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    214 so paulo, n.01, p. 214 -228, junho (2016)

    palavras-chaveDirio visual;

    Antropologia visual e arte;

    Texto e imagem;

    Imagem e memria;

    Visualizao do tempo.

    ETIENNE SAMAIN

    VESTGIOS DE UMDIRIO FOTOGRFICO

    Universidade Estadual

    de Campinas Unicamp,

    Campinas, So Paulo, Brasil.

    Meu prazer no era sociolgico, nem direta-mente antropolgico.

    Foi no ms de fevereiro de 1997 que, lendo o livro de

    Elizabeth Chaplin, Sociology and Visual Representa-

    tion, o projeto se concretizou. Queria realizar um

    dirio fotogrco por prazer e - penso hoje - por ne-

    cessidade, tambm.

    Por prazer, j que o empreendimento no respondia a

    nenhuma demanda. No seria mais esse dirio pessoal

    que escrevi de 1955 a 1975. No teria nada a ver com uma

    autobiograa visual ou com uma fotobiograa

    1

    . No se-ria um portflio, nem esse olhar adulto quando se de-

    brua sobre as lembranas da infncia2. Seria, sim, da

    ordem dessas pequenas inscries desconexas que joga-

    mos num bloco de notas. Nenhuma temtica pr-deni-

    da: as fotograas no passariam de simples registros de

    coisas, de objetos, de lugares, de pessoas que marcariam

    o dia. Nenhuma nalidade consciente a no ser o pac-

    to dirio de surpreender um pedao do real para ro-

    lo. Aceitava, deste modo, que o acaso se instalasse, que

    minhas emoes e meu imaginrio pudessem aorar

    em meio aos futuros documentos.

    1. Sobre o assunto, remito ao coletivo Tempos, narrativas e ces:

    a inveno de si(Orgs. Elizeu Clementino de Souza e Maria Helena

    Menna Barreto Abraho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006), em espe-

    cial as contribuies dos organizadores e de Denice Barbara Catani,

    Remi Hesse, Christine Delory-Momberger.

    2. Penso no trabalho de Raymond Depardon, La ferme du Garet

    (Arles: Actes Sud, 2006), mas valeria a pena, no caso, debruar-sesobre o conjunto da obra visual do autor.

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    Havia, tambm, a necessidade de se observar mais de perto o tempo que

    passa e, com ele, tudo aquilo que leva e carrega. O desejo de surpreender

    e de suspender o efmero da vida. Na poca, vivamos j num mundo de

    desmedidas, de excessos de imagens tambm. Precisava me dar o tempo

    de olhar, de visualizar o tempo, de interioriz-lo e de me deixar questio-

    nar. Com outras palavras, queria recolher (no capturar, e sim eleger) a

    cada dia um desses pequenos momentos da existncia, aparentemente

    sem importncia.

    Dispunha de um cmera analgica Minolta. Usava lmes Kodak Gold

    - ASA 100.

    0 0 0

    Quase vinte anos passaram. Reencontro hoje dois lbuns de capa dura.

    Um total de 113 fotograas em sequncia, uma a cada pgina dos l-

    buns de 23 de fevereiro a 17 de junho de 1997. Nenhum comentrio es-

    crito ao lado delas, a no ser a data da tomada da fotograa e o nmero

    do lme a que pertence.

    A experincia durou quatro meses e naufragou. Como explicar?

    No ponto de partida, era uma espcie de jogo, um passeio pelo tempo

    humano, uma descoberta, uma aventura. Rapidamente, no entanto,

    me dei conta de que no conseguia facilmente seguir a cadncia, isto ,

    cumprir a promessa de no deixar a noite cair sem ter realizado uma

    fotograa. As razes eram diversas: a falta de tempo, as viagens, as

    urgncias prossionais, o labor da jornada ou o simples esquecimento.

    Outras interrogaes, alis, pairavam diariamente: o que escolher e reg-

    istrar? Sem buscar o extraordinrio, como lidar com o cotidiano, com

    sua repetio e sua aparente banalidade?

    algo inslito lembrar hoje o que signicava trabalhar ento com o

    analgico. A empreitada visual era ao mesmo tempo prazerosa e exi-gente. Para alm de ter-me imposto a tomada de uma nica fotogra-

    a (embora tivesse feito certa vez vrias do mesmo assunto), precisava

    aguardar o termino do lme e sua revelao (momento mgico e sempre

    condencial) para, ento, poder encontrar o tempo de ordenar as foto-

    graas cronologicamente e x-las num lbum.

