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15 CRÔNICAS+ MARINA ALVES VOLUME III - HELENA FRENZEL ED. S É R I E

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15 CRÔNICAS+

MARINA ALVESVOLUME I I I - HELENA FRENZEL ED.

S É R I E

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Série 15 Crônicas+, Coletânea, Volume III, Marina Alves, 1a. Edição, Helena Frenzel Ed.

Copyright © 2013 Todos os direitos sobre as crônicas estão reservados à autora: Marina Alves, Lagoa da Prata, MG, Brasil

(www.recantodasletras.com.br/autores/gam)Participações: Roberto Rêgo e Maria Mineira, autores gentilmente

convidados.A editora optou por manter as opções de grafia nos textos individuais.Edição e imagem: Helena FrenzelCopyright © 2013 Todos os direitos sobre esta edição eletrônica estão

reservados à editora: Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha ([email protected])Todos os textos aqui usados com a permissão da autora. Esta edição pode

ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso não comercial - Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.com

CRÉDITOS

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CRÉDITOS (i)

SOBRE O VOLUME (iii)NOTA DA EDITORA (iv)SOBRE A AUTORA (vi)

PALAVRAS AMIGAS (vii)NA BASE DA CALMA (9)

FÉRIAS PERFEITAS... (11)EXAME DE SANGUE (13)

COM UM PÉ NO TEATRO (15)O VESTIDO VERDE-ÁGUA (17)

VENDENDO RIFA (19)FORA DO JOGO (21)

É BRINCADEIRA? (23)DE OLHO NO TABLET (25)NA PISTA DO MIKE! (27)

NUM BOM PORTUGUÊS (29)DINHEIRO NO BOLSO (31)

À PROCURA DELA (33)SÓ NA PRESSÃO (35)

HOJE É SEXTA-FEIRA... (37)

SUMÁRIO

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Série15 Crônicas+

ColetâneaVolume III, 1a Edição

Crônicas de Marina AlvesParticipações: Roberto Rêgo e Maria Mineira

Edição: Helena FrenzelSetembro de 2013

Esta publicação é parte do site Quintextos(quintextos.blogspot.com)

Venda proibida

SOBRE O VOLUME

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A internet está repleta de pessoas talentosas que escrevem com o mesmo compromisso de um profissional, porém não necessariamente voltadas às demandas do mercado editorial. Ou seja: escrevem sobre o que lhes agrada do jeito que lhes apraz. Produzidos são valiosos textos que o leitor ignora seja pela natureza veloz e dinâmica da rede, pela existência de filtros ou ausência de um selo editorial.

Sem falar no agravante de que quem publica por conta própria, e ainda por cima oferece seus textos de forma gratuita, uma ou outra hora se vê atingido pelo preconceito de que seu produto é ruim. Para tirar a prova das Letras necessário seria leitura, mas leitores são poucos, e menos ainda aqueles que se sentem motivados a ler textos de pessoas ,comuns‘.

E dentre estes ‚comuns’, encontramos autores que seguem registrando com arte e visão o cotidiano que muitos perdem entre os ponteiros do tempo. A vida se arrasta para uns, arrasta muitos e atropela tantos, pára para alguns. Entre todos, fica o cronista lá observando, senão a muitos, a tudo o que se passa ao seu redor e, com habilidade, fotografa em palavras as inusitadas, trágicas ou engraçadas situações. Exatamente isso chama-me a atenção nos escritos de vários cronistas da rede, aos quais tenho dedicado alguns volumes desta série de publicações: a criatividade do registro.

Neste volume, o terceiro, temos quinze textos de Marina Alves, competente autora mineira que já há algum tempo vem praticando vários gêneros e, além de publicar na rede, publicou já um livro, participou em antologias e conquistou espaços em jornais e revistas de sua cidade. No entanto, a maior parte de seus escritos segue relativamente desconhecida por um público mais amplo.

NOTA DA EDITORA

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Conheci Marina no site Recanto das Letras, e tive a honra de que ela aceitasse meu convite, em 2012, para participar no primeiro volume da coletânea 15 Contos+. Muito gentilmente e hábil, como escritora experiente que é, ela nos trouxe um Catador de Sonhos altruísta e revelador de aspectos profundos da alma do Brasil: seu povo. Um texto cuja leitura só posso recomendar.

Participou também no site Sem Vergonha de Contar com o bem-humorado Correspondência, texto para o qual tive o prazer de produzir um áudio.

As crônicas deste volume proporcionaram-me uma leitura rápida e descontraída, sem perder a chance de excitar o pensamento crítico através do bom humor. Resumindo: muito boa dica! Uma leitura breve e produtiva, com grandes chances de agradar a muitos, principalmente àqueles que ainda não desenvolveram o hábito de ler textos mais longos.

Obrigada, Marina Alves, por enriquecer esta série com suas perspicazes crônicas e sua valiosa participação.

Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha, 19 de agosto de 2013.

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! MARINA ALVES é natural de Lagoa da Prata, Minas Gerais. Escritora, poetisa, autora do livro de contos “Sombras e Assombrações” (2007). Formada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia. É membro da ACADELP- Academia Lagopratense de Letras; colunista do jornal INFORMAÇÃO. Conta com trabalhos publicados na revista AMAE Educando, em coletâneas, antologias, e jornais locais. Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.

SOBRE A AUTORA

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! MARINA ALVES, escritora de Lagoa da Prata, Minas Gerais, colega nossa do Recanto das Letras, nos brinda com uma pequena seleção de algumas de suas mais famosas crônicas através deste E-Book produzido por Helena Frenzel, no qual o leitor se deleita com as narrativas e os personagens, gente do povo, em textos criativos e carregados do humor fino e inteligente dessa mineira notável.

