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Curso Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno 14 aulas Primeiro semestre de 2013 Professor: Vladimir Safatle Ministrado no Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo

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Curso Introdução à experiência intelectual

de Theodor Adorno

14 aulas

Primeiro semestre de 2013

Professor: Vladimir Safatle

Ministrado no Departamento de Filosofia

Universidade de São Paulo

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Para introduzir a experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 1

“Ao final de um dia de esperança brutal e de profunda depressão: eu estava ao ar

livre, sob um céu de escuridão indescritível e furiosamente carregado. Ele

portava a expressão de uma catástrofe iminente. De repente, uma luz, como um

relâmpago, aparece em um ponto e desaparece rapidamente abaixo ou acima das

nuvens. Digo: é a tempestade, e alguém me confirma. Segue um longo barulho

indescritível, mais próximo de uma explosão do que de um trovão; não acontece

nada mais do que isto. Pergunto: é tudo? e isto também me foi confirmado.

Ainda sob grande emoção, mas ao mesmo tempo tranqüilizado, acordo.

Estávamos no meio da noite. Retomei tranquilamente meu sono”1.

Adorno tinha o hábito de anotar alguns de seus sonhos. Este é um deles, datado

de 24 de janeiro de 1956. A sua maneira, ele descreve algo de fundamental na

experiência intelectual deste que é, sem dúvida, um dos filósofos mais importantes do

século XX. Gilles Deleuze tinha o hábito de afirmar que o verdadeiro pensamento era

sempre solidário de um acontecimento que nos força a pensar, algo que tem a força de

nos retirar do solo seguro do senso comum a fim de nos levar à confrontação com o que

não se submete aos esquemas categorias que colonizam nossa linguagem ordinária. Não

seria difícil mostrar como esta concepção do pensar como resposta ao choque do

acontecimento está na raiz da experiência intelectual adorniana.

Neste sonho, há um choque. Na verdade, um choque que aqui não deixa de se

servir da figura romântica da potência colossal da natureza, força monumental capaz de

colocar o pensar diante do que produz uma certa violência contra o poder

esquematizador da imaginação. A contemplação da tempestade furiosa, portadora de

escuridão indescritível e de um longo barulho aterrador sem forma é uma figura

privilegiada que encontramos quando Kant fala do sublime dinâmico da natureza. Força

sublime que, ao ser contemplada de um ponto seguro, nos faz descobrir uma “potência

de resistência” (Vermögen zu widerstehen) capaz de elevar as forças da alma

(Seelenstärke) para além da onipotência aparente da natureza (scheinbaren Allgewalt

der Natur)2.

“Pergunto: é tudo?”, diz Adorno; um pouco como quem diz: então posso me

colocar diante de tal força sem me destruir!? Não deixa de ser desprovido de interesse

lembrar aqui desta passagem da Odisséia, tão cara a Adorno, onde Ulisses pede a seus

marinheiros que o atem ao mastro de seu navio para que ele possa ouvir o canto das

sereias sem com isto deixar-se afogar em busca da beleza. Como se o verdadeiro pensar

fosse isto: uma aproximação arriscada com o que parece ter a força de nos destruir, de

destruir uma certa imagem do que o homem é:

“As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que

desviam o Eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,

experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido

1 ADORNO, Theodor; Traumprotokolle, 24 de janeiro de 1956 2 Ver, KANT, Immanuel; Kritik der Urteilskraft, Feliz Meiner, Hamburgo, 2006, par. 28

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por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os

seus papéis. “Mas onde há perigo, cresce também a salvação”: o saber em que

consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da

experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o

sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente

à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida”3.

Digamos pois que vale para Adorno aquilo que ele mesmo escreveu sobre

Ulisses: a verdadeira experiência (e que não poderia deixar de dizer respeito também a

toda experiência filosófica verdadeira) é a experiência do sobrevivente, deste que se

expõe mais audaciosamente a uma certa forma de ameaça. Experiência daquele que

“ainda sob grande emoção, mas ao mesmo tempo tranqüilizado” pode retomar seu sono

porque sabe que o sono não será mais fundado sob o esforço obsessivo em tentar calar

um saber a respeito do qual nos seria insuportável assumir.

A filosofia e seus exteriores

Estas colocações iniciais podem ser úteis para balizar uma discussão sobre o

sentido do que poderíamos chamar de “experiência intelectual” ou, mais propriamente,

de “experiência filosófica” (philosophischer Erfahrung): termo que será objeto maior da

Introdução à Dialética negativa; talvez o livro mais importante de Adorno, juntamente

com a Teoria estética. Pois devemos começar dizendo que uma experiência filosófica é

a modulação incessante e rigorosa de uma única questão desdobrada em todas as suas

conseqüências. Façamos nossa a afirmação de Deleuze: “Na verdade, uma teoria

filosófica é uma questão desenvolvida e nada mais que isto: por ela mesma, nela

mesma, ela consiste, não em resolver um problema, mas em desenvolver até o fim as

implicações necessárias de uma questão formulada”4. Ou seja, cada filosofia é animada

por uma forma de questão capaz de gerar tanto uma série determinada de problemas

quanto uma dimensão de pressupostos tacitamente implícitos e não-problematizados

que fornece o campo de enunciação de uma problemática filosófica. Por trás de seus

inumeráveis desenvolvimentos e escritos, um filósofo no fundo sempre trabalha uma só

questão.

Esta questão, por sua vez, pode ser avaliada. Ela pode ser boa ou má, o que

indica que ela é passível de qualificação. Podemos fornecer uma proposição provisória a

afirmar que uma questão filosófica será boa ou má quando mensurada ao conteúdo de

verdade do acontecimento que a gera. Toda questão filosófica é necessariamente

vinculada a um acontecimento histórico, ela é a ressonância filosófica de um

acontecimento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da física

moderna. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspirações

emancipadoras da Revolução Francesa. Mas, e a filosofia adorniana? Qual é a questão e

qual o acontecimento que geram a filosofia adorniana?

Antes de responder tais perguntas, vale a pena lembrar como o problema da

unidade da experiência filosófica adorniana guarda dificuldades suplementares. Pois

poucos foram os filósofos do século XX que se aplicaram de maneira tão sistemática em

embaralhar os limites da filosofia como disciplina universitária. Uma rápida passada de

olhos por suas Obras completas indica uma configuração extremamente peculiar. De

vinte volumes, oito dizem respeito a textos sobre estética musical, dois sobre crítica

3 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,

1991, p. 56 4 DELEUZE, Gilles, Empirisme et subjectivité, Paris: PUF, 6 ed., 1998, p. 118

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cultural e literatura, dois estritamente sobre sociologia. Esta aparente dispersão de

interesse já foi objeto de várias tentativas em privilegiar certos momentos da

experiência intelectual adorniana afirmando, por exemplo, que os textos filosóficos têm

predominância em relação aos textos musicais, que a guinada sociológica teria

permitido à Teoria Crítica instalar-se em um “para além da filosofia”, entre outras

interpretações inumeráveis.

De minha parte, gostaria de partilhar um postulado fundamental de leitura: uma

verdadeira experiência filosófica é radicalmente una na multiplicidade de suas vozes.

Neste sentido, é absolutamente incorreto ler um filósofo da mesma maneira que um

açougueiro olha para um boi, ou seja, pensando inicialmente em como separar as partes

e quebrar as juntas. Devemos lê-lo respeitando a necessidade de todos os seus

momentos, perguntando-se pelas articulações internas entre textos que parecem

pertencer a áreas tão diversas entre si quanto podem ser, no caso de Adorno, a pesquisa

social empírica, a estética musical, a reflexão sobre a tradição filosófica, a crítica

literária, o estudo das mídias e a sociologia das idéias.

Este é um ponto importante se quisermos levar em conta o regime de recepção

do pensamento de Adorno no Brasil. Data do começo dos anos setenta o começo do

interesse pela Escola de Frankfurt no Brasil. Colaborou para isto a tradição marxista

solidamente implantada na universidade brasileira e a acolhida restrita que o marxismo

francês de Althusser teve entre nós. A Escola de Frankfurt aparecia como uma corrente

não dogmática do marxismo ocidental, com larga força de influência no campo da

crítica da cultura e da análise das sociedades do “capitalismo tardio”. Por outro lado, tal

recepção ocorreu no momento em que a universidade brasileira passava pela

constituição de suas estruturas de mestrado e doutorado. Como resultado, alguns

campos de saberes, como os estudos de comunicação, institucionalizaram-se ao mesmo

tempo que a Escola de Frankfurt fazia sua entrada no meio universitário. Desta forma,

ela se transformou rapidamente em referência importante para a vida acadêmica

nacional.

No entanto, a disponibilização dos textos de Adorno para o público brasileiro

ainda é limitada. Além da ausência de traduções de obras centrais, como a A

personalidade autoritária, Jargão da autenticidade, Três ensaios sobre Hegel, Para

uma metacrítica da teoria do conhecimento, devemos lembrar que a quase totalidade

dos textos e monografias sobre música até hoje não foram traduzidos. Isto tende a

produzir uma recepção que acaba por privilegiar certos momentos e questões devido,

entre outras coisas, à dificuldade de acesso a certas partes da produção adorniana. Por

outro lado, estudar alguém como Adorno, cuja multiplicidade de campos de análise está

articulada, de maneira peculiar, em um projeto comum, exige a reconstrução sistemática

de tal articulação, sob a pena de ignorarmos, por exemplo, como a estética musical pode

fornecer resposta para problemas que aparecem pela primeira vez nos textos de

filosofia, como a teoria social organiza previamente o campo de intelegibilidade que

será colocado em operação na crítica literária, etc.

Tal característica nos coloca diante de uma questão de método da mais alta

importância. Pois é possível que Adorno nos mostre como há certas questões em

filosofia que só podem ser abordadas de maneira adequada a partir do momento que

somos capazes de forçar a sistematicidade do discurso filosófico, a partir do momento

que obrigamos tal discurso a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se

com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Forçagem que impediria a filosofia de

se transformar naquilo que um dia Foucault chamou de: “Perpétua reduplicação de si

mesma, em um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade

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alguma”5. Comentário infinito que nos levaria necessariamente à simples textualização

de práticas discursivas. È desta forma que devemos compreender afirmações maiores

como:

“Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode

alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez

a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas

os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura.

Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido,

indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências

particulares”6.

Tal forçagem vinda da confrontação entre filosofia e “ciências particulares”

empíricas, por sua vez, é capaz de nos indicar que talvez existam objetos que só podem

ser apreendidos na interseção entre práticas e elaborações conceituais absolutamente

autônomas e com causalidades próprias. Os momentos mais importantes da história

contemporânea da filosofia estão prenhes de tais estratégias. Por exemplo, quando Marx

pensa o problema da produção da aparência, ele só pode pensá-lo ao construir um ponto

de cruzamento entre a análise do processo de determinação social do valor das

mercadorias no capitalismo e a reflexão lógica sobre a dialética entre essência e

aparência a partir de Hegel. Estas duas séries de saberes são autônomas e irredutíveis,

uma não depende nem é a “aplicação” da outra (o problema da determinação social do

valor é da ordem da economia política e sua causalidade é economicamente

determinada). Mas tais séries devem se cruzar para que um certo objeto possa ser

apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto filosófico. Só a elaboração

conceitual sobre a dialética essência/aparência ou só a análise econômica do problema

do valor da forma-mercadoria não seriam capazes de apreender o “acontecimento” que

está em jogo no pensamento de Marx.

O mesmo vale para Adorno. Ao iniciar sua vida como professor universitário, o

jovem Adorno proferiu, em 1931, uma aula magna que não deixava de começar de

maneira sintomática:

“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde

o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que

seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)

através da força do pensamento”7.

Esta consciência, historicamente enraizada, do descompasso entre exigências de

sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir à possibilidade de se

deixar formalizar como totalidade é o motor que levará Adorno a constituir a

configuração de sua própria experiência intelectual. Pois devemos colocar a questão: o

que deve ser uma filosofia que duvida da possibilidade de apreender a totalidade da

realidade através da força do pensamento com seus esquemas categoriais de

estruturação do campo da experiência? O que deve ser esta filosofia a não ser um

movimento incessante de confrontação com a autonomia dispersiva dos campos

empíricos e autônomos do saber e de retorno a si a partir do impacto de tal experiência?

5 FOUCAULT, Michel; Dits et écrits, Pairs, Quarto, 1984, p. 1152 6 ADORNO, Thedor, Die Aktualität der Philosophie In: Gesammelte Schriften I, Digitale Bibliotheke

Band 97, 2000, p. 334 7 ADORNO, ibidem, p. 325

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Uma filosofia que mede a todo momento a distância entre tais campos empíricos e o

caráter constituinte da elaboração conceitual. Medida esta que vai ao poucos

configurando a sistematicidade do próprio texto filosófico, seja através da interferência

constante de elaborações vindas das ciências empíricas na economia textual da reflexão

filosófica, seja através da necessidade cada vez mais premente do texto adotar um estilo

fragmentário, elíptico, como se girasse em torno de algo que só pode ser exposto através

de suas resistências (daí o privilégio adorniano pela forma ensaio, pelo uso de aforismas

[como em Mínima moralia] e pela escrita “não monográfica” [como na Dialética

Negativa e na Teoria estética]). Um texto cujas categorias centrais serão forjadas

exatamente para dar conta, para construir o nome próprio da resistência, às totalizações

apressadas do pensamento, do que se oferece como real.

Uma teoria do sujeito

Neste ponto, talvez já possamos dar uma resposta provisória ao problema

relativo à questão central que baliza a experiência filosófica de Theodor Adorno. Pois

Adorno forneceu um nome para este movimento no interior do qual o caráter

constituinte da elaboração conceitual confronta-se com uma resistência que vem da

reflexão empírica e tem o estatuto de algo real que afeta o pensamento: sujeito.

Podemos mesmo dizer que, do início até o fim, a filosofia adorniana não será outra

coisa que uma complexa teoria do sujeito que procura desdobrar suas conseqüências

nos campos da reflexão sobre a teoria do conhecimento, a estética, a moral e a teoria

social. Ou melhor, uma teoria do sujeito que só pode se configurar através das

passagens da filosofia em direção a campos empíricos do saber. Não seria difícil

mostrar que, neste ponto, Adorno acaba por mostrar sua profunda solidariedade com a

tradição dialética inaugurada por Hegel, já que a filosofia de Hegel é, a sua forma,

também uma longa elaboração a respeito da reconstrução possível da categoria de

sujeito. Uma construção que também exige a dispersão conceitual do fazer filosófico.

No entanto, uma colocação desta natureza pode parecer estranha. Pois à pergunta

sobre o que é o sujeito, nós normalmente oferecemos uma resposta como: sujeito é uma

entidade substancial, ou seja, idêntica a si mesma e capaz de auto-determinar sua

própria essência. Na modernidade, sujeito tende a se confundir com termos como

“consciência” já que tendemos a atribuir ao sujeito as mesmas determinações da

consciência, a saber, a autonomia potencial das ações e condutas que leva à

imputabilidade da pessoa jurídica, a unidade coerente das representações e da

personalidade, a capacidade reflexiva do pensar, entre outros. Ou seja, autonomia,

imputabilidade, reflexividade, unidade e identidade nos aparecem normalmente como

atributos básicos de toda e qualquer noção de sujeito.

O que veremos em Adorno, no entanto, será um esforço sistemático para

repensar todas estas categorias, isto a fim de elaborar uma noção de sujeito onde a

identidade dê lugar à não-identidade e à clivagem, onde a reflexividade abra espaço ao

reconhecimento da racionalidade do que não é imediatamente conceito. Na verdade,

trata-se de constituir um conceito de sujeito capaz de servir de fundamento à crítica à

noção hegemônica de subjetividade. Projeto que Adorno enunciou ao afirmar querer:

“Com a força do sujeito, quebrar a ilusão (Trug) da subjetividade constitutiva”8. Para

tanto, ele precisará operar recursos massivos a campos empíricos do saber como a

psicanálise e a sociologia.

8 ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt: Suhrkamp, 1975, p. 10

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Notemos ainda que a problematização do conceito moderno de sujeito é um dos

tópicos mais recorrentes na filosofia do século XX. Tudo se passa como se o

pensamento contemporâneo tomasse consciência de que as expectativas emancipatórias

da razão, estas expectativas que prometiam ao homem sair de sua minoridade e, como

dizia Descartes, ser “senhor da natureza” haviam produzido o inverso daquilo que era

seu conceito. Uma inversão da emancipação em dominação de si que não deixava de

estar ligada ao destino deste conceito que serve de fundamento à racionalidade

moderna: sujeito. Pois não foram poucos aqueles que insistiram na questão: quanto

devemos pagar para que a unidade, a autonomia, a transparência e a identidade do

sujeito possam se impor enquanto realidade? O que deve acontecer com a experiência

de nós mesmos para que ela possa ser vista como campo que se submete a tais

categorias? E o que acontece com a experiência do mundo quando o fundamento da

experiência é um sujeito pensado a partir destes atributos? Podemos dizer que tais

questões são a base de um dos livros centrais de Adorno: a Dialética do Esclarecimento.

De fato, elevar tal experiência de si à condição de problema é algo que

necessariamente traz conseqüências profundas. Pois a maneira com que compreendemos

a categoria de sujeito não poderia de deixar de ter conseqüências na maneira com que

definimos o que é um objeto da experiência, quais as condições para que algo aceda à

condição de objeto. Ou seja, trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da

razão tem seu solo na crítica àquilo que serve de fundamento às operações de

categorização e de constituição do objeto de experiências que aspiram preencher

critérios racionais de validade.

Neste sentido, devemos estar atentos, por exemplo, para o fato de boa parte das

operações críticas da Dialética do Esclarecimento visarem demonstrar como o processo

de constituição do Eu moderno, com suas exigências de auto-identidade imediata e de

auto-determinação, significou a submissão de toda experiência possível ao primado da

identidade e da abstração. Assim, por exemplo, se Adorno precisa insistir tanto na

necessidade do pensamento racional denegar toda força cognitiva da mimesis (tema

maior do advento da razão moderna no qual se vinculam a degradação do pensar por

imagens e a crítica da força cognitiva da semelhança e da analogia), é porque se trata de

sustentar: “a identidade do eu que não pode perder-se na identificação com um outro,

mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas como máscara impenetrável”9.

Pois a identidade do Eu seria dependente da entificação de um sistema fixo de

identidades e diferenças categoriais.

A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e

Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as

processos de categorização do sujeito cognoscente10, já que, em última instância, a

categorização seria uma projeção do princípio de identidade do Eu na síntese do diverso

da intuição em representações de objetos da experiência. Mesmo a compreensão da

cognição como assimilação do objeto através de uma rememoração (Erinnerung) capaz

de internalizar as cisões que a própria consciência teria produzido não escapará dos

motivos da crítica frankfurtiana. Neste momento, valem para Adorno e Horkheimer a

afirmação de um filósofo que, em vários momentos, cruzou o caminho dos

frankfurtianos através de uma crítica da razão como modo de dominação técnica do

mundo e de si, Martin Heidegger: “nos parece que, em todo lugar, o homem só encontra

9 ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 24 10 Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente

concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização

e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador

contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (idem, p. 180)

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a si mesmo. Heisenberg teve plena razão ao dizer que, para o homem de hoje, o real

(Wirklichen) não pode parecer de outra forma”11.

Assim, toda boa leitura de Adorno deve tentar compreender como ele foi capaz

de constituir uma crítica do sujeito moderno que, ao mesmo tempo, colocou-se como

afirmação de uma teoria renovada da subjetividade, de uma teoria do sujeito

independente das temáticas ligadas à filosofia da consciência12.

Por outro lado, trata-se de demonstrar como, no interior da experiência

intelectual adorniana, estas temáticas próprias à reflexão sobre o estatuto de um

conceito filosófico, como sujeito, servirão de base para o desenvolvimento de uma

complexa crítica social do capitalismo avançado. É este movimento fundamental entre

crítica da razão, crítica do sujeito e crítica social que interessa a Adorno. Como

conceitos filosóficos, ao mesmo tempo, fundamentam a crítica social e se configuram a

partir dela, ou seja, são gerados pela situação social mas, ao mesmo tempo, fornecem a

perspectiva que fundamenta a crítica à esta mesma situação? Como o que nasce no

interior de uma situação pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que me permite

criticar esta própria situação? Como se dá esta passagem tensa entre filosofia e teoria do

capitalismo? Como é possível, por exemplo, articular a crítica do sujeito como locus da

identidade imediata e a compreensão de que: “a ideologia é a forma originária da

ideologia”13? Todas estas questões só podem ser respondidas através de uma leitura

atenta do texto adorniano.

Indústria cultural e crítica da cultura

É tendo em vista os problemas gerados no interior do projeto de constituir uma

teoria do sujeito onde este não apareça como peça maior de uma metafísica da

identidade que podemos abordar o sentido de uma das elaborações mais conhecidas de

Adorno, a saber, o conceito de “indústria cultural”. Ele visa preencher duas funções.

Primeiro, trata-se de mostrar como a esfera da cultura de massa transformou-se

no núcleo dos processos de socialização e de formação de individualidades. Desde os

anos 30, o Instituto de Pesquisas Sociais desenvolvia pesquisas a respeito das

modificações estruturais na esfera da família devido à desagregação da autoridade

paterna. Neste contexto, eles insistiam que processos anteriormente vinculados ao

núcleo familiar tendiam a ser operados pelo setor mais economicamente organizado da

cultura.

Segundo, trata-se de mostrar como a produção cultural transformou-se no setor

mais avançado da produção econômica. Neste sentido, o conceito de “indústria cultural”

não visa apenas mostrar as mutações pelas quais a cultura passou na sociedade

industrial, mas também como a cultura transformou-se em peça fundamental do

processo de auto-valorização do Capital. A sua maneira, Adorno já indicava a mutação

do capitalismo em “capitalismo cultural”, ou seja, capitalismo onde a cultura

desempenha papel econômico decisivo.

Mas vejamos com mais calma a primeira função. Adorno acredita que a

indústria cultural constituiu-se como poder unificador da dinâmica de funcionamento

das esferas sociais e como processo de submissão da diversidade à lógica da identidade.

11 HEIDEGGER, Martin; Essais et conférences, p. 35 12 Um belo exemplo deste trabalho nos é fornecido por DEWS, Peter, Adorno, pós-estruturalismo e

crítica da identidade In: ZIZEK, Slavoj, Um mapa da ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, pp.

51-71. Tomo a liberdade de também remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; Espelhos sem imagens:

mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno, Revista Trans/form/ação, vol. 28 (2), 2005, pp. 21-47 13 ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 151

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Para tanto, foi inicialmente necessário que ela se constituísse como sistema unificado de

produção. Cinema, rádio, revistas: todas essas mídias devem estar submetidas à mesma

lógica de produção e aos mesmos detentores. Uma oligopolização que se acentou com o

passar do tempo.

Por outro lado, esta natureza oligopolista implica necessariamente padronização

e estereotipia. Esta padronização exige que a produção seja uma montagem de clichês

que devem ser facilmente reconhecidos para que a segurança advinda da capacidade em

reconhecer o que sempre volta ao mesmo lugar seja garantida. Daí porque Adorno e

Horkheimer falarão que o primeiro serviço fornecido pela Indústria Cultural ao

consumidor seria o “esquematismo”. Esta é uma maneira de atualizar a afirmaçao de

Marx, para quem a produção cria um necessariamente sujeito para o produto. Neste

sentido, Adorno chega mesmo a afirmar que a atitude do público já seria parte do

sistema. Vem da força do sistema sua capacidade de organizar a sociedade através de

uma rede de diferenciais e targets prontos para a identificação. Desta forma, Adorno

pode insistir que os processos de identificação presentes nos produtos da comunicação

de massa seriam negações simples da singularidade ou, se quisermos, da não-identidade

dos sujeitos.

Vários criticarão Adorno por ele parecer, com isto, acreditar que o processo de

recepção não seria uma atividade criativa, mas simplesmente a confirmação de padrões

postos e manipulados pela Indústria Cultural. Mas notemos um ponto importante que

faz uma grande diferença. De uma certa forma, Adorno não acredita que a função da

Indústria Cultural consista simplesmente na imposição do mesmo e na promessa

reiterada de satisfação imediata. É mais correto dizer que, para Adorno, a força da

Indústria Cultural vem da sua capacidade em administrar o desencanto com a própria

Indústria Cultural, em gerir a insatisfação. Adorno insiste várias vezes que a Indústria

Cultural já produz produtos que visam dar forma, expressar o desencantamento com os

próprios estereótipos fornecidos por ela mesma14. Como se o verdadeiro cerne do poder

não estivesse na imposição de padrões de condutas, mas na gestão de suas margens.

Neste sentido, se é verdade que a atitude do público já seria parte do sistema, é porque

desencanto do público com os padrões da Indústria Cultural é o verdadeiro motor do

processo. Nada dá mais dinheiro à Indústria Cultural do que produtos que expressam o

desencanto com a própria Indústria Cultural. Maneira astuta de perpetuar conteúdos de

identificação que não exigem mais assentimento.

Um acontecimento gerador

Mas voltemos ao nosso problema inicial, até porque, de uma certa forma, ela também

está ligada ao debate da cultura no século XX. Se a questão que fornece a consistência

da filosofia adorniana diz respeito à possibilidade de pensar um sujeito que não seja

mais a entificação dos princípios de identidade, unidade e auto-determinação, questão

esta que recebe sua forma canônica através do imperativo de, com a força do sujeito,

quebrar a ilusão da subjetividade constitutiva, então devemos ainda nos perguntar: qual

o acontecimento que gera esta questão? Qual é o acontecimento histórico a respeito do

qual a filosofia de Adorno será sempre fiel e a partir do qual ela medirá seu

desenvolvimento?

Pôr tal pergunta parece-me algo importante porque normalmente ela é

respondida de maneira equivocada. Não são poucos aqueles que dirão que a filosofia de

Adorno é marcada, sobretudo, por Auschwitz, isto a ponto dela estabelecer como

14 Neste sentido, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Vladimir ; “Sobre um riso que não

reconcilia”, In: Cinismo e falência da crítica, São Paulo: Boitempo, 2008

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imperativo categórico para a contemporaneidade: “tudo fazer para que Auschwitz nunca

mais ocorra novamente”. Um dos pensadores mais recentes a insistir neste ponto foi

Alain Badiou, para quem, em Adorno: “Trata-se de saber quais são as redes e condições

de possibilidade de um pensamento após Auschwitz, ou seja, de um pensamento que

seja, em vista do que foi Auschwitz, não seja um pensamento obsceno, mas antes um

pensamento cuja dignidade seria preservada devido a razão dele ser um pensamento

após Auschwitz”15. E se nos perguntarmos sobre do que Auschwitz é o nome,

deveríamos afirmar que Auschwitz é o nome de uma certa “catástrofe do pensamento

identitário”.

De fato, Adorno não cansa de insistir que “nos campos de concentração não era

o indivíduo que morria, mas o exemplar”, pois a indiferença em relação ao sofrimento

presente na transformação do assassinato em operação industrial e desafectada seria o

resultado direto de um modo de pensar, de uma forma de vida que perdeu toda

capacidade de se deixar tocar pela irredutibilidade singular do sensível. Daí uma

afirmação como:

“O que os sádicos diziam às suas vítimas nos campos de concentração: -

Amanhã, você partirá por esta chaminé como fumaça em direção ao céu; indica

esta indiferença em relação à vida de cada singular (Einzelnen) para a qual a

história caminha. Em sua liberdade formal, o singular já é tão intercambiável

como sob as botas dos que irão liquidá-lo”16.

Ou seja, a catástrofe histórica representada por Auschwitz não seria outra coisa

que a figura mais bem acabada de uma forma de vida, como a nossa, que seria incapaz

de viver com o que não se submete à forma de identidade, com o que rompe com um

princípio de unidade cuja maior entificação seria a própria função do Eu moderno.

Contra isto, teríamos uma filosofia assombrada pelo caráter totalitário do Uno, pela

exigência de pautar a política pela necessidade de evitar o sofrimento e de sustentar

respeito a alteridade (um pouco como se Adorno não passasse de um Lévinas precoce).

Posições que, hoje em dia, poderiam ser aceitas sem maiores dificuldades por todos os

que compreendem que a função fundamental do pensamento é a tarefa negativa e

reativa de simplesmente “evitar a catástrofe”. Posição de quem se desespera a respeito

da força geradora e revolucionária da práxis.

É verdade que Adorno formulará um critério moral que pode ser enunciado da

seguinte forma: o verdadeiro ato moral é aquele capaz de deixar-se guiar pelo

afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposição desta natureza é temerária por

permitir, inicialmente, várias interpretações. Pois podemos compreender este

afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos atos são guiados

pelo cálculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como um imperativo

ligado a formas de política da vitimização (os sujeitos da ação devem ser vistos

inicialmente como vítimas em potencial).

No entanto, podemos fornecer uma outra interpretação, substancialmente

diferente, em relação ao pensamento adorniano. Sem em momento algum ignorar a

importância decisiva da experiência castrófica de Auschwitz não apenas para o

pensamento adorniano, mas para todo e qualquer pensamento que, a partir da segunda

metade do século XX, queira de fato pensar à altura dos acontecimentos históricos, sem

negar que, de fato, uma das dimensões maiores do pensamento, a partir de então, será

necessariamente “evitar a catástrofe”, trata-se de insistir que nenhuma filosofia pode ser

15 BADIOU, Alain; De la dialectique negativa para rapport à um certain bilan de Wagner (mimeo) 16 ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 355

Page 11: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

solidária apenas de um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que

algo aconteça novamente etc.). Toda verdadeira filosofia traz também consigo a

exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas

instauradoras. Mesmo a ação de evitar o pior só encontra força se for portada por

promessas instauradoras.

Fazer uma afirmação desta natureza é de especial importância para a leitura de

Adorno, já que vários comentadores procuraram afirmar que a filosofia de Adorno não

poderia fornecer horizontes de intervenção. No entanto, tentemos tirar todas as

conseqüências do fato de, para Adorno, mesmo o paradigma do campo de concentração

não ser resultante da irracionalidade de um pretenso mal radical, mas da estrutura

paranóica do Eu moderno que projeta compulsivamente para fora de si sua própria

infelicidade, sua própria impossibilidade de se reconhecer no que não se conforma à

imagem de si17. Ou seja, ele é, de uma certa forma, o extremo de uma patologia

vinculada à implementação social da metafísica da identidade. Por isto, devemos nos

colocar a seguinte questão : sendo Auschwitz, para Adorno, algo como a « catástrofe do

pensamento identitário », haveria então um acontecimento capaz de levar o Eu a se

confrontar com o que parece lhe dissolver, um acontecimento gerador de novas formas

para o pensar ? Pergunta que visa indicar a qual acontecimento devemos ser fiel a fim

de impedir que nossas formas de vida conservem estruturas psíquicas e libidinais que

possam servir de base para a integração em sociedades totalitárias. É neste ponto que

devemos levar às últimas conseqüências a importância da estética para a constituição do

programa filosófico adorniano.

De maneira esquemática, podemos dizer que o verdadeiro acontecimento

gerador da filosofia adorniana é o conjunto de as possibilidades estéticas abertas pela

chamada Segunda Escola de Viena, em especial nas figuras de Alban Berg e de Arnold

Schoenberg. Não devemos ter medo de afirmar que toda sua filosofia é a elaboração

contínua e rigorosa das potencialidades abertas pelas expectativas vanguardistas da

estética musical. Mas para entender melhor este ponto, devemos afinal de contas

compreender melhor o que é significa, para Adorno, pensar sobre a música, ou ainda, o

que a experiência da música nos traz.

Ao escrever seu mais importante livro sobre música, Filosofia da nova

música,de 1948, Adorno viu-se obrigado a iniciar desculpando-se:

17 Não se trata em absoluto de procurar compreender a complexidade sócio-histórica de um

acontecimento como o nazismo através de explicações genéricas a respeito dos impasses na ontogênese

das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Trata-se simplesmente de colocar uma questão

subsidiária : qual deve ser a estrutura psíquica e libidinal de sujeitos que aceitam desenvolver disposições

de conduta em conformidade com as injunções de uma sociedade totalitária ? Daí o uso importante que

Adorno e Horkheimer fazem de categorias clínicas como « narcisismo » e « paranóia » em « Elementos

de anti-semitismo ». Lembremos, por exemplo, do sentido decisivo de afirmações como: “O anti-

semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente aparentada

à mimese que foi recalcada, talvez o traço caracterial patológico em que esta se sedimenta. Só a mimese

se torna semelhante ao mundo ambiente, a fala projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela”

(ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 174). Daí também a importância que Adorno dá a um texto

como « Psicologia das massas e análise do Eu », de Freud, na compreensão do nazismo. Mas, volto a

insistir, em hipótese alguma uma análise regional desta natureza pode querer dar conta da estrutura causal

que gera um acontecimento da complexidade do totalitarismo nazi-fascista, com sua especificidade e

diferença em relação a outras formas de totalitarismo que o século XX conheceu (como o stalinismo, as

ditaduras militares latino-americanas, o maoismo, entre outros). Por outro lado, ela também não responde

ao conjunto de ações que devem ser tomadas para que algo como Auschwitz não se repita mais.

Page 12: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

“Pode parecer cínico, depois do que aconteceu na Europa e de tudo o que ainda

nos ameaça, dissipar tempo e energia intelectual decifrando problemas

esotéricos da técnica moderna de composição”18.

Esta frase no fundo pode ser traduzida da seguinte maneira: os problemas da

racionalidade musical parecem tão autônomos em relação àquelas questões gerais postas

pela efetividade ao pensamento filosófico que eles parecem ser desprovidos de

relevância real, para além de um pequeno círculo de especialistas. Afinal, por que regras

de harmonia, problemas de sintaxe musical e obsolescência de padrões de construção

musical interessariam alguém mais do que músicos?

A resposta adorniana seria: porque a história das formas musicais é um setor

privilegiado, mas quase esquecido, da história da razão. Lembremos desta antiga

constatação platônica de que a música indica fundamentalmente critérios de

organização, o que nos explicaria porque “nunca se abalam os gêneros musicais sem

abalar as mais altas leis da cidade”19. Se os gêneros musicais têm o poder de abalar os

alicerces da cidade, é porque as formas musicais se colocam como dispositivos que

aspiram fornecer critérios de organização racional daquilo que aparece primeiramente

como natureza (o som) e expressão das funções intencionais do sujeito.

Insistamos neste ponto. A forma musical é produzida a partir de decisões sobre

os protocolos de identidade e diferença entre elementos (consonância e dissonância),

sobre os problemas de partilha entre o que é racional e o que é irracional (som e ruído),

sobre o que é necessário e o que é contingente (desenvolvimento e acontecimento). Ela

se produz ainda a partir de decisões sobre a relação entre razão e natureza (a música

como mimesis das leis naturais ou como plano autônomo do que se afirma contra toda

ilusão de naturalidade) e sobre os regimes de intuição do espaço e do tempo. È esta

gama de dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma

decisão sobre os critérios válidos de racionalidade. Neste sentido, desde sua juventude,

Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena haviam

produzido as condições de possibilidade para pensarmos um conceito renovado de

sujeito e de razão. O que o levou a afirmar, de maneira peremptória: “em relação à

especificidade que o último Schoenberg foi capaz de realizar como compositor, há algo

a ser ganho para o conhecimento filosófico”20.

Sobre a relação entre arte e filosofia em Adorno

Podemos, desdobrar esta questão espinhosa a respeito da relação entre filosofia e

estética em Adorno através da apresentação de uma resposta ao problema do regime de

recurso filosófico à arte na experiência intelectual adorniana. É notável que em

momento algum tal recurso opere a partir da lógica da exemplificação. Para Adorno, as

obras de arte não são um caso exemplar daquilo que a elaboração filosófica seria o

conceito.

De maneira esquemática, é possível dizer que há, ao menos, três maneiras de se

pensar os modos de indexação entre conceito e caso. O primeiro é o caso como exemplo

do conceito. Aqui, há uma relação tautológica de subsunção da particularidade do caso à

generalidade do conceito, até porque não há nada a apreender do caso que já não esteja

no conceito. Isto nos leva necessariamente, para utilizar uma leitura proposta por

18 ADORNO, Philosophie der neuen Musik, Frankfurt: Suhrkamp, pp. 10-11 19 PLATÃO, A república, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, 424c 20 ADORNO, Über das gegenwärtige Verhältnis von Philosophie und Musik. In: Gesammelte Schriften

XVIII, Digitale Bibliotheke, op. cit., pp. 166-167

Page 13: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Badiou, a uma visão pedagógica da arte. Pois a arte não produziria verdades. Antes, ela

deveria fornecer o caminho correto para a apreensão de uma verdade que lhe ultrapassa

e que encontra seu solo natural na discursividade prosaica do pensamento conceitual.

O segundo é o caso como ponto de excesso do conceito. Trata-se da defesa da

existência de uma relação de não-estruturação do caso pelo conceito, como se houvesse

uma irredutibilidade da multiplicidade própria ao caso a toda tentativa de estruturação

pelas capacidades generalizadoras do conceito. Uma certa visão romântica da arte como

discurso originário, espaço natural da intuição criadora seria o desdobramento orgânico

de tal posição.

Por fim, podemos dizer que o caso é um modelo do conceito e se dissermos isto

estaremos mais perto do que Adorno tem em vista através do seu recurso filosófico às

artes. Trata-se de mostrar como o verdadeiro caso é aquele que traz em si modos de

organização capazes de reordenar as aspirações sintéticas do conceito.

Esta é uma questão maior, até porque Adorno é claro em afirmar o primado do

modelo em filosofia: “Pensar filosoficamente é como pensar por modelos; a dialética

negativa é um conjunto de análises de modelos”21. Assim, devemos responder: o que

significa afirmar que a confrontação com as obras de arte é o modelo para a

reconstituição do pensar filosófico?

Muito haveria a se dizer a respeito desta questão, mas a título introdutório

podemos insistir em um ponto. Afirmar que a confrontação com as obras de arte é o

modelo para a reconstrução do pensar filosófico significa sustentar que a arte pensa,

que ela é um campo produtor de verdades. Talvez ela não pense exatamente por

conceitos e com seus processos de submissão da particularidade do caso a

universalidade de representações gerais, mas ela pensa por formalizações. De qualquer

maneira, a idéia de forma liga ainda a arte a um certo nível de articulações lógicas do

conceito. Por outro lado, ela nos fornece modos de formalizações de objetos que, por

que não dizer as coisas às claras, tem aspirações cognitivas. A este respeito, lembremos

como a Teoria estética de Adorno não temia em afirmar que “a problemática da teoria

do conhecimento retorna (wiederkehren) imediatamente na estética”22. Ele vai ainda

mais longe, na medida em que afirma que a formalização estética deve ser

compreendida com “correção do conhecimento conceitual”, já que a : “arte é

racionalidade que critica a racionalidade sem dela se esquivar”23. A crítica da arte em

relação ao conceito se legitima na medida em que, para Adorno, a formalização estética

é capaz : “de absorver na sua necessidade imanente o não-idêntico ao conceito”24

colocando-se assim como dimensão de verdade. Pois: “Com o progresso da razão,

apenas as obras de arte autênticas conseguiram evitar a simples imitação do que já

existe”25. Um exemplo do gênero de “correção” que a arte pode nos fornecer: “A

grosseria do pensamento é a incapacidade de operar diferenciações no interior da coisa,

e a diferenciação é tanto uma categoria estética quanto uma categoria do

conhecimento”26.

Ou seja, contrariamente a uma tendência geral do pensamento estético do século

XX, Adorno não cessa de analisar as obras de arte a partir de critérios de verdade e de

falsidade, de autenticidade e de inautenticidade, tal como, por sinal, Arnold Schoenberg.

Isto permite Adorno relativizar a tendência de autonomia das esferas sociais de valor e

21 ADORNO, idem, p. 39 22 ADORNO, Ästhetische Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 493 23 idem, p. 87. 24 idem, p. 155 25 ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 34 26 ADORNO, ibidem, p. 344

Page 14: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

afirmar que a atividade artística nos fornece coordenadas para pensarmos a ação moral e

as expectativas cognitivas. Contrariamente a Kant, para quem o acordo intersubjetivo

sobre o Belo não exigiria nenhuma referência à verdade racional ou à norma moral,

Adorno não cessa de insistir que forças idênticas agem sobre esferas não idênticas.

Neste sentido, devemos nos perguntar qual era o significado maior da

experiência estética da Segunda Escola de Viena para Adorno. Sem entrar em

considerações técnicas que obrigariam a redação de outro artigo, é possível dizer tal

significado está necessariamente vinculado à maneira com que, através da estética,

Adorno encontra as bases para pensar um conceito de sujeito não mais vinculado ao

primado da identidade. Isto fica claro em afirmações como:

A música de Schoenberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera as

pulsões (Triebhafte) ameaçadoras, que outras música só deixam transparecer

quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tenciona as

energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o

suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...) Embora sua música

canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela

permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schoenberg, algo ´estranho

ao Eu´”27.

Este é um ponto fundamental. Toda forma musical traz a pressuposição de uma

figura do sujeito, não apenas enquanto agente do processo composicional vinculado à

categoria de expressão, mas também como ouvinte que deve se orientar a partir de

modos determinados de audição. Tomemos, por exemplo, a forma-sonata definida

como o que tem: “um clímax identificável, um ponto de máxima tensão para o qual a

primeira parte do trabalho conduz e que é simetricamente resolvido. Trata-se de uma

forma fechada, sem a estrutura estática de uma forma ternária; ela tem uma finalização

dinâmica análoga ao desdobramento do drama oitocentista, no qual tudo é resolvido, os

detalhes estão ligados e a obra é redonda”28. A identificação de clímax e tensões exige

funções intencionais como a memória narrativa (que organiza o desenvolvimento em

“drama”), a atenção orientada por um telos, além da compreensibilidade de princípios

de diferenciação e de identidade partilhados tanto pelo compositor quanto pelo ouvinte.

A idéia de resolução exige, por sua vez, um Eu capaz de orientar processos de síntese e

de determinar o sentido de totalidades funcionais; ou seja, um Eu como unidade

sintética de representações. Mas uma música que não se organiza como uma sonata;

que modifica noções estruturais como resolução, hierarquia, tensão-distensão,

antecedente-consequente, consonância-dissonância, que constrói de outra maneira sua

totalidade funcional, traz necessariamente a promessa de uma nova figura do sujeito,

que não é simplesmente o sujeito dos julgamentos estéticos.

Este regime de recurso filosófico à arte será uma constante na experiência

intelectual de Adorno. Vemos que, aqui, a arte não é utilizada como álibi para o

abandono do conceito em prol de alguma espécie de imanência com domínios pré-

conceituais da intuição, de afinidade pré-reflexiva entre sujeito e natureza ou de

hipóstase do inefável, do arcaico e do originário. Ao contrário, tal recurso privilegiado

quer dizer simplesmente que precisamos sustentar novos modos de formalização e

ordenação que não sejam mais assentados na repressão da experiência de não-

identidade. Modos que, em certas situações históricas, encontram sua primeira

manifestação na arte, isto para depois desdobrarem-se em outras esferas da vida social.

27 ADORNO; Prismas; crítica cultural e sociedade, São Paulo: Ática, 2001, p. 147 28 ROSEN, Charles; Sonat forms, New York, Norton, 1988, p. 10

Page 15: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Foi esta a aposta que animou a experiência intelectual de Adorno: pensar a

partir das promessas de uma nova ordem trazida pelo setor mais avançado da

produção artística de seu tempo. Digamos que este foi o solo positivo de sua dialética

negativa. Aposta que só foi possível porque Adorno assumiu, desde o início, a

necessidade de parar de ver, na arte, a simples indicação de uma estética e assumí-la

como setor privilegiado da história da razão, ou seja, parar de ver, no recurso filosófico

à arte, apenas a tentativa de constituir uma estética inflacionada de vocabulário

filosófico. Devemos derivar todas as conseqüências do fato de uma certa experiência

estética, com seus protocolos de formalização, fornecer a Adorno o modelo de

reorientação das categorias da dialética, em especial a categoria de sujeito. Este é um

trabalho que exige um cuidado que sempre marcou a experiência intelectual adorniana:

o cuidado de não separar o que deve ser pensado conjuntamente.

Page 16: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 2

Na aula de hoje, começaremos a discussão de um pequeno texto programático,

intitulado A atualidade da filosofia. Na verdade, este texto não foi publicado por

Adorno, mas pronunciado como aula-magna à ocasião de sua entrada na Universidade

de Frankfurt como professor de filosofia, em 1931, quando o autor tinha 28 anos.

Trata-se de um texto programático por ser, de uma certa forma, a síntese de um

processo de definição de problemas e de formação intelectual que havia direcionado

Adorno durante todo os anos 20. Uma das características maiores deste processo era seu

hibridismo. Durante os anos 20, Adorno foi atravessado por uma oscilação constante

entre seguir uma carreira de compositor e seguir uma carreira acadêmica de professor de

filosofia. Ele chega a ir para Viena a fim de seguir cursos com o compositor Alban Berg

durante quase dois anos. Neste período, ele produz várias peças, todas marcadas por

uma certa filiação àquilo que então era chamado de “nova música”, ou seja, a Segunda

Escola de Viena (Schoenberg, Berg, Webern). Sua produção de artigos sobre a música

de sua época e críticas de concerto é intensa, principalmente para revistas como

Musikblätter des Anbruch, Pult und Taktstock e Die Musik. Os assuntos dizem respeito,

sobretudo, às correntes artísticas e compositores decisivos para o debate estético dos

anos 20 na Alemanha: o expressionismo, Hindemith, Bela Bártok, os compositores da

nova música, Hanns Eisler, Kurt Weill, Ravel, Mahler, entre outros.

Por outro lado, Adorno continua seguindo os passos necessários para a carreira

acadêmica. Em 1924, ele defende sua dissertação, sob a supervisão de Hans Cornelius,

cujo título era: A transcendência do objetal e do noemático na fenomenologia de

Hursserl (Die Transzendenz des Dinglichen und Noematischen in Husserls

Phänomenologie). O debate com a fenomenologia será uma constante na trajetória

filosófica de Adorno, principalmente através dos seus dois nomes maiores: Husserl e

Heidegger. Ao primeiro, será dedicado, entre outros, o livro Para uma metacrítica da

teoria do conhecimento: estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenológicas, de

1956. Para o segundo, o famoso O jargão da autenticidade, de1964.

Alguns anos mais tarde, em 1927, Adorno tentará apresentar sem sucesso, para o

mesmo Hans Cornelius, uma tese de habilitação em filosofia intitulada: O conceito de

inconsciente na doutrina transcendental da alma (Die Begriff des Unbewussten in der

transzendentalen Seelenlehre). Tratava-se de uma tentativa ousada de aproximação entre

psicanálise freudiana e a noção de transcendental no interior da tradição filosófica

kantiana. Indicação clara desta maneira tão própria a Adorno de procurar pontos de

articulação entre questões filosóficas e problemáticas derivadas do estado atual das

ciências empíricas. Este fracasso levará Adorno a apresentar outra tese de habilitação,

agora sob a supervisão de Paul Tillich, que será publicada em 1933 com o título de

Kierkegaard: construção da estética.

No entanto, não deixa de ser surpreendente que, até o momento da publicação de

sua tese de habilitação, Adorno não publicara praticamente nenhum artigo ou texto

claramente sobre filosofia. Sua prolífica produção era, até então, exclusivamente

dirigida à estética musical. Um fato que só pode ser explicado se aceitarmos que várias

preocupações maiores que serão objetos de seu programa filosófico já estão, de uma

forma ou outra, em operação no interior dos textos sobre estética e crítica musical. De

fato, a conferência A atualidade da filosofia, nos indica alguns caminhos importantes

neste sentido.

Page 17: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Esta conferência programática aparece em um momento decisivo. Em janeiro de

1931, Max Horkheimer assume a direção do Instituto para a pesquisa social, que a partir

de então se transformará na base institucional daquilo que hoje entendemos por Escola

de Frankfurt. Criado em 1923 graças à subvenção financeira de Félix Weil, filho de um

grande comerciante com negócios na Argentina, o Instituto dedicava-se, principalmente,

a estudos sobre a história do movimento operário, especialidade de seu então diretor, o

professor de economia política Carl Grünberg. A tais estudos, somavam-se análise sobre

a crise da economia capitalista e o funcionamento da economia planificada. Mas com a

vinda de Horkheimer, as pesquisas ganharão uma perspectiva substancialmente

diferente.

A nova linha de pesquisa encontra-se enunciada na conferência de janeiro de

1931 que Horkheimer pronuncia à ocasião de sua posse como diretor do Instituto. Ela

tinha por título “A situação atual da filosofia social e as tarefas de um instituto para a

pesquisa social”. Como vocês percebem, já seu título não deixará de ressoar na

conferência que Adorno dará meses depois. Nos dois casos, era questão de uma reflexão

sobre o quadro atual da filosofia (basicamente aquela de tradição alemã) e sobre as

possibilidades que então se abriam. Por isto, uma boa maneira de entrar na leitura da

conferência de Adorno é lembrando inicialmente algumas questões presentes na

conferência de Horkheimer, já que, muito seguramente, o público das duas conferências

era o mesmo.

O lugar da filosofia

A conferência de Horkheimer inicia com a afirmação da que a filosofia social

deve estar no coração das preocupações maiores da filosofia. Fundada na reflexão sobre

fenômenos que só podem ser entendidos no contexto da vida social (como estado, lei,

economia, religião), a filosofia social encontraria seu impulso decisivo na recusa

hegeliana em deduzir tais categorias da análise solipsista de sujeitos isolados. Daí a

necessidade de Horkheimer lembrar da crítica hegeliana a pretensa tendência kantiana

em derivar os princípios fundamentais da moral, arte, conhecimento, direito a partir de

uma reflexão que parte da estrutura individualizada da consciência ou da análise a priori

de suas faculdades. Contra isto, Horkheimer insiste na maneira com que, na filosofia

social hegeliana: “a essência ou a forma substantiva do individual manifesta-se não em

atos pessoais, mas na vida do todo ao qual ela pertence” É desta forma que o idealismo

pode se transformar, em Hegel, em filosofia social.

Hegel não desconhece a natureza conflitual e não-imediata da relação entre os

interesses do indivíduo e o modo de afirmação da necessidade inerente à totalidade da

vida social. Uma totalidade que se realiza normalmente na figura institucional do Estado

justo. No entanto, o modo de desenvolvimento histórico da indústria, da tecnologia, das

ciências positivas e dos regimes de reprodução social exigem, da filosofia social, não

apenas a problematização do projeto hegeliano, mas a compreensão das novas

condições necessárias à sua realização.

Horkheimer é sensível à maneira, por exemplo, com que um certo positivismo

afirmava-se tanto na filosofia quanto na sociologia através da crítica a todas categorias

‘abstratas” e “universalistas’, como: classe, ideologia, consciência de classe e totalidade.

