-pressas de água fria e homeopáticas doses de ferro carbônico. Pouco depois foiconsultado também o célebre homeopata Dr. Fleischmann. Já o fato de se reu-nirem para a consulta três tão abalizados médicos, mostra a gravidade do caso.

Os doutores mandaram que a menina tentasse caminhar um pouco, masas dores tornaram-se horríveis. Prescreveram novamente repouso absoluto, everificaram inflamações nas juntas. Em lugar do ferro carbônico receitarambeladona e prescreveram banhos quentes com sal de ossos.

Entretanto o pé virava-se todo para fora; não havia dúvida, formara-se acoxalgia.

A 5 de fevereiro de 1864 — uma sexta-feira — levaram a pequena ao ba-nho, do qual saiu quase morta. Nesse mesmo dia Ignez começou uma novenacom as outras meninas em louvor do Pe. Clemente, cuja relíquia a pequenaconservava junto ao leito.

Até domingo ao meio-dia ainda não se notara na enferma melhora alguma,porém, nesse mesmo dia à tarde, 7 de fevereiro, Ignez sentiu que se podiamover sem dor.

Em chegando a enfermeira a pequena baronesa declarou que estava cura-da, pôs-se em pé, e como não lhe permitissem levantar-se, andou sobre o leitoe saltou de contente não sentindo dor alguma.

Na manhã seguinte ninguém a pôde reter na cama, levantou-se... e quandoa viram caminhar exclamaram estupefatos: “Milagre, milagre!” Nesse mesmodia o médico examinou a menina e verificou que estava completamente curada,e declarou a um Padre Redentorista, que nem o melhor remédio do mundo

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poderia operar aquela cura em tão curto espaço de tempo. A cura foi radial eduradoura. Esse acontecimento causou enorme sensação; a própria ImperatrizCarolina Augusta foi ao convento das Visitandinas para ver a pequena barone-sa; o mesmo fez também o Núncio Apostólico. Esse milagre foi examinado eaprovado para a beatificação do Servo de Deus.

***

Livra da morte. Maria Hofmann, senhora de seus 40 anos, casada, mãe deonze filhos, tinha de sujeitar-se aos mais pesados e rudes trabalhos para asustentação dos seus. Caindo gravemente doente foi recolhida ao hospital;munida de sólida piedade a enferma, embora atacada de dores agudas, nãodava o menor sinal de impaciência. A hérnia, que a pobre senhora padecia,teimava em não admitir cura; por isso o médico a enviou ao hospital sem espe-rança alguma. Passados 12 anos a pobre mulher ainda sofria sem alívio; eranecessária uma operação, mas os médicos não a queriam fazer devido ao adi-antado da enfermidade. No hospital ninguém contava com a cura da senhora,que tinha ainda contra si a idade avançada de 52 anos, entretanto os médicos eas enfermeiras tentaram o possível. A enferma vomitava constantemente nãoretendo alimento algum no estômago; no 5.º dia declarou-se a cólica ilíaca, e namanhã seguinte apareceu a inflamação. À noite, como o caso era desesperado,um dos médicos chamados à última hora, perguntou-lhe se não queria ser ope-rada; a mãe lembrando-se dos seus filhinhos que necessitavam dela, subme-teu-se de boa vontade e resignada à vontade de Deus; preparou-se tudo para aoperação. No dia destinado à operação, chegou a ela, de manhã, uma Irmã,contou-lhe o milagre operado pelo Pe. Clemente no convento das Visitandinas,e perguntou, se não queria também experimentar a intercessão do bondosoSanto; a senhora naturalmente anuiu prometendo uma novena ao Pe. Clemen-te; as pessoas presentes acompanharam-na na recitação dos 9 Padres Nossose do Credo. Essa boa conselheira era a primeira das enfermeiras, em cujo quar-to se faziam quase todas as operações; lá estava pendurado um quadro doSanto. Ao chegarem os médicos tentaram mais uma vez empurrar para dentroa hérnia, porém debalde. “Corri, diz a enfermeira que narra o fato, e trouxe umpano; ao chegar notei que a ruptura estava completamente mole e ouvi umruído coo se despejasse água de uma garrafa, e num instante a hérnia estavafechada; apalpei o lugar da ruptura, e não encontrando vestígio algum do malexclamei: “São Clemente valeu”. Os médicos abanaram a cabeça, não sabendoo que dizer em tal circunstância. Um católico, Dr. Lervinsky, contentou-se emdizer “Isto é milagre”. A enferma afirmou não sentir mais dor alguma e pediu decomer, levantando-se em seguida. Essa cura deu-se de manhã, quando a ope-ração devia ser feita à tarde. Esse milagre foi examinado e aprovado no proces-so de beatificação.

***

Paralisia e trismo. Ana Berger, curada miraculosamente pelo Santo, contao fato do modo seguinte: “Sou de constituição bastante forte e de natural alegre

mesmo nos sofrimentos; até a idade de 13 anos fui forte e sacudida; dessaidade em diante comecei a vomitar sangue; aos 17 anos sofri convulsões horrí-veis de sorte que quatro homens não me podiam segurar nessas ocasiões;para isso era bastante um susto, um barulho, uma surpresa. Os médicos verifi-caram que a minha doença provinha da inflamação da espinha dorsal e pres-creveram-me sangrias, sanguessugas etc., que me proporcionaram certo alí-vio, mas me enfraqueceram consideravelmente, obrigando-me a guardar o leitomuitas vezes. Em 1844 estive dez semanas no hospital de Linz. A 2 de fevereiroa fraqueza me fez perder os sentidos, e dois dias depois, para cúmulo de infeli-cidade, sobreveio-me o trismo, os lábios separaram-se-me com violência, fican-do os dentes cerrados; não recebia então alimentação alguma a não ser umpouco de sopa pelo vão dos dois dentes da frente. Perdi completamente a fala.Dai por diante ia de mal a pior. Na idade de 32 anos tive uma forte hemorragiaque me paralisou o pé esquerdo; pouco depois fui atacada de inflamação intes-tinal, que me causou dores indizíveis; os remédios acalmaram as dores, masconservaram-me no leito, onde me não pude mover; pelo corpo todo espalhou-se um tumor em extremo doloroso. Nesse estado miserável, fizeram-me a san-gria que não deu resultado, porque o sangue não correu, o braço direito entor-peceu completamente. Esse estado durou um ano inteiro, pelo que os médicosme desenganaram, declarando incurável a minha enfermidade. Resolvi entãorecorrer ao céu, lembrei-me da Santíssima Virgem prometendo uma romaria aseu Santuário de Schmolln, e manifestei essa minha promessa a um PadreRedentorista, que me aconselhou dirigir-me primeiro com uma novena ao Pe.Clemente, para poder depois, com saúde, fazer a romaria prometida; e ele tinharazão. Fiz a novena com toda a confiança; no oitava dia fiquei completamentesã, levantei-me e a pé fui visitar o meu Diretor espiritual, que morava numadistância de cinco quartos de hora e voltei, também a pé, sem maior novidade;dias depois fui a Schmolln, andando dez horas a pé; a voz voltou-me tambémcom a mesma força de outrora. Oh! como sou grata ao Pe. Clemente! os médi-cos todos afirmaram que minha cura foi um verdadeiro milagre!

***

Clorose complicado. A condessa Ana Maria, Visitandina, conta o milagreseguinte: “Aloísia, filha do conde Adam Revicky da Hungria, era alta, porém denatureza franzina, professou no convento da Visitação, sendo em seguida no-meada professora no Instituto. Por causa da sua constituição fraca sofria muitoa neo-professa, sendo necessário poupá-la o mais possível, e atender a seutemperamento melancólico. Desde a profissão a Irmã começou a definhar aolhos vistos; parecia atacada da tuberculose acompanhada de horríveis doresde cabeça e asma tão declarada, que quase não podia andar; além disso sofriafastio e insônia. Incapaz de qualquer serviço na comunidade, tinha a certeza deuma morte prematura, lamentando só não haver prestado nenhum serviço àOrdem em que professara. Embora tratada por um bom médico, não apresenta-va melhoras de qualidade alguma. Sem esperança da terra, a pobre neo-pro-fessa lembrou-se do Pe. Clemente. Invocou-o e começou em seu louvor umanovena de três Ave-Marias e Gloria Patri, levando ao peito uma relíquia do cai-

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xão em que foi sepultado o Santo. Pelo fim da novena, durante a meditação,Aloísia sentiu-se animada de uma nova vida, embora nos dias anteriores não setivesse manifestado nenhum sinal de melhora nem alívio. Levantou-se comple-tamente forte, tornou-se uma das mais laboriosas no convento, cantando sem-pre com voz estentórica, quando preciso; desde então nunca mais encontroudificuldade nos trabalhos da comunidade. Coisas que nunca conseguira fazerem sua vida, executa-as agora com a maior facilidade; lava roupas horas ehoras a fio, e imediatamente depois canta no coro ou dá aulas às meninas”.

***

Hidropisia. Demos também aqui a palavra à testemunha jurada: “Um talVicente Felber de seus 23 anos, solteiro, contraiu a moléstia hidropisia em con-seqüência da qual se inflamou o peito de forma a não permitir-lhe a respiração;a moléstia não tardou a difundir-se por todo o corpo. Tão assustadoras foram asproporções tomadas pela enfermidade, que os médicos aconselharam a imedi-ata recepção dos últimos sacramentos; o especialista chamado na ocasião,examinou o doente e depois de um diagnóstico, que parecia exatíssimo, recei-tou um remédio que não produziu efeito. Apareceram umas manchas na regiãoestomacal, que começaram logo a gangrenar. Em vista disso o especialista nãodava ao doente mais de dois dias de vida. Nessa situação desesperada, em quea medicina humana o desamparava condenando-o à morte, o enfermo lem-brou-se do Pe. Clemente, pendurou ao pescoço uma relíquia do Santo e com aIrmã começou uma novena ao grande amigo dos doentes. Já depois do primei-ro dia da novena, viu em sonho o Santo que o abençoava derramando um pósobre ele; ao acordar sentiu-se muito melhor, podendo respirar com facilidade;depois de três dias tornou a ver São Clemente em sonho; desta vez o Santodespejou água sobre ele; ao acordar percebeu que a hidropisia tinha cedido, aágua escorria com presteza enchendo diariamente quatro vasos, apresentandosempre cor diversa, sem que o médico soubesse dar a isso explicação. No fimda novena a hidropisia estava completamente curada.

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Tumores perigosos. Adelia Hennlein, aluna do colégio da Visitação, levouuma queda no pavimento do corredor, e em conseqüência viu formar-se umtumor no joelho direito. O médico, depois de examinar a menina, verificou que aferida, embora não fosse perigosa, requeria tempo para se fechar e teria porconseqüência a debilidade natural do joelho. Aplicaram compressas frias comarnica e certas fricções que hoje já não se conhecem. A pobre menina teve deguardar o leito, pois que lhe não era possível dar um passo sem sentir doresagudas. Como a pequena piorava dia a dia, a Superiora do colégio mandou-lhefazer uma novena ao Pe. Clemente, colocou-lhe perto do leito um quadro doServo de Deus com uma relíquia da sua batina; durante a novena a enfermida-de não cedeu e os remédios aplicados não produziram resultado algum. Noúltimo dia, porém, quando a pequena acordou de manhã, percebeu que ostumores e as dores haviam desaparecido; estava completamente curada , sem

que na véspera se tivesse dado crise alguma para a melhora. O Dr. Eichhorn,quando, no dia seguinte, viu a menina andar e correr sem empecilho, ficouadmiradíssimo e reconhecendo que aquilo só se poderia dar por um milagre,exclamou: “Com certeza tornastes a invocar o Pe. Clemente”. A enferma, cujotio era inteiramente descrente, recebeu deste uma visita poucos dias antes dese operar miraculosamente a cura; vendo ele que a menina estava curada tãorepentinamente, exclamou: “Isto é realmente um milagre e ninguém me conven-cerá do contrário, porque eu mesmo o vi com os meus olhos”. Desde essaocasião a família toda, cheia de gratidão, consagrou devoção e amor ao Servode Deus.

