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    SAMIZDAT

    31outubro

    2011

    ano IV

    ficina

    http://samizdat.ocinaeditora.com

    GarcaLorca

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    A Revista SAMIZDAT est devolta e contamos com a sua parti-cipao para manter o alto padrodas publicaes.

    Aceitamos e estimulamos a parti-cipao de autores estreantes, pois onosso objetivo apresentar a maiordiversidade possvel de autores,gneros e textos.

    Instrues para envio de obras1 - Cada escritor poder inscre-

    ver somente um (1) texto literriopara publicao, de qualquer gnero- conto, crnica, poesia, microcon-to - e/ou qualquer nmero de textosterico, como artigos de teoria lite-rria, resenhas de livros, ou entre-

    vistas, alm de tradues de textos

    literrios em domnio pblico, soblicena Creative Commons ou coma expressa autorizao do autor. Atemtica livre.

    O autor tambm deve enviar umabreve biograa.

    2 - O limite mximo para cadatexto literrio de mil (1000) pa-lavras, ou 4 pginas em A4, fonte

    Times ou Arial 12, espaamento1,5. O envio dos textos no implicana aceitao automtica, a seleodepender da quantidade de textosenviados, da qualidade literria e dadisponibilidade de espao na revis-ta. A reviso dos textos de respon-sabilidade de seus autores. O texto

    no precisa ser indito.

    3 - Os textos devem ser enviadosat o dia 31 de janeiro de 2012 nocorpo do e-mail para

    [email protected].

    Por favor, no enviar arquivosanexos.

    4 - Os textos selecionados seropublicados na edio 32 da RevistaSAMIZDAT na segunda quinzena de

    fevereiro de 2012, no sitehttp://samizdat.ocinaeditora.com/

    Os autores recusados no seronoticados da deciso.

    5 - Os textos sero publicados soblicena Creative Commons Atri-buio-Uso No-Comercial-Vedadaa Criao de Obras Derivadas e o

    autor no ser remunerado. O enviode textos implica na aceitao porparte do autor destes termos.

    6 - os organizadores da edio es-pecial se reservam o direito de nopublicar a revista, caso o nmerode submisses no seja o sucientepara o fechamento da edio.

    Contamos com a sua participao!

    Atenciosamente,

    Henry Alfred Bugalho

    Editor

    Participe da Revista SAMIZDAT

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    31outubro 2011 ficina

    SAMIZDAT

    Euclides da Cunhae A Guerra de CanudosO revs de Uau re-queria reao segura.

    Esta, porm, preparou-se sobextempornea disparidade devistas entre o chefe da forafederal da Bahia e o governa-dor do Estado. Ao otimismodeste, resumindo a agitaosertaneja a desordem vulgaracessvel s diligencias poli-

    ciais, contrapunha-se aquele,considerando-a mais sria,capaz de determinar verda-deiras operaes de guerra.

    De tal modo, a segunda ex-pedio organizou-se sem umplano rme, sem responsabi-lidades denidas, atravs de

    explicaes recprocas entreas duas autoridades indepen-dentes e iguais. Comps-se aprincpio de 100 praas e 8ociais de linha, e 100 praase 3 ociais da fora estadual.

    Assim constituda, seguiu, a25 de novembro, para Quei-

    madas, sob o comando de ummajor do 9. Batalho de In-fantaria, Febrnio de Brito.

    Simultaneamente o coman-dante do Distrito apelava parao governo federal requisitan-do, para a aparelhar melhor,4 metralhadoras Nordenfel-dt, 2 canhes Krupp, de cam-panha, e mais 250 soldados:

    100 do 26 Batalho, de Ara-caju, e 150 do 33, de Alagoas.

    Todo este aparato era justi-cvel. Sucediam-se infor-maes alarmantes, dando,dia a dia, realce gravidadedas coisas. parte os exage-ros que houvessem, delas secolhia a grandeza do nmerode rebeldes e os srios empe-cilhos inerentes regio sel-vagem em que se acoitavam.

    Estas novas, porm, bara-lhavam-nas sem nmero deverses contraditrias agra-vadas pelos interesses in-

    Garca Lorca

    e o Modernismo

    EspanholFederico Garca Lorca (FuenteVaqueros,1 Granada, 5 de ju-nio de 1898 entre Vznar y Alfacar, ibdem, 18 de agostode 1936 ) fue un poeta, drama-turgo y prosista espaol, tam-bin conocido por su destrezaen muchas otras artes. Ads-crito a la llamada Generacindel 27, es el poeta de mayor in-uencia y popularidad de la li-teratura espaola del siglo XX.

    E o melhor danovssima gerao

    de autores doBrasil e Portugal

    ano IV

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    Edio, Capa e Diagramao:Henry Alfred Bugalho

    AutoresAdriana VargasDaniel Delgado QueissadaEmanuel R. MarquesErik K. WeberHenry Alfred Bugalho

    Joo FranciscoJoo Manuel da Silva RogacianoJoaquim BispoJuly Anne A. FernandesLo BorgesLucas Pooch de QuadrosMarcia SzajnbokMaria de Ftima SantosMaristela DevesMateus MedinaSamuel Congo da Costa

    Telmo MaralZulmar Lopes

    Textos de:Euclides da CunhaFederico Garca Lorca

    http://samizdat.ocinaeditora.com

    SAMIZDAT 31outubro de 2011

    Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedada

    a Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royalty

    free ou sob licena Creative Commons.

    Os textos publicados so de domnio pblico, com consensoou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei deCopyright dos EUA (107-112).

    As ideias expressas so de inteira responsabilidade de seusautores. A aceitao da reviso proposta depende da vontadeexpressa dos colaboradores da revista.

    Editorial

    H pouco mais de ano havamos publicado a edio dedespedida da Revista SAMIZDAT. Foram 30 edies e cente-nas de textos publicados diariamente no blog do projeto.

    Acredito que ns, escritores, sentimos mais saudades daSAMIZDAT do que nossos leitores. Nestes nossos tempos, htanta oferta e tamanha diversidade, que um tomba e milha-res de outros se levantam e ocupam o lugar.

    Quantas revistas literrias surgiram posteriormente aosmoldes da SAMIZDAT?

    Eu no saberia dizer, mas pessoalmente conheo pelo me-nos uma dzia.

    Nunca tivemos a iluso de ser insubstituveis. Talentoe labor o que no falta entre os incontveis aspirantes aescritores ao redor do mundo.

    Quase todos ns continuamos nossos trabalhos, algunsem silncio, outros j obtendo os primeiros resultados destesanos de trabalho. Assistir s conquistas destes talentosos es-critores que j compuseram, um dia, a equipe da SAMIZDATenche-me de orgulho por j ter estado ao lado deles, lutandopor um lugar ao sol.

    No somos insubstituveis, mas tambm no somos des-cartveis. Enquanto restar vigor e esperana, estaremos poraqui.

    Nunca tarde demais para recomearmos.

    Henry Alfred Bugalho

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    SumrioPor que Samizdat? 8

    Henry Alfred Bugalho

    reComeNdao de LeituraNorwegian Wood, de Haruki Murakami 10

    autor em LNGua PortuGueSaOs Sertes 12

    Euclides da Cunha

    CoNtoSDesdmona 18

    Joaquim Bispo

    Morro Vermelho 22Maria de Ftima Santos

    Estranha Vida 26Henry Alfred BugalhoGrande Prato 28

    Joo Francisco

    Invisibilidades 32Lo Borges

    A Dana do Copo 36Emanuel R. Marques

    Uma Cidade Desassombrada 38Maristela Scheuer Deves

    Mais um Funeral 42Lucas Pooch de Quadros

    O Carrossel 44Joo Manuel da Silva Rogaciano

    O Poder Animal 48Erik K. Weber

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    Triatlo 50Zulmar Lopes

    Todos aqueles que sobraram 54Samuel Congo da Costa

    traduoGarca Lorca 58

    teoria LiterriaLiteratura em tempos de internet: utopia oudistopia? 62

    Henry Alfred Bugalho

    PoeSiaAntirreexo 66Daniel Delgado Queissada

    A Rainha Sangrenta 68Mateus Medina

    Sufoco 70July Anne A. Fernandes

    O crime do teu corpo 65Adriana Vargas

    Vcuo 74Marcia Szajnbok

    O escritor 76Telmo Maral

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    7ficina

    www.ocinaeditora.com

    O lugar onde

    a boa Literatura fabricada

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    Incluso e Excluso

    Nas relaes humanas,sempre h uma dinmica deincluso e excluso.

    O grupo dominante, pelaprpria natureza restritivado poder, costuma excluir ouignorar tudo aquilo que nopertena a seu projeto, ouque esteja contra seus prin-cpios.

    Em regimes autoritrios,esta excluso muito eviden-te, sob forma de perseguio,censura, exlio. Qualquer umque se interponha no cami-nho dos dirigentes afastadoe ostracizado.

    As razes disto so muitosimples de se compreender:o diferente, o dissidente perigoso, pois apresentaalternativas, s vezes, muitomelhores do que o estabe-lecido. Por isto, necessriosuprimir, esconder, banir.

    A Unio Sovitica nofoi muito diferente de de-mais regimes autocrticos.

    Origina-se como uma formade governo humanitria,igualitria, maslogo

    se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. amicrofsica do poder.

    Em reao, aqueles quese acreditavam como livres-pensadores, que no que-riam, ou no conseguiam,fazer parte da mquinaadministrativa - que esti-

    pulava como deveria ser acultura, a informao, a vozdo povo -, encontraram naautopublicao clandestinaum meio de expresso.

    Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmentemanuscrevendo, tais autoresrussos disseminavam suasidias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar

    esta cadeia, reproduzindo taisobras e tambm as passandoadiante. Este processo foidesignado "samizdat", quenada mais signica do que"autopublicado", em oposios publicaes ociais doregime sovitico.

    Por que Samizdat?

    Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,

    distribuo e posso ser preso por causa disto

    Vladimir Bukovsky

    Henry Alfred Bugalho

    [email protected]

    Foto: exemplo de um samizdat. Corte-

    sia do Gulag Museum em Perm-36.

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    E por que Samizdat?

    A indstria cultural - e omercado literrio faz partedela - tambm realiza umprocesso de excluso, base-ado no que se julga no tervalor mercadolgico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-seque contos, poemas, autoresdesconhecidos no podemser comercializados, que novale a pena investir neles,pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

    A indstria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. No basta qualidade,no basta competncia; sehouver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridadesna hora de ser absorvidopelo mercado.

    E a autopublicao, comoem qualquer regime exclu-dente, torna-se a via paraprodutores culturais atingi-rem o pblico.

    Este um processo soli-trio e gradativo. O autorprecisa conquistar leitor aleitor. No h grandes apa-ratos miditicos - como TV,

    revistas, jornais - onde elepossa divulgar seu trabalho.O nico aspecto que conta o prazer que a obra causa noleitor.

    Enquanto que este um

    trabalho difcil, por outrolado, concede ao criador umaliberdade e uma autonomiatotal: ele dono de sua pala-vra, o responsvel pelo quediz, o culpado por seus erros, quem recebe os louros porseus acertos.

    E, com a internet, os au-tores possuem acesso diretoe imediato a seus leitores. A

    repercusso do que escreve(quando h) surge em ques-to de minutos.

    A serem obrigados aburlar a indstria cultural,os autores conquistaram algoque jamais conseguiriam deoutro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores,o dilogo capaz de tornar aobra melhor, a rede de conta-tos que, se no to inuen-te quanto a da grande mdia,faz do leitor um colaborador,um co-autor da obra que l.No h sucesso, no h gran-

    des tiragens que substituamo prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, queno esto atrs de grandesautores populares, que noperseguem ansiosos os 10mais vendidos.