Ele compreende tal esforço como uma maneira de hipostasiar o dado, de impedir o

pensamento de ir além da contemplação do que aparece à “consciência natural” como

mera efetividade, como realidade bruta. Por outro lado, como bem identificou Honneth:

“quando o Instituto de Pesquisas sociais de Frankfurt começa seus trabalhos no inicio

dos anos 30 sob a direção de Horkheimer, a estrutura comum é ainda largamente

Page 18: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

marcada por uma fé no progresso alimentada pela filosofia da história”29. Ou seja,

contra a hipóstase do que aparece como o que meramente é, a filosofia social deve

deixar-se pautar por um ideal de reconciliação social filosoficamente fundamentado nas

considerações sobre a natureza emancipatória do projeto da modernidade. Ela deve

fornecer bases para processos de valoração que orientam a crítica.

Isto não significa, no entanto, alguma espécie de imperialismo filosófico onde

esta fornece o quadro de valores que deve guiar pesquisa empíricas que, em si mesmas,

devotar-se-iam a problemas parciais e perdidos em meio a questões de especialistas.

Horkheimer fala de uma interpenetração dialética através da qual a filosofia e teoria

social se influenciam mutuamente. Isto significa, de maneira mais precisa:

organizar investigações estimuladas por problemas filosóficos contemporâneos

onde filósofos, sociólogos, economistas, historiadores e psicólogos estejam

juntos em colaboração permanente para empreender em comum o que, em

outros campos, pode ser realizado individualmente em laboratório. Em suma, a

tarefa é fazer aquilo que todos verdadeiros pesquisadores sempre fizeram, ou

seja, perseguir suas questões filosóficas maiores através dos métodos científicos

mais precisos a fim de revisar e refinar suas questões a partir do desdobramento

de seus trabalhos e de desenvolver novos métodos sem perder a visão de amplos

contextos. Com esta perspectiva, nenhuma resposta por sim ou não deriva de

questões filosóficas. No entanto, tais questões integram-se no processo de

pesquisa empírica, suas respostas estão no avanço do conhecimento objetivo que

afeta a própria forma das questões30.

Esta é a primeira formulação do que aparecerá anos mais tarde, em um texto

maior de Horkheimer intitulado Teoria tradicional e teoria crítica, como sendo o

“programa interdisciplinar” que deverá aparecer como horizonte metodológico dos

esforços de pesquisa que caracterizarão a chamada Escola de Frankfurt. Neste

momento, tal programa interdisciplinar está ligado à tentativa de analisar a conexão

entre vida econômica social, desenvolvimento psíquico dos indivíduos e mudanças no

reino da cultura, tomada aqui em seu sentido o mais amplo possível. Horkheimer vê tal

análise como um setor renovado do problema clássico a respeito da conexão entre

existência particular e Razão universal, realidade e Idéia, vida e Espírito. Não se trata de

pressupor uma correspondência completa entre Idéia e realidade material, mas de,

através de uma relação renovada entre filosofia e teoria social, dar conta de um duplo

processo de reconfiguração das questões filosóficas, seus métodos e de orientação do

potencial crítico da teoria social. Daí porque Horkheimer insiste em uma filosofia social

capaz de, por exemplo, saber avaliar pesquisas empíricas, questionários, estudos sobre

comunicação de massa, aproximando-se cada vez mais do método de análise próprio à

sociologia.

Todas estas questões não deixam de estar presentes como pano de fundo da

conferência que Adorno pronunciará meses mais tarde. O problema da relação entre

filosofia e teoria social, a metodologia da especulação filosófica, assim como sua função

contemporânea enquanto discurso de forte potencial crítico, a posição em relação às

correntes então hegemônicas no cenário intelectual alemão (em especial, a

fenomenologia e o positivismo lógico): todas estas questões formam a ossatura do texto

adorniano. No entanto, uma série de diferenças são fáceis de serem identificadas.

29 HONNETH, Patologias do social In: La société du mépris, p. 78 30 HORKHEIMER, A situação atual da filosofia social e as tarefas de um instituto de pesquisas

Page 19: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

A totalidade como problema

Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferência de Adorno

começa:

“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde

o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que

seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)

através da força do pensamento”31.

Como dissera na aula passada, esta consciência, historicamente enraizada, do

descompasso entre exigências de sistematicidade do pensamento e uma realidade que

parece resistir à possibilidade de se deixar formalizar como totalidade é o motor que

levará Adorno a constituir a configuração de sua própria experiência intelectual. A

princípio, parece estarmos longe desta maneira horkheimeana de colocar-se sob a égide

de uma certa recuperação do projeto hegeliano de constituir uma filosofia social

suficientemente fortalecida pela sociologia a ponto de dar conta das articulações globais

da realidade socialmente partilhada e de suas promessas de racionalidade. Se é verdade

que: “em Horkheimer, a filosofia social é finalmente a rainha das ciências”32 devido ao

seu caráter sintético, em Adorno aparece desde o início uma necessidade reiterada em

afirmar que: “Nenhuma razão legisladora pode reencontrar-se em uma realidade cuja

ordem e forma (Gestalt) exclui toda pretensão da razão”33. Ou seja, o primeiro dado a

respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada é a desintegração

da adequação (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser. Uma desintegração que

faz com que a própria idéia de ser apareça como um “princípio formal vazio” (leeres

Formalprinzip). Para Adorno, toda filosofia que pressupõe tal adequação deve ser

compreendida como idealista. Daí porque uma das operações mais recorrentes do texto

consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia atual

(através principalmente da fenomenologia). A crítica do idealismo transforma-se em

peça de orientação do próprio programa filosófico adorniano.

Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que o ponto de partida da

experiência filosófica adorniana era, a sua maneira, o resultado da absorção de um

diagnóstico utilizado para dar conta dos desafios para a produção artística da época. A

perda de unidade da experiência do mundo aparecia na estética vanguardista como

consciência do esgotamento das formas artísticas arraigadas na tradição com sua força

sintética e sua capacidade de constituir obras de arte como totalidades orgânicas. Já o

expressionismo, o grande movimento artístico do modernismo alemão, trazia no seu

interior o esgotamento terminal das “leis formais universais” e aquilo que o jovem

Adorno chamava de “separação entre o Eu e as formas”. Daí porque: “Se o poeta e o

pintor expressionista procuram retratar não a objetividade do mundo, nem o modo como

ele se mostra aos sentidos, mas sim reconstruir o primado da subjetividade na relação

com o que lhe é externo, a consciência da impossibilidade de atravessar o abismo que

ligaria o Eu ao mundo também afeta a possibilidade de comunicação dessa expressão

pura, cristalizada no ideal do ‘grito’”34.

31 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 325 32 MÜLLER-DOHM, Stephan; Adorno, p. 138 33 ADORNO, idem 34 ALMEIDA, Jorge; Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 40

Page 20: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mas o que seria exatamente esta desagregação da experiência do mundo que

tanto a estética quanto a filosofia do início do século XX parecem sentir de maneira

decisiva?

Mais ou menos na mesma época e contexto cultural, o sociólogo Max Weber

insistia que um certo sentimento de desagregação e de indeterminação apareciam

necessariamente como saldo dos processos de modernização social e de

desencantamento do mundo. Weber se referia, principalmente, à perda do poder de

unificação social produzido pelas explicações mítico-religiosas de mundo. A tensão

entre a significação religiosa e a direção do mundo material levará necessariamente

àquilo que Weber chamava de “autonomização das esferas social de valores”, ou seja,

processo de autonomia cada vez maior entre os conteúdos normativos, as exigências de

validade e o desenvolvimento da arte, da ciência, da política e da economia. Cada uma

destas esferas da vida social irá desenvolver aquilo que Weber chama de “legalidade

própria”. Isto significa que cada esfera da vida social ganhará, na modernidade, a

possibilidade de se desenvolver de “acordo com suas próprias leis” e sem precisar, a

todo momento, fazer apelo ao poder unificador dos mitos mítico-religiosos socialmente

partilhados. Algumas conseqüências importantes resultam de tal processo.

Primeiro, lembremos desta tendência de fragmentação da vida social e de

conflito entre exigências de validade. Esta fragmentação foi bem salientada por

Habermas, ao lembrar que: “uma vez que as imagens do mundo se desagregam e os

problemas legados se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da justeza

normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente, como

questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos

tempos modernos uma diferenciação de esfera de valor: ciência, moral e arte”35. Todo o

problema consistirá em encontrar algum modo de diálogo entre a verdade aspirada pelo

discurso científico, a justiça aspirada pelo discurso jurídico e a autenticidade aspirada

pela arte (embora esta compreensão da arte como domínio da autenticidade expressiva

nào deixe de colocar uma série de problemas).

Enquanto tal diálogo não encontrar lugar o resultado não será apenas o

crescimento da distância entre especialistas e a esfera pública. As esferas de valores

tendem a ser cada vez mais complexas, inesgotáveis e refratárias à tradução. Seu

desenvolvimento impede processos de totalização. Isto faz com o sujeito moderno

apareça como aquele que sente a desintegração da possibilidade de apreensão da

experiência de totalidade capaz de garantir o acesso ao sentido do existente por

operações dedutivas. O desencantamento do mundo mostra aqui, segundo Weber, seu

sintoma mais profundo: a entificação de uma antropologia da finitude, a indeterminação

social e a perda do sentido que só uma racionalidade orientada por valores seria capaz

de garantir.

Esta antropologia da finitude fica muito bem caracterizada em um trecho maior

de Weber a respeito do fenômeno moderno de ausência de sentido da morte:

Ela não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de

um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria

chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na

marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no

infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu ‘velho e saciado de

vida’, por que estava no ciclo orgânico da vida (...) O homem civilizado,

35 HABERMAS, Modernidade : um projeto inacabado, p. 110

Page 21: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias,

conhecimento e problemas, pode ‘cansar-se da vida’, mas não ‘saciar-se dela’36.

Podemos dizer que a proposta horkheimeana de organizar um programa

interdisciplinar sob os auspícios da filosofia social consistia em reconstruir uma

experiência possível de totalidade acessível à reflexão. Ela vinha ainda marcada de uma

importante inflexão marxista fortemente influenciada por Georg Lukács que, grosso

modo, consistia em dizer que esta autonomia das esferas sociais de valores e a

constituição de racionalidades próprias era um processo que tendia a esconder um outro,

a saber, a maneira com que todas estas esferas tendiam a ser racionalizadas a partir de

dinâmicas de abstração e quantificação ligadas à universalização da forma-mercadoria.

Como dirá Lukács:

Não há problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em

última análise, não se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser

buscada na solução do enigma da estrutura da mercadoria”, já que o problema

da mercadoria seria: “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em

todas as suas manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na

estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de

todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa37.

Lukács pode dizer isto porque a forma-mercadoria não é apenas um dado

econômico, mas um modo global de organização e de racionalidade que parece

colonizar todas as esferas a partir do modo de racionalidade em operação na esfera

econômica. Daí porque esta filosofia social renovada proposta por Horkheimer era

animada pelo horizonte de uma crítica da economia política do capitalismo avançado.

No entanto, a via de Adorno não era totalmente simétrica a tais considerações e é

bem provável que isto venha do fato de que esta experiência de desagregação e

indeterminação não tenham, para ele, apenas uma causa social. Veremos isto de maneira

sistemática em outras aulas, mas já vale a pena notar como Adorno introduz em sua

conferência algumas noções que nos obrigam a passar para uma dimensão de problemas

que não se esgotam na tematização do campo de determinações sociais, mas que

parecem nos indicar algo próprio ao campo de uma certa experiência metafísica.

Pensemos por exemplo na idéia de uma “ruptura no próprio ser”38 (Brüchigkeit im sein

selbst), ou de um ser cujo caráter não adequado e não posto como totalidade racional

pode ser esboçado (das ihr nicht adäquat und nicht als Totalität rational zu entwerfen

ist).

É fato, por outro lado, que a consciência da ausência de relação imediata de

adequação entre pensamento e ser (uma temática, diga-se de passagem, maior da

filosofia hegeliana) leva Adorno a, por um lado, estabelecer uma plataforma crítica em

relação às correntes hegemônicas da filosofia alemã à época, em especial a

fenomenologia de Husserl, Heidegger e o positivismo lógico do Círculo de Viena, isto

sem deixar medir sua distância em relação à Escola de Marburgo e a dita filosofia da

vida de Simmel. Por outro, tal consciência permitirá a Adorno estabelecer, através de

um diálogo cerrado e bastante importante com Walter Benjamin, uma peculiar

perspectiva metodológica materialista e dialética.

36 WEBER, A ciência como vocação, p. 166 37 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 193 38 ADORNO, idem, p. 334

Page 22: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Nem ontologia do ser, nem hipóstase do dado

Boa parte da conferência de Adorno era dedicada à crítica a duas linhas antagônicas da

filosofia alemã da época: a fenomenologia, com sua guinada em direção à recuperação

heideggeriana da ontologia, e o positivismo lógico. Tais críticas continuarão como

motivos maiores do pensamento adorniano em seus desdobramentos posteriores. Em

1931, ela aparece para demonstrar a possibilidade de uma filosofia que não seja nem

simples glosa das ciências empíricas (como quer o positivismo), nem hipóstase de um

conceito indeterminado de ser (como quer Heidegger).

Sobre o positivismo, Adorno afirma que ele procura simplesmente “liquidar a

filosofia” a partir do momento que esta: “converte-se exclusivamente em instância de

ordenação e controle das ciências particulares, sem ser permitida acrescentar algo de

essencial a elas”39. Adorno não nega a necessidade, corretamente levantada pelo

positivismo, de pensar a possibilidade da filosofia a partir da consideração sobre seus

modos de relação às ciências. Neste sentido, ele segue Horkheimer ao afirmar:

Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode

alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez

a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas

os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura.

Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido,

indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências

particulares40.

No entanto, Adorno não deixará de lembrar como o positivismo é incapaz de apreender

de maneira correta “o problema do sentido do ´dado´”41 (Gegebenheit – que também

pode ser traduzido em vários casos por “fato”, “condição”, “circunstância”), categoria

fundamental de todo empirismo. Em larga medida, a crítica adorniana à premissa do

imediatamente dado é uma versão da crítica hegeliana a todo conhecimento que procura

se fundamentar na imediaticidade do dado.

No primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, Hegel insiste que não há

acesso imediato algum a dados primeiros. Toda e qualquer percepção de um estado

físico já é conceitualmente estruturada, ou seja, a receptividade da nossa percepção é

dependente do que estamos acostumados a ver e da maneira como estruturamos o

campo do visível, por isto ela é inferencial, e em hipótese alguma imediata. Ver algo é

não apenas separar este algo de um continum, o que já pressupõe capacidades

estruturadas de diferenciação, mas pressupõe também que posso fazer julgamentos do

tipo: - Este algo X é semelhante, é idêntico, é o mesmo caso que algo Y. O que, por sua

vez, pressupõe todo um amplo conjunto de estruturas inferenciais lógicas que dizem

respeito à maneira com que compreendo noções como: identidade, diferença,

semelhança, entre outros. Ou seja, todo dado é mediado por estruturas lógicas, e não

imediato.

Mas Adorno diz mais do que isto, assim como Hegel havia feito antes dele.

Quando o filósofo de Frankfurt afirma que o positivismo lógico parece ignorar como: “o

sujeito do dado não é ahistoricamente idêntico, transcendental, mas ele adquire forma

(Gestalt) historicamente compreensível e mutável (wechselnde)”42, ele insiste no fato de

39 ADORNO, idem, p. 332 40 ADORNO, idem, p. 334 41 ADORNO, idem, p. 333 42 ADORNO, idem, p. 333

Page 23: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

que tais categoriais lógicas de estruturação do dado não são dedutíveis

transcendentalmente, não são o resultado de uma reflexão a respeito de condições a

priori e ahistóricas de possibilidade da experiência. Antes, elas são fruto de uma gênese

empírica, de um processo histórico que constitui a pretensa naturalidade e

essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta

dimensão constitutiva do processo histórico em nossos modos de conhecer é

simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukács chamava à época de “reificação”, ou

seja, tratar como imediatamente dado aquilo que é resultado de um processo histórico e

estrutural que se desenrola normalmente às costas das consciências. Daí porque Adorno

insiste que o positivismo lógico não pode dar conta de maneira adequada do problema

da “consciência alienada, do Eu alienado” (des fremdes Bewustsseins, des fremdes Ich),

sou seja, da consciência incapaz de apreender reflexivamente a gênese e o sentido de

seu modo de apreensão de objetos. Aqui já se vê uma postura epistemológica

fundamental de Adorno. Ela consiste em sempre se perguntar sobre a figura do sujeito

pressuposta por perspectivas epistemológicas variadas. Tudo se passa como se Adorno

dissesse não haver teoria do conhecimento sem teoria do sujeito, sendo que teorias do

conhecimento podem ser criticadas tendo em vista conceitos inadequados de sujeito. O

que não significa “psicologizar” a teoria do conhecimento, como se fosse questão de

submeter nossas expectativas cognitivas à análise das faculdades psicológicas dos

sujeitos. Trata-se antes, como veremos, de mostrar que mesmo faculdades psicológicas

têm uma gênese sócio-histórica e, com isto, de submeter nossos modos de conhecer a

processos sócio-históricos. Como dirá um comentador atento de Adorno: “Ele aceita

que o psicologismo é falso mas propõe no seu lugar uma forma daquilo que poderíamos

chamar de “sociologismo”. O que ele está dizendo é que nenhuma característica da

lógica – entendida como o reino da validade pura – pode ser compreendida como

independente de sua sociogênese”43.

Por sua vez, a crítica à fenomenologia presente nas filosofias de Husserl,

Heidegger e Max Scheler é mais complexa. A complexidade vem do fato de Husserl e

Heidegger serem dois dos filósofos que mais receberam a atenção de Adorno durante

todas as fases de sua produção intelectual. Isto indica a importância que Adorno

reconhece na filosofia dos dois, uma importância advinda de uma certa partilha de

problemas que unem os três.

Adorno partilha com Husserl a procura em pensar as condições para um certo

“retorno às coisas”. Daí porque ele pode afirmar que a descoberta realmente importante

de Husserl, para além da noção de intuição de essência (Wesensschau) foi o

reconhecimento do conceito de “dado irredutível” (unableitbaren Gegebenheit). Ele

arrancou assim da psicologia o conceito de uma intuição que se dá como algo

originário. No entanto, esta saída da psicologia teria acabado por hipostasiar um certo

absolutismo lógico que permite a Adorno endereçar a Husserl críticas parecidas àquelas

que ele dirige contra o positivismo. Como veremos mais a frente, Adorno vê no

conceito de “intuição categorial” o ponto central da filosofia husserliana, o ponto para

onde converge de maneira antinômica exigências materialistas de retorno às coisas e

estratégias idealistas que acabam por atribuir imediatez ao que é resultado de reflexão.

Por outro lado, não é difícil perceber como a relação conflituosa de Adorno a

Heidegger sempre o acompanhou, embora não possamos falar em sentido inverso, já

que Heidegger, por sua vez, nunca comentou os ataques reiterados adornianos. Esta

relação não é apenas resultado de uma espécie de operação de guerrilha intelectual

contra um dos pilares daquilo que um dia Adorno chamará de “ideologia alemã”. Ela é

43 O´CONNOR, Brien; Adorno´s negative dialectic, p. 136

Page 24: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

uma operação decisiva para a própria formação do pensamento de Adorno, já que entre

ele e Heidegger passa uma relação tensa de distância e proximidade.

A primeira questão que deve ser respondida a fim de esclarecer o motor desta

confrontação entre Adorno e Heidegger é: em que estas duas experiência filosóficas

convergem? Poderíamos aqui identificar, ao menos, três centrais. Primeiro, tanto

Adorno quanto Heidegger percebem que a razão moderna enredou-se em um

movimento de interversão que transforma os processos de racionalização em

dispositivos de dominação técnica da natureza. Ou seja, há uma crítica da racionalidade

instrumental orientado os diagnósticos históricos tanto em Heidegger quanto em

Adorno: “Pois pode muito bem ser que a natureza esconda sua Essência precisamente

no lado em que se presta ao controle técnico do homem”44, diz Heidegger. Isto leva

também Heidegger a uma crítica contra a “positividade” das ciências que faz do próprio

Heidegger, uma das vítimas preferidas do positivismo lógico que Adorno tanto

combate.

Segundo, tal crítica da racionalidade instrumental é também crítica à filosofia

moderna do sujeito como sua hipóstase de um conceito de sujeito centrado na figura da

consciência. Por fim, restará à filosofia entrar na procura de uma linguagem capaz de

pôr o que é da ordem daquilo que nega as determinações fenomenais reificadas. Tanto

em Adorno quanto em Heidegger ela será encontrada principalmente no recurso

filosófico à arte.

No entanto, Adorno desde o início endereça críticas bastante fortes contra

Heidegger. Já no início da conferência A atualidade da filosofia, Adorno afirma que

projetos, como o heideggeriano, de reconstrução da ontologia, ou seja, de um discurso

do ser enquanto ser, erram por partir da possibilidade de uma adequação entre

pensamento e ser. Neste sentido, Heidegger compartilharia o pressuposto fundamental

do idealismo com suas ilusões de totalidade.

Tal crítica será repetida, por exemplo, na Dialética negativa. Lá, ao analisar o

problema da ontologia, Adorno parte de uma estratégia visando dar conta da natureza

própria à “necessidade ontológica”, ou seja, àquilo que impõe a ontologia como

necessidade para o pensar. Tal necessidade estaria vinculada a exigências de um saber

do absoluto (Wissen des Absoluten), vontade de apreender o todo sem que limites sejam

impostos ao conhecimento:

A influência da ontologia não poderia ser compreendida se ela não

correspondesse a uma necessidade urgente, index de uma perda (Versäumten), a

aspiração de que o veredicto kantiano a respeito do saber do absoluto não fique

por isto mesmo45.

Esta necessidade estava assentada na crença de que a razão poderia impor sua

estrutura à profusão do ente. No entanto, é possível transformar em uma ontologia a

própria experiência da impossibilidade de tal tentativa de imposição. À sua forma, ao

menos aos olhos de Adorno, é isto que Heidegger tentaria fazer.

Heidegger reconheceria uma situação histórica na qual os processos de

reprodução material da vida transformaram a sociedade em uma interconexão integral

de funções para as quais a própria noção de substância perdeu sua realidade social. Daí

porque mesmo em teoria do conhecimento a noção de substância perdeu há muito seu

lugar. Neste sentido, a necessidade ontológica apareceria como sintoma de defesa contra

tal situação através de um recurso a relações substanciais que, no entanto, não podem

44 HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p. 42 45 ADORNO, ND, p. 70

Page 25: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

mais se afirmar em toda sua positividade. A ontologia fundamental do ser apareceria

assim como uma certa nostalgia de um absoluto que não pode fundamentar

determinação fenomenal alguma. É a partir de tal problemática que Adorno procura

encaminhar a interpretação do conceito heideggeriano de ser e sua autonomia em

relação a todo e qualquer processo posicional reflexivo próprio aos modos de apreensão

de um sujeito.

Na nossa conferência, Adorno afirma que a aproximação heideggeriana em

relação a Kierkegaard é, no fundo, algo extremamente sintomático, já que a dialética

incessante (rastlos) de Kierkegaard não vincula a subjetividade a ser firmemente

fundado algum, levando ao abismo do desespero subjetivo. Heidegger deve resolver o

problema aceitando uma realidade historicamente pré-dialética, pré-reflexiva e vazia.

Por isto, ela tende a se encontrar com uma transcendência opaca, obscura e totalmente

indeterminada tematizada através da noção de “ser para a morte”. Pois a morte aqui não

é outra coisa do que a manifestação fenomenológica da indeterminação do que exclui

toda figura de um sujeito.

Esta realidade pré-dialética, por sua vez, não nos leva a outra coisa que à

submissão do sujeito ao ser: “Não é o homem o essencial”, dirá Heidegger, “mas o ser”.

No entanto, a subjetividade que se nega (verleugnet) intervém-se em profissão de fé

objetivista. Este objetivismo tende à determinação do ser como tautologia não

mediatizada por conceitos nem designada imediatamente a partir do modelo da

consciência sensível. “Mas o ser – o que é o ser?”, pergunta-se Heidegger, “Isso é isso

mesmo (Es ist Es selbst)”46. “A pura repetição do nome”, diz Adorno, “toma o lugar de

toda instância crítica concernente o ser”. Ou seja, Adorno age como quem segue Hegel

na sua crítica ao ser como imediaticidade indeterminada (unbestimmte Unmittelbare)

que sacrifica a relação ao conceito discursivo e à toda individuação.

46 HEIDEGGER, Uber den Humanismus, p. 19

Page 26: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 3

Recapitulação

Na aula de hoje, continuaremos o comentário da conferência de 1931, “A atualidade da

filosofia”. Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferência de Adorno

começa:

“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde

o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que

seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)

através da força do pensamento”47.

Já sabemos como esta consciência, historicamente enraizada, do descompasso entre

exigências de sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir à

possibilidade de se deixar formalizar como totalidade será o motor que levará Adorno a

constituir a configuração de sua própria experiência intelectual. O primeiro dado a

respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada é a desintegração

da adequação (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser (domínio do que se

afirma como objetividade). Para Adorno, toda filosofia que pressupõe tal adequação

deve ser compreendida como idealista. Daí porque uma das operações mais recorrentes

do texto consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia

atual (através principalmente da fenomenologia).

Notemos como tal adequação entre pensamento e o domínio do que se afirma

como objetividade é, por um lado: “a dissolução da premissa da identidade entre sujeito

e objeto, considerada pelo idealismo burguês como o pré-requisito para o conhecimento

da verdade”48. Assim, toda filosofia que, de uma forma ou de outra, ainda pressupor

níveis fundamentais de identidade entre sujeito e objeto só poderá ser descrita por

Adorno como idealismo. Neste sentido, Adorno não está longe de filósofos

contemporâneos, como Robert Brandom, que definem o idealismo como a perspectiva

filosófica para a qual a estrutura do Eu duplica a estrutura do objeto, já que: “a estrutura

e unidade do conceito é idêntica à estrutura e unidade do Eu”49. Uma estrutura formal

que seria condição suficiente, e não apenas necessária, para a apreensão do conteúdo

dos objetos da experiência. Daí porque a perspectiva idealista é necessariamente holista.

Um holismo que Adorno critica ao afirmar que: “A crise do idealismo equivale à crise

da pretensão filosófica à totalidade”50.

Lembremos ainda que esta desagregação da experiência do mundo da qual parte

Adorno tinha condições objetivas e sociais bastante claras. Adorno procura desde o

início operar uma passagem que consiste em mostrar como os impasses da sociedade

burguesa se apresentam no interior dos próprios textos filosóficos. O que não significa

simplesmente que tais textos sejam produções ideologicamente comprometidas com

modos hegemônicos de reprodução material da vida. Antes, trata-se de afirmar que eles

são lugares privilegiados que deixam visíveis, muitas vezes pela primeira vez, a

extensão dos impasses e contradições presentes no interior das nossas próprias formas

47 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 325 48 BUCK-MORSS, The origin of negative dialectics, p. 70 49 BRANDOM, Tales of the mighty dead, p. 210 50 ADORNO, idem, p. 326

Page 27: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

sociais de vida. Por isto, e amplamente possível mostrar como a configuração do objeto

de uma experiência filosófica temporalmente determinada expõe a situação das

condições de possibilidade de toda e qualquer experiência social. Trata-se simplesmente

de insistir que toda e qualquer reflexão sobre as condições de possibilidade da

experiência, ou seja, toda e qualquer reflexão sobre a validade transcendental dos

nossos modos de conhecer, não pode deixar de sustentar-se em considerações sobre as

coordenadas sociais que interferem na maneira com que os objetos do mundo aparecem

a um sujeito.

Assim, na aula passada, eu insistira no fato de um certo diagnóstico histórico da

modernidade aparecer como base privilegiada para a reflexão dos frankfurtianos. Ele

vinha de Max Weber e de sua teoria da autonomia das esferas sociais de valores na

modernidade. Weber insistia que o sentimento de desagregação e de indeterminação

apareciam necessariamente como saldo dos processos de modernização social e de

desencantamento do mundo devido à perda do poder de unificação social produzido

pelas explicações mítico-religiosas de mundo. A tensão entre a significação religiosa e a

direção do mundo material levará necessariamente àquilo que Weber chamava de

“autonomização das esferas social de valores”, ou seja, processo de autonomia cada vez

maior entre os conteúdos normativos, as exigências de validade e o desenvolvimento da

arte, da ciência, da política e da economia. Processo este cujo resultado era a necessária

fragmentação do campo de experiências.

No entanto, não só as explicações mítico-religiosas de mundo haviam perdido

sua força unificadora. Para Adorno, aquilo que décadas mais tarde a filosofia francesa

contemporânea chamará de “metanarrativas”, ou seja, explicações globais de processos

sociais através do recurso à filosofias emancipatórias da história não podiam mais

fornecer garantias para qualquer experiência filosófica autêntica fiel ao seu conteúdo de

verdade. Contribuía para isto o desaparecimento, no horizonte histórico, do proletariado

como “sujeito-objeto” capaz de realizar as expectativas sociais de emancipação.

Diante deste quadro, Adorno fornecia inicialmente as coordenadas gerais para a

crítica das duas correntes hegemônicas da filosofia alemã que, de diferentes modos,

ainda continuariam prisioneiras da premissa idealista da identidade entre sujeito e

objeto. Adorno referia-se ao positivismo lógico do Círculo de Viena e a fenomenologia

de Husserl e Heidegger (além de Max Scheler).

Em sua crítica ao positivismo lógico, Adorno centra o foco em sua pretensa

incapacidade de apreender de maneira correta “o problema do sentido do ´dado´”51

(Gegebenheit – que também pode ser traduzido em vários casos por “fato”, “condição”,

“circunstância”), categoria fundamental de todo empirismo. Devido à sua matriz

hegeliana, Adorno não pode aceitar a premissa do imediatamente dado, ou seja, da

existência de proposições fatuais de base que forneceriam o fundamento último para

toda operação de saber. Premissa que nos levaria a: “considerar as proposições

derivantes da observação como a origem última do conhecimento”52.

Assim, quando Adorno afirma que o positivismo lógico parece ignorar como: “o

sujeito do dado não é ahistoricamente idêntico, transcendental, mas ele adquire forma

(Gestalt) historicamente compreensível e mutável (wechselnde)”53, ele insiste no fato de

que as categoriais lógicas de estruturação do dado não são dedutíveis

transcendentalmente, não são o resultado de uma reflexão a respeito de condições a

priori e ahistóricas de possibilidade da experiência. Antes, elas são fruto de uma gênese

empírica, de um processo histórico que constitui a pretensa naturalidade e

51 ADORNO, idem, p. 333 52 SCHLICK, O fundamento do conhecimento In; Os pensadores XLIV, p. 82 53 ADORNO, idem, p. 333

Page 28: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta

dimensão constitutiva do processo histórico em nossos modos de conhecer é

simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukács chamava à época de “reificação”, ou

seja, tratar como imediatamente dado aquilo que é resultado de um processo histórico e

estrutural que se desenrola normalmente às costas das consciências. Por outro lado,

trata-se de uma maneira de conservar a premissa da identidade entre sujeito e objeto,

mas sem o incômodo intelectual de necessitar expor a estrutura do conceito de sujeito

que opera no interior da teoria.

No que diz respeito às críticas dirigidas a Husserl e Heidegger é uma

complexidade suplementar. Como disse na aula passada, a complexidade vem do fato de

Husserl e Heidegger serem dois dos filósofos que mais receberam a atenção de Adorno

durante todas as fases de sua produção intelectual. Isto indica a importância que

Adorno reconhece na filosofia dos dois, uma importância advinda de uma certa partilha

de problemas que unem os três. Como havia dita, esta discussão será retomada de

maneira mais sistemática em outras aulas. Por enquanto, podemos lembrar algumas

críticas gerais endereçadas por Adorno.

Grosso modo, o filósofo alemão afirma que a fenomenologia é, no fundo: “o

esforço para alcançar, após a decomposição dos sistemas idealistas e com o instrumento

do idealismo, a ratio autônoma, uma ordem de ser cuja fiabilidade esteja assegurada

para além do nível subjetivo”54. Em que pensa Adorno exatamente? Segundo ele (e aqui

o exemplo maior é Husserl), a fenomenologia continua tributária da identidade entre

sujeito e objeto, mesmo que não se trate mais da identidade com o objeto “natural”, este

objeto puro e simples que possui determinação livres de qualquer referência ao

subjetivo, mas com o objeto de uma apreensão intencional da consciência e responsável

pelo processo de produção de sentido e da objetividade. Esta intencionalidade instaura a

consciência em uma relação de imediaticidade profunda com aquilo que fundamenta a

objetividade. Imediaticidade que é figura contemporânea na crença entre sujeito e

objeto. Pois consciência é necessariamente consciência de alguma coisa, mas o objeto

correlato à consciência será sempre um objeto intencional.

Vocês devem conhecer o exemplo clássico de Husserl: a árvore pura e simples

pode queimar, enquanto a árvore como objeto intencional não pode queimar, ela

permanece enquanto princípio estável de determinação de sentido. Dirá Husserl: “A

árvore pura e simples, a coisa na natureza, é tudo menos esse percebido de árvore como

tal, que, como sentido perceptivo, pertence inseparavelmente à percepção. A árvore

pura e simples pode pegar fogo, pode ser dissolvida em seus elementos químicos etc.

Mas o sentido – o sentido desta percepção, que é algo necessariamente inerente à

essência dela – não pode pegar fogo, não possui elementos químicos, nem forças, nem

qualidades reais”55. De uma certa forma, esta distinção estrita entre objeto natural

(domínio dos fatos) e objeto intencional será alvo constante das críticas de Adorno, isto

desde sua dissertação de 1924 sobre a diferença entre o noemática e o coisal em

Husserl. Ele não pode aceitar que a questão do conhecimento seja reduzida ao problema

de como a consciência pode ter acesso a objetos transcendentes em geral.

Por outro lado, sobre Heidegger, Adorno dirá:

Ao invés da questão das idéias objetivas e do ser objetivo, em Heidegger, ao

menos em seus escritos publicados, é a questão subjetiva que surge: a exigência

da ontologia material é reduzida ao domínio da subjetividade e ela procura na

54 ADORNO, idem, p. 327 55 HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, § 89

Page 29: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

profundeza desta o que ela não encontra na plenitude aberta da realidade

(Wirklichkeit)56.

A princípio, dificilmente encontraríamos colocação aparentemente mais distante

de Heidegger do que esta acusação de subjetivismo. Afinal, a insistência na categoria de

Dasein não seria o resultado mais visível da crítica heideggeriana a toda e qualquer

metafísica da subjetividade? Não é exatamente Heidegger que afirma claramente: “Não

é o homem o essencial, mas o ser”. Como veremos, uma das estratégias crítica que

continuarão até o Adorno de maturidade será insistir que a “negação total do ser

subjetivo” é animada, no fundo, por uma espécie de “identificação com o agressor”.A

consciência que sente a possibilidade de seu desaparecimento devido ao impacto sócio-

histórico da reificação acaba por assumir a necessidade de sua própria dissolução

através da defesa do primado de um ser que seria outra figura do pensamento da

identidade, identidade pensada, utilizando uma chave de leitura colocada em circulação

por Derrida, como metafísica do ser enquanto “presença”. Veremos isto mais a frente de

maneira mais sistemática.

Delineamentos de um programa

Feita estas colocações, Adorno passa à apresentação do que pode aparecer como

seu próprio programa filosófico. E para tanto ele não deixa de começar afirmando que

após o fracasso do idealismo e de suas versões recalcitrantes não é certo que a própria

filosofia como discurso seja ainda atual. Atualidade entendida aqui como possibilidade

de responder a pergunta: “Após o fracasso dos últimos grandes esforços, há ainda

adequação entre as questões filosóficas e a possibilidade de respondê-las?”57. Notemos a

maneira de enunciar a pergunta. Ela pressupõe que há questões filosóficas, que a

filosofia não é uma simples “instância de ordenamento e controle das ciências” que não

faria outra coisa que glosar e comentar os resultados de ciências empíricas. No entanto,

tais questões já estão presentes e circunscritas nas questões científicas as mais precisas.

Mas quais questões são estas? Podemos dizer, de maneira esquemática, que se

Heidegger havia elevado a questão do ser a problema filosófico fundamental, Adorno

nunca abandonará a centralidade da reflexão sobre o problema da verdade (que, em suas

mãos, aparecerá inclusive como categoria central da orientação de julgamentos

estéticos). Verdade no sentido daquilo que se impõe como absolutamente necessário,

incondicional e categórico. Daí porque: “para Adorno, não exatamente dados a respeito

de certo ou errado, mas julgamentos sobre verdade e falsidade eram o fundamento

necessário para a validação da teoria. Em uma era na qual a metafísica perdera toda

legitimidade, Adorno continuava se perguntando sobre a questão metafísica”58.

No entanto, questões desta natureza exigem que a filosofia tenha uma atitude

peculiar. Contrariamente à ciência, modalidade de discurso que, ao menos segundo

Adorno, aceitaria seus diagnósticos como resultados irredutíveis e estáveis em si

mesmo, como descrição exata de estados de coisas resultante da lógica da descoberta e

da investigação, a filosofia teria diante de si signos (Zeichen) a serem interpretados

(Deutung). Mas lembremos, estes signos que devem passar por uma certa hermenêutica

são exatamente os dados que a ciência vê como descrições exatas de estados de coisas.

Ou seja, não é uma diferença de objeto que separa a ciência e a filosofia, mas uma

diferença de abordagem em relação aos mesmos objetos.

56 Idem, p. 329 57 ADORNO, idem, p. 331 58 BUCK-MORSS, idem, p. 67

Page 30: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mas a hermenêutica filosófica nada tem a ver alguma forma de arqueologia do

sentido. Como dirá Adorno, a tarefa da filosofia não consiste em mostrar que a realidade

é “portadora de sentido”, procurando com isto construir totalidades através do recurso a

alguma espécie de segundo mundo a ser descoberto através da análise do mundo que

aparece. A hermenêutica filosófica, para Adorno, nada tem a ver com uma hermenêutica

que procura reduzir as questões a elementos dados e conhecidos presentes em um plano

superior de inteligibilidade. Ao contrário, devemos compreender que: “o texto que a

filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”59. No entanto, esta

incompletude, esta contradição, este despedaçamento são índices claros da verdade do

que aparece à filosofia como seu objeto. Por isto, ela não deve guiar-se pela tentativa de

submeter seus objetos a modos de síntese que visem se afirmar como totalidades

desprovidas de contradição, estruturas genéricas que visariam submeter o diverso da

experiência à determinação da unidade. Daí porque Adorno afirmará que a filosofia

deve ser capaz de dar conta de seus objetos sem pensar o conceito como símbolos de

objetos, ou seja, aquilo que faz com que o particular seja apenas a representação do

universal. A raiz desta desconfiança fundamental em relação às formas da unidade deve

ser procurada, mais uma vez, no interior dos debates estéticos do qual o jovem Adorno

tomava partidos desde o início dos anos 20.

Este é um ponto central, pois a filosofia é indissociável de uma reflexão sobre a

forma do pensar e as conseqüências desta forma para a determinação do conteúdo da

experiência. Adorno não age como quem afirma que a situação social de fragmentação e

dispersão é resultado de uma realidade que deve ser superada para que possamos voltar

às amarras seguras da unidade e da identidade re-encontrada. É da essência mesma do

objeto esta irredutibilidade em relação a um certo conceito hegemônico de unidade. A

tarefa da filosofia consiste em ser capaz de indicar uma forma de pensar mais próxima

desta verdade da essência. Daí porque Adorno pode falar que a função da filosofia não

consiste em responder aquilo que lhe aparece como enigma (Rätsel), mas de iluminá-lo

e, assim, supera-lo (aufzuheben), ou seja, transpondo-o para uma forma na qual o que

aparece como enigma apresenta seu fundo opaco por se reconfigurar, pôr-se em outra

forma. Pois é assim que se resolve um enigma, agenciando elementos singulares e

separados da questão em uma figura que apresenta a solução. Adorno fornece inclusive

um nome para este regime de figuração: constelação.

Antes de entrarmos na discussão sobre o impacto do pensamento de Walter

Benjamin no interior do programa filosófico do jovem Adorno, vale a pena insistir em

um ponto fundamental no texto que diz respeito à maneira com que Adorno compreende

a relação entre teoria e práxis. Diz Adorno:

O gesto transformador do jogo do enigma (Rätselspiels) – não a simples solução

enquanto tal, fornece o único modelo de soluções da qual a práxis materialista

dispõe. A esta relação [de transformação] o materialismo deu um nome atestado

pela filosofia: dialética. É apenas como dialética que a interpretação filosófica

parece-me possível. Quando Marx endereça aos filósofos a reprimenda de

apenas interpretar diversamente o mundo e lhes opõe a necessidade de

transformá-lo, esta sentença não é legítima apenas a partir da práxis política, ele

era também a partir da teoria filosófica60.

Ou seja, Adorno afirma que esta transformação que a interpretação filosófica

opera nos objetos do saber científico elevados à condição de enigmas é o modelo para a

59 ADORNO, idem, p. 334 60 ADORNO, idem, p. 338

Page 31: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

reflexão materialista a respeito da práxis. Porque a verdadeira práxis, enquanto

transformação do modo de presença dos objetos, enquanto modificação do modo de

estruturação do mundo, só encontra sua radicalidade quando marca com o selo da

obsolescência toda uma forma de pensar, de procurar respostas. Como se a verdadeira

práxis social só alcançasse sua realização efetiva na medida em que fosse a efetivação

em marcha de uma crítica da razão, crítica dos modos de se orientar no interior do

pensar.

Não deixa de ser provido de ironia o fato de Adorno convocar Marx para

desmontar uma dicotomia que o próprio jovem Marx colocara em operação contra

Hegel ao afirmar que em Hegel todo ato de reconciliação é apenas formal porque se dá

através unicamente conceito, “porque vale como um ato abstrato, porque o ser humano

mesmo só vale como ser abstrato pensante, como consciência-de-si e, em segundo

lugar, porque a apreensão é formal e abstrata”61. Pois Adorno age como quem diz: é da

essência da dialética a compreensão de que uma modificação na estrutura conceitual

nunca é simplesmente uma modificação na estrutura conceitual. Há uma

performatividade fundamental do conceito que a dialética não desconhece. Como dirá

Adorno mais a frente, as exigências de emancipação não são realizáveis através apenas

da mudança na relação de propriedade dos modos de produção, mas na liberação em

relação aos modos de pensar que fundam a noção identitária de propriedade na qual o

objeto não é mais do que atributo de um sujeito que se afirma como pólo de

determinação de sentido através de suas exigências de auto-satisfação.

Note-se que não poderia ser diferente, já que o “materialismo” ao qual alude

Adorno está muito mais próximo de um materialismo pré-kantiano do que de um

materialismo histórico classicamente compreendido.

Influências benjaminianas

Gostaria de utilizar a última parte da aula de hoje para começar a expor esta rede

complexa de dependências mútuas que se teceu entre Adorno e Benjamin. É certo que

boa parte das articulações programáticas da conferência de Adorno nasceram,

principalmente, da sua confrontação com Origem do drama barroca alemão, de Walter

Benjamin. De fato, Benjamin é a grande referência silenciosa da conferência de Adorno.

Não apenas o conceito de “constelação” vem de Benjamin, mas várias noções centrais

para o texto de Adorno, como “materialismo”, “Idéia”, “verdade não intencional” são

extremamente dependentes das elaborações benjaminianas.

Ao publicar seu livro mais importante, em 1926, Benjamin teve o cuidado de

acrescê-lo de um prefácio no qual ganhava corpo sua maneira de pensar como o fazer

filosófico deveria ser compreendido. Neste prefácio, Benjamin inicia lembrando que,

para a filosofia, a reflexão sobre sua forma era inseparável do conteúdo de verdade que

ela visa alcançar. Um conteúdo que deveria aparecer no interior de uma versão

modernizada da dialética entre o particular e o universal, a saber, a relação entre o que

Benjamin chamava de “trabalho micrológico” (imersão nos detalhes de um conteúdo

material específico) e totalidade. Esta relação pode ser pensada, grosso modo, de duas

formas: como objeto de conhecimento e como relação à verdade. Conhecimento seria

um modo de determinar conexões entre elementos isolados através de conceitos. Já a

relação à verdade é uma relação de unidade imediata através da Idéia, pensada aqui

como modo de apreensão do ser.

61 MARX, Manifesto econômico filosófico, pp. 132-133

Page 32: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Esta distinção entre conceito e Idéia é fundamental e não deixa de nos remeter à

distinção kantiana entre conceito do entendimento e Idéias da razão. Grosso modo,

podemos dizer que o conceito é uma generalidade que se relaciona à sua referência

através da representação. Por sua vez, a representação é uma unidade, um princípio de

unificação que pode ser objeto de rememoração e de recognição. Se perguntarmos sobre

como o conceito estabelece relações entre representação e referência, a resposta será:

através de semelhanças e equivalências. Na verdade, toda generalidade seria baseada na

aplicação de princípios de semelhança e equivalência. No interior desta lógica de

semelhanças e equivalências, conceitualizar só pode ser estabelecer relações de

analogias, identidade. Como dirá Adorno: “pensar é identificar”. Ou como dirá ainda

Benjamin: ‘Conhecimento é aquisição (..) Nele, permanece o caráter de propriedade”.

No entanto, a Idéia seguiria outra lógica. Ela me mostraria como um objeto fora

do campo representativo só pode ser representado sob uma forma problemática (no

caso, de Kant, através de paralogismos ou antinomias). Benjamin pode assim apoiar-se

no caráter indeterminado da Idéia em Platão, caráter já identificado por Kierkegaard

quando diz: “O abstrato em Sócrates é uma designação completamente sem conteúdo.

Ele parte do concreto e chega ao que há de mais abstrato e lá onde a investigação

deveria começar, ela termina. O resultado a que ele chega é propriamente a

determinação indeterminada do puro ser”62. Ele se apóia nesta indeterminação para

lembrar que a síntese operada pela Idéia exige um estilo marcado pela descontinuidade,

em oposição à cadeia de deduções própria ao conceito. Um pouco como se, décadas

antes, Benjamin tentasse afirmar, como Deleuze, que as Idéias são multiplicidades:

“uma organização própria ao múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da

unidade para formar um sistema”63. Esta descontinuidade própria à Idéia será a base

para a noção benjaminiana de constelação.

O conceito de constelação está, ao menos em Adorno, intimamente ligado ao

conceito de modelo. Noção fundamental para sua filosofia, já que: “Pensar

filosoficamente é como pensar por modelos”64. Como dissera na primeira aula, de

maneira esquemática, é possível dizer que há, ao menos, três maneiras de se pensar os

modos de indexação entre conceito e caso. O primeiro é o caso como exemplo do

conceito. Aqui, há uma relação tautológica de subsunção da particularidade do caso à

generalidade do conceito, até porque não há nada a apreender do caso que já não esteja

no conceito [ Uma rosa é uma rosa]. O segundo é o caso como ponto de excesso do

conceito. Trata-se da defesa da existência de uma relação de não-estruturação do caso

pelo conceito, como se houvesse uma irredutibilidade da multiplicidade própria ao caso

a toda tentativa de estruturação pelas capacidades generalizadoras do conceito. Por fim,

podemos dizer que o caso é um modelo do conceito

Lembremos aqui do que significa exatamente “modelo”. Desde Platão, “modelo”

é o que é representado. No entanto, muito mais do que a posição de um objeto, o

modelo é a representação de um estado de coisas a respeito do qual apenas a estrutura é

cognoscível. Ele é a linguagem funcional usada para conhecer a estrutura de uma

realidade. Por outro lado, operar por modelos não é a mesma coisa que operar por

esquemas. Lembremos da geometria de Desargues: modelizar significa projetar sobre

um plano, o modelo é uma construção imaginativa de um analogon de caráter

matemático ou físico que permite à ciência romper com uma tradição de conhecimento

62 KIERKEGAARD, O conceito de ironia, p, 49 63 DELEUZE, Différence et répétition, p. 236 64 ADORNO, idem, p. 39

Page 33: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

que procura se orientar pela intuição direta de conteúdos65. A sua maneira, o modelo

parece ser um instrumento cognitivo que opera para além das coisas em si. Há um

exemplo extremamente significativo, vindo de Simplicius comentando Aristóteles:

“Face ao caráter aparentemente singular do movimento irregular dos corpos celestes, é

possível construir um sistema de hipóteses geométricas. Temos então um modelo

através do qual, substituindo os movimentos que observamos e que resistem à

explicação por movimentos uniformes e regulares, torna-se possível explicar os

primeiros pelos segundos”66. Este exemplo é praticamente o mesmo que Benjamin tem

em vista quando desenvolve o conceito de “constelação”: “As idéias estão para as coisas

assim como as constelações estão para os planetas. Isto quer inicialmente dizer: elas não

são nem o conceito nem a lei. Elas não servem ao conhecimento dos fenômenos e estes

não podem em hipótese alguma ser o critério de existência das idéias”67. No entanto, em

Benjamin, a inadequação entre o modelo e a coisa aparece como modo de posição:

“desta significação metafísica suprema que o sistema de Platão atribui à Idéia”68. Da

mesma forma como, em Adorno, a aproximação do modelo a uma realidade refratária à

Lei não significa recolocar o pensamento nas vias da premissa da identidade entre

sujeito e objeto.

Isto talvez nos explique porque Adorno insiste na necessidade de não pôr

diretamente uma concepção determinada de homem e de Dasein como fundamento de

sua experiência filosófica: “Eu contesto a necessidade de precisar recorrer a esta

concepção”69. Frase precisa porque questiona a necessidade de pôr de maneira direta o

que funciona como fundamento, já que em algumas situações pôr diretamente e de

maneira peremptória é uma maneira desastrada de anular aquilo que se quer conservar.

Pôr uma determinada concepção de homem, acabaria simplesmente por anulá-la na

medida em que ela tenderia a se confundir com o homem efetivo, este que já existe,

acabaria por determina-lo a partir das condições de estruturação de objetos da

experiência em operação.

Neste sentido, fica mais fácil compreender porque Benjamin lembra que a Idéia

não serve para o conhecimento de fenômenos. Pois contrariamente à noção mesma de

fenômeno, elas não estão ligadas a objetos a partir da noção de intencionalidade: “A

verdade”, diz Benjamin, “é um ser sem intencionalidade, formado a partir das Idéias”70.

Esta é uma noção que Adorno não cansará de expor em sua conferência, a saber, de que

a realidade a ser interpretada é não intencional, de que materialismo significa:

“interpretar o não-intencional (Intentionslosen) por disposição em conjunto

(Zusammenstellung) de elementos isolados por análise e esclarecer a realidade

(Wirklichen) graças a tal interpretação”71. Aqui, não-intencional significa aquilo que não

é posto através da estrutura intencional da consciência, que não tem sua fonte de sentido

em um objeto intencional. Pois: “o sujeito precisa ir em direção ao objeto, entrar nele,

enquanto parar diante de ´objetos do pensamento´ é descobrir nada mais que a próprio

reflexão do sujeito como intenção”72.