    felicidade do momento misturava-se todavia um certo desencan-

    to, uma espcie de frustrao, na medida em que no me lembrava da

    metade das fotograas reveladas. Pior, no chegava a me rememorar o

    momento da tomada, minhas motivaes, o que tinha presidido a suaescolha. Com outras palavras, a fotograa tinha, de certo modo, apri-

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    sionado nela o que no entanto a havia feito nascer. Ela podia, sim, falar

    de muitas coisas, mas no conseguia expressar o que pensava ter-lhe

    conado. Sentia que esse dirio visual nunca seria realmente o meu,

    sem palavras que pudessem acompanh-lo. Eis o que explica tambm o

    fato de que, paralelamente, tinha-me posto rapidamente a conotar essas

    fotograas num texto independente que procurava situ-las. Escrevia.

    Era um outro dirio.

    Se verdade que as fotograas no precisam de palavras para ex-

    istir, as palavras so inseparveis das imagens quando se trata de

    encar-las. provvel que, com a fotograa digital e as possibili-

    dades atuais da informtica, a gente possa resolver parcialmente

    os problemas aqui levantados e, sobretudo, proporcionar outrasabordagens (notadamente artsticas) no tocante realizao de um dirio

    visual, o chamadoArt Journal ingls3. As publicaes atuais de selesnas

    redes sociais deveriam, por sua vez, nos tornar atentos aos seus usos em

    termos de criao de uma identidade social tanto como em termos da

    busca de um reconhecimento social4.

    0 0 0

    Reinvestir hoje nesses vestgios signica, at certo ponto, desencalhar pe-

    quenos barcos que atolaram e que, depois de quase vinte anos, ressurgem

    cobertos por outros sedimentos deixados pelo tempo. Escolhi 12 fotograas

    que se seguem na temporalidade do dirio. Num primeiro momento, pro-

    curei me situar ante elas fazendo apelo minha memria. No ia muito

    longe. Reli ento os comentrios escritos e as fotograas se puseram a viver

    de novo e, mais, a me interrogar. Os curtos textos a seguir nascem desse

    duplo movimento.

    3. Segurar o tempo e procurar se inscrever nele um pouco o sonho de todos os mortais. Sugiro,

    entre muitos outros, alguns trabalhos artsticos que vo nessa direo: Robert Frank (Story

    Lines), Sophie Calle (Douleur exquise eMas-tu vue?), Frank Horvat (1999. Un journal photo-

    graphique), Roman Opalka (Opalka 1965/1. Autoportraits), Dominique Goblet (Chronographie),

    Anne de Gelas (Une journe (presque) tranquille, inwww.annedegelas.com).

    4. guisa de incentivo, assinalo a pesquisa recente de Gisleine Gomes Nascimento intitu-

    lada Auto, foto e graas: a construo do autorretratono Facebook. Dissertao de Mestra-

    do apresentado no Programa de Ps-graduao em Multimeios do Instituto de Artes da

    Unicamp, 2014. Disponvel no seguinte endereo: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000928308

    texto recebido05.07.2015

    http://www.annedegelas.com/http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000928308http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000928308http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000928308http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000928308http://www.annedegelas.com/
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    AS FOTOGRAFIAS:

    MAURCIO E SEU PAI(24/02/97 Filme 1) (Foto01)

    Maurcio e seu pai acabavam de chumbar uma

    grade de ferro. No imaginava que Mauricio ia

    morrer um ms depois. No havia notado que seu

    semblante era inquieto. Fiz uma ampliao da fo-

    tograa que dei, na poca, ao seu velho pai Antnio.

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    FERRO VELHO NUMA UNIVERSIDADE(12/03/97 Filme 1) (Foto02)

    Em 29 de novembro de 1995, um tornado com ven-

    tos de 180 km/h decepava o telhado do ginsio de es-portes da Unicamp, uma estrutura metlica de dez

    mil m que pesava aproximadamente 250 toneladas.

    No me conformava de ver,15 meses depois, passan-

    do por l, a cada dia, esse monto de ferros retorci-

    dos, enferrujando.

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    DEZ PARA DEZ DA NOITE(24/03/97 Filme 2) (Foto03)

    Abaixo do mao de cigarros, uma listagem de tare-

    fas e esse texto: So dez para dez da noite; o ven-to sopra fora. No fui atento para fazer a fotograa

    do dia. Fao essa. Feliz dia, pois - com Andr Alves

    e Joo Martinho/ .... [Dois dos orientados da poca],

    conseguimos fazer um excelente trabalho de demar-

    cao dos territrios. Uma lente de aumento ajudar

    a descobrir o restante.

