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    www.evss.c

    junho

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    ano III

    ficina

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    Edio, Capa e Diagramao:

    Henry Alfred Bugalho

    Reviso Geral

    Maria de Ftima Romani

    Autores

    Ana Cristina RodriguesCaio Rud

    Cirilo S. LemosGiselle Natsu SatoHenry Alfred BugalhoJoaquim BispoJos Guilherme VerezaJ BlasinaLeandro da SilvaLo BorgesMaria de Ftima SantosMaristela DevesWellington Souza

    www.revistasamizdat.com

    SAMIZDAT 29junho de 2010

    Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedada

    a Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royalty

    free ou sob licena Creative Commons.

    Os textos publicados so de domnio pblico, com consensoou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei deCopyright dos EUA (107-112).

    As idias expressas so de inteira responsabilidade de seusautores. A aceitao da reviso proposta depende da vontadeexpressa dos colaboradores da revista.

    El

    Lentamente, caminhamos para a ltima edio da RevistaSAMIZDAT.

    Depois de quase trs anos de publicao ininterrupta, estarevista digital se prepara para seu encerramento neste msde julho.

    Dezenas de autores passaram por aqui. Centenas de textosforam publicados. Seguimos em frente em nossas trilhas lite-rrias certo de termos deixado nossa parcela de contribuiopara as Letras, cientes de termos rompido vrias das barrei-ras que separam autores e leitores.

    Convido-os a acompanhar nossa despedida, mas tambmconvido-os a acompanhar nossas trajetrias futuras, cadaqual com sua prpria fortuna, pois na SAMIZDAT se reuni-ram grandes e preciosos talentos.

    Henry Alfred Bugalho

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    SumrioPor quE Samizdat? 6

    Henry Alfred Bugalho

    miCroCoNtoSJu Blasina 9

    CoNtoS

    a p 10Caio Rudo ep 12

    Joaquim Bispo

    a e tee 16Ana Cristina Rodrigues

    A lha do Crisstomo 22Maria de Ftima Santos

    a vngn e Ben Jl 26Henry Alfred BugalhoHe c vl 30

    Cirilo S. Lemos

    F 36Jos Guilherme Vereza

    avles 38Lo Borges

    Sempre h uma verdade... (Final) 42Maristela Scheuer Deves

    O assassino. Em nome do Criador 44Giselle Sato

    artiGoGel Geles - Se-Pv 48

    Joaquim Bispo

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    o e c gne 52Joaquim Bispo

    o e ce e n n pesse? 55

    Leandro da Silva

    PoESia+ 2 ns 56

    Ju Blasina

    O despertar de uma mulher 58

    Caio Rud de Oliveira

    Cs e Pl 60Wellington Souza

    SoBrE oS autorES da Samizdat 62

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    www.ocinaeditora.com

    O lugar onde

    a boa Literatura fabricada

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    incls e Excls

    Nas relaes humanas,sempre h uma dinmica deincluso e excluso.

    O grupo dominante, pelaprpria natureza restritivado poder, costuma excluir ouignorar tudo aquilo que nopertena a seu projeto, ouque esteja contra seus prin-cpios.

    Em regimes autoritrios,esta excluso muito eviden-te, sob forma de perseguio,censura, exlio. Qualquer umque se interponha no cami-nho dos dirigentes afastadoe ostracizado.

    As razes disto so muitosimples de se compreender:o diferente, o dissidente perigoso, pois apresentaalternativas, s vezes, muitomelhores do que o estabe-lecido. Por isto, necessriosuprimir, esconder, banir.

    A Unio Sovitica nofoi muito diferente de de-mais regimes autocrticos.

    Origina-se como uma formade governo humanitria,igualitria, maslogo

    se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. amicrofsica do poder.

    Em reao, aqueles quese acreditavam como livres-pensadores, que no que-riam, ou no conseguiam,fazer parte da mquinaadministrativa - que esti-

    pulava como deveria ser acultura, a informao, a vozdo povo -, encontraram naautopublicao clandestinaum meio de expresso.

    Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmentemanuscrevendo, tais autoresrussos disseminavam suasidias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar

    esta cadeia, reproduzindo taisobras e tambm as passandoadiante. Este processo foidesignado "samizdat", quenada mais signica do que"autopublicado", em oposios publicaes ociais doregime sovitico.

    P e S?

    Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,

    distribuo e posso ser preso por causa disto

    Vladimir Bukovsky

    Henry Alfred Bugalho

    [email protected]

    Foto: exemplo de um samizdat. Corte-

    sia do Gulag Museum em Perm-36.

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    E p e S?

    A indstria cultural - e omercado literrio faz partedela - tambm realiza umprocesso de excluso, base-ado no que se julga no tervalor mercadolgico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-seque contos, poemas, autoresdesconhecidos no podemser comercializados, que novale a pena investir neles,pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

    A indstria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. No basta qualidade,no basta competncia; sehouver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridadesna hora de ser absorvidopelo mercado.

    E a autopublicao, comoem qualquer regime exclu-dente, torna-se a via paraprodutores culturais atingi-rem o pblico.

    Este um processo soli-trio e gradativo. O autorprecisa conquistar leitor aleitor. No h grandes apa-ratos miditicos - como TV,

    revistas, jornais - onde elepossa divulgar seu trabalho.O nico aspecto que conta o prazer que a obra causa noleitor.

    Enquanto que este um

    trabalho difcil, por outrolado, concede ao criador umaliberdade e uma autonomiatotal: ele dono de sua pala-vra, o responsvel pelo quediz, o culpado por seus erros, quem recebe os louros porseus acertos.

    E, com a internet, os au-tores possuem acesso diretoe imediato a seus leitores. A

    repercusso do que escreve(quando h) surge em ques-to de minutos.

    A serem obrigados aburlar a indstria cultural,os autores conquistaram algoque jamais conseguiriam deoutro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores,o dilogo capaz de tornar aobra melhor, a rede de conta-tos que, se no to inuen-te quanto a da grande mdia,faz do leitor um colaborador,um co-autor da obra que l.No h sucesso, no h gran-

    des tiragens que substituamo prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, queno esto atrs de grandesautores populares, que noperseguem ansiosos os 10mais vendidos.

    Os autores que compemeste projeto no fazem partede nenhum movimentoliterrio organizado, noso modernistas, ps-modernistas, vanguardistasou qualquer outra denioque vise rotular e denir aorientao dum grupo. Soapenas escritores interessadosem trocar experincias e

    sosticarem suas escritas. Aqualidade deles no umaorientao de estilo, mas sima heterogeneidade.

    Enm, Samizdat porque ainternet um meio de auto-publicao, mas Samizdatporque tambm um modode contornar um processode excluso e de atingir oobjetivo fundamental da

    escrita: ser lido por algum.

    SAMIZDAT uma revista eletrnicamensal, escrita, editada e publicada pelosintegrantes da Ocina de Escritores e TeoriaLiterria. Diariamente so includos novostextos de autores consagrados e de jovensescritores amadores, entusiastas e pros-sionais. Contos, crnicas, poemas, resenhasliterrias e muito mais.

    www.revistasamizdat.com

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    8 SAMIZDAT junho de 2010

    www.ocinaeditora.com

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    9www.revistasamizdat.com

    mccns

    Ju Blasina

    oqdz...

    ...d abnnc

    Tinha tanto de si mesma

    que nada lhe cabia.

    http://www.

    ickr.com/photos/hams/1257518719/sizes/o/

    ...d f

    Quero um dia ter meu eupresente num passado bemdistante.

    ...d seg

    Precisava soltar-lhe a mo,para pegar o seguro. Masno estava muito certo.

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    10 SAMIZDAT junho de 2010

    Caio Rud

    a pr

    Cns

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    Ela bateu a portato forte quanto ja-mais imaginara quepudesse fazer. Dolado de fora, de p,

    ajeitou-se. Cabelospenteados, ar de su-perioridade. Quem a

    visse no descona-ria da cena que elarecm-protagonizara.

    Gesticulou, punhosrmes. Sinal de raiva,

    talvez arrependimen-to. No sabia o quesentia quela hora. Anica certeza era umaprofunda e pausadarespirao que po-deria ser ouvida per-feitamente no fosseo barulho da cidade

    grande em hora dorush. O que ela esta-

    va esperando? Que-

    ria que o namorado,com quem acabara dediscutir duramente,

    viesse busc-la? Cer-tamente, no.

    De fato, em seuscinco minutos fren-te da casa, ele nohavia aparecido. Ima-ginou-se adentrandoa porta atrs, como senada tivesse aconte-cido. Hesitou, entre-

    tanto. Concluiu quefazendo isso, daria obrao a torcer. Eraa demonstrao dasua fraqueza moral.Nunca fora orgulhosa,nem seria em qual-quer circunstncia,dizia ela. Mas no se

    tratava de empa.Sua honra estava emxeque. Ao dar-se con-

    ta disso, instantane-amente foi embora.No mais voltaria.

    Pouco depois, a

    porta se abriu. Cla-ramente via-se umaface preocupada nolimite entre o inte-rior da casa e o ladode fora. Olhos para o

    jardim, como se es-tivesse procura dealgum, e o rosto to-

    mado por um sorrisode canto de boca. Olimpador de piscinaapontava no passeio.Chegara para o servi-o.

    ficina

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    O lugar onde

    a boa Literatura

    fabricada

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    12 SAMIZDAT junho de 2010

    Joaquim Bispo

    o ar d temp

    Cns

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    Estamos no promont-rio extremo dos sculos!...Por que haveremos deolhar para trs, se quere-mos arrombar as misterio-sas portas do Impossvel?

    Arrastando a brevidadeda nossa existncia nalama do nosso pequenomundo, esfrangalhamo-nos de impotncia, decada vez que a tragdianos atinge. Como seriaperfeito podermos vol-tar atrs e alterar o quecorreu mal, aquela nossa

    palavra desbocada queteve consequncias funes-tas, aquela deciso quecomprometeu a nossavida, o episdio quedesencadeou uma guer-ra. Infelizmente, o tempoparece caminhar numas direco. Todas as ten-tativas de viajar nele, se que existiram, falharam.A nossa nica consolao

    a co. A, temos exer-cido a liberdade de viajarno tempo, nos dois senti-dos conhecidos, veloci-dade que o autor decidiu.E, no entanto, existemmodalidades indirectasde viajar nele, ainda pou-co exploradas:

    Alguns lsofos admi-tem que, devido ex-

    tenso innita do nossouniverso, toda a nossaHistria est, tambm, adecorrer num nmeroinimaginvel de outrosmundos, no s a versoque aqui testemunhamos,como todas as innitasvariedades que resultamde outras tantas pequenas

    variaes de rumo. Assimsendo, a nossa mesmaHistria pode ser encon-trada numa das inmerasfases j passadas ou futu-ras, como em cada versodo que podia ter sido.

    Um dos episdiossingulares de consequ-ncias, aparentemente,mais devastadoras danossa Histria recente, talcomo decorreu aqui, odo atentado bem sucedi-do contra o herdeiro doImprio austro-hngaro,o arquiduque FranciscoFernando, em 1914, na

    cidade de Sarajevo, smos de um estudante devinte anos, integrante deum grupo nacionalista deinspirao srvia. Quasetodos os historiadoresesto de acordo que esseepisdio desencadeou aPrimeira Guerra Mundial,que levou Segunda, quelevou Guerra-fria, que

    levou hiper-potncianica e a outros malescorrelatos. Candidamen-te, podemos pensar que,se pudssemos evitaresse atentado, o rumo domundo seria muito dife-rente; no teramos pas-sado por aquelas guerrasterrveis, e hoje teramospaz. A ideia aliciante.Desgraadamente, faltaaquele pormenor: con-seguir viajar no tempo.Nada que nos preocupe,agora que sabemos detec-tar aqueles mundos ondeo rumo da Histria estno ponto e na varianteque nos interessa, e sa-bemos viajar no espao,instantaneamente.

