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SABERES NÓMADAS E MODELOS DE LEGITIMAÇÃO DO CONHECIMENTO Aquilo que vou aqui abordar diz respeito ao modo como podemos observar os processos de estruturação dos valores segundo vários eixos; como esses eixos se constituem como charneira central que determina a necessidade e o tipo de comunicação que se activa. Como a acção comunicacional envolvendo a generalidade das relações sociais e institucionais se metamorfoseia, transformando-se segundo um processo mais ou menos aleatóreo de estruturação axial que vai ao mesmo tempo criando uma topologia dinâmica de relação entre sujeito e objecto, objecto e objecto, sujeito e sujeito. Como as circunstâncias que envolvem a presença de novas media- ções tecnológicas, auxiliares do processo de transformação axiológica, forçam a emergência de novos modelos de presença e representação: por exemplo, sequência e causalidade, substituidas por campo de acção; sujeito e objecto substituidos por nó e rede; estrutura e função por processo e devir, etc. Como, afinal, esse processo de estruturação dinâmica afecta a generalidade dos saberes constituidos, forçando-os a uma migração permanente em busca de paradigmas e dimensões novos mas consensuais, mesmo que utilizando elementos constituintes do paradigma anterior. Como essa migração de saberes deixa por vezes confusas as mentes mais estáticas, e como a escola e a universidade estão condenadas, no quadro actual, a um permanente atraso relativamente à vanguarda de actualização desses saberes. Como, enfim, o investigador (avançado....) deve ser capaz de con- ceber o novo quadro que configure esta dinâmica e possa, no mínimo, retratar momentaneamente a sua actualização. Texto síntese extraído da “Lição” das provas de Agregação do autor em Socio- logia da Cultura e da Comunicação, na sala de actos do Colégio do Espírito Santo da Universidade de Évora em Julho de 2002.

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SABERES NÓMADAS E MODELOS

DE LEGITIMAÇÃO DO CONHECIMENTO

Aquilo que vou aqui abordar diz respeito ao modo como podemos observar os processos de estruturação dos valores segundo vários eixos; como esses eixos se constituem como charneira central que determina a necessidade e o tipo de comunicação que se activa. Como a acção comunicacional envolvendo a generalidade das relações sociais e institucionais se metamorfoseia, transformando-se segundo um processo mais ou menos aleatóreo de estruturação axial que vai ao mesmo tempo criando uma topologia dinâmica de relação entre sujeito e objecto, objecto e objecto, sujeito e sujeito.

Como as circunstâncias que envolvem a presença de novas media-ções tecnológicas, auxiliares do processo de transformação axiológica, forçam a emergência de novos modelos de presença e representação: por exemplo, sequência e causalidade, substituidas por campo de acção; sujeito e objecto substituidos por nó e rede; estrutura e função por processo e devir, etc. Como, afinal, esse processo de estruturação dinâmica afecta a generalidade dos saberes constituidos, forçando-os a uma migração permanente em busca de paradigmas e dimensões novos mas consensuais, mesmo que utilizando elementos constituintes do paradigma anterior.

Como essa migração de saberes deixa por vezes confusas as mentes mais estáticas, e como a escola e a universidade estão condenadas, no quadro actual, a um permanente atraso relativamente à vanguarda de actualização desses saberes.

Como, enfim, o investigador (avançado....) deve ser capaz de con-ceber o novo quadro que configure esta dinâmica e possa, no mínimo, retratar momentaneamente a sua actualização.

Texto síntese extraído da “Lição” das provas de Agregação do autor em Socio-

logia da Cultura e da Comunicação, na sala de actos do Colégio do Espírito

Santo da Universidade de Évora em Julho de 2002.

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Não se trata aqui, para já, de levar a cabo uma análise profunda a um objecto de estudo e subsequente crítica. Trata-se, no seu sentido mais expositivo, de oferecer uma panorâmica da abordagem possível a objectos contemporâneos que de algum modo se destacam pelo seu envolvimento nas problemáticas da actualidade. Isto, segundo pers-pectivas que tento conciliar nem sempre com facilidade, encontrando os seus pontos charneira comuns, e que aqui passam pelo valor, emer-gência axial dos objectos e, essencialmente, os modos de constituição dos olhares que lhes conferem valor.

Porquê os valores?

Aquilo que queria destacar ocorre na sequência do trabalho que fiz sobre o património e, em particular, a análise da emergência e turbo-lência dos valores que situam precisamente a emergência do patrimó-nio como valor.

A noção de valor ou hierarquia de valores, tanto no senso comum como em algumas áreas do saber que vão da filosofia à sociologia passando pela economia, está indexada a um sentido relativamente circunscrito que limita a sua abrangência ao estar virtuoso, moral ou ético.

O modo como aqui observo os cenários em que é possível recortar a emergência do valor é bem mais abrangente, e envolve diversas morfologias axiais inerentes às esferas em que estas são moldadas e produzidas. Numa sociedade ainda eminentemente capitalista, em que o equivalente universal – o capital – continua a ser o único índice de liquidez axial quando todas as outras formas de valor desaparecem, é preciso tê-lo em conta, quanto mais não seja como imanente a todas as outras formas de valoração, por vezes até como anti-forma. Simmel

Isto acontece porque, mesmo quando os objectos se inscrevem e evoluem num determinado campo de forças sociais, um campo axial específico, com uma forma de valoração específica, o único índice de valor comum continua a ser o capital que indexa, queiram ou não esses campos, o valor de equivalência comum à generalidade dos seus objectos.

É preciso olhar de frente o que acontece, e com que contornos;

por exemplo, observar o modo como a sociedade compensa o con-tributo dos seus agentes e do seu trabalho – isto é trabalho de sociólo-go, e aqui ele tem que detectar as inércias, as desigualdades, o non--sense nalgumas formas de valoração. Ele tem que descobrir porque é

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que um chofer de camiões TIR ganha 1/10 de um chofer de aviões, ou 1/5 de um chofer de ministros.

Como é que a nossa sociedade nos diz o que é mais importante e o que é acessório. É assim?

Este panorama é um pouco geral. Por um lado,o caos axial, a difi-culdade em encontrar uma referência estável com a pulverização das meta-narrativas, e não há uma que se sustenha de pé frente a este tipo de agentes.

A este estado, tem-se vindo a chamar crise – crise de valores.

Neste meu trabalho – independentemente do modo como a socie-dade o avalia – o que quero tentar oferecer a quem me preste atenção é um modo de recortar e fazer aparecer as diferentes morfologias do valor, através da análise de discursos, actos, narrativas e experiências que suscitem o nosso interesse e possam ser constituidas como objecto de estudo. Não só descrevê-los ou cartografá-los, mas constituí-los como corpo significante – a fazer revelar sentido – para quem não os consegue ler dentro deste caos.

– O trabalho sobre os arquivos de filme e imagens em movimento

– Além de todas as problemáticas que ainda hoje o envolvem, fas-cinou-me um problema que implica a emergência da decisão ou juízo sobre os objectos, quando há que decidir o que se guarda e o que se deita fora; um momento em que um sujeito decide sobre a vida ou morte dos objectos. Por vezes, este juízo é exercido directamente sobre sujeitos – outros sujeitos.