    Os autores que compemeste projeto no fazem partede nenhum movimentoliterrio organizado, noso modernistas, ps-modernistas, vanguardistasou qualquer outra denioque vise rotular e denir aorientao dum grupo. Soapenas escritores interessadosem trocar experincias e

    sosticarem suas escritas. Aqualidade deles no umaorientao de estilo, mas sima heterogeneidade.

    Enm, Samizdat porque ainternet um meio de auto-publicao, mas Samizdatporque tambm um modode contornar um processode excluso e de atingir oobjetivo fundamental da

    escrita: ser lido por algum.

    SAMIZDAT uma revista eletrnicamensal, escrita, editada e publicada pelosintegrantes da Ocina de Escritores e TeoriaLiterria. Diariamente so includos novostextos de autores consagrados e de jovensescritores amadores, entusiastas e pros-sionais. Contos, crnicas, poemas, resenhasliterrias e muito mais.

    http://samizdat.ocinaeditora.com

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    10 SAMIZDAT outubro de 2011

    Recomendao de Leitura

    Norwegian Wood,de Haruki Murakami

    Henry Alfred Bugalho

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    Dois esteretipos bsicosque povoam a imaginaodo Ocidente quando se falaem Japo so: os samurais,e de um povo sistemticoe extremamente bem com-portado.

    Justamente por isto queos livros de Haruki Mu-rakami representam umdivisor de guas nesta nossacompreenso equivocadada Terra do Sol Nascente.Seus personagens so muitomais prximos da gente doque imaginvamos, com osmesmos conitos, mesmos

    dramas, mesmas esperanas,at os mesmos gostos, sque com olhinhos puxados.Talvez Murakami seja omais ocidental dos autoresjaponeses, mas o mais pro-vvel que ele apenas te-matize a condio humana,o que imediatamente nosune, brasileiros, americanos,japoneses ou indianos.

    Norwegian Wood foi oromance que trouxe noto-riedade a Murakami em

    1987. O ttulo, inspiradona cano homnima dosBeatles, j antecipa muitodo clima do nal dos anos60, da rebeldia e do rock-and-roll.

    O protagonista ToruWatanabe e acompanhamossua juventude atravs dealguns ashbacks. O uni-verso de Murakami perten-ce ao domnio da memria,daquelas recordaes in-delveis que nos tornam aspessoas que somos hoje.

    Watanabe um jovemem busca de um rumo. A

    universidade no o agra-da, no tem muita ideia decomo ser seu futuro, sabeque gosta de msica e deliteratura, mas, de resto, como um Holden Caul-eld (de O Apanhadorno Campo de Centeio) procura da prpria identi-dade. Watanabe pertence auma gerao movida a sexo,

    msica e bebida, e o acom-panhamos atravs de seusamores e decepes, por

    todo o turbulento processode passagem da adolescn-cia para a idade adulta.

    O grande mrito deHaruki Murakami, alm de

    retratar o Japo com umnovo olhar, o de represen-tar as inquietaes de todosos jovens neste processo detransio, dos medos e daaquisio de responsabili-dades. Os dilogos entre ospersonagens so brilhantese de um realismo impres-sionante, possivelmente ex-trados da prpria histria

    pessoal do autor.Norwegian Wood uma

    leitura agradvel e rpida,porm de uma profundida-de existencial que destoa desua aparente acessibilida-de. Murakami consegue aproeza de propr profundasquestes sobre a vida, semser tedioso ou complexo.

    simples e belo, como avida deveria ser.

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    12 SAMIZDAT outubro de 2011

    Os Sertes(Excerto)

    Autor em Lngua Portuguesa

    Euclides da Cunha

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    A guerra das caatingas

    Os doutores na arte dematar que hoje, na Europa,invadem escandalosamentea cincia, perturbando-lheo remanso com um retinirde esporas insolentes eformulam leis para a guer-ra, pondo em equao asbatalhas, tm denido bemo papel das orestas comoagente ttico precioso, deofensiva ou defensiva. Eririam os sbios feldmare-chais guerreiros de cujasmos caiu o franquisqueherico trocado pelo lpiscalculista se ouvissema algum que s caatingaspobres cabe funo maisdenida e grave que sgrandes matas virgens.

    Porque estas, malgrado asua importncia para a de-fesa do territrio orlandoas fronteiras e quebran-do o embate s invases,

    impedindo mobilizaesrpidas e impossibilitandoa translao das artilha-rias se tornam de algummodo neutras no cursodas campanhas. Podemfavorecer, indiferentemente,aos dois beligerantes ofe-recendo a ambos a mesmapenumbra s emboscadas,dicultando-lhes por igual

    as manobras ou todos osdesdobramentos em que aestratgia desencadeia osexrcitos. So uma varivelnas frmulas do problematenebroso da guerra, capazdos mais opostos valores.

    Ao passo que as caatin-gas so um aliado incor-ruptvel do sertanejo em

    revolta. Entram tambmde certo modo na luta.Armam-se para o combate;agridem. Tranam-se, impe-netrveis, ante o forasteiro,mas abrem-se em trilhasmultvias, para o matutoque ali nasceu e cresceu.

    E o jaguno faz-se oguerrilheiro-tugue, intang-vel...

    As caatingas no o es-condem apenas, amparam-no.

    Ao avist-las, no vero,uma coluna em marchano se surpreende. Seguepelos caminhos em torcico-los, aforradamente. E os sol-dados, devassando com asvistas o matagal sem folhas,nem pensam no inimigo.Reagindo cancula e como desalinho natural s mar-chas, prosseguem envoltosno vozear confuso das con-versas travadas em toda alinha, virguladas de tinidosde armas, cindidas de risosjoviais mal sofreados.

    que nada pode assust-los. Certo, se os adversriosimprudentes com eles seafrontarem, sero varridosem momentos. Aquelesesgalhos far-se-o em esti-lhas a um breve choque deespadas e no crvel que

    os gravetos nos quebremo arranco das manobrasprontas. E l se vo, mar-chando, tranqilamentehericos...

    De repente, pelos seusancos, estoura, perto, umtiro...

    A bala passa, rechinante,ou estende, morto, em terra,

    um homem. Sucedem-se,pausadas, outras, passandosobre as tropas, em sibi-los longos. Cem, duzentosolhos, mil olhos perscruta-dores, volvem-se, impacien-tes, em roda. Nada vem.

    H a primeira surpresa.Um uxo de espanto correde uma a outra ponta dasleiras.

    E os tiros continuamraros, mas insistentes ecompassados, pela esquer-da, pela direita, pela frenteagora, irrompendo de todaa banda.

    Ento estranha ansiedadeinvade os mais provadosvalentes, ante o antagonis-ta que v e no visto.Forma-se celeremente ematiradores uma companhia,mal destacada da massade batalhes constritos navareda estreita. Distende-sepela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; eum turbilho de balas rolaestrugidoramente dentrodas galhadas...

    Mas constantes, longa-mente intervalados sempre,zunem os projteis dos ati-radores invisveis batendoem cheio nas leiras.

    A situao rapidamenteengravesce, exigindo resolu-

    es enrgicas. Destacam-seoutras unidades comba-tentes, escalonando-se portoda a extenso do cami-nho, prontas primeiravoz; e o comandanteresolve carregar contra odesconhecido. Carrega-secontra os duendes. A fora,de baionetas caladas, rompe,

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    impetuosa, o matagal numaexpanso irradiante decargas. Avana com rapidez.Os adversrios parecemrecuar apenas. Nesse mo-mento surge o antagonismoformidvel da caatinga.

    As sees precipitam-se para os pontos ondeestalam os estampidos eestacam ante uma barreiraexvel, mas impenetrvel,de juremas. Enredam-seno cipoal que as agrilhoa,que Ihes arrebata das mosas armas, e no vingamtransp-lo. Contornam-no.

    Volvem aos lados. V-se umcomo rastilho de queimada:uma linha de baionetas en-ando pelos gravetos secos.Lampeja por momentos en-tre os raios do sol joeiradospelas rvores sem folhas; eparte-se, faiscando, adiante,dispersa, batendo contraespessos renques de xique-xiques, unidos como qua-

    drados cheios, de falanges,intransponveis, fervilhandoespinhos...

    Circuitam-nos, estontea-damente, os soldados. Espa-lham-se, correm toa, numlabirinto de galhos. Caem,presos pelos laos corrediosdos quips reptantes; ou es-tacam, pernas imobilizadaspor fortssimos tentculos.

    Debatem-se desesperada-mente at deixarem empedaos as fardas, entre asgarras felinas de acleosrecurvos das macambiras...

    Impotentes estadeiam,imprecando, o desaponta-mento e a raiva, agitando-sefuriosos e inteis. Por ma ordem dispersa do com-

    bate faz-se a disperso dotumulto. Atiram a esmo,sem pontaria, numa indis-ciplina de fogo que vitimaos prprios companheiros.Seguem reforos. Os mes-mos transes reproduzem-semaiores, acrescidas a con-fuso e a desordem; en-quanto em torno, circulan-do-os, rtmicos, fulminantes,seguros, terrveis, bemapontados, caem inexivel-mente os projetis do adver-srio.

    De repente cessam.Desaparece o inimigo que

    ningum viu.As sees voltam desfal-

    cadas para a coluna, depoisde inteis pesquisas nasmacegas. E voltam como sesassem de recontro brao abrao, com selvagens: vestesem tiras; armas estrondadasou perdidas; golpeados degilvazes; claudicando, es-tropiados; mal reprimindo

    o doer infernal das folhasurticantes; frechados deespinhos...

    Reorganiza-se a tropa.Renova-se a marcha. Acoluna estirada a dois defundo deriva pelas veredasem fora, estampando nocinzento da paisagem o tra-o vigoroso das fardas azuislistradas de vermelho e ocoruscar intenso das baio-netas ondulantes. Alonga-se;afasta-se; desaparece.

    Passam-se minutos. Nolugar da refrega , ento, sur-gem, dentre moitas esparsas,cinco, dez, vinte homens nomximo. Deslizam, rpidos,em silncio, entre os arbs-

    culos secos...

    Agrupam-se na estrada.Consideram por momentosa tropa, indistinta, ao longe;e, sopesando as espingardasainda aquecidas, tomam

    precpites pelas veredas dospousos ignorados.

    A fora vai prosseguindomais cautelosa agora.

    Subjugam o nimo doscombatentes, caminhan-do em silncio, o imprioangustioso do inimigoimpalpvel e a expectati-va torturante dos assaltosimprevistos. O comandan-te rodeia-os de melhoresresguardos: ladeiam-noscompanhias dispersas, pelosancos: duzentos metros nafrente, alm da vanguarda,norteia-os um esquadro depraas escolhidas.

    No descair de encostaagreste, porm, escancela-seum sulco de quebrada que

    preciso transpor. Feliz-mente as barrancas, esteri-lizadas dos enxurros, estolimpas: escassos restolhosde gramneas; cactos es-guios avultando raros, entreblocos em monte; rama-lhos mortos de umbuzeirosalvejando na estonadura daseca...

    Desce por ali a guarda

    da frente. Seguem-se-lheos primeiros batalhes.Escoam-se, vagarosas, as bri-gadas pela ladeira agreste.Embaixo, coleando nas vol-tas do vale estreito j esttoda a vanguarda, armasfulgurantes, feridas pelo sol,feito uma torrente escuratransudando raios...

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    E um estremecimento,choque convulsivo e irre-primvel, f-la estacar desbito.

    Passa, ressoando, umabala.

    Desta vez os tiros par-tem, lentos, de um s ponto,do alto, parecendo feitospor um atirador nico.

    A disciplina contm asleiras; debela o pnicoemergente; e, como ante-riormente, uma seo sedestaca e vai, encosta acima,rastreando a direo dosestampidos. O torvelinhodos ecos numerosos, porm,torna aquela varivel; e ostiros no revelados, porqueo fumo no se condensanaqueles ares ardentes, con-tinuam lentos, assustadores,seguros.