Neste sentido, o materialismo de Benjamin e Adorno é, digamos, não-

intencional na medida em que procuram liberar o sensível de seu aprisionamento nas

65 Sobre este ponto, ver SOULEZ, Quel nouage entre lettre et lieu? in MARCOS, La lettre et lê lieu,

Paris, Kimé, 2005 66 idem, p. 49 67 BENJAMIN, Origens do drama barroco alemão - Prefácio 68 idem 69 ADORNO, Die Aktualität ..., p. 343 70 BENJAMIN, idem, 71 ADORNO, Die Aktualität ..., p. 336 72 BUCK-MORSS, idem, p. 78

Page 34: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

estruturas de apreensão do sujeito cognoscente. Uma liberação que encontra sua forma

na Idéia enquanto realidade que se apresenta lá onde a antinomia e a contradição não

aparece apenas como limites do pensamento e do pensável, mas se colocam como

modos de acesso ao ser. Daí porque a própria noção de história em Adorno não pode

fornecer as bases para um materialismo histórico do estilo de um Lukács, por exemplo.

Pois a história é, para Adorno, enquanto imagens históricas pensadas como Idéias

capazes de constituir uma verdade não-intencional. O que o coloca na contramão da

compreensão do acontecimento histórico enquanto verdade que advém na história como

intenção portada, no caso, por uma consciência histórica encarnada em atores sociais

determinados73. Este é o sentido do materialismo dialético de Adorno, um materialismo

distinto do materialismo histórico do marxismo de sua época.

Mas continuemos ainda um pouco mais analisando a noção de constelação. Ela

permitirá a Adorno desenvolver mais tarde a noção de que a filosofia pode desenvolver

modelos capazes de produzirem sínteses não-totalizantes, sínteses nas quais a negação

aos procedimentos de universalização totalizante é conservada. A idéia de constelação

permite o advento de um pensamento da síntese na qual: “não se progride a partir de

conceitos e por etapas até o conceito genérico (allgemeineren Oberbegriff), mas eles

entram em constelação”. O modelo para este processo de ‘entrar em constelação’ nos é

fornecido pelo “comportamento da linguagem (Sprache)", ou melhor, pelo

comportamento de uma teoria não-correspondecial da linguagem que nem por isto

abraça alguma forma de relativismo abandonando a centralidade da noção de verdade

objetiva. Segundo Adorno, a linguagem:

não apresenta um simples sistema de signos (Zeichensystem) para funções

cognitivas. Lá onde ela aparece essencialmente como linguagem, lá onde ela

advém apresentação (Darstellung), ela não define seus conceitos. Sua

objetividade é assegurada através da relação que coloca os conceitos centrados

sobre uma coisa (Sache) (...) Ao reunir-se em torno da coisa a conhecer, os

conceitos determinam potencialmente seu interior74.

Esta noção de uma opacidade fundamental da coisa que se exprime em uma constelação

de conceitos que se articulam sem jamais designar a referência de maneira imediata,

esta idéia de uma: “deficiência determinável de todo conceito (bestimmbare Fehler aller

Begriffe)" que leva à necessidade de “fazer intervir outros”75 a fim de formar

constelações, enfim, esta idéia de uma constelação de conceitos que guarda o sujeito

proposicional como elemento opaco ao qual se reporta a predicação é fundamental. De

um certo aspecto, ela demonstra que pensar por constelações é algo muito próximo de

pensar por metáforas, ou seja, através um “ver como” que me permite apreender certos

objetos apenas no interior de relações transversais, já que nenhuma apreensão conceitual

direta de conteúdo parece possível. Relações que, como dizia Adorno em Atualidade da

filosofia, são o modo de acesso a uma realidade formada por elementos isolados,

fragmentários e desprovidos de intenção unificadora.

Isto permite a Adorno comparar o conhecimento por constelações à ars

inveniendi medieval (razão das descobertas). Um processo de descoberta cujo organon é

a fantasia enquanto faculdade criadora da imaginação. Este apelo à fantasia enquanto

faculdade criadora não é sem relação com uma certa concepção da atividade cognitiva a

partir do processo criador da atividade estética que, diga-se de passagem, nunca é

73 ADORNO, idem, p. 338 74 ADORNO, ND, p. 160 75 ADORNO, ND, p. 59.

Page 35: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

estritamente individual, nunca é feita a partir do bel querer de um individual marcado

pelo livre-arbítrio, mas é ditada pelas exigências objetivas dos materiais com os quais o

artista confronta. O verdadeiro artista, dirá mais tarde Adorno, é capaz de “fazer sua a

tendência do material” e não projetar sua categorias sobre os objetos. No entanto, ainda

precisaremos caminhar mais a fim de entender aonde Adorno quer nos levar com estas

idéias.

Page 36: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adornoí

Aula 4

Na aula de hoje, iniciaremos o comentário da Dialética do Esclarecimento através da

leitura do primeiro capítulo, O conceito de esclarecimento. Composto de três capítulos

(O conceito de esclarecimento, A indústria cultural e Elementos de anti-semitismo), este

é certamente o livro mais conhecido de Adorno, em parceria com Max Horkheimer.

Lançado em 1947 e escrito durante o exílio dos autores nos EUA, o livro reflete, de

maneira ainda muito viva, a experiência das barbáries da Segunda Guerra.

No que diz respeito à bibliografia de Adorno, note-se que este será seu segundo

livro, quebrando um hiato que durava desde 1933, com o lançamento de sua tese de

douturado: Kierkegaard – construção do estético. Durante estes quatorze anos, Adorno

publicará basicamente estudos sobre música em revistas especializadas, alem da revista

do Instituto de Pesquisas Sociais. ‘E desta época alguns de seus artigos mais

importantes, como: “O caráter fetichista da música e a regressão da audição” (1938) e “

Fragmentos sobre Wagner” (1938).

Neste período, Adorno atravessara um longo périplo. Com a ascensão do

nazismo, Adorno perde seu posto de professor na Universidade de Frankfurt. No ano

seguinte, ele é aceito como “advanced student” da Universidade de Oxford, a fim de

escrever uma tese sobre Husserl sob a orientação de Gilbert Ryle. A tese será publicada

décadas depois com o título Metacrítica da teoria do conhecimento. Em 1938, Adorno

muda-se para Nova York, onde se encontrava Horkheimer e outros membros do

Instituto de Pesquisas Sociais. Lá, ele trabalhará em um projeto sobre música no radio

(Princeton Radio Project) sob a direção do sociólogo Paul Lazarfeld. Em 1941, Adorno

muda-se para a California, onde se encontravam vários imigrantes alemães e austriacos,

como Thomas Mann, Bertolt Brecht, Arnold Schoenberg, entre outros. É neste contexto

que ele se encontrará com Horkheimer para elaborarem o que hoje conhecemos como a

Dialética do esclarecimento.

O livro, com seus três capítulos e dois excursos, visa traçar um panorama global

das ambivalências dos processos de racionalização. Neste sentido, podemos dizer que

seu cerne

é uma interversão (umschlagen) do Esclarecimento em positivismo que é visto como

figura da auto-destruição da razão. O núcleo da crítica dialética através da qual Adorno

e Horkheimer pensam a razão moderna é fornecido por este conceito de interversão. A

razão, ao tentar realizar seu projeto de constituição de uma ordem social racional no

interior do quadro histórico da modernidade, passou em seu oposto, ou seja, produziu

uma situação que os autores descrevem como “barbárie”. Assim, a crítica, por basear-se

na descrição de interversões não é simplesmente uma crítica das distorções e traições

em relação ao projeto da modernidade, nem é uma crítica da maneira com que as

resistências à modernidade continuariam presentes, de maneira regressiva, em nossa

vida social bloqueando a realização dos valores gerados no interior da experiência

filosófica da razão moderna. Ela é uma crítica totalizante da razão, ou seja, crítica que

visa expor o caráter profundamente solidário entre a razão moderna e o advento do que

os autores chamam de barbárie. É através da análise desta solidariedade que Adorno e

Horkheimer visam explicar: “porque a humanidade, ao invés de entrar em um estado

verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”76.

76 ADORNO e H|ORKHEIMER, Dialetica do Esclarecimento, p. 11

Page 37: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

O primeiro capítulo e o primeiro excurso do livro fornecerão uma espécie de

quadro geral dos processos de interversão da razão, privilegiando uma peculiar

“sociologia da teoria do conhecimento” que visa fornecer os fundamentos de uma crítica

da técnica. Através dela, somos levados a procurar as raízes da interversão da razão não

exatamente no advento da modernidade, mas já na constituição do discurso do mito na

Grécia Antiga. Daí a idéia de um excurso que discuta Homero e seu herói, Ulisses. O

segundo excurso terá como assunto a filosofia moral e as interversões da moralidade em

perversão. O segundo capítulo versará sobre estética, isto através da discussão do

advento da noção de Indústria cultural. Por fim, o último capítulo será dedicado à

política e à tentativa de compreensão do potencial autoritário das sociedades modernas,

isto através de uma espécie de gênese psicológica do anti-semitismo. Desta forma,

teoria do conhecimento, estética, moral e política aparecerem como os horizontes de

reflexão sobre a Dialética do Esclarecimento.

A crítica da racionalidade instrumental

No entanto, uma questão rapidamente se coloca: já que a crítica não é apenas

crítica da situação existente em nome de um projeto valorativo e de consolidação de

princípios depositados na noção moderna de razão, mas uma crítica da própria razão

com suas estruturas valorativas em operação nos campos das expectativas cognitivas,

dos julgamentos morais e nos modos de racionalização de vínculos sociais, então como

resolver a questão do fundamento daquilo que quer se colocar como crítica da razão?

Em outras palavras, onde fundamentar o que os autores entendem por “estado

verdadeiramente humano” que aparece como horizonte para a indicação de uma nova

espécie de barbárie, onde fundamentar tal estado a não ser na própria razão com seus

princípios de determinação da humanidade do homem?

Este é um ponto importante porque leva Adorno e Horkheimer a se perguntarem

se é possível pôr um estado verdadeiramente humano que não se confunde

imediatamente com aquilo que a razão moderna trouxe não apenas como modo de

ordenamento da experiência, mas como produção de valores (como liberdade,

autonomia e auto-determinação). Isto exigirá o recurso a uma espécie de antropologia

filosófica que em larga medida será esboçada nas duas primeiras partes do livro. Adorno

e Horkheimer precisarão mobilizar uma teoria do sujeito e do processo de constituição

antropológica do sujeito como suporte dos valores postos pelo projeto da razão moderna

que servirá de base para a crítica da modernidade. Ela virá da antropologia (os nomes

fundamentais são Mauss, Durhkeim), da sociologia da Max Weber e da psicanálise

freudiana.

A este respeito, lembremos como Adorno e Horkheimer vinculam o programa

do Esclarecimento ä temática weberiana do desencantamento do mundo. Trata-se de

dissolver os poder das construções mítico-religiosas que constituiriam a compreensão

pré-moderna do mundo, fazendo com o que é da ordem do natural apareça como

animado por foras e processos sobre-naturais. Estas dissoluções das construções mítico-

religiosas é indissociável do primado da técnica: “A técnica é a essência deste saber”,

dirão os dois77. Técnica cujo objetivo é “transformar os homens em senhores da

natureza”, retirar o medo em relação à natureza através do desenvolvimento da

dominação instrumental. Por isto que “Força e conhecimento são sinônimos”78. Neste

sentido, a verdadeira função do desencantamento do mundo consiste na dominação

77 idem, p. 10 78 idem, p. 10

Page 38: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

instrumental da natureza através de uma racionalidade cujas operações são baseadas na

mensuração, quantificação e calculabilidade. Como dirá Weber:

“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e

intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo [note-se esta

operação de aproximação entre racionalização, intelectualização e

desencantamento, o que nos indica como a essência da racionalização só pode

ser apreendida a partir do momento em que levamos em conta seu ‘efeito de

desencantamento’]. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-

se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a

fraternidade das relações humanas e pessoais”79.

É desta forma que a crítica da razão na Dialética do Esclarecimento se

transforma em crítica da racionalidade instrumental, ou seja, crítica da redução da

razão à uma racionalidade orientada para fins, a uma racionalidade que se pergunta

apenas pela maneira eficiente de organizar meios para alcançar fins. Fins estes que são,

por sua vez, reconhecidos como racionais exatamente porque se submetem à

mensuração, à quantificação e à dominação pelo cálculo. Tendo em mente o dignóstico

luckacsiano da transformação da forma-mercadoria em princípio geral de objetividade

na vida social sob o império do capitalismo, Adorno e Horkheimer vincularão o

primado da técnica à disponibilização dos objetos a partir da lógica do Capital.

Mas entendamos melhor o que devemos chamar aqui de “ racionalidade

instrumental”. Neste ponto, faz-se necessário compreendermos melhor os dois critérios

de racionalidade oferecidos por Weber. Eles são inicialmente apresentados tendo em

vista a compreensão da ação social. Dirá Weber:

“a ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional

referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo

exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou

‘meios’ para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente,

como sucesso; 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente

no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação –

absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente

do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional, por afetos ou

estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional, por costume arraigado”80.

Alguns pontos devem ser salientados nestas definições. Primeiro, a racionalidade

da ação orientada para fins (no sentido de finalidade) fundamenta-se na capacidade de

avaliar decisões a partir da previsibilidade (expectativa) do comportamento do mundo

externo e de outras pessoas. Mas devemos nos perguntar sobre o que deve acontecer ao

mundo e aos sujeitos para que estes possam aparecer como objetos de processos de

avaliação de previsilidade. Fundamentalmente, esta passagem do mundo a um conjunto

de objetos que podem se submeter a avaliações de previsibilidade implica a

categorização do que aparece a partir de procedimentos gerais de cálculo, mensuração e

identidade. Ou seja, a racionalidade orientada para fins só pode operar a partir do

momento em que aquilo que se dá à razão aparece como essencialmente matematizável

e abstraído de toda determinação qualitativa irredutível. De coisa no mundo a objeto da

79 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182 80 WE BER, Economia e sociedade I, p. 15

Page 39: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

técnica, objeto de dominação pelo cálculo, para retomar uma bela expressão de Max

Weber.

Um outro ponto merece nossa atenção : mesmo a racionalidade orientada por

valores partilha deste conceito de objeto fornecido pela racionalidade orientada para

fins. Lembremos, por exemplo, da maneira pela qual Weber diferencia a ação afetiva da

ação racional orientada por valores: “Elas distinguem-se entre si pela elaboração

consciente dos alvos últimos das ações e pela orientação consequente e planejada com

referência a estes, no caso da última”81. Uma ação impulsionada pelo desejo de

vingação (ação afetiva) pode ter seu alvo elaborado conscientemente. Mas ela não é

ação feita segundo ‘mandamentos’ ou ‘exigências’ que transcende o plano dos

sentimentos [ ela não é uma lei imposta pelo sujeito para si mesmo]. Por outro lado, esta

ação feita a partir de um mandamento transcendente permite o descolamento empírico

necessário para a orientação planejada da conduta. Quer dizer, mesmo que o valor não

seja relativo a nenhum cálculo (por exemplo, cálculo de prazer), ele permite que a

efetividade seja objeto de uma orientação planejada.

Mas voltemos os olhos para a Dialética do Esclarecimento. Uma análise

cuidadosa nos mostra um entrelaçamento complexo e profundo entre dois regimes

distintos de crítica. Uma deve ser chamada de crítica da economia política e visa

mostrar como um regime de produção econômica, no caso, o capitalismo, impõe às

esferas da vida social, um modo de racionalidade que tende a colonizar de maneira

integral nossas formas hegemônicas de vida. Esta crítica tem um quadro histórico

vinculado ao primado do regime de produção econômica em questão. Ela é, em última

instância, maneira de mostrar como um fato social (a produção econômica) produz

formas de racionalidade, atualizando um esquema marxista que tende a ver estruturas

conceituais do pensar como ideologia de processos materiais ligados, preferencialmente,

ao campo da economia.

A outra é a crítica da racionalidade instrumental que, tal como Adorno e

Horkheimer a praticam na Dialética do Esclarecimento escapam claramente do quadro

estrito da crítica do capitalismo. Basta lembrarmos aqui de afirmações prenhes de

consequência como:

A sociedade burguesa é dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo

comparável reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o Esclarecimento, aquilo

que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão; o positivismo

moderno remete-o à literatura. “Unidade” continua sendo a divisa, de

Parmênides a Russell. O que se continua a exigir insistentemente é a destruição

dos deuses e das qualidades82.

Notemos como uma afirmação deste natureza pressupõe um quadro histórico

amplo que não se confunde imediatamente com a história do capitalismo. Pensando

nisto, comentadores como Axel Honneth insistirão em uma certa “inversão” da

perspectiva marxista clássica em Adorno e Horkheimer já que, na Dialética do

esclarecimento: “a troca de mercadorias é simplesmente a forma histórica desenvolvida

da razão instrumental” (HONNETH, 1991, p. 38). Uma razão instrumental cujas fontes

devem ser procuradas (e aqui os autores não poderiam ser mais freudiano) no processo

humano de auto-preservação diante do medo produzido pelos perigos da natureza e de

81 WEBER, Economia e sociedade, p. 15 82 idem, p. 23

Page 40: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

humanização dos impulsos. Ou seja, as coordenadas históricas da crítica da economia

política vão se submeter a uma filosofia da história de larga escala.

Isto é o resultado desta maneira típica dos autores de compreenderem o

Esclarecimento não exatamente como um processo que começa neste momento

histórico que designamos por Iluminismo, mas que tem suas origens na passagem do

pensamento mágico ao pensamento mítico. Daí a necessidade de lembrar que: “os mitos

que caem vítimas do Esclarecimento já eram o produto do próprio Esclarecimento”83, de

que o processo de progresso que alcançará sua figura mais bem acabada no positivismo

e no capitalismo já estava claramente em marcha antes do advento do capitalismo. Por

isto, Adorno e Horkheimer são obrigados a desenvolver uma espécie de pré-história

(Urgeschichte) do Esclarecimento como condição para o entendimento do regime de

experiência histórica que a modernidade instaurou. O que não deixa de ter um forte

acento hegeliano, já que o processo histórico que se confunde com a razão ocidental

será compreendido como uma longa pré-história da modernidade. A diferença é que,

agora, esta modernidade não parece mais ter a força de realizar as promessas de

felicidade que animavam o impulso em direção à dominação instrumental da natureza.

Pois há algo que a modernidade perdeu e que seria fundamental para ela não se

interverter em simples barbárie.

Magia, mito e Esclarecimento

A melhor maneira de analisar este ponto consiste em compreender a maneira

com que Adorno e Horkheimer abordam o problema do estatuto do pensamento mágico.

Nós sabemos como o pensamento que marca a razão moderna recusa todo conteúdo

cognitivo à mimesis, à analogia e à semelhança, já que o pensamento “mágico” seria

exatamente este ainda aprisionado às cadeias da simpatia e da participação. Mas Adorno

e Horkheimer acreditam que o caráter mimético do pensamento mágico tem um

conteúdo de verdade, o que não significa em absoluto ignorar a ruptura entre natureza e

cultura. Isto significa apenas que o pensamento mágico é capaz de pôr certos processos

identificatórios recalcados pela razão reduzida a sua condição instrumental. Tais

processos concernem sobretudo à maneira com que a auto-identidade se reconhece

como momento da posição da diferença, o que nos leva à impossibilidade de posição de

distinções estritas entre Eu e Outro.

Primeiramente, lembremos da maneira com que a problemática do conteúdo de

verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno. Se o pensamento racional deve

denegar toda força cognitiva da mimesis, é porque se trata de sustentar: “a identidade do

eu que não pode perder-se na identificação com um outro, mas [que] toma possessão de

si de uma vez por todas como máscara impenetrável” (ADORNO e HORKHEIMER,

1985, p. 24). Lembremos do espanto do entendimento a afirmações como esta do índio

Bororó: “Eu sou uma arara”. Espanto que vem do fato da identidade do eu ser

dependente da entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais. A

projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer

chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as processos de

categorização do sujeito cognoscente84.

83 idem, p. 23 84 Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente

concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização

e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador

contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.

180)

Page 41: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode

pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao

reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Poderíamos mesmo dizer que

o pensamento mágico nos permite ver como a fixidez da identidade dos objetos é

dissolvida quando o pensamento leva em conta a natureza constitutiva das relações de

oposição (e neste contexto a oposição tem o valor de uma identificação que ainda não

foi posta)85. Isto pode nos explicar a importância de considerações como: “o espírito que

se dedicava à magia não era um e idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto, que

deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.

24).

Uma especial atenção é dispensada pelos autores ao conceito de mana,

desenvolvido por Marcel Mauss no Esboço de uma teoria geral da magia. Grosso

modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na Melanésia e que

“escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão”86. Ela visa designar

uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de feiticeiro, qualidade

mágica de uma coisa, coisa magia, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir

magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é fundamental em magia.

No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das

pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma que ele é a força por

excelência, a verdadeira eficácia das coisas. Adorno e Horkheimer vão aproveitar este

caráter de força que, ao mesmo tempo, ultrapassa e caracteriza agente e objeto a fim de

que o mana é o “primário, indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho:

aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo que nas coisas é mais do que sua

realidade já conhecida”. Trata-se de um modo de experiência primitiva do “emaranhado

da natureza em face do elemento individual”87. Experiência de um “espírito movente”

que provoca uma profunda instabilidade na linguagem:

Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas

como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime

a contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo ele mesma e outra coisa

diferente dela, idêntica e não idêntica88.

Adorno e Horkheimer identificarão nesta experiência a fonte psicológica de um

medo, angústia, horror sagrado que indica “o eco da real supremacia da natureza nas

almas fracas dos selvagens”. De uma certa forma, esta experiência psicológica do medo

é o motor do progresso em direção ao pensamento mítico e ao Esclarecimento. Pois, do

medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. E este

era afinal a base do desencantamento do mundo prometido pelo Esclarecimento.

Lembremos, a este respeito, da afirmação de Max Weber:

“Intelectualização e racionalização crescentes não significam um crescente

conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra.

Significam, ao contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta

85 Martin Jay nos lembra que, em Adorno, o comportamento mimético não é imitação do objeto, mas

aproximação (anschmiegen) de si com o objeto ( Cf. JAY, 1999, p. 30) 86 MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142 87 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 29 88 Idem, p. 29

Page 42: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

alguém querer para poder provar, a qualquer hora, que em princípio não há

forças misteriosas e incalculáveis interferindo”89.

É pensando em afirmações desta natureza que Adorno e Horkheimer poderão dizer que,

para o Esclarecimento: “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do “fora”

é a verdadeira fonte de angústia”90.

Por outro lado, lembremos como o pensamento mítico é visto por Adorno e

Horkheimer como não tendo diferenças ontológicas em relação ao pensamento

conceitual. As estruturas conceituais de organização da experiência já estão em

operação no interior do pensamento mítico. Do ponto de vista estrutural, o mito já é um

conceito, o que permite aos autores aproximarem mito e Esclarecimento. Eles

abandonam a idéia clássica de que elemento básico do mito seria o antropomorfismo e a

projeção do subjetivo sobre a natureza, já que o elemento projetivo não estará ausente

do próprio Esclarecimento. Eles dirão que: “Não há ser algum no mundo que a ciência

não possa penetrar, mas o que a ciência pode penetrar não é o ser”91.

O mito já são princípios de organização estrutural, distinção, hierarquização,

representação que, do ponto de vista formal, fornecem as primeiras figuras do que se

consolidará através do conceito. Eles chegam a basear-se em Durkheim (em De

algumas formas primitivas de classificação) para mostrar como as classificações

primitivas sociais, fundamentalmente vinculadas à produção mítica, eram as origens das

primeiras classificações científicas.

Passar por Freud

Mas ao vincular a compreensão do projeto do Esclarecimento ao

desencantamento do mundo, Adorno e Horkheimer podem desdobrar sua verdadeira

estratégia crítica: vincular a crítica da razão à crítica do sujeito moderno. A base do

argumento consiste em dizer que esta interversão da razão em dominação foi

impulsionada pela submissão da racionalidade instrumental a um valor maior: a auto-

conservação. A racionalidade instrumental seria fundamentalmente a transformação do

pensar em cálculo visando a auto-conservação. Conseqüência de uma perspectiva que

não aceita distinguir conhecimento e interesse.

Pois esta dominação da natureza externa só foi possível a partir do momento que

a natureza interna submeteu-se a princípios de auto-conservação ligados a uma instância

reflexiva de auto-controle que podemos chamar de Eu. Neste sentido, boa parte das

operações críticas da Dialética do Esclarecimento visam demonstrar como o processo

de constituição do Eu moderno, com suas exigências de auto-identidade imediata e de

auto-determinação, significou a submissão de toda experiência possível ao primado da

identidade e da abstração.

Esta estratégia justifica-se também devido a um raciocínio suplementar.

Sabemos que a razão moderna elevará o sujeito à condição de fundamento. Elevar o

sujeito à condição de fundamento implica afirmar que o sujeito fornece a medida de

tudo aquilo que pode submeter-se à razão. O sujeito é a medida que permite constituir,

que determina as condições o que pode ser objeto da experiência. A estratégia de

Adorno e Horkheimer consistirá em expor a gênese deste sujeito moderno e quais foram

as verdadeiras condições que colaboraram para o seu aparecimento.

89 WEBER, Ciência como vocação, p. 30 90 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 29 91 Idem, p. 52

Page 43: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Normalmente, vinculamos o aparecimento do sujeito moderno à exigências de

realização de princípios de autonomia da conduta e dos julgamentos, assim como auto-

determinação de sua própria identidade. Adorno e Horkheimer insiste, no entanto, que o

impulso de criação do sujeito moderno estaria vinculado a fatores psicológicos como: o

medo do que não posso controlar ou prever (por não se submeter à imagem de mim

mesmo) e, por isto, a dominação como peça fundamental dos processos de auto-

conservação. Pois a faculdade fundamental que constrói o campo no qual o Eu pode se

afirmar é àquela determinada pela força de auto-controle que tem dois operadores

principais: o controle da multiplicidade dos conteúdos pela unidade da forma e o

controle da diferença pela identidade. Este controle é auto-controle porque a experiência

da multiplicidade e da diferença resistentes à submissão pela forma e pela identidade é

algo que inicialmente se manifesta no interior da relação a si mesmo. Lembremos de

uma afirmação como:

O horror mítico do Esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre

meramente em conceitos e palavras não aclarados (unaufgehellen), como

presume a crítica semântica da linguagem, mas em toda exteriorização

(Äusserung) humana que não se situe no quadro teleológico

(Zweckzusammenhang) da autoconservação92.

Ao falar de exteriorizações que não se situam no quadro teleológico da auto-

conservação, Adorno e Horkheimer expõe claramente uma das bases de sua

antropologia filosófica. Basta tirar as conseqüências da afirmação segundo a qual: “A

pulsão (Trieb) como tal seria [para o Esclarecimento] tão mítica quanto a superstição”93.

Ou seja, para o Esclarecimento, da mesma forma como o mito é peça de um

encantamento do mundo a ser combatido, as pulsões são forças pressupostas, quase

mágicas, que só podem produzir uma espécie de “encantamento de si”. Contra elas, não

se deve mobilizar apenas o desencantamento capaz de mostrar como o motor da ação

racional não são as pulsões, mas a vontade autônoma. Deve-se também lutar, através da

repressão e do recalque, contra toda exteriorização de uma pulsão que não se submeta

ao princípio de auto-conservação. Neste ponto, é Freud que aparece como marco teórico

principal.

Sabemos como Freud insiste na natureza conflitual da estrutura pulsional dos

sujeitos. Em um primeiro momento, ele partirá do conflito entre pulsões de auto-

conservação, ou simplesmente pulsões do Eu e pulsões sexuais. Há várias maneiras de

compreendermos esta distinção, mas gostaria de sugerir uma. Freud insiste que há algo,

no sujeito, anterior ao advento do Eu. Há um corpo libidinal polimórfico que orienta sua

conduta a partir da procura de satisfação de pulsões parciais (ou ainda pré-egóicas), ou

seja, impulsos que não respondem à hierarquia funcional de uma unidade. Esta estrutura

polimórfica e fragmentada das pulsões viria da ausência de um princípio unificador

como o Eu, princípio que não estaria presente antes de um certo processo de maturação

individual através do qual o sujeito internaliza a representação social de um princípio de

conduta e coerência, princípio que permite a unificação das pulsões a partir da

identificação a um Outro na posição de tipo ideal94.

Por outro lado, tal característica polimórfica das pulsões viria também do fato de

Freud compreender a estrutura do interesse (e de todas suas variantes: volição, vontade,

92 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 93 Idem, p. 36 94 Ver, por exemplo, FREUD, Sigmund; Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie In: Gesammelte Schriften

V, Frankfurt: Fischer, 1999

Page 44: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

desejo etc.) a partir que ele chama de “libido”, ou seja, uma energia psíquica que

desconhece telos finalista, já que ela circularia de maneira “livre” no aparelho psíquico,

de maneira des-ligada de representações determinadas de objetos. Este caráter livre da

libido explicaria, ao menos segundo Freud, a plasticidade aparentemente inesgotável das

associações mentais que não se submetem completamente à intencionalidade

consciente, como os sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas, assim como o caráter plástico

das fantasias. Pois elas indicariam a natureza própria a uma energia psíquica

caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida,

desviada, recalcada, em suma, deslocada indefinidamente. Freud ainda chama o modo

de formação de processos psíquicos submetido à esta dinâmica de processo primário.

Tal energia livre encontra na sexualidade seu campo privilegiado de

manifestação. Pois o que só se manifesta de maneira polimórfica e fragmentada

encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma sexualidade não mais

submetida à lógica da reprodução, encontra seu campo em um impulso corporal que

desconhece telos finalistas, como é o caso da reprodução. Daí porque a libido é

inicialmente caracterizada como auto-erótica95, inconsistente por estar submetida aos

processos primários e, por fim, perversa (no sentido de ter seus alvos constantemente

invertidos, desviados e fragmentados).

Já as pulsões de auto-conservação, ou pulsões do Eu, permitem elevar as

exigências de conservação do indivíduo à condição de princípio de orientação da

conduta. A fome aparece em muitas situações como protótipo das exigências de

conservação. No que diz respeito ao funcionamento do aparelho psíquico, as pulsões de

auto-conservação são mais aptas a funcionarem a partir do princípio de realidade, já que

elas se constituem a partir da orientação para a satisfação de necessidades vitais. Freud

vincula o desenvolvimento da consciência, da atenção, da memória, da ação e do

julgamento às exigências de auto-conservação agenciadas pelo princípio de realidade.

Trata-se, em todos os casos, de como construir o melhor caminho para alcançar um

objeto capaz de satisfazer as pulsões do Eu. Neste sentido, ele chega mesmo a dizer que:

“o Eu-realidade (Real-Ich) não tem outra coisa a fazer que tender em direção ao

benefício (Nutzen) e afastar-se do prejuízo (Schaden)”96.

Estes termos econômicos não devem ser vistos como mera metáfora (ou melhor,

nenhuma metáfora é “mera”). O Eu submete a conduta a um princípio utilitarista de

cálculo de prazer e desprazer, estruturalmente distinto do princípio em operação na

fantasia. O que os distingue não é o vínculo entre ação e procura do prazer (já que

aceitar o princípio de realidade significa simplesmente que serei capaz de abandonar

uma procura alucinatória pelo objeto em prol de um cálculo onde as frustrações vindas

da realidade entrarão), mas o modo de organização da experiência. Na dualidade entre

pulsões sexuais e pulsões de auto-conservação há, na verdade, um conflito entre modos

de organização da experiência, para além de um conflito entre objetos visados. Basta

lembrarmos como as pulsões do Eu estão vinculadas àquilo que Freud chama de

processo secundário, ou seja, passagem de um regime de energia livre (próprio à

fantasia) a um regime de energia ligada (próprio ao pensamento da consciência com

suas estruturas fixas de representações e de inibição das exigências irrestritas de prazer).

Adorno e Horkheimer são sensíveis a este ponto. Eles querem mostrar como este

modo de organização da experiência a partir das exigências de auto-conservação só

pode nascer através do advento de um Eu que não se reconhece mais em “nenhuma

95 Lembremos como o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Neste sentido, ela serve

para indicar a polimorfia de uma libido que se direciona ao prazer de órgãos que ainda não se submetem a

um princípio geral de unificação fornecido pelo Eu enquanto unidade sintética. 96 FREUD, GW vol. VIII, p. 135

Page 45: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

exteriorização humana que não se situe no quadro teleológico da auto-conservação”.

Daí porque:

O Eu que, após o extermínio (Ausmerzung) metódico de todos os vestígios

naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue,

nem alma e nem mesmo um Eu natural, constituiu, sublimado num sujeito

transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora

da ação97.

Estas afirmações são de extrema importância para a economia do texto. Os

autores estão afirmando que o preço a pagar para a constituição do sujeito

transcendental como fundamento das operações da razão moderna está no extermínio

metódico, na repressão reiterada do que, no interior do sujeito, não se submete à forma

lógica geral do Eu. Não querer mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma significa, ao

menos neste contexto, impôr-se através da vontade de se afastar de tudo o que não é

imediatamente logos. Veremos as conseqüências maiores disto no segundo excurso

deste capítulo, “Juliette ou Esclarecimento e moral”.

Por outro lado, isto nos explica porque Adorno e Horkheimer afirmam que o

preço do primado de uma racionalidade instrumental que não é outra coisa que

entificação do princípio de auto-conservação repete-se em todo abandono da infância,

em todo processo individual de maturação visando exatamente a formação do Eu

através da submissão da polimorfia das pulsões sexuais à unidade das pulsões de auto-

conservação que visam fortalecer o Eu. Como se aquilo que aconteceu com a espécie

deve-se repetir-se e acontecer, de maneira mais condensada, com todo indivíduo. E da

mesma maneira como acontece com o indivíduo:

O medo de perder o Eu e o de suprimir com o Eu o limite entre si mesmo e a

outra vida, o temor da morte e da destruição [de si como princípio de

organização da experiência] está irmanado a uma promessa de felicidade

[advinda da liberação do que encontrou abrigo nas pulsões sexuais] que

ameaçava a cada instante a civilização98.

Por fim, Adorno e Horkheimer não deixarão de lembrar que todo este processo

está fundamentalmente vinculado ao destino da categoria de trabalho no capitalismo.

Devemos levar bastante a sério uma afirmação como: “O trabalho social de todo

indivíduo está mediatizado pelo princípio do Eu na economia burguesa”. Isto porque:

‘quanto mais o processo de auto-conservação é assegurado pela divisão burguesa do

trabalho, tanto mais ele força a auto-exteriorização (Selbsentäusserung) dos indivíduos,

que tem de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica”99.

A este respeito, podemos lembrar como o trabalho social no capitalismo

industrial exigia um processo de regulagem das pulsões que, segundo Adorno e

Horkheimer, em muito se assemelha àquilo que Freud procurou descrever através dos

problemas vinculados ao conflito e à renúncia pulsional. Lembremos, por exemplo, de

algumas considerações que podemos encontrar em A ética protestante e o espírito do

capitalismo, de Max weber.

Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da

disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria

97 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 98 Idem, p. 45 99 Idem, p. 41

Page 46: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da

convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no

calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de

capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o

capitalismo como sociedade de produção era um trabalho que não visava exatamente o

gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “de sua riqueza

´nada tem´ para si mesmo, a não ser a irracional sensação de ´cumprimento do dever

profissional”100. Weber chega a falar em um “estímulo psicológica”101 produzida pela

pressão ética e satisfeita através da realização de um trabalho como fim em si, ascético e

marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que: “este é o summum bonum

desta ‘ética’: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de

todo gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido de todos os

pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado tão exclusivamente como

fim em si mesmo que, em comparação com a ´felicidade´ do indivíduo ou sua

´utilidade´, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e simplesmente

irracional”102. A irracionalidade deste processo de racionalização do trabalho, ao menos

a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode nos indicar seu caráter vinculado

à entificação de um mero princípio de dominação de si e de controle disciplinar

simétrico àquele descrito por Freud através daquilo que os frankfurtianos chamam de

“caráter compulsivo da auto-conservação” (Zwangscharakter der selbsthaltung).

Weber nos indica claramente vários traços desta Lei da ética protestante do

trabalho que : a transformação do Pai Celestial que suportava a Lei no Novo

Testamento em um Pai Severo superegóico: “ser transcendente que escapa à

compreensão humana”103, um trabalho feito como vocação que é resposta à voz do

Outro (no caso, o chamado de Deus), a culpabilização de todo prazer sensível

(rebaixamento do sensível que Freud compreendeu como figura maior da renúncia

pulsional) e a entificação obsessiva de um “auto-controle sereno” como ideal de

conduta104; auto-controle que se traduz na repressão ao prazer polimórfico em prol da

fixidez identitária no mundo do trabalho; fixidez já presente na idéia de “vocação”.

Em todos estes traços vemos como a mesma renúncia pulsional fundamental

para a constituição do Eu como instância de orientação da ação e de internalização do

princípio de realidade serve para a constituição da racionalidade econômica sob o

império do capitalismo. Agora, resta aos autores mostrar como esta subjetividade

moderna se impôs ao longo da história do ocidente. Para tanto, o próximo capítulo será

a exposição de uma “pré-história da subjetividade” que nos levará a este momento

inaugural da consciência do ocidente: a Epopéia de Ulisses, na Odisséia de Homero. É

neste momento em que o herói grego pro excelência aparece que Adorno e Horkheimer

encontrarão os vestígios arqueológicos do aparecimento do sujeito moderno.

100 WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Centauro, 2001, p. ´62 101 idem, p. 116 102 idem, p, 46 103 idem, p. 95 104 idem, p. 95

Page 47: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Adorno

Aula 5

Na aula de hoje, daremos continuidade à leitura da Dialética do Esclarecimento através

do comentário do primeiro excurso ao primeiro capítulo, “Conceito do Esclarecimento”.

Este primeiro excurso, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento” contém, sem dúvida, os

trechos mais conhecidos do livro. Trechos que se referem, sobretudo, à maneira

inesperada com que Adorno e Horkheimer transformarem a Odisséia, de Homero, na

descrição da ‘pré-história da subjetividade” moderna. Empreendimento fundamental por

transformar um dos textos fundadores da auto-consciência do Ocidente em documento

de confissão da natureza instrumental da razão. Neste sentido, a análise de um texto

literário transforma-se em peça central para a legitimação de uma crítica totalizante da

razão. Maneira, inclusive, de colocar em operação esta pressuposição metodológica

segundo a qual a filosofia devia voltar-se para objetos advindos dos campos empíricos

de saber (como pode ser a análise literária), mas para ver tais objetos como si signos

(Zeichen) a serem interpretados (Deutung).

Vimos como esta hermenêutica filosófica nada teria a ver alguma forma de

arqueologia do sentido. Como dirá Adorno, a tarefa da filosofia não consiste em mostrar

que a realidade é “portadora de sentido”, procurando com isto construir totalidades

através do recurso a alguma espécie de segundo mundo a ser descoberto através da

análise do mundo que aparece. A hermenêutica filosófica, para Adorno, nada teria a ver

com uma hermenêutica que procura reduzir as questões a elementos dados e conhecidos

presentes em um plano superior de inteligibilidade. Ao contrário, devemos compreender

que: “o texto que a filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”105.

Esta incompletude, contradição e despedaçamento será a marca da leitura que Adorno e

Horkheimer farão do texto por excelência do Ocidente, Odisséia, de Homero. Eles serão

atentos à pulsação contraditória entre afirmação da autonomia e submissão à lógica da

dominação, entre afastamento da natureza e queda na brutalidade do que nada conhece

de espiritual. Eles insistirão no despedaçamento de uma narrativa que, longe de ser a

afirmação de uma era na qual: “não há nenhuma interioridade, pois não há nenhum

exterior, nenhuma alteridade para a alma”106, é a exposição contínua do conflito entre

um Eu que procura se formar e as ameaças que, a todo momento, lhe fazem sair dos

trilhos. Por fim, eles perceberão a incompletude de um texto onde o fim não garante a

paz, mas o começo da necessidade de uma guerra contínua contra si mesmo, de uma

instabilidade sem término.

Notemos ainda que os dois excursos que compõem o livro são, na verdade,

comentários de textos literários: a Odisséia e Historie de Juliette, de Sade. Uma escolha

que não deixa de ser sintomática. Pois tudo se passa como se houvesse uma estranha

complementaridade entre estes dois textos aparentemente tão distantes entre si. Tudo se

passa como se a máquina montada na pré-história da subjetividade mostrasse seus

verdadeiros traços neste texto (Sade) que nos remete, de uma maneira extremamente

peculiar e aterradora, às expectativas de esclarecimento depositadas no Iluminismo.

Antes de entrar, de forma detalhada, na maneira com que Adorno e Horkheimer

lêem a Odisséia, vale a pena compreender um pouco melhor o sentido deste projeto de

procurar assentar a crítica da razão na constituição de uma “pré-história da

subjetividade” que, como alguns comentadores perceberam claramente, é, na verdade;

105 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 334 106 LUKÀCS, Teoria do romance, p. 26

Page 48: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

“pré-história do idealismo, da imanência, do espírito exaltando-se a si mesmo, da

subjetividade dominadora”107.

Já sabemos como os autores não vêem sentido em construir a História do Mundo

a partir da tentativa de analisar o processo de realização de categorias como “justiça e

liberdade”. Eles estão dispostos a levar às últimas conseqüências a afirmação de

Benjamin segundo a qual: “Todo documento de civilização é um documento de

barbárie”. Daí uma afirmação fundamental como:

Uma construção filosófica da História do Mundo teria de mostrar como mesmo

apesar de todo desvio e resistência, a dominação conseqüente da natureza impôs-

se de maneira cada vez mais decidida e passa a integrar toda a interioridade

humana (Innermenschliche)108.

Ou seja, há uma filosofia da história que é sensível ao preço pago quando

aceitamos esta dicotomia fundadora do idealismo e que distingue de maneira ontológica

história e natureza. Distinção que leva necessariamente ao rebaixamento da natureza à

dimensão da matéria (contraposta ao espírito), do corpo (contraposto à alma), do objeto

(contraposto ao sujeito), da necessidade (contraposta à liberdade), do conteúdo

(contraposto à forma doadora de sentido) e do animal (contraposto ao homem). Quando

isto ocorre, a razão se mostra como dominação do que não tem mais dignidade

substancial alguma. A este respeito, lembremos da conferência a respeito da “Idéia de

História Natural”. Neste texto de juventude, Adorno já apresentava o núcleo do

argumento que ganhará corpo na Dialética do Esclarecimento quando o problema do

destino da racionalidade for questionado fundamentalmente a partir do impacto do

projeto de desencantamento do mundo ou, se quisermos, de desdivinização da natureza.

Ele já alertava, à ocasião, para a necessidade de uma racionalidade forte o suficiente

para livrar-se de uma história incapaz de se reconhecer na natureza e de uma natureza

que aparece apenas a partir da categoria do mítico: “do que está sempre lá, agenciado

como um destino, ser dado que suporta (trägt) a história humana, que nela aparece

como o que é substancial em si’109. Pois se é verdade que a história serve como

dispositivo crítico à tendência de reificação e naturalização de estruturas e processos, a

natureza serve, por sua vez, de dispositivo crítico à hipóstase da história em teleologia

marcada pela marcha irrefreável do progresso.

Vimos na aula passada como esta crítica a uma racionalidade reduzida à sua

condição instrumental de instrumento de domínio técnico da natureza tinha como

dispostivo fundamental a insistência de que este mesmo processo de dominação era o

elemento constituvo para o aparecimento da categoria moderna de sujeito. Vimos ainda

como esta era uma estratégia necessária de crítica a partir do momento em que o sujeito

é compreendido como fundamento da razão moderna. Afirmar que a razão moderna é

centrada no sujeito implica dizer que a maneira com que compreendemos a categoria de

sujeito não poderia de deixar de ter conseqüências na maneira com que definimos o que

é um objeto da experiência, quais as condições para que algo aceda à condição de

objeto. Ou seja, trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da razão tem seu

solo na crítica àquilo que serve de fundamento às operações de categorização e de

constituição do objeto de experiências que aspiram preencher critérios racionais de

validade.

107 WIGGERHAUS, A Escola de Frankfurt, p. 356 108 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 208 109 ADORNO, Die Idee der Natursgechichte, p. 346

Page 49: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Na aula passada, foi questão de mostrar como Adorno e Horkheimer procuravam

apelar a uma teoria da gênese do Eu a fim de insistir que o impulso de criação do sujeito

moderno estaria vinculado a fatores psicológicos como: o medo do que não posso

controlar ou prever (por não se submeter à imagem de mim mesmo) e, por isto, a

dominação como peça fundamental dos processos de auto-conservação. Pois a

faculdade fundamental que constrói o campo no qual o Eu pode se afirmar é àquela

determinada pela força de auto-controle que tem dois operadores principais: o controle

da multiplicidade dos conteúdos pela unidade da forma e o controle da diferença pela

identidade. Este controle é auto-controle porque a experiência da multiplicidade e da

diferença resistentes à submissão pela forma e pela identidade é algo que inicialmente

se manifesta no interior da relação a si mesmo. Lembremos mais uma vez de afirmações

como:

O horror mítico do Esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre

meramente em conceitos e palavras não aclarados (unaufgehellen), como

presume a crítica semântica da linguagem, mas em toda exteriorização

(Äusserung) humana que não se situe no quadro teleológico

(Zweckzusammenhang) da autoconservação110.

Toda exteriorização que não se submeta à lógica da auto-conservação, não da

auto-conservação do Eu como sujeito biológico, mas como forma geral de representação

da experiência, será vista como objeto de horror. È por pensar na auto-conservação do

Eu como forma geral de representação da experiência que Adorno e Horkheimer podem

vincular crítica da racionalidade instrumental e crítica de uma razão que nada mais é do

que efetivação de princípios de auto-conservação. Pois a razão apenas luta para

conservar a qualquer preço um modo de organização da experiência que é seu próprio

fundamento.

Neste sentido, devemos levar aqui em conta um elemento extremamente

importante referente aos problemas legados pela fundamentação de uma crítica

totalizante da razão, como esta posta em operação por Adorno e Horkheimer. Vimos, na

aula passada, que os autores compreendiam a Dialética do Esclarecimento como

resposta possível à questão sobre: ‘porque a humanidade, ao invés de entrar em um

estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de

barbárie”111. Mas logo nos deparamos com um problema: onde fundamentar o que os

autores entendem por “estado verdadeiramente humano” que aparece como horizonte

para a indicação de uma nova espécie de barbárie, onde fundamentar tal estado a não ser

na própria razão com seus princípios de determinação da humanidade do homem?

Aqui podemos desvelar mais claramente um ponto maior. Para Adorno e

Horkheimer, o que nos impulsiona à crítica e que fundamenta a “esperança de condições

melhores” é um sentimento de “sofrimento geral”112. Ou seja, trata-se de fundar a crítica

exatamente naquilo que os sujeitos sentem como “restrição ou alteração das

possibilidades de vida pressupostas ‘normais’ ou ‘sãs’”113. No entanto, podemos nos

perguntar qual a natureza deste sofrimento que parece indicar as impossibilidades

sociais da realização de si.

Na verdade, o sofrimento que Adorno tem em vista é de ordem bastante

particular. Nosso sofrimento mais aterrador não estaria exatamente vinculado, por

110 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 111 ADORNO e H|ORKHEIMER, Dialetica do Esclarecimento, p. 11 112 Idem, p. 208 113 HONNETH, La société du mépris, p. 89

Page 50: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

exemplo, a alguma forma de sentimento de indeterminação resultante da perda de

relações sociais substancialmente enraizadas, estáveis, motivo sociológico clássico ao

menos depois de Durkheim e que não deixa de ecoar a perda da Sittlichkeit hegeliana,

que por sua vez, encontra eco da temática luckasiana da perda das relações substanciais

na modernidade. Nosso sofrimento mais aterrador seria este resultante do caráter

repressivo da identidade. Esta é a temática maior de uma certa filosofia francesa

contemporânea (Deleuze e Derrida) que encontra um eco profundo no interior da

experiência intelectual adorniana. Podemos mesmo dizer que para todos eles, a

modernidade não é apenas momento histórico onde: “não somente está perdida para ele

[o espírito] sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é

seu conteúdo”114. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento de

indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do Eu a

condição de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade objetiva. O que

neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido à auto-identidade subjetiva

enquanto princípio de fundamentação das condutas e de orientação para o pensar. Daí

porque uma das frases centrais da Dialética do Esclarecimento só pode ser:

O Eu que, após o extermínio (Ausmerzung) metódico de todos os vestígios

naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue,

nem alma e nem mesmo um Eu natural, constituiu, sublimado num sujeito

transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora

da ação115.

Estas afirmações são de extrema importância para a economia do texto. Os

autores estão afirmando que o preço a pagar para a constituição do sujeito

transcendental como fundamento das operações da razão moderna está no extermínio

metódico, na repressão reiterada do que, no interior do sujeito, não se submete à forma

lógica geral do Eu. Não querer mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma significa, ao

menos neste contexto, impôr-se através da vontade de se afastar de tudo o que não é

imediatamente logos, o que, no interior do si mesmo, pulsa no ritmo da não-identidade e

da alteridade. É tendo estes problemas em vista que devemos compreender o que estava

em jogo na leitura que Adorno e Horkheimer farão da Odisséia.

Ulisses: astúcia e sacrifício

O primeiro traço que salta aos olhos na leitura dos autores é a maneira de superar

a dicotomia entre romance e epopéia posta em circulação por Lukàcs. Primeiro, eles

insistem que a filologia clássica já havia mostrado como a simples assimilação entre

epopéia e mito era uma ilusão. De fato, as epopéias são narrativas (epos: a narrativa ou a

palavra do canto, poiesis: fazer) que se constituem a partir de mitos e lendas das

tradições populares orais. Mas elas já implicam organização relativamente estável da

narrativa (como a praepositio, a invocatio, in media res, a enumeratio e o epigrama) e

uma linguagem que, diferente da linguagem mítica já se coloca como representação

exotérica de um fato, e não evocação do sobrenatural através da linguagem.

Por outro lado, Adorno e Horkheimer são sensíveis ao fato na narrativa épica ser

normalmente organizada a partir dos feitos de um herói a fim de aproximar, de maneira

inesperada, a epopéia de um certo regime de “romance de formação” através da

passagem por provações, combates e vitórias. È desta forma que os autores podem

114 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 24 115 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41

Page 51: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

afirmar que o herói épico já é um “protótipo (Urbild) do indivíduo burguês”116 e que

traços fundamentais da forma romance já estariam presentes na epopéia. Neste ponto, é

digno de nota a distância que separam os autores de Lukàcs. Pois, para o último, a

epopéia seria a forma estética da totalidade imanente. Daí porque: “O sujeito da épica é

sempre o homem empírico da vida, mas sua presunção criadora e subjulgadora da vida

transforma-se, na grande épica, em humildade, em contemplação, em admiração muda

perante o sentido de clara fulgência que se tornou sensível e ele, homem comum da

existência cotidiana, de modo tão inesperadamente óbvio”117. Por outro lado, o romance

seria exatamente: “a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é

mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se

problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”118. Ou seja, haveria,

ente a epopéia e o romance, a distinção entre um mundo fechado e substancialmente

enraizado naquilo que um dia Hegel chamou de “eticidade” e “a imagem especular de

um mundo que saiu dos trilhos” e é por isto assombrado por sua própria indeterminação.