Neste percurso encontrei ainda outro momento em que o sujeito homem tenta imitar a Deus, isto é quando cria algo. Também já reflec-ti e escrevi sobre isto, mas este momento não tem o peso dramático e axiológico do primeiro.

Na busca do modo como os homens decidem e ajuizam sobre os outros homens, objectos e experiências, acabamos necessariamente imersos na problemática dos valores. Os valores são, afinal, os qua-dros de referência que orientam essas decisões.

Como emerge o valor, hoje, na turbulência de critérios e cir-

cunstâncias

Num viedograma que costumo mostrar aos meus alunos em Socio-

logia da Comunicação, James Burke acaba a sua exposição acerca das modificações que a imprensa trouxe ao Ocidente, perguntando:

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– Hoje, numa altura em que os factos circulam à velocidade da luz, o que acontece aos valores que neles é suposto assentarem?

E eu pergunto:

– Aceitando que os factos são o suporte dessa estrutura intermediá-ria que são os valores, – quando os factos adquirem esta dinâmica informacional, o que é que acontece aos valores?

Mas desçamos ao procedimento analítico:

O que é um facto?

Um facto, do ponto de vista sociológico, é aquilo que é, ou passa a ser, porque assim é reconhecido como tal pela comunidade.

E o que é então um valor?

Pode dizer-se que é o componente mínimo de uma estrutura axial, um modo estabilizado de estruturar, hierarquizar e colorir factos, objectos, experiências e tudo o mais.

Valor ou hierarquia de valores, será então uma estrutura intermédia através da qual estabilizamos a nossa experiência.

Para quê estabilizar a experiência?

Para evitar sobressaltos, surpresas, tornar o futuro previsível, per-mitir a vida em sociedade, criando instituições, logicamente à custa da perda de alguma liberdade.

E acreditem que temos vindo a perdê-la, em particular no espaço público que hoje se expande.

Um Almada Negreiros, hoje, na sua energia e vitalidade, seria pra-ticamente improvável, difícil de se sustentar, – iria ao programa do Herman e seria comparado ao hipnotizador chalado. –

A questão seguinte é:

– Porquê estabilizar?

Para auxiliar a estabilidade social – essa hierarquia é comum e objectiva-se na cultura de um povo.

É aqui que se percebe a relação entre valores, cultura e comunica-ção; – sem um referencial comum – que tem que ser ao mesmo tempo semântico, pragmático e axial – a comunicação torna-se um chorrilho de mal-entendidos e a generalidade das relações atingem um nível máximo de probabilidade de não acontecerem.

Isto explica um pouco a premência dos actuais individualismos,

isolamentos e solidões que a pos-modernidade oferece e cultiva.

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Então, o sociólogo tenta perceber os vectores intervenientes neste

processo dissolvente:

– as novas tecnologias a acelerar todo o tipo de acesso: on line, on

time, de fusão com a experiência virtual

– os valores massificantes a dissolver tudo o que possa produzir di-

ferença e, eventualmente, poder;

– a subida e contaminação do valor das práticas envolvendo objec-

tos tecnológicos:como, por exemplo a que envolve o espectáculo e a

mais valia visual da tecnologia; em que o telemovel é o último gadget;

– a imposição de práticas e protocolos de relação por essa mesma

tecnologia: ou seja, a influência do modo de estar da tecnologia no

modo de estar das pessoas;

– a televisão, os jogos e o entretenimento massificado no processo de

empobrecimento da experiência quotidiana – a superficialidade degra-

dante, como lhe chama Richard Sennett n’A Corrosão do Carácter;

– enfim, a dissolução dos saberes modernos apanhados no vórtice

da mutação contínua.

Mas o que acontece então quando os factos sobre os quais assenta a

hierarquia de valores são altamente dinâmicos?

Acontece essencialmente aquilo que, em termos físicos se pode

chamar um efeito centrífugo. Com a velocidade do movimento, as

pessoas são atiradas para as margens.

(No filme Les 400 Coups, um dos primeiros de François Truffaut, a

certa altura a personagem principal do filme, um rapaz de 14 anos, vai

a uma feira em Paris onde experimenta um carroussel que no fim dos

anos 50 devia ser comum mas que entretanto desapareceu. Era nada

mais que um cilindro que rodava, como que um “poço da morte gira-

tório, em que é a própria estrutura que roda e não quem está lá dentro.

Com o movimento do cilindro, as pessoas ficam “coladas” às paredes

laterais e têm muita dificuldade em mover-se; a gravidade é exercida

contra a parede lateral e não mais de cima para baixo, o que lhes

permite ficar em qualquer posição – relativamente a quem observa –

sem cair, até que o cilindro pare de rodar.)

E nas margens, como tal, observam-se dois cenários marginais:

As pessoas dividem-se em dois grandes grupos (aqui heurísticos

mas nem tanto, como se verá), no meio dos quais há outros sub-grupos

menores:

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a) Umas, de um grupo mais pequeno, ficam confusas, em particular

as que se interrogam acerca da legitimidade e fundamentação dos

valores para os quais é mais difícil encontrar factos certificantes e

estabilizantes;

b) As outras, a maioria, agarram-se a dogmas – à solidez de estru-

turas de valoração mais rígidas para fugir à confusão e instabilidade

do questionamento.

Neste cenário, de pessoas confusas e dogmatizadas, acontece o

meio ideal, o conjunto de condições reunidas de modo perfeito para a

propagação de efeitos modais; modas no sentido do senso comum. Em

todas as esferas públicas e privadas são fáceis de detectar.

O que são modas?

São kits temporàrios para a orientação e guia de experiências e

formas de valoração de factos particulares.

Na contemporâneidade têm como características o facto de:

– serem temporários

– serem mais facilmente assimilados por serem normalmente tem-

prárias e integradores;

– poderem ser integradores e ad-hoc, sem qualquer relação com o

existente.

MTV mais cool

Nos Estados Unidos – As editoras parceiras do MTV (canal de tele-

visão) e sponsors reúnem os putos mais cool dos liceus (até certo ponto,

neste âmbito – a vanguarda) de vários pontos do país, e questionam-nos

sobre o que está a dar. – Como se vestem, o que vestem, o que comem,

o que ouvem, o que vêem, como falam, o que é mais cool.

Estudam o “produto”, fazem um mix e a seguir, vendem isso mes-

mo à generalidade dos outros putos; um kit integrado com tudo isso:

roupa + música + discurso + bebida + atitude, etc.

Assim que o resultado deste kit modal se difunde e instala, que

começa a ser adoptado, este modo de estar morre enquanto cool e, de

novo, recomeça todo o ciclo outra vez, com outros putos a destaca-

rem-se como + cool.

(Isto revela a convergência de esferas que eu próprio estudei e mostrei

em 95-96, e de que fala o prof. Bragança de Miranda; o facto de várias

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empresas de áreas e com produtos diferentes se associarem para a

orientação do seu marketing.)