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    AMANHECER DA PSCOA(30/03/97 Filme 3) (Foto04)

    Minha lha procurava, na manh de Pscoa de 1997,

    ovinhos de chocolate escondidosnum canto do jardimde Campinas. Tinha na poca 11 anos. Est hoje com

    29 anos e mora em Drvar (na Bsnia), l onde Titose escondianas grutas, quando Hitler o perseguia em

    maio de 1944.

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    A PIRMIDE(15/04/1997 Filme 4) (Foto05)

    A caminho da Unicamp, a esquisita construo piram-

    idal de vidro com reexos azuis me tocava na poca.Hoje, o gigantesco nmero 424 sobre a fachada que

    chama minha ateno. Graas ao Google, descobri

    que a pirmide Emprio Egpcio (que se situa ainda

    na Avenida Professor Atlio) era um restaurante que

    oferecia aos sbados, um show de dana do ventre. O

    obelisco facilmente identicvel pela sua capacidade

    simblica: a aspirao de um indivduo (o fara) a se

    igualar aos deuses e sua referncia flica. Mas quem

    era o Professor Atlio cujo nome aparecia perdidoPro-

    curei. No consegui ainda encontrar seus passos.

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    NIDO(26/04/97 Filme 5) (Foto06)

    Nido, que nasceu na Bahia: recebeu no dia de seu nas-

    cimento esse registro social magnco: ele MarcoAntnio dos Reis da Hora. Com ele, aprendi a fazer

    com grandes cuidados pequenas coisas da natureza

    e da vida. Ele tem a dignidade de um Marco Antnio,

    cnsul da repblica romana. No tocante aos seus re-

    inados, est com sua famlia, sempre procura deles.

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    O P ESQUERDO(30/04/97 Filme 5) (Foto07)

    Minha prpria derriso: saber relativizar o que a

    gente pensa ter na cabea. O nal do dia particu-

    larmente propcio para esse tipo de exerccio.

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    O CHAPU NORDESTINO(03/05/97 Filme 5) (Foto08)

    Junto a uma sada de banho pendurada no varal, pren-

    di esse chapu de vaqueiro e, com ele, minhas vivn-cias de cinco anos no Nordeste brasileiro (Natal).

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    O P DE LIMO GALEGO(12/05/1997 Filme 5) (Foto09)

    Dois anos antes, aps uma noite imprevisvel de

    vento forte, o p de limo galego amanheceu ras-gado na metade. Com panos (para no machucar a

    rvore), tubos e ferros (que encontrei na casa), Go-

    delieve e eu trabalhamos longamente por sua so-

    brevivncia. Valeu a pena: no ms de maio de 1997

    acabavam de nascer trs novos limes. Hoje, revejo

    esses galhos, nosso esforo comum em torno dele e,

    provavelmente, da nossa prpria histria.

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    MAQUIAVEL(24/05/97 Filme 6) (Foto10)

    O encontro, sobre minha mesa de trabalho, de trs

    coisas (uma defunta placa me de computador, umaapostila escolar sobre Maquiavel e um folheto promo-

    cional de um Banco, referente a um novo sistema de

    telefonia [Visa Fone]. Num dado momento, a fuso dos

    trs elementos convocou uma ideia: a de uma rede

    informtica enquanto viagem universal, dirigida por

    Maquiavel. As peas da placa me tornavam-se con-

    juntos habitacionais, os os faziam a conexo direta

    bem na face superior do crnio de Maquiavel, quando

    o texto do folheto acrescentava algo a mais, sob a for-

    ma de um passaporte universal

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    O COGUMELO(10/06/97 - Filme 7) (Foto11)

    Na juno de duas tbuas de um velho porto aban-

    donado, um cogumelo tomava razes.

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    O DISCURSO ANTROPOLGICO(14/06/97 - Filme 7) (Foto12)

    O discurso antropolgico efetivamente uma mon-

    tagem, assim como essa fotograa de Mara (minha

    lha) cujo retrato realizado pouco antes - enquad-

    rava-se perfeitamente na capa de um coletivo (J.-M.

    Adam, M.-J. Borel, C.Calame, M.Kilani) publicado em

    1990. Detalhe parte, a capa no livro original um

    autorretrato de Bronislaw Malinowski que, de culos

    escuros, sentado e cercado por nove nativos das ilhas

    Trobiand, xa, tambm, o horizonte.