! Tipos como “Seu” Luciano, o motorista, a moça “Micaele” e sua queda pelo teatro, “Ducarmo”, a vendedora de rifa, “Seu” Gustinho da mercearia, “Maria Cecília”, a lacônica, e seu “tablet”, “Tia Bete” e seu português sofrível, “Seu” Valdir, o crente, “Dona Cacilda” e o exame de sangue, “Raulzinho”, o menino indagador, “João da Cruz”, o bêbado e a ricaça do vestido verde-água são personagens que me fizeram dar boas gargalhadas e, com certeza, farão o mesmo com os demais leitores, graças à habilidade narrativa de Marina.

! Sinto-me honrado pelo convite para a apresentação deste belo trabalho, augurando muito sucesso às duas brilhantes colegas, Marina Alves e Helena Frenzel, ao tempo em que as parabenizo pela obra.

Roberto Rêgo.

PALAVRAS AMIGAS

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! MARINA ALVES é uma escritora admirável. Suas letras marcantes recendem a flor e a mel de jataí, envolvendo o leitor com ternura e lirismo; levando-o a passear pelas suas histórias, espalhando emoção e originalidade em cada uma de suas palavras.

! Ler minha comadre Marina é aproximar-se de algo que é invisível aos olhos, mas essencial à alma.

Maria Mineira.

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Triiim triiim triiimm...— Alô, Seu Luciano?— Sou eu...— É Clarinda... Mulher do Bigode da mercearia...— Ah, Dona Clarinda! Tô lembrado...—Tem viagem marcada pra quinta?—Tenho não... A senhora tá precisando de motorista?— Tô. Uma consulta lá em Monte Bonito...— Dá pra levar a senhora, sim...— Ah, que beleza! Já acostumei com o senhor...— Agradeço a preferência, Dona Clarinda.— O senhor que faz por onde...— É mesmo?— Mesmo! Tem uma grande qualidade...— Que qualidade, Dona Clarinda?— A calma! Não gosto de gente estressada, Seu Luciano...— Pois calma é comigo mesmo!— O senhor que tá certo.— Brigar com relógio? Né comigo não!— Por isso que não lhe falta serviço.— Graças a Deus!— Viajar com motorista tranquilo é outra coisa.— Esquentar pra quê, né, Dona Clarinda?— Isso! Pra quê? O povo todo meio doido, Seu Luciano, não tá?— Ô!— O Bigode não gosta de fechar a mercearia. O senhor é uma mão na roda!

NA BASE DA CALMA

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— Fico satisfeito com a confiança...— Aqui pra nós, Seu Luciano. Eu até prefiro ir com o senhor, sabe?— Que isso, Dona Clarinda!— Uai, é verdade! Por causa daquilo que falei... Da calma. — Ah!— O Bigode, ai! Gosto nem de pensar!— Seu Bigode é pé quente?— Se é! Sem paciência de tudo. Não deixa ninguém passar...— Cruz credo, Dona Clarinda!— Pura verdade! Quase morro! E xinga cada nome!— Deus o livre!— Mas vem cá, Seu Luciano. A que hora o senhor passa aqui em casa, na

quinta?— A consulta é quando?— Às 9.— A gente sai às 7, combinado?— 7 horas, Seu Luciano?— Tá achando tarde?— Tarde? Tarde, não! É que são só trinta quilômetros, e...— Dona Clarinda!— Hã?—Eu sou calmo, esqueceu?—Tá certo, tá certo, Seu Luciano... Às 7, no prego!

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Quinze dias na praia! Magno mal podia crer. Estava em Conchinhas, um ponto perdido no litoral, ideal para quem queria fugir do mundo. O rapaz dava aulas de Matemática em escolas públicas. Assim mesmo, no plural, porque para arrimo de família, a jornada é duplicada, triplicada, milhonizada... E por aí vai... Salas superlotadas, 40 alunos em média. E adolescentes! Que tarefa! O professor merecia um prêmio, não? O de estar na solidão em Conchinhas, por exemplo...

Esquecer tudo que é número! Primeira meta do professor! Principalmente se esses números fossem de 1 a 12 e estivessem dentro de um relógio. Se safar das conversas chatas do ambiente de trabalho. Ô lugar, de gente faladeira! Na maioria, das vezes, pra reclamar do governo... (se bem que na hora da greve, adeus conversa, todo mundo mudinho!)

Vestido para a caminhada matinal, Magno seguia a rota que mais amava: a das areias brancas e frias de Conchinhas. Ah, liberdade! Pássaros em revoada, relâmpagos prateados de peixes emergindo das ondas, ao sol da manhã, silhueta de navios recortadas ao longe, contra o horizonte... Que vida, hein, professor?

Solidão! Era o que mais o atraía em Conchinhas. A praia quase selvagem afugentava os mais agitados. Estes iam para Porto Seguro curtir coisas do tipo “ado, aado, cada um no seu quadrado”, coisa que ele, rapaz de alma mais poética, não era muito adepto. Sumissem todos lá pra Porto e lhe deixassem Conchinhas...

Uma silhueta ao longe! Vida humana na praia! A raridade vinha pela areia, em direção contrária. Divagou intimamente sobre o ponto escuro ao longe: um solitário como eu. Aquele ou aquela também não gosta de Porto. Custava nada ser a mulher da sua vida... Em alguns romances é assim que acontece: o grande encontro das almas nas areias de uma praia deserta. Seria bom! Estava mesmo em idade de casar...

FÉRIAS PERFEITAS...