Adorno e Horkheimer querem relativizar tal dissociação ao lembrar que o texto

homérico é, ao mesmo tempo, a organização de mitos extraídos de lendas difusas e a

descrição da fuga dos sujeitos diante das potências míticas. Esta oposição entre o Eu

sobrevivente e as múltiplas peripécias do destino é a base da narrativa de Homero. È

exatamente pensando nisto que Adorno e Horkheimer poderão dizer:

“As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que

desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,

experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido

por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os

seus papéis. “Mas onde há perigo, cresce também a salvação”: o saber em que

consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da

experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o

sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente

à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida”119.

Como nos personagens do romance moderno, Ulisses se perde para poder se

encontrar, pois aqui a identidade do Eu é função da não-identidade, dos mitos

inarticulados. E não é um acaso que o “texto fundamental (Grundtext) da civilização

européia”120 seja exatamente a história de uma errância que parece nunca ter fim: “na

imagem da vida o tempo histórico desprende-se do espaço, o esquema irrevogável de

todo tempo mítico”121.

Este embaralhamento entre forma-romance e epopéia é fruto necessário da

tentativa de Adorno e Horkheimer em mostrar como as linhas da racionalidade do

espírito burguês começam antes do fim da Idade Média feudal. Proposição defensável

porque, para eles, mito e epopéia estilizam os princípios que serão a marca do

Esclarecimento: dominação e exploração. Uma referência importante para esta forma de

interpretar a epopéia é o Nietzsche de O nascimento da tragédia.

Neste livro, Nietzsche apresente seu conhecido esquema dualista referente a dois

princípios internos ao desenvolvimento das artes: o apolíneo e o dionisíaco. Enquanto o

116 Idem, p. 53 117 LUKÁCS, Teoria do romance, p. 48 118 Idem, p. 55 119 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991, p. 56 120 Idem, p. 55 121 Idem, p. 43

Page 52: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

primeiro seria o desenvolvimento ligado à entificação de um processo: “que só conhece

uma lei, o indivíduo, isto é a observação das fronteiras do indivíduo, a medida no

sentido helênico”122, o segundo seria marcado pela exatamente força de ruptura e

transgressão de todo principium individuationis. Homero seria, segundo Nietzsche, o

artista apolíneo por excelência e, por isto, a fonte do processo artístico universal ao qual

devemos nossa individuação.

Pensando em um esquema semelhante, Adorno e Horkheimer poderão mostrar

como todos os momentos principais da viagem de Ulisses são conflitos de um Eu que

procura afirmar sua autonomia e controle contra forças que parecem querem leva-lo

para esta indistinção da qual ele escapou. Seis momentos são privilegiados na análise

dos autores: a ilha dos Lotófagos, onde estes comedores de Lótus traziam uma

felicidade que aparecia como um narcótico que retira toda autonomia da vontade,

disposição para o empreendimento e capacidade de decisão; o encontro com o gigante

Polifemo que exige de Ulisses a astúcia capaz de enganar o mais forte que, no entanto,

ainda não sabe jogar com uma palavra que não designa mais diretamente a coisa; o

encantamento de Circe que, através do desregramento dos prazeres, transforma os

homens em animais fazendo-os regredir a um estado de indistinção entre humanidade e

animalidade; o canto das Sereias, momento maior do livro que sela o destino da arte

como promessa de felicidade diante da qual os sujeitos ficam na posição neurótica

daqueles que se proíbem um gozo que os atrai, daqueles presos entre a posição segura e

a nostalgia de um canto que só ecoa à distância; a passagem entre Cila e Caribde,

passagem que só é possível devido ao sacrifício que Ulisses faz de seis homens a fim de

salvar os restantes e, por fim, o aprisionamento no leito da ninfa Calipso.

Em todos estes desafios, Ulisses demonstra com o verdadeiro órgão do Eu em

sua luta de auto-conservação é a astúcia (List). Ulisses é astuto não apenas por saber

jogar com a ignorância e com as fraquezas daqueles que a ele se contrapõe. Ele é astuto

por saber operar mediações. Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar como a

astúcia é elemento indissociável do trabalho humano, ao menos segundo Hegel. Para

ele, a astúcia estava ligada à capacidade que o trabalhador tem de colocar entre si

mesmo e a força indomável da natureza um instrumento, ou seja, de instaurar uma

mediação entre ele e a natureza. Esta mediação através do instrumento implica

estabelecer uma ordem mecânica de implicações e relações que permite a dominação da

natureza. E , neste contexto, Adorno e Horkheimer lembrar que a primeira forma de

mediação social não era outra que o sacrifício. Sacrifício que, por sua vez, permite a

instauração da troca, do intercâmbio daquilo que é qualitativamente diferente. De onde

se segue um elemento fundamental na leitura que os autores fazem de Ulisses: ele é

astuto porque é capaz de dominar os deuses e a natureza através do sacrifício. Seja

através do sacrifício de seus homens (como no caso da passagem entre Cila e Caribde),

seja através do sacrifício de seus interesses mais imediatos em prol do desenvolvimento

do auto-controle (como comer os bois sagrados de Posseidon).

O sacrifício não é outra coisa que a imposição da ordem humana através de uma

comunicação simbólica. Os autores falarão de: “uma cerimônia organizada pelos

homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema

de veneração de que são objetos”123. De fato, o sacrifício enquanto imposição da ordem

humana não é outra coisa que a ilusão (Trug) que aniquila a particularidade singular do

objeto em nome do valor simbólico que ele suporta. Por isto que: “A substituição que

ocorre no sacrifício, exaltada pelos defensores de um irracionalismo nova moda

122 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 40 123 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 57

Page 53: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

(neumodische Irrationalisten), não deve ser separada da divinização do assassinato pela

apoteose do escolhido”124.

Ao falar dos “irracionalistas nova moda”, Adorno e Horkheimer pensam

sobretudo em Georges Bataille e Roger Caillois, autores que os dois conheceram através

de Walter Benjamin. Grosso modo, os dois visam fazer uma crítica totalizante da razão

moderna, mas através da recuperação do caráter fundador de vínculos próprio a

fenômenos sociais como o sacrifício, a festa e o erotismo. Tais fenômenos não podem

ser compreendidos se continuarmos analisando fatos sociais a partir da lógica utilitarista

baseada no afastamento do desprazer e na maximização do prazer. Lógica esta que seria

a única que nossas sociedades desencantadas conheceriam.

Contra este desencantamento, Bataille faz apelo à recuperação da força

disruptiva do sagrado. Um sagrado que não é solidário do estabelecimento sacramental

de regras, normas e leis de organização social, mas que, ao contrário, é o que só pode

manifestar-se através da suspensão do ordenamento social com suas estruturas de

organização de lugares, diferenças e com seu cálculo utilitarista de uso dos bens. Zona

de suspensão e indistinção capaz de realizar a exigência de: “Supressão do sujeito e do

objeto, único meio de não acabar na possessão do objeto pelo sujeito, ou seja, de evitar

a corrida absurdo da ipse querendo advir o todo”125. Supressão esta Bataille procurou

tematizar através de conceito como heterologia e gozo.

Bataille e Callois procuraram tal supressão em fenômenos sociais cuja

inteligibilidade exigiria a introdução de um outro campo conceitual com sua lógica

própria, um campo que desarticula as distinções estritas entre prazer e desprazer. Este

campo organiza-se através de uma noção bastante peculiar de “gozo”. Neste contexto,

“gozo” não significa o usufruto dos bens dos quais sou proprietário, mas algo

totalmente contrário, uma perspectiva de satisfação que não leva mais em conta os

sistemas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta continuamente com

experiências disruptivas. Exemplo privilegiado aqui é o que Bataille descreve através do

erotismo: “O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas

constituídas. Eu repito: destas formas de vida social, regulares que fundam a ordem

descontínua das individualidades definidas que nós somos”126.

De fato, a crítica de Adorno e Horkheimer é bastante clara, até porque, a crítica

do Eu na Dialética do Esclarecimento não visa a aniquilação das individualidades. Ao

contrário, trata-se de lembrar que: “enquanto os indivíduos forma sacrificados, enquanto

o sacrifício implicar a oposição entre a coletividade e o indivíduo, a impostura será uma

componente objetiva do sacrifício”127. Daí esta afirmação central segundo a qual o

sacrifício não recupera, através de uma restituição substitutiva, a comunicação imediata

(unterbrochene Kommunikation) interrompida pelo advento de um Eu que: “corta

exatamente aquela conexão flutuante com a natureza que o sacrifício do Eu pretende

estabelecer”128. Ao contrário, o sacrifício é signo de uma “catástrofe histórica”, já que

perpetua a separação através do estabelecimento do domínio do intercambiável e da

troca.

Por outro lado, Adorno e Horkheimer lembram que a própria constituição do Eu

funciona através da lógica do sacrifício. A fim de se submeter às exigências de auto-

conservação, o Eu deve aprender a sacrificar exigências imediatas de prazer em prol do

agenciamento de prazeres futuros. Isto significa aprender a calcular e submeter à lógica

124 Idem, p. 58 125 BATAILLE, L´expérience intérieure, p. 67 126 BATAILLE, L´érotisme, p. 25 127 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 58 128 Idem, p. 59

Page 54: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

do equivalente prazeres que são qualitativamente diferentes. Mas para que esta

submissão seja possível, o Eu deve se impor através do rompimento com esta

imediaticidade das sensações que Homero descreve tão bem através da passividade

narcótica dos lotófagos diante do prazer ou ainda desta “negação da natureza no

homem”.

Este rompimento é descrito por Adorno e Horkheimer como sacrifício. Pois: “o

eu que persiste idêntico e que surge com a superação do sacrifício volta imediatamente a

ser um ritual sacrificado duro, petrificado, que o homem se celebra para si mesmo

opondo sua consciência ao contexto da natureza”129. Isto é que leva os autores a falarem

da história da civilização como a história da introversão do sacrifício, ou antes, a

história da renúncia (Entsagung). Uma idéia que guia de maneira clara o livro que

provavelmente inspirou a leitura que Adorno e Horkheimer fazem de Homero: O mal-

estar na civilização, de Freud. O mesmo livro que visa mostrar como a função da

civilização era exatamente a de proteger os homens contra a natureza e ajustar suas

relações entre si. Função que a civilização cobrava através da renúncia constante

àquelas moções pulsionais que não se submetem ao princípio de unidade do vínculo

social.

Esta transformação do sacrifício em subjetividade é descrita de maneira

exemplar no canto XII da Odisséia. Aqui está a conhecida passagem do canto das

sereias. Circe fala a Ulisses: “

Há de as sereias primeiro deparar, cuja harmonia adormenta e fascina os que as

escutam/ Quem se aproprinqua estulto, esposa e filhos/ não regozijará nos doces

lares/ Que a vocal melodia o atrai às veigas,/ onde em cúmulo assentam-se de

humanos ossos e podres carnes. Surde avante;/ as orelhas aos teus com cera

tapes, ensurdeçam de todo. Ouvi-las podes / Contanto que do mastro ao longo

estejas/ de pés e mãos atado; e se, absorvido/ no prazer, ordenares que te

soltem/liguem-se com mais força os companheiros”130

Três elementos chamam a atenção de Adorno e Horkheimer nesta provação.

Primeiro, a transformação da promessa de felicidade enunciada pelo feminino em canto.

Por um lado, a força desta promessa só poderia ser enunciada pela boca de uma mulher,

já que ela: “provém da atração ou da saudade que continua exercendo a representação

de uma indistinção feliz entre o si (selbst) e o mundo, lembrança da indistinção entre o

recém-nascido e sua mãe segundo Freud; mas sucumbir à sedução dessa felicidade

também significa desistir da individuação e, portanto, arriscar a própria existência: os

viajantes que se entregaram às Sereias foram por elas devorados”131. Mas a redução

desta promessa ao canto implica, ao mesmo tempo, esvaziamento da vida social devido

a exigências de auto-controle e transformação da arte em inefetividade compensatória

dos sacrifícios exigidos por todo processo de individuação. “As Sereias recebem sua

parte, mas, na proto-hsitória da burguesia, isto já se neutralizou na nostalgia de quem

passa ao largo”132. Esta função social da arte como indicação nostálgica do que foi

perdido no processo de individuação é signo da impotência neurótica do sujeito

moderno, preso entre a vida ascética e a idealização da arte como volúpia. Como dirá

Adorno, melhor seria se ele fizesse o contrário.

129 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 60 130 HOMERO, Odisséia, Canto XII 131 GAGNEBIN, Resistir às sereias 132 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 64

Page 55: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Segundo, a divisão social do trabalho que esta possibilidade de fruição estética

pressupõe. Aos remadores não cabe nada a não ser tapar os ouvidos e continuarem o

percurso. Seu trabalho não permite nenhuma forma de gozo. Eles são a figura mais bem

acabada de até onde pode ir a renúncia. A eles, nem mesmo a experiência disruptiva da

arte está disponível. Resta apenas ouvir o que não remete a nada para além de si mesmo,

ou seja, esta produção sem diferença que Adorno e Horkheimer tematizarão no capítulo

II através das discussões a respeito da “indústria cultural”. Eles são a prova viva de que

“socialização radical significa alienação radical”. Uma alienação absolutamente clara

em uma afirmação central como:

A dominação do homem sobre si mesmo, que funda seu ser, é sempre

virtualmente a destruição do sujeito a serviço do qual ela ocorre, pois a

substância dominada, oprimida e dissolvida pela auto-conservação, nada mais é

senão o ser vivo (Lebendige), cujas funções configuram, elas tão-somente, as

atividades da auto-conservação, por conseguinte exatamente aquilo que na

verdade devia ser conservado133.

Estas colocações são centrais porque mostram como há uma clivagem

pressuposta entre este aparelho psíquico que dominação interna, que é o Eu, e o sujeito

que se vincula à dimensão da substância recalcada do vivente. Um conceito de vida não

mutilada funda aqui tanto a crítica social quanto um conceito de sujeito e de

individualidade que não se confunde diretamente com o Eu. Veremos melhor este ponto

na próxima aula.

Por fim, há um ponto extremamente relevante que Adorno e Horkheimer não

cessarão de lembrar e que diz respeito á maneira com que o conflito com a natureza

marca a forma com que o feminino aparece na Odisséia, sempre vinculado ao que deve

ser dominado (Circe, as sereias, Calipso). O feminino aparece como o princípio no

interior da vida social que parece colocar em cheque o afastamento da indiferenciação

com a natureza. Ele será o “representante da natureza” na sociedade burguesa. Não é

por outra razão que Calipso representa o pior de todos os perigos, a saber, a

impossibilidade de abandonar o leito de prazeres, de assumir os papeis sociais exigidos

porque, como dirá Freud, uma incompatibilidade entre o caráter particularista do amor e

as exigências de universalização da vida social parece ser inevitável.

Mas o preço não será outro que uma certa degradação do feminino que é o

princípio da degradação dos vínculos sociais a partir de uma lógica instrumental. Como

a vida afetiva não é mais o jogo de dissolução da individuação através de momentos de

simbiose e indiferenciação, mas a confirmação de papéis, ou ainda, a “instauração de

relações ordenadas para a reprodução sexual”134, então caberá a mulher um modo

determinado de alienação marcado por uma clivagem tão presente nos modos de escolha

de objetos de neuróticos. “A prostituta e a esposa são o complemento da auto-alienação

feminina na sociedade patriarcal”135. Como se esta fosse a prova mais radical do caráter

alienante da divisão entre natureza e cultura. Uma divisão que toda mulher submetida ao

regime patriarcal sente de maneira privilegiada.

133 Idem, p. 61 134 Idem, p. 75 135 Idem, p. 75

Page 56: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Adorno

Aula 6

Na aula de hoje, daremos continuidade à leitura da Dialética do Esclarecimento através

do comentário de seu segundo excurso. Com ele, entramos diretamente nas

considerações de Adorno e Horkheimer a respeito da filosofia moral. Se na dimensão

cognitiva da razão, a crítica operava através da tematização das relações de interversão

entre mito e esclarecimento, na dimensão prática o primeiro dispositivo será a

tematização das relações de interversão entre moralidade e perversão. Para tanto,

Adorno e Horkheimer farão um peculiar movimento de aproximação entre Kant e o

Marques de Sade.

Mas o que tal aproximação pode significar? Como dizia Adorno a respeito da

psicanálise: ela só é verdadeira lá onde ela exagera. De fato, a idéia de aproximar Kant e

Sade parece uma espécie de “exagero” retórico que não faria juz à complexidade do

pensamento moral kantiano. No entanto, sugiro lermos este dispositivo como uma

figura importante daquilo que devemos compreender por “crítica ao formalismo”

kantiano. Pois uma das dimensões fundamentais de tal crítica pode ser enunciada da

seguinte maneira: “É possível garantir que uma ação feita por amor ao dever, ou seja,

consistente com os critérios formais que o dever enuncia, não produzirá conseqüências

prejudiciais?”.

As estratégias de crítica ao formalismo procurarão, pois, mostrar como, em

certos casos, a simples remissão a um conjunto definido de procedimentos formais não

permite o esclarecimento do que deve ser feito. Neste sentido, fazer uma crítica do

formalismo significará afirmar que a fundamentação da ação moral através da pura

forma do dever não é capaz de fornecer um procedimento seguro de decisão a respeito

do conteúdo moral de minhas ações. Se mostro que duas proposições contraditórias

podem preencher, de maneira consistente, os mesmos procedimentos de universalização

sem contradição, categoricidade e incondicionalidade então serei obrigado a assumir

que o julgamento moral precisa apoiar-se em algo mais que sua pura forma.

No fundo, é um raciocínio semelhante que guia Adorno e Horkheimer em sua

crítica à moralidade kantiana. Ele deve ser compreendido como um desdobramento da

crítica hegeliana a respeito do formalismo da moralidade kantiana e sua incapacidade de

permitir nos orientarmos na conduta. Hegel insistiu, várias vezes, na maneira com que a

convicção de agir a partir do mero respeito a procedimentos gerais da ação podia ser

compreendido, no interior da vida social, de maneira completamente inversa àquela que

o agente esperava. Podemos dizer que Adorno e Horkheimer seguem este via dando

figura a esta moralidade invertida através de Sade.

Às voltas com o esquematismo

Se voltarmos os olhos para o texto Juliette ou Esclarecimento e moral, veremos como

ele começa a partir da afirmação canônica de Kant em “Was ist Aufklãrung?” onde o

esclarecimento é apresentado como a saída do homem de uma minoridade da qual ele

mesmo é responsável. Esta saída só seria possível através da constituição de um

entendimento não dirigido por outro, uma lei que dou para mim mesmo em situação de

autonomia. Ou seja, Adorno e Horkheimer partem da definição moderna de autonomia

como a capacidade dos sujeitos porem para si mesmos a sua própria Lei moral,

transformando-se assim em agentes morais capazes de se auto-governar. De uma certa

forma, os autores desenvolvem seu texto como uma crítica às inversões que esta noção

Page 57: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

de autonomia não seria capaz de evitar. Eles querem mostrar como a vontade de

autonomia é paga pelo medo em relação à heteronomia, medo em relação ao que não me

é radicalmente idêntico. Tentemos reconstruir o argumento tal como ele aparece no

texto.

Adorno e Horkheimer querem mostrar que tal autonomia aparece

necessariamente como “controle de si” solidário de uma certa rigidez psicológica,

inibição de afetos, e clivagem entre exigências racionais e abertura afetiva. Tal controle

de si seria, na verdade, um modo de bloqueio daquilo que poderíamos chamar de

“expressão de si” (levando em conta aqui a necessidade de reconstruir a noção mesma

de expressão). No entanto, ao invés de discutirem aspectos da Crítica da razão prática

que poderiam apoiar tal problematização, os autores preferem começar fazendo uma

crítica do papel desempenhado pelo esquematismo dos conceitos puros do entendimento

tal como ele aparece na Crítica da razão pura:

A razão é um ‘poder ... de derivar o particular do universal’. A homogeneidade

do universal e do particular é garantida, segundo Kant, pelo ‘ esquematismo do

entendimento puro’. Assim se chama o funcionamento inconsciente do

mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o

entendimento136.

A possibilidade de articulação entre a dimensão prática e a dimensão cognitiva

da razão será justificada mais a frente, quando Adorno e Horkheimer afirmarem:

O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo

que os fatos são previstos a partir do sistema, assim também os fatos devem por

sua vez confirmá-los. Os fatos porém, pertencem à práxis137.

Ou seja, os autores acreditam não ser possível conservar a objetividade do

conhecimento aceitando que as condições de possibilidade da intuição e do sentimento

são produções subjetivas, conservando distinções entre espontaneidade e receptividade.

O problema cognitivo kantiano pede uma teoria da ação social capaz de expor como a

ação social estrutura os fatos previstos e confirmados pelo sistema. Este “narcisismo da

razão” não deixa de adiantar posições contemporâneas como esta que encontramos em

John McDowell, anos mais tarde: “Kant’s idealism degenerates into subjective idealism

not because of relativity to ‘our conceptual scheme’ but because it contains a subjective

idealism about spatiality and temporality, a subjective idealism that reflects their being

conceived precisely as external to apperceptive unity, and so external to anything one

could call a ‘conceptual scheme”’138. Neste sentido, a peculiaridade de Adorno e

Horkheimer encontra-se no fato deste subjetivismo a respeito da espacialidade e da

temporalidade ser, no fundo, um sociologismo, como fica claro em uma aparente

boutade como:

Os sentidos já estão determinados pelo aparelho conceitual antes que a

percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria como a qual ele

o produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood

realizou conscientemente139.

136 ADORNO e HORKHEIMER, p. 82 137 Idem, p. 82 138 McDOWELL, Having the world in view, Harvard University Press, 2009, p. 84 139 ADORNO, Theodor; e HORKHEIMER, Max; ibidem, p. 83

Page 58: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mas vejamos mais claramente a estrutura do argumento de Adorno e

Horkheimer a fim de compreendermos melhor os meandros de sua estratégia.

Sabemos que Kant tenta responder à questão sobre como conceitos puros do

entendimento podem ser aplicados a fenômenos em geral fazendo apelo às funções de

um esquema transcendental. O esquema seria uma regra, um produto transcendental da

imaginação que permite a produção de significado (Bedeutung) através do

estabelecimento de relações entre as categorias e o material empírico da intuição. A

imaginação em Kant é necessariamente poder sintético do diverso da intuição sensível

(synthesis speciosa). O esquema transcendental é uma representação mediadora, tanto

homogênea às categorias (na medida em que ele é universal, regra a priori e visa a

unidade do geral) quanto aos fenômenos (na medida em que ele unifica diretamente as

determinações particulares da sensibilidade fornecendo o objeto que se submeterá à

apreensão categorial). Kant chega a falar do esquema como: "conceito sensível de um

objeto"140 (sinnliche Begriff eines Gegenstandes), isto a fim de sublinhar seu caráte

rmediador.

Adorno e Horkheimer insistem como tal função do esquematismo demonstra

que: “o conhecimento consiste na subsunção a princípios”141. Tal subsunção, que Kant

vê como uma harmonização, apareceria como a figura de um princípio de dominação da

natureza pelo sistema, do diverso da intuição sensível por protocolos de unidade e

sistematicidade. No entanto, ao invés de discutir diretamente as razões que nos levariam

a criticar o caráter mediador do esquematismo transcendental (um pouco como fez

Heidegger em Kant e o problema da metafísica), Adorno e Horkheimer preferem passar

a um argumento psicológico. Ele consiste em dizer que a harmonização prometida pelo

esquematismo transcendental seria estratégia de dominação da natureza tendo em vista a

auto-conservação do sujeito. Tal auto-conservação seria o verdadeiro objetivo da saída

do homem da minoridade.

O uso desta categoria psicológica (a auto-conservação ou, se quisermos, a pulsão

de auto-conservação tal como aparece em Freud) se justificaria por supostamente haver

uma “relação obscura” (unklaren) na Crítica da razão pura entre o Eu empírico e o Eu

transcendental. Tudo se passa como se os autores quisessem dizer que, se o Eu

transcendental é, no fundo, um princípio formal de unidade capaz de fornecer as

condições de possibilidade para a constituição de objetos da experiência, é porque tal

princípio seria o meio de realização de exigências empíricas de auto-conservação.

Adorno e Horkheimer relativizam este ponto, lembrando que na figura do Eu

transcendental pulsa também a idéia de uma convivência baseada na liberdade. Pois

enquanto sujeito transcendental eu julgo não apenas como membro de uma comunidade

com seus sistemas de crenças, mas como membro de uma espécie de comunidade

universal virtual na qual os seres humanos estariam ligados pela razão. No entanto:

Mesmo o Eu, a unidade sintética de apercepção, a instância que designa em Kant

o ponto mais alto ao qual se deve vincular toda a lógica, é, na verdade, tanto o

produto quanto a condição da existência material142.

Esta duplicidade deve ser levada em conta. O sujeito transcendental guarda o desejo de

não limitarmos nossa existência àquilo que atualmente somos, àquilo que atualmente

nos determina. Ele é a expressão de que nada nos obriga a nos contentar com a imagem

140 KANT, idem, A 146/B 186 141 ADORNO e HORKHEIMER, p. 100 142 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 94

Page 59: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

atual do homem, com suas configurações locais e suas determinações antropológicas.

Expressão de um desejo do que ainda não tem imagem e figura. No entanto, há de se

quando tal transcendentalidade se expressa sob a forma do dever ela se torna

dependente de um modelo de práxis que tece relações profundas com a reprodução das

condições atuais de existência material.

Isto talvez nos explique porque, além de relativizarem a distinção entre empírico

e transcendental, Adorno e Horkheimer dirão ainda que tais exigências empíricas de

auto-conservação são, por sua vez, inscritas em uma situação social precisa, elas são

exigências próprias a uma forma social de vida historicamente determinada sob as

condições de existência da sociedade capitalista. Temos então um duplo movimento que

consiste em insistir, por um lado, na gênese psicológica do sujeito transcendental e, por

outro, na gênese social das condições psicológicas do sujeito transcendental. O que

explica, por sua vez, uma afirmação aparentemente temerária como:

A verdadeira natureza de esquematismo, o ato de derivar o universal e o

particular, conceito e caso um do outro, demonstra-se claramente na economia

atual como interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da

manipulação e da administração143.

De fato, tais afirmações não são imediatamente claras. Afinal, em que o modo de

dedução do sujeito transcendental seria dependente de exigências empíricas de auto-

conservação? E, principalmente, que exigências são estas que seriam geradas no interior

da experiência social das sociedades capitalistas?

Unidade

Tentemos entender inicialmente o primeiro ponto. Em seu curso sobre a Crítica

da razão pura, Adorno enuncia a seguinte frase : “Na Alemanha, a alma é muito

refinada para ter algo a ver com a psicologia”144. O alvo era a desqualificação kantiana

de toda psicologia racional possível. Desqualificação que nos mostra como o que é da

ordem da psicologia nada poderia nos dizer a respeito de um conceito transcendental de

sujeito, fundamento da possibilidade de toda normatividade racional. Kant não cansa de

afirmar que todos os modos de consciência-de-si no pensamento são simples funções

lógicas e não há sentido algum em se perguntar sobre a gênese empírica ou psicológica

do que é função lógica e forma geral de representação. “Daqui se infere”, dirá Kant, “a

impossibilidade de explicar pelos princípios do materialismo a minha natureza como

sujeito simplesmente pensante”145.

Enquanto forma da representação em geral, sabemos que a consciência é o ato

espontâneo de unificar o diverso da experiência sensível a partir de um princípio de

ligação (Verbindung) que o sujeito já encontra em si mesmo. Pois:

não podemos representar algo como ligado no objeto se nós não o tivermos

ligado previamente e, entre todas as representações, a ligação é a única que não

143 Idem, p. 102 144 Idem, Kants “Kritik der reinen Vernunft”, op. cit., p. 292. 145 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, op. cit., B 420. Desde sua juventude, Adorno critica tal

impossibilidade em Kant. Basta lembrarmos de afirmações como: “O ´Eu penso´ não significa apenas a

unidade formal de um sujeito do representado no pensamento (=x), mas a unidade atual das minhas

vivências (Erlebnisse) na consciência empírica (Bewsstseinverlauf)” (ADORNO, Theodor; Der Begriff

des Unbewussten in der tranzendentalen Seelenlehre In: Philosophische Frühschriften, op. cit., p. 163

Page 60: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

pode ser dada pelos objetos, mas só pode ser realizada pelo próprio sujeito,

porque é um ato de sua espontaneidade146.

No entanto, esta ligação pressupõe a representação da unidade sintética do diverso

construída a partir de aceitação não-problemática de princípios de identidade, síntese,

unidade e diferença. Estes princípios formais de estruturação do campo da experiência

só podem aparecer ao sujeito de maneira não-problemática porque o próprio sujeito

seria o locus de constituição, a operação que permite constituir tais princípios. Pois

devemos tirar todas as conseqüências do fato do fundamento da regra de unidade

sintética do diverso da experiência ser inicialmente fornecida pelo modo de

imediaticidade à si da consciência-de-si. Devemos tirar as conseqüências do fato da

unidade sintética de apercepção ser: “o ponto mais elevado a que se tem de suspender

todo o uso do entendimento, toda a própria lógica e, de acordo com esta, a filosofia

transcendental: essa faculdade é o próprio entendimento”147.

Tal fato permitirá Adorno afirmar que as representações devem se estruturar a

partir de um princípio de identidade e de organização de distinções categoriais que é, na

verdade, a projeção da imagem do Eu penso. Neste sentido, Adorno é sensível a esta

maneira com que Kant permite a entificação transcendental de um conceito de

experiência construído a partir da auto-reflexão solipsista e da elevação da unidade (e,

por conseqüência, de identidade) a algo como uma premissa metafísica. Isto fica claro

em afirmações como:

“O conceito [kantiano] de unidade nunca é discutido. Na verdade, ele representa

o cânon a partir do qual o todo pode ser julgado. O conhecimento é uno e este

uno tem primazia sobre o múltiplo : se quisermos, eis aqui o pressuposto

metafísico da filosofia kantiana”148.

No entanto, este pressuposto metafísico seria, no fundo, outro nome para o

desconhecimento da maneira que uma experiência empírica da consciência psicológica

serve de base para a gênese da consciência transcendental. Adorno acredita que um

certo recurso à Freud poderia demonstrar como tais princípios seriam expressão de uma

certa metafísica da identidade problemática e repressiva, ou ainda, fundamentos de uma

vida mutilada (como dirá Adorno, uma « beschädigten Leben ») entificada, diríamos

nós, em um senso comum. Neste sentido, podemos mesmo dizer que através do recurso

à “psicologia” freudiana Adorno poderia mostrar os vínculos entre um certo regime

social de identidade e as exigências individuais de auto-conservação. Isto pode nos

explicar uma afirmação como:

Por detrás dos bastidores do sistema kantiano, esperava-se que o conceito

supremo da filosofia prática coincidisse com o conceito supremo da filosofia

146 KANT, Immanuel; ibidem, B 130 147 Idem, B 134. Lembremos ainda desta afirmação da primeira edição da Crítica da razão pura, onde

Kant afirma: “A unidade, que constitui necessariamente o objeto, não pode ser coisa diferente da unidade

formal da consciência na síntese do diverso das representações” (Idem, A 105) 148 ADORNO, Theodor; Kants “Kritik der reinen Vernunft”, op. cit.., p. 299. Ou ainda: “A razão [em

Kant] fornece apenas a idéia da unidade sistemática, os elementos formais de uma sólida conexão

conceitual” (ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 81. Adorno pensa principalmente

em afirmações como: “Que o eu da apercepção e, por conseguinte, o eu em todo o pensamento seja algo

de singular, que não se possa decompor numa pluralidade de sujeitos e que designe, por conseguinte, um

sujeito logicamente simples, eis o que já se encontra no conceito do pensamento e é, consequemente, uma

proposição analítica” (KANT, Immanuel; idem, B407)

Page 61: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

teórica, com o princípio do eu que tanto funda teoricamente a unidade quanto

controla e integra praticamente as pulsões149.

A afirmação é aqui bastante clara. Haveria um modo de síntese e de integração

pulsional no campo prático da consciência psicológica, modo de integração

fundamentalmente vinculado a exigências de auto-conservação, que serviria de modelo

para a constituição do regime de síntese que determina os processos formais de ligação

do diverso e de unidade próprios à consciência transcendental. O Eu funda teoricamente

a unidade da mesma forma que ele integra praticamente as pulsões. Pois auto-

conservação é submissão de si ao princípio de identidade.

Se aceitarmos este esquema, podemos dizer que, segundo Adorno, quando não

somos capazes de reconhecer o não-idêntico no interior da vontade que se quer livre,

quando reduzimos esta não-identidade à condição de resto patológico que não se

conforma a uma vontade pensada como logos puro, nós perdemos a capacidade de

reconhecer a dignidade do que é não conforme à pura forma da identidade no interior da

ação. Nós nos satisfazemos com a pura forma da identidade, o que é a condição para

intuir o ser: “sob o aspecto da manipulação e da administração”150.

Kant e Sade

Feito isto, Adorno e Horkheimer podem passar diretamente à crítica da moralidade

kantiana. Eles começam por afirmar:

As doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho da tentativa desesperada

de colocar no lugar da religião enfraquecida um motivo intelectual para

perseverar na sociedade quando o interesse falha151.

Ou seja, a queda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos pede o

desenvolvimento de uma reflexão moral capaz de abrir o sujeito para motivações que

não se resumam ao sistema individual de interesse. Daí porque, por exemplo, a ética

kantiana coloque-se tão claramente em confrontação com perspectivas utilitaristas. O

respeito à Lei moral deve se fundar em algo outro do que o interesse material ou o

cálculo utilitarista. Mas, com a progressão do “pensamento calculador” em todas as

esferas da vida social, impulsionado pelo desenvolvimento da concentração econômica,

a dimensão libertária do respeito à Lei mostra sua fragilidade. Resta apenas a dimensão

instrumental de um auto-controle travestido de auto-preservação. Dimensão que mostra

como: “a razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objetivos, seu

elemento é a coordenação”152 e que visa formar uma organização integral da vida

desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado.

No entanto, Adorno e Horkheimer não parecem muito justos com Kant neste

ponto. A razão prática kantiana reconhece não apenas imperativos formais ligados às

exigências de universalidade sem contradição, de categoricidade e de

incondicionalidade. Ela insiste na exigência substantiva de tratar outros sujeitos como

fins em si mesmo, e não como meios para meus interesses, submetendo a Lei ao amor-

próprio. Podemos, entretanto, afirmar que tal imperativo kantiano é desprovido de

sentido. Pois, em algum nível, o outro é sempre meio para meu interesse, nem que seja

149 ADORNO, Dialética Negativa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 243 150 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 83 151 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 84 152 Idem, p. 87

Page 62: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

interesse de reconhecimento, de acolhimento, de segurança, de desejo e de afeto.

Impedir genericamente que o outro seja tratado como meio é uma proposição vazia de

sentido que simplesmente inviabilizaria toda e qualquer relação humana. Ou seja, ela

simplesmente não serve para descrever a dinâmica necessária e corrente dos vínculos

entre seres humanos. Lembremos que não é necessariamente degradante ser o

instrumento do desejo do outro. Certamente, muito pior é não ser capaz de aparecer

como objeto do desejo do outro.

Este é o quadro traçado por Adorno e Horkheimer para a abordagem da obra de

Sade. A partir, principalmente, do comentário de Histoire de Julliete, os autores

procuram mostrar como a literatura libertina de Sade acaba por desvelar os aspectos

destrutivos da noção moderna de autonomia. Por isto, eles poderão dizer ao final:

Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não

tentaram distorcer as conseqüências do esclarecimento recorrendo a doutrinas

harmonizadoras. Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação

mais íntima com a moral do que com a imoralidade153.

Esta última frase é a maneira frankfurtiana de insistir na crítica ao formalismo

moral. Se a razão formalista pode ter uma ligação tanto com a moralidade quanto com a

imoralidade ë porque a simples remissão a um conjunto definido de procedimentos

formais não permite o esclarecimento do que deve ser feito. Aproximar Kant e Sade é

maneira de mostrar como duas proposições contraditórias podem preencher, de maneira

consistente, os mesmos procedimentos de universalização sem contradição,

categoricidade e incondicionalidade.

De fato, Adorno e Horkheimer, ao aproximar Kant e Sade, trabalham como

quem acredita que a satisfação com a pura forma da Lei é a essência da perversão como

patologia social. É isto que Adorno tem em vista ao afirmar que: “a doutrina do

imperativo categórico transformou a renúncia [pulsional] em fetiche”154 [já que o

vínculo à Lei não é sustentado por nenhuma eticidade substancial].

A perversão não deve ser compreendida aqui como simples identificação de

desvios de comportamento sexual, mas como um modo particular de relacionamento à

Lei moral baseado na inversão de seu sentido pressuposto. Pois a incidência de

comportamentos ligados à polimorfia da sexualidade não é condição suficiente para

determinar um diagnóstico de perversão. Da mesma forma, não há diferença entre

fantasmas neuróticos e cenários perversos, já que não há fantasmas exclusivos dos

perversos (o que Freud já havia nos demonstrado em Bate-se em uma criança). “O

fantasma perverso não é a perversão”155. Mas se o acesso compreensivo aos fantasmas

perversos não nos fornece a estrutura da perversão é porque esta é fundada em uma

relação particular do sujeito à Lei. Relação peculiar por basear-se em modos de seguir

as injunções da Lei sem, com isto, produzir disposições de conduta que normalmente se

seguem do respeito à Lei156. Neste sentido, a perversão (e essa interpretação não deixa

de nos remeter ao sentido primeiro do termo) é uma interversão entre a Lei e os casos

que normalmente lhe seriam conformes.

No entanto, é certo que, se Kant soubesse que no século XX sua filosofia prática

encontraria críticos que a acusariam de não ser capaz de impedir a interversão da

153 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 111 154 ADORNO, Theodor, Problemeder Moralphilosophie, op. cit., p. 139 155 LACAN, Jacques, Seminaire VI, sessão de 24/06/59 156 Tomo a liberdade de remeter essas discussões sobre a estrutura da perversão a “A perversão no interior

da dialética do desejo”. In: SAFATLE, Vladimir; A paixão do negativo¸op. cit.

Page 63: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

moralidade em perversão, ele teria certamente achado isto cômico. Pois Kant concebera

uma réplica possível a críticas desta natureza. Para ele, o ato de transgredir a Lei já

demonstrava como o perverso aceitava a realidade objetiva de uma lei: "que ele

reconhece o prestígio ao transgredi-la"157. Quer dizer, ao transgredir eu reconheço a

priori a presença da Lei em mim mesmo. Eu apenas não sou capaz de me liberar da

cadeia do particularismo do mundo sensível. O desejo de transgressão apenas funciona

como prova da universalidade da Lei.

No entanto, Adorno insiste que a natureza do desafio sadeano é de uma ordem

mais complexa. Para ele, os personagens de Sade eram impulsionados pela obediência

cega a uma Lei moral estruturalmente idêntica ao imperativo categórico kantiano. O

que lhe permitia dizer que, neste sentido:

Juliette, psicologicamente falando, não encarna nem a libido não sublimada,

nem a libido regredida, mas o prazer intelectual pela regressão, amor

intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas.

Ela ama sistema e conseqüência. Ela maneja excelentemente o órgão do

pensamento racional158.

Juliette não está acorrentada ao particularismo da patologia de seus interesses; ela

também age por amor estrito à Lei.

Isto nos explica, por exemplo, porque Kant e Sade partilham uma noção de

Universal fundada através da mesma rejeição radical do patológico. Ou seja, através da

mesma desconsideração pelo sensível. Pois Sade também está à procura de uma

purificação da vontade que a libere de todo conteúdo empírico e de todo vínculo

patológico aos objetos, de toda fixação de objeto. De onde se segue, por exemplo, o

conselho do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os

homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos

efeitos de uma reflexão sã”159. Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe o

abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de Dolmancé à

Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas

afeições"160.

Isto nos explica porque Sade, tal como Kant, eleva a apatia a pressuposto

indispensável da virtude e vêem, na compaixão, um sentimento que desvirtua a ação

moral. Os carrascos de Sade executam de maneira apática a Lei, sem deixar-se guiar por

prazeres sensíveis. Como se fosse sempre questão de negar a efervescência do prazer

sensível ligado ao Eu, a fim de dar lugar ao calor do poder demonstrativo da Lei. A

apatia (assim como a crítica à compaixão) aparece como negação radical do desejo

ainda ligado às escolhas patólogicas de objeto, negação daquilo que Adorno chamará de

afinidade mimética com o objeto. Deleuze fala com propriedade da apatia sadiana

como : “o prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e de negar o próprio Eu

[empírico]”161.

Sobre este ponto, Adorno e Horkheimer reconhecem, por um lado que a crítica

da compaixão, ou seja, a crítica da moralidade dos sentimentos, tem um conteúdo de

verdade, já que a compaixão tem um aspecto que não coaduna com a justiça, a saber,

seu particularismo:

157 KANT, Immanuel, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 455. 158 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max ; ibidem, p. 102 159 SADE, D.A.F. ; La philosophie dans le boudoir, Paris : Gallimard, 1975, p, 172 160 Idem, p. 83 161 DELEUZE, Gilles, Présentation de Sacher-Masoch, op. cit., p. 27

Page 64: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

A compaixão confirma a regra da desumanidade através da exceção que ela

pratica. Ao reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a

injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria abrandar,

como algo inalterável162.

Ou seja, Adorno e Horkheimer criticam na compaixão a resignação do abandono

da universalidade, o que nada tem a ver com o culto ao prazer proporcionado pela

dureza, que eles encontram na crítica nietzscheana e sadeana à compaixão. Ao menos

neste ponto, eles estão próximos de Kant.

Por fim, tal incondicionalidade e indiferenciação do desejo sadeano em relação

ao objeto empírico nos leva a uma máxima moral que tem pretensões universais

análogas ao imperativo categórico kantiano. Trata-se do direito ao gozo do corpo do

outro. Sade dirá que: "todos os homens têm um direito de gozo igual sobre todas as

mulheres", isto sem esquecer de completar afirmando que, naquilo que concerne às

mulheres: "quero que o gozo de todos os sexos e de todas as partes de seus corpos lhes

seja permitido, tal como aos homens”163. Este gozo não é ligado ao sensível, já que

desconhece fixação de objeto, mas à pura forma da Lei.

No entanto, podemos nos perguntar: o que esconde este gozo pela pura forma da

Lei? Ele esconde a crença em uma identidade absoluta entre a Lei moral e a

consciência. Dolmancé também crê, como Kant, que não há nada mais fácil do que

julgar o que devemos fazer a partir da Lei que guia a conduta. Lei: "escrita no coração

de todos os homens"164. É neste sentido que devemos compreender a afirmação de

Adorno e Horkheimer:

Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o

conhecimento e o plano, que imprime o caráter de uma inescapável

funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas

pausas para respiração, Sade realizou empiricamente um século antes do

advento do esporte"165.

Devemos ver aqui o reconhecimento de um princípio de identidade entre Lei e forma

geral do ato. Ou seja, o que une Kant e Sade, ao menos segundo Adorno (e também

segundo Lacan que, neste ponto, está bastante próximo do filósofo alemão – de fato,

todo o aparato interpretativo aqui mobilizado para dar conta da leitura de Adorno é

simétrico ao que utilizei anos atrás para dar conta de Kant com Sade, de Lacan) é a esta

maneira de determinar a validade da ação através de um desejo de identidade, outra

forma de ver a ação como defesa contra o medo da indeterminação e do caos. “Fora

desta forma, vocês só terão o caos...”, dizia Deleuze a respeito do transcendental

submetido à forma do Eu como fundamento. Esta afirmação pode, por um lado, nos

lembrar como as exigências de autonomia acabaram por se vincular ao pathos do medo

da indeterminação e do caos através de um desejo de identidade e coesão das condutas.

Por outro, podemos nos perguntar se esta estrutura psicológica de medos e desejos não

162 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 98 163 SADE, D.A.F.; ibidem, p. 227. 164 Idem., p. 199 165 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 87. Lembremos também de Deleuze que

afirma: “Quando Sade invoca uma Razão analítica universal para explicar o mais particular no desejo,

não devemos ver aí a simples marca de sua dívida para com o século XVIII. É necessário que a

particularidade, e o delírio correspondente, sejam também uma Idéia da razão pura” (DELEUZE, Gilles;

ibidem, p. 22).

Page 65: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

fornece o impulso que consolida uma conduta que, através de certo modo de

constituição transcendental de objetos, visa a implementação de práticas de dominação

da natureza interna e externa. Daí a questão de saber se uma regulação racional da ação

fundada na articulação conjunta dos conceitos de: vontade livre, autonomia do Eu, Lei

como pura forma do dever, distinções estritas entre sensível e inteligível, dicotomias

entre natureza e causalidade pela liberdade não seria, no fundo, uma patologia, uma

forma mutilada de vida na qual as aspirações de racionalidade se invertem facilmente

em perversão e as exigências de autonomia escondem uma forma astuta de

heteronomia.

Desta forma, a ação moral animada pelo desejo de identidade (a verdadeira

questão presente na crítica do “formalismo” kantiano) perde sua capacidade em

distinguir-se da perversão. Pois, ao menos neste ponto, a única diferença entre Sade e

Kant é que, no primeiro, é a Natureza que impõe a Lei. Mas se trata de uma natureza

que esconde, para-além do conceito de movimento vital onde se articulam

conjuntamente criação e destruição, uma natureza primeira concebida como poder

absoluto do negativo, como pura forma auto-idêntica que sacrifica todo objeto, e não

como espaço do não-idêntico, como procura Adorno. Assim, tanto a

transcendentalidade de Kant quanto o materialismo de Sade, a priori divergentes,

podem se encontrar na mesma crença da identidade entre razão e consciência.

Dolmancé tem a Lei da Natureza em seu coração; o mesmo coração que porta a Lei

moral do sujeito kantiano. Só que neste coração, Adorno não cansará de dizer, pulsa

uma patologia.

Por fim, devemos insistir que a crítica adorniana não nos leva necessariamente a

alguma forma de niilismo moral resultante da impossibilidade de estabelecer critérios

para a valoração da ação “intencional” individual. Adorno formulará um critério moral

que pode ser enunciado da seguinte forma: o verdadeiro ato moral é aquele capaz de

deixar-se guiar pelo afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposição desta

natureza é temerária por permitir, inicialmente, várias interpretações. Pois podemos

compreender este afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos

atos são guiados pelo cálculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como

um imperativo ligado a formas de política da vitimização (os sujeitos da ação devem ser

vistos inicialmente como vítimas em potencial).

Page 66: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 7

Na aula de hoje, continuaremos o comentário da Dialética do esclarecimento através da

leitura de seu segundo capítulo, cujo título correto seria Indústria cultural:

Esclarecimento como logro (Betrug) das massas. Depois de expor o processo de

interversão do conceito de Esclarecimento em dominação através do recurso a uma

antropologia e a uma filosofia alargada da história, Adorno passarão, no segundo e

terceiro capítulos de seu livro, à maneira com que esta razão reduzida à condição de

racionalidade instrumental opera nas dinâmicas sociais da contemporaneidade. Para

tanto, o segundo capítulo versará sobre o campo da cultura, enquanto o terceiro dirá

respeito à política.

Esta escolha da cultura tem uma significação dupla. Primeiro, trata-se de mostrar

como a esfera da cultura de massa transformou-se no núcleo dos processos de

socialização e produção de individualidades. Desde os anos trinta, o Instituto de

Pesquisas Sociais desenvolvia pesquisas a respeito das modificações estruturais na

esfera da família devido ao declínio da autoridade paterna166. Neste contexto, eles

insistiam que processos de socialização e construção de ideais anteriormente vinculados

ao núcleo familiar tendiam a ser operados pelo setor mais economicamente organizado

da cultura.

Segundo, trata-se de mostrar como a produção cultural transformou-se em um

dos setores mais avançados da produção econômica no capitalismo tardio. Daí a

necessidade de constituir o conceito de “indústria cultural”, que aparece pela primeira

vez exatamente neste ensaio. O conceito visa mostrar não apenas as mutações pelas

quais a cultura passou na sociedade industrial, sendo agora objeto das mesmas técnicas

industriais e de vendas utilizadas para a maximização do lucro na produção de qualquer

outra forma de produto. Ele visa lembrar também como a cultura é atualmente peça

fundamental dos processos de auto-valorização do Capital. À sua forma, Adorno e

Horkheimer já indicam a transformação do capitalismo em “capitalismo cultural”, ou

seja, capitalismo no qual a cultura desempenha um papel econômico fundamental.

Cultura e oligopólios

Adorno e Horkheimer começam o texto criticando a tese weberiana da

autonomização das esferas sociais de valores devido a perda da força unificadora das

construções mítico-religiosas. Daí a afirmação:

Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a

dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social

e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião

encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere

a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um

sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto167.

Ou seja, a cultura de massa aparece como poder unificador da dinâmica de

funcionamento das esferas sociais de valores e de submissão da diversidade à lógica da

identidade e da semelhança. Mas para que isto fosse possível, foi necessário que a

cultura se constituísse em um grande sistema unificado de produção. Cinema, radio,

televisão: todas estas manifestações culturais devem estar submetidas à mesma lógica

de produção e aos mesmos detentores dos meios de produção cultural. Lembremos

166 Ver, por exemplo, HORKHEIMER, Max; Autoridade e família 167 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 113

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como Adorno e Horkheimer, ao refletirem sobre a estrutura monopolista da industria

cultural, afirmarão:

Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um

volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as

diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria cultural

atesta a unidade em formação da política” (ADORNO e HORKHEIMER, 1991,

p. 116).

Tal oligopolização que só se agravaria com o passar das décadas. A partir dos anos 90, a

mídia mundial adquiriu mais claramente a forma de grandes conglomerados

multimídias transnacionais nos quais convergem: controle dos meios de comunicação,

dos processos de produção de produtos midiático-culturais e das pesquisas tecnológicas

em novas mídias. Centros de tecnologia/entretenimento/informação formam hoje um

tripé fundamental da economia mundial. Conglomerados descritos por Adorno e

Horkheimer da seguinte forma:

A dependência em que se encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em

face da industria elétrica, ou a do cinema relativamente aos bancos, caracteriza a

esfera inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa

confusa trama econômica168.