    Anal cessam. Soldadosesparsos pelos pendorespesquisam-nos inutilmente.

    Volvem exaustos. Vibramos clarins. A tropa renova amarcha com algumas pra-as de menos. E quando asltimas armas desaparecem,ao longe, na ltima ondu-lao do solo, desenterra-sede montes de blocos feito uma caritide sinistraem runas ciclpicas umrosto bronzeado e duro;

    depois um torso de atleta,encourado e rude; e trans-pondo velozmente as ladei-ras vivas desaparece, emmomentos, o trgico caa-dor de brigadas...

    Estas seguem desenu-das de todo. Da por diantevelhos lutadores tm pavo-res de crianas. H estre-

    mecimentos em cada voltado caminho, a cada estalidoseco nas macegas. O exrci-to sente na prpria fora aprpria fraqueza.

    Sem plasticidade segue

    numa exausto contnuapelos ermos, atormenta-do no golpear das ciladas,lentamente sangrado peloinimigo, que o assombra eque foge.

    A luta desigual. A foramilitar decai a um planointerior. Batem-na o homeme a terra. E quando o sertoestua nos bochornos dos

    estios longos no difcilprever a quem cabe a vit-ria. Enquanto o minotauro,impotente e possante, iner-me com a sua envergadurade ao e grifos de baionetas,sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeirossintomas da fome, reui retaguarda, fugindo ante odeserto ameaador e estril,

    aquela ora agressiva abreao sertanejo um seio cari-nhoso e amigo.

    Ento nas quadrasindecisas entre a "seca" e o"verde", quando se topamos ltimos os de guano lodo das ipueiras e asltimas folhas amarelecidasnas ramas das baranas,e o forasteiro se assusta efoge ante o agelo iminen-te, aquele segue feliz nastravessias longas, pelos des-vios das veredas, rme narota como quem conhece apalmo todos os recantos doimenso lar sem teto. Nemlhe importa que a jornadase alongue, e as habitaesrareiem, e se extingam as

    cacimbas e escasseiem, nasbaixadas, os abrigos tran-sitrios, onde sesteiam osvaqueiros fatigados.

    Cercam-lhe relaes an-tigas. Todas aquelas rvores

    so para ele velhas compa-nheiras. Conhece-as todas.Nasceram juntos; cresceramirmmente; cresceram atra-vs das mesmas diculda-des, lutando com as mesmasagruras, scios dos mesmosdias remansados.

    O umbu desaltera-o ed-lhe a sombra escassadas derradeiras folhas; o

    araticum, ouricuri virente,a mari elegante, a quixa-ba de frutos pequeninos,alimentam-no a fartar; aspalmatrias, despidas emcombusto rpida dosespinhos numerosos, osmandacarus talhados afaco, ou as folhas dos jus sustentam-lhe o cavalo;os ltimos lhe do ainda

    a cobertura para o ranchoprovisrio; os caros bro-sos fazem-se cordas ex-veis e resistentes... E se preciso avanar a despeitoda noite, e o olhar afogadono escuro apenas lobriga afosforescncia azulada dascumans dependurando-sepelos galhos como grinaldasfantsticas, basta-lhe partir

    e acender um ramo verdede candomb e agitar pelasveredas, espantando as su-uaranas deslumbradas, umarchote fulgurante...

    A natureza toda protegeo sertanejo. Talha-o comoAnteu, indomvel. um titbronzeado fazendo vacilar amarcha dos exrcitos.

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    16 SAMIZDAT outubro de 2011

    Euclides Rodrigues da Cunha

    (Cantagalo, 20 de janeiro de 1866 Rio de

    Janeiro, 15 de agosto de 1909) foi um escritor, so-

    cilogo, reprter jornalstico, historiador, gegrafo,

    poeta e engenheiro brasileiro.

    Nasceu na fazenda Saudade, em Cantagalo (Rio

    de Janeiro), lho de Manuel Rodrigues da CunhaPimenta e Eudxia Alves Moreira da Cunha. rfode me desde os 3 anos de idade, Euclides passaa viver em casa de parentes em Terespolis, SoFidlis e na cidade do Rio de Janeiro. Em 1883ingressa no Colgio Aquino, onde foi aluno de

    Benjamin Constant, que muito inuenciou sua for-

    mao. Em 1885, ingressa na Escola Politcnica e,no ano seguinte, na Escola Militar da Praia Verme-lha, onde novamente encontra Benjamin Constant

    como professor.

    Contagiado pelo ardor republicano dos cadetes e

    de Benjamin Constant, professor da Escola Militar,durante uma revista s tropas atirou sua espada

    aos ps do Ministro da Guerra Toms Coelho. Aliderana da Escola tentou atribuir o ato fadiga

    por excesso de estudo, mas Euclides negou-se

    a aceitar esse veredito e reiterou suas convices

    republicanas. Por esse ato de rebeldia, foi julgado

    pelo Conselho de Disciplina. Em 1888, desligou-se

    do Exrcito. Participou ativamente da propaganda

    republicana no jornal A Provncia de S. Paulo.

    Proclamada a Repblica, foi reintegrado no

    Exrcito recebendo promoo. Ingressou na EscolaSuperior de Guerra e conseguiu ser primeiro-tenen-te e bacharel em Matemticas, Cincias Fsicas e

    Naturais. Casou-se com Ana Emlia Ribeiro, lhado major Frederico Slon de Sampaio Ribeiro,

    um dos lderes da Proclamao da Repblica. Em1891, deixou a Escola de Guerra e foi designadocoadjuvante de ensino na Escola Militar. Em 1893,

    praticou na Estrada de Ferro Central do Brasil.

    Durante a fase inicial da Guerra de Canudos, em

    1897, Euclides escreveu dois artigos intitulados Anossa Vendeia que lhe valeram um convite dO Es-tado de S. Paulo para presenciar o nal do conitocomo correspondente de guerra. Isso porque eleconsiderava, como muitos republicanos poca,

    que o movimento de Antnio Conselheiro tinha a

    pretenso de restaurar a monarquia e era apoiadopor monarquistas residentes no pas e no exterior.

    Em Canudos, Euclides adota um jaguncinho

    chamado Ludgero, a quem se refere em sua Cader-

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    neta de Campo. Fraco e doente,

    o menino trazido para SoPaulo, onde Euclides o entrega

    a seu amigo, o educador GabrielPrestes. O menino rebatizadode Ludgero Prestes.

    Euclides deixou Canudos

    quatro dias antes do nal daguerra, no chegando a pre-senciar o desenlace nal. Masconseguiu reunir material para,

    durante cinco anos, elaborar OsSertes: campanha de Canudos

    (1902). Os Sertes foi escritonos raros intervalos de folga de

    uma carreira fatigante, visto que

    Euclides se encontrava em SoJos do Rio Pardo liderando a

    construo de uma ponte met-lica. O livro trata da campanhade Canudos (1897), no nordeste

    da Bahia. Nesta obra, ele rompe

    por completo com suas ideias

    anteriores e pr-concebidas,

    segundo as quais o movimento

    de Canudos seria uma tentativa

    de restaurao da Monarquia,comandada distncia pelos

    monarquistas. Percebe que se

    trata de uma sociedade comple-

    tamente diferente da litornea.De certa forma, ele descobre o

    verdadeiro interior do Brasil, que

    mostrou ser muito diferente da

    representao usual que dele setinha. Euclides se tornou inter-

    nacionalmente famoso com a

    publicao desta obra-prima quelhe valeu vagas para a Academia

    Brasileira de Letras (ABL) e

    Instituto Histrico e Geogrco

    Brasileiro (IHGB). Divide-se emtrs partes: A terra, O homem e Aluta. Nelas Euclides analisa, res-

    pectivamente, as caractersticas

    geolgicas, botnicas, zoolgicas

    e hidrogrcas da regio, a vida,os costumes e a religiosidade

    sertaneja e, enm, narra os fatosocorridos nas quatro expedies

    enviadas ao arraial liderado por

    Antnio Conselheiro.

    Em agosto de 1904, Euclides

    foi nomeado chefe da comis-

    so mista brasileiro-peruana dereconhecimento do Alto Purus,

    com o objetivo de cooperar para

    a demarcao de limites entre o

    Brasil e o Peru. Esta experinciaresultou em sua obra pstuma

    Margem da Histria, ondedenunciou a explorao dos se-ringueiros na oresta. Ele partiude Manaus para as nascentes dorio Purus, chegando adoentado

    em agosto de 1905. Dando con-

    tinuidade aos estudos de limites,

    Euclides escreveu o ensaio Peru

    versus Bolvia, publicado em

    1907. Escreveu, tambm duranteesta viagem, o texto Judas-Ahs-

    verus, considerado um dos textos

    mais losca e poeticamenteaprofundados de sua autoria.

    Aps retornar da Amaznia,

    Euclides proferiu a confern-cia Castro Alves e seu tempo,

    prefaciou os livros Inferno verde,de Alberto Rangel, e Poemas e

    canes, de Vicente de Carvalho.

    Visando uma vida mais estvel,o que se mostrava impossvel na

    carreira de engenheiro, Euclides

    prestou concurso para assumir

    a cadeira de Lgica do Colgio

    Pedro II. O lsofo Farias Britofoi o primeiro colocado, mas a

    lei previa que o presidente da

    repblica escolheria o catedrticoentre os dois primeiros. Graas

    intercesso de amigos, Euclidesfoi nomeado. Depois de sua mor-te, Farias Brito acabaria ocupan-

    do a ctedra em questo.

    Foi eleito em 21 de setembro

    de 1903 para a cadeira 7 da Aca-demia Brasileira de Letras, na

    sucesso de Valentim Magalhes,e recebido em 18 de dezembro

    de 1906 pelo acadmico Slvio

    Romero.

    Sua esposa, mais conhecida

    como Anna de Assis, tornou-se

    amante de um jovem tenente,

    17 anos mais novo do que ela,

    chamado Dilermando de Assis.

    Ainda casada com Euclides, tevedois lhos de Dilermando. Umdeles morreu ainda beb. O outrolho era chamado por Euclidesde a espiga de milho no meio

    do cafezal, por ser o nico

    louro numa famlia de morenos.

    Aparentemente, Euclides aceitou

    como seu esse menino louro.

    A traio de Ana desencadeouuma tragdia em 1909, quando

    Euclides teria entrado na casa deDilermando, armado, dizendo-

    se disposto a matar ou morrer.

    Dilermando reagiu e matou-o.

    Foi julgado pela justia mili-

    tar e absolvido. Entretanto, at

    hoje o episdio permanece em

    discusso. Casou-se com Ana. Ocasamento durou 15 anos.

    Este artigo ou seo foi marca-do como controverso devido s

    disputas sobre o seu contedo.Por favor tente chegar a um

    consenso na pgina de discus-so antes de fazer alteraes aoartigo.

    O corpo de Euclides foi veladona Academia Brasileira de Le-

    tras. O mdico e escritor AfrnioPeixoto, que assinou o atestado

    de bito, mais tarde ocuparia sua

    cadeira na Academia. Encontra-

    se sepultado no Cemitrio SoJoo Batista no Rio de Janeiro.

    Fonte: Wikipdia

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    Joaquim Bispo

    DesdmonaContos

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    Quando Iago chegoua casa, a mulher, Emlia,apressou-se a dar-lhe asnovidades:

    J se comea aperceber muito bemqual vai ser o aspe-to nal do retrato daminha senhora. Ela estdeitada num leito, todanua, e do alto tombauma chuva de ouro. Aolado da cama, h uma

    velha que tenta apa-nhar algum desse ouro.

    Mestre Ticiano diz queo conjunto representaa gura mitolgica deDnae, engravidada por

    Jpiter sob a forma dechuva dourada.