Uma Irmã conversa do convento da Visitação lesou a mão direita numalâmina de ferro; tomando aquilo por um ferimento insignificante não se medicoucomo devia; à tarde, porém, começou a sentir dores agudas e a noite inteirapassou sentada no leito sem poder conciliar o sonho, devido à veemência dasdores; na manhã seguinte formou-se na mão inflamada um tumor de mau cará-ter, que crescia a todo o instante, não permitindo à Irmã nenhum movimentocom o braço. O médico declarou, que o mal era um extremo perigoso, e temeuuma periostite, sendo então necessária a operação, prescreveu uns ungüentosque nenhum alívio proporcionaram. Vendo que a enferma sofria horrivelmente,entre gemidos e suspiros disse-lhe uma Irmã: “Porque é que te não serves darelíquia do Pe. Clemente? ele te valerá”. A enferma tomou a relíquia, mas tam-bém os ungüentos, porém, sem alívio algum até às 6 horas da tarde.

Quase no desespero lançou fora os ungüentos, invocou o Servo de Deus eas dores desapareceram como por encanto. No dia seguinte não havia nem dornem tumor, mas só uma pequena mancha vermelha que se mostrava no lugarda antiga ferida.

***

Dores de garganta. Foi no dia de Nossa Senhora das Candeias de 1862que se operou o seguinte milagre: A senhora Josefa Dallinger, que há oito anossofria fortes dores de garganta, sentiu formarem-se-lhe no céu da boca tumo-res que se transformaram em cárie. Várias vezes foi necessário arrancar peda-ços de ossos com grande perigo de ela morrer sufocada; o mal agravou-setanto que a pobre senhora não pôde mais tomar alimento de qualidade alguma.A conselho do seu confessor fez uma novena a São Clemente e mandou dizeruma missa. O dia 2 de fevereiro era justamente o terceiro dia da novena; e aenferma, sem aplicar remédio algum, ficou repentinamente livre das dores e daenfermidade, levantou-se curada, não deixando a doença nenhum vestígio desua passagem.

***

Artrite. O Pe. Pilat narra, sob juramento, que na França em Boulogne surMer, uma Irmã da Congregação de São José sofria desesperadamente de artri-te; depois de aplicar, em vão, todos os medicamentos conhecidos da ciênciahumana, recorreu ao Servo de Deus com uma novena que terminou justamente

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no dia 15 de março, aniversário da morte do Santo; o que os meios humanosnão puderam conseguir, conseguio-o a devoção e a invocação do Servo deDeus. A Irmã no fim da novena estava completamente restabelecida, sem re-médio especial.

***

Manquejava a pobre Catarina, menina de oito anos, desde a procissão dafesta do Corpo de Deus. O defeito passou de um pé para o outro ficando apequena impossibilitada de caminhar; foi-lhe forçoso guardar o leito. As pernasinflamaram-se por cima dos joelhos e viraram-se, um pouco, para trás; o péesquerdo, pela contração dos nervos, ficou mais curto do que o outro, e o que éainda pior, a menina gritava de dor que fazia pena. Não consultaram nenhummédico, porque os escassos recursos, de que dispunham, não davam para isso.Ouvindo falar de um curador por nome Bauer, os pais levaram-lhe a meninacom indizíveis dificuldades. Depois de lhe dar um ungüento para esfregar e umpó para tomar, o tal curador prometeu aos pais que a menina havia de sarar,contanto que cada dia rezassem durante a aplicação do remédio 5 Padre-Nos-sos a Jesus padecente. Os pais não rezaram essas orações, porque durante africção a menina gritava que cortava o coração. A mãe esfregou o ungüento portodo o corpo, porque todo ele estava dolorido, porém debalde. Alguns dias de-pois a menina estende os braços e os pés e ouve um estalo no corpo. Assusta-da pergunta-lhe a mãe: “Catarina que tens?” ao que a menina respondeu: “Ma-mãe, estou boa, não sinto dor nenhuma, quero levantar-me”. Meia hora depoisapareceu o pai, e como de costume ia já perguntar pelo estado da filha, quandoa mãe, fora de si de contentamento, lhe cortou a palavra contando-lhe o ocorri-do. O pai exclamou: “Louvado seja Deus, foram atendidas as minhas súplicas,há meia hora estive junto ao túmulo do Pe. Clemente pedindo pela menina”. Nodia seguinte a pequena continuou a freqüentar a escola.

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Varizes. A costureira Madalena Kunz sofria varizes no pé esquerdo, haviajá 26 anos. Em agosto de 1862 pela acumulação do sangue as veias rebenta-ram por dentro. Os médicos examinaram a paciente e verificaram o perigo devida. Chamaram um especialista da Universidade, o qual declarou incurável omal por o sangue já se haver espalhado pelo interior do corpo, mas assim mes-mo prescreveu compressas frias e repouso absoluto para os pés, porém debal-de, as dores tornaram-se sempre mais agudas. No auge da dor a enferma,desiludida do poder humano, lembrou-se do bondoso Pe. Clemente; começouuma novena, rezando cada dia 9 Padre Nossos e Gloria Patri, com a promessade ir em romaria ao cemitério, onde o Servo de Deus se achava sepultado e delhe adornar o túmulo. Já no primeiro dia da novena a costureira começou aexperimentar sensíveis melhoras, e no último dia estava completamente cura-da. Cumpriu sua promessa indo a pé quatro horas de caminho até Enzersdorf evoltando no mesmo dia.

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Hemorragia. Em Roma no convento do Bom Pastor, achava-se no novicia-do uma donzela por nome Maria, que havia um ano, sofria hemorragia muitoforte, que a enfraquecera a ponto de não poder mais subir as escadas do con-vento. A pobre noviça estava já lívida e pálida como a cera; embora a Mestra denoviças a estimasse sobremaneira por causa das suas muitas e grandes habi-lidades e profunda piedade, declarou, que a donzela não podia continuar nonoviciado, visto não haver remédio que desse esperança de estancar o mal.Como a noviça desejasse ardentemente unir-se a seu divino Esposo pelos san-tos votos religiosos, o confessor aconselhou-lhe uma novena a São Clemente,dando-lhe uma estampa com uma relíquia do caixão do Santo. A noviça come-çou a novena, sendo atendida imediatamente; em poucos dias restabeleceu-secompletamente e as suas faces tornaram-se rosadas; o que é mais admirávelainda, nunca mais recaiu na antiga enfermidade. Desde essa ocasião consa-grou a mais sincera devoção a seu insigne Benfeitor.

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Escrófulas. A menina Maria Assumpta Vanini sofria escrófulas, que se ma-nifestavam de diversos modos; às vezes inflamavam-se-lhe as amígdalas, ou-tras vezes apareciam tumores pelo corpo inteiro, sobretudo o joelho esquerdoinflamava-se muito e supurava. Aparecendo por fim a cárie, o médico assisten-te, Dr. Ignacio Greco, desenganou-a declarando, por escrito, que o mal era incu-rável. Levada a Roma, recebeu do seu confessor uma estampa e uma relíquiado Servo de Deus, em cujo louvor começou uma novena. Em poucos dias, semoutro medicamento, a pequena sarou completamente.

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Antroflogose, isto é inflamação das juntas. No Instituto das Irmãs deVöklabruck na Áustria, uma empregada por nome Eva estava sendo atormenta-da, desde há muito, por tumores no joelho, que os médicos diagnosticaram deantroflogose reumática crônica. O joelho contraiu-se tanto que só as pontas dosdedos podiam tocar o chão; além disso o pé inchara-se todo tornando doloridoo corpo inteiro. Essa enfermidade é impertinente, cura-se raramente e só de-pois de muito tempo. Já havia sete meses que a pobrezinha gemia sem espe-rança alguma de cura, não obstante os esforços e a boa vontade dos médicos.Desesperada, por fim, dos socorros humanos, começou Eva uma novena aoServo de Deus, que sempre foi o protetor dos pobres e enfermos. Já antes determiná-la, a empregada ficou completamente curada, podendo sem dificulda-des fazer os seus trabalhos costumados.

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Reumatismo. Uma senhora de 67 anos, chamada Madalena, sofria reuma-tismo agudo, havia já dois anos, no braço esquerdo, que pela violência da dor

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se havia curvado, impossibilitando-a de trabalhar. Essa senhora idosa foi tãoinfeliz que, ao entrar um dia em casa, levou uma queda desastrada na escada,quebrando-se o braço que ficou preso ao corpo somente pela pele e pela poucacarne que ainda restava. Chamaram o cirurgião, que em vista da avançadaidade da senhora declarou impossível uma cura em regra. Tentou porém o pos-sível, foi nada menos de trinta e duas vezes à residência da enferma sem toda-via conseguir resultado algum. Como essa senhora conhecera pessoalmente oPe. Clemente e duas vezes se reconciliara com ele na ausência do seu confes-sor ordinário, invocou com confiança o seu auxílio e começou em seu louvoruma novena, colocando a relíquia do seu caixão sobre o lugar dolorido. Durantea novena o braço ficou completamente curado. A fratura e o reumatismo desa-pareceram de uma vez para sempre, deixando no coração da anciã o maisprofundo sentimento de gratidão para com seu insigne Benfeitor.

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Peritonite e parto difícil. A senhora Maria Hofbauer sentia sempre doresatrozes por ocasião do parto; no último recebera até os sacramentos dos mori-bundos. Já de há sete meses estava ela em estado interessante quando sobre-veio a peritonite, que a deixou sem movimento e sem esperança de salvação. Omédico, a parteira e todos os que a conheciam, contavam certo com a morte dapadecente. Depois de empregar todos os recursos humanos a seu alcance,desamparada pela medicina, pediu conselho a seu pai espiritual que lhe apon-tou o grande amigo dos doentes, cujo coração se sacrificara tantas vezes paranão ver ninguém padecer; aconselhou-a fazer uma novena ao Pe. Clemente,dando-lhe uma relíquia do Servo de Deus. Tão grande foi a sua fé e a suaconfiança ao começar a novena, que deixou de lado todos os remédios. E —coisa estupenda — o seu estado foi melhorando dia a dia, e depois de catorzedias já pôde ir trabalhar com os seus na colheita do trigo; teve, a seu tempo, umparto muito feliz, o mais feliz de toda sua vida conjugal, não sendo preciso, paraele, nem sequer chamar a parteira, que habitava a casa contígua à da parturi-ente.