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O ponto escuro se movendo ao longe, não dava pistas: homem? Mulher? Tivesse um binóculo, Magno traria pra perto de si, as feições daquele seu cúmplice das areias. De qualquer forma iam se cruzar. Torcia por uma bela sereia... Férias perfeitas, hein?! Sem saber por que, a cabeça deu um giro. Luan e Vanessa! Pôs-se a assoviar a canção da dupla: “Foi um sonho de verão/ Numa praia...”

Aos poucos, o vulto das areias ia tomando forma! Formas concretas, numa roupa de caminhada, óculos escuros, boné quadriculado... E tinha voz:

— Guinho! Fessô Magno! Num cridiiiiito!Quis fugir, cair na areia fingindo que uma bala perdida vinda de algum navio

pirata o tinha encontrado... Em pleno peito! Mas qualquer coisa seria em vão: acabava de ser irremediavelmente reconhecido pelo Zé Geraldo, o professor de Português mais chato, que esse Planeta já viu.

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— Seu nome?— Cacilda.— Enfermeira Arlete. Está se sentindo bem?— Tô, tô bem, graças a Deus...— Veio em jejum de 12h?— De 12h. Só comi um pãozinho lá pelas 7...— Quem pediu o exame?— Taí no pedido. Dra. Beatriz...— Hum... Reumatologista.— Isso.— A senhora tá fazendo o exame por quê?— Umas dores. — Onde?— Ih, pra todo lado, tô achando que já até sei o que é...— O quê? — Essa doença da moda. Fibromialgia...— Nada, Dona Cacilda. Pode ser coisa simples...— Tomara! Essa tal Fibromialgia aí, não tem cura...— Mas tem tratamento. Tomou algum remédio, hoje?— Tomei. Eu tomo um montão, né?— Fala pra mim. Preciso anotar...— Aqui o papelzinho... Tudo anotado aí.— Muito bem, Dona Cacilda! A senhora é cuidadosa...— Né isso não, os nomes é que são estrolofobéticos...— Estrolofobéticos? Êh, Dona Cacilda...— Não é ? Quem dá conta de decorar tanto trem esquisito?

EXAME DE SANGUE

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— Já fez exame de sangue, né, Dona Cacilda?— Com a idade que tô? Trezentas mil vezes!— Óóóótimo! Então já sabe que não dói nada...— Melhor se não precisasse fazer, né?— Mas, precisa. Então... Qual é a veia melhor?— Todas.— A que pega melhor, Dona Cacilda...— A do braço esquerdo...— Só uma picadinha, viu? Uma formiguinha...— Tá bom...— O garrote tá muito apertado?— Tá bom.— A senhora fique calma...— Tá bom.— Pode fechar a mão, viu? Com calma...— Tá bom.— Só um instantinho... Caaalma...— Aiiiiiiii! Peraí, Dona Arlete!— Ué, que Aiiiiiiii é esse? Pra quê isso? Nem finquei a agulha!— Nem vai fincar! A senhora demorou tanto pra me acalmar, que perdi a

coragem!— Volta aqui, Dona Cacilda!!!

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— Alô!— Sou eu, mãe!— Miiiica! Saudade, filha!—Também...— Ih... Que voz é essa, filhota? Cê tá triste, Micaele!— Triste não, chateada...— Quê que foi, meu amor?— Fiz um teste ontem, mãe, levei pau...— Matemática?— Que Matemática, mãe!— Não? Teste de quê então, menina?— Lá no teatro, mãe!— Micaele! Cê continua invocada com teatro?— Eu gosto, mãe!— Cê não foi pra BH pra fazer teatro, Micaele Eugênia!— Peraí, Mãe!— Para, Micaela! Agora sou eu quem tô chateada...— Ué, por quê?— Seu pai tá te bancando aí é por causa da Engenharia!— É que...— É que nada, Micaele! Escuta, cê largou a Faculdade, é isso?— Larguei não, juro!— Micaele, não mente pra mim!— Não tô mentindo! Tô indo na Engenharia...— Tá mesmo? E esse tal de teatro?— Eu sempre gostei de teatro, mãe...

COM UM PÉ NO TEATRO

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— Não é só gostar, Micaele! Já cansei de falar! A pessoa tem que ter talento!— Eu sei, eu sei...— Cê não tem talento!— Quê isso, mãe? Eu nasci com um pé no teatro...— Pois tire esse pé do teatro e bota no chão, agora!— Eu amo ser atriz, mãe...— Atriz! Tenha paciência, Micaele!— Ué, que cê tem contra alguém ser atriz?— Contra alguém, nada...— Então é isso, cê não torce por mim...— Torço sim! Não levanta falso na sua mãe!— Carreira artística não é mole, a gente tem que ralar!— Por isso mesmo! Cê já fez quantos testes, hein? Fala, Micaela!— Até agora, só oito...— Passou em algum? Passou?— Ainda passo!— Micaele, nem no teatrinho da escola cê dava conta...— Aiaiai, tava demorando...— Esqueceu a fala do Chapeuzinho, lembra, Micaele!— Que Chapeuzinho, mãe?— Chapeuzinho sim! A da Branca de Neve, a da Cachinhos de Ouro...— Eu só tinha 10 anos...— 10 anos! E não dava conta de decorar uma frase...— Pois não desisto! Ainda pego algum papel!—Pelo amor de Deus! Que papel, minha filha?— Sei lá... Qualquer um! De estátua viva, na rua...— Jesus! De Engenheira à estátua viva? Cê mata seu pai, Micaele Eugênia!