De fato, na história da mídia, os anos 90 serão lembrados pela criação de

conglomerados como: AOL Time Warner, Vivendi Universal e a News Corporation de

Rupert Murdoch; além da consolidação de outros como Sony, Viacom, Disney e

General Eletric (ALBARRAN, 1998). Podemos insistir, por exemplo, que já no início

dos anos 90, quatro grandes grupos de mídia controlavam cerca de 92% da circulação

de jornais diários e cerca de 89% da circulação dos jornais de domingo na Inglaterra

(THOMPSON, 1997, p. 74). Longe de termos uma pulverização das instâncias de

produção de conteúdo midiático, como alguns esperaram devido ao desenvolvimento

exponencial de novas mídias, vimos uma convergência cada vez maior de produção de

conteúdo, canais de distribuição e de gestão de recepção.

Este é um ponto importante que diz respeito à atualidade do conceito de

Indústria cultural. Pois a proliferação de estruturas de comunicação midiática como:

TV´s interativas, blogs, celulares multimídias, internet e mídias hiper-segmentadas

trouxe conseqüências para a compreensão das dinâmicas dos processos de mediação

social. Tende-se normalmente a aceitar que entramos em um movimento de abandono

de um modelo de alta-concentração de informação e baixa interatividade, modelo cujo

paradigma eram as grandes redes broadcasting, para caminharmos em direção a um

modelo de alta interatividade e produção de informação em rede. Processo este que

traria, como conseqüências, mudanças nos modos de consumo, de persuasão comercial,

de acesso à informação e, principalmente, nos modos de presença e constituição de

atores sociais na esfera pública. Tende-se a aceitar que a transformação de todo

consumidor de informação em produtor potencial de informação, transformação

impulsionada pelas novas mídias, seria a prova maior de que antigas noções

frankfurtianas de bloqueio da agenda pública de discussões por interesses de

corporações de mídias teria entrado definitivamente em obsolescência. Até porque, estas

168 Idem, p. 115. Lembremos ainda que: “para Horkheimer e Adorno é sintomático o fato de que o

momento de consolidação da indústria cultura, com o funcionamento dos grandes estúdios de Hollywood,

seja também o da ascensão do totalitarismo na Europa (...) Para estes autores, não se trata de mera

coincidência: indústria cultural e totalitarismo são apenas duas versões, respectivamente ‘liberal’ e

autoritária, do mesmo movimento histórico que engendrou a fase monopolista, não concorrencial, do

capitalismo no seu primeiro movimento de mundialização” (DUARTE, Rodrigo; Indústria cultural: uma

introdução, São Paulo: \editora FGV, 2010, p. 43)

Page 68: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

antigas noções não dariam mais conta da espontaneidade de mobilizações produzidas

em espaços de alta-interatividade.

A respeito destas expectativas criadas pela mudança na configuração dos meios

de comunicação de massa, lembremos por exemplo desta afirmação de Howard

Rheingold a respeito da revolução social que poderíamos esperar com o advento das

chamadas novas mídias: “A maioria das pessoas que acessam as notícias através da

mídia convencional desconhece a impressionante variedade de novas cultura que tem

evoluído no mundo das redes de computador nos últimos dez anos. A maioria das

pessoas que ainda não usaram tais novas mídias permanecem inconsciente de quão

profundamente os experimentos sociais, políticos e científicos desenvolvidos

atualmente via redes de computadores pode mudar nossas vidas em um futuro próximo”

(RHEINGOLD, 1991, p. 23). No entanto, uma análise da economia política da mídia

demonstra como a natureza oligopolista descrita por adorno e Horkheimer no momento

da construção do conceito de indústria cultural apenas aprofundou-se por meio da

globalização e da incorporação da internet e de seus portais e ferramentas aos setores

dos grandes conglomerados.

Mas continuemos com a leitura do segundo capítulo da Dialética do

Esclarecimento a fim de melhor compreender a configuração do fenômeno descrito por

Adorno e Horkheimer. Os dois afirmarão que a natureza oligopolista da indústria

cultural implica padronização e estereotipia. Como em Marx, a produção cria um sujeito

para o produto. Daí porque eles devem afirmar que a atitude do público já é uma parte

do sistema, um pouco como estas comédias nas quais até o momento de rir já está

previamente definido através de risadas pré-gravadas. Vem da força do sistema sua

capacidade de organizar a sociedade através de targets prontos para identificação,

operando assim não apenas uma imposição da semelhança, mas uma gestão das

diferenças:

As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou

entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, tem menos a ver

com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e

computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que

ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas169.

Desta forma, Adorno e Horkheimer podem afirmar que o processo de recepção

não é uma atividade criativa, mas a confirmação de padrões de diferenciação postos

previamente pela indústria cultural. Contrariamente a vários teóricos da comunicação de

massa, os frankfurtianos insistirão que a multiplicidade dos processos de recepção não

significa liberdade de interpretação em relação aos produtos da indústria cultural. Mais

interessante do que afirmar que cada um dos trinta milhões de consumidores que

compraram um CD da Madonna interpretam o fenômeno à sua maneira é lembrar que

trinta milhões de consumidores compraram o mesmo CD.

Neste sentido, o caráter sistêmico é de ordem tal que mesmo as linguagens

midiáticas são produtos de linguagens midiáticas anteriores, inaugurando um processo

que hoje chamamos de “remediação” e que acaba por fortalecer ainda mais a

padronização das linguagens:

Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão

visa uma síntese do radio e do cinema, que é retardada enquanto so interessados

não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar

o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal

disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já

169 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 116

Page 69: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

amanhã – numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte

total170.

A linha de produção da indústria cultural

Mas para que tal circularidade das linguagens midiáticas tenha sucesso, faz-se

necessário o aperfeiçoamento das técnicas de duplicação da realidade. Uma duplicação

que não é meramente reflexo, mas forma astuta de reconfiguração do cotidiano. Maneira

de fazer o cotidiano parecer com o cinema através da tentativa do cinema moldar-se ao

cotidiano, isto décadas antes dos realities shows. Adorno e Horkheimer falam, neste

caso, de “atrofia da capacidade de representação”. Pois principalmente o cinema produz

sequencias de forma tal que proíbem, com sua aceleração do tempo, a atividade

intelectual. Como se a alienação própria ao mundo do trabalho ditasse agora as normas

de configuração do mundo do lazer e do entretenimento. Isto a ponto de Adorno e

Horkheimer afirmarem: “a diversão é a continuação do trabalho sob o capitalismo

tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para

se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”171. Na verdade, o mundo do lazer é a

verdadeira base dos dispositivos de controle no capitalismo. Um controle através da

diversão, através do ritmo e da forma disponibilizada para a diversão.

Se voltarmos nossos olhos para a configuração dos produtos da industria

cultural, veremos como a padronização almejada pela exige que tais produtos sejam

uma montagem de clichês que devem ser facilmente identificados para que a segurança

vinda da capacidade de reconhecer o que sempre volta ao mesmo lugar seja confirmada.

Assim:

Os detalhes tornam-se fungíveis. A breve sequencia de intervalos, fácil de

memorizar, como mostrou a canção de sucesso; o fracasso temporário do herói,

que ele sabe suportar como good sport que é; a boa palmada que a namorada

recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em face da herdeira mimada são,

como todos os detalhes, clichês prontos para serem empregados arbitrariamente

aqui e ali e completamente definidos pela finalidade que lhes cabe no

esquema172.

O termo mais importante aqui é “esquema”. O termo se refere ao esquematismo

transcendental kantiano. Adorno e Horkheimer insistem, assim, que a indústria cultural

fornece o esquema que determina a gramática da imaginação. Daí porque eles podem

afirmar que ela fornece o esquematismo como o primeiro serviço ao consumidor. Ao

agir, preferencialmente, na dimensão da formação das imagens, a indústria cultural

fornece a priori as regras que deverão guiar a constituição do que é recebido pela

sensibilidade. Desta forma, Adorno e Horkheimer se distanciavam das teses de Walter

Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

Esta discussão já vinha do texto O fetichismo na música e a regressão da

audição, de 1938. Grosso modo, contra a promessa de “aprofundamento da percepção”

produzida pela possibilidade do cinema penetrar o coração do real “alargando o mundo

dos objetos dos quais tomamos conhecimento” (Benjamin 13, p. 22), Adorno teria

insistido na tendência histórica de fixação da audição musical na particularidade de uma

dimensão fetichizada do material. Na música, o pretenso desenvolvimento da percepção

do particular seria regressão a um estágio de incapacidade de síntese e de reconstrução

da totalidade funcional. Por outro lado, se Benjamin lembrava que a modernidade

170 Idem, p. 116 171 Idem, p. 128 172 Idem, p. 118

Page 70: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

capitalista viu a arte consolidar a passagem do valor de culto ao valor de exposição e,

com isto, afirmar sua autonomia; Adorno não teria deixado de sublinhar que a

autonomia da esfera artística se pagava com a passagem do valor de culto ao valor de

troca e sua redução à condição de mercadoria.

Esta discussão retorna no texto sobre a indústria cultural através da insistência

de que o pretenso aprofundamento e modificação da percepção produzidos pelo

desenvolvimento técnico das linguagens midiáticas seria, na verdade, a submissão

integral da percepção ao esquema, a liquidação do particular pelo universal. Pois

nenhum momento ou detalhe pode se opor à realização da “Ideia”. Como em uma peça

publicitária, tudo deve estar lá para reforçar o mesmo padrão e “conceito”. A linguagem

da indústria cultural partilha com o positivismo lógico a aversão à opacidade e à

ambigüidade. Tudo deve ser organicamente submetido ao todo. Daí porque Adorno e

Horkheimer falam da anulação completa do estilo nos produtos da indústria cultural, ou

ainda, da exposição de como o “estilo autêntico” do passado era aparentado à

dominação.

Esta é uma característica importante na diferenciação entre as obras de arte e os

produtos da industria cultural: só os produtos industriais são perfeitos. Pois Adorno

lembrará várias vezes como um objeto estético não é apenas a realização de um plano

construtivo. Toda verdadeira obra de arte foi animada pela tensão contra a unidade do

estilo, grandes artistas sempre produziram obras que continham tendências diversas ao

estilo que suas obras encarnavam. Por isto, tais obras são também a desorganização do

plano construtivo a partir da resistência dos materiais, elas são a cena no interior da qual

o plano construtivo encontra seu limite. Uma verdadeira obra de arte nunca é totalmente

construída, nunca é a realização integral e sem falhas de seu plano:

A possibilidade da arte não se transformar em uma jogo gratuito ou em uma

decoração depende da medida de suas construções e montagens serem, ao

mesmo tempo, desmontagens, integrando, ao desorganizá-los, os elementos da

realidade que associam-se livremente em algo diferente173.

Pois a diferença entre a ordem reificada presente na realidade social e a instauração

formal que toda verdadeira obra de arte é capaz de produzir está no fato de apenas a

obra de arte reconhecer a tensão entre os princípios formais e o material que ela procura

submeter. Neste sentido, a tensão é o verdadeiro objeto da obra de arte. Em toda obra de

arte, há um estranho amor pelas coisas que resistem à regra, ao princípio. Pois uma obra

de arte totalmente construída, incapaz de levar ao paroxismo a tensão entre forma e

material, seria a monstruosidade da simples exemplificação de um estilo, ela seria uma

peça de decoração. Como dirá Adorno :

“nas grandes obras de arte, a tensão (Spannung) [entre a particularidade dos

momentos expressivos e a universalidade do Todo como construção] não deve

ser resolvida (ausgleischen) nas obras, como mesmo Schoenberg pensou, mas

deve ser sustentada durante todo seu desenvolvimento” (Adorno 5, p. 301).

Esta é uma maneira importante de lembrar que, na produção estética, o sujeito

encontra o fracasso da objetivação de sua intenção primeira. No entanto, este fracasso é

condição constitutiva para a própria realização da obra de arte. Pois tal fracasso é a

astúcia de uma expressão que luta contra as formas da convenção social. Expressão que

procura recuperar algo da categoria de « autenticidade ». Mas não há autenticidade lá

onde o que impera é um “idioma da naturalidade” no qual até as quebras da regra já são

previstas pela regra, Um pouco como estes programas de comédia no qual sabemos de

173 ADORNO, Théorie esthétique, p. 324

Page 71: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

antemão que os atores sairão de seus papéis. Por isto, Adorno e Horkheimer podiam

afirmar:

Todas as infrações cometidas por Orson Welles contra as usanças de seu oficio

lhe são perdoadas porque, enquanto incorreções calculadas, apenas confirmam

ainda mais zelosamente a validade do sistema174.

Neste sentido, a estereotipia própria à indústria cultural não é simplesmente a

repetição do mesmo, mas ela é principalmente a gestão do acaso e do imprevisível. Este

é um esquema importante. Não se trata apenas de conformar a um padrão positivo, mas

de aprisionar o que poderia aparecer como quebra do padrão. Desta forma, vários

criticarão Adorno por ele parecer, com isto, acreditar que o processo de recepção não

seria uma atividade criativa, mas simplesmente a confirmação de padrões postos e

manipulados pela Indústria Cultural:

Não há escapatória aqui. É a tecnologia que ganha, envenenando a originalidade

e o valor, oferecendo banalidade e monotonia em seu lugar. A crítica é ao

cinema, não a filmes específicos: à música gravada, sobretudo o jazz, não a

canções particulares. Tudo representa a industrialização da cultura: o sucedâneo,

o uniforme e o inautêntico. E é fundamentalmente uma crítica da tecnologia

como cultura, e da tecnologia como cultura impensável fora das estruturas

políticas e econômicas, sobretudo econômicas, que a contém, e sobre cuja

bigorna sua produção diária é forjada175.

Diversão e administração da insatisfação

Mas notemos um ponto importante que faz uma grande diferença. De uma certa

forma, Adorno não acredita que a função da Indústria Cultural consista simplesmente na

imposição do mesmo e na promessa reiterada de satisfação imediata. É mais correto

dizer que, para Adorno, a força da Indústria Cultural vem da sua capacidade em

administrar o desencanto com a própria Indústria Cultural, em gerir a insatisfação.

Adorno insiste várias vezes que a Indústria Cultural já produz produtos que visam dar

forma, expressar o desencantamento com os próprios estereótipos fornecidos por ela

mesma176. Como se o verdadeiro cerne do poder não estivesse na imposição de padrões

de condutas, mas na gestão de suas margens. Neste sentido, se é verdade que a atitude

do público já seria parte do sistema, é porque desencanto do público com os padrões da

Indústria Cultural é o verdadeiro motor do processo. Nada dá mais dinheiro à Indústria

Cultural do que produtos que expressam o desencanto com a própria Indústria Cultural.

Maneira astuta de perpetuar conteúdos de identificação que não exigem mais

assentimento.

É desta maneira que, no seio da indústria cultural, a diversão se transforma em

apologia da sociedade: “divertir-se significa concordar”. Ou seja, concordar como quem

esquece o sofrimento e aquilo que ele afirma como verdade, concordar como quem

foge, não da realidade, mas da vontade de resistir. Nesta apologia do que é, encontra-se

a base de uma ideologia que não é mais a afirmação falsa de valores ou o velamento de

interesses que não podem ser revelados, mas a afirmação cínica e desencantada do que

há. Assim, ao descrever as estruturas materiais da ideologia nas sociedades pós-

industriais, Adorno percebera claramente como a ideologia não podia mais fazer apelo à

noção de falsa consciência, mas precisava lidar com uma dimensão:

174 ADORNO e HORKHEIMER, p. 121 175 SILVERSTONE, Por que estudar a mídia, Belo Horizonte: Loyola, 2002, p.; 53 176 Neste sentido, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Vladimir ; “Sobre um riso que não

reconcilia”, In: Cinismo e falência da crítica, São Paulo: Boitempo, 2008

Page 72: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

que representa uma camada que não é nem admitida nem reprimida – a esfera da

insinuação, da piscadela de olhos, do ‘você sabe do que estou falando’.

Frequentemente, nos deparamos com um tipo de ‘imitação’ do inconsciente na

manutenção de certos tabus que, entretanto, não são inteiramente endossados.

Até agora, nenhuma luz foi lançada sobre essa zona psicológica obscura177.

Lembremos de como um texto seu consagrado à análise da televisão como ideologia

termina com a mesma piscadela de olhos:

Dentre os scripts analisados, numerosos são estes que jogam com a consciência

de ser kitsch e dão uma piscadela de olhos em direção ao espectador (Betrachter)

não ingênuo, como quem diz que eles mesmos não acreditam no que mostram,

que eles não são assim tão idiotas178.

Uma colocação desta natureza é central se lembrarmos que, para Adorno, a indústria

cultural e as estruturas de comunicação de massa que as suporta respondem, de maneira

hegemônica, pelo estabelecimento das dinâmicas dos processos de socialização. Neste

sentido, a verdadeira questão posta por Adorno não diz respeito a processos unívocos de

“manipulação” que desconsiderariam a multiplicidade possível dos modos de recepção e

de re-significação. Ela diz respeito às conseqüências de processos de socialização

mediados por conteúdos previamente ironizados. Pois: “Fun é um banho medicinal, que

a indústria do prazer prescreve incessantemente”179. Mas por que tudo deve ser fun? As

reflexões de Adorno apontam para uma boa resposta, principalmente em um texto tardio

como Tempo livre (1969), no qual, ao final, é questão de uma certa revisão no quadro

geral do conceito de indústria cultural tal como ele fora apresentado na Dialética do

Esclarecimento.

Partindo de um estudo empírico desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Sociais

sobre os modos de recepção da veiculação midiática alemã do casamento da princesa

Beatriz da Holanda, Adorno percebe a necessidade de abandonar um esquema clássico

de ilusão ideológica em prol da análise de “sintomas de uma consciência duplicada”

(Symptome eines gedoppelten Bewutseins). A respeito de tais sintomas, ele dirá:

Verificamos que muitos [espectadores] se portavam de modo bem realista e

avaliavam com sentido crítico a importância política e social de um

acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia mantido em suspenso

ante a tela do televisor. Em conseqüência, se minha conclusão não é muito

apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece

para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira

como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos

pelo teatro e pelo cinema. Talvez ainda mais: não se acredita inteiramente

neles180.

Podemos ver no diagnóstico desta auto-ironia da indústria cultural um caminho frutífero

aberto por Adorno na análise das formações contemporâneas da ideologia. Ele explica

porque a negação do trágico é um elemento fundamental da cultura contemporânea. De

fato, uma análise empírica dos produtos recentes da indústria cultural demonstra a

prevalência deste esquema. Personagens de contos de fadas que não mais se

reconhecem e criticam seus próprios papéis, peças publicitárias que zombam da

177 ADORNO, Theodor ; As estrelas descem à Terra, São Paulo : Unesp, 2008, p. 41 178 ADORNO, Fernsehen als ideologie, p. 530. Lembremos ainda de uma afirmação adorniana

complementar a esta: “Para resumir em uma proposição a tendência imanente da ideologia da cultura de

massa, devemos parodiar a proposição “Torna-te o que tu és” compreendendo-a como duplicação e

justificação do estado existente que destrói toda transcendência e toda crítica” (ADORNO, Soziologische

Schriften I, p. 476) 179 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 131 180 ADORNO, Tempo livre, p. 127

Page 73: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

linguagem publicitária, celebridades e representantes políticos que se auto-ironizam em

programas televisivos: todos estes fatos são apenas figuras de um processo geral de

ironização dos modos de vida que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia

chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a negação

dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações

históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

A economia libidinal da cultura industrial

Aqui podemos entender melhor qual é o “logro” produzido pela industria

cultural e que dá título ao nosso capítulo. Ele se encontra em uma satisfação que sempre

é impedida, um prazer que sempre é estragado: “ A indústria cultural não sublima, mas

reprime”, “As obras de arte são ascéticas e sem pudor, a indústria cultural é

pornográfica e puritana” , “ Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a

mesma coisa. “e isso o que proporciona a indústria do erotismo”181. Em todas estas

colocações encontra-se a idéia de que o prazer produzido pela industria cultural é de

ordem tal que equivale ao recalque, não à sublimação. Se eles podem afirmar que a

produção em série do objeto sexual produz seu recalcamento, se a repetição aparece

como modo de recalque é porque há uma forma de visibilidade e de agenciamento das

demandas que não as satisfazem, mas a estragam.

De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar tal situação

através do conceito de “dessublimação repressiva”, utilizado inicialmente para a

compreensão de certas características das sociedades totalitárias. Sabemos como a

noção de dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras

coisas, como possibilidade de instrumentalização social direta das moções pulsionais

sem recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria mais capaz de se impor

como instância de mediação entre as exigências pulsionais do isso e o princípio de

realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do inconsciente pelo

controle social” (Adorno, 1990, p. 431) que se imporia devido à fraqueza do eu.

Mas no interior deste debate, devemos lembrar como Marcuse configura

corretamente tal expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito

entre princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação

administrada, ou seja: “uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com

aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao

campo dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada” (Marcuse,

1996, p. 106). Ou seja, abre-se a todos estes autores a consciência de uma modificação

substancial nos processos de socialização. Eles compreendem a tendência das imagens

sociais ideais não estarem mais vinculadas a representações do “auto-controle sereno”

da renúncia pulsional como princípio de conduta. Com a “integração da esfera da

sexualidade ao campo dos negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento

central na lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens

ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela

exigência irredutível de gozo.

Aqui, encontra-se a chave do logro. Como, em última instância, toda

determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo que exige o

puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações

de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se

181 ADORNO e HORKHEIMER, idem,pp. 131-132

Page 74: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância,

isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da

insatisfação administrada na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo

veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que elas são postas para serem descartadas),

a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica

e “crítica”. Ou seja, estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os

objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas

que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque, não se

trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais

através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração

incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado. Perpetuar a insatisfação

com os conteúdos fornecidos pela indústria cultural, sem nunca permitir que ela se

transforme em insatisfação contra a própria indústria cultural.

Page 75: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à leitura de Theodor Adorno

Aula 8

Na aula de hoje, terminaremos a leitura da Dialética do Esclarecimento através da

leitura de seu último capítulo: “Elementos do anti-semitismo: limites do

Esclarecimento”. Do ponto de vista metodológico, este é o capítulo mais importante do

livro. Pois Adorno e Horkheimer submetem a discussão sobre o anti-semitismo a um

modelo de análise do que poderíamos chamar de “patologias sociais”. Trata-se de

compreender o anti-semitismo não apenas como um comportamento político, mas como

o sintoma de um vínculo social que se organiza tal como uma patologia mental. Desta

forma, as estruturas autoritárias e totalitárias da vida social não serão explicadas apenas

através de sua necessidade econômica, mas principalmente através de seu vínculo a

estrutura psíquica dos sujeitos socializados. Sem negligenciar a pergunta sobre as

condições sócio-econômicas que geraram o anti-semitismo, interessa aos nossos

autores, principalmente, compreender como funciona a estrutura psíquica e libidinal do

anti-semita.

No entanto, esta perspectiva não visa, por sua vez, patologizar o anti-semita

como alguém que sofreria, porventura, de alguma forma de doença mental. Esta seria

uma forma de transformar o anti-semitismo em um fenômeno marginal vinculado a

indivíduos ou grupos refratários ao processo de esclarecimento e racionalização social.

No entanto, a perspectiva de Adorno e Horkheimer é mais radical e consiste em analisar

o anti-semitismo como: “um esquema profundamente arraigado, um ritual da

civilização”182. Um modo de comportamento organicamente vinculado ao modo com

que a modernidade constitui individualidades e pensa, tanto psiquicamente quanto

socialmente, ideias como identidade e diferença. Assim, a análise da estrutura psíquica e

libidinal do anti-semita aparecerá como a lente de aumento que nos permite observar as

tensões no interior de todo e qualquer processo de formação do Eu moderno. Por isto

que o anti-semitismo aparecerá como um “limite do esclarecimento”, como um

fenômeno que expõe os limites internos do esclarecimento.

Esta perspectiva tinha forte consequência política, pois era forma de lembrar

como o totalitarismo não é apenas uma tendência que aparece quando a individualidade

é dissolvida. Ele é tendência inscrita na própria estrutura dos indivíduos modernos.

Conhecemos a idéia clássica segundo a qual situações de anomia, famílias desagregadas

e crise econômica são o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde

a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do

indivíduo entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita.

No entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, seria

interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em

famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas

sociedades e a nosso padrão de prosperidade.

Para realizar este modelo de análise do anti-semitismo, Adorno e Horkheimer

precisam colocar em circulação um movimento duplo. Primeiro, trata-se de

compreender porque “em razão de sua adaptação deficiente” os judeus seriam o grupo

que: “tanto prática quanto teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que

uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma”183. Argumentos que levam em conta

a posição sócio-econômica dos judeus na Europa, representantes do capital mas sem

direito de posso, assim como a tensão entre as religiões cristã e judaica serão utilizados.

182 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160 183 Idem, p. 157

Page 76: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Nesta parte, que vai até o sub-capítulo V, o modelo de análise é relativamente

tradicional.

No entanto, a partir do sub-capítulo V, Adorno e Horkheimer farão apelo a uma

antropologia filosófica profundamente inspirada na psicanálise freudiana para descrever

dois processos complementares: a passagem de uma racionalidade mimética a uma

racionalidade conceitual e o processo de formação do Eu como instância auto-

identitária. È na maneira com que a racionalidade mimética será recalcada para permitir

o fortalecimento das ilusões identitárias do Eu que Adorno e Horkheimer verão as raízes

psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de segregação social, já que:

A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção . E como

as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus,

protestates, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na

mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta

poderosa enquanto tal184.

Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois

momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da

autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise

do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as

estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso

contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e

libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um

conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.

O anti-semitismo

Os autores começam lembrando que os judeus são o grupo que atrai para si, de maneira

privilegiada, a vontade de destruição gerada pela falsa ordem social. Sua caracterização

como povo sem pátria, ligado a si apenas pela força da tradição e da religião teria

levado a um “apego inflexível às suas próprias formas de ordenamento da vida” e a uma

relação sempre insegura com a ordem dominante. Isto auxiliou a eleição do anti-

semitismo em modo social maior de racismo.

Adorno e Horkheimer são sensíveis às representações sociais normalmente

associadas aos judeus: banqueiros e intelectuais, o dinheiro e o espírito como o sonho

renegado daqueles que a dominação mutilou. Na posição de banqueiros , eles são os

bodes expiatórios da injustiça econômica de uma classe inteira. Pois os judeus ficaram

presos ao setor de circulação, sem direito a aceder a posses no setor produtivo, eles se

transformaram nos oficiais de justiça para o sistema inteiro, atraindo a si o ódio que

normalmente deveria estar direcionado a uma classe inteira. Na Europa, eles se

transformaram nos intermediários que representam, para o povo, a conta a pagar pelo

progresso:

Os judeus não foram os únicos a ocupar o setor de circulação, mas ficaram

encerrados nele tempo demais para não refletir em sua maneira de ser o ódio que

sempre suportaram. Ao contrário de seu colega ariano, o acesso à origem da

mais-valia ficou-lhes em larga medida vedado. Foi só após inúmeras

184 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160

Page 77: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

dificuldades e tardiamente que lhes foi permitido o acesso à propriedade dos

meios de produção185.

Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra

um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta

contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve

ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica que

eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.

Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será acrescida

à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e judaísmo, até

porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa na Europa,

presente como minoria constantemente vítima de revoltas.

Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do

cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos comunitários

religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os descendentes dos

visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo wagneriano dos

cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em guardas de

elite”186. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma violenta contra os

semitas.

Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários pode ser melhor

compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo, que coloca de

ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte afirmação:

Na medida em que o absoluto é aproximado do finito, o finito é absolutizado.

Cristo, o espírito que se tornou carne, é o feiticeiro divinizado. A auto-reflexão-

humana no absoluto, a humanização de Deus por Cristo, é o próton pseudos. O

progresso para além do judaísmo tem por preço a afirmação de que o homem

Jesus era Deus. É justamente o aspecto reflexivo do cristianismo, a

espiritualização da magia, que está na origem do mal187.

Podemos entender tais colocações da seguinte maneira. No cristianismo, um particular

(Cristo) é elevado à condição de universal abstrato (Deus). Tal humanização do divino

tem um preço: a impossibilidade de vivenciar a limitação do particular, com suas

exigências. Um finito vale por absoluto, ele deve se sacrificar no absoluto, mas tal

sacrifício nunca é completo, pois implica perpetuação da natureza representativa da

finitude. Algo muito diferente do judaísmo e de seu caráter radicalmente anti-

representativo. Ao dar tal lugar à finitude, Adorno e Horkheimer podem dizer que o

cristianismo queria permanecer espiritual, mesmo quando aspirava à dominação. O

sacrifício do finito através da morte de Cristo faz com que o cristianismo viva entre a

recaída em uma religião natural (e o reconhecimento da inanidade do sacrifício da

representação finita) e o reconhecimento do paradoxo de um fé que exige sacrifício

completo da razão do mundo (como vemos nestes “cristão paradoxais”, como Pascal e

Kierkegaard). Os que recaíram em uma religião natural precisavam ver, nos que não

confiduram seu particularismo com o universal (a religião judaica) o inimigo a ser

abatido.

185 Idem, p. 163 186 Idem, p. 165 187 Idem, p. 166

Page 78: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mimesis

Mas o verdadeiro cerne da discussão de Adorno e Horkheimer sobre o anti-

semitismo está vinculado à necessidade do recalque da mimesis enquanto condição para

a formação da individualidade. Com o recalque da mimesis é o problema da relação à

alteridade que se transforma em questão: “A mera existência do outro é motivo de

irritação. Todos os outros são ´muito espaçosos´ e devem ser recolocados em seus

limites, que são os limites do terror sem limites”188. Sendo os judeus uma das figuras

privilegiadas da alteridade na Europa, abre-se espaço para uma discussão que enquadra

o anti-semitismo como sintoma de uma recuperação social da revolta contra a mimesis

perdida.

A racionalidade mimética aparece como o que deve ser perdido tanto no

processo de maturação dos sujeitos quanto no processo de progresso social. Filogênese

e ontogênese recalcam a mimesis como relação entre sujeito e natureza. Para apreender

a especificidade de tal conceito, faz-se necessário lembrar que sua construção visa dar

conta de quatro problemas diferentes, porém complementares, a saber, o problema do

conteúdo de verdade do pensamento analógico que sustenta práticas magias e rituais, a

tendência pulsional a regressar a um estado de natureza marcado pela

despersonalização, o mimetismo animal e, sobretudo, as experiências estéticas

contemporâneas de confrontação com materiais reificados. Teoria antropológica da

magia, teoria psicanalítica das pulsões, mimetismo animal e o problema estético da

representação: eis os eixos da problemática adorniana do mimetismo.

Nós conhecemos como o pensamento que marca a razão moderna recusa todo

conteúdo cognitivo à mimesis, à analogia e à semelhança, já que o pensamento

“mágico” seria exatamente este ainda aprisionado às cadeias da simpatia e da

participação. Mas Adorno acredita que o caráter mimético do pensamento mágico tem

um conteúdo de verdade, o que não significa em absoluto ignorar a ruptura entre

natureza e cultura. Isto significa apenas que o pensamento mágico é capaz de pôr certos

procedimentos lógicos recalcados pela razão reduzida a sua condição instrumental. Tais

procedimentos concernem sobretudo à maneira com que a auto-identidade se reconhece

como momento da posição da diferença.

Primeiramente, lembremos da maneira com que a problemática do conteúdo de

verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno. Se o pensamento racional deve

denegar toda força cognitiva da mimesis, é porque se trata de sustentar: “a identidade do

eu que não pode perder-se na identificação com um outro, mas [que] toma possessão de

si de uma vez por todas como máscara impenetrável”189. A identidade do eu seria pois

dependente da entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais. A

projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer

chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e a processos de

categorização do sujeito cognoscente.

Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode

pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao

reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Poderíamos mesmo dizer que

o pensamento mágico nos permite ver como a fixidez da identidade dos objetos é

dissolvida quando o pensamento leva em conta a natureza constitutiva das relações de

188 Idem, p. 171 189 ADORNO et HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 24

Page 79: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

oposição190. Isto pode nos explicar a importância de considerações como: “o espírito

que se dedicava à magia não era um e idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto,

que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos”191.

Mas se Adorno procura no pensamento mágico a posição da estrutura de

identificações que suporta a determinação de identidades, ele saberá abandonar todo

conceito positivo de natureza aí presente. Pois, devemos sempre insistir neste ponto, a

assimilação de si ao objeto no mimetismo não pode ser compreendida como promessa

de retorno à imanência do arcaico. Isto pode nos explicar por que Adorno irá pensar o

conceito de natureza a partir, entre outros, da teoria pulsional freudiana. Sigamos uma

afirmação canônica sobre o mimetismo. Ele seria o index de uma: “ tendência a perder-

se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de desempenhar aí um papel ativo, da propensão

a se deixar levar, a regredir à natureza. Freud a qualificou de pulsão de morte

(Todestrieb), Callois de mimetismo”192.

Se a pulsão de morte indica, para Adorno, as coordenadas da reconciliação com

a natureza, então devemos admitir várias conseqüências. Pois a pulsão de morte

freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se à uma natureza

compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade material aos

processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala

Adorno pensando na pulsão de morte é o resultado do reconhecimento de si no que é

desprovido de inscrição simbólica.

Isto fica ainda mais claro se levarmos a sério o recurso a feito por Adorno a

Roger Caillois. Operação extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender

melhor o que significa esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala

Adorno. Pois lembremos que, com seu conceito de psicastenia lendária, Caillois

tentava demonstrar como o mimetismo animal não deveria ser compreendido como um

sistema de defesa, mas como uma “tendência a transformar-se em espaço” que

implicava em distúrbios do “sentimento de personalidade enquanto sentimento de

distinção do organismo no meio ambiente”193. Falando a respeito desta tendência,

própria ao mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma: “O espaço

parece ser uma potência devoradora para estes espíritos despossuídos. O espaço os

persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose gigante. Ao final, ele os substitui. O

corpo então se dessolidariza do pensamento, o indivíduo atravessa a fronteira de sua

pele e habita do outro lado de seus sentidos. Ele procura ver-se de um ponto qualquer do

espaço, do espaço negro, lá onde não se pode colocar coisas. Ele é semelhante, não

semelhante a algo, mas simplesmente semelhante”194.

Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele não

é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado de

coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por

outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado inorgânico,

Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal ou a matéria,

mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um degrau”, dirá

190 Martin Jay sublinhou que, em Adorno, o comportamento mimético não é uma imitação do objeto, mas

a assimilação (anschmiegen) do si ao objeto (JAY, Mimesis and mimetology in HUHN et

ZUIDERVAART, The semblance of subjectivity, p. 30) 191 ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada] 192 idem, p. 245 [tradução modificada] 193 O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como

afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo

responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade, fenômenos

ansiosos, entre outros. 194 CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111

Page 80: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Caillois (2002, p. 113). Podemos perceber como que, ao pensar o mimetismo como

identificação com um meio ambiente que obedece a tais coordenadas, Adorno livrou o

conceito de mimetismo da sua subordinação à natureza como plano imanente e positivo

de doação de sentido.

Desta forma, o imperativo mimético de reconhecimento de si na morte como

negação da potência de organização do Simbólico (Freud) e no exterior vazio de

conceito (Caillois) nos indica onde o sujeito deve se reconhecer para afirmar-se em sua

não-identidade. Josef Früchtl compreendeu claramente este ponto ao afirmar: “A

ambivalência em relação à mimesis que é possível identificar em Adorno deve ser

explicada através do seu reconhecimento do caráter absolutamente solidário entre

reconciliação e destruição”195; ou seja, reconciliação com o objeto e destruição do eu

enquanto auto-identidade estática no interior de um universo simbólico estruturado.

Vemos assim como tal articulação entre Freud e Caillois implica na identificação com

uma negatividade que vem do objeto enquanto motor de descentramento. Pois o

problema da mimesis nos mostra como, para Adorno, o objeto é aquilo que marca o

ponto no qual o eu não reconhece mais sua imagem, ponto no qual o sujeito se vê diante

de um sensível que é "materialidade sem imagem" cuja confrontação implica em um

perpétuo descentramento. A mimesis aparece assim enquanto reconhecimento de si na

opacidade do que só se oferece como negação. É ela que, com isto, pode nos indicar

como realizar esta promessa de reconhecimento posta de maneira tão surpreendente por

Adorno nos termos que já vimos: “Os homens só são humanos quando não agem e não

se põem mais como pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são

pessoas assemelha-se ao delineamento de uma essência inteligível, a um Si que seria

desprovido de eu. A arte contemporânea sugere algo disto”. Ou seja, o reconhecimento

dos homens enquanto sujeitos é dependente da capacidade deles se porem ou, ainda, de

se identificarem com o que não se submete mais aos contornos auto-idênticos de um eu

com seus protocolos de individuação.

A sombra da razão

Na estrutura clínica psicanalítica, ela é ainda concebida como um dos três

quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a esquizofrenia e a

melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização atual não é muito

distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud compreendia a paranóia

como um “modo patológico de defesa”196 que se servia de mecanismos como o

delírio197 e uma forte tendência à projeção de representações inconciliáveis com a

coerência ideal do Eu. À ocasião de seu texto paradigmático relativo ao caso Schreber,

tais mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em uma desesperada reação

contra um certo impulso homossexual impossível, por razões estruturais, de ser

vivenciado como tal pelo sujeito.

Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a

homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da

fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,

paranóico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma

intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à

195 FRÜCHTL, Mimesis : Konstellation eines Zentralbegriffs bei Adorno, Würzburg, 1986, p. 43 196 Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98. 197 Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do

reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A formação

da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)

Page 81: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da

alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que

Freud chamava de “narcísico”. Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si

em um outro aparece como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até

então, sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra o

homossexualismo é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranóica, todo

reconhecimento de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito

invasiva, o que coloca uma personalidade formada a partir da internalização de

identificações em rota contínua de colapso. Notemos ainda como tal situação indica um

certo modo de ligação defensiva à identidade, de negação da “interioridade da

diferença”, que demonstram a fragilidade, no caso da psicose, dos modos de síntese

psíquica fundadas na noção funcional de Eu.

Já no interior das práticas psiquiátricas, a paranóia é atualmente definida pelo

DSM IV como um subtipo da esquizofrenia – fala-se atualmente em esquizofrenia de

tipo paranóide, juntamente com outros quatro tipos: desorganizado (caracterizado pelo

discurso e pensamento desorganizado, além de afeto inadequado), catatônico

(caracterizado por uma acentuada perturbação motora, como imobilidade, atividade

excessiva, extremo negativismo, mutismo etc.), indiferenciado (esquizofrenia que não

se enquadra nos outros três tipos) e residual (quando há apenas um episódio de

esquizofrenia, mas o quadro clínico não apresenta sintomas psicóticos positivos

proeminentes). Enquanto sub-tipo, a paranóia seria marcada, principalmente, pela

consistência sistemática das interpretações delirantes (perseguição, erotomania, ciúme,

grandeza etc.) e pela ausência de deterioração intelectual. Por sua vez, sua causalidade

seria sindrômica, já que seria o resultado de uma articulação entre fatores psicológicos e

vulnerabilidades constitucionais (genéticos e obstétricos)198.

Sabemos que a paranóia é certamente uma das categorias clínicas mais antigas

que temos notícia. Sua raiz grega não nos deixa dúvidas. Paranóia vem do grego para e

nous, ou seja, algo como “ao lado do espírito”, fora do que deve ser o espírito. No

entanto, é só em meados do século XIX que ela ganha sistematização, principalmente

através do Tratado de psiquiatria (1879), do psiquiatra alemão Richard Krafft Ebing,

além dos esforços posteriores de classificação desenvolvidos por Emil Kraepelin. Desde

o início de sua sistematização, a paranóia conservou-se como modalidade de doença

mental cuja característica essencial era aquilo que podemos ainda encontrar no DSM

IV, a saber: “presença de delírios ou alucinações auditivas proeminentes no contexto de

uma relativa preservação do funcionamento cognitivo e do afeto”199.

Tal especificação da paranóia respondia a uma tendência maior da psiquiatria

ocidental até então, a saber, distinguir um modo de loucura onde as funções de

julgamento e os usos da linguagem eram, em larga medida, conservados em sua

estrutura formal de outro onde tais funções superiores eram eliminadas no interior de

um processo de regressão que classicamente foi chamado de “demência”. Por isto,

alguém como Foucault dirá:

a demência é, de todas as doenças do espírito, este que permanece mais próxima

da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura sentido em tudo o

que ela pode ter de negativo : desordem, decomposição do pensamento, erro,

ilusão, não-razão e não-verdade200.

198 Ver, CRAIGHEAD, Edward, CRAIGHEAD, Linda e MIKLOWITZ, David; Psychopathology:

history, diagnosis and empirical foundations, New Jersey: Wiley, 2008, pp. 402-434 199 DSM IV, p. 317. 200 FOUCAULT, Michel ; Histoire de la folie, Paris: Gallimard, 1962, p. 320

Page 82: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Esta dicotomia, tão bem caracterizada na distinção alemã entre Wahnsinn e

Verrückheit, continuou na psicanálise com sua distinção entre esquizofrenia e paranóia.

No entanto, ela tende a ser diminuída na psiquiatria contemporânea, que unificou todo o

espectro das psicoses sob a categoria geral de “esquizofrenia”.

Podemos ver nesta conservação relativa da estrutura cognitiva e afetiva na

paranóia um traço importante. Alguns psicanalistas viram nela a indicação de um

regime de participação em valores sociais e modos normatizados de raciocínio que dão

forma à própria noção de personalidade. É pensando nisto que alguém como Jacques

Lacan dirá, em uma tese de doutorado dedicada à paranóia: “A economia do patológico

parece assim calcada sobre a estrutura normal”201. Isto porque ela absorve os modos

formais de raciocínio e comportamento próprios à estrutura normal.

Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como encontramos tal

intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e Poder, de Elias

Canetti202. Esta absorção de modos formais de raciocínio e comportamento próprios a

estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na presença, no interior da

paranóia, de algo como um “vício da causalidade” e um “vício da fundamentação”.

Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à defesa patológica : nada

acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia paranóica”, não haverá lugar

para noções como contingência e acaso. Por trás da máscara do novo, há sempre o

mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido a algo conhecido e referido ao

doente. Isto leva o paranóico à necessidade compulsiva do desmacaramento. Ele quer

que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se acalma quando uma relação

causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:

A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual, é

uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar intelectualmente o

fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a determinar seu juízo, o

paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao fracasso203.

Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranóia,

traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus

julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de

organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias

construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e contingências

da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência absoluta de

sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido, não seria

incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um efeito maior

daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação204. O que talvez

201 LACAN, Jacques ; De la psychose paranoiaque dans ses rapports à la personalité, Paris: Seuil, 1975,

p. 56. O que é, no fundo, uma derivaçào consequente da idéia freudiana segundo a qual : “mesmo

formações mentais tão extraordinárias, tão afastadas do pensamento humano habitual, tiveram origem nos

mais universais e compreensíveis impulsos da vida psíquica” (FREUD, Sigmund; Observações

psicanalíticas sobre um caso de paranóia, In: O caso Schreber e outros textos, São Paulo: Companhia das

Letras, 2010, p. 24) 202 CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463 203 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181 204 Exemplo ilustrativo de tal situação de reificação são considerações clínicas como: “Os pacientes com

transtornos de personalidade paranóide são incapazes de pensar: “Parece que esta pessoa está tentando

me prejudicar” Em vez disto, eles sabem que a outra pessoa tem más intenções” (GABBARD, Glen;

Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica, Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 301)

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nos permitiria dizer que a paranóia é uma sombra da razão, pois é o risco aberto quando

ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta compreensão da

paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará claramente presente em

Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:

Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente concentradas no

mundo exterior, ou seja, sempre que se trata de perseguir. Constatar, captar (que

são as funções que, tendo origem na empresa primitiva de subjugação dos

animais, se espiritualizaram nos métodos científicos da dominação da natureza),

tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização e a colocar

o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento

objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa; ele

esquece a coisa e, por isto mesmo, inflige-lhe a violência a que depois é, mais

uma vez, submetida na prática205.

Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que parecem

nortear o sofrimento paranóico. Falamos de unidade, identidade, controle e risco de

invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um território a

todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como os motivos

paranóicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito daquilo que uma

ordem deve ser capaz de produzir.

O fundo paranóico de toda personalidade

Neste ponto, podemos insistir em um ponto maior. Freud costumava dizer que a

conduta patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de Vergrösserung e

Vergröberung), o que está realmente em jogo no processo de formação das condutas

sociais gerais. É desta forma que devemos interpretar uma metáfora maior de Freud :

"Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte,

segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis,

estavam determinados pela estrutura do cristal"206. O patológico é este cristal partido

que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como

normal. Neste sentido, podemos nos perguntar se a paranóia não expõe, como em uma

lente de aumento, a natureza do modo de formação da personalidade que determina a

figura da subjetividade moderna.

Aqui, poderíamos volta à hipótese de existência de uma espécie de fundo

paranóico em todo processo de constituição da personalidade. No fundo, trata-se de

levar a sério a idéia de Jacques Lacan, enunciada ao comentar a razão pela qual ele se

relutou a republicar sua tese de doutorado sobre as relações entre psicose paranóica e

personalidade: “Se resisti por tanto tempo à republicação de minha tese, é simplesmente

pelo seguinte, é que a psicose paranóica e a personalidade como tal não têm relações,

simplesmente por isso, porque são a mesma coisa”207.

No entanto, não se trata de simplesmente impor uma similitude completa entre

formação de um Eu como unidade psicológica e estrutura paranóica. Que no seu

processo de formação, o Eu coloque em circulação motivos e processos que fornecerão

o fundamento da paranóia, isto não significa que estamos exatamente diante do mesmo

fenômeno. No fundo, isto significa duas coisas. Primeiro, que a paranóia talvez deva ser

205 ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180 206 FREUD, Sigmund; ibidem, p. 64 207 LACAN, Jacques; Séminaire XXIII: Le sinthome, Paris: Seuil, 2005, p. 53

Page 84: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

compreendida como a tentativa desesperada de constituir um Eu, lá onde este processo

não é completamente possível. Neste sentido, devemos compreender claramente de

onde vem a flexibilidade que permite aos sujeitos modernos evitarem a paranóia,

mesmo colocando em circulação processos que a constitui. Qual é, neste caso, a

diferença qualitativa entre normalidade e patologia?

Neste contexto, vale lembrar o que realmente estava em jogo na centralidade do

problema da entrada no universo simbólico para a explicação lacaniana das psicoses.

Lembremos, a este respeito, como uma estrutura simbólica (ou, se quisermos, uma

ordem social) não é, para Lacan, apenas aquilo que determina previamente os modos de

relação sociais. Lacan insistia que a Lei social que estrutura o universo simbólico não

era uma lei normativa no sentido forte do termo, ou seja, uma lei que enuncia

claramente o que devo fazer e quais condições devo preencher para seguí-la. Esta é uma

questão central que costuma gerar confusões. A Lei simplesmente organiza distinções e

oposições que, em si, não teriam sentido algum. Assim, por exemplo, a Lei da estrutura

de parentesco pode determinar topicamente vários lugares, como “filho de...”, “pai

de...”, “cunhada de...”, mas estes lugares não têm em si nenhuma significação

normativa, nenhuma referência estável. Por isto, nunca sei claramente o que significa,

por exemplo, ser “pai de...”, mesmo tendo consciência de que ocupo atualmente tal

lugar. Só posso saber o que um pai é, o que devo fazer para assumir a autoridade e

enunciar a norma à condição de acreditar em uma certa impostura. É esta ausência de

conteúdo que Lacan tem em vista ao afirmar que a Lei sócio-simbólica é composta por

significantes puros, desprovidos de denotação, que ela é uma “cadeia de significantes”.

Desta forma, podemos entender melhor a profícua idéia lacaniana de que uma

estrutura simbólica é aquilo que nos permite nos relacionarmos com a experiência da

falta na determinação do objeto do desejo, assim como nos relacionarmos com a

experiência da fragilidade do sentido e das operações de identidade. Poder se relacionar

a tais experiências é fundamental para que situações de fragilização das experiências de

sentido e de identidade, assim como de indeterminação do objeto de desejo, não sejam

vivenciadas como situações catastróficas de vulnerabilidade absoluta para o sujeito. No

entanto, é exatamente isto que ocorre nos casos de psicose. Neste sentido, a entrada bem

sucedida no interior da estrutura simbólica está intimamente vinculada à capacidade de

saber lidar com isto que Lacan chama de “falta”. A função de uma ordem social talvez

não seja outra que esta.

Por fim, seria necessário mostrar como esta maneira de evitar a paranóia não é

sem deixar traços. Ou seja, há algo no processo de formação do Eu moderno que nos

deixa vulneráveis a um certo retorno da paranóia. A teoria social da Escola de Frankfurt,

em especial aquela desenvolvida por Theodor Adorno e por Max Horkheimer, foi

fundamental para demonstrar como impasses sócio-políticos no interior de nossas

formas de vida, impasses estes que podem dar formas à políticas totalitárias e de

segregação, não são simples acidentes advindos de momentos de crise. Eles são marcas

sempre inscritas em nossas formas de vida devido, entre outras coisas, ao processo de

formação de nossa própria subjetividade. Não foi por outra razão que tais autores

usaram uma categoria clínica como “paranóia” para explicar a natureza dos vínculos

sociais no interior do fascismo.

Para Adorno e Horkheimer, a paranoia como patologia social está ligada à

generalização daquilo que Adorno chama de “semicultura” ou “semiformação”: “uma

semicultura que, por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como

verdade, não pode suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e

Page 85: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

a lei social, a manifestação e a essência”208. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o

sintoma do indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo

exterior, seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza.

Neste sentido, se o reconhecimento de nossa vulnerabilidade é condição

fundamental para desenvolver ações que impeçam múltiplas formas de sofrimento

social, então o estudo de categorias clínicas como a paranóia talvez nos auxilie no

conhecimento do que somos, de como somos formados e quais são nossas linhas de

clivagem, ou seja, onde quebraremos quando jogados no chão, onde quebramos com

mais facilidade. Insistiria neste ponto que pode ter conseqüências tanto clínicas quanto

políticas: o reconhecimento de nossa vulnerabilidade é condição fundamental para

sabermos como lidar com a instabilidade de nossas formas de vida. Neste sentido, o

único que é incapaz de reconhecer sua vulnerabilidade e sua insegurança (no sentido de

conseguir inscrever tal situação em um dinâmica social de reconhecimento), de senti-la

como insuportável é exatamente o paranóico. Uma impossibilidade vinda de uma

maneira extremamente peculiar de participação e defesa de valores políticos e estéticos

em decomposição. Mas, por outro lado, é bem provável que um dos traços definidores

do comportamento normal seja exatamente sua capacidade de não se quebrar

completamente ao reconhecer a vulnerabilidade e a insegurança de suas construções.

Não se quebrar completamente quando se está em crise.