A aceitação das modas é mais dependente da necessidade que as

pessoas têm de um guia, necessidade que se acentua neste período de

turbolência ou ausência de referências estáveis.

Apercebemo-nos de algo quase óbvio, que é a presença imanente

do valor como instância e factor de referência referencial de aferição

da experiência e dos factos.

Perante a emergência deste relativismo axial, voltemos ao proce-

dimento analítico:

Percebemos que para viver em sociedade, é necessário um contrato

(social) em que abdicamos de muitas das nossas possibilidades e

liberdades em troca de uma identidade, de uma paz social, de uma

possibilidade de integração.

Ao pensar este contrato hoje, quase vemos um negócio de casas,

um negócio imobiliário com intermediários e especulação, que impli-

ca deixarem-nos ou não habitar o social. Então surge aquilo a que

podemos chamar o paradoxo da desmultiplicação das esferas de poder

e acção social, – que se fazem corresponder a igual desmultiplicação

de esferas de valor.

Vários autores falam e tentam mapear estas esferas de valoração

quase ingloriamente:

– A esfera pessoal e íntima;

– A esfera da família;

– A esfera da instituição ou empresa;

– A esfera do Estado;

– A esfera da Igreja;

– A esfera de Escola;

– A esfera da justiça;

etc.

Cada uma com as suas diferentes estruturas e estratégias de valora-

ção, assim como objectos privilegiados.

Perante este cenário, ocorre-me tentar identificar os operadores

axiais que auxiliam a legitimação dos valores nas diferentes esferas:

Por exemplo, num esboço rápido, os operadores axiológicos do Po-

lítico-militar, caracterizado pelo exercício da força de coacção mais

dura, militar ou ideológica;

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– Os operadores da razão/verdade/ciência, operadores adjacentes do técnico-científico, com o eixo entre a performance e a verdade;

– Os operadores estéticos, em particular na esfera da cultura, que operam no eixo do sensorio-emocional

– Os operadores político-democráticos, que operam com base nas sondagens universais.

Pensando bem, olhando as coisas por este prisma, repare-se que ra-ramente se põem em causa as práticas consolidadas e existentes que podem expôr a inconsistencia dos modos de estar axiais ou do valor nas diferentes esferas. Foucault tentou, através da sua genealogia e análise do arquivo mostrar isso mesmo, observando o processo de consolidação das epistemes.

Por vezes, o non-sense da constituição histórica de práticas sociais que se cristalizam e se mantêm por inércia sobre factos e experiências que em nada as sustentam.

Por exemplo: porque é que o valor do Direito – espelhado na justi-ça, – é geralmente entregue a um especialista e só um, quando não é um colectivo que pensa em uníssono, por vezes em causas de Estado e, por outro lado, o poder político não é entregue a especialistas?

As diversas reificações

No actual espaço liberal capitalo-economista, o mercado, no seu sentido mais abrangente, é um conceito que não pode ser ignorado. O mercado é hoje, por excelência e força das circunstâncias, um espaço de fronteiras indefinidas mas afinal a única réstea de processo estutu-rante a que ainda podemos recorrer para aferir valores e dinâmicas de valor nas suas diferentes morfologias. Bauman, inspirando-se em Levi-Strauss, fala-nos, relativamente à cultura, em processos de estru-turação contínuos, numa actividade diacrítica que se vai estruturando, mas sempre difícil de prever. Um processo de investimento de ordem e selecção na vida mais difícil de adivinhar do que gostariam as or-dens de saber mais ortodoxas e positivistas.

Acontece que este grande mercado que aqui observamos, e que em termos morfológicos se configura na arena do espaço público onde ocorre a generalidade das transacções, é hoje um espaço razoavelmen-te reificado, contaminado por todas as formas de objectificação. Neste espaço, até a experiência mais metafísica se apresenta como objecto transaccionável e rentável.

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Nesta “Era do Acesso” de que nos fala Jeremy Rifkin, o produto

com índice de vendas mais alto e em crescimento é a “experiência

segmentada”. Isto é, a experiência recortada e adaptada aos públicos

que para ela se criam. Um dia na Disneylandia (mais ou menos 18

contos);Uma semana em cruzeiro no Barco do Amor – (Uns mil e

quinhentos contos) Uns dias no Espaço (mais ou menos quatro mi-

lhões de contos); Um dia na Cidade-Património Évora, ou mesmo um

dia na Universidade Património, experiência fascinante mas de con-

torno imprevisível...

Enfim, a experiência exótica para os entediados do quotidiano rotinei-

ro; A experiência cultural para os bulímicos dos refrigerantes e enlatados

culturais; a experiência radical para os adrenalino – dependentes, etc.

De algum modo, o capitalismo industrial controlava e explorava os

recursos naturais e a mão-de-obra local para produzir bens e serviços.

O novo capitalismo expropria os recursos culturais para os exportar. E

o local onde ocorre uma maior quantidade de experiências por metro

quadrado, é o Centro Comercial. Estes são os lugares onde é possível

comprar o acesso a toda a espécie de experiências vividas. Nos gandes

Centros Comerciais Americanos pode-se assistir a aulas/conferências

de todo o género e feitio, fazer exames médicos, comer, ir a um con-

certo, praticar desporto, ir à igreja, encontrar amigos, jogar, fazer

compras, etc. O Mall of America, em Minneapolis, o maior Centro

Comercial dos Estados Unidos, tem mais visitantes por ano que o

DisneyWorld, Graceland e o Grand Canyon todos juntos.

Consumir é um acto de cultura...

Há muitas culturas!

Isto interessa-nos, porque a esfera cultural é, por excelência, a esfe-

ra da comunicação – a comunicação é o seu operador de serviço per-

manente.

Pouco depois do início do séc.XX, a esfera cultural tornou-se o re-

fúgio de todos os que queriam resistir à omnipresença dos valores

materiais. Não durou muito. Pouco depois do fim da 2.ª Guerra, a

saturação de um mercado invadido por todo o tipo de produtos fez

crescer o marketing, e a bola passou-se para o lado do consumo em

deterimento da produção, que estava garantida. Um eixo que fez

mudar tudo, por esta altura; a esfera do consumo privilegia os “perfis

de consumidor”, segmentando o mercado por estratos de rendimento e

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opção de consumo – quem pode comprar e quem compra o quê –

numa infinidade de perfis agrupados por segmento de aquisição. É

neste eixo do consumo e na criação desenfreada de novos produtos

para novos consumidores que o capital tudo transforma em mercado-

ria até a mais volátil das experiências, como vimos há pouco.

É um eixo de Produção na primeira metade do séc. XX, que leva a

um eixo do consumo na segunda metade e, neste entretanto, ao apaga-

mento da noção de “classe social” como esta era conhecida e ao nasci-

mento do “perfil do consumidor” e do “estilo de vida”. Estes novos con-

ceitos permitem a segmentação necessária ao tratamento dos dados refe-

rentes às diversas formas de consumo e orientações pessoais e grupais.