    Ao abrigo de um pro-grama secreto, foi, hdois anos, enviado umexplorador a um planetadum aglomerado globulara 160 milhes de anos-luz de distncia, onde sedetectou que o atentadode Sarajevo no resultou.Pretendia-se perceberqual foi o pormenor quealterou o rumo da His-tria e por qu, a mde tentar evitar casossemelhantes, no futuro.Como esse explorador fazo favor de ser meu ami-go, um dia contou-me o

    seguinte:A minha misso eraapenas seguir o estudanteradical Gavrilo Princip e,como sombra, observar oque fazia, j que na Terratinha sido ele a abater oarquiduque e a mulher.Nos dias anteriores aoatentado, reuniu-se v-rias vezes com os seus

    correligionrios da MoNegra, combinando posi-es ao longo do trajectodo alvo pelas ruas deSarajevo e as armas quecada um iria utilizar. Ogrupo parecia animadopor um dio violentocontra a recente anexa-o austro-hngara dasua Bsnia-Herzegovina,e falava frequentementeda congregao futurade todos os povos esla-vos, desde os srvios aoseslovacos, sob uma ban-deira comum o cha-mado pan-eslavismo. Ataqui, tudo como na Terra.O que me surpreendeufoi a realizao de umaexposio de artistas

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    futuristas na cidade, a servisitada pelo arquiduque.O grupo inltrara l umelemento, como seguran-a, o qual deveria detonaruma bomba escondidana escultura mais repre-sentativa, quando Francis-co Fernando estivesse aadmir-la.

    Na antevspera, Gavri-lo, com outro elemento,foi visitar a exposio.A ideia era distrair al-gum presente, enquantoa bomba era instalada.Por coincidncia, estavapresente um dos artistas

    o depois famoso Um-berto Boccioni. Gavrilo eo companheiro mostra-ram-se interessados nasobras expostas, e o artistagostou do seu ar radicale da sua postura revolu-cionria. Para ilustrar aatmosfera que se vivia naEuropa, mesmo dentrodos movimentos arts-

    ticos, relato alguns dosdilogos mantidos pelopequeno grupo:

    Gosto destes teusEstados de alma e doTumulto na galeria comeou Jovanovic, afas-tando o artista da zonadas esculturas. Soviolentos.

    Nenhuma obra que

    no tenha um carcteragressivo pode ser umaobra-prima teorizavaBoccioni. J no h be-leza seno na luta.

    Rapidamente, a conver-sa derivou para temas depatriotismo, anarquia einsurreio, anal, carosa ambos os grupos: artis-

    tas futuristas e radicaisdo Mo Negra.

    Tambm penso isso acompanhava Gavrilo. O mundo est submetidoa imprios que oprimem

    os povos. Ns, os futuristas,cantaremos as grandesmultides agitadas pelasublevao enlevava-seBoccioni.

    S a Srvia nos podesalvar da pata do imp-rio declarava Jovanovic. Com os nossos irmosde outras regies eslavas,

    formaremos uma grandenao que renovar o de-cadente ocidente, confor-me bem disse o grandeBakunine.

    A guerra a ni-ca higiene do mundo prosseguia Boccioni,alimentado pelo radica-lismo dos visitantes, ecitando o manifesto futu-

    rista de 1909. O patrio-tismo, o gesto destruidordos anarquistas so belasideias pelas quais vale apena morrer.

    Nessa altura confes-sou o meu amigo euj duvidava que, com talincitamento, Gavrilo dei-xasse de executar o gestoassassino pelo qual cou

    conhecido na Terra. Que pensas doarquiduque que depoisde amanh visitar a tuaexposio? perguntouele ao artista.

    Acho-o capaz deiniciar uma bela guerra,aquela que a Europa pre-cisa para varrer todo este

    bolor acumulado res-pondeu o pintor escultor. Sabes o que ouvi dizer?Que, ao longo da vida, jmatou cinco mil veadosem jornadas de caa, oferoz. Gosto desse laivofuturista dele, mas noquero conhec-lo. Quan-do c vier, no tencionoestar aqui.

    Pouco depois, despedi-ram-se. Pareceu-me que ogrupo no gostou destasltimas declaraes deBoccioni. Alm disso, abomba j fora instaladana formidvel escultu-

    ra que agora est em S.Paulo Formas nicasde Continuidade no Espa-o a mais emblemticada exposio, e que estrepresentada nas moe-das de vinte cntimos deItlia.

    No dia da visita doarquiduque, 28 de Junho,a comitiva deslocava-se

    em sete carros. O arqui-duque e a esposa iamno terceiro. O primeiromembro do grupo, Meh-medbasic, no disparoupor no ter bom ngulo.O segundo lanou umabomba que falhou o alvo,mas feriu vrias pessoasdo carro seguinte. Tomourapidamente uma plula

    de cianeto e lanou-se aorio que atravessa Sarajevo,mas a plula no fez efei-to; foi retirado do rio equase linchado. A polcialevou-o. Como c.

    Eu no estava a ver oque que iria ser dife-rente. Os restantes mem-bros, incluindo o que eu

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    vigiava, fugiram. Comona Terra, o arquiduqueirritou-se fortemente pelarecepo to hostil emais tarde foi visitar osferidos ao hospital. Comosabes, foi nesse percursoque, inesperadamente, oseu carro surgiu na ruaonde Gavrilo Principdeambulava furtivamentee este aproveitou paradisparar. Um acaso in-feliz, que lanou a Terranuma espiral de guerras.Ali, Gavrilo procedeu deforma diferente. Postou-se perto da sala de expo-

    sies, esperando, talvez,que o arquiduque manti-vesse a visita programa-da. No manteve. Acaboupor voltar para Vienasem um arranho.

    Fiquei feliz pelo re-sultado, sem contudo teruma opinio clara sobrea causa da variao. Parauma melhor percepo

    da diferena resultante,quei l mais um ms.Por essa altura, como naTerra, o imperador Fran-cisco Jos acusou a Srviade fomentar a subleva-o em algumas regiesocupadas pelo Imprio,fazendo vrias exign-cias de controlo. Comoaqui, a Srvia aceitou amaioria delas, excepto asinspeces dentro do seuterritrio, por consider-las uma violao da suasoberania. Ento, o imp-rio austro-hngaro ata-cou a Srvia, a Rssia foidefend-la, a Alemanhajuntou-se ao imprio, e,como aqui, o resto que tusabes.

    Compreendi que oatentado na Terra foibem sucedido devidoapenas a uma circuns-tncia meramente casual,e no foi to decisivoassim. A atmosfera deconfrontao que se viviano continente, que at osmovimentos artsticos re-ectiam, era determinadapor uma atitude belicosadas potncias envolvidas,cuja arrogncia as inca-pacitava de dialogar comas minorias subjugadas.Aprendi que foram e soessas potncias as gran-

    des responsveis pelasguerras. Qualquer pretex-to lhes serve para prosse-guir polticas de domnioglobal.

    Para o ano, tenho aincumbncia de averi-guar que pretextos foramusados para comear aguerra contra o Iraque,em trs pontos diferentes

    do Universo.

    Nova Yorkpara Mos-de-VAca

    GUIA

    Henry Alfred Bugalho

    O Guia do Viajante Inteligente

    www.maosdevaca.com

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    A morte do Temerrio

    Ana Cristina Rodrigues

    Cns

    http://upload.w

    ikimedia.org/wikipedia/commons/3/3b/C

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    Corria tranqilo o ano doSenhor de 1488. Na residnciado arquiduque Maximilianode ustria em Bruges, os aresda primavera comeavam aespantar o frio dos grandes sa-les. As lareiras ainda perma-

    neciam acesas, mas a sensaode enregelamento j passara.Olivier de La Marche seguiaem silncio pelos amploscorredores, com o cuidadode quem j vivera por anos amais do que o esperado.

    Ao ouvir passos leves eapressados atrs de si, paroue virou-se. Mesmo com suaidade avanada, o treinamento

    de soldado que recebera emsua juventude no havia per-dido efeito. Reconhecera comacerto o andar do seu jovemprncipe, lho e herdeiro doarquiduque. Ele no tinha omau costume de correr dessaforma to pouco adequada,muito menos atrs de seu pre-ceptor e mestre de cerimniasde seu pai.

    - Meu senhor e prncipe.

    Pergunto-me o que poderter acontecido, para provocartanta pressa?

    Ele parou, ofegante, olhan-do para La Marche. Quandonalmente recuperou o flego,fez o velho nobre francs carsem respirar.

    - Mestre, como morreumeu av?

    Antes de responder, o velho

    servidor xou o olhar nostraos delicados de seu pu-pilo. Tinha muito da belezada falecida me, suavizando aherana facial to marcantedos Habsburgos. A boca eraligeiramente entreaberta, oqueixo tambm era tpico dafamlia paterna, mas no tinhaa aparncia de grgula do paie do av, o imperador Frede-

    rico.- Meu prncipe, no con-

    sigo entender a sua pergunta.Pois sabe muito bem que seuav materno, Carlos da Bor-gonha, que Deus guarde suaalma, morreu ao tentar recu-

    perar a cidade de Nancy quecaira nas mos de seus inimi-gos, os lorenos.

    Ele balanou vigorosamentea cabea.

    - Sei disso, mestre. Osenhor mesmo j me contou.Mas Lus de Clves falou-me da histria que corre nacorte do rei de Frana. Entreos franceses, diz-se que meu

    av morreu ao tentar fugir docampo de batalha, depois deter sido abandonado por seussoldados. Ficou estendido nocho como se fosse um qual-quer, o rosto devorado peloslobos. E que o senhor, juntocom outros de nossa Casa,s o reconheceram por umacicatriz no anco.

    A clera acendeu-se no co-rao plcido do velho servi-dor borgonhs.

    - Que o Inferno carregueo degenerado e traidor quelana essas infmias ao ven-to. Pois, por minha honra, onico ser sujo o sucientepara espalhar tais mentiras Phelipe, que antes era deCommynes. Foi conselheirodo duque, seu mais leal servi-dor e abandonou a causa do

    nosso prncipe durante a noite,comprado que foi pelo infer-nal rei, pai do que est agorano trono. Traidores e perjuros,os dois, rei e servo. E agora,buscando as graas dos frvo-los e sem honra, Commynesmancha a memria daqueleque foi o seu legtimo senhor!

    Acenando com a cabea,o jovem indicou o acerto

    de suas palavras. La Marchepensou. Havia verdade no quehaviam contado ao seu jovempupilo. Todas as noites, aindatinha pesadelos com a batalhade Nancy, o cativeiro depoisda derrota e a humilhao de

    ser levado a reconhecer umcorpo gelado e endurecido.Mas em momento algum Car-los havia sido abandonado porseus soldados, que lutaram porele e por sua casa at o m.Felipe sorriu.

    - Eu sabia que era mentira.E que o senhor iria me contartoda a verdade, para que eupossa ensin-la aos demais.

    O que ele poderia fazer?Desmanchar as iluses domenino, que tinha no avmaterno, que no conhecera,um dolo, em grande partepor inuncia do prprio LaMarche?

    - Venha comigo, meu prn-cipe.

    Caminharam em silncioat a biblioteca. Ali eramguardados os ainda ricosremanescentes da fabulosa co-leo de livros dos duques daBorgonha, que antes cava emDijon. Nos ureos tempos doduque Felipe, bisav do meni-no, quando La Marche aindaera jovem, dezenas de escri-bas copiavam manuscritos,que depois eram levados paraas mais famosas ocinas deiluminadores amengos, nas

    quais eram adornados comcores vivas e ligranas dou-radas. As obras que compu-nham a biblioteca reetiam ovasto conhecimento humano:os grandes autores clssicos,tanto em sua lngua original,quanto em tradues rica-mente comentadas, os poetas,os trovadores, os cronistas...um cdice com os versos do

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    duque de Orlans, escritopelo mesmo. O nobre poetaera lembrado com carinhopor La Marche, em memriados tempos em que o entojovem escudeiro passara horasagradveis conversando sobre

    a arte da escrita. Mesmoalguns volumes impressos nasprensas dos pases do Norte jocupavam lugar de destaquena biblioteca ducal.