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Fraturou um braço. Num dos conventos das Elisabetinas na Áustria umadonzela de 22 anos de idade, por nome Francisca, tendo de pregar na paredeum quadro um tanto pesado, caiu desastradamente rolando pela escada e le-sando o cotovelo do braço direito. O médico julgou tratar-se apenas dumadeslocação do osso, mas não, tardou a descobrir que havia fraturação do braço.Um mês depois a moça foi levada a Viena, onde os médicos julgaram necessá-rio proceder à operação para a extração de umas lascas de osso. Feita a opera-ção sobreveio uma febre fortíssima apesar das unções, fricções, compressasetc.; o braço ficou amortecido, imóvel, insensível e a chaga não se cicatrizou.Para as necessárias sensações no braço foram empregadas ondas elétricas,porém debalde. Em vista de tudo isso os médicos deram o caso por perdido,ainda mais que na operação foram cortados os nervos. No hospital, o médico,

ouvindo suas lamentações e gemidos, disse-lhe com clareza: “Mesmo que eucaísse do céu, não a poderia curar, pois que tirado, uma vez, o nervo eu não opoderei repor”. Para a convencer da insensibilidade completa do médico intro-duziu uma agulho do dedo até o cotovelo, sem que a enferma tivesse a menorsensação de dor. Francisca teve um sonho, pareceu-lhe estar ajoelhada dianteda imagem da Virgem Santíssima em atitude de súplica, e pedia que lhe restitu-ísse a saúde, mas a Virgem parecia dizer-lhe: “Não precisas que eu te cure,porque tens um Santo que te pode valer, vai ter com o teu confessor, pede-lheuma relíquia e faze a oração”. No dia seguinte contou o sonho a seu confessor,que lhe deu uma relíquia do Pe. Clemente e a 12 de dezembro de 1876 come-çou a novena depois de afixar a relíquia do Servo de Deus sobre o braço; já noquarto dia da novena sentiu entrar-lhe no braço uma vida nova, pôde movê-lo,levantá-lo e dai a poucos dias até erguer pesos consideráveis. No cotovelo,donde extraíram as três lascas de osso, notava-se um vácuo qualquer, mas achaga estava curada e o braço direito tornara-se tão forte como o esquerdo.

Milhares de casos semelhantes, verdadeiros milagres operados pela invo-cação devota de São Clemente e pelo uso das suas relíquias, poderiam aquiser alegados e descritos com todos os pormenores para a edificação dos leito-res. Bastam, porém, os que aqui deixamos descritos para moverem os cora-ções dos brasileiros e dos que nesta terra hospitaleira procuraram um torrãoamigo, e invocaram com devoção e confiança o grande taumaturgo nas suasnecessidades corporais e espirituais, merecendo assim sua valiosa proteção.Cada um que ler estas linhas, experimente em suas dificuldades o poder e abondade de São Clemente, o humilde e operoso Redentorista, e procure imitaras suas virtudes consumadas. São Clemente tem valido a todos indistintamen-te, a moços e velhos, a ricos e pobres, a seculares e a religiosos, a casados esolteiros, a homens e mulheres; e se os favores concedidos pelo Santo têm sidomais numerosos para as mulheres do que para os homens, não se atribua istoao pouco amor de Clemente aos homens, mas só ao fato de que, em geral, asmulheres tem mais piedade e mais confiança no poder de Deus e da religião. Ocontrário poderíamos esperar do Santo que, como temos visto em sua vida,trabalhava indefesamente de preferência para os homens, consagrava sua vidaaos moços e aos meninos abandonados. O nosso desejo é ver os homens,espíritos fortes, agrupados ao redor da imagem do grande São Clemente, queé o Santo da fé prática, o defensor da religião, que deve entusiasmar os homenstodos da nossa Pátria.

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Alguns axiomas aconselhados pelo Santo

1. Ao entrar ou sair de casa, ao levar algum objeto de um quarto ao outro,faça-se sempre a boa intenção, tudo depende dela; por uma boa intenção atéas coisas mais insignificantes tornam-se grandes diante de Deus.

2. Depois da queda original, o homem é imensamente mais feliz do queantes dela; por Jesus Cristo ele conseguiu direito sobre o próprio Deus, que lhepertence. Por isso canta a Igreja: “Ó culpa feliz de Adão!” Os anjos do céu admi-ram os homens, que revestiram da sua carne o próprio Deus, e ter-lhes-iaminveja, se isso não repugnasse a sua natureza. Se Satanás tivesse podido su-por que Deus salvaria o homem por um milagre tão espantoso, não teria tenta-do a Adão.

3. Procuremos em todas as coisas agradar só a Deus; é bom tudo quantofazemos por Deus.

4. Para baixo rola a pedra facilmente, para cima só com trabalho se leva.5. Quem observa as coisas pequenas na vida espiritual, em breve se torna

perfeito; muitos gostariam de executar coisas maravilhosas e sensacionais, edesprezam as coisas insignificantes quem despreza as coisas pequenas não édigno das grandes.

6. Se os Santos pudessem sentir arrependimento no céu, tê-lo-iam por nãohaverem aproveitado mais da fonte inesgotável dos méritos de Jesus Cristo.Santa Teresa apareceu um dia a uma das suas religiosas e afirmou-lhe quecom gosto suportaria todas as penas dos mártires até o dia do juízo final, sepudesse aumentar no céu a sua glória o quanto corresponde ao merecimentode uma Ave Maria.

7. Quem julga ter caído, humilhe-se diante de Deus, peça perdão e conti-nue tranqüilo; os nossos defeitos devem conservar-nos humildes, não pusilâni-mes.

8. Com sua morte dolorosa Jesus nos quis remir e prestar satisfação tãocopiosa, a fim de nos mostrar o excesso do seu amor, pois que nos ama comcaridade eterna. Deus não pôde fazer mais do que fez para salvar o homem, etodos os condenados deverão confessar que se perderam por própria culpa.

9. Na oração devemos ser como os judeus ao construírem os muros deJerusalém: ter a espada em uma das mãos e a trolha na outra.

10. Para se conseguir a santidade, o melhor meio é lançar-se, como umapedra, no oceano da vontade divina, e como uma bola deixar-se jogar por Deussegundo a sua vontade.

11. Os maus pensamentos devemos compará-los a uma folha que cai, ou auma mulher que grita: não nos incomodar nem deter-nos neles, caminhar semlhes ligar importância: eis o nosso dever.

12. A graça divina não pode ser forçada, tudo deve ser feito com mansidão;a Mãe divina sofreu mais do que todos os mártires e entretanto permaneceusempre tranqüila e serena.

13. No momento da morte haveremos de ver o que fizemos, falamos, pen-samos, e o que poderíamos ter feito, falado e pensado, se tivéssemoscorrespondido à graça; veremos quais os efeitos causados aos outros por nos-sas palavras e obras; mesmo nas nossas próprias ações boas seremos julga-

dos pela intenção com que as fizemos. “Examinarei Sião com tochas e Jerusa-lém com lanternas”.

14. É sempre bom fazer alguma pequena mortificação, porém oportuna-mente e sem coação; gosto de ver alguma coisa, não me deterei nela, sintoprazer em alguma comida, tomarei uma garrafa menos e pronto.

15. A tristeza é nociva ao corpo e à alma; não presta para nada.16. Ninguém se esforce demais para ter sempre a intenção mais perfeita;

faça-a de manhã do melhor modo possível; e ponha-se a trabalhar sem preocu-pações, como uma criança que anda sossegada o seu caminho até encontraralgum empecilho — só então é que grita por sua mãe. Deus mesmo nos dará osmeios de avançarmos na perfeição se o quiser.

17. Devemos tratar com Deus como uma criança com sua mãe.18. No púlpito é preciso derrubar, com força, as nozes e no confessionário,

colhê-las com vagar e calma.19. Não permaneças sem temos por causa dos pecados perdoados; os

pensamentos que nos causaram a queda podem voltar facilmente; o hábitodeu-lhes grande força sobre nós; se lhes dermos inteiro consentimento teremosfeito no pensamento o mesmo pecado como outrora na ação.

Caminhemos com prudência porque levamos um tesouro em vasos frá-geis.

20. Devemos imprimir-nos profundamente a Paixão de Nosso Senhor; de-pois da comunhão e da missa, não pode haver para nós devoção mais útil doque essa meditação, que nos mostra o valor da alma humana, e nos convida asantificar-nos. Façamos isto sempre com calma, como quando pensamos emum amigo ou em um prado sorridente e verde.

21. Quando Satanás tentou a Jesus não sabia ser Ele o Filho de Deus; issosó ficou sabendo quando Jesus expirou na cruz; todavia reconheceu em Jesusum homem que antes nunca vira, sem pecado e imperfeições; e começou atemer que Ele fosse talvez o Messias prometido, mas em seu orgulho não pôdecapacitar-se de que o humilde filho do carpinteiro, que trabalhava até cansar-sena sujeição completa a Maria e a José, pudesse ser o Filho de Deus. Satanás émais prudente do que todos os homens, sabe e compreende tudo menos ahumildade e a obediência.

22. A todo o instante celebram-se missas no universo; uma única missaseria suficiente para remir mil mundos e esvaziar o inferno, se pudesse seroferecida pelos condenados; até a própria morte de Jesus teria sido desneces-sária, se antes dela pudesse ser oferecido esse sacrifício augustíssimo dosnossos altares; todos os que se acham na amizade de Deus tornam-se partici-pantes de todas as missas, e com elas, de todos os merecimentos de JesusCristo.

23. O mundo existe por causa dos eleitos; os maus são os instrumentos deque Deus se serve para provar e purificar os bons.

24. Deus não precisa de ninguém. — Louvor se dá somente às crianças eaos loucos; podem os homens louvar-nos ou censurar-nos; por isso não fica-mos nem melhores nem piores diante de Deus.

25. Nunca nos será lícito expor-nos ao perigo de pecar mortalmente, mes-mo que com isso pudéssemos despovoar o inferno e salvar o mundo inteiro.

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26. Se virmos as ruas regurgitar de povo, lembremo-nos do rumor das ruasde Jerusalém, no momento em que Jesus foi arrastado ao palácio de Pilatos ouHerodes.

27. É melhor que se fale com Deus do pecador, do que de Deus com opecador.

28. Deus não necessita da nossa adoração e do nosso serviço, mas nósprecisamos de Deus.

29. Todas as criaturas foram feitas por causa do homem, o homem só paraDeus.

CAPÍTULO XXVIII

Na memória da Congregaçãoe da IgrejaAs reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Atividade do Pe.

Passerat — Difusão da Congregação — A província do Rio — A província de S.Paulo — Aparecida, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira —Quadro sinótico.

A morte de Clemente causou impressão profunda em todos os que conhe-ciam os seus trabalhos e a significação e importância da sua atividade para asua terra natal, e em geral para a Santa Igreja. Sebastião Job terminava umcurso de retiro espiritual às irmãs da Visitação no dia em que se realizou osepultamento de Clemente. Na alocução final admoestou as religiosas a quepedissem ao Senhor, se dignasse mandar operários à sua vinha..., “pois queontem — disse — o Senhor nos fez passar por uma dura provação tirando-noso Apóstolo de Viena, a coluna da nossa diocese”.

Ao receber a notícia do passamento de Clemente o Imperador exclamou:“Isto é duplamente doloroso para mim e meu povo, bem como para toda a cris-tandade, porque ele era a coluna da Igreja”.

Depois da morte do Mestre, os discípulos agruparam-se ao redor deMadlener, amigo e confidente de Clemente, que o estimava por seu caráterfranco e resoluto, por sua piedade esclarecida, por sua formação intelectual epor sua energia prudente. As reuniões dos moços continuavam como dantes nacasa de Madlener, e depois na residência de Darnaut, capelão imperial, que seedificou sobremaneira com o bom espírito que reinava entre aqueles jovens,formados na escola de São Clemente.

No princípio temeu-se pela Congregação, porque o decreto imperial visavaum favor pessoal ao Pe. Clemente; felizmente esse temor logo desapareceu poruma declaração autêntica do Monarca que mostrava vivo interesse pela pros-peridade da Congregação a que pertencera Clemente, e à qual queriam per-tencer tão distintos jovens. Com permissão imperial 32 apresentaram seus no-mes para o começo do noviciado: 9 coadjutores, 15 teólogos, quase todos for-mados em jurisprudência, medicina etc., 1 estudante de filosofia, 3 funcionáriospúblicos, 1 oficial e 3 operários.