Rifkin diz-nos:

“Quando os especialistas do marketing e os teóricos do ciberes-

paço advogam que se utilizem as novas tecnologias da informa-

ção como instrumentos relacionais e proclamam um novo en-

vangelho comercial que promove a venda das experiências

vividas, a mercantilização das relações a longo prazo com os

consumidores e a formação de comunidades de interesse, o seu

objectivo final, saibam ou não eles o que fazem, é a vedação e a

absorção pela esfera do mercado, do nosso patrimóno comum.”

(A Era do Acesso).* p. 172.

A lógica do acesso, que de algum modo implica também o acesso à

comunicação, já não se define relativamente a critérios intrínsecos à

experiência e ao grupo, envolvendo tradições, ritos, relações de paren-

tesco, religião ou sexo, – o acesso é redefinido unicamente pelo crité-

rio decisivo da conta bancária.

Há uma nova vedação, ao mesmo tempo mais fechada a todos, – os

sm meios de acesso, istoé, uma conta a condizer, e mais aberta a todas

os que a tenham.

O problema é que é determinante questionar a legitimidade, autenti-

cidade, o que se quiser, deste grande Centro Comercial que se constitui

à nossa volta, sem darmos por isso, ou dando apenas marginalmente.

Esta dialética acesso/vedação faz-nos pensar até que ponto o culto

patrimonial recente dos mortos – abrindo casas museu na casa onde

* Jeremy Rifkin, A era do acesso - a revolução da nova economia, ed. Presença,

Lisboa, 2001, p. 172.

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viveu a figura em destaque, não está já a passar para os vivos; e há

espaços em que essa experiência inolvidável é já oferecida – turismo

de habitação, com família (falida) incluida. Venha jantar conosco e

ajude-nos a pagar a renda da casa.

Neste Grande Centro Comercial, a virtude foi reduzida à capacida-

de de acção do capital, e os diversos perfis axiológicos – inerentes às

respectivas esferas, podem ser sempre adquiridos, vendidos e trocados

através da grande mediação do capital. Paul de Man falava, no segui-

mento de Marx, do Grande Dissolvente.

É à presença dessa mediação dissolvente que podemos imputar par-

te do processo de reificação geral a que assistimos.

O comércio dos Afectos

Neste processo de mercantilização de todos os objectos e experiên-

cias, não posso deixar de me lembrar, entre outros, de Pierre Klossowski

que, no fim dos anos 60 publicou um pequeno tratado acerca do que ele

chamava “La Monnaie Vivante” – a moeda viva, e que se debruçava

sobre o modo como damos valor e acabamos por reificar a transacção do

mais diverso tipo de sensações, sendo o meio de acesso a essas sensa-

ções, o corpo do outro e a sua habilidade para nos oferecer as sensações

desejadas. Enfim, o comércio do desejo e da sua satisfação, olhando

analiticamente os meios de produção e modos de valoração adjacentes.

Esta, uma economia dos afectos e das necessidades que evoluiu por

vezes marginal, por vezes abertamente ao longo do sec. XX, e que

fascinou em particular os filósofos franceses que tudo inventaram

acerca das máquinas desejantes.

O que aqui me ocorre é o facto, talvez já exposto e muito proble-

mático, que envolve a experiência comprada ou encomendada. Apesar

de todos os restos de tabu ético e moral, a verdade é que caminhamos

para um tempo em que a relação envolvendo capital, a relação que

envolve por exemplo a compra da experiência afectiva, se possa vir a

tornar mais valiosa, valorizada, profunda e desejada que a relação

tradicionalmente valorizada como legítima e natural.

Isto percebe-se melhor se pensarmos no que já se vê na ficção e

que, de algum modo retrata já modos de existir com cyborgs na satis-

fação do desejo e outras necessidades. Replicants modelo, melhores

que a mediania dos humanos em certas funções que é suposto su-

prirem; mais dóceis, menos exigentes, prontos a satisfazer tudo.

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Pergunta-se:

– Então o que é que acontece aos humanos que entre si são mais

exigentes, menos dóceis, mais incapazes e incompetentes?

Vê-se aqui um quadro comum ao problema do medo da máquina –

bastante antigo, e que se retrata no conto do Aprendiz de Feiticeiro. O

aprendiz consegue memorizar as palavras mágicas que iniciam a acção

mágica sobre os objectos. Quando o feiticeiro sai e lhe ordena que

limpe a casa e as retortas, o aprendiz espera que ele se ausente e profe-

re as palavras mágicas, seguidas da ordem de acção, para que os

objectos iniciem a limpeza e arrumação da casa. M há um problema; o

aprendiz não sabe como os mandar fazer parar...

Na estoria que se vê, por exemplo, em Blade Runner, há um apren-

diz que se apaixona pela replicant criada pelo feiticeiro, e a partir daí,

nada será como dantes.

O comércio dos afectos preenche igualmente um fascinante eixo do

valor que as circunstâncias de mudança hoje existentes, prometem

fazer durar ainda umas décadas....

Voltando aos objectos, Anthony Giddens destacou a importância

da segurança ontológica no espaço basal da existência e experiência

do sujeito. A dinâmica que se impõe e instabiliza quase todas as refe-

rências impelem o sujeito à solidez dos objectos e entre estes, a do

supremo objecto, a suprema segurança ontológica; o capital e as

formas de rendimento.

O sujeito activo na sua singularidade selecciona os seus objectos de

suporte: o lugar onde mora, o bairro, a sua casa, os móveis; o lugar

onde mora em movimento – o seu carro; o lugar onde mora quando

trabalha – o seu estatuto e objectos adjacentes, enfim, o lugar onde

mora no social, pelo modo como selecciona os amigos e as relações.

Emerge aquilo a que Rifkin chama uma personalidade proteiforme,

pronta a adaptar-se e flexibilizar-se a tudo, esquecendo a noção de

carácter desenvolvida pela burguesia do sec.XIX. Walter Benjamin, e

antes dele Simmel, haviam já percepcionado esta mudança ao retratar

a metropole no início do sec.XX. Simmel dizia que “o ritmo da activi-

dade humana se torna tão frenético que nele todas as formas estáveis

desaparecem – sobrevoamos com o olhar um abismo de vida informe.

O agir humano é tão volátil e a consciência tão fluida, que a existência

trava uma luta constante contra as suas próprias manifestações.” Esta

retrato feito por Simmel é tão actual que julgamos ter ele estado a

assistir a uma emissão da MTV.

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Bauman fala também de um cidadão entretido com os seus jogos

domésticos, os seus objectos de domínio espontâneo que de fora

retratam personalidades superficiais e voyeuristas animados de uma

única vontade de jogarem e se distrairem na infinidade do entreteni-

mento da telecidade. Esta segurança ontológica, que implica estes

níveis de distância, oferece-nos por isso uma nova axiologia – a

capacidade de constituir uma nova tipologia de valores centrados

neste modo de estar e, até, uma nova proxémica das relações (uma

tipologia das novas distâncias e sentidos produzidos) sob estes novos

modelos de relação em ambas as dimensões da relação pessoal e

simbólica.