    Na sala pouco iluminada,La Marche vagueou entreos livros. Muitos eram deescritores seus conhecidos,autores que estiveram um diaa servio da mais brilhante

    casa nobre de toda a cristan-dade. Seus olhos pousaram natraduo dos Feitos de Ale-xandre o Grande, do romanoQuintus Curtius. Vasco deLucena, o letrado portugusque traduzira e comentara aobra, em homenagem a Car-los, ento herdeiro do ducado,havia sido um grande amigodo mestre de cerimnias.

    - Mas tambm o tempolevou-te, Vasco. E s restei eu... sussurrou, a voz embargada.

    - Falou alguma coisa, mes-tre?

    Acenou negativamente.Sentou-se perto da lareira eindicou uma cadeira ao jovemprncipe. Antes de comear,levantou os olhos para as pin-turas penduradas. Deteve-se

    no retrato de Carlos, pinta-do antes de assumir o ttuloducal. Era to jovem, deixaraa vida to cedo e de formato injusta. Prometera jamaismentir ao seu pupilo, e o sen-so de lealdade memria deseu senhor falava alto. Respi-rou fundo e comeou.

    - Saiba, meu jovem senhor,que das armas da guerra, a

    mais desonrosa a calnia. Edentre as injrias infundadas,o pior tipo o que ofendeos que j faleceram. Mas averdade deve sempre apa-recer, e irei cont-la a voc.Naquele dia frio e desolado

    em Nancy, no inverno de1477, fui levado perante umcadver. Na minha frente, umcorpo devorado por lobos, orosto em farrapos, congelado,com cicatrizes recentes e umamais antiga no abdomen. Eudisse aos franceses que aqueleera o meu senhor e prncipe,o duque Carlos, o Ousado, aquem os franceses chamam

    at os nossos dias de Temer-rio. No entanto, o corpo quereconheci no era o do seuav, pai de minha senhora eprincesa, a falecida Maria, queDeus a guarde. Pois Carlos es-tava a muitos dias de viagemde Nancy, em peregrinao,na busca por um tesouro queo transformaria de direito nomaior dos prncipes, o que elej era de fato.

    Os olhos do jovem arrega-laram-se de espanto.

    - Difcil de acreditar, no,meu jovem? Mas foi o queaconteceu. Meses antes dabatalha de Nancy, o duquereuniu o seu conselho. Esta-vam presentes, alm de minhapessoa, o chanceler da Bor-gonha Nicolas Rolin, o sbioportugus Vasco de Lucena, a

    duquesa Margarida e a jovemlha de meu senhor, mada-me Maria, sua falecida me.Reunidos em um amplo salo,muito semelhante ao do cas-telo d senhor arquiduque, seupai, ouvimos meu duque noscontar que havia achado entreos livros da grande bibliotecauma obra rara, que tratavadas propriedades de todos

    animais. Como o grandecaador que era, interessou-sepelo livro e comeou a ler.Nas pginas ricamente ilumi-nadas, meu prncipe achou asoluo para o problema queh muito o aigia. De todos

    os nobres cristos, de todasas qualidades, ele era o maispoderoso, com cinco ttulosducais e inmeras senhorias,mas ainda faltava a maior dashonrarias, o ttulo real. E a so-luo seria encontrar a fnix,ave miraculosa, e apresent-laao Santo Padre em Roma, queno poderia negar mais o seupedido.

    No precisou sequer olharpara seu pupilo para saberque ele no tinha entendido.

    - A fnix rarssima, tendosido avistada poucas vezes.Quando esta ave fantstica, depenas de ouro e cobre, olhosde rubi. sente a hora da mortechegar, constri um ninho ese expe ao sol. Em poucashoras, ela queima totalmente,no sobrando nada alm decinzas. E dessas cinzas, surgeum nico ovo, de onde sai ou-tra de sua espcie. Ela sm-bolo de Cristo, pois o nicoanimal capaz do milagre daressurreio. E Cristo o Reidos reis, portanto ter umapena dessa ave levar consi-go um estandarte do prpriolho de Deus. Assim, seu avseria nalmente considerado

    digno da coroa real.- E onde ela vive, mestre?- Uma das pginas do livro

    continha as indicaes paraencontrar o pssaro. Nasterras distantes do Egito, pertodo mtico reino do PresteJoo, h um jardim que guar-da dois exemplares de tudoo que Deus j criou. Desdeo simples rato at os mais

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    exticos animais das ndias.Dos tigres ferozes ao mansocordeiro. Pois l tambm exis-tiria a nica fnix de todo omundo.

    - Mas l no haveria doisexemplares de cada criao

    divina?- Sim, meu jovem. Mas a

    fnix especial, pois s podehaver uma. Seu av estavadecidido. Partiria em buscadessa ave, para nalmentepoder ser chamado de rei. Hmuito reivindicava tal direito,mas apesar de todas as suasterras, ttulos e honrarias,seus pedidos foram negados

    pelo Papa e pelo Imperador,temerosos do seu poder. Coma mais rara das criaturas deDeus em mos, no haveriacomo continuarem a negaro seu real valor. Nenhum dens concordou com o plano.Era arriscado demais, homemalgum havia ido ao Jardim dasDelcias e retornado. O duqueestava irredutvel, no aceitounosso conselho contrrio, e

    tampouco outra companhia,alm de um jovem escudeiro.Beijou a sua lha na testa,enxugando as lgrimas quecorriam pelo rosto da prince-sa, e recomendou que seguisseo seu corao. Recomendou-nos cautela e disse que vol-taria em breve, para retomartudo o que lhe pertencia. Aocair daquela noite, partiu.

    Disfarado como merca-dor, em poucos dias chegouao porto de Marselha. Com ovento a seu favor, meu senhore duque pouco demorou nomar Mediterrneo. Apesardos inmeros perigos daviagem no mar infestado depiratas, nada aconteceu. Umbom sinal, sua viagem estavaprotegida pelos anjos. Ento,

    ele desembarcou nas costasdo misterioso Egito. As noi-tes estreladas sobre o desertoo acolheram enquanto eleatravessava resoluto o imensomar de areia. Segundo o livroque lera, o lugar maravilhoso

    habitado pela fnix era ondeo grande rio, o Pai do Egito,surgia, nas proximidades doden. Semanas e mais sema-nas se passaram, enquantoseguiam inclumes por estra-nhas construes na areia, epor bandos de inis.

    - Como eram essas cons-trues?

    - Existiam vrias. Uma

    representava um animal ma-ravilhoso, corpo de leo, asasde guia e rosto humano. Erauma esnge, que guardavaa passagem de um tesouro.Aquele que o quisesse, deveriaresponder certo a um enig-ma. Os sculos passaram-see nenhum homem acertou,e o castigo era ser devoradopelo monstro. Pois bem, umjovem prncipe, muito sbio,dizem que um antepassado desenhor arquiduque, respon-deu corretamente. No mesmoinstante, a esnge tornou-sepedra.

    - Ainda existem esngesguardando tesouros?

    - Quem sabe, jovem amo?No conheo as terras dooutro lado do Mare Nostrum.O mais longe que fui na vida

    foi Londres...no passei da IlhaBret e dos portos franceses.Deixe-me continuar, lembran-do que o que estou contandofoi relatado a mim pelo jovemescudeiro que acompanhavao duque. Acabou a comida,e a gua escasseava... mesmoos estranhos animais que oshomens do deserto montam,chamados camelos, j esta-

    vam exaustos.H muito que as cidades e

    as estranhas construes ca-ram para trs. Conforme iamseguindo o grande rio, o mun-do ia se modicando. Maisplantas surgiam aqui e ali, o

    vento soprava mais fresco. Esbito encontraram, surgindopor trs de uma coluna deareia, um jardim maravilhoso.As rvores brilhavam ao solcom folhas verdes de esmeral-das e frutos vermelhos feitosde rubis. Havia duas de cadaespcie de planta criada porDeus.

    Debaixo das copas frondo-

    sas das rvores, mesas co-bertas com os mais diversostipos de iguarias exticas edeliciosas pareciam aguar-dar o incio de um grandebanquete ou festival. Ricosadornos de pedras preciosasenfeitavam cada um dos ser-vios. As criaturas fantsticasdas lendas serviam-se, entresorrisos e cumprimentos.

    - Quais?- Fadas, gnomos , duen-

    des... E muitas outras, queno conhecemos. Por entreas rvores, todos os tipos deanimais podiam ser vistos.Sempre em dupla, no maisdo que dois de cada espcie,indo daqueles que vemos emnossos ptios at aqueles cujadescrio conhecemos apenaspor meio dos livros dos anti-

    gos sbios. Em uma clareira,dois unicrnios descansavamao sol, enquanto um casal deseus parentes alados, da fam-lia do famoso Pegasus, alavavo. Um par de grifos alisa-va as penas das asas com osbicos aduncos. Nos caminhosque cortavam o lugar, ser-pentes com torsos humanoslimpavam o cho cantando

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    uma estranha melodia. Duasesnges, animais maravilho-sos, lees com faces humanase asas de guia, foram emdireo do meu senhor.

    - Eram parentes da quefora transformada em pedra?

    La Marche havia esquecidoque havia descrito a constru-o egpcia.

    - Bem lembrado, meu carojovem. No sei, mas prov-vel que sim, j que estes seresnunca foram comuns. A maisvelha, de cabelos grisalhose expresso absolutamenteserena, se dirigiu ao duque.

    Quem voc e o que

    quer de ns? Porque invade oPortal da Criao?Sou Carlos, duque de Bor-

    gonha, de Luxemburgo e doBrabante, conde de Flandres,senhor de muitas terras, des-cendente de reis e prncipesdas mais nobres casas. Vimem busca da ave fnix, parapoder me tornar rei!

    Quando o ltimo eco dapalavra rei sumiu no ar, uma

    sombra obscureceu o sol poralguns instantes, e na frentedo meu senhor, surgiram asduas criaturas mais assus-tadoras que ele jamais vira.Tambm possuam corposcomo os do leo, mas seusrostos eram como o dedemnios, com olhos rasga-dos, negros como a noite ebocarras com duas leiras de

    dentes, aados como lanas,rabos iguais aos do escorpio.Voavam graas a duas asashorrendas, como as de ummorcego. Meu senhor lem-brou-se das gravuras do livro,e concluiu que eram mant-coras, bestas das mais peri-gosas e das mais detestveisque Deus colocou no mundo.No deixaram que as esnges

    respondessem.Pouco nos importa teu

    nome e tuas senhorias, huma-no. Somos todos aqui lhosdiletos de Deus. No comovocs, traidores! Repare queem nosso Jardim h um par

    de toda a criao, menos devocs, lhos de Ado! Noso bem-vindos aqui!

    Arreganharam os dentese avanaram em direo aomeu senhor, que no recuouum passo. Ficou olhandosereno enquanto aquelas hor-rendas criaturas de pesadeloaproximavam-se. Podia sentiro hlito quente e pestilento

    em sua face, e no retroce-deu. A mantcora que antesfalara comeou a rir. Paroude mover-se e encarou oduque.

    corajoso para um hu-mano, prncipe da Borgonha.Pode ir procurar a fnix.Porm, depois no reclame seconseguir.