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Não era mulher de luxos. Só o essencial, quando havia necessidade: uma festa de família, algum evento social a que não podia faltar. Aversão profunda às lojas e às vendedoras! Aquele “Nossa, ficou a sua cara!”, totalmente ensaiado, à porta dos provadores, tinha um poder absurdo de irritá-la! Queria mais era se desvencilhar das peças e dizer vitoriosa: não serviu! Ficou grande, ficou pequeno, ficou largo, ficou apertado, tá me matando, ficou horrível!

Viver na roça: era esse seu desejo. Trajar vestido de algodão como o da avó, tingido com resina de folhas do mato, tecido no tear. No pé, uma alpercata de couro, o cabelo enrolado num coque, nada de cremes, pós, ou esses emplastos que besuntam a cara de mulheres que tentam parecer mais jovens, mais bonitas. Pele fresca! Que ilusão! nada contra as marcas do tempo, sentia-se bem, em paz com suas rugas...

Agora, o dilema! A Lia ia casar e não dispensava sua presença. Madrinha não ia ser, tinha sido franca, não aceitou. Mas o ar da graça tinha que dar. A prima podia se ofender, dizer que não lhe tinha consideração. Queria bem à Lia. Ia prestigiar, comprar uma roupa à altura do casório: tudo que tinha, já estava repetido, muito usado, fora de moda...

Onde comprar? À caça de uma loja, que suplício! De olho nos manequins! Nada que lhe agradasse ou desejasse vestir. Na esquina da Tupis, uma boutique nova: será que valia a pena dar uma olhada? Entrou desanimada, preparada para a batalha de escolher algo que lhe agradasse. Vontade de dar meia-volta e sumir! Uma moça bem vestida, de salto alto, veio atendê-la. Notou-lhe a frieza, já sabia por que: a loja tinha cara de cara! Tudo cercado de espelhos, almofadas, sofás, vasos e luminárias. Que bobagem! Detalhes sem valor, quando queria apenas encontrar uma roupa que lhe servisse...

O VESTIDO VERDE-ÁGUA

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E a sorte? De cara, simpatizou com um vestido: tecido bom, corte bem marcado na cintura. E o mais importante: verde-água! A cor que amava! Tamanho M? Perfeito! De alma nova aproximou-se, sentiu a maciez do tecido, consultou o fino acabamento das costuras. Sem pestanejar foi logo dizendo:

—Vou levar!Com olhar desconfiado, a vendedora mediu-a de alto a baixo, e não

disfarçou a descrença: será que aquela coitada sabia em que loja tinha entrado? Sapatinho baixo já meio roído do lado, roupa medíocre, cabelo sem trato... Ai! Triste, perder tempo com gente assim. Uma desavisada! Ia aborrecê-la, tomar seu tempo, e quando ouvisse o preço do vestido, ia sair correndo! A peça não era pro seu bico! Que remédio? Mostrar o vestido pra deslumbrada sem noção! Foi avisando:

— O preço é alto.— Pra quem? Diante da indagação provocadora, a moça se vingou: — 5 mil e quinhentos! Sem dizer nada a mulher jogou sobre o vidro do balcão, um retângulo

dourado e anunciou:— O cartão leva o vestido e a loja! Embala! Faça o favor!Conta paga, sacola na mão, ela tomou o ônibus para casa. Aliviada, pensava:

o vestido verde-água era perfeito e tinha custado uma bagatela! Gotinha d’água perto do mar de dinheiro que guardava no banco de sua confiança...

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— Ei, Dona! — Pois não...—O nome da senhora, faz favor?— Iolanda.— O meu é Ducarmo. Será que a senhora pode me ajudar?— Em quê?— Me comprando uma rifa...— Hã... —... uma rifa beneficiente...— Em benefício de quê?— É... É de mim mesma...— É?...— Então... Não vou mentir pra senhora. Mentira tem perna curta, né?— Se tem, Dona Ducarmo...— Não passo ninguém pra trás...— Entendi.— Eu trabalhava numa cantina, mas fechou.— Tá desempregada?— De mão abanando, Dona Iolanda.— E teve a ideia da rifa...— Pois é... Tô rifando um frango assado pela loteria.— Deixa ver...— Aqui, o papel. A listra já tá quase cheia.— Mais de 50 bilhetes vendidos, hein?— O povo é joia. Um homem ali comprou 10 de uma vez.— Vontade de comer frango, hein?— Nada! Ele nem assinou. Só pra ajudar...— O bilhete é quanto?

VENDENDO RIFA

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— Dez...— Dez reais?!— Tem que ser. Senão não paga a pena...— É mesmo?— Paga não! Rifa dá trabalho. Gasta as pernas.—Gastar as pernas pra arrumar emprego não paga mais a pena?— Ih, emprego tá difícil!— A senhora sabe fazer o quê?— De tudo! Comigo não tem disso não! — Que bom!— Coisa que não tenho é preguiça! Lavo, passo, varro, cozinho, olho

menino...— A senhora pajeia! Sei quem tá precisando!— É... Só que agora não tô pegando pajeamento, não...— Não? E por quê?— Com o dinheiro da rifa vou abrir uma empresa...— Puxa! Grandes planos.— A gente tem que pogredir, né?— E a empresa é de quê?— De brigadeiro.— Docinho?— Lá perto de casa tem uma obra grande, vou vender lá.— Dona Ducarmo, mulher de visão!— Nada! Meus óculos tão tudo fraco. Sem dinheiro, adeus oculistra!— Com a empresa, vai melhorar, né?— Ah, se vai! Então... Vai ficar com um bilhete?— Um, não! Marca uns três aí, Dona Ducarmo! —Três? Louvado seja Deus!— E nem vou assinar! — Uai, não vai arriscar o frango?— Não, Dona Ducarmo. Gostei foi da sinceridade!— Ô! Deus abençoa!