    Excelente! rejubi-lou Iago. Quando vol-ta Desdmona a posar?

    De hoje a uma se-mana. A minha senho-ra no quer dar azo aque o marido desconede nada.

    Ah! Mal posso espe-rar para insinuar in-dignidades aos ouvidosde Otelo, congeminavaIago. Se eu for bastante

    persuasivo, Desdmonaser repudiada e no -car em posio de serinsensvel aos avanosde Rodrigo.

    Uma semana depois,em casa de Otelo, estedesvenda a Iago alguns

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    dos aspetos militaresque o preocupam:

    O Turco est cadavez mais atrevido. Ve-neza est a pontos deperder Chipre e at dedeixar de ser senhorado Adritico. O Conse-lho est a ultimar umaaliana com o Papa ecom Filipe II de Espa-nha. Se esta alianaconseguir reunir umagrande armada, parti-remos, a confrontar os

    asquerosos otomanos,nem que tenhamos delhes dar batalha nascostas da Grcia. Pen-sativo, continuou: Notemo a batalha, masconstrange-me cartanto tempo longe daminha adorada.

    Podeis ir descan-

    sado que ela no sesentir infeliz, isto gaguejava Iago ter ocorao choroso, mastudo faremos para queno pense muito em

    vs, isto , que se dis-traia e s pense emcoisas agradveis, isto ,outras que no vs.

    Meu bom Iago esclarecia Otelo elacar bem com certeza,mas vs ireis comigo.No vos esqueais quesois o meu alferes.

    Sim, car bem.Disso no duvido. Fica-

    r at muito bem. Noque eu tenha algumanotcia que vs nosaibais

    Que quereis insi-nuar? espevitava-se ogeneral. Que sabeis,que eu no saiba?

    Eu? Nada. Faleipor falar. E mesmo quesoubesse espicaavaIago jamais a minhaboca se abriria paradenunciar a senhora daminha esposa.

    A maneira comofalais parece indicarque algo menos hon-roso se passa. Pelaobedincia que medeveis, dizei: o que sa-beis? impacientava-seOtelo. E no temaispela vossa esposa, quesempre ter dalgas a

    quem servir. Se assim me inti-

    mais condescendiaIago s vos possocondenciar que Des-dmona se tem encon-trado com um velho, aquem se expe comoDeus a deitou ao mun-

    do. No sei por que ofaz, se por lascvia, sepor comrcio.

    Qu? esbrace-jou Otelo, sentindo-seatraioado. Pois elaentrega-se a outrem?Provai o que dizeis oudespedi-vos da vida.

    No mateis o men-sageiro, senhor! Pergun-tai antes vossa amadaonde vai todas as sema-nas, neste dia.

    Sim, sim, chamai-aj, que quero esclarecereste caso!

    intil cham-la devolvia Iago porqueneste momento est elaa ser acariciada peloolhar de Mestre Ticia-no na Scuola Grandede S. Rocco. Parece que

    o Mestre tem predile-o por corpos jovense manifesta mesmoalgum entusiasmoquando os seus pincisacariciam a superfcieda pintura, talvez fan-tasiando que acaricia aprpria pele branca esedosa de vossa esposa.

    Pintura? Ticiano?Mas, pelas bombardasde popa, o que queo velho quer de minhamulher? surpreendia-se o general.

    Os velhos, s vezes,so os piores apro-

    veitava Iago. Ele est

    a retratar vossa esposacomo Dnae, engravi-dada pela chuva doura-da de Jpiter. Isto noparece muito decoroso.

    Oh, com mil raiosda procela, que indig-nidade! Vou expor essequadro na praa de S.

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    Marcos, para que Vene-za abomine essa devas-sa.

    De regresso a casa,

    Desdmona v-se con-frontada com a ira domarido:

    Muito folgo de vosver vestida ironizouOtelo. Tanto quantosei, ainda h pouco ofe-receis o vosso corpo lascvia dos olhares dequem o deve conhecer

    melhor do que eu.Desdmona quedou-

    se muda e de olharperplexo. Olhou em

    volta procura dacriada que lhe recusouo olhar.

    Contai-me vs continuou Otelo por

    que vos expondes nuaao olhar de Ticiano! Nua? contraps

    Desdmona. Nun-ca Mestre Ticiano viuo meu corpo. O meurosto aparece num cor-po nu, mas esse corpofoi o que escolhi, numconjunto de desenhose gravuras que Mestre

    Ticiano me deu a esco-lher, quando contratei afeitura do meu retrato.S vou a S. Rocco paraque ele retrate o meurosto aplicado ao corpo

    escolhido.Agora, era a vez de

    Otelo car sem pala-vras. Mas, logo quissaber:

    Anal, por quebizarria andais nessasandanas? Por qu esseretrato?

    Era para ser umsegredo explicouDesdmona, voltandoa passar o olhar porEmlia. Vai fazer umano que eu e vs nosunimos pela carne. Essaunio do vio duma

    jovem como eu, com afora de um deus como

    vs, fruticou. Estougrvida. Sim, grvida conrmou sorridente,perante o olhar as-sombrado do marido. Quis fazer-vos umasurpresa e oferecer-vosuma imagem alegricaque evoque, todos osdias, esse primeiro en-contro dos nossos cor-

    pos, e o que dele resul-tou. O tema de Dnaefoi ideia de Ticiano.

    Otelo cou um boca-do em estupor. Depois,berrou:

    Iago! Estareis sem-pre na proa do barcodianteiro. Quero queos otomanos quema conhecer as vossasfeies. Podeis preci-sar dessas amizades noInferno!

    Caprichosamente,quem no voltou da ba-talha foi Otelo, trespas-sado por uma bombar-da turca. Desdmona,desgostosa, no resistiu perda do seu amado.O seu corpo foi encon-trado a boiar no Canal

    Grande. O quadro, noqual ela punha tantoempenho, acabou por irparar a Madrid, ofereci-do por Ticiano a FilipeII, em agradecimentopelo apoio militar aVeneza.

    Joaquim BispoEx-tcnico de televiso, xadrezista e pintor amador,

    licenciado recente em Histria da Arte, experimentaagora o prazer da escrita, em Lisboa.

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    Morro vermelhoMaria de Ftima Santos

    Contos

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    Ele designara a tardecomo uma tarde muitofria e hmida.

    E a dizer isso, seguiraadiante deixando MariaTeresa pespegada na ber-ma do passeio.

    Seis passos. Jos Augus-to tinha-os contado.

    Est uma tarde muitofria e muito hmida eeu sinto-me incapaz decontinuar a passear con-tigo, de mo dada, comose estivesse outro tipo de

    tarde.Assim dissera ele e, j

    a afastar-se, contara comose dissesse uma cegarre-ga: um, dois, trs, quatro,cinco. Jos Augusto con-tou seis passos a andar dearrecuas, e a olhar paraMaria Teresa.

    Ela enrolada no ca-saco de malha tinha onariz vermelho de estarmuito frio. Tinha tam-bm vermelhas as pontasdos dedos que Jos Au-gusto foi deixando de terpresos na sua mo.

    E ainda nem ele tinhaterminado o primeiro

    passo, Maria Teresa per-guntou:

    Querias que estivesseuma tarde primaveril?com andorinhas a faze-rem barulho?

    E quando Jos Augus-to estava a dar balano

    para o segundo passo, ja mo dela cara depen-durada no vazio da rua,Maria Teresa acrescia,em tom de espanto e desplica:

    Era uma tarde des-sas que te apetecia, JosAugusto?!

    Ela a pronunciar-lheo nome num tom comose rezado, e o som daspalavras a vibrarem va-pores no ar da tarde, queera realmente uma tarde

    muito fria.E foi s depois de ter

    completado o sexto passo,que Jos Augusto seguiupelo passeio sempreem cima do passeio queladeava a rua ao longo dorio.

    E Jos Augusto estugouo passo a esforar-se porno pensar que ela cavatiritando ao frio daquelatarde.

    Maria Teresa cou aolh-lo, a olh-lo. Ela aolhar o movimento dohomem a afastar-se.

    No havia vivalma.No havia uma rstia de

    sol. Estava um cu des-cido sobre o rio comocolcha numa janela emm de procisso.

    E ela a olhar.

    J nem era Jos Augus-to que Maria Teresa vial ao fundo: o que ela via

    http://www.ickr.com/photos/sinkdd/5557084396/

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    no era seno uma coisaindo. Uma coisa do ta-manho das formigas queapareciam na borda dabanheira.

    Era aos domingos.

    Maria Teresa, sem ternamorado, e nem umaamiga com quem fosse auma matin, com quemdesse um passeio a ver asvistas sobre o rio.

    E ela abria a tornei-ra da gua quente e atorneira da gua fria, e

    deixava que a banheiraquase transbordasse, quea casa de banho casseum nevoeiro, e s depoisse metia l dentro, nua-zinha. E cava-se demo-lhando, a ler uns pedaosde revista que tambmamoleciam. Ou cavaa imaginar estrias nos

    desenhos que a gua fazianos azulejos.

    Ela a ver Jos Augustocar cada vez mais pe-quenino e o frio a entrar-lhe por baixo da saia.

    Um dia estivera por alisem meias. Fazia um friodanado.

    Fora quando? Nem selembra.

    Mas lembra-se que JosAugusto lhe desprendeuo cinto-ligas, com movi-mentos de ter dito: pre-cisas disto? E lembra-sedele a rir-se. Ele que lheenrodilhava a saia de a-

    nela em azul-escuro comorinhas roxas. E lembra-se que foi como se esti-vesse saindo da banheira:ela hmida e quentinha ea sentir o frio em roda. E

    Jos Augusto a encostar-se, a empurrar o corpodele sobre o corpo delacomo se fosse para quelhe desse o calor que lhetirava a subir-lhe aindamais a saia. Ele com asduas mos nas suas n-degas, ele com as duasmos a abarcar-lhe cada

    um dos seios. Umas mosmuito quentes, e JosAugusto a encostar-seuma vez e outra. MariaTeresa ainda disse nemse lembra bem o que terdito, ela que estaria inde-cisa, que nem saberia seera mesmo o que queria.Ela talvez tenha dito: estquieto, no faas isso, eno entanto a colocar asmos que as mos deMaria Teresa estariam ge-ladas debaixo da cami-sa dele.

    Maria Teresa e JosAugusto a rodarem ges-tos desconhecidos.

    E fosse o que fosse queela tenha dito, nem terproferido sequer uma pa-lavra que detivesse aque-les gestos, que detivesseos movimentos: o corpodele e o corpo dela, cadavez mais entregues.

    E nessa tarde, naquele

    recanto do rio, por baixoduma ponte, o cu tinha-se tingido das cores doarco-ris. Era num diade muito frio, tal e qualcomo o de hoje, e foram

    Maria Teresa e Jos Au-gusto.

    Tinha sido quando?

    Maria Teresa a ver JosAugusto como se fosseuma das formigas queapareciam na borda dabanheira, tenta equilibrar-se na berma do passeio

    como se, de um lado ede outro, fosse um pre-cipcio. E no era, queMaria Teresa via muitobem que era asfalto eempedrado. E, no entanto,sabia que se sasse daque-le debrum de cimento,cairia pela escarpa abai-xo, rebolaria de tojo em

    tojo, a saia a rasgar-se nospicos, a cabea em riscode partir-se contra umpedregulho. Maria Teresasabia que s pararia sehouvesse um monte deterra enorme, uma coisadescomunal em tons devermelho: a queda dela aser amortecida por um

    morro de formigas.E nem era o que se

    dava, que Maria Teresa seequilibrava muito direita.