    E assim aqueles dois seresde infmia abriram caminhopara meu senhor. Com asegurana daqueles que pos-suem a verdadeira nobreza,ele avanou. Nesse momento,separou-se do escudeiro, queiria assistir a grande aven-tura de seu amo ao longe.Pois Carlos respeitava seusservidores e no iria arrisc-lo. Daquele local em diante,sua trilha no poderia ser a

    de outro homem, mesmo umservo leal. O que contareia seguir foi visto por essejovem a grande distncia, pormeio de um espelho trazidopor uma das mantcoras. Abesta aconselhou-o a observarcom ateno para que pudes-se narrar tudo exatamentecomo havia ocorrido.

    Depois de separar-se

    do escudeiro, um pequenocaminho abriu-se na frentedo meu prncipe. Estreito ecercado, no seu incio, por ar-bustos espinhosos que rasga-ram a sua carne. No entanto,mesmo a dor aguda no o

    fez esmorecer. Ao contrrio,fortaleceu seu esprito e eleprosseguiu. Sua roupa virouum farrapo indigno de cobrirto majestoso homem. Quan-do pouco restava do panoque o vestia, a trilha alargou-se.

    Essa senda larga atraves-sava um pntano no qualvapores pestilentos subiam

    do cho. Qualquer homemdeixar-se-ia vencer pelanusea e caria prostrado nocaminho. Mas meu senhorno se abateu. O pouco quesobrara de sua rica tnica deseda ele colocou sobre a bocae o nariz, impedindo que seucorpo fosse invadido pelosmiasmas da podrido queo cercava. Porm, isso noevitou que insetos sassemdaquela lama ptrida e co-brissem o seu corpo, causan-do coceiras terrveis. Mesmoassim o duque continuava seucaminho.

    Conforme andava, o pnta-no tornava-se menos inspito,at que por m todo o chocou novamente rme e seco.O duque Carlos, nu, o corporasgado em inmeros peque-

    nos cortes, estava defronte auma imensa montanha. Suapele latejava e ardia devido smordidas de insetos. Os olhosainda estavam enevoados dosvapores pantanosos. Com arde desnimo, avaliou o seuprximo desao. Era como sea imensa pedra gargalhassede sua impotncia e fragili-dade. As laterais eram escar-

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    padas, ngremes e no haviaoutro caminho. Ele pensavaem voltar quando ouviu ogrito de uma ave de rapina.Ergueu os olhos e seu coraoencheu-se de alegria. O somrouco fora emitido pela mais

    mtica das aves, aquela quebuscava: a fnix, que fazia seuninho em uma reentrnciana rocha, no ponto mais alto.Suas penas brilhavam ao sol,como o maior dos tesouros.

    No hesitou mais uminstante sequer e colocou-sea caminho. Os muitos anosde guerra e de sofrimentosfortaleceram meu senhor, que

    comeou a subir a montanha,vagarosamente. As pontasdas pedras rasgavam suapele, suas mos sangravamem rios, porm isso no odeteve. Fixou seu olhar e seupensamento no ninho. Nestemomento, o duque provouque valia por mil reis. Jamaisnenhum senhor havia tentadotal proeza, nem mesmo osmais lendrios soberanos. A

    dor no existia para o prnci-pe da Borgonha. Somente suavontade contava, e ela o levouao seu destino.

    Ao chegar ao topo, meusenhor sorriu para si mes-mo. Finalmente. Depois detantas guerras travadas, detantas batalhas perdidas, seusonho, que tambm fora odo seu pai, iria realizar-se. A

    ave apenas olhava, curiosa.No se moveu, nem mesmoquando ele aproximou-se.Carlos pegou uma das penas,agradecendo ao majestoso ser,que reluzia com suas longasplumas douradas.

    Ele preparava-se para des-cer, quando ouviu novamenteo mesmo grito rouco. Lembre-se, jovem, que a fnix s faz

    o ninho quando est prontapara morrer e dar origem outra. Carlos sentiu um calorcrescente no instante em quea ave comeou a consumir-se. Em suas mos, a penatambm estava em chamas.

    Tentou jog-la longe, mas foiintil. O vento fez com queo fogo se alastrasse por todoo cume, incendiando o ninho,a sua ocupante... e Carlos,duque da Borgonha.

    Assim morreu meu jovemsenhor, queimado com a fnix.Porm, esta ave eterna, e aoressurgir, trouxe consigo tam-bm o esprito de meu senhor,

    que no virou rei. Tornou-seimortal. Os nobres lso-fos armam que os defeitoshumanos so expurgados daalma pelo fogo. Consumidonas chamas da mais nobredas aves, qualquer mcula dacarne foi limpa de meu amo. este o peregrino de sanguenobre do qual descende, meujovem amo. Ningum emcorte alguma, muito menos nacorte de Frana, pode difam-lo. Transcendeu a misria dacorrupo humana e agoravive em eterno deleite noJardim das Delcias, juntocom outras criaturas amadaspor Deus. Mas peo que noconte isso a ningum. Noqueremos que o maldito reida Frana v tentar destruirto belo jardim por inveja do

    duque.Felipe sorriu para seu tutor,e fez a promessa, satisfeito.Agradeceu e saiu correndo,para retomar a atividade queinterrompera. O velho Olivierde La Marche, descendente deum pequeno nobre, criado nacasa mais poderosa da Franae que a servio de seus senho-res, os duques da Borgonha,

    percorrera parte da Europa,sentiu lgrimas arderem emseus olhos. Onze longos anoshaviam passado desde o cercoa Nancy e sua captura. Mariamorrera poucos anos depois,deixando dois lhos ao cuida-

    do de um marido semi-des-trudo por uma combinaode luto e vingana. Ao velhoservidor, ele mesmo um vivo,sobrara a educao de umjovem que jamais herdaria asterras borgonhesas.

    Novamente La Marchepercorreu com o olhar orecinto, que recendia a sabere a tempos melhores. Perce-

    beu um volume aberto emcima da mesa do escriba. Erao nal de um dos trechosde suas prprias Memrias,que estivera ditando. Iro-nia do Destino, ou aviso daProvidncia, era justamente aparte em que Carlos tinha seucorpo reconhecido de for-ma to vil. O velho servial,homem de inmeras batalhas,que debatera inmeras vezescom inimigos ferrenhos desua casa, com mos trmulasprocurou a sua pena preferi-da, de um metal avermelhadoque parecia faiscar com a luzdas muitas velas acesas nabiblioteca. Escreveu uma frase,logo abaixo da cena em quedescrevia o corpo encontra-do pelos franceses em Nancye retirou-se da biblioteca

    enquanto a tinta ainda estavafresca no dito anexado ao seutrabalho.

    Assim reconheci naquelecorpo o meu senhor Carlos,grande duque do Ocidente.Mas onde quer que esteja suaalma, que Deus seja piedoso.

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    A flha de Crisstomo

    Maria de Ftima Santos

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    TeresinhaAssim chamou Criss-

    tomo Incio encostado nobalastre da sacada comose fosse em amurada deum barco.

    O pai a querer saberdela, a querer que nose afastasse, chamava-asempre no diminutivo e,no entanto, se ela estava,quando na hora da ceiase encontravam mesa,ou fosse qual fosse outraa circunstncia, que nopor saber por onde an-

    dava, mesmo daquela vezem que Maria Teresa teveas febres dias, e forammesmo meses, ardendointermitente era o paierguido no seu metro esetenta e oito, magro, osdedos polegares enadosnos bolsos do colete, atrat-la como era o cos-tume dele: a Maria Teresa

    sabe a menina Teresacompreenda que

    E em trmino de con-versa, tantas vezes: MariaTeresa, eu disse uma veze basta.

    E no havia apelo,como ser quando MariaTeresa implorar: Paizinho,eu no posso prometer

    que nem mais uma letra,e no me mande para oconvento.

    E Crisstomo Incio,implacvel: Maria Teresa,eu disse uma vez e faz-se.

    Nunca tratava a lhapelo diminutivo.

    E isso seria por Criss-

    tomo ser pai vivo, queDona Maria Isabel Ben-quista, sua amada esposa,se nara mal parida, quenem uma aguadilha Ma-ria Teresa sugou de seu

    peito, Dona Maria Isabelcom as miudezas infecta-das e a menina baptizadano mesmo dia em que aterra recebeu os restos desua me: Crisstomo In-cio a rentabilizar a vindado padre at aldeia.

    Tratava-a por MariaTeresa, ou Teresa, abre-viando, a no ser que achamasse, e era o casonesse m de manh:Teresinha, tido ele dito, ea lha respondeu, sara-coteando uma saia comfolhos:

    Estou indo, meu pai.Maria Teresa longe, sal-

    titando ao longo do ria-cho, a responder de modoque nem a ouviriam,mesmo que tivessem essafaculdade, as pedras quepisava, quanto mais o pail longe, no tanto que,repetindo o chamado, elano o ouvisse, duas tasa danarem nas abas lar-gas do chapu de palha,e ela respondendo, agora

    um tudo nada mais alto: Estou indo...E ele sequioso que a

    lha viesse, clamava, re-petindo:

    TeresinhaA Crisstomo ca-

    ra aquele medo de queMaria Teresa se fosse, que

    lhe tornasse aquela ideia.Que nem fora h muito,parecia-lhe a ele, Criss-tomo Incio, e no entantoj Maria Teresa zera aescola com a mestra, j

    estava na hora de decidirse a fazia casadoira oua internava no colgio,as freiras a tratarem desaber-lhe f sucientepara que professasse.

    Mas o medo de Criss-tomo Incio nem era quea lha repetisse o acto.O medo ainda maior, eraque Maria Teresa um diase desse em levar a publi-co aquela papelada, queescrevesse outras. Que elenem contara, em segredode consso, quando opadre veio em visita dePscoa. Vergonha que eletivera de dizer que a lhatinha escritos, histrias,pensamentos, coisas que

    diria do demo, se bemque ela invocasse a Deusmesmo os pargrafosonde parecia discorrerdos sentires do corpo.

    Uma coisa de loucos,pensava Crisstomo, a vi-ver no pecado daquele se-gredo, e a pedir que Deuslhe perdoasse se fosse

    caso de estar a levantarfalso testemunho: queseria coisa do mafarricoaquilo que pressentia nosescritos da lha. Que nacabea de Maria Teresaborbulhariam ideias desa-vindas.

    Crisstomo Incio cha-mando:

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    Teresinha***Naquele Setembro,

    Maria Teresa sentara-sea olhar a gua do regatodebaixo do ulmeiro. Elacom os joelhos a tocarema boca e os dedos encla-vinhados uns nos outrosem redor das pernitasmagras, magicando.

    Maria Teresa semperceber que estava de-cidindo, num silncio desegredo, o que seria a suavida. Um arroubo, um

    desejo imenso que lhecresceu de sair dali ondeera a casa e, logo a seguirao caminho, o povoado, eela desejando mundo.

    Era ainda quandoandariam as meninas dasua idade a inventar brin-quedos, mas, isso, MariaTeresa nem sabia.

    Encontraria o jeito deludibriar os que haviapor perto: seu pai e Ger-trudes, a rapariga quefazia a lida e lhe ouvia oscontos: Gertrudes desper-cebida, que o tanto queseria atenta o era medro-sa do que ouvia, folhas emais folhas cheiinhas derabiscos, que a meninalhe lia rogando: que omeu pai nunca descone.

    Mas foi Gertrudesquem disse a Crisstomo:a menina inventa coisas,e a mostrar ao pai o es-conderijo dos papis.

    Mas isso foi s depoisde Maria Teresa ter su-

    mido, a subir o relevo dopequeno morro que abri-gava as casas dos ventosde norte.

    Um dia inteiro cami-nhando, e nem o som,

    que se ia esfumando asvozes a chamarem-na enem a fome a demoverMaria Teresa de buscarabrigo onde casse, ondezesse descanso paradepois ir um tanto maislonge: assim como se mecomandassem vozes, dirMaria Teresa quandocontar de como foi gal-gando o monte, um dia edepois o outro.