O problema aqui é que os últimos 30 anos têm vindo a reconfigurar

padrões de selecção que nos levam a confirmar esse processo de

reificação da generalidade das relações que sustentam esta segurança.

Nem Giddens parece ter-se apercebido da extensão deste processo

reificador. São todas as esferas de acção rodeando o sujeito, que o

impelem para esta forma de se agarrar a objectos socialmente bem

recortados, abandonando toda e qualquer criação própria ou oferecida

que não no domínio da coisa bem definida e socialmente aceite.

O maior dano observa-se ao nível da relação pessoal entre sujeitos,

que de imediato se objectualiza, numa mediação qualquer de contor-

nos bem definidos e lapidados.

A distância que cresce e de que falam alguns sociólogos não é mais

que o resultado deste rápido processo de reificação das relações. Tanto

o modelo da produção-consumo como o da Sociedade do Espectáculo

são aqui coincidentes. Queiramos ou não, somos transformados em

consumidores, receptores do outro, sujeitos ao modelo de representa-

ção que é ao mesmo tempo geral, mas que é essencialmente aquele

que o outro, querendo ou não nos impõe. Até ao imaginário espectacu-

lar e sobre-determinado pela sala de espelhos em que nos deslocamos,

temos dificuldade em escapar.

Cresce a cultura do espectáculo e entertenimento que teve início no

fim do séc. XIX com todas as fantasmagorias associadas. Como nos

diz Andrew Darley em “Visual Digital Culture”, – “é o voraz consu-

mo de relações e objectos, materiais e imateriais. Um desenvolvimen-

to que veio a dar numa ordem massiva que toca virtualmente todos os

aspectos da nossa existência quotidiana. Poucos escapam ao imperati-

vo altamente sistematisado de consumir, e ao destaque dado ao estilo,

à moda, à novidade, apesar de alguns disso serem excluídos.”

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26 EDUARDO ESPERANÇA

É claro que a dimensão transformacional envolvida em crescendo é a

industria de sistemas de comunicação e representação de massa. É neste

contexto que se observa uma economia mista e transversal de modos de

exibição pública e privada do mais variado tipo de conteúdos digitaliza-

dos. Estes fazem parte de uma ordem consumista estabilizada que

explora todo o tipo de novidade e excitação, não apenas ao nível de

novos locais públicos de exibição mas, em particular no mais recente

espaço de cultivo e consumo cultural que é o espaço doméstico.”185.

De algum modo, como nos anos 60 relativamente ao grande con-

sumo, é nos anos 90 que a imagem assume definitivamente um papel

axial em todos os aspectos do consumo e quotidiano.

Bauman fala mesmo de uma telecidade para descrever um modo

particular de substituição levado a efeito pelos media, novos modos de

entretenimento e representação disponíveis que conseguem aliar a

dupla segurança da distância simbólica e pessoal, a distância de que

há pouco falávamos.

O típico espectador cultural da pos-modernidade é visto como es-

sencialmente centrado no espaço doméstico e cada vez mais um joga-

dor solitário que, através de vários meios de telemediação (alta-fideli-

dade, consolas de video-jogos, videogramas, terminais digitais e tele-

visões) um actor que se revela num “mundo-à-distância” domesticado.

Por detrás dos écrans a que as suas vidas se confinam, os estranhos e

outros que habitam a telecidade não constituem ameaça. Boa parte

destes objectos superficiais de fruição voyeuristica, estes mundos

virtuais que este espectador parece comandar tão inquestionavelmente,

são afinal mundos de outros sujeitos: a outro nível, concebidos e diri-

gidos, cuidadosamente disfarçados para darem a impressão de ofere-

cerem o comando e a espontaneidade” (Bauman:PostModern Ethics,

p. 173). Este contexto repete-se à exaustão noutras esferas com entrega

ao domicilio. O engraçado nisto tudo é que a entrega ao domicílio –

estilo telepizza – não exige existência de domicilio; quando o sujeito

se desloca para fora do domiclio, é-lhe oferecido um domicílio tempo-

rário. Como os domicílos estão cada vez mais padronizados, isto faci-

lita a operação. Em “The Tourist: A New Theory of the Leisure Class”,

Dean MacCannel mostra o panorama da explorção turistica, quando se

evita que contactem os habitantes naturais. Os espaços visitados são

de um conforto a toda a prova, onde o turista pode ver o mundo como

se estivesse diante da sua televisão, à distância e com toda a seguran-

ça.” (MacCannel, D. The Tourist...., Shocken Books, N, 1989, p. 100).

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SABERES NÓMADAS 27

Por outro lado, Paul Virilio, nesta intensificação do papel substitu-

tivo dos media, Virilio vê essencialmente uma instância veicular, que

oferece uma dinâmica virtual, oferecendo a deslocação sem sair do

mesmo sítio. Para Virilio, o sec. XX teria sido dominado pelo auto-

móvel oferecendo uma deslocação em tempo extensivo, o sec. XXI

viria a ser dominado pelos diversos veiculos estáticos oferecendo uma

deslocação em tempo intensivo, oferecida pelos sistemas digitais de

simulação, levando a uma “inércia doméstica”.

Pergunta-se:

O que acontece à comunicação – tradicional acto de relação indivi-

dual e colectiva, quando este saber-fazer pode ser adquirido, enco-

mendado, ou pura e simplesmente aplicado para o desenvolvimento do

consumo?

Afinal, como se aplicam os saberes, entre outras coisas, para o

crescimento do consumo?

A Aplicação dos Saberes

Sobre a aplicação ocorre-me observar o valor que assume, hoje, o

famoso modelo de gestão do conhecimento dentro da empresa actual.

O que nos interessa averiguar é se este “saber” tem algo a ver com

os outros saberes hoje mais negligenciados. Que “gestão do conheci-

mento” é esta e que “saber da empresa” é este, hoje tão caro a certas

escolas de gestão?

É verdade que ainda há empresas que capitalizam em saber e co-

nhecimento. A sua performatividade passa pela gestão aplicada do

conhecimento enquanto gerador de capital. Qualquer projecto, para o

mínimo sucesso ou hipótese de realização, necessita hoje de uma

enorme capacidade estratégica. Que quer isto dizer?

Isto diz-nos que no horizonte quotidiano desta pós-modernidade, o

avaliar de qualquer acção passa pelo modo como o sujeito lida com a

contingência, e como a consegue ou não descrever e mapear instanta-

neamente para poder agir. Esta é hoje uma tarefa difícil e que causa as

maiores desorientações.