208 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182

Page 86: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Adorno

Aula 9

Temas para monografia

“O texto que a filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”

(Adorno, A atualidade da filosofia)

“A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo

comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas.Para o esclarecimento, aquilo que não se

reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o

a literatura. “Unidade” continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell”

(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)

“Não há dúvidas de que a história da música é uma progressiva racionalização (...) Não

obstante, a racionalização é apenas um de seus aspectos sociais, assim como a

racionalidade ela própria. “Aufklärung” é apenas um momento da história da sociedade,

que permanece irracional, presa ainda a formas ‘naturais’. No interior da evolução total

de que participou através da progressiva racionalidade, a música foi também, e sempre,

a voz do que ficara para trás no caminho desta racionalidade, ou do que fora vítima”

(Adorno, Idéias para uma sociologia da música)

« Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser

inteligente »

(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)

A aula de hoje é a introdução ao terceiro módulo de nosso curso; este dedicado à

análise da filosofia adorniana da música. Hoje, trata-se de tecer algumas

considerações gerais sobre o impacto da sociologia weberiana da música no

pensamento de Adorno. Esta me parece uma boa forma de introduzir questões

fundamentais que serão abordadas em nosso curso. Para tanto, precisaremos levantar

três considerações complementares.

Primeiro, trata-se de discutir a configuração geral do conceito weberiano de

racionalização, sua dinâmica, assim como a maneira com que ele é aplicado para

determinar um telos para o desenvolvimento da música no Ocidente. Isto nos permitirá

compreender o desenvolvimento da linguagem musical ocidental a partir de um

processo matemático de racionalização que obedece a parâmetros partilhados por todas

as esferas da vida social (economia, religião, política e ciência).

Segundo, trata-se de mostrar como a noção de música racional que aparece no

texto weberiano é, a seu modo, tributária uma discussão fundamental no século XIX a

respeito da autonomia da forma musical, cujo nome central é o crítico musical alemão

Eduard Hanslick, com seu Do belo musical, de 1854. O problema da racionalidade do

processo de autonomização da forma musical em relação a textos, programas, funções

sociais e mesmo em relação a expectativas expressivas nos remete, por sua vez, às

discussões sobre a música absoluta e sobre a matematização do material musical através

da centralidade da harmonia em relação à melodia (discussão que marcou a querela

Page 87: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Rousseau/Rameau). Desta forma, poderemos identificar melhor a relevância das

elaborações weberianas no interior da estética musical.

Por fim, trata-se de compreender como Adorno absorve, de maneira crítica, a

temática weberiana da racionalização do material musical. Tal recepção crítica só

pode ser analisada em toda sua extensão se compreendermos o problema da

racionalização do material musical como um processo legível no interior de uma

dialética da razão. Como dirá Adorno :

“Não há dúvidas de que a história da música é uma progressiva racionalização

(...) Não obstante, a racionalização é apenas um de seus aspectos sociais, assim

como a racionalidade ela própria. “Aufklärung” é apenas um momento da

história da sociedade, que permanece irracional, presa ainda a formas ‘naturais’.

No interior da evolução total de que participou através da progressiva

racionalidade, a música foi também, e sempre, a voz do que ficara para trás no

caminho desta racionalidade, ou do que fora vítima”209.

Isto implica na análise do texto O caráter fetichista da música e a regressão da

audição que nos ocupará a próxima aula.

Racionalização e desencantamento do mundo

Uma estratégia possível para a compreensão do conceito weberiano de “racionalização

das produções sócio-culturais do ocidente” consiste em articulá-lo com a temática do

“desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt). Não se trata aqui fornecer um

estudo detalhado de dois conceitos complexos com vários desdobramentos e

enraizamentos. Meu objetivo é apenas traçar um quadro panorâmico que nos permita

contextualizar melhor a abordagem weberiana do desenvolvimento musical do

Ocidente.

A fim de iniciar nossa análise cruzada, vamos partir de um diagnóstico de época

fornecido por Weber em 1918 :

“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e

intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo [note-se esta

operação de aproximação entre racionalização, intelectualização e

desencantamento, o que nos indica como a essência da racionalização só pode

ser apreendida a partir do momento em que levamos em conta seu ‘efeito de

desencantamento’]. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-

se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a

fraternidade das relações humanas e pessoais”210.

O diagnóstico aqui é claro : a especificidade do nosso tempo, ou seja, aquilo que

a ele se impõe como destino inelutável, está figurada em um processo de racionalização

da esfera pública que expulsa o que Weber chama, neste contexto, de “valores últimos e

mais sublimes” para o interior da vida subjetiva. O que determinará o conteúdo

normativo da nossa vida social desencantada não será mais um conjunto partilhado e

209 ADORNO, Idéia para uma sociologia da música, p. 262 210 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182

Page 88: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

não problemático de valores últimos, embora estes ainda não desapareçam

completamente. Ao lembrar que eles permaneceriam latentes na fraternidade das

relações pessoais, Weber acredita que, ao menos nas relações amorosas e na

solidariedade podemos ainda escutar, em pianíssimo, o encantamento de algo como o

pneuma profético que, nos tempos antigos, varria as grandes comunidades como um

grande incêndio, fundindo-as em uma unidade.

Eu gostaria nesta aula de me deter em alguns aspectos gerais deste processo. Isto

significa compreender o que são exatamente estes valores últimos e mais sublimes,

como eles foram expulsos da esfera pública, quais são os conteúdos normativos que

operam neste vazio e, se possível, gostaria de apontar também para algumas

consequências ou, por que não dizer a coisa às claras, quais são os sintomas da redução

de tais valores a um clamor que pulsa em pianíssimo na vida privada.

Notemos, primeiramente, que o problema de uma época que não pode mais fazer

apelo a uma esfera não problemática de valores últimos capaz de validar os múltiplos

aspectos da vida social, época que precisa tirar de si mesma sua própria certificação, não

é um problema exclusivo de Weber. O longo e doloroso processo de formação da

consciência de que o presente não pode mais procurar no passado, nas tradições ou nas

grandes construções teleológicas seu critério de fundamentação é a própria história da

formação da consciência do moderno. Habermas, nas primeiras páginas do seu Discurso

filosófico da modernidade, nos dá uma boa sistematização da gênese deste consciência,

identificando seus primeiros passos no início do século XVIII, com a problematização

do conceito de belo atemporal na famosa Querelle des anciens et des modernes211. Sem

querer entrar no mérito da definição do evento fundador da consciência da modernidade

(poderíamos muito bem seguir o hostoriador da ciência Alexandre Koyrè e identificar

este evento no advento da física galiláica com sua noção a–qualitativa de objetos e sua

noção uniforme de espaço), digamos que, se Weber está longe de ser o teórico fundador

do problema da modernidade, ele é ao menos aquele que melhor articulará

modernidade, desencantamento e racionalização. E é esta articulação que eu gostaria de

tratar aqui.

Quando Weber fala em valores últimos e mais sublimes, ele pensa

principalmente na força de unificação comunitária das concepções religiosas de mundo

partilhadas socialmente. Tais concepções e suas teodicéias forneceram as estruturas

simbólicas capazes de determinar o sentido daquilo que poderia aparecer como

irredutivelmente contingente (como a morte, a partilha desigual dos bens, a identidade

social e sexual) criando o que Weber chamará de “postulado religioso de um significado

divino da existência”212. Esta produção de significado do existente permitia a orientação

valorativa da conduta e a regulamentação unificada das esferas de valores que compõem

a vida social (arte, economia, política, ciência). Lévi-Strauss falará em mitos

socialmente partilhados que permitiam a produção social do sentido.

Esta articulação entre desencantamento e desmistificação remete a uma das

raízes do conceito weberiano de desencantamento do mundo, ou seja, a noção

schilleriana de desdivinação da natureza (Entgötterung der Natur). Ela fica extremante

clara em um trecho de A ciência como vocação:

“Intelectualização e racionalização crescentes não significam um crescente

conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra.

Significam, ao contrário, uma outra coisa : o saber ou a crença de que basta

alguém querer para poder provar, a qualquer hora, que em prinçipio não há

211 Ver HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 19 212 WEBER, Rejeições religiosas do mundo e suas direções in Ensaios de sociologia, p. 408

Page 89: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

forças misteriosas e incalculáveis interferindo : que, em vez disso, uma pessoa

pode – em princípio – dominar pelo cálculo (durch Berechnen beherrschen)

todas as coisas. Isto significa : o desencamento do mundo (Entzauberung der

Welt). Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para coagir os

espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para quem tais forças existiam. Isto,

antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita”213.

Este trecho nos indica um ponto que deve ser objeto de um cuidado aprofundado de

análise : a articulação entre racionalização e “dominação pelo cálculo”.

A diferenciação das esferas de valores

O que me interessa agora é lembrar que a desintegração das concepções

religiosas de mundo vai necessariamente trazer uma diferenciação progressiva das

esferas sociais de valores. Este é um tema recorrente em Max Weber. A tensão entre a

significação religiosa e a direção do mundo material levará necessariamente a

autonomia cada vez maior dos conteúdos normativos, das exigências de validade e do

desenvolvimento da arte, da ciência, da política e da economia. Cada esfera da vida

social irá desenvolver aquilo que Weber chama de “legalidade própria”. Cada esfera da

vida social ganhará, na modernidade, a possibilidade de se desenvolver de “acordo com

suas próprias leis” e sem precisar, a todo momento, fazer apelo ao poder unificador dos

mitos socialmente partilhados.

Nós veremos, mais a frente, como a música forneceu a Weber o padrão de

autonomização e de constituição de uma legalidade própria à esfera artística.

Autonomização que permitiu a consolidação de um “julgamento estético” capaz de

impor-se em sua independência em relação aos julgamentos morais, religiosos e outros.

Por enquanto, basta lembrarmos que, no que diz respeito à arte como esfera unificada,

Weber tem em mente um processo bem descrito por Habermas :

“Os padrões de expressão estilizados artisticamente, que de início foram

integrados ao culto religioso como adornos de igrejas e templos, como dança e

cantos rituais, como encenação de episódios significativos dos textos sagrados,

tornam-se autônomos vom as condições da produção artísitca inicialmente

cortesã-mecenática, mais tarde capitalista-burguesa: A arte constitui-se então

como um cosmos de valores intrínsecos sempre conscientes, abrangentes,

autônomos”214.

Neste ponto, eu gostaria de insistir em algumas consequências, já percebidas por

Weber, no desdobramento de tais processos de autonomização. Primeiro, lembremos

desta tendência de fragmentação da vida social e de conflito entre exigências de

validade. Esta fragmentação foi bem salientada por Habermas, ao lembrar que: “uma

vez que as imagens do mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre

pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do

belo, podendo ser tratados, respectivamente, como questão de conhecimento, como

questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos modernos um

diferenciação de esfera de valor: ciência, moral e arte”215. Todo o problema consistirá

em encontrar algum modo de diálogo entre a verdade aspirada pelo discurso científico, a

213 WEBER, Ciência como vocaçõa, p. 30 214 HABERMAS, Theorie des kommunikativen Handelns I, p.228 215 HABERMAS, Modernidade : um projeto inacabado, p. 110

Page 90: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

justiça aspirada pelo discurso jurídico e a autenticidade aspirada pela arte (embora esta

compreensão da arte como domínio da autenticidade expressiva nào deixe de colocar

uma série de problemas).

Enquanto tal diálogo não encontrar lugar o resultado não será apenas o

crescimento da distância entre especialistas e a esfera pública. As esferas de valores

tendem a ser cada vez mais complexas, inesgotáveis e refratárias à tradução. Seu

desenvolvimento impede processos de totalização. Isto faz com o sujeito moderno

apareça como aquele que sente a desintegração da possibilidade de apreensão da

experiência de totalidade capaz de garantir o acesso ao sentido do existente por

operações dedutivas (nota-se aqui, em Weber, a inexistência de um pensamento

estrutural capaz de deduzir o sentido da multiplicidade dos fenômenos a partir de

coordenadas gerais de articulação de estruturas). O desencantamento do mundo mostra

aqui, segundo Weber, seu sintoma mais profundo : a entificação de uma antropologia da

finitude e a perda do sentido que só uma racionalidade orientada por valores seria capaz

de garantir. Daí a tentativa de volta a uma esfera da intimidade na qual o sujeito poderia

ainda conservar aqueles valores últimos e mais sublimes. Uma esfera na qual a arte –

enquanto esfera pretensamente articulada por uma racionalidade orientada por valores -

poderia fornecer.

Esta antropologia da finitude fica muito bem caracterizada em um trecho maior

de Weber a respeito do fenômeno moderno de ausência de sentido da morte:

“Ela não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro

de um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria

chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na

marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no

infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu ‘velho e saciado de

vida’, por que estava no ciclo orgânico da vida (...) O homem civilizado,

colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias,

cconhecimento e problemas, pode ‘consar-se da vida’, mas não ‘saciar-se

dela’”216.

Racionalidade orientada para fins e o problema do destino do sensível

Mas eu sugiro aqui irmos mais devagar neste diagnóstico da perda do sentido

advinda do desencantamento do mundo com a desintegração das concepções religiosas.

Creio ser necessário colocar em questão este ponto a fim de problematizar a própria

noção de que nosso mundo é realmente desencantado, mas para isto é necessário

fazermos um grande curto-circuito.

Um primeiro ponto não deve nos escapar. Mesmo que a diferenciação das

esferas de valores produza múltiplas exigências de validade, elas obedecem a um

mesmo processo de racionalização. Vamos passar em rapidamente em revista pelos

resultados da racionalização em cada uma destas esferas:

Ciência : aparecimento de uma ciência matematizável, que só reconhece

objetos quantificáveis dispostos em um espaço a-qualitativo, uniforme e

geométrico, Isto permite que a múltiplicidade dos objetos possa ser submetida

a regras equivalentes de cálculo. Tal ciência encontra já suas bases em Galileu

e será tematizada por Descartes e, em uma chave empirista, por Francis Bacon.

O caráter a-qualitativo da física matemática de Galileu colocou em cheque os

216 WEBER, A ciência como vocação, p. 166

Page 91: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

objetos qualitativos da física aristotélica (que apresentava um mundo

hierarquizado ao afirmar que: “por natureza, todo e qualquer sensível existe em

algum lugar e existe um lugar determinado para cada um”217), assim como a

cosmologia ptolomaica (que apresentava uma idéia de cosmos finito).

Política : constituição do Estado moderno através do monopólio do poder

judiciário e do uso legítimo da violência, submetido à princípios formais do

direito; profissionalização da administração através do aparecimento de uma

tecno-burocracia responsável pelas funções de gerência e de um tipo legal de

dominação, impessoal levada a cabo por funcionários especializados.

Economia : constituição da Empresa capitalista moderna como célula da vida

econômica. Algumas características fundamentais da empresa capitalisma

moderna são : A) sua separação em relação à gestão familiar. Tal separação

entre empresa e economia doméstica permite o aparecimento de uma gestão

burocrática e a criação de uma contabilidade racional. B) organização do

trabalho tendo em vista a produção de capital, ou seja, a rentabilidade. A

racionalidade do trabalho capitalista é orientação das ações através do cálculo

de rentabilidade. Isto pressupõe o aparecimento da figura do “trabalho

abstrato” submetido à divisão social do trabalho e a um padrão geral de cálculo

(“Na medida em que as operações são racionais, toda a ação individual das

partes é baseada em cálculo”218)

Arte : este é um caso a parte e voltarei a ele logo a seguir.

Vemos aqui como há uma orientação geral no modo de racionalização destas

esferas, Todas as três reconhecem, principalmente, a racionalidade de uma ação que

Weber definirá como ação orientada para fins, ou seja, orientada por expectativas

quanto ao comportamento de objetos através da padronização de critérios de decisão

baseados na possibilidade de mensuração, de cálculo e de estabelecimento de

equivalências. Mesmo que Weber nunca tenha deixado de reconhecer a racionalidade de

um outro tipo de ação, esta orientada por valores éticos, estéticos ou religiosos, não é

difícil perceber que ela não guia o desenvolvimento destas três esferas de valores.

Neste ponto, faz-se necessário compreendermos melhor estes dois critérios de

racionalidade oferecidos por Weber. Eles são inicialmente apresentados tendo em vista

a compreensão da ação social. Dirá Weber:

“a ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente

a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de

outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para

alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de

modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético,

religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado

comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo,

especialmente emocional, por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo

tradicional, por costume arraigado”219.

217 ARISTÖTELES, Física, 205 a10 218 WEBER, ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 14 219 WE BER, Economia e sociedade I, p. 15

Page 92: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Alguns pontos devem ser salientados nestas definições. Primeiro, a racionalidade

da ação orientada para fins (no sentido de finalidade) fundamenta-se na capacidade de

avaliar decisões a partir da previsibilidade (expectativa) do comportamento do mundo

externo e de outras pessoas. Mas devemos nos perguntar sobre o que deve acontecer ao

mundo e aos sujeitos para que estes possam aparecer como objetos de processos de

avaliação de previsilidade. Fundamentalmente, esta passagem do mundo a um conjunto

de objetos que podem se submeter a avaliações de previsibilidade implica a

categorização do que aparece a partir de procedimentos gerais de cálculo, mensuração e

identidade. Ou seja, a racionalidade orientada para fins só pode operar a partir do

momento em que aquilo que se dá à razão aparece como essencialmente matematizável

e abstraído de toda determinação qualitativa irredutível. De coisa no mundo a objeto da

técnica, objeto de dominação pelo cálculo, para retomar uma bela expressão de Max

Weber. O que nos mostra a extrema solidariedade, na qual eu havia insistido no início

desta aula, entre os processos de racionalização e desencamento do mundo. Pois todo

padrão de racionalidade funda-se a partir de uma reflexào sobre os modos adequados de

apreensão dos objetos da experiência.

Um outro ponto merece nossa atenção : mesmo a racionalidade orientada por

valores partilha deste conceito de objeto fornecido pela racionalidade orientada para

fins. Lembremos, por exemplo, da maneira pela qual Weber diferencia a ação afetiva da

ação racional orientada por valores: “Elas distinguem-se entre si pela elaboração

consciente dos alvos últimos das ações e pela orientação consequente e planejada com

referência a estes, no caso da última”220. Uma ação impulsionada pelo desejo de

vingação (ação afetiva) pode ter seu alvo elaborado conscientemente. Mas ela não é

ação feita segundo ‘mandamentos’ ou ‘exigências’ que transcende o plano dos

sentimentos [ ela não é uma lei imposta pelo sujeito para si mesmo]. Por outro lado, esta

ação feita a partir de um mandamento transcendente permite o descolamento empírico

necessário para a orientação planejada da conduta. Quer dizer, mesmo que o valor não

seja relativo a nenhum cálculo (por exemplo, cálculo de prazer), ele permite que a

efetividade seja objeto de uma orientação planejada (lembremos como o espírito do

capitalismo nesce da ética protestante).

A meu ver, isto demonstra como um elemento central na configuração deste

processo de racionalização é o não reconhecimento de nenhuma dignidade ontológica

na resistência do sensível à sua instrumentalização. Isto entra em uma economia mais

ampla de rebaixamento do sensível que perpassa toda a concepção weberiana de razão.

Daí porque Adorno e Horkheimer verão neste caso um processo de redução da razão à

sua dimensão instrumental de dominação : “A sociedade burguesa é dominada pela

equivalência. Ela torna comparável o que é heterogêneo reduzindo-o a quantidades

abstratas (...) De Parmênides a Russell, a divisa continua a mesmo : unidade, O que

continuamos a exigir, é a destruição dos deuses da qualidade”221. Podemos levar em

conta aqui também o que diz Heidegger, por uma razão diametralmente oposta, a

respeito da essência da técnica moderna, técnica que não é mais capaz de conjugar

poiesis e tecné : “A essência da técnica moderna coloca o homem no caminho de um

desvelamento através do qual o real advém objeto de estoque”222. Este ponto será

fundamental para nossa compreensão do processos weberiano de racionalização do

material musical.

220 WEBER, Economia e sociedade, p. 15 221 ADORNO, Dialectique des lumières, p. 25 222 HEIDEGGER, Essais et confèrences, p.33

Page 93: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Weber e a música

Não deixa de ser instrutivo perceber como este processo de racionalização atinge

inclusive a esfera da ação estético-expressiva. Pois mesmo que ela seja mais claramente

uma esfera onde a ação pode ser mais facilmente orientada para valores, os objetos

racionais de expressão obedecem, necessariamente, a uma construção não muito

diferente daquela que direciona o objeto da produção capitalista ou da descoberta

científica.

Weber não dedicou muitos trabalhos à estética, mas ele deixou ao menos um texto

fundamental neste domínio : Os Fundamentos racionais e sociológicos da música.

Trata-se de um texto extremamente bem construído e com um claro objetivo : definir o

que é uma música racional. Podemos imaginar que tais considerações sobre a música

serviriam de paradigma para as análises estéticas que Weber tinha em mente.

Podemos dizer, de maneira esquemática para inicar nosso trajeto, que Weber

identifica três características fundamentais para a especificidade da racionalização do

material musical no Ocidente:

Primeiro, Weber insistirá que a música ocidental é autônoma em relação a fins

prático-finalistas externos, pois tanto sua audição quanto sua composição são

desprovidas de função ritual. “temos que nos recordar do fato sociológico de que a

música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu

desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em

primeiro lugar sobretudo mágicos”. Mas “Com o ultrapassamento do emprego

meramente prático-finalista das fórmulas sonoras tradicionais e, por conseguinte, com o

despertar das necessidades puramente estéticas inicia-se o despertar da verdadeira

racionalização” 223. Ou seja, a um desencantamento do material musical que é resultado

da crítica ao fetichismo mágio-religioso como pólo de produção do sentido do fato

musical. Pois Weber sabe que esta subordinação ao fetichismo mágico-religioso atingia

o próprio desenvolvimento do material musical, já que ela provocava a estereotipização

de intervalos, de estruturas e de frases que adquirem significação mítica. Em suma, Há

um encantamento do material musical que deve ser rompido através da autonomização

da música em relação a toda função ritual.

No entanto, o despertar das necessidades puramente estético não implica apenas

em uma redefinição dos modos de audição derivada da modificação do lugar social da

música. Ela abre a possibilidade de mutações estruturais na própria forma musical, isto

primeiramente através da consolidação do sistema tonal com sua organização de

intervalos, escalas e estruturação dos temperamentos. E este é, em última instância, o

objeto central de Weber nos Fundamentos racionais e sociológicos da música; objeto

que será paulatinamente apresentado neste módulo. Ele permitirá que a significação do

fato musical não seja mais dependente de um elemento extra-musical.

Weber traça um grande apanhado histórico que procura dar conta do lento

processo de autonomização do julgamento estético na música. Ele começa através da

retomada deste problema geral da estética musical que diz respeito à imbricação entre

música e linguagem. Mas Weber aborda tal questão através da “ligação entre fala e

223 (WEBER, Fundamentos..., p. 86

Page 94: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

melodia (Melos)”224. A fala pode exercer uma influência direta e concreta sobre a

formação do curso da melodia, principalmente nas chamadas línguas sonoras nas quais

os significados das sílabas é variável de acordo com a altura do som em que são

pronunciadas. Um exemplo aqui seria o chinês. Weber se serve de vários exemplos

advindo de músicas sacras a fim de mostrar como a organização intervalar da música

pode ser limitada devido à influência da dinâmica da fala e do recitativo. A “legalidade

própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de sua ligação, de

um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo mágico-religioso.

Pois, enquanto estiver submetida a uma fins práticos-finalistas, a música estará

impossibilitada de desenvolver-se a partir das exigências do material musical. Ao

contrário, ao vincular-se a funções e textos sagrados: “a estereotipização dos intervalos

sonoros, uma vez canonizados por alguma razão, será extraordinariamente intensa”225.

A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de

sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo

mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do material musical é solidária do

abandono de todo princípio mimético na racionalidade do fato musical. Note-se que a

música aparece como espaço privilegiado para a reflexão sobre este tipo de

racionalização devido ao seu caráter eminentemente não-figurativo e resistente a

processos de conceitualização226.

Mas para que a música conquiste sua esfera de legalidade própria (e esta é a

segunda característica da racionalização do material musical no ocidente), ela deve

trazer, na sua lógica interna das relações sonoras, o seu próprio critério de

desenvolvimento e de julgamento. Para tanto, Weber precisa passar a um conceito

positivo de racionalidade. O que significa expor como o material musical pode ser

“dominado pelo cálculo”, ou seja, como ele pode ser racionalizado ao submeter a uma

razão matemática. Isto Weber encontra ao analisar a estrutura do sistema tonal como

sistema global de organização do material sonoro a partir de regras harmônicas de

inspiração físico-matemática.

O que interessa Weber é o fato de que, através de regras gerais de cálculo

viabilizados pelo temperamento igual da escala cromática, a harmonia da música

moderna estabelece procedimentos gerais de desenvolvimento, de progressão e de

organização do material sonoro. Assim, se é verdade que uma esfera social de valor será

mais racional na medida em que ela estabelecer seus processos de valoração através de

um plano sistêmico de organização, plano que tira de si mesmo sua própria certificação,

então é com a consolidação do sistema harmônico tonal que a música entra na

modernidade.

Este é um ponto fundamental: a racionalidade do fato musical, para Weber, é

fundamentalmente vinculada à sua dimensão harmônica. O que significa um

posicionamento, não sem conseqüências, em relação a um longo debate que teve lugar

no interior da história da estética musical. De fato, vale para Weber o que Rameau já

tinha afirmado em 1722: “Música é geralmente dividida em harmonia e melodia, mas a

última é meramente uma para da primeira e um conhecimento de harmonia é suficiente

para um entendimento completo de todas as propriedades da música”227. Ou seja, a

224 WEBER, idem, p. 82 225 WEBER, idem, p. 86 226 Por outro lado, esta maneira de pensar a autonomização da esfera musical através da

negação de todo vínculo com a linguagem prosaica provoca uma aproximação inusitada

entre Weber e a temática romântica da música absoluta. 227 RAMEAU, Traité de l’harmonie, capítulo um

Page 95: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

dimensão harmônica é a única a responder pela racionalidade do fato musical e de seus

processos internos de criação de sentido.

De fato, Weber admite que a dimensão harmônica é a única a responder pela

racionalidade do fato musical e de seus processos internos de criação de sentido. No

entanto, a especificidade da música ocidental não está na ausência de elementos

irracionais, mas na possibilidade de antecipar e resolver tais elementos, integrando-os

no interior da própria racionalidade da forma musical. Por isto, Weber pode atrelar a

dimensão expressiva da melodia a um princípio de irracionalidade (resíduo mimético na

música) sem que o protocolo geral de racionalização seja colocado em questão. Depois

de reconhecer que : “A melodia, no sentido geral do termo, é sem dúvida condicionada

e ligada harmonicamente, mas não pode mesmo na música de acordes, ser deduzida

harmonicamente” Weber afirma finalmente que: “Não haveria música moderna sem

estas tensões derivadas da irracionalidade da melodia, já que elas constituem

precisamente seus mais importantes meios de expressão” (Weber 29, p. 60). Pois é

racional um sistema que aceita um elemento que o negue, desde que tal elemento possa

ser antecipado, preparado e resolvido. Como dirá Schoenberg em seu Tratado de

Harmonia: “introduzir cautelosamento [a dissonânica] e resolver sonoramente: eis aqui

o sistema! Preparação e resolução são, portanto, as duas cobertas protetoras que vai

cuidadosamente empacotada a dissonância para que não recebe nem ocasione danos”228.

A razão da harmonia

Para compreender o que está em jogo no estudo da harmonia, podemos utilizar a

afirmação de Hugues Dufour : “A noção de harmonia é anfibiológica : ela designa ao

mesmo tempo a ciência de formação e de encadeamento de acordes, assim como o

sistema de tensões – quer dizer, as unidades antitéticas – que, desde a origem, rege a

conformação dos elementos ao todo (...) Neste sentido, a harmonia é potência das

diferenças, regra de dis-similitudes, desigualdade de relações e assimetria de termos

comensuráveis”229.

A característica fundamental da harmonia está no fato de que as consonâncias, ou

seja, as afinidades entre relações intervalares sonoras que permitirào as construções

musicais, em suma, o princípio que determina os procedimentos gerais de semelhança

no interior do fato musical, reduz-se a uma regra geral de cálculo. É isto que Weber tem

em mente ao insistir que: “Nossa música harmônica de acordes racionalizou o material

sonoro mediante a divisão aritmética”230. A harmonia ocidental é organizada por regras

de relações matemáticas, suas normas não podem mais ser deduzidas totalmente de

condições empíricas, embora ela reconheça a importância de certas características

físicas do som [a teoria da harmonia a partir do som fundamental e dos harmônicos

superiores]. Lembremos do que dizia Jean-Phillipe Rameau em seu Tratado de

Harmonia, obra inaguradora da teoria musical moderna com suas aspirações de

racionalidade: “Música é uma ciência que deve definir regras: tais regras devem derivar

228 SCHOENBERG, Tratado de Harmonia, p. 96 229 DOUFOUR, Les origines grecques do concept de l’hamronie, p. 18 230 WEBER, idem, par.2

Page 96: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

de um princípio evidente e tal princípio não pode ser conhecido por nós sem a ajuda da

matemática”231.

Daí a importância dada por Weber ao temporamento, ou seja, a divisão geral dos

intervalos cromáticos no interior de uma oitava em doze intervalos absolutamente

iguais. Tais procedimentos possibilitaram a uniformização do material musical criando

assim as condições para o advento de uma organização funcional global que permite

com que todo e qualquer material seja transposto, modulado e dividido através da

unificação de procedimentos gerais de cálculo. Sem ser totalmente arbitrário, o

temperamento é uma abstração que permite a definição do material musical como objeto

de cálculo e de regulação da irracionalidade das tensões em resoluções possíveis através

das modulações e progressões harmônicas. Isto nos explica porque Weber insiste em

lembrar que : “toda moderna música acórdico-harmônica não é concebível sem o

temporamento e suas cponsequências. Só o temporamento proporcionou-lhe liberdade

plena”232.

Por fim, a música ocidental é fundamentalmente uma música escrita. Com isto ela

pode levar ao ápice a organização do material ao definir cada som a partir de variáveis

específicas como altura, duração, intensidade e valor. Assim, podemos ver na

racionalização do material musical as mesmas características gerais do processo de

racionalização das outras esferas. Temos a autonomização dos critérios de valor e dos

processos de desenvolvimento, a sistematização dos objetos através de um padrão

global de cálculo e de ordenação (fornecido pela harmonia e pelo temperamento), no

qual é a organização funcional que determina o sentido de cada elemento, e a deposição

de toda resistência do sensível à sua instrumentalização. Para Weber, o sentido do fato

musical é uma questão de relação e de dedução harmônica. Mas pensar o sentido como

relação significa anular toda resistência do material musical à sua implementação.

Significa pensar a ratio musical com dominação de um material criado a partir de regras

gerais de desponibilização integral.

231 RAMEAU, Teatrise of harmony, p. XXXV[a construção de acordes, o sistema de

inversão de acordes] [construção de escalas a partir dos acordes perfeito de tônica,

dominante, subdominante] [o baixo fundamental como centro tonal] [progressão

harmônica a partir do baixo fundamental : o som fundamental do acordo (que funciona

como centro) só pode se mover no interior dos harmônicos superiores, progressão de

terça, quarta, quinta e sexta. Todas as outras progressões são cadências de passagem,

licença etc.] 232 WEBER, p. 133

Page 97: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 10

Vamos começar a discussão sobre a Filosofia da nova música através de um texto

fundamental da estética musical adorniana: O caráter fetichista da música e a regressão

da audição, de 1938. Ele servirá de porta de entrada para nossas discussões sobre o

livro de Adorno.

O diagnóstico a respeito do caráter fetichista na música é um dos dispositivos

centrais na perspectiva adorniana de análise dos fatos musicais. No entanto, esquecemos

muitas vezes que tal diagnóstico é o vetor de um procedimento geral de crítica aos

modos de racionalização do material musical na modernidade ocidental; crítica esta que

atinge um espectro de obras maior do que aquele que normalmente estamos dispostos a

reconhecer. Esquecemos também de nos perguntar como a identificação do caráter

fetichista na música fornece o terreno para a construção de um conceito positivo de

racionalidade musical que guiará as reflexões musicais de Adorno em textos tardios

como Berg : o mestre da transição ínfima, Mahler: uma fisiognomonia musical e

principalmente Vers une musique informelle?

Trata-se aqui pois de fornecer algumas coordenadas mais precisas para a

localização do problema do caráter fetichista na música na experiência intelectual

adorniana. Veremos como isto exige o reconhecimento de que, no conceito adorniano

de “fetichismo”, convergem deliberadamente motivos de duas tradições de crítica ao

fetichismo : a marxista e a psicanalítica. Tradições que Adorno conhecia igualmente

bem. A aceitação de tal convergência talvez nos ajude a identificar melhor o regime de

funcionamento da crítica e, por conseqüência, os alvos visados por Adorno no interior

do problema dos modos de racionalização do material musical na modernidade

ocidental. Isto permitirá também a identificação daquilo que, em Adorno, aparece como

“cura” ao fetichismo na música..

Na verdade, a única cura possível ao fetichismo está relacionada à recuperação

daquele que é o conceito mais desqualificado pela estética modernista, a saber, o

conceito de mimesis. A princípio, tal relação entre fetichismo e mimesis não parece

evidente. No entanto, ler o recurso adorniano a mimesis a partir do problema do

fetichismo e compreender como tal recurso pode re-orientar a discussão sobre a

racionalidade da forma musical são dois objetivos que servirão de horizonte para este

texto.

Espaços interiores fechados

Ao contrário do que se tende a admitir, a temática adorniana a respeito do caráter

fetichista na música não se esgota na análise da deterioração dos modos de recepção do

fato musical no capitalismo tardio. Procura-se sublinhar em demasia o sentido de

“resposta” que a temática do caráter fetichista na música teria em relação a certas

expectativas emancipatórias depositadas na cultura de massa por Walter Benjamin em A

obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Grosso modo, contra a promessa

de “aprofundamento da percepção” produzida pela possibilidade do cinema penetrar o

coração do real “alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento”

(Benjamin 13, p. 22), Adorno teria insistido na tendência histórica de fixação da audição

musical na particularidade de uma dimensão fetichizada do material. Na música, o

pretenso desenvolvimento da percepção do particular seria regressão a um estágio de

incapacidade de síntese e de reconstrução da totalidade funcional. Por outro lado, se

Page 98: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Benjamin lembrava que a modernidade capitalista viu a arte consolidar a passagem do

valor de culto ao valor de exposição e, com isto, afirmar sua autonomia; Adorno não

teria deixado de sublinhar que a autonomia da esfera artística se pagava com a passagem

do valor de culto ao valor de troca e sua redução à condição de mercadoria. .

Sem desconsiderar a importância deste diálogo interno na consolidação do

motivo adorniano do caráter fetichista, devemos lembrar que ele não explica totalmente

a centralidade do problema do fetichismo no interior da filosofia adorniana da música.

Pois a temática do caráter fetichista na música indica, antes de mais nada, a deterioração

da ratio musical ocidental em uma sentido mais amplo. Ela visa demonstrar como o

processo ocidental de racionalização do material musical, processo este que tem suas

raízes na consolidação do sistema tonal com suas regras gerais de progressão harmônica

e do temperamento igual dos intervalos da escala cromática, assim como na

autonomização da racionalidade da esfera musical em relação a tudo o que é

extramusical, resultou em seu contrário, ou seja, em um encantamento do material

musical e, em certos casos, em um encantamento da organização total do material. Estes

dois modos de encantamento não devem ser confundidos, mas são sintomas

complementares do mesmo processo.

Antes de entrar em considerações sobre os modos de interversão da

racionalização do material musical em encantamento fetichista, faz-se necessário traçar

algumas linhas gerais a respeito do diagnóstico adorniano. Lembremos primeiro que

não se trata exatamente de um diagnóstico, mas de um triplo diagnóstico que concerne:

os modos de audição, a estrutura formal das obras e a função social da música no

capitalismo tardio.

De fato, quando se fala do caráter fetichista na música, pensa-se primeiramente

naquilo que se refere à função social da música no capitalismo tardio. O valor da música

na época do fetichismo da mercadoria estaria determinado pelo deslocamento de afetos

(Verschiebung der Affekte) em direção ao valor de troca. Isto quer dizer, entre outras

coisas, que a consciência musical das massas não seria guiada pelo resultado de um

julgamento estético, mas pelo mero consumo de valores de troca reificados nas obras e

socialmente determinados. Valores que se fundam através da abstração de toda

consideração qualitativa sobre os materiais musicais. Neste sentido, a relação com a

música em um momento histórico no qual ela aparece desprovida de funções rituais ou

outras funções prático-finalista para além da função de entretenimento não poderia

deixar de se inserir em uma situação de colonização pela lógica de equivalentes própria

à forma-mercadoria233. Pois a possibilidade da autonomização da esfera estética de

valor teria sucumbido à colonização da arte pela forma-mercadoria.

Mas este argumento histórico-sociológico geral de esgotamento do julgamento

estético seria desprovido de relevância se não fosse acompanhado por uma análise

formal das obras visando mostrar que a reificação (Verdinglichung) atinge suas

estruturas internas. Faz-se necessário mostrar que as próprias obras organizam-se

estruturalmente em função de certas exigências sociais de circulação e consumo. No

entanto, e este é um ponto essencial, se tais exigências atingem também as obras

daquilo que Adorno chama de “musica séria” (ernsten Musik) é porque elas não vêm

exclusivamente dos imperativos da indústria cultural, mas enraizam-se na própria lógica

do processo de racionalização do material musical, como veremos mais a frente.

Devemos insistir neste ponto : a crítica adorniana do fetichismo na música é crítica a um

233 “Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato da canção de sucesso ser

conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O

comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais

padronizadas” (Adorno 3, p. 165)

Page 99: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

processo de racionalização cuja degradação inicia-se bem antes do advento da indústria

cultural234.

A análise da estrutura interna da forma musical feita por Adorno procura mostrar

como o fetichismo na música está ligado primeiramente àquilo que podemos chamar de

fixação metonímica aos materiais; no entanto, o problema do fetichismo não se esgota

neste ponto. Há também aquilo que Adorno chama de fetichismo da série e que ocupa

uma função fundamental na nossa discussão.

Esta fixação metonímica aos materiais diz respeito tanto à lógica interna dos

processos composicionais quanto à dinâmica de audição: as duas outras dimensões do

diagnóstico adorniano. Se começarmos pela análise dos modos de audição,. podemos

falar em metonímia porque estamos diante de um fenômeno de deslocamento da

percepção do Todo em prol da autonomização de momentos parciais. E podemos falar

em fixação porque se trata de um trabalho metonímico que se bloqueia na fascinação

pelas partes, trabalho que não se organiza através de um postulado expressivo na relação

entre partes e Todo. Assim, a organicidade da totalidade funcional da obra, esta mesma

organicidade que faz com que, ainda em Schoenberg, a forma musical seja definida

como aquilo que : “está constituído por elementos que funcionam tal como um

organismo vivo” (Schoenberg 26, p. 27), dissolve-se em um conjunto de momentos

parciais autonomizados. Tal como o fetichista que destrói de maneira metonímica a

mulher para poder gozar dos traços isolados de seu corpo, o ouvinte moderno se

encontraria em uma posição de gozo fascinante por momentos parciais, o que o

desobrigaria de reconstruir a totalidade. “O sentido da música automaticamente desloca-

se da totalidade em direção aos momentos individuais” (Adorno 10, p. 262), dirá

claramente Adorno.

Neste sentido, todo e qualquer tipo de fixação exclusiva a uma dimensão do

material que nos cega para a apreensão da estrutura da qual ele faz parte e retira seu

sentido será visto como sintoma próprio do fetichismo. Esta exaltação do material em si,

desprovido de função, exaltação fascinada pelo fenômeno sensível da música, levará

Adorno a criticar a fixação na performance técnica dos instrumentistas (fixação que

ganhará o nome de “barbárie da perfeição”), no timbre desprovido de função, nas frases

melódicas que são obsessivamente repetidas (como a “melodia obsedante”, de Theodor

Reik), nos detalhes “expressivos”, entre outros.

Mas, volto a insistir, não se trata apenas de criticar a degradação da audição. Se

a audição atomizada pode se impor é porque ela encontraria obras permissivas ao gozo

metonímico que ela pressupõe. Obras que são :

“um conglomerado de idéias, de ‘achados’ (Einfällen) que são inculcados aos

ouvintes através de amplificações e repetições contínuas, sem que a organização

do conjunto possa exercer a mínima influência contrária” (Adorno 3, p. 175).

No entanto, contrariamente ao que pode parecer, o problema da perda da

possibilidade de audição estrutural, da pressuposição do acesso à transparência das

estruturas de produção do sentido através da apreensão da organização funcional das

obras musicais e, por outro lado, a perda da possibilidade de composição de totalidades

funcionais, está longe de ser o núcleo duro da crítica adorniana ao fetichismo. Tanto é

234 Daí afirmação : “Uma história musical que não queira se satisfazer com distinções entre alta e baixa

música, mas que gostaria de ver a baixa como função da alta, deve traçar o caminho que vai das

formulações mais drásticas de Tchaikowsky, como o tema secundário de Romeu e Julieta, até as melodias

favoritas harmonicamente picantes dos Concertos para piano de Rachmaninoff, Gershwin, e daí para o

infinito ruim (schlechte Unendlichkeit) do entretenimento” (Adorno 5, p. 298)

Page 100: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

assim que o protocolo de cura ao fetichismo não é a reconstrução da experiência de

totalidade auto-reflexiva através da defesa, por exemplo, do dodecafonismo integral de

Anton Webern ou do serialismo integral de Pierre Boulez com sua organização do

material musical em todos os seus parâmetros.

De fato, este ponto merece uma análise mais detalhada. A primeira vista, o

problema do caráter fetichista na música parece indicar simplesmente a dissolução da

relação fundamental entre forma musical e capacidade de síntese da diversidade do

material. Isto valeria tanto para a dimensão da produção quanto para a recepção

musical. Lembremos que Adorno falará das obras como “espaços interiores fechados”

(Innen zusammenliet) (Adorno 1, p. 205) e definirá a função da forma estética como a :

“mediação enquanto relação das partes entre si e relação à totalidade, assim que

enquanto completa elaboração (Durchbildung) de detalhes” (Adorno 1, p. 216). Adorno

será ainda mais claro quando definir a função da forma como “síntese musical” (Adorno

3, p. 167) ou quando ver na forma musical : “a totalidade na qual um encadeamento

(Zusammenhang) musical adquire o caráter de autenticidade” (Adorno 9, p. 254).

Se este fosse o caso, então a crítica adorniana seguiria os moldes “clássicos” de

uma certa crítica marxista do fetichismo. Sabemos que um dos processos fundamentais

presentes no fetichismo da mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito

apreender a estrutura social de determinação do valor dos objetos devido a um regime

de fascinação pela “objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit)

daquilo que aparece. Fascinação vinculada à naturalização de significações socialmente

determinadas. Uma certa crítica do fetichismo se organizaria a partir daí através da

temática da alienação da consciência no domínio da falsa objetividade da aparência e

das relações reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão da

totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido.

Por outro lado, a tomada de consciência resultante do trabalho da crítica

pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes

de instaurar um regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da

totalidade dos mecanismos de produção do sentido. A crítica viraria assim : “descrição

das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”

(Prado Jr. 25, p. 210). E o que seria a audição estrutural a não ser o resultado desta

crença em um horizonte de transparência do sentido ?

Mas uma série de problemas seguiriam necessariamente tal posição.

Lembremos, principalmente, que tal noção de forma como síntese musical parece ser

perfeitamente adequada apenas à análise de estruturas tradicionais como, por exemplo, a

forma-sonata com seus processos de apresentação e re-articulação do material.

Processos sustentados pela tensão entre desenvolvimento das partes e construção de

sínteses através da repetição de motivos e materiais. No entanto, o que dizer da

experiência contemporânea da forma? O que dizer, por exemplo, de uma forma como a

de John Cage que parece não admitir a mediação entre acontecimentos regionais e

articulação global235 ? Adorno seria , na verdade, alguém que só pode ver a produção do

sentido através da posição de uma totalidade construída a partir de uma dialética entre a

particularidade da expressão e a universalidade da construção formal ? Afinal, não é ele

que afirma, por exemplo que a grandeza de Beethoven encontra-se na completa

235 Lembremos do que diz Cage a este respeito : “Eu interpreto a palavra ‘estrutura’ como a divisão do

todo em partes. E eu aplicaria a utilidade da idéia de estrutura a uma obra de arte que parte para ser um

objeto, ou seja, que tem um começo, um meio e um fim. E se, como geralmente é meu caso, faz-se algo

que não é um objeto, mas um processo, então esta preocupação não tem lugar e a questão de saber se é

melhor ou não é sem objeto” (Konstelanetz 20, p. 292)

Page 101: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

subordinação do elemento melódico, acidental e privado (züfallig-privaten melodischen

Elements) à totalidade da forma (Formganze)?

Vale a pena lembrar aqui como Lyotard criticava vivamente Adorno devido

exatamente a esta idéia de forma como síntese musical. Segundo ele :

“seu ceticismo [o ceticismo de Adorno em relação àquilo que é desprovido de

relação e que não se submete à síntese] resplandece na nova música ; o material

só vale como relação, só há relação. O som reenvia à série, a série às operações

sobre ela” (Lyotard 24, p. 118).

No entanto, seguir Lyotard significa perder a particularidade da experiência

adorniana e não compreender, por exemplo, suas críticas, bem conhecidas, ao serialismo

integral da Escola de Darmstadt, ou mesmo, ao processo de racionalização do material

musical tal como ele é concebido por Max Weber. Tanto em um caso quanto no outro,

as crítica de Adorno giram exatamente em torno da hipóstase da noção de relação na

determinação da racionalidade do fato musical. De qualquer forma, seria no mínimo

estranho que o mesmo Adorno que não cansava de afirmar que o Todo era o não-

verdade e de que : “o medo do caos, em música como na psicologia social, é

superestimado”. teria hipostasiado a noção de relação. Lembremos que, neste sentido, a

afirmação maior de Adorno continua sendo : “a unidade (Einheit) das obras de arte não

pode ser o que ela deve ser , ou seja, unidade da variedade. Sintetizando, ela estraga o

sintetizado e arruína nela a síntese”. Daí porque : “A arte mais exigente tende a

ultrapassar a forma como totalidade e realizar-se no fragmentário” (Adorno 1, p. 221).

Para realizar seu conceito, a música deve fracassar como totalidade funcional.

Lembremos também como Adorno sempre procurou pensar a análise musical como

crítica à ilusão da obra como Gestalt, boa forma totalizante. Criticar a aparência ilusória

do todo é um postulado que vale também para o projeto da filosofia da música

adorniana. Posições estas que só complexificam tanto a função do diagnóstico a

respeito do caráter fetichista na música quanto o prognóstico adorniano.

Anular o tempo : o devir imagem do material

Para compreender o que Adorno tem realmente em vista ao articular o diagnóstico a

respeito do caráter fetichista na música, devemos retornar à tese da audição atomizada :

o primeiro nome da audição fetichista. Seu caráter descontínuo, índice da sua

incapacidade em articular sínteses, nos lembra que estamos diante de uma audição

musical que não seria mais guiada por processos de rememoração e expectativa

(Erinnerung und Erwartung). Ela ignoraria que :

“em música, nada é isolado e tudo só se transforma no que é através do contato

físico com o que é próximo e do contato espiritual com o que é distante, na

rememoração e na expectativa” (Adorno 9, p. 254).

Adorno insiste no fato de que o instante musical conhece uma causalidade temporal que

o faz : “em virtude daquilo que ele faz lembrar, daquilo do qual ele se distingue, da

expectativa que ele desperta, reenviar para além de si mesmo” (Adorno 9, p. 256). Há

assim uma “transcendência” fundamental do instante musical que nos mostra que ele

nunca é exatamente idêntico à si mesmo, já que seu sentido só se estabelece através de

processos contínuos de recontextualização dos instantes passados.

Page 102: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Mas, como nos lembra Adorno, o tempo que estrutura a música fetichizada não é

o tempo-duração pressuposto pelos processos de rememoração, mas uma espécie de

tempo-espaço submetido às leis da descontinuidade e da justaposição. Como dirá, por

exemplo, este anti-bergsoniano involuntário que é Philip Glass : “Minha música é um

motor do espaço”. Fórmula precisa já que sua música, como muitas outras, não faz

apelo à rememoração ou às tramas teleológicas da memória. Ela faz apelo à dissolução

da experiência da temporalidade e à ek-stase própria daquilo que se transforma em

objeto no espaço. A audição atomizada da qual fala Adorno é, na verdade, audição

submetida às leis do espaço, audição que se submete a espacialização do tempo ao

apresentar os complexos de duração como complexos espaciais. Na verdade, estamos

diante de uma audição que passa de um material a outro tal como alguém que atravessa

as fronteiras de um território descontínuo; pois a determinidade imediata do espaço

fundamenta-se na indiferença recíproca como marca do modo de ser da espacialidade.

Esta submissão da audição à lógica descontínua do espaço é fundamental para

compreendermos a amplitude do que está realmente em jogo no diagnóstico a respeito

do caráter fetichista na música. Isto ao ponto de podermos afirmar que as várias formas

de anulação do tempo-duração nos fornecerão regimes distintos de fetichismo. Na

verdade, Adorno partilha diagnósticos como o de Lukács, para quem a racionalização na

modernidade capitalista : “reduz tempo e espaço a um denominador comum, nivelando

o tempo segundo o plano do espaço”. Pois “o tempo perde seu caráter qualitativo,

mutável, fluido, cristalizando-se em um contínuo cheio de ‘coisas’ delimitadas de

maneira estática, quantitativamente mensuráveis” (Lukács 23, p. 131). Tal diagnóstico

vale para a racionalização do material musical.

Mas, antes de analisarmos diretamente os impasses da racionalização musical,

devemos partir de certas considerações derivadas da forma mais evidente da anulação

do tempo: aquela pressuposta pela audição atomizada. Podemos dizer que a audição

atomizada é, na verdade, uma audição que tende a apreender o material musical da

mesma maneira que apreendemos uma imagem estática que se dá no espaço. É isto o

que Adorno tem em vista ao afirmar que a : “espacialização da música testemunha sua

pseudomorfose em pintura” Isto para, logo em seguida, insistir na impossibilidade de

uma síntese das artes devido ao fato de que: “toda pintura, e também a pintura não-

figurativa, tem seu pathos naquilo que é; toda música, ao contrário, visa um devir

(Werden)” (Adorno 8, p. 174). Esta determinação significante da imagem seria estranha

à indeterminação do sentido no fato musical. Adorno, na verdade, recorre aqui, mais

uma vez, à temática romântica da música instrumental desprovida de funções, textos e

programas como veículo privilegiado de exposição daquilo que excede toda

determinação fenomenal, ou seja, como veículo de uma metafísica do sublime.

Indeterminação fenomenal que permitiria à música, contrariamente às artes da imagem,

não se submeter totalmente à ratio objetivante236.

Notemos aqui a especificidade da concepção adorniana de temporalidade.