    Comearam por busc-la pelo ribeiro, que omorro no era local desuas brincadeiras: noera costume. Andaramnisso os homens, a cal-correarem as margens dec e de l do o de gua.

    Poucos, que a aldeia eramais um stio: seis casas,a de Crisstomo Incioum nadinha distante doaglomerado porque fossea mais rica, porque fossede herana.

    Nada de algum tervisto a menina, diziamuns e outros ao m do

    primeiro dia, e repetiu-seat ao terceiro depois dasAve Marias.

    Ao cair da noite, eramos homens com archotes,as luzes a formarem lavasculhando, e depois adispersarem-se na subidado pequeno serro, quesemelhava ngreme. Fora

    o pai quem dissera: Tentaremos tambm

    daquele lado.Vivalma.Que na noite de lua

    em minguante, mal seenxergava alm do re-dondo de luz que enviavao archote, ainda maisbruxuleando, que sopravavento de norte.

    A cada compasso deespera que faziam, comose fora m de busca,os homens ruminavamazedos a quem no sabecriar lha sem me quea eduque: que precisopulso forte e Crisstomo manso, ruminavam notemor de lhe ir dizendo.

    E no entretanto deesper-los, eram as mu-lheres a armarem o queat ali tinham calado, oque nem tinham dito a

    no ser na alcova, e agoraconversavam de uma aoutra: que aquela meninasofria de um mal, que alouca da casa a atacara.

    As vizinhas a desabafa-rem o que traziam escon-dido: que seria de lhe tercuidado, que a meninaera dada a artes, que ela

    imaginava coisas. Quesim, sabe diziamcomo se enregeladas deum medo de outro mun-do, como se, propalando,exorcizassem o pavor deque viesse ter com elas omal de que sofria a lhade Crisstomo Incio, ummal que raramente dava

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    e atingira Maria Tere-sa, como j sofrera dele,contavam de uma a cadaoutra, a falar ainda maisbaixo: a sua av mater-na, Dona Aninhas, que

    Deus guarde no seu seio,tambm escrevia folhase mais folhas de inventa-dos.

    E, como se contandode um pecado grave, deum mal que pega, per-signavam-se a dizerem:a menina do Crisstomoescreve, ela enche folhas.

    Coisas do demo, rema-tavam, de novo a persig-narem-se.

    No entretanto em quea iam procurando, MariaTeresa nem rezava e nemadormecia, que a noitelhe trouxera o arrepio domedo a afugentar paraum rmamento, que nemas estrelas alumiavam, af dela em Deus, e o de-sejo de mundo. Uns anosmuito verdes enroscadossobre si, o vento a pa-recer falar-lhe, ora toni-truante, ora a soprar-lhesegredos, de um modo eoutro, assustador. MariaTeresa dormitou maisde cansao que de sono,

    tapada pela brisa quente,que era ainda sobras doar de Vero aconchegan-do Setembro.

    E ao dia seguinte,marchou-se adiante, quehouve uma segunda noiteantes que a encontrassem:Maria Teresa no cimo domorro e eles a rodearem-

    na.E ao olharem-lhe os

    olhos, veio-lhes menteo que cada um ouvira desua mulher ou, em dia deocasio, teria sido a me-

    nina Dores que fazia osservios a solteiros e vi-vos: podes crer, homem, amenina sofre, como hei-de dizer, do mal da loucada casa, uma enfermidadegrave.

    E foi de terem sabidopelas mulheres que, adescerem a encosta e a

    trazerem numa mula alha de Crisstomo, oshomens se iam benzen-do: em nome do Pai e doEsprito Santo, a ver selhes fugia aquele calafriode terem olhado os olhostransparentes de MariaTeresa como que a mos-trarem mundos nuncadeles sequer apercebidos.

    E depois que desceram,diziam as mulheres, queassim tinham ouvido dosmaridos: nem um choro,nem um pedir de perdo.

    E faziam cruzes pelatesta e pelo rosto, e do-bravam-nas sobre o peito,como se assim fazendo,fossem sendo perdoadas

    de pecados que estives-sem cometendo.

    Foi nesse nterim debuscarem-lhe a lha, queCrisstomo soube queMaria Teresa era possu-da do poder de inventarpela palavra, o poderde dizer o que nem lhe

    estava em roda, o queningum vira e s elapensava.

    Ficou Crisstomo cien-te que a louca da casatomara em seus braos a

    lha.Doena incurvel.

    *** Chamou, Senhor meu

    pai?E dizendo assim, Ma-

    ria Teresa fez meno deuma vnia, a baloiar oscaracis que soltara dochapu de palha.

    E Crisstomo Incio, asentir o corao a dizer-lhe de outro modo, fala-va-lhe:

    Amanh partes parao convento e no tornas.

    Foi o incio de umaestrada ngreme, a loucada casa imbuindo MariaTeresa, a ser-lhe alento ecompanhia para o restodos seus dias.

    E nas noites sem lua,ainda o povo da aldeiaouviria Crisstomo In-cio:

    Teresinha

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    A Vingana de Bento Julio

    Henry Alfred Bugalho

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    , moo, at onde eusaiba, esta briga vem demuito tempo. O que falam que tudo comeou porcausa dum bocado de terra,ali perto do ribeiro: algumpelintra vendeu o terreno

    pro av do cabo Pires epro av do Bento Julio aomesmo tempo.

    Os dois eram fazendeirose, mesmo que a terra fosseruim s dava pra pasto, nenhum deles iria abrirmo.

    O antepassado do Ben-to ergueu uma cerca praindicar a diviso, mas ooutro foi l e derrubou. Da,ele foi e ergueu outra cerca,que tambm foi derrubada.Ergueu uma terceira e, destavez, deixou uns capangas detocaia.

    Quando os lhos e em-pregados do av do caboPires foram pr a cercaabaixo de novo, os capan-gas do Julio abriram fogoe encheram a rapaziada dechumbo. Foi uma correria,um choror, mulher ber-rando por causa do maridomorto, criana gritandoporque o papai tava noCu, uma comoo nacidade.

    A guerra se instaurou. Oav do Pires chamou unsprimos, que haviam lutadono Paraguai contra SolanoLpez, e foi uma carni-cina. Todas as noites, uminvadia o terreno do outro,tocava fogo nas casas, de-golava os bois, e trocavamtiros at o sol nascer.

    A populao da cidadeestava aterrorizada, tantoque o governador enviou

    um destacamento de sol-dados pra apaziguar osnimos. E mesmo que nohouvesse novos ataques, asduas famlias continuaramse odiando por todos estesanos.

    Se um Julio se encon-trasse com um Pires na rua,eles mudavam de rumo; seum entrasse numa casa, ooutro saa; se um se casassecom uma guria, nenhumhomem da famlia rivalpodia se casar com achega-dos dela. E toda a cidade sedividia: havia os partidriosdos Julio, e os dos Pires;

    ningum se manifestavapublicamente, mas cada umtinha sua predileo.

    O cabo Pires e BentoJulio eram pessoas com-pletamente diferentes.

    Todo mundo gostava docabo Pires crianas, ve-lhos, coroinhas e principal-

    mente as meninas. Era umrapaz bom, daqueles que ssabe fazer o bem e falar averdade.

    J Bento Julio era o cofeito gente. Dava petele-cos na piazada, roubava asvendas, deorava cabras ehavia rumores de que eletinha um pacto co diabo.Era tanta maldade numa s

    criatura que as pessoas atsussurravam quando men-cionavam o nome dele.

    E no que o lho-da-me do Bento Julio seengraou com a caboclinhado cabo Pires?

    Era o papo nos botecos enas vendas, cada um cochi-chando sobre isto, mortos

    de pena do bondoso caboPires:

    uma pouca vergo-nha, um homem to bomcarregando este par degalhadas!

    Mas o cabo Pires, ing-nuo, nunca desconava denada. Tinham d dele, masonde estava a coragem prafalar?

    Um dia, seu Z do bazarse cansou:

    , cabo Pires, se eufosse oc, corria pra casaagorinha mesmo.

    Por que, seu Z?

    Quem avisa, amigo, cabo Pires, e eu levavatambm a garrucha.

    Isto bastou pro moo,que, coa espingarda namo, chegou em casa numpiscar de olhos. PegouBento Julio e a caboclinhacom as calas nas mos, oumelhor, com as calas no

    cho.Cabo Pires deu tiro pra

    todo lado, matou a cabocli-nha e acertou os fundilhosdo Bento Julio, que fugiu,sangrando e berrando, pelajanela.

    O cabo se tornou herina cidade, alm de bommoo, ele tambm honravao que tinha no meio das

    pernas. Ele se amasiou comuma polaquinha formosa eteve dois pimpolhos.

    Foi ento que o convo-caram pro Contestado e,por um par de meses, elelutou contra os revoltosos.Quando voltou pra casa, osamigos o avisaram:

    Cuidado que o Ben-

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    to Julio voltou querendovingana.

    O coitado do cabo Piresquase borrou as cuecas,morria de medo que estedia chegasse. Ele no con-

    seguia mais dormir, prano ser pego desprevenido;sempre mudava de rota, prano ser emboscado; e nose separava mais do baca-marte.

    Especulava-se o que Ben-to Julio tinha feito nestetempo em que cou desa-parecido. Dizia-se que eletinha vagado pelos CamposGerais, pilhando, matandoe estuprando, mas tambmhavia histrias de que eletinha virado tropeiro, oumatador por contrato e quecarregava quinze mortesnas costas. A nica certe-za era que, na luta de faca,ningum melhor que elehavia, e Bento andava alar-deando aos quatro ventosque ia arrancar com seu

    punhal o corao do caboPires.

    Numa manh, a pola-quinha foi chorando contarpro cabo Pires que tinhavisto o malvado rondandoa casa. Ele tomou, ento,uma resoluo importante:mandou a polaquinha e osbarrigudinhos pra morarcom os pais dela e ele ru-

    mou pro interior, pra fugirda morte.

    Bento Julio cou putoao saber da fuga do ini-migo. Foi atrs. Cruzou osCampos Gerais e chegouat o Paraguai, depois des-ceu at a Argentina e vol-tou pro Paran. Descobriuque o fujo estava entocado

    numa vila ali perto e ru-mou praquela direo.

    O cabo Pires estava can-sado de rodar o mundo, pormais que tentasse, no con-seguia se livrar do bicho-

    homem que o perseguia. Basta! Vou me bater codesgraado o cabo Pirescarregou a espingarda Ele bom coa faca? Mas querover como ele se sai contra omeu trabuco! e ria sozi-nho, meio enlouquecido.

    O sol estava nascendo.Bento Julio chegou juntocom o vento da manh.

    Veio andando pelas ruas,procurando um canto prase enar e descansar, mas,no m da nica rua da vila,avistou um homem.

    Era o cabo Pires.

    Acabou, Bento, agoraou nunca! cabo Pires ur-rou, parecia at um animalselvagem.

    Bento Julio se assustoucom a transformao quetinha ocorrido com seuinimigo, parecia mais brabo,mais duro, mais corajoso.Bento teve at dvidas dequem ganharia o duelo.Cuma das mos tocou ocabo da faca.

    Ele se aproximou docabo Pires, este, por sua vez,ergueu a espingarda, miran-do no inimigo. Bento Julioandou devargazinho, espe-rando o tiro. Cabo Pirestremia, suor lhe escorriapelo sobrolho, atrapalhava aviso.

    Atirou. A bala passouarranhando a cara de BentoJulio que, primeiro pensouter morrido, mas, ao perce-

    ber que tinha sido apenasde raspo, ele sacou a facada bainha e avanou comouma ona.