Richard Sennett conta a estória de uma meia dúzia de amigos que

ele acompanhou e se encontravam regularmente num café em Nova

York. Homens de meia idade, tinham todos lugares estáveis e de

prestígio na consagrada IBM. De um momento para o outro, aquele

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28 EDUARDO ESPERANÇA

gigante institucional, por erros estratégicos de gestão e circunstâncias

de mercado, teve de emagrecer e eles, programadores e analistas de

sistemas de mainframes foram sendo despedidos, sendo que uns

tiveram que despedir outros e foram a seguir despedidos. Conta Sen-

nett que até hoje continuam a digerir o seu trauma, sem grandes con-

clusões. E aconteceu algo; da grande massa de despedimentos ocorri-

da entre os anos 80 e 90, boa parte dos que antes tinham papeis

importantes na autarquia, na comunidade ou eram parte do conselho

de administração da escola, perderam completamente o interesse por

esses cargos.”Perderam simplesmente o interesse pelos assuntos

cívicos” diz Sennett, muitos deles “viraram-se para dentro” (C.C.

p. 199, + exílio interior) Eles pura e simplesmente não conseguem

encontrar sentido para o que aconteceu; o seu ponto de vista não os

deixa ver nada da realidade actual. E não vêem nada porque, de algum

modo, o seu engenho para lidar com uma realidade altamente dinâmi-

ca e inesperada foi progressivamente adormecido dentro da instituição

supostamente estável; um processo narcotizante de que só se aperce-

bem após o choque. É desse engenho para lidar com esta realidade que

fala Jose Antonio Marina, no seu “Elogio e Refutação do Engenho”

quando diz que “As culturas tenderam sempre para o barroquismo por

um excesso de insaciável imaginação. Ao homem não lhe terá bastado

nunca o que via e, sempre possuído por uma fúria fabuladora incom-

preensível, criou os mais despropositados e belos mitos para explicar

o evidente. Somos incapazes de nos contentar com ver sem inventar,

entre outras razões porque sem inventar não vemos nada”.

As grandes narrativas, ou tapeçarias, como lhes chama Kundera,

foram-se esfumando, e o que ficou foi – no dizer de Bragança de

Miranda – “a projecção de uma malha que recobre a experiência, nua

aparência de totalidade, “híbrida” e “mista”, ou um “simulacro” (...)

onde outras figuras de experiência são possíveis.”

É preciso ter uma capacidade pluridimensional para oscultar e loca-

lizar esta malha espectral de ligações que sustentam a experiência. Por

isso hoje, o senso comum anda perdido, e a ciência, boa parte do tempo

busca sentido para o que encontra. Não admira pois que Bauman evo-

que Umberto Eco para falar “por uma geração que cresceu no cada vez

mais desregulamentado e polifonico mundo da pos-modernidade. Difi-

cilmente o romance pode acrescentar liberdade a um mundo já aturdido

pela infinidade de possibilidades em que oscila. Mas pode, ao contrário,

oferecer um ponto de apoio para pernas que procuram, em vão, amparo

na areia movediça dos estilos mutáveis, das identidades que não sobre-

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vivem à própria construção e das histórias sem passado e sem conse-

quência” (O Mal-Estar da Pos-Modernidade, p. 152).

Por seu lado, a par do homem pressionado, o homem sujeito à pres-

são moderna do trabalho descrita por Weber, Richard Rorty vê nascer

o homem irónico, caracterizado por nunca ser capaz de se levar a sério

porque tem sempre consciência de que os termos em que se descreve a

si próprio estão sujeitos a mudança. “Uma visão irónica de si próprio é

a consequência lógica de viver no tempo flexível, sem padrões de

autoridade e de responsabilidade” (Contingency, Irony, and Solidarity,

1989, cit CC Sennett, p. 176). O problema, diz ainda Rorty, é que a

ironia tão pouco estimula as pessoas a por o poder em causa ou ence-

tar qualquer tipo de luta. Este carácter pode até tornar-se auto-destru-

tivo. Uma pessoa passa a acreditar que nada é fixo, “eu não sou real,

as minhas necessidades não têm substância”, serei eu próprio apenas

mais um espectro, etc.

“Esses pontos de vista da narrativa (pessoal) por vezes rotulados

como pos-modernos, espelham a experiência do tempo na economia

política pos-moderna. Um ego necesariamente adaptável, uma cola-

gem de fragmentos incessante na sua transformação”, envolvendo o

curto prazo e as instituições flexíveis. (CC p. 204)

Aqui não há segurança ontológica que valha seja a quem for. É esta

ausência de estabilidade que gera alguns perfis de personalidade que

chegam quase ao perverso, o que também é bem definido por Sennett.

Hoje, o objectivo do gestor e do supervisor é formar equipas coesas e

dóceis, orientadas para o objectivo, mas ao mesmo tempo com capaci-

dade de rápida reestruturação. Isto gera um perfil ideal de aparência

dócil e bem relacionado, cheio de capacidades portáteis e recicláveis.

Um dos seus elementos de segurança, é o desapego; alguém que tem

de ter a capacidade de rapidamente se afastar de relações firmadas e

encetar outras, um pouco como a prostituta que, por razões de sobre-

vivência se não pode apegar nem ao cliente mais terno. Neste contex-

to, o trabalhador em equipe tem de aprimorar as suas ficções de per-

sonalidade e a sua máscara de cooperação que depois leva de tarefa

em tarefa, de empresa em empresa, “essas janelas de capacidade social

cujo «hipertexto» é um sorriso vencedor.” (CC.p. 173)

E estes são, teoricamente os mais orientados. Percebe-se que a situa-

ção é difícil de mapear. É preciso, igualmente ser capaz de agir em

consonância e dentro de alguma estratégia para a mais-valia, ainda

que localizada.

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30 EDUARDO ESPERANÇA

Ora, relativamente aos saberes que mais nos interessam, o espaço

da comunicação em geral diluiu-se nas especialidades e nas situações.

Já não faz sentido tentar criar um modelo geral, muito menos univer-

sal, para dar conta das diversas situações de comunicação.

A história das teorias da comunicação mostra isso mesmo; uma su-

cessão de modelos que se observam como viáveis e aplicáveis em

pouco mais que um espaço e tempo específicos.

Interessa-nos então ver, afinal, o que sobra de todas estas declina-

ções e impossibilidades.

Existirá um resto?

Que resto é este?

Afinal, o que resta estável?

Este resto, a ser contemplado, é precisamente o que se queda está-

vel, ou é passível de ser estabilizado nas actuais condições de incerte-

za e contingencialidade. Estas são as actuais condições que gerem os

relacionamentos entre sujeitos, independentemente das mediações,

num espaço cada vez mais difícil de programar.

A acção subjectivamente investida tem probabilidades de se ver es-

tabilizada apenas sobre o objecto; difícilmente sobre outro sujeito. É

neste quadro de incerteza e aleatoriedade que se pode começar por

procurar o que resta estável.

Ainda que epistemologicamente criticável, esta representação que

envolve a relação sujeito-objecto é heuristicamente fértil.

Um modelo pragmático, por exemplo, encontra a estabilidade nos

signos, na objectivação consensual dos signos, e tenta ir mais além

observando a acção do sujeito sobre esta instância de mediação –

questiona-se – o que faz dela? – o que se faz com ela?