No sábado de Pentecostes, que esse ano caiu a 19 de maio, devia come-çar o noviciado; como a residência oferecida pelo Imperador ainda não se acha-va ultimada, os Padres Franciscanos cederam parte do seu convento para seinstalar provisoriamente a nascente comunidade redentorista. Os primeiros 6

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noviços entraram como candidatos; dias depois o Pe. Martinho, devidamenteautorizado pelo Superior Geral, deu o hábito provisório aos noviços, pois que onoviciado começou propriamente a 2 de agosto, que é o dia do Santo Fundador.O Pe. Martinho escreveu ao Pe. Passerat que se achava ainda na Suíça: “... Osnossos noviços são humildes, obedientes e piedosos, mostram muito amor eafeição à Congregação, de modo a servirem de modelo a qualquer Redentoristamais velho; Deus recompense ao nosso querido Pai todos os seus trabalhos eesforços pela Congregação; a ele devemos esta obra; mesmo que ele estivesseagora vivo, a coisa não poderia ir melhor... V. Revma. com certeza se alegraráem ver esses seus bons filhinhos”.

Entretanto o Superior Geral nomeara o Pe. Passerat para suceder a SãoClemente no cargo de Vigário Geral da Congregação transalpina. Felizmenteessa nomeação não encontrou nenhum obstáculo por parte do Governo. Só emdezembro é que puderam entrar em sua residência própria. Eram então 15noviços sob a direção do Pe. Passerat, que passaram a Nossa Senhora daEscada.

Bem depressa desenvolveu-se a comunidade de Viena, pois que osRedentoristas, até então desconhecidos do povo, caíram na simpatia geral. Umano depois a casa nova já contava 40 religiosos. Sete anos mais tarde Vienamandou seus padres para Lisboa, Mautern, Innsbruck, Alsacia e Suíça. Comoas leis austríacas muito embaraçavam a Congregação impedindo a comunica-ção com Roma, o Pe. Passerat, que sentia a premente necessidade de entrarem contato com a Congregação-mãe, mandou a Nápoles o Pe. Springer, paraque estudasse, nas diversas residências redentoristas, o espírito e os usos daCongregação. Para o Capítulo Geral de 1832 em Nápoles já foi possível ao Pe.Passerat mandar seis padres transalpinos.

A Congregação desenvolveu-se rapidamente, abençoada por seu segundofundador, São Clemente Maria, que do alto do céu olhava para a sua obra pre-dileta, a obra principal da sua vida. O Pe. Passerat governou a parte transalpinada Congregação quase trinta anos, viu realizada a profecia de Clemente, deque a Congregação se espalharia pelo mundo. Nos primeiros anos de seu go-verno o Pe. Passerat introduziu a Congregação na Bélgica, Holanda, Américado Norte, Baviera, Inglaterra e França.

Em 1848 Passerat depôs o seu pesado cargo; pouco depois foi abolido ovigariado geral transalpino, sendo a Congregação dividida em Províncias, go-vernadas por superiores provinciais, que dependem direta e imediatamente aoReitor-mor, que desde 1855 fixou sua residência em Roma.

Em poucos anos a Congregação estendeu os ramos vigorosos ainda maislonge, para a Irlanda, Escócia, Espanha, Austrália. Ultimamente fundaram-secasas na Dinamarca, Índia Ocidental, México, Congo Belga, África Meridional eFilipinas. No último ano da guerra mundial fundou-se no Canadá uma segundaProvíncia, e nas Antilhas uma segunda Vice-Província. Em 1918 — justamente110 anos depois da expulsão — entraram os Redentoristas outra vez em Varsó-via. Há atualmente na Congregação Redentorista 21 Províncias e 15 Vice-Pro-víncias com 310 residências e mais de 5.000 religiosos.

Com exceção das casas que pertencem às Províncias romana, napolitanae siciliana, todas devem a sua origem ao apostolado de S. Clemente. São todas

filhas da casa-mãe de Viena, autorizada em 1820.As províncias da Itália tem sido incansáveis em a pregação de numerosas

missões, de abençoados retiros frutificados pelas virtudes acrisoladas dos mis-sionários e dos demais sacerdotes que, dentro dos claustros, vivem na práticadas mais heróicas virtudes, observando, com religioso escrúpulo os menorespontos da santa Regra, como desejava o grande Fundador Santo Afonso. Masessas Províncias não saíram da Itália nem propagaram, fora dela, a Congrega-ção. Somente uma tentativa foi feita pelos padres italianos em 1853, a de abrirna América do Sul uma residência, que pouco durou, porque dos três padresque vieram, um faleceu afogado num rio, dois meses depois, outro foi consumi-do por uma febre perniciosa e o terceiro foi expulso a viva força. — OsRedentoristas da Itália têm desenvolvido a Congregação na sua Pátria, masnão fora dela.

A Congregação transalpina, porém, bebeu o temperamento de São Cle-mente e herdou dele o desejo ardente de espalhar, o mais possível, os seusconventos e de penetrar em todos os países. Humanamente falando, se nãofôra a Providência que mandou São Clemente a Roma fazendo-o entrar, comoque por milagre, na Congregação, os Redentoristas talvez existissem apenasna Itália e não abarcassem o mundo como o vemos agora. Para que o leitorpossa fazer uma idéia da expansibilidade da Congregação transalpina, e admi-rar a grande obra do Santo, cuja vida vimos descrevendo, pomos aqui um qua-dro do desenvolvimento da Congregação transalpina, segundo o último catálo-go de 1927.

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A Província Austríaca, da qual todas as outras saíram: depois das muitasdivisões possui ainda 12 casas com numerosos missionários.

A Província Belga possui 31 casas: 12 na Bélgica, 3 nas Antilhas, 10 noCongo, 2 no Canadá-rutheno, e 4 na Galícia polaca.

A Província de Baltimore — na América do Norte — uma das maiores daCongregação, possui 29 casas sendo: 23 nos Estados Unidos e 6 nas Antilhas.

A Província de Lion possui 22 casas: 15 na França, 5 no Chile e 2 no Peru.A Província Bávara possui 15 asas: 9 na Baviera, 6 no Brasil.A Província Holandesa possui 15 casas: 8 na Holanda, 2 no Suriname —

Guiana Holandesa — e 6 no Brasil.A Província Rhenana possui 20 casas: 15 na Prússia e 5 na Argentina.A Província Inglesa possui 9 casas e não tem Vice-Província.A Província de São Luiz — na América do Norte — 22 casas: 16 nos Esta-

dos Unidos e 6 na Oaklandia.A Província Irlandesa possui 7 casas: 5 na Irlanda e 2 nas Filipinas.A Província Parisiense possui 21 casas: 14 na França e 7 na Colômbia.A Província Espanhola possui 25 casas: 14 na Espanha, 9 no México e 2

na Venezuela.A Província de Praga possui 16 casas — não tem Vice-Província.A Província Polaca possui 6 casas — não tem Vice-Província.A Província Alsaciana possui 11 casas: 9 na Alsacia-Lorena e 2 na Bolívia.

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A Província do Canadá possui 8 casas com uma Vice-Província em Annam.A Província de Toronto possui 11 casas sem Vice-Província.A Vice-Província autônoma de Zwittau possui 4 casas.A Província da Austrália, há pouco tempo separada da Província Irlandesa,

possui 7 casa.Quando em 1904 a “Vida de S. Clemente”, escrita pelo Pe. Saint-Omer, foi

traduzida em português, a Congregação contava com 14 Províncias com 160casas e 3.000 membros. — Vinte anos depois subiu o número a 21 Províncias,310 casas e cerca de 5.300 religiosos.

Há poucos meses realizou-se também um dos mais ardentes votos de Sto.Afonso e de São Clemente: a Província Canadense atravessou os mares e fun-dou uma nova Vice-Província em Annam, com esperanças de penetrar aindamais longe no interior da Ásia.

No Brasil

Até fins do século passado o Brasil permanecia fechado à CongregaçãoRedentorista, enquanto que as outras repúblicas sul-americanas já de há muitosentiam o fogo do zelo apostólico dos filhos de Sto. Afonso.

A primeira Província que se moveu, além dos Alpes, para a América do Sulfoi a holandesa que em 1866 se dirigiu a Guiana Holandesa e fundou residênci-as no Suriname. Catorze anos mais tarde, dez denodados Redentoristas fran-ceses penetraram o Pacífico e instalaram-se em Cuenca e Riobamba, e poucosanos depois da morte do inesquecível Garcia Moreno, procuraram um seguro egarantido abrigo nas hospitaleiras terras do Chile.

Em 1883 os padres da Província Rhenana entraram em Buenos Aires e noano seguinte, a Província de Paris enviou os seus missionários para a Colôm-bia, levando-lhe as bênçãos da Redenção.

O Brasil, a maior das repúblicas sul-americanas, consagrado desde o seudescobrimento ao mistério sublime da cruz, ainda estava por receber os filhosdo Redentor, os Redentoristas. É certo que já em 1844 e outra vez em 1857 oexmo. sr. D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, se dirigiu por cartas aoSuperior Geral dos Redentoristas, pedindo missionários para a sua vasta diocese;não pôde porém ser atendido pela falta absoluta de pessoal. Quem primeiroconseguiu missionários para o Brasil foi o exmo. D. Silvério Gomes Pimenta,saudoso bispo e mais tarde Arcebispo de Mariana. Cinco sacerdotes e trêsirmãos leigos da Província Holandesa fundaram aos 26 de abril de 1894 a pri-meira casa redentorista em Juiz de Fora. Seis anos mais tarde dirigiram suasvistas para a Capital do Estado edificando o belo convento de Belo Horizonte.Em 1903, reforçados por um forte contingente que lhes veio da Província-mãe,abriram mais uma residência no Rio de Janeiro, onde levantaram magníficotemplo a Santo Afonso, que se tornou um centro de grandioso movimento religi-oso e uma das igrejas preferidas da elite carioca: é essa igreja a mãe das nume-rosas Ligas Católicas espalhadas nos diversos Estados da União. Com o sem-pre crescente desenvolvimento da Congregação, foi-lhes possível uma funda-ção na distante cidade de Curvelo, onde se levantou um belo Santuário ao gran-de Taumaturgo São Geraldo. Há pouco tempo os padres da Província do Rio,

desejosos de aumentar suas fileiras com sacerdotes nacionais, abriram umacasa em Congonhas do Campo, onde se acha a escola apostólica; recente-mente fundaram a casa de Campos, no Estado do Rio.

No mesmo ano em que os Padres da Província Holandesa chegaram aoBrasil, dois distintíssimos representantes do episcopado brasileiro fizeram emRoma a vista ad limina.

Como eram bispos segundo o coração de Deus e queriam sinceramente obem espiritual das suas ovelhas, insistiram com o Superior Geral dosRedentoristas, para que se dignasse enviar alguns dos seus súditos para assuas respectivas dioceses na Terra de Santa Cruz. Eram eles: D. JoaquimArcoverde, então bispo-coadjutor de S. Paulo, e D. Eduardo Duarte Silva, bispode Goiás. A Província Bávara gemia sob o peso da perseguição do Kulturkampf10;comendo de há muito o pão do exílio e sem esperança de voltar tão cedo paraa cara Pátria. O Superior Geral dirigiu-se ao Provincial, expondo-lhe o pedidodos srs. bispos, mostrando a necessidade e a conveniência de atendê-los eaconselhando-os a mandar alguns dos seus padres, os mais intrépidos e ani-mados, para que, transpondo o Oceano, fossem quebrar o pão da palavra divi-na aos filhos da Santa Cruz e propagar a Congregação nessa terra rica e futurosa.Os missionários bávaros receberam a insinuação do Superior Geral como umaordem vinda do céu; resolutos despendem-se da Europa, para sempre, e confi-ados na Providência e na proteção de Santo Afonso e São Clemente, aprontamsua modesta bagagem, e em companhia do Sr. D. Eduardo, partem para o NovoMundo. Eram seis padres e sete irmãos, destinados às duas futuras asas deCampinas de Goiás e de Aparecida do Norte no Estado de São Paulo. Depoisde visitarem o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, cuja bênção implora-ram para o futuro apostolado, embarcaram-se em Bordeaux a 5 de outubro de1894.