    Desesperado, cabo Pirestirou outro projtil da bolsa

    e tentava recarregar. A balaescorregou de seus dedos,catou outra, rapidinho, masBento Julio estava chegan-do perto, faca brilhando namo e dio saltando dosolhos. Cabo Pires enoua bala na culatra da arma,engatilhou e mirou. MasBento j estava a um palmode distncia, faca cravadaat o punho no bucho do

    rival. Por que tanto dio?

    cabo Pires gemeu, perdendoas foras e caindo, olhosesbugalhados, ozinho desangue saindo da boca,estrebuchando igual porcono abate.

    Bento Julio limpou opunhal na cala, se ajoe-lhou ao lado do moribundo,segurou a cabea dele e lhefez um cafun nos cabelos.

    Todo mundo gosta devoc, cabo Pires. Te odeioporque no posso ser igual.

    E dizem at que elechorava quando arrancouo corao do cabo Pires,como havia prometido.

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    29www.revistasamizdat.comwww.revistasamizdat.com

    SAMIZDAT GiuliaMoon , segundo fontesseguras (rsrs) um nomeartstico. Como o seunome de batismo, e por

    que a opo pela adoode um pseudnimo? Vocpublica textos como vocmesma, diferentes dostextos escritos como Giu-lia Moon?

    GIULIA O meu nomereal Sueli Tsumori. Giu-lia Moon um nicknameque adotei quando entrei

    na Tinta Rubra. Ao in-vs de escolher, como osoutros, um nome romenovampiresco com ttulos denobreza como condessae lady, reuni dois nomescurtos que tivessem algumtipo de signicado paramim. Eu sempre gostei donome Giulia, porque soavasensual, gracioso e fcil de

    ser pronunciado. E Moon,porque sou uma apaixo-nada pela lua, adoro cardevaneando sob uma luacheia ou ler histrias queenvolvam noites de luar alm de achar a graa demoon muito legal, com osos lado a lado, lembrandodois olhos arregalados deespanto. Quando lancei oprimeiro livro, no haviarazo para assinar de outraforma, j que a maioria dosmeus leitores me conhe-cia como Giulia Moon. Eassim cou. Nunca publi-quei nada como Sueli, poisGiulia continua sendo, pelomenos para mim, o meu

    lado vampiresco, noturno,aventureiro enm, o meueu que passava as noitesteclando com amigos so-turnos e escrevendo contoscruis na Tinta Rubra.

    SAMIZDAT Os vampi-ros so um dos temas que,de tempos em tempos,voltam a ser moda. A quevoc atribui este fascnioque temos por estas cria-turas?

    GIULIA Acho que aspessoas gostam de vampiros

    porque so, em primeirolugar, viles com um bomlayout. So parecidos comos seres humanos, tm asvantagens da juventudeeterna, imortalidade, donspsquicos, fora fsica. um monstro que tem umarsenal de armas variado:a fora, o poder psquico, aseduo, a esperteza. Podeagir com a mo pesada oucom sutileza, dependendoda situao. Mas tambmpode ser sentimental, frgil,enm, pode ter todas as fra-quezas da mente humana,pois j foram humanos umdia. Para o autor, um per-sonagem muito estimulante,e isso faz com que o produ-

    to da criao tenha grandeschances de car bom. E,para o leitor, aquele vilo(ou vil) bonito, sacanae malvado que adoramosodiar. Viles assim semprezeram sucesso, pois adora-mos esses contrastes: belezacom maldade, delicadezacom crueldade, e assim por

    diante.

    SAMIZDAT Com tan-tos autores, nacionais eestrangeiros, abordandoo vampirismo, possvelfugir de certos clichsdo gnero, ou ao faz-locorre-se o risco de desca-racterizar o tema?

    GIULIA Bem, no existeuma lei que diga que taise tais caractersticas soobrigatrias para um perso-nagem vampiro. Acho quedepende do bom senso de

    cada autor. Um bom sensoque o faa reconhecer que,sem algumas caractersticasbsicas, o seu personagemno um vampiro, masalguma outra criatura. Osvampiros do meu livroKaori so os vampiros cls-sicos: predadores, bebemsangue (e s sangue), noandam a luz do dia, tmmuita fora e capacidade dese regenerar de ferimentos.Mas j escrevi contos emque os vampiros so seresmicroscpicos, por exem-plo. Os clichs ruins soapenas aqueles que so maltrabalhados pelo autor.

    SAMIZDAT Muitosautores da nova geraoencantaram-se com osvampiros por causa dosjogos de RPG, especial-mente Vampiro: a Ms-cara (publicado no Brasilpela Devir). Voc perten-ce a este grupo ou seuinteresse anterior? Qual

    http://www.

    ickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/

    nome de O Canto daSereia de Bach, j que abela melodia sempre semostrava como um fatale irresistvel convite ao

    alm-tmulo.Quase um ano aps o

    incio das mortes, passavapela regio um viajanteaustraco, excepcionalestudante de msica,chamado Wolfgang Ama-deus Mozart. Quandosoube da maldio, no

    se alarmou, disse apenasque gostaria de ouvir otal concerto fnebre e deconhecer o seu autor. Foialertado de que a histriaera verdadeira, de que aspessoas j no queriammais estudar msica, e

    ele poderia ser o prxi-mo, e o dia fatal estavase aproximando... Nadadisso o espantou.

    Dia vinte e oito, Toca-ta e Fuga em R Menor,tudo como haviam dito,e l estava Mozart den-tro do cemitrio. Com os

    olhos fechados, deixava-seextasiar com as compo-sies de Johann Sebas-tian Bach, num estadode euforia sobrenatural.Subitamente, o som seextinguiu. O jovem des-pertou do transe e dirigiu

    sua viso ao concertista.Aquela mesma gura ca-davrica, que levara tan-tos a sucumbir, apontava-lhe seus terrveis olhos

    ausentes. E como todos osoutros, tambm Mozartparalisou-se. Junto ima-gem macabra, sentiu ocheiro da putrefao. Asnuseas dominaram-no,o que o fez libertar-se daparalisia, caindo de joe-lhos a largos vmitos. Em

    meio a engasgos, tosses ensias, ouviu a frase mor-tal: Termine a msica.

    Confuso, desnorte-ado, Mozart tentou selevantar apoiando-seno rgo, que sua moatravessou como se nada

    ali estivesse. Caiu sobreo vmito, comeando arecobrar a razo e ten-tando afastar-se daqueleprenncio da morte.De bruos sobre a terra,sentiu algo prendendo-opelo p. No teve cora-gem de olhar para ver o

    que era. E novamente avoz suave suplicou: Ter-mine a msica. Fazendouma desesperada oraomental, tateou o solo atencontrar uma pedrapontiaguda. Com ela,comeou a desenhar no

    cho a partitura do nalde uma recente compo-sio sua a primeira alembrar que estava emharmonia com a msica

    inacabada de Bach. Ter-minando, viu que a pernaj estava livre. Correu omais rpido que pde,sem olhar para trs. Osom de sua composioservia de trilha sonorapara a fuga, enquantoele pensava como, at o

    momento, aquela msicanunca havia lhe parecidoto viva e to mrbida.Prometeu no mais toc-la.

    No dia seguinte, ojovem Mozart j no seencontrava pela cidade.

    Mais um levado peloCanto da Sereia de Bach,diziam. Contudo, soube-se na hospedaria que elehavia partido durante amadrugada, so e salvo,aps o sinistro concerto.No cemitrio, ao invs doesperado msico morto,

    foi encontrada apenasuma inscrio na terra,parecida com o trecho dealguma partitura. Desdeento, no se noticioumais vtimas do Cantoda Sereia de Bach.

    http://www.lostseed.com

    /extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-cru

    cied.jpg

    ficina

    www.ocinaeditora.com

    Ele nha diante de si

    a mais difcil das misses:

    cumprir a vontade de Deus

    Henry Alfred BugAlHo

    O Rei dosJudeus

    d ownload

    r tis

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    Cirilo S. Lemos

    Cns

    Homem com Violo

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    A msica a nica arteque toca de fato o cora-o das pessoas. O resto papo furado.

    (Escrevo isso no espelhodo banheiro com aqueleseu batom rosa.)

    O violo j est largadonum canto faz tempo, acaneta e o caderno cheiode frases rabiscadas cadospelo cho, e voc a deita-da, to linda. O corpo mo-reno se esparrama peloslenis midos de amor e

    sangue, me convidando abeber mais de voc. Masno quero acord-la. Odia foi to puxado, teveaquela correria toda doseu trabalho, a casa queprecisou ser arrumada mil

    vezes, a comida, a bagunaque no consegui evitar.

    Por isso melhor que

    eu que aqui parado,observando-a agonizarcom a pele arrepiada pelofrio, seguindo o desenhosinuoso do seu corpo comos olhos inundados poruma sensao quente ques posso descrever como como o qu? No seicomo descrever isso. Para

    falar a verdade, no seicomo descrever mais nadanesse mundo. Tambmno sei mais o que pensardepois de tanta confusoque houve mais cedo. Vocmesmo falou que no seimporta com o que acon-tece ao meu corao. Isso

    http://www.ickr.com/photos/rogersmj/3369458862/sizes/o/

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    eu posso aceitar. Jogar naminha cara que no tenhoemprego, que vivo s suascustas, que sou um sonha-dor inveterado, essas coisaseu at posso agentar. Mas

    dizer que no sou capazde escrever uma letra de-cente demais. Deus mefez para a msica, querida.

    Olhou-me com despre-zo, desaando-me a es-crever uma cano sobresua nudez, no devia terfeito isso. A caneta pareciapesar toneladas, a folhapautada em branco escon-dendo o diabo do blo-queio, os acordes que nose acertavam e voc de-bochando, rindo de mim,testando meus limites. Nodevia ter feito isso, eu souum astro da msica aindano descoberto, e ns ar-

    tistas de verdade temos al-mas sensveis e passionais,agimos por impulso. Sempensar, fui em sua dire-o, beijei-a, deitei-a sobrenossa cama e, enquantoa penetrava, espetei seupeito com uma faca. Ento

    veio a inspirao, jorrandoem torrentes caudalosas.

    Com a caneta de voltaentre os dedos, arrisco asprimeiras frases.

    Deixa/nossa casa to perto / e o meu futu-ro incerto / mas aindaarrisco o meu pescoo spara poder te ver / en-quanto voc nem ao me-

    nos olha nos meus olhos /e sorrindo, diz para todomundo / que eu no sei

    viver sozinho / justo eu,que sou um cara interes-sado / mas no estou nem

    a / depois do que passei /decidi que no to legalser assim / um conselho:

    veja o que vai de encontroao seu orgulho / voc nome entende, o que diz /nem quero entender.

    Fico de p, o rudogorgolejante saindo da suaboca me d uma timaidia para um pequenosolo. Apanho o violo e odedilho suavemente, can-tando para voc:

    Agora sei que fao partede algo que importa /quando a nica coisa ver-dadeira a dor que sintopor voc / se pode abrir a

    porta, abra, no me deixeaqui / sei que posso rea-gir, mas bem mais fcilassim / no fui eu quemperdeu o compasso / nemsou o cachorro que man-daram para o espao.

    O que que eu sou?

    No pode duvidar /

    que a minha alma j meperdoou / sou um porco,mas ao menos sou honesto/ gosto de presunto, masno sou canibal / o queme importa se no podemais correr? / aqui nopode mais car se minhaalma j me abandonou /somos dois refugos deste

    mundo.

    (O seu cabelo est tolindo).

    O seu cncer to se-reno / aqui se faz, aqui se

    paga, so as regras, podever. (No est cando bom,estou perdendo a inspira-o).

    A faca est brilhandotanto, quase como se cho-rasse. Deve estar com sede,meu bem. Ser que elagostaria de mais um pou-co de sangue? Sangue seu?

    Estou pensando seriamentenisso, mas tenho medo demachucar voc, sabe. Eu teamo e no quero que doa.