Cassirer, no seu ensaio intitulado “Forma e Técnica”, desloca o

quadro semiótico exposto na sua “Filosofia das Formas Simbólicas”,

para um modelo de crítica analítica da tecnologia. Aí aparece um

triângulo em cujos vértices estão a “expressão”, a “representação”, e a

“significação”, conjunto que ele estabelece como cobrindo todas as

funções e espaços que controlam a generalidade das actividades pro-

dutivas. Este triângulo oferece a demonstração do distanciamento cada

vez maior entre as coisas e os signos, assim como a sua desmateriali-

zação progressiva.

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SABERES NÓMADAS 31

Destacamos aqui o vértice da “expressão” que é, para Cassirer, o

ponto em que o signo está tão perfeitamente embutido no corpo do

sentido e do objecto que é forçado a viver e incorporar essa realidade.

Este, por exemplo, é o problema que “exprime” a personagem cen-

tral de “Inteligência Artificial” (de Spielberg e Kubrik) – o menino

robot adoptado pelo casal, um menino tão igual aos outros que nem ele

mesmo sabe que é robot. Entre outras, esta é a ilusão da omni-capaci-

dade humana de replicação – do clone/replicant igual ou tão igual aos

originais que perde a marca de origem, a identificação de objecto tecno-

lógico produto do homo faber em vez de produto da natura.

Em Blade Runner, de Ridley Scott, essa distinção era mais exposta

e visível, com a excepção de um último replicant que se aproximava

mais do humano

– todos os outros eram para abater. Apesar de esteticamente mais

pos-moderno, este filme/narrativa pode dizer-se que é mais “realista”,

no sentido em que oferece à tecnologia ainda um grau de opacidade

que a torna visível, mesmo no caso de clonagens ou próteses perfeitas.

A progressiva desmaterialização do signo já convertido em tecno-

logia altamente performativa, chega ao extremo da clonagem simula-

cral perfeita; o desígnio do outro que é máquina mas não parece.

Uma vez configurados e inseridos num mundo determinado por

signos e sistemas de signos, acabamos por nos sujeitar à sua lógica

funcional e semiótica.

O que Cassirer nos diz é que a tecnologia é um modo de fazer, e de

fazer mundos, tal como o mito, a linguagem, a ciência ou a arte. A

tecnologia inscreve, por isso, no mundo um padrão específico de

inteligibilidade, uma lógica de acção e leitura pragmáticas, determi-

nando o seu modo de agir e produzir.

Se o signo é a instância de mediação por excelência, o objecto tec-

nológico enquanto signo materializado, é o dispositivo de mediação.

Como o objecto tecnológico se nos impõe como um outro com

poder

Pragmaticamente não só nos diz que “serve para”, diz-nos também

como serve ou como pode ser servido. Além de serem representacio-

nais, tais dispositivos adquirem hoje uma vida própria, ao fundir

expressividade com utilidade. Isto é visível e denunciado também

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32 EDUARDO ESPERANÇA

n’ “O Mito do Estado”, no qual Cassirer destaca os efeitos catalíticos

que o agir discursivo e actancial do político imprime na criação dos

mais diversos poderes míticos, em particular os de maior efeito deter-

ministico. Ele diz:

– “Os mitos políticos agem do mesmo modo que a serpente que

tenta paralizar as suas vitimas antes de as atacar. os homens socum-

bem sem grande resistencia. São vencidos e dominados antes de se

aperceberem sequer do que Ihes aconteceu.

Envolvido no jogo e lógica do sistema sígnico de informação, o uti-

lizador acaba por ser um receptáculo determinado por um complexo

sistema energético, afectivo e intelectual de interpretantes. Até certo

ponto se poderá dizer que nos tornamos, a vários níveis, o resultado da

acção dos dispositivos de mediação em que nos incorporámos.

Exemplo disto, se descartarmos todos os maquiavelismos, é oes-

trondoso insucesso dos serviços de informação americanos, em parti-

cular da CIA e NSA, na previsão dos ataques de 11 de Setembro. Ao

lado do mito da universalidade superior do capitalismo e das relações

de mercado, funcionou o mito da infalibilidade e completude da má-

quina de controlo.

Ora, transpondo este raciocínio para a esfera do saber, posso per-

guntar:

– O que se faz com esta instância de mediação que se dissolve?

Que se metamorfoseia conforme a episteme dominante?

– O que se pode fazer com um saber museificado, um objecto que

as condições sociais só admitem como relíquia de exposição condi-

cionada? Será que o imperialismo da techne-objectificado que mantem

o exercício da acção do sujeito sobre o objecto – exige uma omniob-

jectificação para que qualquer acção comunicacional possa ocorrer

sem sobressaltos?

Mark Poster na sua “Segunda Era dos Media”, fala da necessidade

de observar o modo como as bases de dados nos interpelam. Pois, as

bases de dados são parte desse resto que há pouco referi. Nelas se

incorporam todos os museus que recebem todos os saberes descartados.

Mas o saber das bases de dados, que antes era o saber dos livros e dos sábios, é cada vez menos passivo. Este, tal como a tecnologia, interpela-nos e fá-lo de um modo muito específico. Também o saber se torna mais acessível e manipulável, mas apenas dentro de uma lógica específica de inteligibilidade e de relação com o mundo como o

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SABERES NÓMADAS 33

demonstraram as várias idades por que passou, da oralidade e do mito para a escrita e a prova, até ao hipertexto aparelhado.

Se o saber tornado signo, dispositivo de mediação, se sujeita aos condicionamentos da acessibilidade, esses condicionamentos vão-lhe igualmente esculpindo uma forma e um modo de fazer absolutamente dedicados.

Talvez seja este o desígnio do homem pos-moderno. Um modo de estar paradoxal e ansioso que se pode assim descrever:

– Como nunca antes, ter a liberdade e capacidade de acesso a todo o saber e mais algum e, ao mesmo tempo, o constrangimento sufocan-te da presença desse saber e da exigência (moral?, social?) da sua sensata utilização.

Os Saberes na Universidade

Observemos então um espaço que é suposto conhecermos.

A Universidade, é ponto assente que, sujeita à massificação que se iniciou nos anos 70, levou a médio prazo a comprometer o seu estatuto de laboratório de ideias novas.

Thomas Molnar, que não tem o perfil ideal para ser aqui chamado, escreveu um livro importante que não podemos negligenciar. O Declí-

nio dos Intelectuais no Ocidente chama a atenção para o facto de entre os anos 50 e os 80,os intelectuais terem sido capazes de instalar nos campus universitários as caldeiras e as condições de criação de novas vagas de pensamento e acção – dentro de um objectivo ideal de trans-formar a Universidade no protótipo da sociedade ideal.

É preciso aqui chamar a atenção para o fenómeno de erosão e dela-pidação que, nos últimos anos, sofrem as mais variadas áreas do saber, aqui incluídas as práticas e conhecimentos da escola em geral, e da Universidade em particular.

Ainda não há muitos anos, era possível sentir a força carismática do saber nas Ciências Humanas, como em outras áreas, uma força que se podia observar corporizada em alguns detentores desse saber – professores, intelectuais, e os próprios livros e testemunhos que deles a sociedade guardava.