    Ela a olhar xamentea imagem, que j quaseno era objecto, j nemera o Jos Augusto que

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    a deixara pespegada nopasseio. O que ela viaestava quase a car ape-nas a ideia do que tinhasido: Jos Augusto a dizerque estava sem vontade

    de passear de mo dadacom ela ao longo do rionuma tarde fria e h-mida. Jos Augusto quetinha contado seis passosenquanto lhe ia largan-do a mo a dizer-lhe atnunca mais sem lhe dizersequer uma palavra.

    E ele tinha-se afastadosem nunca se virar paratrs, sem um aceno, al-gum gesto que pudessequerer dizer ainda somos.

    Jos Augusto a carainda mais diminuto doque as formigas, que aessas Maria Teresa via osolhos e as antenas e as

    patitas. Dele apenas via,na contraluz da tarde,um borro de cor inde-nida. E nem podia dizerse era preto ou se seriacastanho. Que ser verdeazeitona era apenas se elazesse o esforo de re-cordar a cor do sobretu-

    do que ele tinha vestido,que tambm era a cor dochapu de feltro que JosAugusto trazia em cimado vermelho do cabeloque ele usava cortado

    muito rente.E Maria Teresa j nem

    olha seno a ta de estra-da e o passeio ao longodo rio.

    O que ainda fosse ocorpo de Jos Augusto,tinha sido sugado nalomba que se dava antes

    de comear a Ponte Nova.Jos Augusto engolidopelo ligeiro declive. Aptica e a geograa a fa-zerem partidas ao sentidoda viso de Maria Teresa.

    Foi s ento que lhedescaiu o p direito daborda do passeio e Ma-ria Teresa foi rebolando

    encosta abaixo.E quando estava j en-

    costada terra do morrode formigas, s e salva,Maria Teresa percebeuque nunca mais diriaamo-te quele homem.

    E ao ter tomado cons-

    cincia disso, MariaTeresa deixou soltar umalgrima. Mas nem deixouque escorresse cara abai-xo.

    Limpou a lgrima coma manga e tartamudeou,a enfrentar o facto:

    Pronto, j no tenhonamorado.

    E ao constatar que eratal e qual como haviadito, depois de se ouvirmurmurar: acabou tudo,Maria Teresa parou de

    se tentar equilibrar naborda do passeio.

    Sentou-se. Calcou osdois ps no asfalto tantoquanto calcou os cotove-los nos joelhos, e com asaia espalhada no empe-drado do passeio, deixoua cara descair entre asmos roxas do frio quefazia nessa tarde.

    Maria Ftima Santos

    Nasceu em Lagos, Algarve, Portugal em 1948. Viveu a adolescncia em Angola e reside em La-gos. Licenciada em Fsica, aposentada de professora do Ensino Secundrio. J participou naSAMIZDAT e por afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas antologias, e publicouem Janeiro de 2009 um livrinho com pequenas histrias, aquelas que lhe voam no teclado:Papoilas de Janeiro o ttulo, com ilustraes de TCA do blogue http://abstractoconcreto.blo-gspot.com/ Muito material est publicado nos blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tristeabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vo fazendo vida.Escreve pelo gozo

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    O sol atravessou apersiana e pousou sobreas plpebras cerradas deImmanuel.

    Persianas? Desde quan-

    do havia persianas emseu quarto? Immanuelpensou, ao despertar va-garosamente.

    Ajeitou-se e tateou olado direito da cama.

    Elena? mas a es-posa no estava ali.

    Na penumbra do quar-

    to, enquanto sua vista sehabituava pouca clari-dade, ele no reconheceuos mveis, nem o prprioquarto.

    Levantou-se e ergueu acortina. O mundo l foraera estranho, desconheci-do multido, templos etrnsito catico.

    Onde estava?As roupas dependu-

    radas na poltrona noeram suas, mesmo assim,

    vestiu-as e serviam-lheperfeitamente.

    Sobre a pequena mesada cozinha, um molhode chaves. Apanhou-o,

    penteou os cabelos e saiupara um corredor quenunca antes vira. Desceuas escadas e mergulhouentre as pessoas de fei-es asiticas.

    Onde estava?No compreendia a

    lngua, no sabia se orien-

    Estranha VidaHenry Alfred Bugalho

    Contos

    http://www.

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    tar. Podia estar na Tai-lndia, em Bangladesh, naBirmnia, na Indonsia...Podia at estar em algumdaqueles remotos estadosindependentes da Rssia,

    na ndia ou Filipinas. Nosabia.Na noite anterior, esta-

    va em sua casa, confort-vel, nanciada em vinteanos, na sua cama, comsua esposa, os lhos dor-mindo no quarto ao lado.No dia anterior, estava noescritrio, aguentando opatro insuportvel, os te-lefonemas interminveis,o caf intragvel.

    Mas, hoje, nada distohavia. Sem saber, sem dar-se conta, havia viajadomilhares de quilmetrospara uma terra longnqua,estava desentranhado,arrancado de seu mundohabitual.

    Teve medo.Parou um transeunte,

    segurando-o pelo brao. Onde estou? per-

    guntou, mas os olhosimbecis lhe devolveramincompreenso.

    Caminhou pelas ruasfrenticas, pelos merca-

    dos e becos. No queriase perder, mas precisava

    descobrir o que haviaocorrido durante a noitede sono.

    Ser que o haviamdopado, jogado-o numavio e posto-o naquele

    apartamentinho? Talvezo ontem de sua memrianem houvesse sido ontem,talvez fossem dias atrs,ou meses, ou anos. Quemsabe estivera em comadurante este perodo?Sofrera algum acidente eperdera a memria? Seriaele quem pensava ser?

    Encontrou um telefonepblico e puxou algumasmoedas do bolso. Ligariapara casa e resolveria esteproblema. Ligaria paracasa, falaria com a esposae, em breve, estaria nova-mente entre os seus.

    Primeiro, no conse-guiu completar a ligao,depois, uma mensagemautomtica, em sua ln-gua, indicava:

    Este nmero noexiste. Por favor, consultea lista telefnica.

    Desesperou-se. Haviase esquecido do telefonede casa, ou seria algumproblema com a telefo-nia?

    Retirou a carteira do

    bolso interno do palet econferiu seus documen-tos. No passaporte, a fotoera sua, mas o nome no.Constava que era de umpas em que nunca havia

    posto os ps. Coou a ca-bea. Na vitrine de umaloja, mirou-se por vriosminutos.

    Quem sou eu?Mais tarde, retornou ao

    seu quarto, sentou-se nabeirada da cama e tapouo rosto com as mos.

    Durante anos, sonhou

    com o dia em que serialivre, em que poderia via-jar o mundo e viver aven-turas incrveis. Este diahavia chegado, mas eleno se sentia feliz; esta talliberdade o incomodava.Era demais para ele.

    Encolheu-se na cama echorou quietinho, como

    quando era criana e tro-vejava l fora.Uma nova vida seu

    maior desejo lhe haviasido concedida, mas Im-manuel no sabia o quefazer com ela.

    Era uma vida estranhademais.

    Henry Alfred BugalhoFormado em Filosoa pela UFPR, com nfase em Esttica. Especialista em Litera-

    tura e Histria. Autor de O Canto do Peregrino (Editora Com-Arte/USP), de outrosquatro romances e de duas coletneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fun-dador da Ocina Editora. Autor do livro best-selling Guia Nova York para Mos-de-Vaca, cidade na qual morou por 4 anos. Est baseado, atualmente, em Buenos Aires,com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

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    Joo Francisco Dantas

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    Grande Pratohttp://www.ickr.com/photos/bealluc/293460046/

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    A ideia veio de Grande:construir a mquina efaz-la funcionar. Comoeu disse, a ideia veio deGrande, mas a realizao,no. Grande era o cara

    das ideias e para ns erasuciente que ele conti-nuasse assim. Prato erao cara do fazer. GrandePrato: dupla dinmica.

    Eu no fao parte des-sa histria como atuante.Observei tudo e anoteialguns acontecimentos.

    Minha memria est ve-lha. Tenho 40 anos. Nodigo que a minha me-mria est velha por noconseguir mais lembrardas coisas, mas que elaest velha por que essamemria, a da constru-o da mquina, no meacompanha mais.

    O mais engraado que todos me procurampara saber se a mquinafoi construda ou no. Eusempre digo: no lembro.Os mais jovens, que souviram a histria pelosfeitos que foram realiza-dos para a construo damquina, so os que maisse decepcionam quandoouvem a minha negativa.No posso culp-los. Aprpria escola no con-segue esquecer o fato.A cidade no consegueesquecer. O mundo noconsegue esquecer. Paraeles sou uma aberrao.

    Todos que me ouvemargumentam: mas soapenas vinte anos... Vin-te anos muito tempoquando se viveu algo.Cada dia se acumula de

    tantos detalhes costura-dos que quando se parapra pensar no se conse-gue mais perceber qualo desenho do bordado.Minha mulher que fazumas coisas meio assim.Faz, faz, faz e quandov, no tem mais o queolhar. Melhor se afastare ver de longe. Tudo calindo. Ela vende e fazsucesso.

    Sobre a mquina... Erao que de melhor umamente pode pensar. En-graado dizer isso dealgo que no se sabiapara que servia. Alis,

    os dois sabiam: GrandePrato. No caderninho queeu tinha, anotava algo doque eles diziam. Hoje soaquase que como uma falasagrada: fazer o molde dopedao do esprito que ouniverso deixou aqui; unaas partes que as vontadesnos deram, mas una do

    lado de baixo, vontade dolado de cima algo queno serve.

    Vez por outra, minhamemria de tanto serespremida d alguns pe-daos de histria. Nessemomentos, eu anoto nomesmo caderninho. Mas,

    ele no serve de verdade.No caderninho s tem oque eu sei, o que eu senti.Se isso servisse para osoutros, j tinha dado elepara o primeiro que me

    perguntou.Lembro que eu vi a

    ideia da mquina apare-cer. Grande estava sen-tado e olhava uma placabranca. Era dolorido ver abrancura da placa. Est-vamos debaixo de sol. Delonge, a placa parecia de

    outro mundo. Ele foi atela. Era horrvel de se veraquele homem, grande,corpulento, movimentan-do os braos e ferindo aclaridade. Com uma pe-dra vermelha, ele riscavae aos poucos foi fazendoa brancura ganhar veias.

    Ele comeou pelo alto,

    desceu at o meio, segu-rando a pedra com asduas mos. Parecia fazerum sacrifcio. Pareciaestar imolando a placaa algum deus de dentrodele. Com as duas mosmoveu a pedra para a es-querda. Tal um pai nosso,levou a pedra para a di-reita e ali descansou. Umcrculo bem ao centro.Na direita ao alto reco-meou a descer. Pareciase movimentar em buscade nada.

    Eu, que estava apenas aalguns metros de distn-

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    cia, me senti atrado poraquilo. O que aquele ho-mem fazia com as mosera um ritual. E naquelemomento, era permitidoa mim ver a cara de um

    deus. Ou, pelo menos, amanifestao desse deus.

    Riscos e riscos e riscose riscos... E todo aque-le movimento ia de umlado a outro sem unidadeaparente. Era-me permiti-do perceber que a ordemno era a que este mun-

    do queria, mas a ordemque em Grande conse-guia se manifestar.

    Pssaro, macaco, ona,uma mistura de todasessas coisas? Isso quemviu no conseguia denir.O desenho era algo queestava alm e assim con-tinuou. No houve por

    parte de Grande a von-tade de guardar aquilo.Ficava exposto no mesmolocal onde havia sidoconcebido.

    Prato viu o desenho. essa poca, Grande ePrato no se conheciam.Falei que eles eram uma

    dupla dinmica. Querodizer que se tornaram,ou na verdade, eu meconfundi. Parece que elesnunca se conheceram.Essa mania de lembrardos dois juntos e dechamar o tempo inteirode Grande Prato que

    me confunde. Bem, eles...Eles... Eles zeram aquilo.Fizeram a mquina. Isso o que importa.