Embora repletos de otimismo, o coração, o coração trepidava-lhes dentrodo peito na longa e arriscada travessia de mares, nunca dantes navegados poreles. A 29 do mesmo mês de outubro formaram em Aparecida a pequena co-munidade, destinada a tornar-se grande, bem grande pelo número de confradese pelo apostolado que deveriam exercer sobre não pequena parte do Brasil. Apedido do Exmo. Sr. Bispo de S. Paulo e com a devida permissão do SuperiorGeral os padres aceitaram a direção espiritual da paróquia e do Santuário deNossa Senhora Aparecida, tratando desde logo de dar ao serviço espiritual odesenvolvimento que exigia um Santuário tão importante. O número dos padresna comunidade de Aparecida foi crescendo de ano para ano, atingindo ultima-mente o número de quinze sacerdotes que mourejam no Santuário e no colégiode Sto. Afonso. De Aparecida pode-se dizer, que se tornou, mais ou menos umsegundo São Beno: o trabalho apostólico na Aparecida é uma missão continu-ada, que começa de manhã e termina à noite sem conhecer interrupção; embreve tornou-se Aparecida o Santuário mais querido e célebre em todo o Brasilnão só porque lá se encontra a Virgem, Mãe dos brasileiros, mas também por-que lá se acham sempre à disposição dos romeiros sacerdotes que se dedi-cam, com carinho, ao cuidado das almas, mostrando a todos o caminho do céu.É voz geral na boca de todos, que Aparecida se tornou uma paróquia modelo: oApostolado, a Pia União das donzelas, a União dos Moços Católicos, a Liga

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Católica, a Irmandade do Rosário e Congregação da Doutrina Cristã fazemdaquele abençoado recanto do Brasil um verdadeiro mimo de piedade sólida eesclarecida. Já mais de uma vez os protestantes têm tentado lá introduzir-secom o fim de arrancar ao povo o amor à sua Mãe Santíssima, mas em vão; opovo católico até a medula dos ossos não permitiu nem há de permitir em seumeio a seita que ofende e desrespeita a Mãe dos brasileiros. Com solenidadesuperior a qualquer descrição, na presença do Núncio Apostólico, de todos osbispos do Sul do Brasil, dos representantes do Episcopado do Norte, de inúme-ros dignatários eclesiásticos: monsenhores, cônegos catedráticos, superioresde dez congregações religiosas, com assistência de sacerdotes de todos oscantos do Brasil e de umas vinte mil pessoas, a 8 de setembro de 1904 a ima-gem da Virgem foi coroada em nome do Santo Padre, e à Virgem foi consagradoo povo do Brasil.

Pouco mais tarde, devido ao desenvolvimento sempre crescente o Santuá-rio foi elevado à categoria de Basílica menor, a primeira da Terra da Santa Cruz.Lugar de destaque em todos esses empreendimentos teve o vulto venerandodo Pe. Gebardo Wiggermann, a quem foi confiada a dificultosa empresa que elesoube dirigir com mão de mestre, dando-lhe firme orientação durante os noveanos que a governou.

Logo nos primeiros anos reconheceram os Redentoristas a necessidadeda fundação de uma escola apostólica para a formação intelectual e moral demeninos inclinados à vida sacerdotal e dedicados à obra das Missões na Con-gregação Redentorista, garantindo assim o futuro do Instituto, que haveria decriar profundas raízes no solo novo e exuberante da Terra da Cruz. A 3 deoutubro de 1898 entraram os primeiros alunos, que foram entregues à direçãodo santo e sábio Pe. Valentim Riedl, êmulo do grande São Clemente, por sua féprofunda, humildade exemplar e amor à Congregação. As dificuldades do co-meço não eram pequenas: foi necessário sacrificar alguns sacerdotes que seprenderam ao magistério, despender quantias que não existiam em caixa, lutarcom os embaraços de uma língua estranha; felizmente tudo foi superado pelavontade de ferro dos fundadores da escola apostólica. Conheciam perfeitamen-te que da solução dessa questão magna dependeria o futuro da Congregaçãono Brasil e em parte a grandeza e o desenvolvimento da religião em nossaPátria. — Oxalá tivessem dela a mesma compreensão tantos católicos que exis-tem no Brasil! nesses sentimentos nobres muitos pais e mães de família, sentir-se-iam ufanos em dar a Deus um ou mais de seus filhos que mostrassem voca-ção religiosa! educá-los-iam para isso afastando-o o mais possível da corrupçãodo mundo e não regateariam o óbulo da caridade tão necessário para a forma-ção desses futuros trabalhadores pela causa santa da Igreja em nossa Pátria!

Hoje vinte e três brasileiros, formados lá na escola apostólica, já se consa-graram a Deus pelos santos votos religiosos e vinte sacerdotes trabalham comdenodo nas missões e em todos os ramos da atividade apostólica. Como, po-rém, o Colégio Sto. Afonso em Aparecida já não comportasse maior número dealunos, o governo da Congregação aceitou a generosa dádiva de uma chácarade dedicados amigos em Pindamonhangaba, para nela instalar a nova EscolaApostólica (Juvenato) de N. Sra. do Perpétuo Socorro.

A exemplo de São Clemente começaram os padres de Aparecida, em mui-

to boa hora a exercer o apostolado da imprensa: é o meio mais profícuo para aconversão nos tempos modernos, porque o jornal e o livro penetram em todosos lares, falam a todas as classes de pessoas, corrigem as faltas com brandurae instruem com perseverança. As massas ávidas de leitura, pela imprensa apren-dem aquilo que não podem ou não querem ouvir nos templos. Por esses moti-vos fundou-se na Aparecida o jornal semanário “Santuário de Aparecida” queinstrui nos artigos de fundo, agrada na parte noticiosa e edifica na enumeraçãodas graças concedidas pela Virgem Aparecida. — Diversos livros de piedade eobras ascéticas têm sido publicadas e difundidas pelos padres Redentoristas.Quem é que não conhece o “Manual de N. Sra. Aparecida” que já apareceu naduodécima edição com cerca de 150.000 exemplares? As “Meditações de Sto.Afonso” — A Oração — As mais belas orações de Sto. Afonso — As visitas aoSs. Sacramento e a Nossa Senhora — as diversas publicações de biografias deSão Geraldo — a Esposa de Cristo — o Sagrado Coração — a Biografia do Sto.Afonso — o Almanaque de N. Sra. Aparecida — os milhões de exemplares dasOrações cotidianas etc. etc? Além disso diversas outras obras estão sendo pre-paradas para a instrução e edificação como meio de apostolado.

Campinas. Dos primeiros padres bávaros vindos em companhia do Exmo.Sr. D. Eduardo, quatro foram destacados para o distante Estado de Goiás: eramheróis, desbravadores do sertão e abnegados pioneiros do bem no longínquoEstado. Em Uberaba, onde terminava a estrada de ferro, pela primeira vez mon-taram a cavalo experimentando as doçuras dos socos dos animais, das quedasrepetidas, e daquilo que costuma maltratar os que cavalgam muito tempo semestarem a isso habituados. Em doze dias venceram a distância de 480 km quevão de Uberaba a Campinas. A 12 de dezembro, debaixo de uma chuva torren-cial, fizeram os padres sua entrada em Campinas, lugar aprazível pela topogra-fia, porém paupérrimo em prédios e meios de vida. A primeira morada dos filhosde Santo Afonso não era em nada superior à de Varsóvia quando lá chegou oPe. Clemente acompanhado de seu digno confrade o Pe. Thadeu Hübl: um ca-sebre velho com paredes de pau a pique, já ameaçando ruínas, sem outra mo-bília além de três catres toscos e um banco de carpinteiro. No ano seguinte já foipossível construir um prédio novo, modesto, mas apropriado e decente no meiode um vasto campo. No princípio não eram poucas nem pequenas as prova-ções, porque a comunidade de Campinas teve de passar pela falta do necessá-rio, que não se encontrava no arraial e que não se podia mandar vir de fora pelaescassez dos meios de condução e transporte; em compensação gozaram ospadres o clima salubérrimo, que lhes conservou a saúde e a disposição para otrabalho.

As paróquias de Goiás, em sua grande maioria, estavam vagas quando ospadres lá chegaram; a falta de clero era lastimável. O bispo não hesitou emconfiá-las aos cuidados dos Redentoristas. Era um trabalho insano, pois que asparóquias goianas são, em geral, pouco povoadas, mas ocupam áreas enor-mes, algumas até 10.000 km2. Essas almas tão dóceis e de boa vontade acha-vam-se então quase completamente abandonadas de socorro espiritual; erampor conseguinte as que Santo Afonso tinha em vista quando fundou a Congre-gação, é esse o campo de trabalho genuinamente afonsiano. Na paróquia deCampinas estabeleceu-se a missa cotidiana, a pregação aos domingos, a aula

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de catecismo às crianças etc. As Associações religiosas: a Confraria de N. Sra.do Perpétuo Socorro e de S. Afonso, o Apostolado, as Conferências de S. Vicente,a Liga Católica introduziram, aos poucos, intensa vida de piedade. Os exercíci-os religiosos estenderam-se também às capelas filiais; em poucos anos a novaMatriz de Campinas tornou-se uma das mais belas do Estado inteiro; o conven-to por causa dos muitos cômodos de que dispõe e da colocação favorável, emque se acha no centro da diocese, foi escolhido para casa de retiro do clero. AsMissões começaram a fazer-se regularmente todos os anos, de acordo com asdeterminações do bispo diocesano, que sempre se mostrou amigo dosRedentoristas. Os enfermos, não só da paróquia, mas até de bem longe — vinteou mais léguas, mandam chamar — para a sua última hora — os padres deCampinas, nos quais depositam inteira confiança. Pelas continuadas missõesem toda a vasta diocese de Goiás, numa extensão de 747.311 km2, são conhe-cidos, estimados e quase adorados os padres Redentoristas, que não olhandopara as dificuldades nem número das intérminas viagens percorrem o Estadoem todas as direções difundindo em toda a parte a semente da palavra divina,corrigindo os costumes, onde necessário, legalizando as uniões matrimoniais,fazendo os batizados, instruindo, confortando e chamando todos para Deus.

Dentro dos limites da paróquia de Campinas, acha-se o Santuário maiscélebre do Estado de Goiás, chamado pelo povo: “Divino Padre Eterno da Ss.Trindade”. Para a festa que se celebra anualmente no primeiro domingo de julhoacodem os romeiros de oitenta ou mais léguas em número, às vezes, superior a20.000, a maior parte a cavalo, em carros de bois ou a pé. Não havendo casaspara hospedar tanta gente formam-se no patrimônio arruamentos compridosde todas e de ranchos cobertos de folhagem, outros acomodam-se com toda afamília dentro e debaixo dos carros de bois. Durante os últimos dias da novena,no dia da festa e alguns dias depois a igreja regurgita de povo desde a manhãaté alta noite; entram no templo em grupos para cumprir suas promessas can-tando, cada um a seu modo, a ladainha de Nossa Senhora e outros hinos. Nes-sas ocasiões o confessionário fica assediado de romeiros que aproveitam aocasião para se reconciliar com Deus. Esse movimento religioso, porém, nãodata desde o princípio da romaria; foi necessário pregar muito no Santuário efora dele, missionar as cidades e as roças, difundir objetos de devoção emgrande quantidade, introduzir a irmandade de Nossa Senhora do Perpétuo So-corro e de Sto. Afonso etc. etc.