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— Seu Gustinho! Cadê a alface fresquinha?— Acabou de chegar, Dona Celinha!— Dia bonito, hein, Seu Gustinho?— Meio parado, né?— Verdade. Acho que o povo ainda não acordou...— Domingo é assim, né?— Achei que ia amanhecer fervendo...— Uai, por quê?— Por causa do jogo, né?— Tem jogo hoje, Dona Celinha?— Tem, Seu Gustinho!— Quem joga mesmo?— Brasil!— Joga com quem?— Com a Espanha!— Hum... Time forte?— Ô se é! Todo mundo com um pé atrás...— Onde vai ser o jogo?— No Maraca, Seu Gustinho!— Em que lugar fica isso?— O Maracanã? No Rio de Janeiro!— Longe, hein?— Né muito perto, não, né?— Então a Copa do Mundo chegou?— Não é a do Mundo, é a das Confederações.— Mais importante que a do Mundo?

FORA DO JOGO

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— Não, essa é só um ensaio pra do Mundo...— Nossa, o povo inventa tanta coisa, hein?— Jogo que não acaba mais, Seu Gustinho...— Com essa Espanha, será que o Brasil apanha?— Sei lá... Mas Espanha e apanha até rimou, bom sinal!— Aquele rapaz, o Ronaldinho, vai jogar?— O Ronaldinho não joga mais, não...— Ah, não? Quê que houve com ele? Não sarou o joelho?— Ele parou, Seu Gustinho...— Coitado! Cansou, né?— Deu o tempo dele. Jogador é assim...— Quem tá no lugar dele?— Ih, tá tudo novo...— Fala uns nomes aí, só pra eu saber— Agora é Neymar, Fred, Paulinho...— Aquele Sócrates, ainda tá?— Nossa, Seu Gustinho! O Sócrates morreu!— Morreu, Dona Celinha?— Já faz um tempo!— Sou meio por fora desse negócio de futebol...— Tem problema não, Seu Gustinho. Gosto é gosto...— Dona Célia... Se o Brasil ganhar, a senhora manda me contar...— Mando sim... Pro senhor vibrar e soltar uns foguetes!— Nada, Dona Celinha... Só pra não passar vergonha com os clientes, né?

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— Pai...— Hum...— A vó fuma?— Quê isso, Raulzinho? A vovó nunca pôs cigarro na boca...— Pai...— Quê, Raulzinho?— A vó bebe?— Tá doido, filho? De onde cê tirou essa ideia? Sua vó nem sabe que gosto

tem álcool, menino! Ela só toma leite, suco, água, essas coisas boas...— E futebol, pai? A vó torce pra qual time?— Raulzinho, pelo amor de Deus! A vovó odeeeia futebol! — Verdade?— Verdade, filho. Quando seu avô era vivo e via jogo na TV, ela até corria pra

casa da vizinha. Se era gol então! Seu avô gritava e batia na mesa. Ela ficava tiririca!

— Mais uma coisa, pai...— Fala, filhão!— A vovó ainda vai viver muito?— Claro! Sua avó é forte, saudável!— Uai, então não entendo mais nada...— Não entende o quê, Raulzinho? Por que tantas perguntas?— É que eu ouvi umas coisas por aí...— Que coisas, menino?— Ah, que quem não fuma, não bebe, não torce por futebol morre cedo...— Raulzinho! Que papo é esse? Quem disse isso estava brincando, filho!

É BRINCADEIRA?

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— Brincando? Ué, pai, brincar que eu sei é de bola, de joguinho, de carrinho...

— É filho, cê tá certo. Isso é que é brincar de verdade.— Pai...— Quê?— Existe brincar de mentira?— Raulzinho, não complica... Quando eu digo que a pessoa que falou estava

brincando, na verdade ela não estava brincando...— Ué, como assim?— Filho, foi só jeito de falar...— Então a gente fala de muitos jeitos?— Fala, Raul, fala sim! Tem hora que a gente não fala sério. Só brinca. É o

que a pessoa que cê ouviu estava fazendo: falando abobrinha...— Abobrinha? Abobrinha é de falar também? Não é só de comer?— Filho, os adultos costumam falar besteira, abobrinha...— Os adultos? Ah, então cê também fala com abobrinha?— Raul! Eu não falo com abobrinha!— Cê mesmo disse: os adultos falam... Cê é adulto... Ou não é?— Para! Para com isso, menino!— Ih, cê tá nervoso, pai?— Tô! Eu tô nervoso!— Hum... Fala com abobrinhas, e fica nervoso à toa!— À toa, não! Ah, Raul vai brincar, vai...— De verdade, ou de mentira, pai?

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— Maria Cecília...— Hum...— E a prova, tava fácil, filha?— Tava— Cê acha que foi bem?— Fui.— Caiu o que você estudou, ou tava muito fora?— Caiu.— Então valeu a pena as aulas particulares com a Dirce?— Valeu.— Minha filha, se der pra você passar, você vai mesmo embora?— Vou.— Cê sabe que vida em cidade grande é muito diferente dessa daqui, né?— Sei.—A Bia, sua amiga, também vai, né?— Vai.— Ela é do seu curso?— Sim.— Pois é, se ela for alugar apartamento, cês bem que podiam morar juntas,

né?— É.— Você e a Bia se dão bem, né, filha?— Sim.— Gosta da ideia de morar com ela?— Gosto.— Fico com o coração partido de ter que deixar você ir...