    Prato construiu e isso,eu vi. Esse homem viuo desenho l, na placa,ainda debaixo do sol. Euestava sentado no mesmolugar. E da mesma for-ma que alguma coisa meatraiu para ver Grandedesenhando, alguma coisame atraiu para ver Pratoconstruindo. No teve

    palavra. No teve pergun-ta sobre o que era aque-le desenho. No houvepergunta por quem dese-nhara.

    Prato viu. Pegou aprimeira rama de capimseco que tinha a frentee comeou a montagem.Parou quando o mato

    seco acabou. Mas, noparou denitivamente,ainda levaria muitos diaspara construir aquilo.

    Ferro, bambu, cimento,tecido, plstico. A cadadia a mquina recebiaum material diferente. Eao olhar aquilo tomando

    forma, no parecia ser deoutra forma que a m-quina deveria ser cons-truda. Em Prato, com opassar do tempo, eu vioutro deus se manifestan-do. No era algo para seperceber, como em Gran-de. Era algo que se sentia

    aos poucos. No ato doentranar, no martelar, nosoldar, no amarrar.

    Aquele homem, cons-trua com calma, comvagar. Era algo secreto.Algo que uma coisa queestava dentro de um e deoutro tinha necessidadede fazer aparecer.

    A construo pareciaum bal. Prato caminha-va com passos curtospara a parte superior edescia, como que ven-

    do na placa uma plantabaixa. Talvez, sentindoa fora dos movimentosde Grande, caminhavapara a esquerda e depoispara a direita refazendoo sinal da cruz. Ele subiue realizou o crculo aocentro. Parecia seguir aspegadas do outro, mesmo

    sem a sua participao.Grande viu Prato cons-

    truindo. Assistiu, tam-bm, como eu a mate-rializao do algo queestava ncado na placa.Interessante perceber queeles no se falavam. Nohavia interesse nenhum

    em conversar. No seolhavam. No havia oporqu, eu entendi de-pois. Eles se entregaramaquilo como algo quefosse superior. Falei queGrande realizava umritual. Prato realizava ou-tro. O primeiro era como

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    uma missa. O outro eracomo a vida.

    No lembro. Simples-mente, no lembro mais.Falei tudo isso, mas sem-pre amparado no meucaderninho. Pro outros,isso parece uma coisaque no se pode esquecer.Eles no se deixam es-quecer. E eu, pareo fazerquesto de esquecer. Naverdade, no fao questode lembrar.

    Ficou pronto. A m-

    quina cou pronta. Eraalgo de uma beleza queparalisava. Lembro quea cidade, que foi tomadapela curiosidade, estava lquando a mquina coupronta. Desse dia, lembroisso: camos parados porvrias horas esperandoque a mquina comeas-

    se a fazer alguma coisa.Olhando de hoje, pareca-mos um bando de ridcu-los. O que espervamos?

    Aos poucos fomosindo embora. Cada um,decepcionado ao seumodo, foi deixando paratrs aquilo. Eu quei por

    ltimo. Ouvia cada umdos comentrios: Gran-de Prato sem utilidade,Grande Prato vazio, Gran-de Prato emborcado. E euria. Grande Prato. Eu riomuito hoje quando pen-so que eu me alimenteinaquele Grande Prato. Eu

    senti os gostos que eleproporcionou.

    A mquina foi abando-nada. Foi-se desfazendoe seguindo seu prpriorumo. H alguns anos, olocal sofreu um incndioe o que ainda sobrava damquina era cinza, metalretorcido e mais nada. um local por onde sepassa e no se conseguemais imaginar qualquercoisa outra no lugar. Nemeu, nem quem tem algum

    apreo a histria diga-se de passagem que acidade tem isso comouma grande brincadeira consegue pensar o lugarde outro jeito.

    Meu Deus. Eu lembrodisso. Eu lembro isso.No fao questo delembrar mais do que isso.

    Isso basta. Meu cader-ninho est cheio dessasimpresses. Apenas im-presses, pois no lem-bro. Desculpem tantosno lembro, mas no houtra coisa que eu pos-sa dizer. Como eu disse,minha memria velha.So tantas coisas costu-radas que s olhando delonge que o bordado bonito.

    Um detetive...

    Uma loira gostosa...

    Um assassinato...

    E o pau comendo entreas mfas italiana e

    chinesa.

    O COvildo

    inOCentes

    www.covildosinocentes.blogspot.com

    download

    grtis

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    Contos

    Lo Borges

    Invisibilidades

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    As pessoas estavam ali,mas Soraia no identi-cava mais seus rostos.No lugar deles, borres.Mesmo angustiada, achoumelhor no contar para

    ningum o problemaque ora lhe aigia, a noser para o amigo Lico, ogrande condente. Curio-samente, ele e Xavier oprincipal fantoche doteatrinho escolar eramos nicos cujos rostos ain-da se mantinham ntidospara a menina.

    As notas baixas, con-versar com pessoas quevoc no conhece, nofazer o que seus pais man-dam na hora em que elesquerem. isso que estte machucando, Soraia. Opassar do tempo ajudarna cura, mas voc precisa

    respeitar o que seus fami-liares determinam diziaLico, sempre muito pa-ciente.

    O tempo passava, maso incmodo persistia.Para suas colegas, o olharutuante de Soraia nasconversas signicava sub-misso. E elas passavam a

    tripudiar, utilizando a co-nhecida crueldade infantil.

    Soraia minha escra-va. Ela cega e faz o queeu quero!

    Os pais davam pou-ca importncia para osnovos cacoetes da lha;no viam que a vontade

    http://www.ickr.com/photos/dylaphant07/15812796/

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    dela de assistir as aulasdiminua devido a umestranho transtorno vi-sual. Tambm ignoravamque as professoras, e seusfantasmagricos rostos

    esmaecidos, passavam aassustar Soraia mais doque tudo.

    Se o boletim vier bai-xo vamos ter que conver-sar era o que o pai selimitava a dizer.

    O ter que conversarquase sempre evolua

    para tabefes, mas, de acor-do com Lico, tal tratamen-to severo era necessriopara o amadurecimento;explicava que era atravsdele que as preguias edesobedincias sumiriam.

    Melhorar as notas noespao amedrontador emque se transformara a

    escola, entretanto, vinha setornando uma tarefa di-fcil. Para ela, tal lugar sera interessante por causados fantoches em espe-cial, o acolhedor Xavier.

    O pequeno espetculoldico, montado aps aaula, se resumia numa

    cortina separando ummanipulador que, com asmos vestidas com panoscoloridos em formato derostos, mexia efusivamenteos mamulengos, contandohistrias e passando astradicionais orientaesde comportamento.

    Agora, crianas, va-mos desenhar as pessoasque amamos disse aprofessora, retirando-a dosdevaneios com o teatri-nho.

    Soraia perdeu algumtempo reetindo sobreuma pergunta aparen-temente fcil. Quem elaamava? Os pais? Os sa-fanes que levava talvezfosse a melhor demons-trao de amor por partedeles, um mtodo ecazde educao: nossa lha um primor de disciplina!.Desenharia os pais.

    Letcia e Carol. Emboraridicularizassem a doenaque acometia Soraia, eramamigas prximas. Falavammal de outras colegas, eat dela prpria, mas isso,a fofoca com sarcasmo,

    era justamente a maiorgraciosidade de ambas.Linhas onduladas repre-sentariam Letcia e Carol.

    Lembrou-se tambm dotio Joo, aquele que traziabombons. Uns minutinhosde ateno era a nicacoisa que ele pedia emtroca. Tio Joo contava

    histrias no sof, mas noapenas isso. Embora nomais enxergasse o rostodo homem, as mos dele,que usualmente lhe afaga-vam a nuca e tambm aspernas, transmitiam umamor que no permitiadvidas. Soraia teve certe-

    za de que amava o tio e,por isso, tambm deveriacoloc-lo no papel.

    Mas, percebia que nopoderia deixar de foraamor to genuno quantoo que sentia por Lico, oamigo orientador, e Xavier,o fantoche conselheiro.

    Soraia, o que isso?So seus familiares? Vocdesenhou um amontoadode listras, mas no olhos,boca, nariz... disse aprofessora, analisando o

    desenho.Soraia receou que a

    educadora a considerasseuma estpida.

    Fiquei com medo deerrar, tia.

    Mas, voc desenhoudois rostinhos aqui nocanto. Quem so?

    O Xavier e o Lico. O que representam?

    Meus melhores ami-gos. So eles que me aju-dam a enxergar.

    Enxergar pensou aprofessora. Falei paradesenhar pessoas queamamos e essa aqui me

    desenha oftalmologistas. Tudo bem, Soraia.

    Voc deve gostar tantodos seus parentes, queno saberia desenh-loscom exatido. Mas os doisa at que deram belosrabiscos.

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    O nervosismo fez comque Soraia, olhando parao cho, concordasse.

    Ateno, crianada!Hora da apresentao dosbonecos mamulengos! comunicou um dos inspe-tores de rosto esbranqui-ado do colgio.

    O corao da meni-na vibrava com aquelemomento. As crianas seamontoavam para ver osfantoches, mas nenhumatinha tanto carinho com

    eles quanto Soraia. Naque-la tarde, porm, um sustogrande: um dos olhos deXavier na verdade, osbotes de alguma roupa estava faltando. Estariaela deixando de enxergara face dos ltimos amigosvisveis?

    O que aconteceu com

    seu olho? perguntouuma criana mais atirada.

    Ai! A Adelaide o ar-rancou de mim!

    Enquanto algumascrianas riam do vazio norosto do boneco, Soraiasentiu uma agonia pro-funda, como se, com essa

    nova aparncia disforme,a cumplicidade entre elescomeasse a desapare-cer, ou pior, como se sua

    doena desse um sinal deavano.

    Arranquei mesmo!Falei para ele no falarcom estranhos e ele noquis saber. Ento, perdeuo olho!

    A Adelaide est certa!Tenho dois olhos gran-des para enxergar meusamigos, para ver bem orelgio e no me atrasarem meus compromissos!Quer dizer, agora s tenhoum, mas quando voltar a

    ter dois, a que no meatrasarei mesmo!

    Soraia no falava comestranhos, mas lembrou-sede sua impontualidade edas notas baixas. Atrasar-se para as aulas era algorepudivel. No estudarpor conta de pequenosproblemas visuais tam-

    bm. Pensem nisso! No

    falem com estranhos!Cumpram seus horrios! A voz de Xavier soavasria e imperativa. Para odeleite dos inspetores, ascrianas silenciavam dian-te dessas ordens. Ao m,

    gritos concordantes.O teatrinho continuoupor semanas com o fan-toche caolha. Lico a con-

    fortava dizendo que nemela e nem Xavier estavamcegos, que nunca cariam,e que logo arrumariamum boto para restabele-cer a viso dele.

    No, Lico. Ele estcando como todo mun-do e s falta agora voctambm car invisvel...Minha esperana meutio, que prometeu ajudar.

    Nesse instante, a mede Soraia surge com umaboa notcia.

    Minha lha, seu tiochegou e est esperan-do por voc l embaixo.Trouxe chocolates e umasurpresa: o boto de casa-co que voc pediu.

    A menina pulou defelicidade.

    Que bom! Obrigada,

    mame! Eu sabia que tioJoo me ajudaria!

    A mulher fez que iasair, mas deteve-se. Esqua-drinhou o quarto como seprocurasse algum almda lha. Estranhamenteseu semblante mudou e,dessa vez, a me de Soraiaadotou um tom spero:

    Ah, e no quero maissaber da senhorita falandosozinha, entendido?