Fora da paróquia os trabalhos são hercúleos não tanto pelo dispêndio deforça intelectual, como pelo consumo de forças físicas. Durante três anos asparóquias vizinhas, numa distância de 240 km foram anexadas à de Campinas.Todavia, por causa dos trabalhos paroquiais não foram descuradas as missões,trabalho principal dos Redentoristas; e elas são penosíssimas naquelas para-gens por deverem os padres fazer a viagem a cavalo, acompanhados de umcamarada e de um animal de carga, que leva os objetos mais indispensáveis,além dos parâmetros de missa. Geralmente saem por ano duas turmas de mis-sionários; uma logo depois da semana santa e a outra depois da grande festaem julho até o mês de novembro mais ou menos, porque dai em diante é impos-sível a pregação de missões devido às grandes enchentes dos rios que setornam inatravessáveis pela falta de pontes.

Nessas excursões apostólicas, repletas de perigos de toda a sorte, faz-seum bem espiritual imenso ao povo disperso pelos caminhos, por onde passamos missionários; no fim de uma penosa viagem de muitas horas, debaixo de umsol abrasador, alcança-se, geralmente, um pouso previamente avisado da che-gada dos missionários. A notícia corre logo, e as pessoas dos arredores, osagregados começam a chegar para a reza. Ao anoitecer há a recitação cantadado terço, pregação, audição das confissões, o que se prolonga, às vezes, atéalta noite; na manhã seguinte em um altar improvisado celebram a santa missa,dão a comunhão, fazem os batizados, casamentos etc. e continuam a viagematé chegarem ao lugar, onde devem pregar a missão propriamente dita. — Nomeio de todas essas fadigas, desconhecidas dos homens, sente-se a bênçãodivina: O missionário exulta de contentamento vendo o respeito e a veneraçãoque o povo espontaneamente lhe tributa; em toda a parte recebe acolhimento eagasalho, opera as mais consoladoras conversões e tem o prazer de ver todoscontentes, repletos de gratidão para como ministro de Deus.

Desde 1909 um dos padres tem acompanhado, anualmente, durante cincoou seis meses o bispo diocesano em visita pastoral partilhando com ele asmesmas fadigas e privações, e pregando de manhã e à noite, dando aula decatecismo, confessando e ajudando em todos os trabalhos da visita pastoral;são dias cheios e exaustivos.

Não obstante tudo isso, a missão goiana é uma das mais queridas dosRedentoristas, que lá se consideram em seu campo de trabalho longe dos elo-gios humanos e dos louros da história, porém, mais perto de Deus e do céu.

***

Penha. Dez anos depois de labutar em Aparecida e Campinas, foi possívelaos padres aceitar mais uma fundação gentilmente oferecida por D. José deCamargo Barros. Aos 15 de março de 1905 dois padres e um irmão leigo abri-am, a título de experiência, a casa da Penha em um dos mais aprazíveis arra-baldes da Paulicéia. A igreja da Penha sempre foi o santuário mais conhecidoda Capital e o preferido do povo paulistano, que aos domingos e dias santospara lá se dirige em grande número. Essas excursões, porém, não passavamantigamente de passeios mais ou menos agradáveis, muitas vezes sem moti-vos religiosos. Pelo ensino constante do catecismo, pelas pregações, instituiçãode diversas associações religiosas: Apostolado, Pia União, União dos M. Cató-licos, Corte de S. José, Damas de Caridade, Conferências Vicentinas, Liga Ca-tólica, Cruzada Eucarística, Liga do Menino Jesus etc. pouco a pouco derreteu-se o gelo do indiferentismo; de ano em ano aumenta-se o número das comu-nhões, crescendo também proporcionalmente o número de padres. A casa daPenha é procurada por sacerdotes e pelos seminaristas que nela fazem seuretiro espiritual. Além da sede da paróquia os padres percorrem apostolicamen-te mais seis populosas capelas filiais e mais duas paróquias anexas à estola daPenha; durante muitos anos tiveram a direção espiritual do Hospital de Carida-de do Brás e do Asilo de São José do Belém, prestando todos os serviçosespirituais aos enfermos e às órfãs do Asilo, bem como às religiosas dos doisestabelecimentos. Até hoje exercem o ofício de confessores ordinários em cin-

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co ou seis conventos de irmãs na Capital. São inúmeros os trabalhos dos pa-dres da Penha nas diversas paróquias da Capital. Como nas escolas públicasnão se ensina a Religião, os Redentoristas fundaram escolas paroquiais, ondepor intermédio das Irmãs Vicentinas e outras professoras fornecem instrução amuitas centenas de crianças, às quais procuram dar uma educação genuina-mente cristã.

O leitor pode observar no prospecto abaixo que é grande e consolador onúmero de missões, tríduos, retiros e outros trabalhos apostólicos, feitos pelospadres não só na arquidiocese de S. Paulo, mas também em outras diocesesdo Estado e fora dele. Em 1907 as irmãs de S. Vicente de Paulo adquiriram umaresidência na Penha e lá estabeleceram o noviciado de sua Congregação, abri-ram um externato para o ensino elementar e mais tarde uma escola profissionalpara moças; são ótimas auxiliares na instrução das crianças, que estão, comoas irmãs, entregues à direção dos padres Redentoristas.

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Perdões. Em 1913 o Exmo. Sr. Arcebispo de S. Paulo, D. Duarte Leopoldo eSilva, ofereceu aos padres Redentoristas o Santuário do Bom Jesus dos Per-dões. Dos edifícios que existem no lugar pertencentes à igreja e destinados àhospedagem dos romeiros uma parte foi cedida aos padres e transformada emconvento. Por ser Perdões um lugar excepcionalmente saudável e retirado dosgrandes centros, foi escolhido para casa de noviciado, os três padres que for-mavam a pequena comunidade poucas missões puderam pregar; assim mes-mo auxiliavam os vigários das paróquias vizinhas, e tomavam parte nos traba-lhos apostólicos das casas maiores, como Penha e Aparecida. Tendo os Supe-riores opinado pelo abandono da casa de Perdões, entregaram o Santuário aoSr. Arcebispo em 1920.

***

Araraquara. Em 1920 mais uma época risonha raiou para a Vice-Provínciade S. Paulo. A convite do Sr. Arcebispo de São Carlos, D. José Marcondes Ho-mem de Mello, os padres Redentoristas levantaram o vôo e foram a Araraquara,a Princesa do Oeste paulista, cidade bela, rica e sadia, brinco de asseio no ourodos corações generosos dos habitantes e na pérola da administração pública,que é exemplar. É mais um campo vastíssimo de atividade apostólica, que seabriu aos filhos de Santo Afonso. Livres da paróquia podem eles dedicar-seexclusivamente ao fim principal da Congregação. Cinco padres válidos e ardo-rosos, desde então, têm percorrido as cidades do Oeste, cuja população com-posta de toda a sorte de imigrantes se achava, religiosamente falando, insufici-entemente cuidada, enquanto que materialmente se avantajava a todas as ou-tras zonas do rico Estado de São Paulo. Lá construíram os padres um beloconvento, muito cômodo para o descanso dos missionários: um esplêndido po-mar ameniza-lhes os poucos dias de repouso que passam em casa.

Ao lado dos estafantes labores apostólicos nas Missões etc. têm os padreso múnus sacerdotal na Igreja de Santa Cruz, doada pelo Exmo. Sr. Arcebispo

de São Carlos ao uso dos padres Redentoristas. A Igreja de Santa Cruz é pro-curada por todas as pessoas piedosas, que lá vão reconciliar-se com Deus,ouvir as pregações aos domingos, assistir as tocantes festas que lá se cele-bram e dar expansões à sua devoção a São Geraldo, que também em Araraquaraconseguiu captar a simpatia popular. Os padres tomam conta da Santa Casaonde atendem aos chamados dos doentes e moribundos de dia e de noite; sãoconfessores das Irmãs e ajudam quanto possível o vigário da paróquia. A fun-dação da residência de Araraquara foi providencial, não só por ser essa cidadeo centro da mais importante zona paulista, mas principalmente por ser essaparte do Estado a mais desprovida de Ordens ou Congregações religiosas.

Cachoeira. Com intuito de alargar ainda mais o raio de atividade e dearregimentar com mais facilidade maior número de missionários Redentoristas,os Superiores resolveram a título de experiência fundar uma casa no Sul doBrasil. A primeira escolha coube a Pelotas para onde em 1919 seguiram doissacerdotes, onde, recebidos de braços abertos pelo povo e mais ainda peloExmo. Sr. D. Francisco de Campos Barreto, então bispo dessa cidade, começa-ram a desenvolver uma atividade digna de São Clemente. A nova paróquia,criada nessa ocasião e confiada aos cuidados dos Redentoristas, prosperava aolhos vistos, os padres coadjuvavam os outros vigários no confessionário e nopúlpito, e tudo prometia o mais brilhante futuro quando os Superiores, por moti-vos poderosos, acharam melhor transferir a residência para Cachoeira, situadano bispado de Santa Maria e mais no centro do Estado do Rio Grande do Sul,donde com mais facilidade poderiam os padres sair para a evangelização davasta vinha do Senhor. Superadas as primeiras dificuldades, lançaram-se ospadres aos trabalhos da sua vocação, percorrendo incansáveis as colônias ita-lianas e alemãs e missionando as cidades. Os cinco sacerdotes, que desde1921 lá trabalham, têm-se dedicado quase que exclusivamente ao apostoladonas diversas dioceses do Estado.

Com os padres estavam, no princípio, muito mal alojados, começaram já aconstrução de um convento em regra que possa agasalhar decentemente osconfrades e servir de escola apostólica para instrução dos meninos que mos-trarem vocação para a Congregação Redentorista. —

São esses os trabalhos que os padres vindos da Baviera e da Holanda,portanto oriundos da casa-mãe fundada por São Clemente, têm feito na Terrade Santa Cruz, e continuam a fazer, graças a Deus, com a melhor vontade eanimação. Os Estados de S. Paulo, Minas, Goiás, Rio, Bahia, Espírito Santo, RioGrande, Paraná, Sta. Catarina e até Mato Grosso, já viram em sua operosidadeapostólica os filhos de Santo Afonso. Em Minas, São Paulo, Rio e Goiás talveznão se encontre uma cidade que não tenha sido missionada, uma ou maisvezes, pelos padres Redentoristas. E Deus tem abençoado visivelmente os seustrabalhos; as bênçãos do episcopado também os acompanham em toda parteanimando-os ainda mais e garantindo-lhes o melhor resultado. Os pedidos fei-tos pelos vigários e pelo povo são tão numerosos que lhes é impossível satisfa-zer a todos. Messis quidem multa, operarii autem pauci.

A fim de o leitor possa fazer uma pequena idéia da atividade apostólica dospadres da Vice-Província de São Paulo e da Vice-Província do Rio, pomos aquiuma pequena resenha desses trabalhos desde o ano da fundação de cada

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casa até o ano santo de 1925. Não pode ser uma computação completa, por-que faltam muitos dados, mormente dos primeiros anos; em todo o caso pomosaqui o mínimo em algarismos.