Adorno procura um pensamento do tempo não submetido ao paradigma da

espacialidade. Ou seja, trata-se de não pensar o tempo como justaposição de momentos

inertes e independentes, mas como movimento dinâmico de auto-anulação da

identidade. Esta negatividade própria à potência elementar do tempo nos reenvia

necessariamente à Hegel e à sua noção do tempo como “atividade negativa ideal”

(ideelle negative Tätigkeit) (Hegel 18, p. 156), ou seja, como potência que anula a

236 “A música contém algo que escapa à civilização, algo que não se submete totalmente à ratio reificada

(vergegenständlichenden); enquanto que as artes plásticas, que se vinculam a coisas (Dinge)

deeterminadas, ao mundo objetivo (gegenständliche) da práxis, mostra-se aparentada ao espírito do

progresso tecnológico” (ADORNO 8, p. 175)

Page 103: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

justaposição indiferente do espacial ao instaurar a continuidade de instantes que, por

serem necessariamente pensados em continuidade, negam-se a si mesmos enquanto

identidades autônomas.

Neste sentido, devemos lembrar que, para Adorno, a anulação da temporalidade

na música traz ao menos duas conseqüências distintas mas complementares. A primeira

diz respeito à dinâmica musical. Ao submeter-se ao tempo-espaço, o desenvolvimento

interno da forma musical, marcado pela continuidade temporal da duração, tende a dar

lugar a uma articulação que se assemelha à construções por justaposição.

Mas, por outro lado, e este é o ponto mais importante, se a audição atomizada

pode apreender o material musical da mesma maneira que apreendemos uma imagem

estática que se dá no espaço, é porque estamos diante de um material reduzido à sua

própria imagem. A audição atomizada indica o devir imagem do material musical.

No nosso contexto, isto significa dizer que o material se transforma em

gramática congelada e estática, peças de um vocabulário totalmente codificado. Adorno

falará de acordes que são sempre usados em funções idênticas, combinações

estereotipados como os passos de uma cadência. A invariância de um material

previamente codificado pelo sistema leva à estereotipia e à constituição de uma

“segunda natureza” reificada. Por não poder se desenvolver para além da forma definida

por uma apreensão estereotipada, o material é reduzido à estática de imagens

idealizadas. Dissolve-se assim aquilo que Adorno chama de “resistência do material” à

sua instrumentalização integral, ou seja, este estranhamento do material que resiste a

todo processo de conformação integral à construção.

De fato, tal submissão do material musical à estática da imagem é o centro do

diagnóstico a respeito do caráter fetichista na música. O problema da perda do princípio

de organização e de percepção da totalidade funcional das obras é apenas seu efeito

derivado. Pois o verdadeiro problema do fetichismo é a deposição da resistência de

materiais que se dão essencialmente no tempo.

Mas vale a pena ainda insistir em outro ponto. Nesta redução do material à sua

própria imagem, a temática adorniana do fetichismo se aproxima daquilo que a teoria

psicanalítica chama de idealização (Idealisierung) própria a toda operação fetichista.

Jacques Lacan será mais explícito ao falar de imaginarização.

Há certamente várias maneiras de compreender este mecanismo de idealização

mas gostaria de me restringir a apenas uma. Ela está presente no sentido mais arcaico da

palavra idealização. Trata-se da submissão do objeto ao esquema mental que dele

possuímos. Ou seja, trata-se da apreensão do objeto como projeção de um esquema

mental que, no caso do fetichismo, é imagem fantasmática237. O objeto fetiche é objeto

reduzido a condição de suporte de uma imagem fantasmática. O que nos explica, por

exemplo, porque o fetichista é necessariamente um cenógrafo que, através de uma

espécie de contrato, constrói situações nas quais ele procura anular toda dissonância

presente no corpo do objeto através da sua conformação perfeita à imagem. É uma

pregnância imaginária semelhante que Adorno tenta evitar ao insistir que : “o que se

aferra à imagem fica prisioneiro do mito, culto dos ídolos” (Adorno 7, p. 199). Daí

porque : “é sem imagem que o objeto deve ser pensado em sua integralidade” (Adorno

7, p. 201).

Neste sentido, não é por acaso que os momentos parciais que se autonomizam na

música fetichizada sejam, normalmente, os momentos de inflexão expressiva. O

impulso (Impus, Drang, Trieb) subjetivo tende ao informe, à negação da organicidade

funcional, como vemos no livro de Adorno dedicado à Alban Berg. Nele, Adorno não

237 Lacan, por exemplo, dirá que : “O fetiche é de uma certa maneira imagem, e imagem projetada”

(Lacan 21, p. 158)

Page 104: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

cessa de lembrar que: “quem analisa esta música, sobretudo a vê desagregar-se como se

não contivesse nada de sólido” e chega, várias vezes, a falar na pulsão de morte como

tendência originária das obras, isto devido ao desejo insaciável de amorfo e de informe

que as habitas. “A cumplicidade com a morte, uma atitude de amável urbanidade em

relação a sua própria dissolução caracteriza as obras de Berg” (Adorno 6, p. 83), dirá

Adorno.

Tais colocações são índices de uma mutação na categoria de “expressão”

operada por Adorno. Para alguém como ele, que moldou a categoria do impulso a partir

do conceito freudiano de pulsão, a expressão subjetiva não pode mais estar subordinada

a gramática dos afetos ou da imanência expressiva da positividade da intencionalidade.

Lacan insistirá que a pulsão é fundamentalmente caracterizada por ser inadequada a

toda determinação objetiva empírica, ou seja, o que é determinante na pulsão é o fato

dela não ter objeto naturalmente dado, como Freud nos mostrou em Pulsões e destinos

da pulsão. Uma pulsão pensada nesta chave expressa-se no interior das obras como

negação das identidades fixas submetidas a uma organização funcional, como

incidência do negativo na obra. Em alguns casos, tal negação aparece como tendência

ao informe, como seria o caso de Berg. No entanto, o que a música fetichizada faz é

dominar a negatividade da expressão subjetiva através da imagem fetichizada da

subjetividade, imagem que não deixa de dar lugar a um certo jargão da autenticidade.

Daí porque um dos temas fundamentais da estética adorniana não é o abandono da

categoria da expressão, mas a sua liberação do “momento da transfiguração, do

elemento ideológico na expressão (das Ideologische am Ausdruck)” (Adorno 2, p. 156).

Ou seja, tudo se passa como se Adorno tentasse, de uma certa forma, convergir, em um

mesmo movimento, categorias da música como veículo da metafísica do sublime e um

conceito de expressão construído a partir da noção psicanalítica de pulsão, com sua

ausência de determinação objetiva. Movimento arriscado, mas absolutamente possível

no interior da trajetória adorniana.

Racionalizações

Neste ponto, devemos insistir que tal maneira de pensar o fetichismo como

procedimento de submissão do material à estática das imagens e da conseqüente

deposição da sua não-identidade através da espacialização do tempo é índice da crítica

adorniana ao processo de racionalização do material musical no ocidente, ao menos tal

como ele é pensado por Max Weber.

Sabemos que a racionalização em Weber define-se, entre outras coisas, por um

processo triplo de desencantamento, de dominação pelo cálculo (Berechnen

beherrschung) e de consolidação da legalidade própria de cada uma das esferas de

valores. Sabemos também que falar em “desencantamento” do material musical

significa, inicialmente. livrar a música de toda e qualquer ligação essencial com funções

rituais. Trata-se de fazer a crítica do fetichismo mágico-religioso na música. Por isto,

Weber insiste que :

“temos que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi

afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do

puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar

sobretudo mágicos” (Weber 29, p. 87).

Mas o processo de desencantamento do material musical em Weber não se

resumiu apenas à crítica do fetichismo mágico-religioso na música. A música deve se

Page 105: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

liberar de toda afinidade mimética com aquilo que lhe é externo, em especial com a

linguagem. A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do

abandono de sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o

fetichismo mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do material musical é solidária

do abandono de todo princípio mimético na racionalidade do fato musical. Note-se que

a música aparece como espaço privilegiado para a reflexão sobre este tipo de

racionalização devido ao seu caráter eminentemente não-figurativo e resistente a

processos de conceitualização.

Este conceito positivo de razão fundado na autonomia do fato musical a tudo

aquilo que é extramusical graças a consolidação de um sistema estrutural de

significação representado pelo tonalismo com suas regras de progressão harmônica será

claramente criticado por Adorno. Lembremos como, para ele :

“Uma vez que, na sua própria esfera, que é a livre produção artística, o espírito

domina tudo até o último elemento heterônomo, até o último elemento material

(Stoffliche), ele começa a girar em torno de si mesmo, como se estivesse

aprisionado, desligado de tudo o que a ele se opõe. A liberação total do espírito

coincide com a emasculação do espírito. Seu caráter fetichista, sua hipóstase

como simples reflexão formal advém manifesta a partir do momento em que ele

se libera (offenbar) do último vínculo de dependência com o que não é espírito”

(Adorno 8, p. 28).

Aqui, vemos claramente como o caráter fetichista está vinculado a construções

que, por participarem de uma lógica de autonomização do fato musical em relação a

tudo aquilo que é extramusical, só podem pensar a produção do sentido através da

submissão integral do material à forma. Este programa de dominação completa do

material anula a dialética entre forma e material e eleva as regras de construção a uma

“segunda natureza” (Adorno 9, p. 252) reificada e estática . E ao transformar-se em

“segunda natureza” não mais submetida à historicidade de suas escolhas, a construção

estereotipiza o material, definindo previamente suas possibilidades de incidência, sua

seqüência, ou seja, transformando em imagem estática aquilo que tem sua dimensão

original na potência negativa do tempo. Neste devir imagem de um material reificado, a

racionalização se inverte em encantamento. Não se trata mais do encantamento de um

material cujo sentido submete-se a funções mágico-religiosas; mas um encantamento

que naturaliza regras de construção e que transforma o material em mero suporte desta

segunda natureza238. Desta forma, podemos mesmo dizer que a desagregação da forma

em momentos parciais autonomizados já estava inscrita como destino devido a

estereopização implicada no programa de dominação completa do material.

238 Lembremos, por exemplo, do que diz Eduard Hanslick (cuja concepção de música autônoma, “formas

sonoras em movimento”, em muito se assemelha àquela defendida por Max Weber) a respeito das regras

de construção harmônica do sistema tonal: “O elemento satisfatoriamente racional que em si e por si pode

residir nas formações musicais funda-se me certas leis básicas primitivas que a natureza implantou na

organização do homem e nos fenômenos sonoros externos. A lei originária da “progressão harmônica” é o

que, de preferência, analogamente à forma circular nas artes plásticas, traz em si o germe dos

desenvolvimentos mais importantes e a explicação das diferentes relações musicais” (Hanslick 17, p. 41).

Ao elevar a harmonia como segunda natureza, vemos assim uma verdadeira naturalização da ratio

musical.

Page 106: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno

Aula 11

Introduzindo a Filosofia da nova música

Sabemos como “Filosofia da nova música” transformou-se no texto

mais conhecido de Adorno a respeito da música. O livro funcionou como

um marco de consolidação do que hoje poderíamos chamar de campo da

filosofia da música. Nesta aula, gostaria de analisar algumas estratégias

gerais que orientam o livro, a começar pela maneira de contrapor, como

dois vetores contrários no desenvolvimento do pensamento musical do

século XX, Schoenberg e Stravinsky. Minha idéia é de que esta maneira de

organizar os eixos do desenvolvimento da linguagem musical no século

XX, maneira que não é a única possível, obedece a uma escolha tática

impregnada de decisões filosóficas. Notemos, por exemplo, que ela

secudariza o pensamento musical francês cujas questões não se enquadram

totalmente na polaridade Schoenberg/Stravinsky. A desconstrução da

funcionalidade harmônica em Debussy e posteriormente em Messiaen não

é legível nem no interior da racionalidade dodecafônica, nem no interior da

paródia do tonalismo de Stravinsky. Notemos também que a perspectiva

adorniana acaba por secundarizar a peculiaridade do politonalismo e do o

trabalho de dissonâncias no interior de uma gramática ainda tonal na

música de Bela Bartok.

No entanto, esta escolha em validar a polaridade

Schoemberg/Stravinsky como eixo maior de compreensão do

desenvolvimento da linguagem musical do século XX não é gratuita. Se

formos a Introdução da Filosofia da nova música, Adorno colocar seu texto

“O caráter fetichista na música” como uma espécie de preâmbulo ao

presente livro. Ele afirma :

não poder se enganar a respeito do fato de que a arte que moldou seu

espírito não escapará, mesmo sob sua forma pura e intransigente, à

reificação que reina por todos os lados, mas que esta arte, justamente

no esforço de defender sua integridade, produz a partir de si mesma

as características desta mesma natureza contra a qual ela se opõe239.

Ou seja, esta maneira de colocar o texto sobre o fetichismo como vetor de

orientação para a Filosofia da nova música nos indica, entre outras coisas,

que o diagnóstico de fetichismo, pensado aqui como momento de

239 ADORNO, PNM, p. 7,

Page 107: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

interversão da racionalização do fato musical em encantamento, deve agora

ser procurado também nesta arte pura e intransigente que será objeto do

livro. Novamente, estamos diante da idéia de que o fetichismo não é

resultante de uma simples consideração a respeito do destino da música no

interior da indústria cultural, mas ele organiza a maneira com que Adorno

pensa os impasses da racionalização do material musical no Ocidente.

Impasses que seriam partilhados, de maneiras diferentes, por Schoenberg e

por Stravinsky.

Neste sentido, devemos estar atentos à idéia de que a Filosofia da

nova música seria uma : “digressão da Dialética do Esclarecimento”. Da

mesma maneira como a Dialética do esclarecimento tinha como função

central fornecer uma crítica geral aos processos de interversão da razão em

dominação, seja nos campos da dimensão cognitiva (O conceito de

esclarecimento e Ulisses ou Mito e esclarecimento), da dimensão prática

(Juliette ou esclarecimento e moral) e dos processos de interação social

(Elementos de anti-semitismo e O esclarecimento como mistificação das

massas), a Filosofia da nova música amplia tal crítica geral para campo da

dimensão estética. Neste sentido, o livro só pode terminar em uma aporia.

A nova música será vista como uma garrafa no mar a procura de

destinatários que ainda não existem. Posteriormente, teremos que ir em

direção a outros textos para procurar o possibilidade de um conceito

positivo de razão musical em Adorno.

Eu havia falado anteriormente que a maneira de organizar o

desenvolvimento da forma musical no século XX através do

estabelecimento da polaridade Schoenberg/Stravinsky respondia a uma

orientação propriamente filosófica. De fato, veremos a partir desta aula

como Schoenberg e Stravinsky traziam dois regimes de fetichismo : o

fetichismo da série e o fetichismo como fixação metonímica aos materiais.

Notemos ainda que esta duplicidade do diagnóstico adorniano deve ser lida

no interior de um movimento duplo de crítica próprio a todo pensamento

dialético. Tudo se passa como se Adorno organizasse o desenvolvimento da

forma musical a partir de uma dupla crítica fundante de toda perspectiva

dialética

Desde Hegel, vemos a dialética procurar afirmar a dimensão

especulativa através de um movimento duplo de negação que visa, por um

lado, invalidar todo pensamento da imanência que crê na possibilidade de

recuperação de níveis de experiência imediata e pré-discursiva e, por outro,

todo pensamento transcendental que só pode pensar o sentido através de

uma elaboração de categorias formais deduzidas a priori. Nos dois casos, a

dialética identifica a presença de um princípio de identidade guiando tanto

a certeza de que há uma imanência disponível à experiência quanto a

defesa de que a forma organiza previamente a integralidade do sentido da

experiência. A astúcia de Adorno consistiu em encontrar estes dois regimes

Page 108: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

do princípio de identidade em operação na organização dos vetores da

experiência musical do século XX. O “estruturalismo transcendental” do

programa de construção integral (que vai do dodecafonismo ao serialismo

integral) vê o material musical como aquilo que é absolutamente integrado

em uma totalidade de relações. O “plano de imanência” próprio à fixação

no fenômeno sensível da música (posição que inicialmente visa a fixação

metonímica nos materiais mas que também dá conta, em Adorno, da

hipostase do sonoro como o que é provido de realidade em si, e aqui

Adorno visa o intuicionismo da música aleatória de John Cage; embora não

se trate de dizer que os dois fenômenos musicais partilhem o mesmo

padrão de racionalidade) vê o material como o que é provido de

significações naturalizadas. Ou seja, a princípio, Stranvinsky e Schoenberg

distinguem-se da mesma maneira que distinguimos imanência e

transcedentalidade.

Schoenberg

No interior da Filosofia da nova música, Schoenberg aparece como aquele

que é capaz de indicar uma orientação para a procura de um conceito

positivo de racionalidade musical que não se inverta simplesmente em

dominação da natureza. Mas, para Adorno, o verdadeiro caminho apontado

por Schoenberg só se tornará visível a partir do momento em que certos

ideais schoenbergianos de construção integral forem devidamente

criticados. Neste sentido, o capítulo dedicado à Schoenberg na Filosofia da

nova música é eminementemente crítico e apenas suas últimas páginas

aparecem sob a luz de uma reflexão sobre direções possíveis para a nova

música, para além do impasse.

O trajeto composicional de Schoenberrg foi marcado por várias

rupturas internas. De fato, sua trajetória pode ser dividida em quatro fases:

até 1908, Schoenberg é um compositor tonal, embora seu uso da tonalidade

já demonstre uma tendência em aprofundar cada vez mais as possibilidades

abertas pelo cromatismo. Isto o levará, entre 1908 e 1923, a um período

atonal, ou como preferia o próprio Schoenberg, “pantonal”. Na verdade,

este é o período no qual Adorno encontra a possibilidade de um

desenvolvimento da forma musical que responde de maneira mais

satisfatória às suas exigências. A partir de 1923 até 1934 temos o período

dodecafônico. A primeira peça dodecafônica só foi terminada em 1923 (a

valsa das cinco peças para piano, opus 23). Durante dez anos, Schoenberg

praticamente não terminou peça alguma. Já neste período, encontramos

algumas peça “híbridas” pois não são totalmente organizadas a partir dos

princípios dodecafônicos. Por fim, a partir de 1934, encontramos um

período ainda relativamente pouco estudado, período marcada

Page 109: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

principalmente pela utilização de material tonal e pela construção de

formas híbridas. Este último período também é importante para as análises

de Adorno, que vê nele a consolidação de processos composicionais

importantes para toda reflexão contemporânea sobre o destino da forma

musical.

O capítulo dedicado a Schoenberg na Filosofia da nova música

obedece, de uma certa forma, a esta trajetória. Ele começa a partir de

considerações sobre a tendência histórica do material musical. Ou seja,

trata-se de reconhecer que o material musical não é naturalmente fornecido.

Adorno no fundo critica todos aqueles que procuram derivar as regras de

consonância e de progressão harmônica de leis naturais e, com isto,

“naturalizar” a razão musical. Vimos um exemplo desta estratégia com

Eduard Hanslick. Ao contrário, Adorno procura insistir no fato de que o

material, ou seja, aquilo que o compositor dispõe para compor, é

historicamente determinado. Isto indica, por exemplo, que nem tudo é

possível a todo momento. Reconhecer a tendência histórica dos materiais

implica em reconhecer que certas dimensões do material podem se tornar

falsas, pois aludem a um momento histórico que, do ponto de vista das

técnicas composicionais, já passou. Ou seja, ninguém toca um acorde

perfeito impunemente quando as contradições não prometem nenhuma

forma de conciliação imediata.

Recuperar a expressão

De fato, Schoenberg aponta para o reconhecimento da tendência histórica

do material ao afirmar que : “a arte é, em seu estágio mais elementar, uma

simples imitação da natureza. Mas logo se torna imitação nem sentido mais

amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas

também da interior”240. Nós sabemos como esta “imitação da natureza

interior” nos leva diretamente à categoria de expressão enquanto elemento

central na determinação da racionalidade da forma estética. Mas a pergunta

que devemos fazer é : como Schoenberg recupera a categoria de expressão?

O recurso ao vocabulário da imitação poderia parecer nos recolocar

nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituição da

aparência estética. No entanto, ao contrário, a expressão desta “natureza

interior” só poderá ser posta através da crítica à aparência funcional das

obras. A natureza desta crítica à aparência como motor da racionalidade de

obras que aspiram à modernidade foi claramente identificada por Adorno

ao afirmar que: “em Schoenberg, o aspecto verdadeiramente novo é a

mudança de função da expressão musical”241. Esta frase é mais decisiva do

que parece, já que normalmente, aceitamos que o aspecto realmente novo

240 SCHOENBERG, Tratado de harmonia, p. 55 241 ADORNO, PNM, p. 50

Page 110: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

da experiência musical de Schoenberg estaria presente na sua maneira de

criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal. Mas, no entanto,

Adorno insiste que devemos procurar a verdadeira cena da música de

Schoenberg através da compreensão de seu uso da categoria de expressão.

A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper com o

fato de que:

Desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira

musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada,

mediada, ou seja, como aparência de paixões242.

Segundo esta leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma

gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a

particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e

submetida à generalidade conciliadora que constitui o primeiro princípio da

aparência estética. O esgotamento do sistema tonal é, também,

esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso

reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de

um “sistema de representações”. A “emancipação da dissonância” em

relação ao esquema antecipação-resolução, emancipação a respeito da qual

fala constantemente Schoenberg não seria outra coisa que a possibilidade

de construir idéias musicais capazes de desvelar uma expressão recalcada

pela gramática do sistema tonal. Recalque produzido por uma aparência

que submete a expressão singular aos ditames de uma linguagem

sedimentada.

Assim, o que Schoenberg faz é manifestar musicalmente uma

expressão desprovida de gramática. Neste sentido, Adorno não poderia ser

mais claro :

Não se trata mais de paixões fingidas, mas enregistra-se no medium

da música movimentos reais, e não disfarçados, do inconsciente,

choques, traumas. Eles atacam os tabus da forma, que submetem tais

movimentos à censura, os racionalizam e os transpõem em

imagens243.

Notemos primeiro esta tríade de recalcamento da expressão pela forma :

censura, racionalização e transposições em imagens.

Adorno encontra esta expressão que não se deixa colonizar por

imagens, por exemplo, em Erwartung, de 1909 Trata-se de uma música

escrita em um estilo atonal livre que desconhece trabalhos temáticos e não

é definível por categorias formais. Ela não tem nada que se assemelhe a

242 idem, p. 49 243 idem, p. 50

Page 111: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

desenvolvimento ou continuidade, embora Dahlhaus insista que há um

trabalho de células motívicas. A ausência de estruturas temáticas claras e a

negação da forma como totalidade funcional aparecem como modo de

manifestação de uma expressão que deve ser compreendida como:

gravação sismográfica de choques traumáticos que se transforma na

lei técnica da forma musical, impedindo continuidade e

desenvolvimento244.

Esta afirmação é importante. Trata-se de tentar defender que o caráter

negativo da expressão fornece o princípio legal de organização desta forma

musical que nega a forma. Assim, a música vai sendo montada como uma

certa escritura de cicatrizes:

o contraste, suplantado no século XIX pela transição, converte-se em

meio de estruturação formal, sob a pressão de um estado sentimental

polarizado em seus extremos245.

E que o drama musical se chame Erwartung não deixa de guardar uma

certa ironia. Sabemos como a organização funcional baseada no sistema

tonal é fundado sobre um duplo processo de rememoração e expectativa

(Erinneung und Erwartung). Através da rememoração, construímos a

unidade de temas e motivos que se repetem e que determinam seu sentido

através de um sistema de repetições e analogias. Através da expectativa,

criada pelas cadências e pelas progressões harmônicas, a forma musical é

atualizada na memória do ouvinte, mesmo que ela não se realize no

fenômeno musical. No entanto, a peça de Schoenberg é um sistema de

anulação de expectativas, devido à negação contínua da forma musical.

De fato, uma análise inicial de Erwartung nos mostra que ela está

sustentada em dois processos composicionais contraditórios. Por um lado,

ela organiza-se como um recitativo accompagnato expandido para a

integralidade do drama musical, ou seja, como uma declamação musical

suportado por motivos orquestrais expressivos ou descritivos. Mas os

motivos orquestrais, ao invés de acompanharem o texto, desdobram-se em

um emaranhado polifônico e contrapontístico, impedindo assim que o texto

seja “acompanhado” pelos motivos orquestrais. Podemos compreender

melhor esta característica se lembrarmos o que o próprio Schoenberg diz a

respeito de Erwartung : “é impossível ao homem sentir apenas uma coisa

por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo tempo. E estas milhares de

coisas não se adicionam, da mesma maneira como uma maça e uma pêra

não se adicionam. Elas divergem. É esta multiplicidade de cores, de

244 idem, p. 53 245 ADORNO, Prismas, p. 151

Page 112: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

formas, este alogicismo próprio a nossas sensações, alogicismo inerente às

associações de idéias, a não importa qual reação dos sentidos e dos nervos

que quero em minha música”. E de fato, o caráter fragmentário do texto,

que Adorno comparava à narrativa psicanalítica de sonhos, reforça a

instabilidade formal da obra.

Mas se fizermos uma recapitulação dos elementos utilizados para

descrever Erwartung, pode parecer que se trata da mesma constelação de

motivos usados para expor as características da música de Stravinsky :

anulação de continuidade e desenvolvimento, dissolução dos princípios

clássicos de organização funcional da obra, gravação sismográfica de

choques traumáticos. Sendo assim, onde está a diferença entre Schoenberg

e Stravinsky aos olhos de Adorno? Neste momento, ela não está lá onde

nós esperamos, ou seja, nos procedimento composicionais gerais. Ela está

no conceito mesmo de “expressão”. Veremos como Stravinsky usa

exatamente o material mais fetichizado e gasto para estrutura os momentos

expressivos da música : pequenos motivos elementares sempre diatônicos,

peças musicais de salão etc. Segundo Adorno, há sempre algo de infantil

nas inflexões expressivas de Stravinsky e isto se daria devido à

implementação do programa modernista de retorno ao arcaico. A tríade :

infantil, arcaico, inconsciente seria o tripé usado por Stravinsky para

sustentar o papel por ele definido para a expressão. Já em Scheonberg, os

impulsos que constituem a expressão não nos levam exatamente em direção

ao arcaico e ao infantil. Eles nos levam à uma certa história do sofrimento,

a história daquilo que é desprovido de imagem, ou seja, a dimensão da

angústia como verdade. Como dirá Adorno, o núcleo da expressão em

Schoenberg é a angústia246. Haveria todo um trabalho a ser desenvolvido

para mostrar como a angústia vai aos poucos aparecendo como categoria

expressiva fundamental na arte contemporânea [A náusea,

Sartre/Heidegger e a angústia/ a angústia como manifestação de um desejo

desprovido de objeto] .

Dodecafonismo e construção como verdade

De fato, se Adorno estiver correto em sua interpretação, a obra de

Schoenberg seria estruturada em torno de uma tentativa de recuperar a

expressão através da negação da aparência estética. Isto o teria levado a um

combate contra a aparência musical e contra tudo aquilo o que poderia

aparentar a uma organicidade caduca que se faria passar por segunda

natureza através da entificação do sistema tonal. Neste sentido, a passagem

da fase “expressionista” à fase “dodecafônica” marcaria a transformação da

negação da aparência em sistema. A negação da aparência no

246 ADORNO, Prismas, p. 172

Page 113: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

dodecafonismo fica clara se lembrarmos que : “se anteriormente a

totalidade se realizava às costas dos acontecimentos singulares, agora ela é

construção consciente”247.

Ao racionalizar todas as incidências do material musical através do

primado da série, que faz com que cada evento seja automaticamente

reportado a este padrão transcendental de justificação que é a série, a

música tenta assim se liberar da aparência costurada pela naturalidade do

sistema tonal. Ao colocar a música sob o signo do combate à aparência e do

desvelamento da estrutura, Schoenberg pode recuperar suas exigências de

verdade a partir da constituição de um sistema. Isto o permitirá sair do

impasse do período pantonal : obras cada vez menores, a não ser que elas

fossem sustentadas por elementos exteriores como texto.

Aqui, vale uma digressão. Não deixa de ser ilustrativo que

Schoenberg interesse-se por Freud e por sua noção de interpretação das

formações do inconsciente como revelação do que se aloja em uma outra

cena. Ao interpretar obras estéticas, Freud parte do princípio de que a

verdade da obra não coincide com sua letra, já que a aparência estética

oblitera uma dinâmica pulsional que só pode aparecer a partir de operações

arqueológicas de procura pelo sentido. “Eu percebi constantemente”, dirá

Freud, “que o conteúdo (Inhalt) de uma obra de arte me apreende mais que

suas qualidades formais e técnicas”248. Este comentário inocente é, na

verdade, a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o

pensamento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo

Freud, é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus

desejos inconscientes e suas moções pulsionais) através do ato de:

“descobrir (herausfinden) o sentido e o conteúdo do que é representado

(Dargestellten) na obra de arte “249. Desta maneira, o entrelaçamento entre

estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de

visibilidade integral das obras. Por outro lado, com sua teoria das pulsões,

Freud permitiu a reconfiguração de uma categoria estética fundamental

como a expressão.

Para Schoenberg, tal exigência de visibilidade afirma-se como

resgate do que não se apresenta através da linguagem reificada de um

tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações da “paixão pela

verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”250.

Tal aspiração à plena visibilidade. Em “libertar a estrutura latente e

abandonar a manifesta”251 chega a fazer com que Schoenberg afirme, a

respeito de Pierrot lunaire: “A expressão sonora dos movimentos dos

247 ADORNO, PNM, p. 94 248 FREUD, 1999 X, 172 249 FREUD, 1999 X, p. 173 250 ADORNO, PNM, p. 155 251 ADORNO, Prismas, p. 152

Page 114: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

sentidos e da alma são de uma imediatez quase animal. Como se tudo fosse

diretamente transposto (Fast als ob alles direkt übertragen wäre)”.

Procurar uma forma capaz de ser a transposição direta da idéia

musical na dimensão do que aparece, idéia que procura realizar exigências

expressivas que não se reconhecem na gramática dos sentimentos reificada

pelo tonalismo, é o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. Aqui, vemos

como ele realiza enfim um impulso partilhado pelo modernismo de “crítica

da reificação e do fetichismo através da reconstrução de um pensamento

estrutural”.

Adorno sempre insistiu no fato de convergir, no uso schoenbergiano

da noção de série, a tentativa de conservar exigências de expressão do que

não se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princípio

construtivo e transparente de relação. A este respeito, Schoenberg não

cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “ainda posso assegurar

coerência e unidade, ainda que existam vários elementos construtivos da

forma importantes, assim como auxílios à compreensibilidade, que não

uso”252. Orgulho de quem podia, ao mesmo tempo, oferecer um protocolo

de crítica à aparência reificada e assegurar um princípio autônomo de

racionalização e legibilidade das obras. O dodecafonismo seria assim a

realização da aspiração schoenbergiana de pensar a verdade na música

como necessidade formal de sentido e coerência, a verdade como uma

questão sintática de procedimentos de construção.

De fato, ao racionalizar todas as incidências do material musical

através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja

automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação

que é a série, a música poderia se liberar da aparência costurada pela

naturalização do sistema tonal. Ao mesmo tempo, graças à onipresença da

série, seu tema é seu próprio processo de construção. Ela é o que realiza

exigências de “obediência irrestrita a alguma injunção ou princípio de

valor” das quais falava o crítico de arte Clement Greenberg a fim de definir

a essência da obra de arte moderna. Desta forma, Schoenberg mostrava

como a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “correta

distância”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz

em si a negação da naturalização da sua aparência como totalidade

funcional. Como dirá Adorno:

O problema central [de Schoenberg] é o domínio da contradição

entre essência e aparência. Riqueza e plenitude devem tornar-se

essência, e não mero ornamento. Mas a essência tem de vir à luz não

mais como um esqueleto rígido vestido pela música, mas concreta e

manifestamente no mais sutil dos seus traços. Aquilo que ele chama

252 SCHOENBERG, Style and Idea, p. 107

Page 115: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

de “subcutâneo”, a estrutura dos eventos musicais individuais

enquanto momentos indispensáveis de uma totalidade consistente em

si mesma, rompe a superfície, torna-se visível e se afirma

independentemente de qualquer forma estereotipada. O interior

exterioriza-se. O fenômeno musical é reduzido a elementos de seus

nexos estruturais253.

É a partir desta perspectiva que podemos lembrar, por exemplo, deste

momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um todo

mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e esquema

pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do todo”254.

Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades funcionais

(como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu processo de

construção através da posição do plano e do esquema. Tal afirmação é feita

na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a estrutura e o

plano construtivo. Este é o sentido fundamental da “audição estrutural”

exigida por Schoenberg. Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico,

a verdade era uma questão de construção formal coerente, e não de

adequação a regras naturalizadas de disposição do sonoro. Neste sentido,

podemos seguir a afirmação feliz de Antonia Soulez: “Segundo

Schoenberg, que toma do lógico este ideal sintático do verdadeiro, a música

pensa na mesma medida em que, por e através dela, articulam-se leis do

verdadeiro segundo uma certa gramática”255.Como dirá Schoenberg em um

conferência de 1928 “Faz-se música a partir de conceitos”, conceitos

compreendidos aqui como processos construtivos de relação e não como

indexação prévia da particularidade do caso sob o genérico da estrutura.

Neste ponto, vale a pena realizarmos um exercício de

contextualização. Ao refletir sobre a essência da obra de arte moderna,

Clement Greenberg afirmou certa vez: “Em razão de sua natureza

‘absoluta’, da distância que a separa da imitação, de sua absorção quase

completa na própria qualidade física de seu meio, bem como em razão de

seus recursos de sugestão, a música passou a substituir a poesia como a

arte-modelo (...) Norteando-se, quer conscientemente quer

inconscientemente, por uma noção de pureza derivada do exemplo da

música, as artes de vanguarda nos últimos cinqüenta anos alcançaram uma

pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem exemplo

anterior na história da cultura”256. A afirmação não poderia ser mais clara: a

música teria imposto, às outras artes, uma noção de modernidade e de

racionalização do material vinculada à autonomização da forma e de suas

253 ADORNO, Prismas, p. 151 254 SCHOENBERG, Style and idea, p. 107 255 SOULEZ, Schönberg: penseur de la forme, p. 120 256 GREEENBERG, Rumo a um mais novo Locoonte in op.cit., pp. 52-53

Page 116: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer

afinidade mimética com processos e elementos extra-musicais.

O que Greenberg tem em mente é um longo e heteróclito movimento

de constituição da racionalidade da forma musical, movimento fundamental

para a definição das expectativas críticas da forma musical a partir,

principalmente, de Arnold Schoenberg e que herda motivos próprios ao

debate em torno da “música absoluta” no romantismo alemão. É a isto que

Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da música em sua

“pureza”.

A grosso modo, podemos chamar de ‘música absoluta’ uma certa

noção que via na música instrumental, desligada de textos, de programas,

de funções rituais e “pedagógicas” específicas, o veículo privilegiado para

a expressão ou o pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade e o

estágio de realização natural da racionalidade musical. É a proximidade

com tal temática que permitirá a Schopenhauer, cuja filosofia da música

influenciou bastante Schoenberg, afirmar: “Não podemos encontrar na

música a cópia, a reprodução da idéia do ser tal como se manifesta no

mundo”, ela é “cópia de um modelo que não pode, ele mesmo, ser

representado diretamente”, pois “a música, que vai para além das idéias, é

completamente independente do mundo fenomenal”257.

Este impulso de autonomização da forma musical será fundamental

para que teóricos posteriores, como Eduard Hanslick insistissem em levar

tal processo ao extremo. Ao afirmar que a música nada mais era do que

“formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena consciência

de estar adentrando em um estágio histórico de racionalização do material

musical que permitia a consolidação da esfera musical em sua legalidade

própria. Legalidade própria que o leva a afirmar: “se se perguntar o que se

há de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim : idéias

musicais. Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já

um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou

material para a representação de sentimento e pensamentos”258.

O impulso de Schoenberg na constituição de uma forma crítica perde

muito de seu solo natural se não tivermos tais balizas em vista259. Quando

Schoenberg afirma: “Faz-se música a partir de conceitos”, isto a fim de

lembrar que o objetivo maior da forma é compreensibilidade de “idéias

musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melodia

e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua noção de autonomia

257 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, par. 59 258 HANSLICK, Do belo musical, p. 42 259 Não é por outra razão que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos através dos quais Schoenberg

aproxima-se e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a gêneros como a sinfonia, o

quarteto de cordas e as peças líricas de piano, ou seja, gêneros típicos da música absoluta” (DAHLHAUS,

Schoenberg and the new music, p. 99)

Page 117: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

da forma que serve aqui de guia260. Mas esta noção schoenbergiana de idéia

musical advém incompreensível se partirmos de uma perspectiva

meramente “formalista”, isto no sentido mais restritivo do termo. Esta é

uma questão importante, já que o projeto musical de Schoenberg nos

lembra como “formalismo” não é a marca de alguma forma de abandono de

expectativas expressivas. Tal como já em Hanslick, a idéia musical é o que

permite a realização construtiva de exigências expressivas, ou seja, ela é o

que deve unificar construção racional e expressão subjetiva. É isto que

Adorno tem em mente ao afirmar que:

A música de Schoenberg quer se emancipar em seus dois pólos; ela

libera os impulsos ameaçadores, que outras músicas só deixam

transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente

falsificados; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao

princípio de um Eu que fosse forte suficiente para não renegar o

instinto.261

Mas, como veremos na aula que vem, a Filosofia da nova música,

acaba por se organizar como uma crítica aos dois caminhos hegemônicos

trilhados pelo modernismo : o modernismo como retorno ao arcaico

(Stravinsky), retorno que pode provocar com sintoma a entificação de

forma paródica, e o modernismo como crítica da aparência através da

reforma de uma racionalidade matemática e funcional, ou seja, através da

absolutização da forma estética.

260 Ver, por exemplo, SCHOENBERG, Style and Idea, p. 121 261 ADORNO, Prismas, p. 147

Page 118: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Adorno

Aula 12

Na aula passada, começamos a análise das características gerais da

compreensão adorniana do programa musical de Schoenberg. Nós vimos,

inicialmente, como o projeto da Filosofia da Nova música era

eminentemente crítica: tratava-se de mostrar como a crítica ao fetichismo,

tal como fora configurada em um texto anterior, O caráter fetichista na

música e a regressão da audição, poderia dar conta dos impasses dos dois

eixos principais do modernismo musical: estes representados pelos nomes

de Schoenberg e de Stravinsky. Como foi dito na aula passada, Adorno se

esforça sobretudo em mostrar que Schoenberg e Stravinsky traziam dois

regimes de fetichismo: o fetichismo da série e o fetichismo como fixação

metonímica aos materiais.

A fim de dar conta da leitura adorniana do compositor vienense,

partimos da idéia de que: “em Schoenberg, o aspecto verdadeiramente novo

é a mudança de função da expressão musical”262. Vimos que esta frase era

mais decisiva do que parecia, já que normalmente, aceitamos que o aspecto

realmente novo da experiência musical de Schoenberg estaria presente na

sua maneira de criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal.

Mas, no entanto, Adorno insiste que devemos procurar a verdadeira cena da

música de Schoenberg através da compreensão de seu uso da categoria de

expressão. A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper

com o fato de que:

Desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira

musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada,

mediada, ou seja, como aparência de paixões263.

Segundo esta leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma

gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a

particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e

submetida à generalidade conciliadora que constitui o primeiro princípio da

aparência estética. O esgotamento do sistema tonal é, também,

esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso

reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de

um “sistema de representações”. Assim, o que Schoenberg faria seria

manifestar musicalmente uma expressão desprovida de gramática. Neste

sentido, Adorno não poderia ser mais claro :

262 ADORNO, PNM, p. 50 263 idem, p. 49

Page 119: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Não se trata mais de paixões fingidas, mas enregistra-se no medium

da música movimentos reais, e não disfarçados, do inconsciente,

choques, traumas. Eles atacam os tabus da forma, que submetem tais

movimentos à censura, os racionalizam e os transpõem em

imagens264.

Vimos como Erwartung aparecia como esta posição desta expressão que

não se deixa colonizar por imagens. Exemplo maior de que o núcleo da

expressão em Schoenberg seria a angústia enquanto afeto que marca a

impossibilidade da ligação (Verbindung) da energia psíquica em

representações de objeto265.

De fato, se Adorno estiver correto em sua interpretação, a obra de

Schoenberg seria estruturada em torno de uma tentativa de recuperar a

expressão através da negação da aparência estética. É isto a que ele alude

um texte de 1934, O compositor dialético, ao parafrasear Stefan George e

afirmar que, em Schoenberg: “O mais estrito rigor é, ao mesmo tempo, a

maior liberdade”, já que, através do dodecafonismo: “Nenhum impulso da

imaginação (Regung der Phantasie), nenhuma exigência do dado deixa de

ter seu correlato técnico”.

Em última instância, teriam sido exigências de expressão que

levariam Schoenberg a um combate contra a aparência musical e contra

tudo aquilo o que poderia aparentar a uma organicidade caduca que se faria

passar por segunda natureza através da entificação do sistema tonal. Neste

sentido, a passagem da fase “expressionista” à fase “dodecafônica”

marcaria a transformação da negação da aparência em sistema, em decisão

formal.

Lembremos ainda que a negação da aparência no dodecafonismo fica

clara se lembrarmos que: “se anteriormente a totalidade se realizava às

costas dos acontecimentos singulares, agora ela é construção

consciente”266. Ao racionalizar todas as incidências do material musical

através do primado da série, que faz com que cada evento seja

automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação que

é a série, a música tenta assim se liberar da aparência costurada pela

naturalidade do sistema tonal. Ao colocar a música sob o signo do combate

à aparência e do desvelamento da estrutura, Schoenberg pode recuperar

suas exigências de verdade a partir da constituição de um sistema. A este

respeito, Schoenberg não cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho:

“ainda posso assegurar coerência e unidade, ainda que existam vários

elementos construtivos da forma importantes, assim como auxílios à

264 idem, p. 50 265 ADORNO, Prismas, p. 172 266 ADORNO, PNM, p. 94

Page 120: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

compreensibilidade, que não uso”267. Orgulho de quem podia, ao mesmo

tempo, oferecer um protocolo de crítica à aparência reificada e assegurar

um princípio autônomo de racionalização e legibilidade das obras. O

dodecafonismo seria assim a realização da aspiração schoenbergiana de

pensar a verdade na música como necessidade formal de sentido e

coerência, a verdade como uma questão sintática de procedimentos de

construção. É a partir desta perspectiva que podemos lembrar, por exemplo,

deste momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um

todo mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e

esquema pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do

todo”268. Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades

funcionais (como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu

processo de construção através da posição do plano e do esquema. Tal

afirmação é feita na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a

estrutura e o plano construtivo. Este é o sentido fundamental da “audição

estrutural” exigida por Schoenberg.

Fetichismo da série

Mas há uma questão que Adorno não deixa escapar. Ele falará do

dodecafonismo como princípio de “dominação” do material através da

totalidade funcional de uma forma que tira suas leis de construção de si. E é

a partir deste problema que podemos introduzir sua crítica à racionalidade

dodecafônica.

Esta é uma dimensão fundamental, mas muitas vezes negligenciada,

na crítica do caráter fetichista na música: ela também tem como alvo o

dodecafonismo, o que mostra definitivamente como a reconstrução de uma

experiência de organicidade funcional através do primado da série sobre a

autonomia metonímica dos momentos, assim como a hipóstase da audição

estrutural, também podem fornecer uma espécie de encantamento.

Na verdade, Adorno não tem dificuldades em ver, no primado da

série dodecafônica, o mesmo princípio de racionalização que guiou o

processo de autonomização da forma musical descrito por Max Weber. Nos

dois casos, trata-se de vincular a racionalidade musical ao primado da

forma como totalidade funcional.

De fato, a técnica dodecafônica impede a desintegração da

organicidade da forma musical em momentos parciais ao fornecer um

procedimento serial de composição que dissipa a insistência de materiais

estereotipados da tonalidade. Assim, ao colocar a questão da possibilidade

da unidade e da consistência formal sem recurso à tonalidade, o

dodecafonismo parece anular a tendência do devir imagem do material. No

267 SCHOENBERG, Style and Idea, p. 107 268 SCHOENBERG, Style and idea, p. 107

Page 121: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

entanto, Adorno não cansa de lembrar que a organização formal própria à

racionalidade dodecafônica encontra sua verdade na insensibilidade ao

material :

“É verdade, nós demos a igualdade de direito ao trítono, a sétima

maior e também a todos os intervalos que ultrapassam a oitava, mas

ao preço de um nivelamento de todos os acordes, antigos e novos”

(Adorno 8, p. 76).

Tal insensibilidade, que será mais tarde chamada por Gyorg Ligeti, em sua

crítica ao serialismo integral de Pierre Boulez, de insensibilidade aos

intervalos269, indica que as operações de sentido serão resultados estritos de

jogos posicionais determinados pela série. O sentido é um fato de estrutura

que não reconhece a racionalidade de nenhum princípio não derivado do

trabalho serial. Se Schoenberg ainda conservava a escritura motívica e

temática como princípio de expressão que escapava ao primado da série

(ver, por exemplo, a valsa das Cinco peças para piano, opus 23)270,

Webern dará o passo em direção ao fetichismo da série devido a sua crença

de que a construção seria capaz de indexar todas as ocorrências de sentido

na obra :

“A partir do momento em que o compositor julga que a regra serial

imaginada tem um sentido por si mesma, ele a fetichiza. Nas

Variações para piano e no Quarteto de cordas opus 28, de Webern,

o fetichismo da série (Fetichismus der Reihe) é evidente” (Adorno 8,

p. 107).

Ao menos nestes casos, Webern fetichiza a totalidade por não reconhecer

nenhum elemento que lhe seja opaco . Em suas mãos, o material aparece

como aquilo que pode se totalmente dominado em uma totalidade de

relações seriais. Na verdade, o material transforma-se no próprio sistema de

produção da obra. A obra não dissimula mais, através da aparência estética,

seu processo de produção de sentido. No entanto, esta visibilidade plena é

figura de um princípio de dominação total do material que Adorno lê como

269 Cf. Ligeti 22, p. 134 : “A disposição das séries significa aqui que cada elemento é integrado ao

contexto com a mesma recorrência e o mesmo peso. Isto leva inevitavelmente ao crescimento da

uniformidade. Quanto mais a rede de operações efetuadas com um material pré-organizado é densa, mas o

degrau de nivelamento do resultado é alto. A aplicação total do princípio serial acaba por anular o próprio

conceito serial. Não há diferença fundamental entre os resultados dos automatismos e os produtos do

acaso : o totalmente determinado equivale ao totalmente indeterminado”. 270 Adorno insiste neste ponto ao lembrar que : “é apenas através destas categorias tradicionais que a

coerência da música, seu sentido (Sinn) , a composição autêntica, na medida em que ela não é simples

arranjo, foi preservada no interior da técnica dodecafônica. O conservadorismo de Schoenberg a este

respeito não é tributável a uma falta de consistência, mas a seu medo de que a composição seja sacrificada

em prol da prefabricação do material” (Adorno 2, p. 150)

Page 122: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

racionalidade desvirtuada em dominação da natureza. O naturalismo de

Webern, tão claramente presente em afirmações como : “tal como o

naturalista se esforça em descobrir as leis que regem a Natureza, devemos

descobrir as leis segundo as quais a Natureza, sob a forma particular do

homem, é produtiva” (Webern 30, p. 46), deveria pois ser compreendido

como naturalização de processos gerais de construção.

É interessante lembrar que Adorno critica Webern exatamente por

tentar pensar uma construção integral da obra na qual tudo é relação e todas

as incidências de sentido são determinadas através de jogos posicionais.

Trata-se da mesma crítica que Lyotard irá endereçar mais tarde ao próprio

Adorno ao afirmar: “seu ceticismo [o ceticismo de Adorno em relação

àquilo que é desprovido de relação e que não se submete à síntese]

resplandece na nova música ; o material só vale como relação, só há

relação. O som reenvia à série, a série às operações sobre ela” (Lyotard 24,

p. 118).

É por ver, no princípio da construção integral, o puramente irracional

no interior da racionalização que Adorno compreende o dodecafonismo,

em certos momentos, como:

“Um sistema de dominação da natureza na música que responde a

uma nostalgia do tempo primitivo da burguesia : ”se apropriar”

(erfassen) pela organização de tudo o que ressoa e dissolver o caráter

mágico da música na racionalidade humana” (Adorno 8, p. 65).

Adorno chega mesmo a falar, neste contexto, da tendência da arte à uma

“pseudomorfose em ciência” devido à crença na dominação integral de um

material desencantado. Processo de racionalização que, no entanto, se

inverte necessariamente em encantamento, isto na medida em que :

“Enquanto sistema fechado e ao mesmo tempo opaco a si mesmo, no

qual a constelação de meios se hipostasia imediatamente em fim e

lei, a racionalidade dodecafônica se aproxima da superstição”

(Adorno 8, p. 67).

Embora tal encantamento não esteja vinculado ao fetichismo como

fixação metonímica aos materiais, fixação que pressupõe o devir imagem

do material, ela produz, da mesma forma, a anulação da não-identidade

própria àquilo que se manifesta no interior do tempo-duração. A

insensibilidade aos materiais através da conformação integral à construção

é solidária da anulação do tempo. Como Adorno afirma claramente :

“Mais uma vez, a música consegue dar conta (bewältigt) do tempo;

no entanto, não mais fornecendo ao tempo sua plenitude, mas

Page 123: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

negando-o, graças a construção onipresente, através do

congelamento de todos os elementos musicais (...) O último

Schoenberg partilha com o jazz, e também com Stravinsky, a

dissociação do tempo musical. A música traça a imagem de um

estado do mundo que, para o bem ou para o mal, ignora a história”

(Adorno 8, p. 62)271.

Novamente, Adorno fala da tendência da música em adquirir a estaticidade

do espaço e em submeter-se ao primado da identidade fixa daquilo que se

dá no espaço. Lembremos, por exemplo, de que é um problema ligado ao

tempo musical que leva Adorno a ver em certas obras de Webern a marca

mais clara do fetichismo. Vários foram aqueles que perceberam que, em

Webern: “a forma advém estática, o desdobramento do tempo parece ter

parado”272, isto devido à redução da gestualidade musical a algumas células

motívicas muito concentradas, à impossibilidade de todo desenvolvimento

temático e ao abandono da hierarquização de materiais em prol da

justaposição de elementos de valor igual.