    Ah, mas eu no con-tei? Sbado passado umanuvem me arrastou / fuilevado para o Himalaia es voltou o que restou /foram meus ossos e umaperna quebrada.

    (Noite passada tive umpesadelo: atrs de cadaporta tinha vinte espelhose todos reetiam sobremim).

    A lmina da faca tofria, no ?

    Agora que sei dos ami-gos que tenho / ca bemmais fcil alcanar o pde vento.

    Carne macia a faca cor-ta que uma beleza, assimpouco acima da coxa. No

    vou negar que a quanti-dade de sangue que brota

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    me assusta. Nesse pontoeu sou um pouco sensvel,mas voc entende, noentende?

    Se o meu veneno teatrai / o seu atrai a mimtambm / o sangue ar-terial no sufocou meumedo.

    (Est pingando sangueno tapete).

    Olhando pela janelapercebo que o dia passoue eu nem vi. Agora seaquieta, verdade, eu no

    menti. sempre a mesmahistria, o que h com

    voc? Sua caixa de sapatono contm mais o mun-do, onde voc vai viver?

    Sim, querida, estou do-ente e venho de outra di-menso, onde o dio acabacom as iluses de que esseplaneta ainda vai mudar.No existe nenhum cora-o csmico de bondadepara nos amar por a.Tenho certeza que aque-la farsa do remdio nofuncionou. O grande vazioainda est aqui. Quemeu amo est contra mim,todo mundo querendo me

    encher de remdios, atvoc, dizendo que era parao meu bem. Mas sou umartista, artista no precisade remdio.

    Todo dia os meusolhos / enchero de guaao me lembrar de voc. O

    ontem e o amanh / con-vergindo para se tornarhoje. Legal isso, no ? Eusei que . Tenho muitoorgulho de pensar essascoisas sozinho porque sou

    um poeta. Um poeta dador. E no somos todos?

    Seus olhos esto meiovtreos, ser que normal?O corte no foi to fundoassim, no chegou nem asair um litro de sangue.Mas esses olhos to perdi-dos, to xos, no sei no.So olhos que fazem sorrir/ e que fazem chorar. Suaspreces no funcionaramdesta vez, querida. Vou ti-rar da gaveta o meu discode blues / enquanto o quesobra de ns dois rodopiaem meio ao pus (ei, issomeio que rimou, eu nogosto de rimas, prero

    versos brancos). As coisasesto to confusas agoraaqui na minha cabea.Eu matei voc ou voc jestava morta quando eucheguei? Tanto faz. Estousempre gravitando em vol-ta do desastre, de qualquerforma. No seria eu se nofosse assim.

    (O dia est terrvel. No,terrvel est o ano).

    De terno e gravata,estou pronto para morrer.Isso que v em mim nonasceu aqui, mas vem de

    voc. Dessas suas tentati-vas desesperadas de ven-

    der o cho para compraro cu. Ningum notou asua dor e isso te incomo-da. A vida no justa, masquem se importa?

    Apesar de tudo, no to ruim assim / o seucorao tem beleza.

    Misturei os antidepres-sivos com mel para bebersem sentir o gosto.

    Lembra, morena, quandovoc apareceu para mim?Na primeira vez que eu vi,no senti nada , mas quem

    me mandou insistir? Issotudo confuso / isso confuso / estou confusoe no vai dar / nasci para

    voc / embora eu nopossa entender / comoocupar todo o espao e otempo perdido / voc estpresente aqui / rasgandominha alma / minha deu-

    sa fantasma / consumindomeus sonhos / abraou-me com seu ltro / meabandonou no sol / queito perdido / buscandoseu rosto na multido.Reencontrei minha dor /reencontrei minha luz /reencontrei minha deusafantasma / trazendo para

    mim minha cruz (nadade rimas, versos brancos,

    versos brancos).

    Seu corpo estgelado, querida. Acho que

    voc est mesmo morta.Voc me diria se estivesse

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    morta?Vou enrolar vocnesse lenol com cuidadopara os vizinhos no acor-darem, ento te arrastopara o jardim. Voc gostatanto de plantas que acho

    que caria satisfeita emser enterrada no meio dasores, estou certo ou no?Hein? Fale alguma coisa,querida, est me assus-tando com esse silncio.Seu riso impertinente meconsumia, abria meu peito,me fazia em pedaos,onde que ele est agora?

    No fui eu que planejei,s aconteceu. Inocncia,direi ao senhor delegado,

    j foi uma virtude. Hojeeu no sei mais o que .Agulhas no me trazem

    juventude, estou acorrenta-do. Com tantos crimes queeu cometi, quem vai meperdoar?

    Vou ter de encararaquele abismo que came olhando tentando meassustar. Eu nunca, nuncamesmo, estive to seguroassim como hoje. Estou tofeliz. Eu vou saber o que

    voc pensou, vou te fazerfalar. So tantas as coisas

    que sonhei, talvez eu rea-lize algumas delas. Mudar

    talvez no seja to ruim.

    (Eu no tenho vonta-de prpria, s uma bateriaanti-social).

    Haver estradas paraperdidos como eu? Vouchorar lgrimas de sanguepara voc saber que meuamor sincero, enquantoa terra te absorve. Para tesalvar sou eu quem tenhode morrer, e se eu mor-rer vo me esquecer, noquero isso para mim. Oque eu quero dor indo-lor para sentir sem mentir,e viajar sem sair do lugar.Quero livros escritos pormim / e queimados pormim / me deixa queimar.

    Tive outra viso en-quanto vomitava no ba-

    nheiro e lavava seu sanguedo meu rosto: a lua estavasobre mim e me compre-endeu, enquanto as rvoresmais altas imploravampor ateno. O temporalpor um segundo estevepara voltar, mas o ventoo afastou para bem longedaqui (ah, se eu soubesse

    o quanto estava equivoca-do ao pensar isso!). Pode

    voltar, pode retornar, masespero que me deixe aqui.Esse o nal se for, masque triste o m.

    Sua cova est pronta,querida, preparei-a damelhor maneira levandoem conta a falta de fer-ramentas apropriadas.Quando tudo mudou entrens, precisei me erguerpara superar. Eu te vejo ao

    voltar da priso, mas agorano posso ver mais nada.Nem quero sentir seucorao. Todos os meusgritos mostram todo omeu desejo de te ver aqui.Enquanto o tempo passasua mortalha improvisadame aquece e me faz pen-sar se possvel para mimencontrar o cu ( o mes-mo que o inferno, pode serfrio e congelado). Passarei

    dormindo um dia innitopara descansar.

    Enquanto jogo os pri-meiros bocados de terrasobre seu tmulo carinho-samente improvisado, evitosujar seus olhos to belose amendoados. No m,s levamos a msica queouvimos.

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    35www.revistasamizdat.comficina

    www.ocinaeditora.com

    O lugar onde

    a boa Literatura fabricada

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    36 SAMIZDAT junho de 2010

    Cns

    Jos Guilherme VerezaF

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    37www.revistasamizdat.com

    Z Batista era um centro-avante guerreiro.

    Acreditava piamente que seu destino estavanas mos

    divinas e tinha uma f inabalvel de queseus gols

    no vinham de seus ps, mas dos desgnios

    l de cima.

    Entrava em campo, trs vezes sinal da cruz.

    Perdia gols, benzia-se, beijava medalhinha.

    Fazia gols, apontava para os cus de olhosfechados,

    ajoelhava e levantava a camisa escrita:

    No fui eu, foi Ele.

    Uma tarde, nal do campeonato,

    o jogo matava a torcida num zero a zeroeletrizante.

    Foram nove gols absurdamente perdidos porZ Batista.

    Bolas na trave, chutes a gol aberto, pnaltipara fora,

    goleiro defendendo com a ponta dos dedos,

    bico da chuteira, sustos queima roupa.

    Z Batista corria de um lado para o outro narea,

    estonteando os zagueiros, procurando a me-lhor colocao.

    Enquanto isso, rezava ofegante e baixinho.

    Nos seus lbios, Pai Nossos, Aves Marias,Salves Rainhas.

    agora, meu Deus, agora, meus santos,tem que ser agora, minhas nossas.

    O tempo vai passando, a pacincia se esgo-tando.

    Pacincia da torcida, do tcnico, do prprioZe Batista,

    que jura, por um misero golzinho providen-cial, voltar a ser

    o coroinha papa hstia,que nunca deveriater deixado de ser.

    E tome de promessas e gols perdidos. Prome-te celibato, subir

    escadarias de joelhos, jejum de uma semana,

    churrasco nunca mais.E nada do jogo sair do zero a zero desclassi-

    cante.

    Um minuto de desconto. ltima volta doponteiro.

    Bola levantada na rea, Z Batista sobe maisque o lbero,

    a bola bate na sua nuca, goleiro vencido,toca na trave,

    o zagueiro tira em cima da linha,

    volta na canela do Z, que chuta por instinto,meio torto,

    meio mascado, o goleiro escorrega e saicatando a maldita,

    que entra no gol como uma galinha tonta efugidia.

    Z Batista em transe salta mais que o pr-

    prio corpo,braos e pernas no ar fazendo um xis.

    E desce j de joelhos, olhos cerrados,

    dedos apontando para os cus pelo milagrealcanado.

    E solta a voz:

    - PUTA QUE O PARIU, SENHOR!

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    Cns

    Lo Borges

    avles

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    39www.revistasamizdat.com

    A mulher de casacoperto da janela dormiucom a boca aberta. svezes, seu tronco tom-ba pra cima da velha aolado que, tremendo comose estivesse tomando umchoque contnuo, ten-ta acender um cigarro.Acho que no existe nadamais feio que isso, inco-modar quem est tentan-do fazer alguma coisa.Mas o pior o casaco.No por ser feio, maspor isso aqui estar umasauna e ela estar vestidacom ele. Se bem que ele

    tambm feio (ou sou euavaliando mal novamen-te).

    Todos aqui, assimcomo eu, tm problemas.No meu caso so vriose acho que por issoque minha memria mesabotou. No me recor-do qual prossional euprocurei. Pode parecer

    estranho, at mesmo tris-te (ou cmico, vai saber),mas no lembro se estouna sala de espera do meuadvogado, do conselheiromatrimonial ou aguar-dando o psiquiatra.

    O que sei que estouesperando uma soluopara algo que me aige.E o esquecimento j no

    algo que me perturbatanto, pois ele vem medando tempo para que euproduza minhas verses,curta ou rechace aparn-cias, avalie as circuns-tncias e as sionomias,enm, pratique mental-mente meu preconceito.O objetivo principal detodos aqui, e isso parece

    lgico, retirar os obst-culos que esto bloque-ando suas felicidades, osentraves que azedam avida, mas todos, em lti-ma anlise, so tambmavaliadores enquantoesperam. regra que noadmite exceo, vlidainclusive para a garotade vestido curto que estfolheando uma daquelasrevistas fteis, admiran-do ou invejando atrizestelevisivas. Com as coxas mostra, ela saiu de casa(claro que com a anun-cia dos pais) para pro-

    vocar. Como deliciosaessa da. Mas eu tenhode reprimir esse desejo,anal nova demais, tal-vez no mais que quinzeanos. Coisa feia (o desejo,no ela).

    E aquele gordo queno para de me olhar.Est com raiva de mim,achando que sou ped-

    lo. Ou no. Seu olhar meigo, um olhar muitoparecido com o meu paraa menina, desejoso, jul-gador, cheio de luxria.Abrindo meu corao eudigo que sinto raiva degordos, pois quase todosso irnicos e se achamespertos, mas de homos-sexuais no, j que elesexpem suas carnciascom personalidade, sempudores, sem ritos, atem salas claustrofbicascomo essa, e ningumpode contrariar, nemmesmo atravs de um es-gar que evidencie tmidadesaprovao.