    Lo Borges

    Nasceu em setembro de 1974, carioca, servidor pblico e amante da literatura. Formado emComunicao Social pela FACHA - Faculdades Integradas Hlio Alonso, participou da antolo-gia de crnicas "Retratos Urbanos" em 2008 pela Editora Andross.

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    Contos

    Emanuel R. Marques

    a daNa do CoPo

    http://www.

    ickr.com/ph

    otos/scottwitt/2455107529/No posso dizer que o

    caf estava cheio ou quasevazio, apenas saliento quehavia um conjunto sucientede pessoas para me inquieta-rem a mente. Alis, nem sei

    se deva denir o estabeleci-mento com o rtulo de cafou restaurante. Mas, a certe-za era a minha presena nolocal, placidamente acompa-nhando a minha negra ch-

    vena de caf com um frescocopo de gua enquantoreectia, com uma especialateno nas expresses que

    os gurantes exibiam.

    Eram 21.30 e os esfor-os que o corpo recusava,pelo penar do trabalho diur-no, eram compensados pelaincansvel e divagante apti-do da mente. Ouvia con-

    versas, gargalhadas, risinhose silncios que s a mim,que recompensava a minhasolido na annima compa-nhia dos outros, podiam seralvo de tanto interesse.

    A minha curiosidadeincidia especialmente naspessoas que estavam sozi-

    nhas, mas no interior dassuas cabeas eram confron-tadas com outras que a ns,espectadores desse indivduo,eram invisveis. Intrigavam-me as temticas de felici-

    dade e desolao alheias.Talvez aquilo que me des-pertasse esse mpeto fosseapenas o facto e o gosto emsentir essa curiosidade e nopropriamente a vontade emdecifrar algo. Depois, haviatambm aquelas futilidadesque acabam sempre pormarcar presena e cha-

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    mar as atenes, atravs dequalquer gesto ou som, demodo a cativar os olhoscircundantes e, desta forma,satisfazerem as necessida-des de protagonismo ou oscomplexos de inferioridade

    que consomem essas pes-soas. Na verdade, tambmestas possuam pensamentos,momentneos na fugacidadecom que auam conscien-cializao de si mesmos, eeram inuenciados por umpassado e uma tnue sombrade futuro individual, que osconduzia aqueles instantespresentes.

    -As mentes so dema-siado complexas e obscuras!

    Decidi ento, com umaagilidade fsica e mental, queatravs da sbita esponta-neidade me impediria de re-cuar na minha deciso, quecativaria a ateno de todoaquele aglomerado para umamesma situao. Ordenariao eixo condutor, o mesmosentido racional para todasaquelas criaturas.

    O copo deslizou parao cho num repentino toquede propositado descuido.Aps o primeiro contactocom o solo o copo iniciouuma tilintante percusso,que captou o atento silnciodos olhares, e terminou com

    um apotetico estilhaar

    que, alm de despedaar ofrgil vidro, divergiu tam-bm as opinies como secada pedao de vidro parti-do correspondesse opiniode cada espectador. Apesardesta divergncia qualitativa,

    eu soube que desde o em-purrar do copo at ao nalda sua deselegante dana, ocentro das atenes e inter-rogaes (Qual a causa dorudo? Ser que o copo vaipartir?, entre outras) haviasido manipulado por mim.

    Nos segundos que seseguiram ao meu espect-culo de psicologia humana,

    e enquanto ainda recolhiainformaes dos rostos edas palavras das minhasalheadas cobaias, repareinuma estranha rapariga delongos cabelos que estavasentada ao fundo daquelaampla sala. Estava de costas

    voltadas para toda a imensaridicularidade que aconteciaem redor e que eu consegui-

    ra incutir s outras pessoas.Parecia estar demasiado con-centrada no seu monlogocom a baa parede amarelapara poder desperdiar asua preciosidade temporalcom situaes absurdas,como aquela que estava aocorrer. Esqueci imediata-mente tudo aquilo que mecircundava. Insisti com oempregado que era meu

    dever pagar pelo descuido, e

    cheguei mesmo a acompa-nh-lo ao balco, para destaforma, sob o disfarce daformalidade, tentar aproxi-mar-me o mximo possveldaquela candente criaturaque permanecia impvida noseu altar de reexo e bele-za. Na ebriedade da minhaestupefaco ainda conseguidecifrar uns penetrantesolhos negros, que me taramnum movimento demasiadorpido para transmitir qual-quer sensao mas, tambmdemasiado lento, o sucientepara permitir que eu guar-dasse eternamente aquele

    inefvel retrato.A vida um irnico

    emaranhar de situaes dasquais nunca conseguimosantever os resultados.

    Ainda hoje, pela ma-nh, ouvi as vozes de um ca-sal de crianas entoarem emunssono a palavra me. Arapariga que eu vira naquelanoite, levantou-se da cama e

    atendeu ao pueril apelo. Eu,desperto tambm pelas mes-mas vozes, olhava o modocomo Clarisse caminhavapara o quarto dos nossos -lhos. A rapariga sem nome, adesconhecida, que ignorara ocopo era Clarisse, a mulherque hoje se deitava a meulado.

    E tudo comeou com a

    queda de um copo.

    Emanuel R. Marques

    Portugus. Formado em Comunicao Audiovisual. J trabalhou em televiso, assim como j ganhoua vida a fazer visitas num convento e museu do sc. XV. Autor de livros de poesia e do conjunto detextos para teatro Os candidatos e outros devaneios cnicos. Tem colaboraes em vrias revistas ewebzines, tanto em Portugal como noutros pases Participante na exposio colectiva de pintura daV Bienal de pintura de pequeno formato- prmio Joaquim Afonso Madeira. Colaborador em vriasexposies de fotograa e artes plsticas. Membro do projecto musical Unquiet Lost Devotion. Colabo-rador em projectos de diversos campos artsticos.

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    Contos

    Maristela Scheuer Deves

    uma CidadeDESASSOMBRADA38 SAMIZDAT outubro de 2011

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    Aquela era a cidademais desassombrada domundo. Vitor bem quegostaria que no fosse:ele adorava histrias defantasmas, vampiros eoutros seres sobrenatu-rais. J pensou a emo-o que seria encontraralmas do alm vagandopelos corredores, ar-rastando correntes egemendo para assustaros mais medrosos? Ele, claro, no tinha medo

    de nada. Queria maisera encontrar um des-ses seres, s no tinha amnima ideia de comofazer isso.

    Que azar, pen-sava, ter nascido justoali, naquela cidadezi-nha esquecida por to-dos, onde at mesmo osfantasmas se negavam amorar. J procurara nocemitrio, na bibliote-ca, no poro e no stoda casa dos avs, na-quela ruela escura quetodos diziam ser peri-gosa (e era mesmo, ele

    quase fora assaltado). Enada. Nadica de nada.Nem um lenolzinhobranco para contar ahistria.

    Voc no encontrafantasmas porque fan-tasmas no existem,

    nem aqui, nem em ou-tra cidade qualquer ria o irmo mais velho,fazendo pose de quemsabe tudo.

    Mas Vitor no se davapor vencido. Encontrouna internet uma comu-nidade virtual intitu-lada eu acredito emfantasmas e passou aparticipar com interes-se de todos os debates.Um domingo no come-

    o de agosto, entrou nosite e quase no conse-guiu acreditar no que

    via: um fantasma estavaanunciando que pro-curava um lugar paramorar.

    Fantasma sem tetobusca pessoa simptica

    para dividir casa. Depreferncia, casa anti-ga, mas pode ser novatambm. Pode ser atapartamento, na verda-de. Sou um fantasmi-nha simptico e organi-zado, no fao barulho(prometo s arrastar as

    minhas correntes at asnove horas da noite) esei fazer vrios truques,como atravessar pare-des e desaparecer noar. Interessados, favordeixar mensagem e en-dereo aqui.

    Excitado, Vitor no per-deu tempo. Escreveulogo um recado, dizen-do do seu interesse econtando como era suacasa: grande, antiga,com um grande poroe um sto espaoso.Depois, correu contar anovidade ao irmo.

    Voc est louco? enfureceuse Jac. Onde j se viu, darnosso endereo assim,

    pela internet, para umdesconhecido? E se forum ladro?

    Vitor revirou os olhos.

    Voc por acaso j viualgum fantasma rou-bar?

    Jac desistiu. No

    adiantava tentar expli-car as coisas para aque-le pirralho teimoso.

    Enquanto isso, Vitorno cabia em si deemoo. Daquele diaem diante, quase nosaa mais da frente docomputador, esperandoa resposta do tal fantas-ma sem teto. Demoroutrs dias at que, enm,

    veio a mensagem toesperada.

    Caro senhor Vitor, di-zia o recado, co mui-to feliz em anunciar

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    lhe que a sua propostafoi a vencedora. Aquina cidade onde eumoro no existem maiscasas antigas como aque o senhor descre-

    veu. Alis, praticamenteno existem mais casasonde possamos morar.So s prdios, altos ehorrorosos, e as pes-soas que moram nelesno querem saber dens, pobres fantasmasdesamparados. No

    acreditam na gente,nos expulsam de seusapartamentos, colo-cam msica alta parano ouvirem as nossascorrentes. Chegam ata dizer que no existi-mos, veja a audcia. As-sim, quando comentei

    com meus amigos queestava me mudando,eles imploraram que euos levasse juntos. Espe-ro que o senhor no seimporte. Ns chegare-mos amanh, meianoite.

    Vitor cou entusiasma-

    do. Em vez de um fan-tasma, ele teria vrios.Quantos seriam? Trs?Quatro? Se fossem cin-co, seria a glria. Quasecontou ao irmo, tocontente estava, maspensou melhor. Jac vi-

    ria outra vez com aque-le papo de que fantas-mas no existiam e deque era uma armadilha.Pois bem. Quando elesestivessem ali, na suacasa, ele queria ver oirmo dizer que ele erabobo.

    No dormiu nada na-quela noite, mas noestava cansado na ma-nh seguinte. A ani-mao que sentia era

    suciente para man-tlo acordado. Noalmoo, no entanto, jestava irritado: as horasse arrastavam, e aindafaltava muito para ameianoite.

    Esse moleque estaprontando alguma

    coisa disse Jac,quando o irmo saiuda mesa direto para afrente do computador.

    Deixa ele... S est ca-lado replicou a me.

    No seu quarto, Vitorvasculhou a comuni-

    dade sobre fantasmasno site, em busca denovidades. Quem sabeo seu fantasma tivessedeixado mais algumrecado. Quem sabe attivesse resolvido an-tecipar o horrio dechegada. Mas no a

    ltima mensagem era ado dia anterior.

    Por m, anoiteceu.Vitor resolveu dar umaolhada no sto e no

    poro. Durante a tarde,pensara em limpar umpouco esses lugares,empoeirados pelo tem-po sem uso, mas resol-

    vera deixlos como es-tavam: anal, para umfantasma, provavelmen-te quanto mais aban-

    donado parecessem,melhor seria. Quandoo relgio marcou onzehoras, avisou que esta-

    va indo dormir. O quefez, na verdade, foi caracordado sob as co-bertas, olhando a cadapoucos segundos parao mostrador luminosodo celular, contando osminutos que faltavampara a meianoite.

    Sem perceber, acaboucaindo no sono. Acor-dou assustado algumtempo depois, comsussurros em seu ou-

    vido. Abriu os olhosrapidamente, j se pre-parando para dar umabronca no irmo pelabrincadeira, mas Jacno estava no quarto.Na verdade, pareciano ter ningum ali ano ser ele. Mas quem

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    deixara o abajur liga-do? Estava uma clarida-de estranha no quarto...Ser que ainda estavadormindo e aquilo eraum sonho?

    Senhor Vitor... senhorVitor, est me ouvindo?

    O menino deu um puloao ouvir a voz.