[...]

Nesse quadro não estão registrados os 100.452 batizados e as 150.000crismas que os missionários fizeram nesse lapso de tempo, nem os milhares depequenos trabalhos, que a cada hora ocupam os sacerdotes, mormente os quetêm a direção espiritual de paróquias ou de Santuários.

Ai estão os números em toda a sua eloqüência. Quantas confissões ouvi-das! quantas comunhões administradas! quantos doentes sacramentados! E sefosse possível aqui enumerar ao menos as conversões estupendas realizadasnesses 30 anos de apostolado!... quantos corações recuperaram a paz perdida!e quantos estão agora salvos eternamente por todas essas fadigas e suores!Ora tudo isto data, em sua origem, daquele dia memorável em que São Cle-mente conseguiu a aprovação da Congregação na Áustria depois de haver empessoa educado segundo o espírito de Sto. Afonso os discípulos que foram acoluna do Instituto além dos Alpes. Eis o que pode alcançar um só homem,quando é movido do Espírito de Deus!

Se aqui quiséssemos enumerar todos os trabalhos feitos pelos Redentoristasde todas as Províncias formadas além dos Alpes, não haveria livro que os pu-desse conter, nem língua que os conseguisse pronunciar. Milhões e milhões dealmas encontraram a salvação, milhões de outras elevaram-se à mais alta per-feição, em conseqüência dos esforços e da atividade dos filhos de Sto. Afonso ede São Clemente. Isto tudo fica aqui documentado para a glória do Fundador daCongregação e do seu insigne Propagador nas cinco partes do mundo.

CAPÍTULO XXIX

As Irmãs RedentoristasEm Scala — A Ordem das Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O

seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vinda ao Brasil —Seus progressos.

Além da Congregação de Missionários de vida apostólica fundou SantoAfonso, em Scala, uma Ordem de Religiosas, que na Bula de aprovação rece-beram o nome de Irmãs do Santíssimo Redentor ou Redentoristas. São verda-deiras monjas no sentido canônico da palavra; dedicam-se à vida contemplativadistribuindo o tempo entre a oração e o trabalho. Têm por fim principal o mesmoque os padres Redentoristas, isto é, a imitação mais perfeita possível da vidado Redentor e de suas virtudes. Os seus votos são perpétuos e solenes. A vidada Redentorista, menos austera que a das Carmelitas e Clarissas, é uma vidade imolação pela submissão inteira da própria vontade, pela sujeição a todas asexigências da vida comum e pelas austeridades corporais, que são reguladascom discrição não ultrapassando as forças de uma saúde mesmo medíocre,uma vida apostólica pelas abnegações e orações em prol das santas Missões,uma vida, às vezes, penosa e dura à natureza corrompida que deve ser domi-nada e sujeita ao espírito, porém saturada de merecimentos e de alegrias sere-nas, fruto da união íntima com Deus. As Redentoristas são as maiores auxilia-res dos seus confrades na evangelização dos povos por meio das suas oraçõesfervorosas e dos seus trabalhos contínuos. Como Moisés conservam seus bra-ços estendidos para a oração, enquanto os batalhadores terçam as armas nocampo da luta, e de Deus imploram para eles a vitória e o triunfo sobre osinimigos das almas: são os pára-raios da vingança do Eterno por seu espírito dehumildade e oração. Ocultas aos olhos do mundo permanecem como Maria aospés do divino Mestre ouvindo a sua voz e voando no caminho da perfeição.

Em seu hábito característico composto de uma túnica vermelha-escura comescapulário azul-celeste, ao qual se conserva afixada a imagem do Redentornum medalhão oval, adornadas do véu de linho frisado, de uma faixa e um véubranco encoberto por um outro preto, com um rosário pendurado ao cinto, e —no coro — com um amplo manto de cor azul-celeste — as Redentoristas —formam, no ofício, um grupo empolgante, celestial e atraente aos olhos dosanjos e do divino Esposo.

As Irmãs Redentoristas viviam contentes em seu convento de Scala semoutra aspiração que a de ali ficar para sempre, longe dos homens e só unidas aDeus; mas a Providência teve outros desígnios a seu respeito, reservou-lhes asorte dos seus irmãos no apostolado. Já em Varsóvia fizera Clemente repetidas

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tentativas para levá-las à Polônia. Em Viena procurou debalde, como temosvisto, uma residência estável para os seus confrades. A Providência prepararapara os dois ramos da Ordem Redentorista o mesmo destino, as mesmas abra-çarem a Regra do Ss. Redentor e receberem noviças depois de estabelecida aclausura. Sob a direção firme do Pe. Passerat, amigo e modelo das almas inte-riores, o convento prosperou admiravelmente em Viena, sendo possível fundar,poucos anos depois, uma outra residência no sul da Áustria. Na medida que ospadres Redentoristas se espalhavam pela Europa, tendo grande aceitação emtoda a parte, despertavam, com suas pregações, o desejo em muitas donzelasde se consagrar a Deus na Ordem Redentorista. Assim, aos poucos, entraramas Irmãs do Santíssimo Redentor em diversos países da Europa e da América,possuindo presentemente nada menos de vinte e cinco conventos povoadospor cerca de setecentas religiosas.

Logo depois da grande conflagração européia quatro intrépidas IrmãsRedentoristas — entre elas duas brasileiras — deixaram seu confortável mos-teiro em Bruges na Bélgica, e transpondo o Atlântico, lançaram as bases de umnovo mosteiro na cidade de Vassouras no Estado do Rio. Desde 1924 essasIrmãs, devido às prementes necessidades de ordem material, transferiram aresidência para a cidade de Itú, célebre em todo o Estado de São Paulo porseus sentimentos religiosos e pela fidalguia dos seus costumes cavalheirescos.Tornando-se o prédio um tanto acanhado por causa das muitas vocações queDeus tem suscitado no coração das donzelas brasileiras, as Irmãs Redentoristas,contando com a generosidade dos corações nobres, aumentaram e pretendemampliar ainda mais o mosteiro de Itú, que será o berço viçoso e sadio das futu-ras residências das Irmãs Redentoristas na grandiosa Terra da Santa Cruz,onde há corações nobres, amantes da vida interior e da união com Deus11.

CAPÍTULO XXX

O seu sepulcro gloriosoO seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo —

Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final.

Já não será necessário acrescentar mais um juízo sobre a vida íntima deSão Clemente. A Igreja Católica, infalível pela assistência do Espírito Santo emmatéria de fé e moral, já declarou solenemente que o Apóstolo de Viena pos-suía em grau heróico as virtudes teologais e morais, e que agora goza no céuda visão de Deus. Desde o dia do seu sepultamento em o cemitério de Enzersdorf,onde o Santo quis se inhumado em atenção a seu grande amigo o Pe. DiesbachS. J., tornou-se o seu sepulcro um lugar de romaria piedosa; homens e mulhe-res de todas as classes sociais, e até sacerdotes, para lá têm ido implorar oauxílio do Santo, julgando-se felizes por poderem levar consigo alguma florzi-nha crescida à beira do seu túmulo, ou um pouco de terra do seu sepulcro.

Em 1847, foi aberto o túmulo de Clemente a pedido insistente dos seusadmiradores e devotos que desejavam dar-lhe uma sepultura mais digna. Osossos estavam ainda bem conservados, o barrete e a estola nada haviam sofri-do, enquanto que o rosto já havia desaparecido. Deus queria assim dar a enten-der o quanto abençoara a estola e o barrete do Santo, insígnias, aquela doconfessor e este do pregador, funções essas em que se distinguira o grandeApóstolo de Viena. Essas preciosas relíquias foram conservadas como um te-souro precioso; sobrevindo, porém, a perseguição de 6 de abril de 1848, tive-ram os padres de abandonar os seus conventos da Áustria, e com a precipita-ção da saída e com as dificuldades do exílio perderam-se essas relíquias preci-osas.

Com enorme acompanhamento, ao som festivo dos sinos de Viena e com aassistência do Núncio Apostólico, do representante do arquiduque Maximilianoe de outras pessoas altamente colocadas foram os restos mortais de Clementetransportados para a igreja de Nossa Senhora da Escada (em alemão: MariaStiegen). Perto da parede da capela-mor ao lado do evangelho foi colocado oprecioso sarcófago, sobre o qual se levantou o monumento em forma de altar,no alto a imagem do Santo, em fino mármore branco, tendo sobre a fronte obarrete e sobre a batina do Redentorista o manto da profissão. É uma verdadei-ra obra de arte que honra o Apóstolo de Viena. Desde esse dia a romaria, quese fazia a Enzersdorf, transferiu-se para a Virgem da Escada e tem-se aumen-tado constantemente com os milagres estupendos operados pelo Santo à invo-cação do seu nome e ao tributo de veneração prestado às suas sagradas relí-quias.

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Em 1864 teve início o processo para a beatificação do Servo de Deus. Astrinta testemunhas chamadas a depor, eram todas amigos e discípulos dele, epor isso podiam depor com segurança e de ciência, ainda mais que eram ho-mens santos e de inteira confiança.

Declarado venerável em 1867 foi beatificado em 1888 na grande basílicade São Pedro. A beatificação do Servo de Deus fora pedida pelo próprio Impe-rador da Áustria, por D. Miguel de Bragança, Maria Adelaide de Bragança,arquiduquesa Maria Tereza, seis cardeais, quarentas bispos de diversos paí-ses, oitenta e duas Ordens e Congregações religiosas, inúmeros dignatárioseclesiásticos, dez Superiores Gerais de Ordens e Congregações, muitos pro-fessores de universidades etc etc. Leão XIII determinou o dia 29 de janeiro de1888 para a solenidade da beatificação do Apóstolo de Viena. Como de costu-me nessas ocasiões, uma multidão incalculável esperava a abertura da Portade bronze à direita da porta principal de S. Pedro. Já muito antes das 10 horasestava o povo apinhado no grande largo da basílica à espera que se desse osinal da abertura da porta. Dado o sinal encheu-se a vasta e magnífica sala dasbeatificações. Numeroso clero, secular e regular, estava presente; osRedentoristas ocupavam uma tribuna especial; na tribuna dos diplomatas acha-va-se o embaixador austríaco junto a Santa Sé com os secretários da legação.A iluminação era feérica e cerca de 4.000 velas ardiam nos lustres. Sobre oaltar-mor de uma grande abertura oval, rodeada de nuvens e encoberta por umvéu, salientava-se a imagem do novo Bem-aventurado irradiada de luz.

Acompanhados da guarda suíça apareceram os cardeais da Sagrada Con-gregação dos Ritos com seus prelados e consultores e tomam, cada um, seulugar. Ladeado por seu secretário, o postulador da causa da beatificação apro-xima-se do prefeito da Congregação e pede licença para ler em voz alta o Breveque declara Bem-aventurado o Servo de Deus. A essa leitura segue o Te-Deumcantado pela Capela Julia alternando com o povo. Durante o hino ambrosianopuxa-se o véu do altar-mor, e rodeado de um mar de luzes apresenta-se aimagem do Bem-aventurado Clemente em atitude triunfal, circundado de anjos.Todos os corações pulsaram com força, as lágrimas de comoção e gratidãoalagaram os olhos enquanto os sinos de São Pedro festejavam o novo Bem-aventurado.

