Saba Otage m
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Transcript of Saba Otage m
Encarar o ciclo da repetição foi o primeiro passo para ter algum controle sobre o que ele
estava provocando inconscientemente.
Estou me referindo aqui a um tipo de repetição menos instintiva, mas igualmente
insidiosa, uma necessidade inconsciente de repetir muitas vezes um comportamento, um
impulso de levar adiante um ato, não importando as consequências, mesmo que destrua a
vida e a felicidade de alguém.
como ela iria lidar com isso, com o fato de que toda a sua vida, todo o sentimento de
desamparo e medo e até de desespero baseara-se em ter de se submeter, já que não havia
escolha; não ter como lutar, nem alguém que a defendesse. Tanto a vida interior quanto a
exterior fundamentaram-se nesse terrível acontecimento, nessa sensação de não ter
controle, que moldou sua vida.
Psicologicamente, seres humanos, tanto crianças quanto adultos, são capazes de todo o
tipo de desejo, pensamento e fantasia. Eles são parte da condição humana; são o que
mantêm a criança viva dentro de nós, adultos; são necessários para a criatividade. Eles
devem ser celebrados, não negligenciados. Ainda assim, muitas pessoas passam a vida
pagando penitência pelo que pensaram, e não pelo que fizeram. Os sobreviventes não
querem sucumbir às terríveis provações. O impulso é de preservação da vida, de
preservação da espécie. Mesmo assim, se uma pessoa sobreviver, e todos à sua volta
perecerem, ela pode se sentir culpada, porque seu desejo de sobreviver se tornou
realidade, que é vivenciado como se ela tivesse sacrificado aqueles que pereceram. Há
quem considere isso como um exemplo de Schadenfreude, uma sensação de prazer
provocada pela desgraça alheia, embora este não seja exatamente o caso.
Quando Lynne veio pela primeira vez ao consultório, achei-a brilhante, altamente
motivada a atingir suas metas, determinada, uma workaholic de fato. Ela assumia
responsabilidades acima e além do que era necessário, tanto no emprego quanto no
trabalho voluntário. Sentia-se assoberbada. Mas também recebia crédito pelo que fazia -
era promovida, ganhava prêmios, ganhava reconhecimento. Ela assumia muito mais
coisas do que podia administrar, e isto consumia o seu melhor. Fiquei sabendo que,
depois de terminar a faculdade, Lynne havia tentado, pela primeira vez, o suicídio, indo
parar no hospital. Foi enviada para um tratamento ambulatorial com um terapeuta com
quem se relacionava bem. Mas o contrato era claro. Se tentasse o suicídio novamente sem
informar previamente o terapeuta, a terapia estaria encerrada. Lynne conseguiu um novo
emprego, que lhe exigia mais ainda. Iniciou o mestrado. Tornou-se mais ativa em mais
organizações. Continuou na terapia. Sentiu-se sobrecarregada, e tentou o suicídio
novamente. O terapeuta a dispensou. Logo depois dessa segunda hospitalização, Lynne
foi encaminhada a mim.
Lynne estava motivada a solucionar seu problema, mas era algo difícil. Uma das
primeiras coisas que fiquei sabendo foi que, quando Lynne estava no início da
adolescência, sua mãe se suicidara. Ninguém sabia por que isso havia acontecido. Lynne
e a mãe se davam bem, e a perda da mãe era a causa de sua confusão, tristeza e solidão.
Lynne não tinha ninguém com quem conversar. O suicídio da mãe foi um choque e, neste
estado, Lynne não conseguia sentir nada. Estava brava, mas não se permitia sentir raiva
da mãe. Estava triste, mas não se permitia enlutar pela morte da mãe. Tudo o que sabia
era que estava sozinha. Ela apenas se arrastava o melhor que podia, saindo-se bem no
ensino médio e na faculdade. Era uma pessoa popular, ativa em organizações e uma
grande empreendedora. Continuou a ser criada pelo pai, que sempre foi distante, tanto
com a esposa quanto com a filha. Ele prosseguiu vivendo como se tivesse dado pouca
importância ao suicídio da esposa e mãe de sua filha. Ele era apenas uma presença para
Lynne, e isto era tudo. Demonstrava pouca empatia pelo que Lynne vivenciava, porque
ele mesmo era muito ausente.
Lynne desejava e precisava dos cuidados que havia perdido quando sua mãe cometeu
suicídio. “Por que ela fez isso? Por que me deixou? O que eu fiz para ela decidir se
matar?” Lynne se perguntava.
Com o tempo, Lynne e eu investigamos a culpa que ela sentia pelo suicídio da mãe.
Trabalhamos a raiva que sentia pela mãe por tê-la abandonado e o distanciamento do pai.
Discutimos o comportamento terrível da segunda esposa do pai em relação a ela. Mas
lidamos, principalmente, com os sentimentos de Lynne. O que parecia mais importante é
que Lynne sentia que devia pagar uma penitência por ter desapontado a mãe. Em que
sentido? Ela não sabia. Mas sabia que era culpada de alguma coisa. Alimentava este
sentimento horroroso e corrosivo de que decepcionara a mãe terrivelmente.
Gradativamente, entretanto, foi percebendo que, subjacente ao seu comportamento
compulsivo e determinado, havia uma motivação de fazer com que a mãe se orgulhasse
dela, e de obter, assim, seu perdão. Perdão? Sim, porque era como se o suicídio da mãe
tivesse sido causado por algum desejo de Lynne de que ela morresse, e quando a mãe, de
fato, cometeu suicídio, a culpa foi de Lynne. Embora não tivesse nenhuma lembrança
desse desejo, havia grandes possibilidades de que, na criação de Lynne, como na de todas
as crianças, ela tivesse alimentado o desejo de que os pais morressem.