    Quem est a? sus-surrou de volta, commedo at mesmo de

    falar alto. Sou eu, senhor... Gus-tav, o fantasminha semteto. Ou melhor, agoraeu no sou mais semteto, j que o senhorme acolheu respon-deu a voz, materializan-dose em um fantasma

    branco e transparentebem ao lado da cama.

    Voc veio mesmo exclamou Vitor, pulan-do da cama, animado.

    Claro que eu vim,no podia perder umaoferta dessas. Alis,

    deixe eu lhe apresentar

    meus amigos disse ofantasma, estalando osdedos.

    A cada estalo, umanova forma branca ia

    surgindo. Vitor ia con-tando: um... dois... trs...outro estalo... quatro...mais um estalo... cin-co... seis... sete... e vriosoutros estalos em sequ-ncia... e oito, nove, dez,quinze, vinte fantasmasao todo apareceram,

    um ao lado do outro,todos sorrindo e aba-nando para Vitor. Qua-se no havia mais lugarno quarto com todoseles ali.

    O que ele faria comtantos fantasmas? Bem,era o que sempre quis,

    no era?, pensou Vitor.E j que eram tantos, omelhor era distribulos direito.

    Bemvindos todos.Agora, vamos nos or-ganizar... Aqui no meuquarto, cam Gustave mais um, que isso

    tambm no a casa

    da Me Joana. No quar-to do meu irmo eVitor deu um sorriso, l podem car trs.No de visitas, outrostrs... No de meus pais,

    vamos deixar sem. Osoutros se dividem entreo sto e o poro, com-binado?

    Murmrios fantasma-gricos de aprovao,e todos rumaram paraseus quartos. Logo

    Vitor ouviu os gritosdo irmo, e se contevepara no correr at l edizer um eu no falei.No outro dia, convidoualguns colegas de es-cola para dormirem nasua casa, e a diversofoi grande ao menospara ele.

    A partir de ento, -cou conhecido como omenino mais corajosoda cidade, pois mora-

    va na nica casa cheiade fantasmas naquelacidade at ento desas-sombrada.

    A gacha Maristela Scheuer Deves jornalista e escritora. Autora do romance policial'A Culpa dos Teus Pais' e do infanto-juvenil 'O Caso do Buraco', adora ler e escrever desdecriana. Tambm mantm os blogs Palavra Escrita (www.pioneiro.com/palavraescrita) e Ma-ristela Deves (maristeladeves.blogspot.com).

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    Contos

    Lucas Pooch de Quadros

    Mais um funeral

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    Eu cheguei prximodo m. J sabia que meatrasaria, eu queria meatrasar. Anal era um en-terro, quem gosta de veresse tipo de coisas? Sim,algumas pessoas gostam,mas eu no sou dessetipo...nunca fui.

    O dia estava ce-dendo espao para umanoite linda que chegavalentamente. Nenhumanuvem. Todo o resto domundo no se importavacom aquele corpo, sendoenterrado. Eu estava usan-do um terno surrado pelotempo, no me importeimuito em arrumar-me.

    Ver o corpo foia ltima coisa que euz, mas, para fazer isso,passei por um aglome-rado de rostos tristes,em lgrimas. Alguns euconhecia, ento fui obri-gado a distribuir algunsois. Ela foi uma amigaincrvel, vou sentir muitafalta e outras coisas dognero eu ouvia dos ros-tos conhecidos. Prximo

    ao caixo, quase encosta-do nele, havia dois rostosmais conhecidos ainda:O primeiro, meu pai, e o

    segundo era meu irmo.Ambos com uma cara dechoro ou de perda terr-vel.

    Cheguei ao corpo

    daquela mulher. Sentimeu estmago apertar-se e brigar com os meuspulmes, e esses lutavampara por ar dentro demim. Minha gargantafechava lentamente. Lem-brei da minha infncia,das brigas, das diculda-des, dos choros. Vi meupai chorando e recordeide quantas vezes ela otrara. Pensei no tempoque demoraria para oprimeiro verme atraves-sar o caixo e entrar nascarnes dela, atravessar osangue, os rgos, come-ar a comer.

    -Ela foi uma vadia navida, isso no muda coma sua morte. Quero con-seguir perdoar ela algumdia.- Disse para todos. Osrostos, conhecidos e des-conhecidos, olharam-mecom algum pavor.

    Mirei a porta e fuiembora.

    Lucas Pooch de Quadros

    Estudo jornalismo, escrevo para relaxar.

    http://guisalla.

    les.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg

    ficina

    http://www.ickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/

    www.ocinaeditora.org

    O lugar onde

    a boa Literatura fabricada

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    Contos

    o CarroSSeLJoo Manuel da Silva Rogaciano

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    O recinto da feira fer-vilhava de vida. Osmidos e grados atro-pelavam-se na nsiade percorrerem todasas atraes: o labirin-to; os carrossis; oscarrinhos-de-choque; abarraquinha de tiro aoalvo

    - Venham dar umavoltinha no carrossel!...Universo, o melhorcarrossel deste recinto!!

    Meninos e meninas- gritava o Sr. Humber-to, o dono do carrosselUniverso. Estrelas,planetas, cometas, tudoa girar! Venham, meni-nos e meninas...

    Nas bilheteiras do car-rossel, onde o Sr. Perei-

    ra trocava o dinheiropor chas, formava-seuma longa la. Algunsputos, mais descarados,furavam a ordeira li-nha e passavam fren-te dos outros.

    Soava a forte campai-nha, que se fazia ouvir

    acima da balbrdia dafeira, anunciando que a

    volta tinha terminado.Os midos da prxi-ma volta invadiam ocarrossel, como ferosndios, em p-de-guer-ra, ao ataque. Contra-

    http://www.

    ickr.com/photos/nimmue/4899145098/

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    riados, e literalmenteexpulsos pelos recm-chegados, os catraiosda volta anterior saiamdos assentos. Algunsmidos permaneciamnos seus lugares, segu-rando de forma visvel,na sua mo, a chaque lhes daria acesso prxima volta e queevitaria a sua expulsopelos ndios invasores.Os ndios ocupavam oslugares livres, soltando

    gritos de guerra a ple-nos pulmes. A cam-painha dava ento trstoques seguidos, sinalque o carrossel iriainiciar uma nova volta.O lho do Sr. Humber-to, um adolescente comar de fuinha, cabelo

    rapado, piercings nassobrancelhas e brincosnas orelhas, dava a sua

    volta pelos assentosdo carrossel e recebia,das mos dos midos,a cha que lhes permi-tia efetuar aquela via-gem. Rudolfo - assim

    se chamava o fuinhados piercings - aprovei-tava para espetar uns

    violentos pontaps nosassentos do carrossel.Nunca se percebeubem porqu: se faziaisso por detestar o seutrabalho, se para as-

    sustar os barulhentosputos que ali seguiamna sua volta, ou se erasimplesmente por puramaldade. Talvez pelofacto de ser obrigado apassar ali todos os diasda sua juventude, en-quanto os outros ado-lescentes iam escolae tinham a sua vidasocial. O fuinha eraobrigado a trabalharde manh noite. Seno estava a recolher

    chas no carrossel,estava a desmontar ocarrossel, a inspecionaro carrossel, a montar ocarrossel, o carrossel, ocarrossel,

    Para alm dos pontapsde Rudolfo, o carrosseltambm era atingidopela fria dos midos,que se agarravam aos

    vares e os abanavamviolentamente. Outros,gravavam na madeirados assentos, as suasiniciais. Alguns, mais

    velhos, divertiam-se,gratando os bancos

    do carrossel, pela cala-da da noite, quando afeira j tinha sido en-cerrada. Por vezes, osfeirantes apanhavam osartistas e obrigavam-nos a limpar as obrasde arte acabadas de

    fazer e aproveitavampara lhes dar uns sopa-pos.

    E, o que devo eu pen-sar? J acompanho este

    carrossel h cerca devinte anos, quando o Sr.Humberto o comproua um feirante espanhole o remodelou, mudan-do-lhe o nome de LosAnimales Salvajes paraUniverso e trocandoos bancos com repre-

    sentaes de animais- j muito carcomidose partidos - por novosbancos que representa-

    vam estrelas, planetas,cometas, satlites, navesespaciais. A mirade decorpos espaciais foi fei-ta por encomenda, porum carpinteiro amigodo Sr. Humberto.

    A pintura cou a car-go da D. Amlia, a es-posa do dono do Uni-

    verso. E que dotes depintura a pobre senho-ra tinha emprego estaexpresso, porque a D.

    Amlia faleceu h doisanos, deixando todosns mais pobres.

    Mas dizia eu, que nascih vinte anos, na gu-ra de um belo planetaazul, decorado pelamo da D. Amlia.

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    47http://samizdat.ocinaeditora.com

    Nova Yorkpara Mos-de-VAca

    GUIA

    Henry Alfred Bugalho

    O Guia do Viajante Inteligente

    www.maosdevaca.com

    Alis, a D. Amlia de-corou todo o carrosselcom tanta destreza ebom gosto, que eu mesentia extasiado ao

    ver em roda de mimtodo aquele magncouniverso, limpo, bem-cheiroso, que girava,girava

    J conheci muitos re-cintos de feiras, muitaspessoas, muitos mi-dos. Mas deixem-vos

    dizer um segredo:quem v um recinto defeira, v todos. Quem

    v a populaa de umafeira, v todas. Sotodos iguais entre si.Corpos amorfos pro-curando um pouco dealegria articial, nesta

    vida rotineira...

    Agora, com tanta vol-ta, com tanto barulhotodas as noites, com odesmonta aqui, montaali, os pontaps do fui-nha, os grati, a suji-dade que se acumula ese entranha por mim e

    pelos restantes corposespaciais do Univer-

    so, sinto-me to mal,to agoniado que sme apetece sair daqui.Sair e ir para um localsossegado, relaxante.Longe desta extenuan-te rotina. Sem fuinhas,sem ndios em p-de-guerra, sem grati, sempoluio. Longe dorodopiante e enormeUniverso. Gostaria deingressar num Uni-

    verso paralelo... Numarealidade alternativa...

    Tudo seria prefervel vida que levo!...

    Apetece-me gritar. Gri-tar bem alto, acima dobarulho da feira, acimada campainha do car-rossel, para que todospossam ouvir:

    - Sr. Humberto, fuinha,Sr. PereiraAlgum...Sou eu, o planetaazul Por favor, pa-rem o Universo. Queroapear-me!

    FIM

    Joo Manuel da Silva Rogaciano

    Engenheiro eletrotcnico, portugus, 45 anos. Adora ler e tem umgosto especial pela escrita. Tem obtido vrios prmios em con-cursos e certames literrios. Possui contos publicados em vriasantologias brasileiras e portuguesas.

    www.entrelivroserascunhos.blogspot.com

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    Contos

    Erik K. Weber

    O Poder Animal

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    Quando envergou oqueixo para o cu,e com palavras cal-culadas anunciousuas intenes, agra-

    dava-lhe a imagemdo leo, do urso, daguia careca; ainda,os felinos menores,o lobo e os grandesrpteis.

    Para isso fechara-se na escurido doTempo, aprendendolnguas e segredos, ointrincado desenhodas constelaes, asfases da lua, a ca-bala, o novo misti-cismo. Tal rennciaera uma exigncia,

    dele e das prpriascircunstncias, e asdores um descan-so, se comparadas ansiedade de umaevidncia eterna eimutvel a desco-berta de seu esprito

    animal, aquele cujafora o guiaria emvida e alm dela.

    Nisso viu o Uni-verso deixar deser; como se aquelemundo no fossemil, mas apenas um;

    como se bastasseuma chave - o queequivale a dizer quequalquer uma servi-ria. A nica diferen-a era para onde eledeixava de olhar.

    E assim, numa dashoras leves de umaconjuno h mui-to esperada, viu asestr