À tarde às três horas estava o templo outra vez repleto: era o momento emque o Santo Padre ia prestar suas homenagens ao Bem-aventurado. Às 3 horase 15 minutos começa um zum-zum entre o povo; aos poucos calam-se todos:aproxima-se um préstito longo de prelados e cardeais, brilham os capacetesdourados da guarda nobre, e o representante de Deus, Leão XIII, aparece aben-çoando as massas. Perante o altar reza o Papa uns 12 minutos, conservandosua fronte inclinada na almofada de seda branca; ele ora e um silêncio sepulcralapodera-se da igreja, só se ouvem as badaladas compassadas do grande sinode São Pedro. O venerando Superior Geral dos Redentoristas, depois de meiahora de oração, aproxima-se do Santo Padre para lhe agradecer o favor presta-do a toda a Congregação, e em sinal de gratidão oferece-lhe um bouquet e umrelicário precioso e magnificamente fabricado, relíquias do novo Bem-aventura-do. Depois de breves palavras de animação o Papa deixa a igreja e retira-seabençoando o povo.

A Igreja com esse ato levou Clemente aos altares, permitindo o culto deBem-aventurado ao simples padeiro de outrora e mais tarde, pobre, porémzelosíssimo sacerdote, que libertou a Áustria das garras do josefismo racionalista,despertando mas massas sentimentos de verdadeira piedade.

Viena exultou com esse memorável acontecimento e com festas esplêndi-das procurou glorificar o seu santo Apóstolo. Para imortalizar a recordaçãodesse dia fez ainda mais.

O arrabalde operário de Hernals que contava mais de oitenta mil almas,não possuía em 1888 senão uma única igreja paroquial, que mal podia conterumas seiscentas pessoas. Os vienenses lembraram-se de perpetuar a memó-ria de Clemente, erigindo naquele bairro tão abandonado um templo monumen-tal e um convento de Redentoristas. Esse templo tem a insigne honra de pos-suir hoje as relíquias sagradas de São Clemente. É lá e na igreja de NossaSenhora da Escada que o Santo continua o seu ministério apostólico em Vienaatraindo as almas para Deus por meio de contínuos prodígios.

Com a beatificação começou a marcha triunfal do Servo de Deus pelomundo; em todos os conventos redentoristas foi esse acontecimento celebradocom toda a pompa e solenidade; em as numerosas igrejas redentoristas levan-taram-se, com indulto pontifício, altares ao Bem-aventurado; muitas diocesesimploraram a Santa Sé permissão de comemorar com ofício e missa própria asglórias do novo Bem-aventurado, e na Áustria, Alemanha, França e Bélgica,bem poucos Santos conseguiram tanta popularidade como o humilde Clementeque viveu com o povo e para ele. O nome de Clemente foi escrito com caracteresde ouro numa placa riquíssima que adorna o salão da Universidade de Viena.

Vinte anos depois fez-se novo exame sobre os mais recentes milagres ope-rados pelo Bem-aventurado, ficando pronto o processo em poucos anos. Em1909 o Papa Pio X, na festa da Ascensão do Senhor aos 20 de maio, canonizousolenemente o grande Apóstolo de Viena.

Desde então cresce, dia a dia, o número dos devotos de São Clemente. Emtodos os países católicos difundiu-se a sua devoção: altares, capelas, igrejas,conventos, casas de estudos, estabelecimentos de caridade, levam o seu nome.Entusiasmado, que quase atingiu as raias do delírio, apoderou-se de Tasswitz,terra natal de São Clemente; de 26 a 29 de junho de 1909 mais de oito milperegrinos visitaram a pobre casa em que Clemente viu pela primeira vez a luzdo dia. O quarto onde ele nasceu transformou-se em bela capela devota. Navéspera da conflagração européia Pio X declarou Clemente padroeiro da cida-de de Viena. A guerra impediu a realização das solenidades que se haviampreparado para a condigna comemoração desse acontecimento. Em 1926 osbispos da Alemanha e da Áustria impetraram na Santa Sé, o Ofício e Missa emlouvor do novo Santo, sob rito de duplex maior, de sorte que anualmente a festade S. Clemente é celebrada com solenidade nesses dois países a 15 de março.

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São Clemente é como nenhum outro, o Santo dos nossos tempos.A nossa época distingue-se tristemente por uma vida sem fé, uma ativida-

de sem virtudes e um desejo ilimitado de gozos proibidos. A fé vacila, a incredu-

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lidade apodera-se dos espíritos alastrando-se até pelas roças; cada qual pre-tende formar a sua religião desdenhando os princípios sacrossantos do Evan-gelho. Os homens consideram o trabalho não como uma virtude e uma honrapara o homem, mas sim como uma dura necessidade, um jugo pesado quequerem afastar de seus ombros, produzindo as tremendas greves e lutas dasmassas contra os proprietários. Os homens ávidos de gozo, chafurdam-se mi-seravelmente na lama dos vícios e das diversões que maculam o corpo e ma-tam a alma.

Em contraste com tudo isso mostra-se Clemente o Santo da época. Sua féinconcussa e inabalável e seu amor ardente à Santa Igreja fizeram dele o após-tolo impertérrito que converteu a cidade de Viena e dissipou as trevas do errodo racionalismo josefino. É São Clemente que também nos nossos dias há dedespertar a consciência católica, atear nos corações o verdadeiro amor paracom a Santa Igreja, mestra infalível da verdade, para com o Santo Padre, Vigá-rio de Jesus sobre a terra, e para com os bispos que sãos os nossos pastores eguias na fé.

A atividade de Clemente era grande, e toda inspirada pela luz da fé; aintenção única que o movia, era trabalhar sem descanso pela glória de Deus ea salvação das almas, e não menos pela sua própria santificação. Tambémnesse particular é ele o modelo para os nossos tempos, em que muito se traba-lha; a devoção a São Clemente e a imitação da sua vida far-nos-ão amar otrabalho e fazer dele uma oração constante pela boa intenção e pelo desejo deagradar a Deus.

Reconhecendo que somente em Deus é que o coração encontra a verda-deira felicidade, Clemente detestava a vaidade mundana, os divertimentos quesó servem para tornar superficiais os corações, infiltrando neles o veneno dodesespero e a ruína eterna. Como tal, Clemente chama os corações, mormenteos homens, arranca-os do lodo ensinando-lhes a mortificação moderada masconstante, o desapego das coisas passageiras e o desejo dos gozos celestiais.

Admiremos pois o grande Apóstolo Clemente que foi a coluna da Igreja,imitemos os seus exemplos; peçamos a Deus queira dar à sua Igreja homenscomo Clemente, e procuremos difundir a sua devoção, como remédio contra osmales modernos e preservativo da catástrofe a cujo encontro caminhamos. Dessaforma teremos cooperado para a restauração da sociedade, o triunfo da verda-de e a salvação das almas.

NOTAS DE RODAPÉ

1. Enciclopedistas são os autores da Enciclopédia e em geral todos os quecomungam com as idéias expostas pelos filósofos franceses. Os chefes foramDiderot e D’Alembert; houve notáveis colaboradores: Rousseau, Grimm, Voltaireetc. O intuito principal dos enciclopedistas era combater, por todos os modos, areligião revelada, implantando a religião da razão humana.

2. Congregação de Missionários fundada por S. Vicente de Paula em 1624;tira o nome de S. Lázaro, que é a casa mãe de Paris; tem prestado os maisrelevantes serviços à Igreja tanto pelas missões pregadas como pelas escolasmantidas e pela direção de seminários. Em 1904 havia 31 províncias. Contanumerosos oradores, cientistas, educadores, alguns mártires e alguns santoscanonizados. Muitos bispos brasileiros foram escolhidos dentre os Lazaristas.

3. Maçom quer dizer “pedreiro” a construir o templo espiritual do Altíssimo.Há três classes: aprendizes, oficiais e mestres. As condições de admissão: rito,distintivos (avental, martelo, trolha etc.), auxílio mútuo, expulsão de irmãos es-tranhos, juramento de guardar os segredos da maçonaria etc.

4. Josefismo (de José II) é um sistema político-religioso, que submete aIgreja inteiramente ao Estado em todos os seus interesses não puramente espi-rituais, e procura influir, segundo a doutrina de Febronio, na esfera religiosa daIgreja. O intuito do josefismo era fundar uma igreja nacional austríaca.

5. Racionalismo, no sentido teológico, é o erro sistemático daqueles quetêm a razão humana por única norma do verdadeiro e do falso, e por isso mes-mo rejeitam inteiramente a fé, quer como contrária à razão, quer ao menoscomo inútil e carecendo de fundamento racional.

6. Ordem religiosa fundada por Mechitar, sacerdote armênio, que nasceuem 1676 em Sebaste e faleceu em 1749 em S. Lázaro perto de Veneza. Demonge cismático converteu-se em 1696 e ordenou-se presbítero nesse mesmoano. Em 1701 fundou a Congregação sob a regra de S. Bento. A casa principalera em S. Lázaro, dali o nome de Lazaristas armênios. Em 1773 foram a Triestee em 1810 a Viena. Divididos em duas províncias têm trabalhado muito pelacausa de Deus, maxime pela difusão de bons livros.

7. Maçonaria é uma seita oculta, proibida pela Igreja. O segredo primitivoda maçonaria era construir o deísmo sobre as ruínas do catolicismo, como sevê no livro da Constituição publicado pela Grande Loja da Inglaterra em 1723.No princípio havia apenas os três graus de S. João: aprendiz, oficial e mestre.Na França fundaram-se mais os que veneram S. João, Sto. André e Jesus. Essenovo sistema compunha-se outrora de 25 graus que pelos judeus foram eleva-dos a 33. Clemente XII anatematizou a maçonaria em 1738 na constituição Ineminenti. Essa condenação foi renovada por Bento XIV, Pio VII, Leão XII, GregórioXVI, Pio IX, Leão XIII. Não se pode dar uma estatística certa por causa dosilêncio dos maçons. Talvez existam cerca de 170 uniões maçônicas com umas20.000 lojas e um milhão de maçons. A divisa é a do liberalismo: liberdade,igualdade, fraternidade; é pois o combate à autoridade representada pelo tronoe pelo altar.

8. Essa lei da abstinência da carne às sextas-feiras do ano foi entre nósdispensada pela Igreja permanecendo apenas a abstinência nas sextas-feiras

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da quaresma.9. O Santo compara o protestantismo às meias pretas por motivos fáceis

de compreender. Para alguém ir ao céu deve fazer-se violência e penitenciar-seporque o caminho do céu é uma subida, que deve ser feita a pé e descalço semtemor dos espinhos. Lutero, proclamando a vida cômoda, pôs de lado toda adificuldade, formou-se meias tecidas dos princípios comodistas, para não semolestar no caminho. São pretas porque inspiradas pelo demônio.

10. Kulturkampf é a opressão e perseguição da Igreja na Alemanha pelopoder civil de 1871 a 1894; tinha por fim a fundação de uma igreja nacional,inteiramente subordinada ao governo, foi causada pelo descontentamento dosprotestantes, que não podiam ver os progressos da Igreja na Prússia. Em 21 demarço de 1871 manifestaram-se no Parlamento os primeiros indícios do des-contentamento contra os católicos; pouco depois seguiu-se a supressão da se-ção católica do ministério do culto, apareceram leis contra a influência da Igrejanas escolas, na instrução religiosa, na formação e colocação de sacerdotes, naadministração dos bens eclesiásticos, contra as ordens religiosas etc. Mudaramos parágrafos da Constituição prussiana que garantiam a liberdade da Igreja. Oplano de Bismark de tornar a luta internacional fracassou. Os bispos e sacerdo-tes que não se sujeitavam às leis iníquas eram perseguidos com multas, pri-sões e exílio.

11. Informações minuciosas sobre a Ordem encontram-se na monografia“As Irmãs Redentoristas, sua vida, sua história, sua oportunidade”. — Pedidosao mosteiro de Itu.