Lynne começou novamente com seu comportamento compulsivo e demos um freio na
sua tendência a assumir tanta coisa. Ela começou a entender que o ímpeto de se manter
ocupada representava sua maneira de provar o quanto era digna e o valor que possuía.
Ajudava-a a compensar a tenebrosa crença de que a mãe cometera suicídio por causa de
seus fracassos imaginários. Manter-se ocupada também ajudava a atenuar os sentimentos
reprimidos de raiva e de perda - uma perda pela qual nunca se enlutara. Lynne foi capaz
de compreender que se colocava sob intensa ' pressão para autoafirmar-se. Ela conseguiu
ver que o suicídio da mãe não tinha nada a ver com ela, e que fora motivado por razões
que Lynne talvez nunca viesse a saber. Mas compreendeu que não era a causa daquele
suicídio, e que não tinha de se matar de trabalhar ou suicidar-se para pagar esta
penitência.
Isso exigiu uma mudança radical em seu estilo de vida. Quando se sentia tentada a
assumir mais responsabilidades, persuadia-se do contrário. Sentia um vazio por não se
atirar em várias atividades. Temia que estivesse escolhendo o caminho mais fácil, ao ter
tempo para o lazer, para se divertir. Lynne tinha de pagar o preço máximo com a própria
morte, com as tentativas de suicídio. Quando alguém sofre uma perda como essa e não se
enluta, há um preço interno a ser pago, mais frequentemente na forma de depressão.
Lynne estava deprimida e brava, e queria ou cometer suicídio, ou trabalhar até a morte.
Lynne não queria morrer. Ela desejava ardentemente viver, mas isto a fazia se sentir
ainda mais culpada. Com o tempo, ela conseguiu expressar a raiva, o desapontamento, a
dor pela morte da mãe. Foi capaz de atravessar um período de luto, sem se lançar em
atividades frenéticas. O vazio que sentiu quando tentou não se manter sobrecarregada de
trabalho dissipou-se, e então, finalmente, foi capaz de viver sem ter de justificar sua
existência para a mãe. Ela também se permitiu apreciar a vida sem ter de fugir para
atividades compulsivas.
Pela repetição, acreditamos que podemos sobrepujar as dificuldades, mas, geralmente,
isto também leva a uma catástrofe. Parece que há um impulso inexorável de minar, de
desfazer as mudanças tão duramente conquistadas. Como ouso? Como ouso ter um bom
casamento quando minha mãe sofreu tanto no seu detestável casamento com meu pai?
Como ouso ser bem-sucedido no trabalho quando meu pai odiava o seu? Como ouso
apreciar a vida quando outros perto de mim não conseguem? Como ouso viver quando os
que estavam perto de mim pereceram? Minha culpa me priva de consolidar e de celebrar
minhas realizações e minha felicidade. Meu sucesso deve ser desfeito.
A culpa por ter sobrevivido é muito forte. Antes de mais nada, impede o sucesso ou leva
a ciclos de autossabotagem em que o indivíduo se torna bem-sucedido, e, então, sente-se
na obrigação de minar o sucesso fracassando. Casamentos problemáticos melhoram só
para serem derrubados pelo comportamento destrutivo de um dos cônjuges e os
problemas recomeçarem. Alcoólatras encaram seu problema e param de beber, somente
para terminar bebendo novamente, apesar de terem jurado que seus dias de bebedeira
haviam terminado. A boa vida, a vida pacífica, é insuportável. Os sobreviventes não
conseguem tolerar a paz e a tranquilidade. Eles precisam de agitação e de problemas para
se sentir vivos.
Um bom exemplo pode ser a vida - e, enfim, a trágica morte - de Primo Levi. Ele
sobreviveu aos campos de concentração e se tornou um grande escritor. Depois cometeu
suicídio.
O que é o medo do sucesso? Isto existe realmente? Ou muito já se falou sobre isso
quando, na verdade, tudo não passa, de uma miragem? Talvez. O fracasso nos negócios
ou nas artes, ou em qualquer outro empreendimento, pode ser real - o resultado de uma
queda na bolsa de valores ou de um mau aconselhamento profissional, ou, às vezes,
simplesmente de má sorte. Mas quando acontece repetidamente, alguma outra coisa está
atuando com bastante intensidade. Geralmente, é um sentimento corrosivo de culpa por
ter uma vida melhor que a dos outros, uma sensação de não merecer tanto. Para alguns, o
sucesso é equivalente a derrotar os outros, destruir os outros. O sucesso torna-se um
palavrão, evidenciando que o indivíduo está, de alguma forma, usufruindo de algo que
não merece. É difícil confessar e aceitar a responsabilidade final pelo sucesso - deve ter
sido um acaso, um acidente. Não posso acreditar que meus esforços foram bem-
sucedidos. A crença subliminar é que eu não mereço o sucesso e que, se obtiver, devo me
desfazer dele, miná-lo, bagunçar tudo. Falamos sobre o medo do fracasso, mas o medo do
sucesso é tão problemático quanto.
Atletas na iminência de atingir o sucesso podem vacilar e perder a posição. Musicistas
jovens, talentosos e premiados desenvolvem sérios bloqueios e não conseguem executar
seus instrumentos. Executivos de negócios que trabalharam arduamente para chegar ao
topo mudam de empresa quando estão prestes a ser promovidos. O ponto decisivo em
muitos desses casos é subjetivo, com base na fantasia de que ir além de um certo limite é
perigoso, porque há responsabilidade demais, exposição demais e sucesso demais. Para
tais indivíduos, a não ser que consigam ter algum discernimento, sabotar o sucesso é a
única maneira de solucionar o dilema.