Vejamos, por exemplo, o exemplo fornecido por Adorno: as

Variações para piano. Se analisarmos a segunda variação veremos como o

trabalho de construção harmônica obedece a simetrias que tomam a nota lá

por centro (não é por outra razão que ela sempre aparece tocada duas

vezes). Mas como a simetria rígida da disposição harmônica não pode ser

dissolvida por progressões cadenciais ou modulações, Webern faz apelo ao

ritmo e à intensidade. Há um uso estrito de três intensidades (piano, forte,

fortíssimo), muitas vezes associadas a células motívicas específicas. O

resultado é uma flutuação permanente da intensidade que fornece uma

impressão “estereofônica” (o forte aparece como mais perto, o piano como

mais distante) que faz com que o verdadeiro eixo do desenvolvimento

musical seja o espaço, e não o tempo. Ligeti havia percebido isto com

clareza: “A música adquire um aspecto estereométrico; associações com

uma profundidade espacial se impõem; os acodes tocados fortíssimo

tendem a aparece à frente da estrutura, as células tocadas piano parecem

permanecer no fundo. As direções espaciais aparentes evocam uma

estrutura cristalina”273.

Desta forma, através da submissão da música ao espaço : “a

reificação entra nos poros da arte moderna por todos os lados” (Wellmer

31, p. 10) já que a arte moderna operaria uma síntese que traz a marca da

violência da totalidade social ao dissolver a resistência dos momentos

expressivos à identidade da forma, resistência do que se dá no tempo à sua 271 De fato, Adorno não deve estar pensando exatamente na última fase de Schoenberg, após 1934, fase

marcada pelo hibridismo de uma forma que permite a utilização de material tonal. Certamente, o

verdadeiro alvo aqui deve ser o período 1923-1933, no qual a técnica dodecafônica reina. 272 LIGETI, Neuf essais sur la musique, p. 40 273 LIGETI, idem,p. 59

Page 124: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

posição em imagem. È neste sentido que podemos entender a afirmação de

que, na nova música: “Os sons continuam os mesmos, mas a angústia

(Angst) que cunhava seus maiores fenômenos originais (Urphänomene) foi

recalcada (verdrängt)”274. Neste sentido, Adorno era claro: “não é a

expressão que deve ser exorcizada da música (...) mas o caráter de

transfiguração, o elemento ideológica da expressão”275.

Isto faz Adorno relativizar a audição estrutural como padrão ideal de

audição. Pois a hipóstase deste modo estrutural de apreensão :

“transformou-se em parcial e ameaça anular os aspectos individuais sem os

quais, no final, nenhum método musical tem vitalidade” (Adorno 5, p.

299). Adorno recorre novamente a uma dialética entre particular e universal

no interior da forma musical mas para insistir na irredutibilidade do

particular ao universal :

“nas grandes obras de arte, a tensão (Spannung) [entre a

particularidade dos momentos expressivos e a universalidade do

Todo como construção] não deve ser resolvida (ausgleischen) nas

obras, como mesmo Schoenberg pensou, mas deve ser sustentada

durante todo seu desenvolvimento” (Adorno 5, p. 301).

A música do século XX teria conhecido pois dois modos

complementares de fetichismo, dois modos resultantes do mesmo impasse

nos modos de racionalização do material musical tal como eles teriam sido

pensados por Max Weber. Desta forma, como dirá Adorno, vê-se no

fetichismo, os dois extremos da fé no material e do cuidado exclusivo da

organização se encontrarem. Esta duplicidade do fetichismo implica

também na impotência de dois modos de crítica do fetichismo : um que

pensa o trabalho da crítica a partir da possibilidade de instauração de um

regime de relações que garantam a transparência da totalidade dos

mecanismos de produção do sentido e outro que faz apelo à recuperação de

uma experiência que se quer imanente ao fenômeno sensível da música,

como se o som fosse provido de uma realidade em-si.

Notemos ainda que esta duplicidade do diagnóstico adorniano deve

ser lida no interior de um movimento duplo de crítica próprio a todo

pensamento dialético. Desde Hegel, vemos a dialética procurar afirmar a

dimensão especulativa através de um movimento duplo de negação que

visa, por um lado, invalidar todo pensamento da imanência que crê na

possibilidade de recuperação de níveis de experiência imediata e pré-

discursiva e, por outro, todo pensamento transcendental que só pode pensar

o sentido através de uma elaboração de categorias formais deduzidas a

priori. Nos dois casos, a dialética identifica a presença de um princípio de

274 ADORNO, O envelhecimento da nova música 275 ADORNO, idem

Page 125: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

identidade guiando tanto a certeza de que há uma imanência disponível à

experiência quanto a defesa de que a forma organiza previamente a

integralidade do sentido da experiência. A astúcia de Adorno consistiu em

encontrar estes dois regimes do princípio de identidade em operação na

organização dos vetores da experiência musical do século XX. O

“estruturalismo transcendental” do programa de construção integral (que

vai do dodecafonismo integral ao serialismo integral) vê o material musical

como aquilo que é absolutamente integrado em uma totalidade de relações.

O “plano de imanência” próprio à fixação no fenômeno sensível da música

(posição que inicialmente visa a fixação metonímica nos materiais mas que

também dá conta, em Adorno, da hipóstase do sonoro como o que é

provido de realidade em si, e aqui Adorno visa o intuicionismo da música

aleatória de John Cage; embora não se trate de dizer que os dois fenômenos

musicais partilhem o mesmo padrão de racionalidade) vê o material como o

que é provido de significações naturalizadas.

Resumindo, podemos dizer que todo o problema da leitura adorniana

do dodecafonismo pode ser organizada da seguinte maneira : faz-se

necessário um procedimento de organização que consiga liberar o sujeito

de todo e qualquer fixação a materiais naturalizados. Só assim, aquilo que é

da ordem da verdade da expressão pode se manifestar. O dodecafonismo,

como princípio geral de construção nega toda aderência natural aos

materiais e, por isto, seu momento é fundamental por liberar o sujeito de

uma gramática musical obsoleta. Sua função é emnentemente crítica. Mas,

no entanto é necessário negar a negação e não entificar o pensamento

serial como um segundo sistema de organização total do material. Se a

negação dodecafônica não for negada, ela irá se hipostasiar. Daí porque as

críticas de Adorno ao dodecafonismo seguem normalmente a forma de

“inversões” : “A fantasia do compositor submeteu totalmente o material à

vontade construtiva, então o material construtivo paralisa a fantasia”276. “O

radicalismo através do qual a arte técnica destrói a aparência estética

termina por arremessar à aparência a obra de arte técnica”277. Ou ainda : “a

obra de arte inteiramente funcional é totalmente desprovida de função”.

Todas estas afirmações guardam o mesmo movimento lógico. A

destruição da aparência , a recuperação do sujeito através, entre outras

coisas, de uma reordenação da funcionalidade das obras, só pode ser levado

à cabo através de uma negação da negação. Pois se é fato que a verdadeira

contribuição de Schoenberg estava na reconfiguração da categoria de

expressão, então a hipóstase de uma organização funcional total acaba por

anular aquilo que o compositor queria salvar. É por esta razão que Adorno

procura mostrar que a última fase de Schoenberg é totalmente organizada a

partir de um só problema: como a construção pode advir expressão ? Para

276 ADORNO, PNM, p. 77 277 ADORNO, PNM, p. 79

Page 126: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

tanto, o ideal de uma organização funcional total deve ser abandonado: “É

apenas através da tecnica dodecafônica que a música pode aprender a

continuar senhora de si mesma, mas para tanto ela não pode perder-se no

dodecafonismo”278. É a partir desta perspectiva que ganha sentido uma

afirmação como:

“A arte, e acima de todas a música, é o esforço para preservar na

memória e cultivar estes elementos tirados fora (abgespaltenen) da

verdade que a realidade procurou renegar no crescimento da

dominação da natureza”279

[Dahlhaus : o dodecafonismo para Adorno como uma necessidade

histórica e um impasse estético]

Problemas da última fase

A compreensão da última fase de Schoenberg foi sempre a mais

problemática. O retorno à tonalidade após o primado da série é ainda

motivo de discussões. Dahlhaus tem um belo texto neste sentido chamado

As últimas obras de Schoenberg. Sua idéia é de que Schoenberg nunca

abandonou o trabalho motívico, isto o permitiu, ao final, submeter tanto o

material tonal como o material dodecafônico aos mesmos procedimentos.

Neste sentido, ele critica Adorno por nos levar a um impasse dialético que

consistiria no fato de que a arte deve sustentar uma posição utópica que ele

mesmo reconhece como inumana e impossível (a liberação total do sujeito

em relação ao mundo fetichizado).

Mas nós podemos dizer que, ao contrário, as últimas obras de

Schoenberg são absolutamente necessárias de um ponto de vista dialético.

De fato, como vimos, o resultado final do dodecafonismo, para Adorno,

seria a “desensibilização do material”, que pode parecer, por exemplo,

como “insensibilidade aos intervalos”. No entanto, este desencantamento

do material permite ao sujeito expressar-se através do inexpressivo, através

daquilo que não tem mais imagem:

Isto permite ao sujeito liberar-se novamente do material e esta

liberação constitui a tendência mais íntima do estilo tardio de

Schoenberg. È verdade que a desensibilização do material que

violenta o cálculo serial implicou nesta má abstração que o sujeito

musical experimenta como abstração de si. Mas é ao mesmo tempo

graças a tal desensibilização que o sujeito de libera do

278 ADORNO, PNM, p. 124 279 ADORNO, O envelhecimento da nova música

Page 127: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

aprisionamento no material natural que constituiu, até o presente,

toda a história da música, assim como a dominação da natureza.280

Por outro lado, a absorção daquilo que nega a organização total (o

material tonal) mostra como a linguagem musical tende a dissociar-se em

fragmentos. É só através de “um certo regime” de obra de arte

fragmentária, obra que renuncia à totalidade, sem com isto, renunciar às

aspirações construtivas da forma e cair em uma construção por

justaposição, que a arte pode liberar seu conteúdo crítico. Obra na qual

Adorno vê a “liquidação da obra de arte unificada”.

Tal discussão nos mostra, mais uma vez, como o verdadeiro

problema da estética adorniana não é a perda da totalidade e da

organicidade funcional das obras. Seu problema é, na verdade, a deposição

de toda resistência possível, de toda opacidade do material musical. Por

isto, Adorno pode afirmar que o gesto radical de Schoenberg não estaria

vinculado à recusa ao tonalismo através do primado da série dodecafônica,

mas à “força do esquecimento” que lhe permitiu, em suas últimas obras,

retornar ao material tonal, agora transformado em material dessensibilidado

e mutilado pois sem força para produzir uma experiência de totalidade. Ele

volta a um material fetichizado, mas para revelar seu estranhamento. Graça

a este investimento libidinal do que se transformou em ruína “ele se

dessolidariza desta dominação absoluta do material que ele próprio criou

(...) O compositor dialético pára a dialética”281. È no interior deste processo

que devemos compreender afirmações como: “Schoenberg viola a série.

Ele escreve uma música dodecafônica como se a técnica de doze sons não

existisse. Webern realiza a técnica dodecafônica e não compõe mais: o

silêncio é o resíduo de sua destreza”282. Esta violação permite a Adorno

afirmar que as melhores peças da fase norte-americana de Shoenberg não

confiavam nem nas séries dodecafônicas, nem nos tipos tradicionais, mas

são compostas a partir de disposição em camadas de campos temáticos

ordenados ao redor de diferentes modelos centrais.

De qualquer forma, vale a pena salientar uma certa ironia maior no

último Schoenberg, ironia que consiste em tratar o material tonal como

exposição fragmentária de um resto, como manifestação da não-identidade

na obra, como aquilo que impede a totalização (agora serial). Isto indica

uma possibilidade de retorno ao material tonal que nada tem a ver como

possibilidades de restauração fascinada, já que a gramática tonal retorna em

farrapos por não ter mais a força de produzir experiências de organização

funcional. O material tonal, por ser marcado pela impotência do que não

280 ADORNO, PNM, p. 126 281 idem, p. 133 282 ADORNO, PNM, p. 119

Page 128: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

pode realizar sua função, é marcado pelo estranhamento do que pode

figurar: “ a dissociação do sentido e da expressão”283. [Adorno não teme em

falar aqui do puro gesto]

Faz-se necessário ainda muito refletir a respeito desta maneira de

parar a dialética. Um gesto que vem no momento em que o sujeito se

reconhece em um material mutilado que se transformou em uma espécie de

resto opaco que representa a irredutibilidade do não-artístico na arte. Pois,

talvez, a astúcia suprema da dialética esteja aí, no ato de saber se calar para

deixar as ruínas falarem. Astúcia que a arte foi a primeira a formalizar.

283 ADORNO, PNM, p. 137

Page 129: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Introdução à experiência intelectual de Adorno

Aula 13

Autenticidade

Na aula de hoje, começaremos a interpretar a leitura de Stravinsky feita por

Adorno. Uma primeira característica que deve ser relevada na análise adorniana

de Stravinsky é seu caráter quase clínico. Uma leitura dos sub-títulos dos parágrafos que

compõem o texto já é elucidativa : “Regressão permanente e forma musical”, “O

aspecto psicótico”, “Despersonalização”, “Hebefrenia”, “Catatonia”, “Dissociação do

tempo”. Adorno não deixa de insistir no caráter “sado-masoquista” da música de

Stravinsky e de comparar seus procedimentos de construção à esquizofrenia. .Qual pode

ser o sentido de tal perspectiva? Estaríamos diante de uma espécie de psicanálise

selvagem aplicada ao fato musical? De fato, lembremos primeiramente que tais análises

não se reportam a uma psico-biografia que veria, na estrutura psíquica do compositor, a

chave de interpretação de sua obra. Adorno dá aqui uma passo ousado em direção a uma

análise clínica da forma musical. O recurso a categorias clínicas não deve ser

compreendido como meras metáforas inusitadas para alguém que se propõe desenvolver

análises musicais. Trata-se, na verdade, de insistir como a sociologia da música de

Adorno está muitas vezes mais próxima de uma espécie de psicanálise da música (e ao

nosso conjunto poderíamos facilmente lembrar de um conceito psicanalítico central na

filosofia da música de Adorno: o fetichismo). Pois ao procurar desenvolver uma clínica

das obras, Adorno visa mostrar como elas são sintomas da subjetividade diante dos

impasses de seu tempo. A articulação da obra ao momento histórico e aos contextos

sociais que a constituem não deixa de dar lugar a uma compreensão dos modos de

articulação entre teoria do sujeito e configuração das obras.

A análise musical em Adorno não se transforma apenas na leitura estrutural da

forma musical, mas a análise transfroma-se em uma psicanálise que procura

compreender a posição subjetiva que dá racionalidade às expectativas que estão em jogo

na forma musical em questão. Pois a forma musical não responde apenas a problemas

musicais. Ela também procura responder a problemas de possibilidade de auto-

objetivação do sujeito. O que não significa assumir um psicologismo que reduz a

autonomia das obras aos jogo de moções pulsionais dos sujeitos, mas compreender

como a forma musical, na sua tentativa de dar voz ao que ficara para trás nos processos

de racionalização, formaliza primeiramente as configurações possíveis da subjetividade.

A análise adorniana de Stravisnky é extremamente clara neste sentido. Ela se

baseia na noção de que toda a elaboração composicional de Stravinsky parte da

tendência em anular a categoria de sujeito. Isto é visível nas suas exigências de

autenticidade.

A ruptura inicial de Stravinsky com a gramática do sistema tonal (preparação

das dissonâncias, progressões harmônicas, desenvolvimento de temas e motivos etc.)

seria o fruto de tendência em restituir com ostentação a autenticidade à música. A

linguagem reificada do tonalismo aparece como bloqueio às aspirações de uma “paixão

pela verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”284. Impulso

modernista por excelência, esta exigência de que a obra artística seja portadora de um

conteúdo de verdade, ou seja, que o julgamento estético seja ao mesmo tempo

julgamento cognitivo e julgamento moral, é partilhada por Stravinsky. Mas sua

284 ADORNO, PNM, p. 155

Page 130: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

peculiaridade vem do falta de que tais exigências de autenticidade são organizadas

inicialmente a partir de dois vetores : o anti-psicologismo e o programa de retorno à

origem. A crítica a reificação da linguagem é feita em nome de um retorno possível ao

arcaico que pressupõe a auto-dissolução da subjetividade.

Este programa modernista de crítica através do retorno ao arcaico a fim de

liberar a força disruptiva de uma origem há muito recalcada pelos processos de

racionalização e de socialização é um dos movimentos centrais do modernismo. Adorno

lembra com perspicácia de como o momento histórico do primeiro modernismo concebe

uma aproximação cheia de ressonâncias entre o infantil, o primitivo e o inconsciente, já

que o inconsciente aparece aqui como conceito anterior à individuação. Neste sentido, a

crítica adorniana a Stravinsky inscreve-se, inicialmente, no interior de uma crítica mais

ampla a uma certa concepção de modernismo que concebe a crítica aos processos de

racionalização na modernidade a partir do protocolo do retorno ao arcaico e ao

originário que só pode redundar em uma arte da linguagem do ser e na entificação da

dissolução do sujeito.

Adorno não pensa apenas no enredo da Sagração da primavera : um ritual da

Russia pagã que exige que uma virgem dance até a morte para que a primavera comece.

Enredo no qual Adorno vê a própria encenação da dissolução da subjetividade, mas

através da identificaçào da música com a instância destruidora, dissolução através da

qual o sujeito seu livraria do eu para procurar a felicidade ao identificar-se com a

coletividade (Petruschka e Sagração). “Oferenda anti-humanista à coletividade”, será o

termo utilizado por Adorno. Ele não teme sequer em falar de “traços sado-masoquistas”

da música de Stravinsky devido à estilização do prazer masoquista de auto-aniquilação.

“Em Stravinsky, a subjetividade toma a figura da vítima; no entanto – e é aí que ele

zomba a tradição da arte humanista – a música não se identifica com a vítima, mas com

a instância destruidora. Através da liquidação da vítima, ela se desfaz das intenções, de

sua própria subjetividade”285.

Mas, de fato, Adorno pensa principalmente na anulação de todas as intenções

expressivas na música de Stravinsky. A música de Stravinsky é : ‘negação da alma para

protestar contra seu caráter mercantil, levando à limitaçào da música ao corpo”. Esta

negação de tudo aquilo que, na música, assemelha-se à expressão subjetiva, utiliza três

procedimentos-padrão : o princípio artístico da recusa, o choque e o princípio artístico

da de utilização de materiais gastos.

A recusa, ou o prazer perverso da privação, é um dos procedimentos

fundamentais no modernismo em sua primeira fase. Trata-se de limitar o material ao

mínimo a fim de livrá-lo de todo ornamento supérfluo e falso. No caso de Stravinsky, a

recusa dá-se, inicialmente, como anulação do desenvolvimento. Em sua música, nada se

realiza no seu sentido estrito, pois toda realidade subjetiva desenvolvendo-se

musicalmente advém tabu. Por exemplo, todo desenvolvimento harmônico é cortado, o

que faz com que as passagens de um material a outro sejam abruptas e articuladas a

partir do princípio de justaposição. Também nào há algo que poderíamos chamar de

desenvolvimento melódico. No seu lugar, há apenas “celulas melódicas” que são

repetidas e dissolvidas (através da modificação dos tempos fortes ou do apagamento de

seus limites), mas nunca desenvolvidas no interior de uma lógica, por exemplo, de

antecedente-consequente.

Mas esta limitação deliberada do material atinge também a própria estrutura do

material. Como Adorno bem levantou : “”Como no impressionismo, o material se limita

a sucessões sonoras elementares”286. Normalmente, as células sonoras são Stravinsky

285 ADORNO, PNM, p. 151 286 ADORNO, PNM, p. 157

Page 131: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

diatônicas e muitas vezes derivadas de relações elementares. A pequena melodia do

fagote dos compassos iniciais da Sagração, por exemplo, não passa de um acorde de dó

maior com sétima.

Tende-se normalmente a criticar tal leitura de Stravinsky ao insistir no

desenvolvimento da dimensão rítmica que sua música teria dado lugar. Contra a

tendência ocidental em recalcar o ritmo para permitir o desenvolvimento apenas das

dimensões harmônica e melódica do fato musical, Stravinsky teria liberado esta

potência elementar do ritmo sempre presente na origem do fato musical em seu vínculo

com funções rituais mas esquecido pela metafísica musical do ocidente. Em muitos

momentos sua música organiza-se basicamente a partir do ritmo, que ganha a função

que normalmente seria dada aos temas e motivos.

Mas Adorno insiste que a verdadeira função do ritmo em Stravinsky está

vinculada à idéia de choque. As desconstruçòes rítmicas de Stravinsky aparecem como

um jogo arbitrário sem relação evidente com a construção, ou com aquilo que

poderíamos chamar de pressuposição de uma organização funcional. As modificações

contínuas na geografia dos tempos fortes e fracos produz apenas a sensação de choque,

como se o corpo fosse a todo momento tomado por convulsões , como se ele fosse

objeto contínuo de traumas que ele não consegue mais integrar, pois aparece como

violência externa. O caráter afirmativo do ritmo é, para Adorno, figura de uma

compulsão de repetição que atua contra o sujeito. O ritmo não adquire a função ritual do

transe, já que ele não é circular. Ele adquire a função traumática do choque, que acaba

pro reforçar o caráter de justaposição próprio à composição..

A articulação conjunta entre o princípio artístico da recusa e a noção de choque

permite a Adorno identificar aquela que é a seu ver o verdadeiro motor da estilização

stravinskiana da dissolução do sujeito : a anulação do tempo. Nós vimos nas aulas

anteriores como Adorno insistia neste problema maior da música no século XX : a

espacialização do tempo através da recusa da música em formalizar um tempo-duração.

No caso de Stravinsky, esta recusa, está vinculada à autonomização dos momentos

devido a ‘processos composicionais pensados como justaposição e des-articulados a

partir de um ritmo que é a exposição do princípio de choque no interior das obras.Há

várias passagens de Adorno a este respeito : “Sua música ignora a rememoração, logo a

continuidade temporal da duração. Ela vai de reflexo em reflexo”287. Ou ainda : “sua

música se priva de tudo aquilo que relações de duração poderiam criar – a transição, o

crescendo, a diferença entre campo de tensão e de distensão, entre questão e

resposta”288. [notar que, em Vers une musique informelle, Adorno reconhece que a

música não pode mais utilizar tais elementos da gramática do sistema tonal a fim de

pensar seus processos de desenvolvimento].

287 ADORNO, PNM, p. 170 288 ADORNO, PNM, p. 199

Page 132: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Curso Adorno

Aula 14

Em um texto de 1932, Sobre a situação social da música, Adorno esboça um

certo quadro tipológico de tendências musicais que será, em larga medida, conservado.

Adorno reconhecia quatro grandes tendências na produção musical “que expressa a

situação de alienação”. A primeira era representada pela Segunda Escola de Viena com

suas estratégias de emancipação da dissonância e de crítica ao sistema tonal de

organização de materiais, ou seja, de apresentação e cristalização do problema da

alienação através do material musical. A segunda era caracterizada por Adorno como:

“música que reconhece o fato da alienação assim como seu próprio isolamento e

individualismo”, mas opera tal reconhecimento através do “recurso a formas estilísticas

do passado”289, como se tais formas ainda tivessem escapado à alienação. A esta

tendência, Adorno dá o nome de “objetivismo” por evocar, de maneira “realista”, a

imagem de uma sociedade objetivamente presente e determinante. A figura estilística

mais bem acabada deste objetivismo seria o neo-classicismo: termo que é comumente

usado para descrever o estilo de certos compositores do entre guerras, como Prokofiev,

Schostacovich, Stravinsky e Hindemith, que reviveram formas equilibradas e processos

temáticos explícitos de gêneros antigos. Adorno pensa também em certos recursos à

música foclórica como é o caso de Bartok e Kodali.

Mas como Adorno reconhece na Filosofia da nova música, o objetivismo de

Stravinsky é peculiar por “implicar sua própria negatividade”. Daí porque, já no texto

de 1932, a obra de Stravinsky, principalmente a partir da História do soldado, aparece

também em uma terceira grande tendência da produção musical, uma “forma híbrida”:

“De mãos dadas com o objetivismo, o compositor procede a partir da cognição da

alienação. Ao mesmo tempo, ele é socialmente mais atento que o objetivista e

reconhece que as soluções oferecidas por seus colegas são ilusórias”. Adorno vê

correspondências fortes entre este procedimento composicional e as montagens

surrealistas compostas com dejetos da vida cotidiana. Daí a tendência em chamá-la de

“música surrealista”. Neste grupo, Adorno inclui ainda o Kurt Weill da Ópera dos três

vinténs e Mahagonny. Por fim, a última grande tendência seria uma tentativa de

recuperação da função social da música através de finalidades extra-musicais, como

seria o caso da Gemmeinschaftsmusik de Hans Eisler.

De fato, não é tal tipologia que nos interessa aqui, até porque ela não é

totalmente defensável (o trabalho de Debussy, por exemplo, dificilmente aí se

enquadra). O que nos interessa é, na verdade, esta complexidade expressa em apreender

o trabalho de Stravinsky, ao mesmo tempo dentro e fora do “objetivismo”.

Antes de procurarmos compreender melhor as raízes desta complexidade, vale a

pena procurarmos sistematizar alguns aspectos maiores dos processos composicionais

de Stravinsky. Aspectos estes que definirão um conjunto recorrente de tendências da

composição no século XX.

A violência contra o presente como retorno à origem

A obra de Stravinsky até hoje impressiona pela peculiaridade de seu

desenvolvimento. Normalmente, ela é dividida em três grandes fases. A primeira,

chamada normalmente de “Período russo”, vai de Fogos de artifício, de 1908, até o

289 ADORNO, Sobre a situação social da música

Page 133: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

começo da década de vinte. Este é o momento de suas contribuições para os balés de

Diaghilev, como Petruchka, O pássaro de fogo e A sagração da primavera. Nele,

encontramos as obras mais conhecidas do compositor e, certamente, as mais ousadas do

ponto de vista das inovações formais.

A partir da década de vinte e até meados dos anos cinqüenta, encontramos uma

fase neo-clássica, na qual o compositor procura se dispor, de maneira integral e livre, de

materiais ligados à tradição da música ocidental, seja do clacissismo, do barroco ou

mesmo do medievo. O balé Pulcinella é uma peça paradigmática deste período, que tem

ainda obras como a Sinfonia dos salmos e a Sinfonia em dó. A respeito dela, Stravinsky

dirá: “Pulcinella foi minha descoberta do passado, a revelação através da qual foram

possíveis todas as minhas últimas obras”. Uma maneira interessante de afirmar que,

para uma certa tradição modernista, uma forma de revelação do passado aparece como

condição necessária para a criação. Seria interessante se perguntar que tipo de revelação

é esta, como ela aparece, por que ela vem logo após um impressionante período de

ruptura.

Por fim, a partir de meados da década de cinqüenta, Stravinsky terá uma fase

serial, onde encontraremos procedimentos marcados pelo uso livre da técnica

dodecafônica. Talvez as obras mais representativas deste período sejam Agon e

Canticum sacrum. No entanto, trata-se da fase menos discutida de Stravinsky. De fato, o

que nos interessará aqui são, basicamente, as duas primeiras fases.

Na aula passada, lembrei que Stravinsky partilha do diagnóstico do esgotamento

da linguagem do sistema tonal, mas sua estratégia não passa por esta constituição de um

novo princípio de ordenamento. Sua afirmação central a este respeito é : “nossa

principal preocupação é menos o que se chama de tonalidade do que o que poderíamos

chamar de atração polarizada do som, de um intervalo ou mesmo de um complexo de

notas”290. Esta era uma maneira astuta de transformar a tonalidade, de um sistema que

determina processos de progressão e desenvolvimento, em um procedimento de

polarização a partir de um centro tonal. No sistema tonal, estes centros tonais são

polarizados a partir do jogo entre tônica e dominante, o que permite a construção de

uma hierarquia e de uma direcionalidade para o movimento. É exatamente tal hierarquia

e direcionalidade que Stravinsky quebra.

Desta forma, Stravinsky pode quebrar as transições e desenvolvimentos, pode

demonstrar o caráter arruinado da tonalidade como sistema, isto sem colocar em questão

uma base de organização que é derivada da tonalidade. Digamos que Stravinsky não

conserva a regra, mas a aparência da regra, a regra reduzida a uma condição de

aparência. Como ele mesmo dirá: “Ora, é perfeitamente possível que eu permaneça por

um tempo considerável dentro dos limites da estrita ordem tonal, mesmo se posso

conscientemente quebrar essa ordem com a finalidade de estabelecer uma ordem

diferente”291. Tentemos entender melhor esta maneira de quebrar a ordem dentro dos

limites da ordem.

Por um lado, Stravinsky partilha de uma das estratégias maiores de crítica

modernista aos padrões gastos da linguagem artística ao apelar para um certo retorno à

origem. Forma peculiar de tentar andar para frente com o carro em marcha a ré. Assim,

ele não temeu compor esta obra maior do modernismo musical, A sagração da

primavera, fazendo referência a temáticas de sacrifício da Rússia pagã com seus rituais.

A história do soldado, por sua vez, estava prenhe de “infantilismos musicais”. Como se

o arcaico e o infantil pudessem liberar um passado recalcado, inconsciente, que

290 STRAVINSKY, Poética musical em seis licoes, p. 41 291 Idem, p. 43

Page 134: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

assombrava, com a força dos espectros, o presente reificado pelos processos de

racionalização e de socialização. No entanto, seria o caso de se perguntar sobre como a

origem retorna no interior da obra.

Pensando nisto, Adorno chegou a afirmar, a respeito de Stravinsky:

“Em Stravinsky, a subjetividade toma a figura da vítima; no entanto – e é aí que

ele zomba a tradição da arte humanista – a música não se identifica com a

vítima, mas com a instância destruidora. Através da liquidação da vítima, ela se

desfaz das intenções, de sua própria subjetividade”292.

Esta é uma maneira de dizer que as figuras e estilos da expressão subjetiva no

interior da música são, a todo momento, liquidadas. Como se o retorno do que fora

esquecido pelo desenvolvimento da linguagem musical e de sua gramática expressiva se

manifestasse através da violência que destrói a expressão. Um exemplo didático deste

processo nos é fornecido pela Sonata para piano, de 1924. A referência principal de

Stravinsky não é a sonata clássica, embora possamos encontrar recursos estilísticos e

idiomáticos da linguagem expressiva própria ao romantismo. Sua referência é a sonata

barroca, onde o termo referia-se àquilo que deve ser tocado, em oposição a cantata,

aquilo que deve ser cantado.

Percebamos como os recursos expressivos são apresentados de forma

monstruosa, haja vista a maneira com que o compositor serve-se de trinados nos

primeiros compassos da obra. Como se eles tivessem sido ampliados a ponto de colocar

em cheque a legibilidade da obra. Como se o compositor adotasse uma postura

deliberadamente maneirista, o que fica ressaltado também na forma como o baixo

contínuo é apresentado. Esta recusa da expressão pode chegar a levar Stravinsky a

afirmar: “Não estaríamos, na verdade, pedindo o impossível à música quando

esperamos que ela expressa sentimentos, traduza situações dramáticas e mesmo imite a

natureza?”293.

A partir desta perspectiva, Adorno atenta-se para tudo aquilo que, nos processos

composicionais de Stravinsky, visam negar o que se assemelha à expressão subjetiva. A

este respeito, Stravinsky utilizaria três procedimentos-padrão : o princípio artístico da

recusa, o choque e o princípio artístico da utilização de materiais gastos.

A respeito da dimensão rítmica da musica de Stravinsky, Adorno insiste que a

verdadeira função do ritmo está vinculada à idéia de choque. As modificações contínuas

na geografia dos tempos fortes e fracos produziriam, acima de tudo, a sensação de

choque, como se o corpo fosse a todo momento tomado por convulsões, como se ele

fosse objeto contínuo de traumas que ele não consegue mais integrar, pois são

acontecimentos que aparecem como violência externa. Pensemos, por exemplo, em A

sagração da primavera. A continuidade do gesto, como momento da expressão

dramática do sujeito, não é a base do balé. O que temos é o movimento corporal como

reação a sucessões de impulsos que não podem ser controlados pela expectativa. Desta

forma, o ritmo não adquire sequer a função ritual do transe, já que ele não é circular. Ele

adquire a função traumática do choque, que acaba por reforçar o caráter de justaposição

próprio à composição.

Esta colocação, embora plausível, tende a subestimar o caráter estruturador do

ritmo. Boulez compreendeu claramente que o fenômeno mais importante no domínio

temático da Sagração era o aparecimento de temas rítmicos complexos. O exemplo do

número 13 da partitura é bastante evidente. Este tema rítmico serve de base para o

292 ADORNO, PNM, p. 151 293 STRAVINSKY, ibidem, p. 75

Page 135: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

desenvolvimento inclusive do tema melódico do número 14. Desta forma, o aspecto

desestruturador de um ritmo vivenciado como choque tende a ser absorvida pela

construção.

Por sua vez, a recusa e a subtração são procedimentos fundamentais no

modernismo em sua primeira fase. Trata-se de limitar o material ao mínimo a fim de

livrá-lo de todo ornamento supérfluo e falso. “Proceder por eliminação – saber como

descartar, como diz o jogador, esta é a grande técnica de seleção”294, lembrará

Stravinsky. Eu havia dito a vocês que devíamos prestar atenção no impulso modernista

de subtrair a forma estética até alcançar os elementos fundamentais que organizam a

gramática dos modos de expressão, isto a fim de retrabalhá-los. Modo de reconfigurar

os fundamentos de nossa linguagem. Como se, assim, o muito familiar pudesse ser,

mais uma vez, objeto de conflitos de interpretação.

No caso de Stravinsky, esta subtração dá-se, inicialmente, como anulação do

desenvolvimento. Fato fundamental, já que podemos dizer que, no caso da música, seu

elemento fundamental, aquilo que define a especificidade de sua linguagem e seus

problemas não é simplesmente o sonoro, mas o som no interior de um desenvolvimento

temporal. Eduard Hanslick, afirmava ser a música “formas sonoras em movimento”.

Maneira astuta de dizer que música é um problema de movimento, um problema

cinético.

Na música de Stravinsky em sua fase russa, nada se realiza no seu sentido

estrito. Por exemplo, todo desenvolvimento harmônico é cortado, o que faz com que as

passagens de um material a outro sejam abruptas e articuladas a partir do princípio de

justaposição ou sobreposição. Também não há algo que poderíamos chamar de

desenvolvimento melódico. No seu lugar, há apenas “células motívicas” que são

repetidas, sobrepostas a outras células e dissolvidas (através da modificação dos tempos

fortes ou do apagamento de seus limites), mas nunca desenvolvidas no interior de uma

lógica, por exemplo, de antecedente-consequente. No seu lugar, o que temos

normalmente é o uso deliberado de contrastes e cortes abruptos. Desta forma, assistimos

o desenvolvimento de uma espécie de escrita em blocos sonoros que fica muito visível,

por exemplo, em A sagração da primavera. A metáfora é cara aqui. Quem fala em

blocos, fala em volumes que se desdobram no espaço, em volumes que podem ser

justapostos, sobrepostos, quebrados.

Quando Stravinsky caminhar em direção à sua fase neo-clássica, o

desenvolvimento será reforçado pela pressuposição das formas tradicionais utilizadas

pelo compositor. A este respeito, levemos a sério uma afirmação como:

Quanto a mim, sinto uma espécie de terror quando, no momento de começar a

trabalhar e de encontrar-me antes as possibilidade infinitas que se me

apresentam, tenho a sensação de que tudo é possível. Se tudo é possível para

mim, o melhor e o pior, se nada me oferece qualquer resistência, então qualquer

esforço é inconcebível, não posso usar coisa alguma como base, e

consequentemente todo empreendimento se torna fútil295.

As colocações não poderiam ser mais claras. A ausência de pressuposição das

formas tradicionais provoca um verdadeiro terror pois, sem elas, nada impõem

resistências à um artista que compreende a composição, principalmente, como a astúcia

de quebrar a ordem dentro dos limites da ordem. Um artista que precisa da resistência

para compor. Daí porque: “tudo o que diminui a restrição diminui a força”. A ordem

294 STRAVISNKY, ibidem, p. 69 295 STRAVINSKY, ibidem, p. 63

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deve ser posta para ser exposta em sua impotência. No entanto, não há como superar a

ordem.

Mas há algumas questões que devemos levantar aqui. Se o elemento

fundamental da música é o som em movimento e se é exatamente a idéia de movimento

que parece ser o objeto da problematização de Stravinsky, então a base da experiência

musical de Stravinsky parece estar na mutação da categoria de tempo musical.

Tempo e movimento

No caso de Stravinsky, esta recusa, está vinculada à autonomização dos

momentos devido a processos composicionais pensados como justaposição e des-

articulados a partir de um ritmo que é a exposição do princípio de choque no interior das

obras: “A respeito da montagem de filmes, Eisenstein declarava que o conceito geral, a

significação, a síntese dos elementos parciais do dado cinematográfico surge

precisamente da justaposição de elementos separados. Mas, assim dissocia-se o próprio

contínuo da duração da música”296.

Neste sentido, Adorno chega mesmo a fazer um paralelo entre Stravinsky e seu

antigo professor, Debussy. Para ele, Stravinsky aprendeu com Debussy a

“atemporalidade” musical. Adorno pensa principalmente no caráter não-funcional das

harmonias de Debussy que descontrói o movimento da progressão harmônica, com suas

tensões, resoluções e com sua determinação de uma verdadeira “gramática da

temporalidade”:

“Stravinsky tomou diretamente de Debussy a concepção espacial de planos

sonoros na música: e a técnica de complexos, assim como a constituição de

modelos melódicos atomizados provém também de Debussy. Na verdade, a

inovação [de Stravinsky em relação a Debussy] consiste apenas no fato de que se

corta os fios de harmonização entre os complexos e se demole os resíduos do

processo dinâmico-diferencial. Os complexos espaço-parciais chocam-se

fortemente uns contra os outros”297.

O diagnóstico seria claro: Stravinsky, ao privilegiar o tempo espaço ao invés do

tempo duração, teria “preparado o fim do bergsonismo musical”. O fato mesmo dela

flertar tanto com a música de ballet não seria um acaso, já que a verdadeira dança é uma

arte estática, é um “tourner en rond”. Ao contrário: “em música, nada é isolado e tudo

só se transforma no que é através do contato físico com o que é próximo e do contato

espiritual com o que é distante, na rememoração e na expectativa” (Adorno 9, p. 254).

Adorno insiste no fato de que o instante musical conhece uma causalidade

temporal que o faz : “em virtude daquilo que ele faz lembrar, daquilo do qual ele se

distingue, da expectativa que ele desperta, reenviar para além de si mesmo” (Adorno 9,

p. 256). Há assim uma “transcendência” fundamental do instante musical que nos

mostra que ele nunca é exatamente idêntico à si mesmo, já que seu sentido só se

estabelece através de processos contínuos de recontextualização dos instantes passados.

Mas, como nos lembra Adorno, o tempo que estrutura a música de Stravinsky

não é o tempo-duração pressuposto pelos processos de rememoração, mas uma espécie

de tempo-espaço submetido às leis da descontinuidade e da justaposição298. Como dirá,

296 ADORNO, PNM 297 ADORNO, PNM< 298 Esta distinção entre modos de temporalidades musicais permite a Adorno falar em dois tipos de

audição, já que os tipos de audição são, fundamentalmente, modos de apreensão do tempo: “Tratam-se

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por exemplo, este anti-bergsoniano involuntário que é Philip Glass : “Minha música é

um motor do espaço”. Fórmula precisa já que sua música, como muitas outras, não faz

apelo à rememoração ou às tramas teleológicas da memória. Ela faz apelo à dissolução

da experiência da temporalidade e à ek-stase própria daquilo que se transforma em

objeto no espaço. Na verdade, estamos diante de uma audição que passa de um material

a outro tal como alguém que atravessa as fronteiras de um território descontínuo; pois a

determinidade imediata do espaço fundamenta-se na indiferença recíproca como marca

do modo de ser da espacialidade.

Neste sentido, a audição que a música de Stravinsky requer seria uma audição

atomizada. Podemos dizer que a audição atomizada é, na verdade, uma audição que

tende a apreender o material musical da mesma maneira que apreendemos uma

imagem estática que se dá no espaço. Nada estranho para um compositor que disse :

“Disse em algum lugar que não era suficiente ouvir a música, que deveríamos ser capaz

de vê-la”.

Notemos aqui a especificidade da concepção adorniana de temporalidade.

Adorno procura um pensamento do tempo não submetido ao paradigma da

espacialidade. Ou seja, trata-se de não pensar o tempo como justaposição de momentos

inertes e independentes, mas como movimento dinâmico de auto-anulação da

identidade. Esta negatividade própria à potência elementar do tempo nos reenvia

necessariamente à Hegel e à sua noção do tempo como “atividade negativa ideal”

(ideelle negative Tätigkeit) (Hegel 18, p. 156), ou seja, como potência que anula a

justaposição indiferente do espacial ao instaurar a continuidade de instantes que, por

serem necessariamente pensados em continuidade, negam-se a si mesmos enquanto

identidades autônomas.

Neste sentido, devemos lembrar que, para Adorno, a anulação da temporalidade

na música traz ao menos duas conseqüências distintas mas complementares. A primeira

diz respeito à dinâmica musical. Ao submeter-se ao tempo-espaço, o desenvolvimento

interno da forma musical, marcado pela continuidade temporal da duração, tende a dar

lugar a uma articulação que se assemelha à construções por justaposição. Mas, por

outro lado, e este é o ponto mais importante, se a audição atomizada pode apreender o

material musical da mesma maneira que apreendemos uma imagem estática que se dá

no espaço, é porque estamos diante de um material reduzido à sua própria imagem. A

audição atomizada indica o devir imagem do material musical.

No nosso contexto, isto significa dizer que o material se transforma em

gramática congelada e estática, peças de um vocabulário totalmente codificado. Este

vocabulário funda-se no uso da história da música como um depósito de formas

estilizadas que podem se submeter ao trabalho contínuo do compositor. Mas a

invariância de um material previamente codificado pelo sistema leva à estereotipia. Por

não poder se desenvolver para além da forma definida por uma apreensão estereotipada,

o material é reduzido à estática de imagens idealizadas. A composição transforma-se

assim em conflito e violência contra a aquilo que poderíamos chamar de “resistência do

material”. No entanto, a resistência não é aqui a dinâmica interna de um material que

provoca o estranhamento próprio àquilo que resiste a todo processo de conformação

dos dois tipos de audição : a expressiva-dinâmica (expressiv-dynamische) e ritmica-espacial (rhythmisch-

räumliche). A primeira origina-se do canto, ela visa submeter o tempo preenchendo-o e, em suas

manifestações supremas, transforma o discurso temporal heterogêneo em força do processo musical. O

outro tipo obedece à batida do tambor. Ele toma muito cuidado em articular o tempo através de uma

repartição em massas quantidades que virtualmente ab-rogam o tempo e o espacializam” (Adorno 8, p.

180 ). A idéia da grande música consistia na compenetração entre estes dois tipos de audição. No entanto,

atualmente eles se encontrariam separados.

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integral à construção299. Ela é a força negativa que o compositor demonstra ao recusar o

uso correto dos materiais. Força que se transformará em paródia:

Stravinsky só continua sob o império do idêntico porque ele não sai da cultura

[princípio de estilização]. É isto o que o acorrenta à afirmação e funda uma

aliança sinistra entre sua música e a realidade horrível da qual ela fornece uma

imagem. Mas sua cumplicidade com a mentira é muito próxima da verdade. O

mestre da paródia parodiou a dialética.

A forma paródica

Em um texto que escreveu, Stravinsky afirma:

Na verdade, eu teria dificuldade em citar para vocês um único fato na história da

arte que pudesse ser qualificado de revolucionário. A arte é, por essência,

construtiva. Revolução implica ruptura de equilíbrio. Falar de revolução é falar

de um caos temporário. Ora, a arte é o contrário do caos. Ela nunca se rende ao

caos sem ver imediatamente ameaçadas suas obras vivas, sua própria

existência300.

Estas colocações são bastante expressivas. Por ser construtiva, a arte só pode ver o caos,

a informidade, como uma ameaça insuportável. Ela estará disposta até mesmo a aferrar-

se à ordem que parecia gasta, a negar a possibilidade mesma de uma revolução para

esconjurar a ameaça do caos. No caso de Stravinsky, isto implica em um modo peculiar

de conservação da ordem através da ironia. Este é o desdobramento necessário deste

retorno à origem que parece animar os primeiros grandes trabalhos de Stravinsky.

Stravinsky, e esta é a chave para a complexidade da sua experiência artística, é

aquele que realiza certas expectativas do modernismo através do advento de uma forma-

paródica. Esta forma, ao invés de organizar-se como uma crítica da aparência através da

visibilidade integral da estrutura (como vimos com o dodecafonismo de Schoenberg),

organiza-se como a submissão integral do material a um “princípio de estilização”. O

material aparece normalmente como o representante de um estilo codificado, elemento

congelado como uma imagem-clichê. A obra advém “jogo” com materiais fetichizados.

Caminho que poderia nos levar, simplesmente, à composição de obras “regressivas”,

isto se tais materiais fetichizados não fossem tratados como aparências postas como

aparência. Desta maneira, a forma-paródica realiza cinicamente o programa que a

forma crítica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua própria

negação, já ser , em si mesma, a performance de uma distância correta em relação a

sistemas naturalizados de representações (como é o caso do sistema tonal). Neste ponto,

podemos dizer que Stravinsky é a chave para a compreensão daquilo que, mais tarde,

será definido como pós-modernidade.

Normalmente, a crítica indica o neo-classicismo do ballet Pulcinnella, de 1920,

como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais de Stravinsky, mas

299 Como nota Makis Solomos, a importância da noção de “material” na música do século XX, entre

outras coisas, está ligada à metáfora da “imersão no material”, ou seja, a esta observação microscópica

do material que nos leva a um desdobramento infinito dos detalhes tão relevado por Adorno. Tal

desdobramento é o contrário da estática do devir imagem do material. Ou seja, todo uso do material,

pensado como imersão, leva necessariamente o compositor a deparar-se com a “resistência do material” à

construção (Cf. Solomos 27, pp. 137-151) 300 STRAVINSKY, Poética musical em seis licoes, p. 21

Page 139: Safatle - Introducao a Adorno (Curso)

Adorno insiste que A história do soldado, de 1918, já é composta a partir de

procedimentos que determinarão a forma musical, em Stravinsky, de maneira cada vez

mais hegemônica. Isto porque, a partir da História do soldado, o único material de

composição será o material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais

pobres, convenções deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno já indicara algo

desta tendência ao perceber que, devido ao princípio artístico da recusa e a um certo

anti-humanismo, os momentos de inflexões expressivas em Stravinsky eram,

normalmente, sucessões sonoras elementares. Desde Petruschka, a expressão advém

grotesca, risível e conjugada apenas em uma gramática claramente posta como

ultrapassada, como se: “a imago do deteriorado e decrépito devesse se transformar no

remédio contra a decadência (Verfallenen)”301. Adorno pensa no fato de que os

momentos de expressão subjetiva, em Petruschka, são apresentados a partir de um

leitmotiv composto pela repetição insistente e uma melodia estereotipada de circo.

Este remédio contra a decadência do tonalismo sintetizado com imagens de

elementos deteriorados do próprio sistema será, não apenas o motor da fase neo-clássica

de Stravinsky, mas também procedimento composicional maior para a compreensão do

que está em jogo no resgate contemporãneo do tonalismo.

A este respeito, devemos levar à sério a afirmação adorniana de que o

compositor que segue a lógica em operação nas obras de Stravinsky compõe com

“ruínas de mercadorias (Warentrümmern)”, isto no sentido de assumir formas e

elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal, como se tal material já estivessem

previamente criticado, como se ele trouxesse em si sua própria negação e afirmasse sua

própria impossibilidade em desempenhar suas “funções naturais”. É isto que Adorno

tem em mente ao dizer que Stravinsky compõe como quem “ritualiza a liquidação

(Ausverkauf – “liquidação” no sentido de proposições como: “ uma loja em

liquidação”)”302. Daí a idéia adorniana de afirmar que isto nada mais é do que uma

forma musical paródica, forma que apresenta todos os seus materiais entre parênteses,

como se estivéssemos diante de uma “música feita a partir da música”, ou de uma

montagem de músicas mortas, música feita contra a música.

Tudo se passa como se o fazer tomasse consciência de si através da ironia e

afirmasse abertamente enquanto tal. Música que, de maneira cínica: “zomba da norma

com o mesmo fôlego que a afirma”303, ou seja, forma estética capaz de suspender a

norma exatamente ao segui-la. Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados

do ponto de vista de situação sócio-histórica. É devido a este ponto que Adorno pode

afirmar em 1962 :

“Stravinsky continua sendo um objeto de escândalo porque o caráter inautêntico

da objetividade tomou, neste prestidigitador, uma feição caricata. O que salvou

sua música de todo provincianismo, é que ela nunca deixou de mostrar seus

barbantes, como apenas os mágicos inimitáveis podem fazer”304.

Sua consciência de que apenas uma “linguagem orgânica em decomposição” era

possível à música que aspira afirmar-se como forma crítica nos leva a indicá-lo como

exemplo privilegiado de alguém que procura expor o colapso da distinção entre arte e

fetichismo, mas no interior de estruturas claramente fetichizadas. De fato, este

301 ADORNO, Philosophie der neuen musik, p. 138 302 ADORNO, idem, p. 166 303 ADORNO, idem, p. 188 304 ADORNO, Stravinsky, p. 164

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diagnóstico sempre acompanhou a leitura adorniana de Stravinsky. Basta lembrarmos

que, já em um texto de 1932, Adorno não deixava de lembrar:

“a música de Stravinsky usa o conhecimento de sua antinomia coercitiva

apresentado a si mesma como um jogo. Ela faz isto, no entanto, nunca como

simplesmente um jogo e uma arte aplicada: ao contrário, ela mantém uma

posição de contínua suspensão ente jogo e seriedade, entre vários estilos também

que quase nos impede de chamá-la pelo nome e com ironia ela retardatoda

compreensão da ideologia objetivista”305.

È claro que sempre se pode dizer que: “esta música, longe de se confundir com a

consciência reificada que nela fala, ultrapassa-a na medida em que a contempla em

silêncio e a deixa falar em pessoa, sem intervir”306. Poderíamos mesmo seguir aqui Max

Paddison a fim de lembrar que: “segundo Adorno, Stravinsky expressa a alienação

através da ironia e fragmentação na relação aos seus materiais, isto principalmente em

um trabalho como L´histoire du soldat”307.

De fato, para Adorno, o exemplo privilegiado aqui e A história do soldado.

Segundo ele, trata-se de uma obra que “esclarece toda a produção de Stravinsky”.

Embora aqui os materiais sejam claramente regressivos e infantilizados, a intepretação

que Adorno faz da peça não deixa de reconhecer que: “os olhos vazios de sua música

são às vezes mais expressivos que a expressão”308. [o uso do jazz/a lógica da

desintegração/ o extremo da estilização]

No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma consciência reificada auto-

reflexiva ou de uma falsa consciência esclarecida. Forma de uma consciência cínica

que repete os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que demonstra a todo

momento, seja pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar

distância de seu próprio gestual.

305 ADORNO, Da situação social da música 306 ADORNO, Stravinsky, p. 166 307 PADDISON, Adorno aesthetics of music, p. 47 308 ADORNO, PNM, p. 183

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