DE OLHO NO TABLET

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— Bobagem.— Vou sentir sua falta... Cê vai sentir falta da mamãe?— Vou.— Sabe, essa hora dos filhos irem embora é triste...— Pois é...— Mas é pro seu bem, né, filha? Eu não sou egoísta. Tenho de lhe deixar ir.— Hã rã.— Cê vai se acostumar, viu?— Viu.— Quando der saudade a gente se fala por telefone, né?— É.— De quinze em quinze dias a gente se vê... Passa rápido.— Passa.— Então vamos aguardar o resultado da prova. Se der tudo certo, vamos

organizar sua mudança.— Hã rã.— Quando sai mesmo o resultado?— Sei não.— Não sabe, meu anjo?— Não.— Maria Cecília!— Hum?— Larga esse tablet um pouquinho e me ouve, filha...— Tá.— Sabe do que mais a mamãe vai sentir falta?— Quê?— Dos altos papos que a gente bate, filha...

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Triim triim triim...— Alô...— Cadê o Mike?— Quem?— O Mike! Tô precisando falar com ele...— Minha senhora, aqui não tem Mike!— Como não tem? Esse é número dele...— Esse é o meu número...— Ah, deixa disso, moça! Chama o Mike pra mim...— Já lhe disse, aqui não tem ninguém com esse nome!— Menina, isso vai sair caro. Tô falando de muito longe...— Eu sei.— Sabe, como?— A voz tá meio fraca...— Ah... Eu sou mãe do Mike, viu?— Muito prazer, senhora mãe do Mike!— Você é namorada dele?— Oi?— Perguntei se é namorada do Mike.— Quê isso? Eu não namoro ninguém...— Não namora... É ficante, então... Sei...— Quê?— Ah, deixa pra lá... Esse é o número do meu filho.— Vai ver se enganou na hora de ligar.— De jeito nenhum! Coisa que sei bem é ligar telefone direito!— Tá bom, tá bom... Aqui é Minas.

NA PISTA DO MIKE!

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— Minas?— Minas Gerais...— Que cidade?— Buenópolis.— Pronto! Acabava mesmo com “polis” a cidade que o Mike falou...— Não quero decepcionar a senhora, mas...— O Mike foi pra trabalhar num Ginásio Poliesportivo.— O Mike é atleta?— Atleta não, servente de pedreiro.— Esquisito...— O quê?— Não estão construindo nenhum Ginásio em Buenópolis...— O Mike não mente!— Eu não quis dizer isso...— Se não tem obra de Ginásio aí, então, tá dizendo que o Mike mentiu.— Isso é a senhora que tá dizendo. Mas obra não tem mesmo!— Como é que cê sabe?— Buenópolis é um ovo!— Um ovo? Aí não é cidade?— Um ovo de tão pequena!— Não precisa gritar!— Não tô gritando. A linha tá ruim...— Desligo... Isso vai ficar caro...— Sinto muito! Passe bem, minha senhora!— Ei!— Pois, não?— Dá um recado pro Mike...— Recado? Ai, que Mike, gente?— Fala que já tô na rodoviária! Indo pra Buenópolis!— Hã?Tum... Tum... Tum...

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—Tia Bete? — Sim!—Teresa, mãe da Laura! A senhora ligou...— Ah, que prazer, Teresa! Por favor, vamos sentar...— E aí, professora, o que a Laura anda aprontando?— Pois é, mãe... Tenho imprensão que a Laurinha não tá bem.—Tem imprensão?— É... Anotei tudinho aqui nessa cardenetinha...— Ah... Na cardenetinha...— Primeiro é o motor...— O motor?— É, o desenvolvimento motor da Laura é complicado...— Puxa, nunca observei...— Uma hora é lento, outra hora é desastrado...— Sei... Por exemplo, quando é lento?— Ela ainda não amarra o cardaço do tênis...— O cardaço... E o motor desastrado, como é, Tia Bete?— Pedi pra pegar os pincéus na parteleira... Derrubou tudo no chão.— Na partileira? Os pincéus? Oh, céus!— Então... A gente preocupa, né? Sorte que os troféis lá na última taba só

balançou...— Sorte mesmo, Tia Bete. Se os troféis caem da taba, que tragédia!— Não é?— Fora isso, que mais, Tia?— Interpretação. A Laurinha não entende bem as coisa...— Verdade?

NUM BOM PORTUGUÊS

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— Contei a historinha da “Marta Largata”...— “Marta Largata”? Ah...— Perguntei de que Reino Animal é as borboleta. Ela não deu conta...— Não deu conta... Levando em conta que Laura tem 6 anos, isso é mesmo

preocupante...— Não é?— Mais alguma coisa, Tia Bete?— Noção espaciais...— Foram pro espaço as noções da minha filha?— Mistura Direita e Esquerda. Mostrei uma marquete da rua... Ela se

confusou toda!— Não diga! Laura se confusou com a marquete! Lastimável!— Matemática. Fico afrita com o raciocino dela...— Afrita fico eu! Ai, meu Deus! O que há com a Matemática da Laura?— Até hoje tá misturando triângulo com losângulo...— Ah, não! Com losângulo, não! Que distraída! E o Inglês? — No Inglês ela não tem grandes poblemas. Mas Inglês é tão difícil, né?

Deixo passar os errinho dela...— Tem razão. Pra que criar poblemas, se o Inglês já é um poblemão, não é?— Nem sei, pra que enxigem Inglês. A gente custa dar conta do Português...— Pura verdade! Enxigir mais no Português, eis a questão, Tia Bete!— Então, vai conseguir ajudar a Laurinha, mãe?— Vou! Ah, eu vou! Hoje mesmo vou conversar com ela!— Joia! Um bom diágolo sempre ajuda...— O diágolo ajuda demais! Mas minha tática vai ser outra...— É? Não vai castigar a coitada da Laurinha, viu?— Não! Vou mudar a coitada da Laurinha de Colégio! Urgente!