É incrível como, em pouco mais de quinze anos, essa força fasci-nante que energizava grande parte de quem se dedicava a tais saberes – é incrível como essa força se diluíu na indiferença comum aos objectos sociais mais banalizados.

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No “O Castelo do Barba Azul” George Steiner diz o seguinte:

“Há um fosso de anos-luz entre a sensibilidade característica

dos meus anos de aprendizagem, segundo os moldes franceses

tradicionais, com a sua insistência óbvia no prestígio do génio e

a reivindicação de uma existência fecunda para alem da morte,

e a atitude peculiar dos meus alunos. Será que ainda dão às pra-

cetas da nossa cidade nomes de matemáticos? (...) o público já

não é um eco esclarecido do talento do artista, uma entidade que

responde à sua actividade singular e a transmite; transformou-se

em co-criador num agregado confuso de forças avulsas e parti-

cipantes. Abaixo os pressupostos de permanência da obra clás-

sica, abaixo os mestres.”

Não foi apenas Steiner que se apercebeu disto mais corporalmente;

estou a lembrar-me de Allan Bloom, Saul Bellow, etc.

No entanto, o estatuto e competências que a universidade conferia,

atraíu cada vez mais candidatos quase extinguindo os ensinos inter-

médios e massificando o ensino superior.

Rapidamente o mercado se apropriou do produto da Universidade,

como um filão para o abastecimento barato em Recursos Humanos

“semi-formatados”.

Esta viragem determina que passa a ser o mercado quem dita o ní-

vel, quantidade e qualidade da formação, com cabeças padronizadas,

orientadas para a sobrevivência, e destilados de todo o encantamento

intelectual que já nem sabem o que é e, pior, se por acidente dele se

aproximam, o sentem como altamente perturbador ou até absurdo.

Há pouco, observávamos o modo como as formas de reificação ac-

tuais haviam contaminado os diversos tipos de relação, e se tinha

consubstanciado em eixos de valor social e mediaticamente configu-

rados por esta dinâmica reificante. Nesta nova axiologia económica,

estamos mergulhados num universo de símbolos, redes e elos de

retroacção, de conectividade e interactividade, dentro do qual as fron-

teiras são fluidas e onde se torna evanescente tudo o que antes era

sólido. (Rifkin, p. 170.) Este panorama é natural que torne cada vez

mais difícil a relação entre sujeitos sem a mediação permanente da

almofada, para não dizer colchão protector/mediador que ofereça

segurança e distância a um sujeito cada vez mais frágil e medroso na

sua intimidade. Nitidamente um sujeito cada vez mais esquizóide,

cada vez mais apreciador de heróis destemidos e aventureiros, ou da

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SABERES NÓMADAS 35

sua simulação e encarnação temporária nos jogos de video. Afinal, a

compensação devida ao déficit de relações fortes e liberdade concreta

de acção em que o actual sujeito é obrigado a viver na panóplia de

forças que sujeitam o seu corpo e que Foucault tão bem retratou.

Como um esquizóide que é incapaz de se expôr e precisa da media-

ção de personagens que ele próprio enverga para se relacionar, sem

esta inter-mediação ou qualquer outra que o proteja até da relação

consigo próprio, o actual sujeito sente-se nu e bloqueado a qualquer

relação. Ele tem de envergar uma camisola e falar de futebol; vestir

um carro e falar de automóveis; fumar uma marca de experiência e

falar de dependencia; habitar um estilo e passar o dia a fazer de mane-

quim enfim, calçar um autor e discorrer sobre um módulo de conhe-

cimento.

A Reificação dos Saberes

O que acontece quando este processo reificante chega aos saberes e

ao conhecimento?

É difícil apresentar uma perspectiva crítica original neste campo.

Mas o que ocorre na generalidade das outras esferas, reflecte-se

igualmente na produção científica e académica.

O processo de reificação que, na Modernidade seleccionava os sa-

beres segundo o paradigma dominante, provado, objectivado e sancio-

nado pela comunidade científica, transferiu-se para a pos-modernidade

substituindo o carácter iso-paradigmático e objectivante por um novo

conjunto de características igualmente (verificáveis) – chamemos-lhe

visibilidade. O que é isto?

Visibilidade, nas actuais circunstâncias, cobre um leque de variá-

veis que se aglutinam igualmente sob um novo tipo de objectividade

da produção.

Se antes estávamos reduzidos a um modelo quase unidimensional –

hoje abre-se um leque de dimensões onde essa visibilidade/objecti-

vidade pode concretizar-se. Pode ser mesmo uma objectivação pela

eficiência dos resultados, sob um modelo de rendimento dos investi-

mentos na investigação – a eficiência pode até ser objectivada a outros

níveis.

Pode ser uma visibilidade investida no próprio corpo da descoberta

e da investigação, uma corporificação do processo heurístico pelo

fascínio do método ou mesmo a fertilidade do objecto a investigar.

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36 EDUARDO ESPERANÇA

Pode até ser uma visibilidade assente na visibilidade e prestígio do

investigador.

Estas visibilidades e objectificações desmultiplicam-se em várias

dimensões, mas têm o carácter comum de se corporificar em algo

tangível dentro das circunstâncias que as objectivam. Basta observar

os modos de seleccionar projectos de investigação para nos aperce-

bermos de que, a par das várias sensibilidades dos selectores, há um

olhar comum para os resultados, uma teleologia comum que de ime-

diato corporifica/visualiza as hipóteses de sucesso do projecto; e

sucesso aqui é a capacidade de produção de um objecto exequível e

performativo em termos científicos, quanto mais não seja em termos

de exposição e mostração.

Heisenberg dizia que na investigação científica, aquilo que obser-

vamos não é a natureza, mas a natureza submetida ao nosso método de

interrogação.

Apesar de um pouco mais abertos a novos objectos, os modelos de

interrogação, as configurações heurísticas dos projectos apoiados e

financiados, isto é, com hipótese de concretização, continuam a ser

razoavelmente restritos a um modelo dominante e epocal.

Como já disse, na Universidade, um dos problemas centrais reside

do grande mercado de Recursos Humanos em que ela se constituíu

neste advento da massificação, orientada para a produção de robots

performativos e programados, circunstância que desincentiva qualquer

género de pesquisa fundamental.

Em termos sintéticos, se a pesquisa aplicada não acontece dentro

do espaço dos possíveis, mas apenas dentro das dimensões visíveis,

aceites e sancionadas no seu presente, isto continua a excluir toda a

novidade que não se apresente dentro do quadro de referências em

agenda.

Muitos saberes então, tal como os ursos, hibernam até que novas

condições climatéricas menos adversas lhes dêem alguma chance de

sobrevivência.

Outros saberes migram, instalando-se em dimensões-objecto privi-

legiadas pelas circunstâncias.

Condições de actualização, valores e circunstâncias axiológicas fa-

voráveis e adversas, padrões comunicacionais preponderantes, – são

estas variáveis que, tentei mostrar, hoje condicionam A Migração dos

Saberes.