    A velha, o isqueiro eo cigarro ainda se digla-

    diam. A tremedeira (quepode ser de angstia, masem hiptese nenhumade frio) est claramenteatrapalhando suas tentati-vas de saborear o tabaco.Uma pena, pois a fumaae o fedor, calmamenteespalhados pelo mori-bundo ventilador de teto,revigorariam estas pesso-as desanimadas. Um ououtro, certo, iria esper-near, reclamar. A mulherde casaco acordaria so-bressaltada (provavelmen-te tossindo), e eu veria,enm, algum mudar de

    comportamento, transgre-dir, argumentar, gritar, Ei,aqui no lugar de ci-garro!, Onde est o dou-tor que vai me atender?,Preciso saber se meuprocesso contra o bancoj andou!, Minha mulherme traiu pela quinta vez,j o momento do di-vrcio?, Aqueles bonecosde mrmore ainda estoatacando os meus croco-dilos!.

    Por falar em gritar,chegou um esqulido su-jeito de culos amparadopor um homem que soltauns gritos ocasionais. Euno me arrisco a dizerqual dos dois indivduosvai se consultar, porqueambos aparentam estarmuito doentes. ... pen-sando bem, talvez eu es-teja mesmo num consul-trio psiquitrico, apesarde nunca ter visto taman-dus na minha cama etambm de j ter vistomuito corno gritar de rai-va e cimes, alm de, emalgum momento da vida,

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    ter ouvido os berros queum lesado qualquer deuquando se deparou com aimensa fraude que estemundo.

    O pequeno Cristo de

    metal, com sua coroa deespinhos, continua ali,crucicado e preso pelascostas a uma parede comnegrumes de bolor, mui-to bem combinada como semblante opaco dosque esperam. O que meincomoda que ningumainda se impacientoucom as discrepnciasdesta sala mofada, com o

    calor absurdo ou a comabsurda falta de expli-caes, com os cacoetesdesesperados ou com osesperados desrespeitos,com as feiras naturaisou com as complacnciasneurticas. Nenhum dospresentes ainda ques-tionou o tempo perdidoporque ningum, e essa

    a dura verdade, sabemuito bem o que quer.Temem o que est porvir, o modo como vire, principalmente, o queser feito para minimizaros estragos caso o quevenha, venha de maneirahostil; o que se conhece apenas a nsia de queo Grande Salvador (quenesse caso no o Pai doCristo galvanizado) surjatrazendo o conforto dasrespostas certas.

    Meus olhos se mexeme meus pensamentossolidicam opinies.Vim aqui para ser avalia-do, no para avaliar. Vaiver esse o meu grandedefeito, o motivo pelo

    qual estou nesta sala: porjulgar sem conhecimento,por avaliar sem critrioou por supor sem neces-sidade. Quero abandonaresse vcio silencioso, quesecretamente me corri.Mas, para ser sincero, nosei se aqui existe algumcapaz de deixar de ladoseus sofrimentos mudos(um paradoxo no caso doque grita) para encararuma batalha contra seusprprios medos. Um bomcomeo nesse sentido sedaria atravs de um bate-boca com a cmplice

    por toda essa atmosferaenvenenada: a secretria a maldita intermedi-ria entre o problema e asoluo, entre o calvrioe a alegria, entre o Gran-de Salvador e o inferio-rizado. Ela deve saberbem de sua importnciapara os enfermos, osprejudicados, e talvez issojustique sua posio nopedestal da indiferena.

    Alm de indiferen-te, ela bastante vulgar,e tambm feia, mas semantm sria (juro queno so avaliaes, massimples constatao). Noest nervosa com a aglo-merao no recinto, comos seres que chegam e seescondem atrs de obso-letas revistas de fofoca, decelebridades, de moda ou-tono-inverno. E elas, a fei-ra e a vulgaridade (queali interagem harmonica-mente), me incomodam,mas no a calma e aindiferena (que tambmse confundem), porque bom ver como as pessoas

    conseguem se ausentardo teatro em que esto,com que facilidade des-prezam responsabilidadese protocolos. gostosocheirar essa omisso, todafantasiada de seriedade,e medir at onde nossaalma pusilnime vai.

    Com aquele uniformedecotado ela deve real-mente estar pensandoque atraente, que podese desculpar atravsde uma descompostu-ra cheia de falsa beleza.Contudo, trs segundosde observao bastam

    para ver que nela tudo estranho e malco, tudo rude e descolorido, eque ela traduz bem o queessa sala . Mas sua voz,a doce voz das funcion-rias dos Grandes Salvado-res, esta, pelo menos, deveprestar.

    Senhora, por favor,no permitido fumaraqui dentro.

    Nem isso.

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    Cns

    Maristela Scheuer Deves

    Sempre h vee....

    (Final)

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    Depois que experi-mentei o gosto do sanguejorrando da garganta deum animal vivo, sucum-bi inteiramente minhasede. Durante o dia, euconseguia me controlar,mas noite escapavapela janela e vagava semrumo, atacando os gatos ecachorros que incorriamno erro de atravessar omeu caminho. Deixava-osvivos, mas atordoados eexangues, e provavelmen-

    te no sobreviviam maisdo que um dia ou dois.

    A nica barreira queeu ainda mantinha, porenquanto, era a de noatacar humanos. Erammeus iguais, pelo menosainda em parte, e o hor-ror me invadia a cadavez que eu pensava emcravar meus dentes nopescoo alvo de algum.Esse horror, no entanto,era mesclado com umprazer antecipado, umarrepio de excitao, umavontade crescente...

    Minha me ainda memantinha trancada noquarto, mas, claro, assimcomo eu escapava pelajanela para me alimentardos animais eu tambmo podia fazer para chegarperto de outras pessoas.Uma noite, no resisti, e

    entrei pela porta da fren-te de casa. Parei na portado quarto de meus pais,depois de meus irmos,mas me obriguei a iradiante. Quando vi umarstia de luz vindo porbaixo da porta do quar-to de visitas, porm, nome contive, e empurrei-adevagarinho.

    Sentada na cama, mi-nha av me observava.Notei seu choque ao ver

    o quanto eu estava pli-da e transgurada, masela manteve a calma e osorriso sereno.

    Eu sei pelo que vocest passando, minhalha declarou ela, semalterar o tom de sua vozsempre doce. Aqui na

    cidade, todos iriam rir demim, mas j vi isso acon-tecer antes, no interior,quando eu era menina.

    Ela cou com o olhardistante, perdida em pen-samentos, e eu vi a mimmesma se aproximandopasso a passo do seu cor-

    po frgil e indefeso. Euno queria, eu juro, masera mais forte do queeu. Minha sede crescia, eeu sabia que o gosto desangue humano seria milvezes melhor do que o deum animal...

    Eu j estava com aboca a centmetros deseu pescoo quando sentimeu rosto queimar. Nasua aparente ingenuidade,minha av recorrera aomais bsico dos truquespara se livrar daquilo queeu estava me tornando:atirara gua benta emmeu rosto, e agora erguiana mo um punhado decabeas de alho.

    Recuei, apavorada, mas

    ela conseguiu de algumaforma ser mais rpida.Agarrou-me e, com oalho e a gua benta, mefez sair novamente decasa e ir at a garagem.Depois, obrigou-me a di-rigir horas e horas, at olugar em que me encon-tro agora: o poro midoe ftido de uma antigacasa de campo.

    No posso sair, pois halho plantado ao redorde toda a casa. A cadadia, ela me traz gua eum bife, a cada dia umpouco mais passado. Vem

    protegida por um colarde alhos, e diz que vai mecurar do meu problema,que no pode deixar suaneta virar uma vampira.Por vezes, penso que jme tranformei; noutras,que estou tendo um pesa-delo, um longo e maluco

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    Giselle Sato

    o ssssn. E ne C

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    Enquanto caminhava pe-las ruas vazias, ouviu a vozordenando que fosse maisatento, embora no ousassedesaar o Mental Superior,desta vez sentiu-se ofendido.No achou justo: Logo ele,

    um observador nato, sempreanalisando todas as possi-bilidades e desaos... Con-siderava-se um privilegiado,amparado por um ser queo tornava mais que especial,quase um anjo. Intocvel eacima de todos os comuns,

    Jonas pensava ser ele oenviado do Supremo. Sorriudeliciado, sob as roupas lar-

    gas e disformes que oculta-vam a magreza e palidez dequem jejuava continuamen-te, submetendo-se a longasprivaes e castigos.

    A esquina parecia perfei-ta para um grupo de adoles-centes, ali podiam ser o quebem quisessem, no haviacensura ou regras.

    Uma menina seminua

    dividia a ateno entre osrapazes, alternando abraose afagos.

    A dor chegou forte, notopo da cabea de Jonas,como deveriam ser asmensagens verdadeiras, erapreciso que beirassem oinsuportvel. Jonas ajoelhou-se imediatamente, encostadona parede, escutou a ordem

    para salvar a moa. Ele sen-tiu a lmina fria em contatocom a pele, sob a ataduraapertada em torno do dorso,pronta para fazer cumprirseu papel sagrado.

    Levantou-se em passostrpegos, aproximou-sedos jovens simulando em-briagus, eles no deram

    ateno ao maltrapilho.Em segundos, Jonas iniciouo massacre, cinco corposagonizando na caladafria, alguns ainda gemiame pediam ajuda. No hou-

    ve tempo ou estavam to

    drogados que no puderamreagir. Ignorou as splicase buscou o foco principal:Agora precisava transmutare salvar a pequena alma quemantinha desacordada emseus braos.

    Alice no tinha famliacerta, vivia ora na casa dastias, avs ou pelas ruas. Mo-rava onde deixavam e comia

    o que conseguia pegar. Nun-ca conheceu a me, muitomenos sabia quem haviasido o pai, sentia-se frutodo acaso, um ser a mais nomundo, sem compromissocom ningum. No con-seguiu estudar por muitotempo, logo estava andandocom gangues de drogados,estranhamente no gostava

    de nada que alterasse suapercepo. Com o tempo,aprendeu a ngir-se de b-bada e passava a noite semtomar um s gole, atenta atudo e todos. Precisava cui-dar de si, por isso mesmo,foi a nica que desconoude Jonas a tempo e tentoufugir, s no contou em sero alvo... Quando recebeu apancada na nuca, perdeu

    as foras e Jonas arrastouo corpo leve ao beco maisprximo.

    Ela no ofereceu resistn-cia alguma, para ele, a moaera dcil como deviam seros cordeiros. Jonas lembrouas palavras do mentor e viuali o sinal. Fingindo estardesmaiada e analisando

    suas possibilidades, Aliceconcluiu que o seu algozera um louco, que balbucia-

    va continuamente mantrasdesconexos em uma eternacano de ninar: Crian-as malvadas, cus e anjos,

    piedosos senhores do desti-no... Meninos e meninas emsegurana...

    O mais assustador era arisadinha e os rudos queemitia, sibilando, rangendoos dentes, passando a lnguanos lbios continuamente.As mos pegajosas descendoe despindo Alice, que con-tinuou parada e muda. Ele

    forrou o cho com um pano,fez com que ela deitasse ederramou leo de um vidri-nho escuro. Sacou o facosujo de sangue, limpou e ocolocou ao lado do corpo deAlice. Entre os seios peque-nos, ele derramou o sal quetirou do bolso do casacosurrado e recomeou amurmurar os sons guturais.

    Quando Jonas comeoua espalhar a mistura coma ponta dos dedos, a jovem

    viu que era hora de agir etentar sua salvao. Reuniutodas as foras e exionouas duas pernas, acertando oabdmen do homem comtoda a fora. Ele caiu paratrs e, imediatamente, elapegou o faco e enterrou no

    primeiro lugar que alcan-ou. Depois disso, saiu cor-rendo como se mil dem-nios a perseguissem... Noolhou para trs, no quis verse ele estava em seu enc