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— Dona Mirinha!— Tudo bem, Seu Nenê?— Vi o caminhão das “Lojas do Lar” saindo aí do seu lar...— Pois é! Fiz umas aquisições!— Isso é bom! Sinal que tem dinheiro no bolso!— Uai, eu também sou filha de Deus, né, Seu Nenê?— A senhora merece. Trabalha demais...— Trabalho mesmo!— Eu sei! A vizinhança toda sabe!— Só na batalha, senão não vai!— Família exige, né, Dona Mirinha?—Três filhos! Sozinha! È brincadeira?— Do Irineu, nem sinal, né?— Nem sinal! Sumiu pra mais de 8 anos!— Foi comprar cigarro no boteco e até hoje?— Até hoje!— Boteco longe, hein?— O boteco era no Japão... E se chamava “Eliana”!— Eliana? Eh, Dona Mirinha! Ainda faz piada...— Piada, uai! Vou chorar?— Tá certo, tá certo!— A vida é ruim só pra quem quer...— Boa filosofia!— Não é? Inventei isso pra mim...— Sabedoria!— Deus ajuda a gente, Seu Nenê!

DINHEIRO NO BOLSO

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— Ah, Deus ajuda, sim! Taí o empregão na loja do Italiano!— Ai de mim, não fosse o que ganho lá...— Tenho visto... Tá um brinco sua casa! Toda reformada!— Graças a Deus!— Pelo jeito agora tá mobiliando, né?— Aos pouquinhos, Seu Nenê...— Mobília também tá pela hora da morte, né?— Sorte nossa, as “Lojas do Lar”...— Palavra de freguesona! O caminhão tá sempre por aqui.— As condições facilitam, né, Seu Nenê? Tudo parceladinho...— É... Aí dá pé...— Se dá! 12 vezes, sem entrada e sem juros! Pago sem ver.— Mal lhe pergunte, o que a senhora comprou hoje?— Ah, minha cozinha planejada! — Bem vi que ficaram aí a tarde inteira...— É...Tá montadinha! Espetáculo! Meu sonho, Seu Nenê! Veio lá do Sul! — Ficou nos conformes?— Se ficou! Do jeitinho que imaginei!— E agora? Qual é o sonho, Dona Mirinha?— Agora é passar a comer com a família na cantina da Jackeline... — Na cantina da Jackeline?— Lógico! Sou doida de detonar minha cozinha planejada, Seu Nenê? Capaz,

hein?

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— Quanto ela media? — Perto de 1,70, doutor.— Peso?— Mais ou menos uns 63.— Cor de cabelo?— Louro, depois ruivo, depois preto, depois...— Tá bom. Os olhos?— Verdes... Caindo pra mel. De tarde, violeta...— Sei. Estudou?— Até o quarto ano antigo, eu acho... Não, calma aí! Fez ginásio também...— Trabalhava?— Ah, pelejava muito, doutor...— Onde?— Na “Esquina da Pizza”, na “Cantina da Tida”, na “Cozinha da Mãe

Joana”...— Por último?— Não lembro. É tanto lugar que embaracei tudo...— Ganhava quanto?— Um salário, eu acho... Ou um e meio, ou dois...— Tá.— Lembra de algo que gostasse muito?— De muita coisa...— Por exemplo...— De dançar, de música...— Que tipo de música?

À PROCURA DELA

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— Axé, Pagode, Funk, música animada, música devagar, Roberto Carlos, Jovem Guarda...

— Ajudou bastante... Gostava de ler?— Mais ou menos. Jornal do açougue, revista no salão, quadrinhos da banca,

e fazia Cruzadinha também, de nível facinho...— Entendi... Comida?— Ah, comia de tudo. Só odiava peixe, arroz, feijão, farinha, café, verdura,

leite, ovo, pipoca, canjica, repolho, couve, alho na comida, toddynho, amendoim, bala de hortelã e...

— Tá legal, já deu pra ter uma ideia... Fumava?— De vez em quando, quer dizer, todo dia...— Ô Deus! Bebia?— Caipirinha, vinho, conhaque, rum, vodka, tequila, um nome Francês, ou

Italiano que não sei falar direito... Jonesválquer, acho.— Não seria Johnnie Walker,?— Esqueci... Tô meio tonto.— Pudera!— Hã?— Nada não... O nome dela?— Maria do Rosário... Quer dizer, do Socorro... Pera aí, não! Maria

Perpétua... Ou da Piedade?— Piedade! Piedade, digo eu! Como é que vou encontrar sua mulher se nem

o Senhor sabe quem é ela? — É que faz muito tempo, doutor!— Quê isso? Não faz um mês que sua mulher sumiu!— Não?— Ah, pelo amor de Deus, Seu João da Cruz!— João da Cruz, não! João Salvador!— João da Cruz! Tá na sua identidade!— Uai, quem lhe deu minha carteirinha, doutor?

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Piriiiiiiii!!!!!!!!!!!!— (Ai, interfone a essa hora?) Quem é?!— É Valdir, minha senhora. É a dona da casa?— Sou eu sim...—Tô passando com um texto bíblico para uma reflexão...— Reflexão, Seu Valdir? Não vai dar... Tô com a panela de pressão no fogo.— É rapidinho, Dona... Qual é mesmo o nome da senhora?— Elenice.— Dona Elenice, não vou demorar...— Como eu lhe disse, tô cozinhando feijão...— O feijão é mais importante que Jesus Cristo, Dona Elenice?— Não se trata disso, Seu Valdir, eu sou Cristã... Mas,— Cristã! Ótimo! A mensagem de hoje fala que...— Seu Valdir, não vai dar...— Cristo é tudo, irmã!— Não duvido, Seu Valdir, só que...— Dona Elenice!— Sim!— A senhora acredita em fim do mundo?— Hein?— Perguntei se acredita em fim do mundo...— Seu Valdir, que pergunta mais polêmica!— Polêmica? Não para quem escuta a palavra de Deus!— Eu escuto, e ...— Escuta não, Dona Elenice! — Ah, não? Que desaforo! Vou é cuidar da minha panela!

SÓ NA PRESSÃO

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— A senhora dá mais valor às coisas do mundo.— Uai, quê isso agora? Que calúnia é essa?— Calúnia? Não sou gente de calúnias!— Ah, é sim! Olha aí: dizendo que não ligo pra Deus!— Não fui eu quem disse isso!— Então quem foi? Aposto que foi a fofoqueira da vizinha, aí do lado?— Que vizinha, Dona Elenice? A senhora tá me confundindo!—A oxigenada da Cidinha! Passou lá, antes de bater aqui, não foi?— Quê?— Foi ela! Temos umas diferenças, tenho certeza que...— Eu não falei com nenhuma Cidinha! E nunca vi a senhora...— Nunca me viu! Então vai com calma! Que liberdade é essa comigo?— Dona, Elenice... Creio que está havendo um mal-entendido.— Agora é mal-entendido? Que coisa feia!— Escuta, eu juro por Deus que...— Epa, Seu Valdir! Não jure o nome de Deus em vão, por favor!— Tô só falando que...— Um bom Cristão não jura por jurar, presta atenção!— Dona Elenice! Quê isso?— Quer saber? Não tô por conta! O feijão tá no fogo e...— Só tô tentando explicar...— O dito tá dito! Não tem conserto, ok?!— A palavra de Deus...— Eu lhe avisei: tô cozinhando feijão, Seu Valdir!— Dona Elenice, não vou insistir! Mas, saiba que...— O quê?— A Palavra de Deus é explosiva!BUUMMMM!!!!—A panela de pressão também, Seu Valdir! Ai, o feijão!

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...Dia de marguerita com guaraná. Sentadas à mesa, Bel e Ju veem a moça se proximar. Bonita. Muito bonita. E bem vestida. Sorriso de dentes perfeitos, a recém-chegada não esconde a satisfação:

— Meninas! Não acredito! Que bom ver vocês!Juliana apela para a memória. Quem é a morena elegante? Não lembra. Mas

pelo jeito Bel se lembra, e muito bem:— Opa!!! Senta aqui com a gente, vai...A moça explica que está esperando uma pizza ficar pronta... Papo rolando,

não demora muito e Juliana mata a charada: tempos do colégio, claro! A moça fala pelos cotovelos. E nem Bel, exímia tagarela, consegue cercá-la. Só vai escutando, rindo, assentindo, confirmando o que a bela vai disparando:

“Professor Orlando, lembra?! Que gato! Dava aula de Biologia. Era noivo da Paula que trabalhava na secretaria, uma chata! Ai, que mulher ciumenta! Enchia a paciência do fessô gatinho. Achava que todas as meninas davam em cima do Lando. E o pior que davam mesmo...”

“Português, era a Marli. Cobra na Língua! Aliás nas duas línguas! Sabia Português, fera demais! E sabia reclamar da gente. Tretou relou, lá ia ela chamando os pais pra reunião. E ali tinha! Falava tudo, contava tim tim por tim tim tudo que a gente aprontava.”

“Rosângela, era Inglês. Charmosa, lembra? Mas braaaaava!! Não aceitava uma palavra em Português! E quem errasse na pronúncia? Cada grito! O berro varava quarteirão. Nem um pio, mosquitinho voando na aula, ô agonia!”

“Professor Wilton, na Educação Física. E o ensaio da parada de sete de setembro, hein? Pelotão perfeito! Marcha! A gente na maior canseira, batendo o pé esquerdo no toque forte do tambor. Tinha que ser o direito, né? O Wilton fulo, vermelho, bufando! Ninguém acertava o passo! Parecia até combinado...”

HOJE É SEXTA-FEIRA...

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“Dona Cesira dava Geografia. Olhar de terror, não era? Arguição das brabas, valendo metade da prova. E sem gaguejar! Resposta firme e certa. Até hoje escuto a megera: “Características da vegetação de cerrado, Marcelo...”. Coitado do Marcelo, tremiiiia! Sinistra aquela Cesira, vou te contar!”

Juliana observa. Quem é a moça? Quem é ela? Quem é ela? Que branco! Que chato, não lembra! Por fim, a pizza encomendada tá pronta. A morena pega a embalagem com o garçom e vai acertar a nota no balcão. De lá, acena um adeusinho e segue para a moto na calçada. Ju respira fundo e encara a amiga do outro lado da mesa:

— Que papo, hein, Bel?— Ué, e você aí o tempo todo caladinha! Quê isso?— Menina, não consegui lembrar da moça. — Não? Poxa, ela estudou com a gente lá no Mário Veiga!— É... Pelo papo, eu saquei. Mas, fala aí, quem é ela?— Ela? Ô Ju, se liga! Essa aí é o Paulo Henrique, o do cabelo comprido e

lisinho. A gente chamava ele de “indinho”, cê não lembra?

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