Samizdat 42 - Feira do Livro de Frankfurt

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    SAMIZDAT

    42outubro

    2014

    ano VII

    ficina

    www.revistasamizdat.com

    4 razes por que todo

    escritor deveria ir

    Feira do

    Livro deFrankfurt

    Feira do

    Livro deFrankfurt

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    Edio, Capa e Diagramao

    Henry Alfred Bugalho

    Editor de poesia

    Volmar Camargo Junior

    Reviso (sujeita a aceitao)

    Joaquim Bispo

    Autores

    Ana Beatriz ManierAnderson S. FreixoCaio RussoCinthia KriemlerClaudia Isadora Fernandes deOliveiraChris SevlaEdweine LoureiroFernando Sousa LeiteFrancisco da SilvaGilmar Ricarte de Almeira

    Guilherme ScalzilliHenry Alfred BugalhoJ. MaffeisJoo Gilberto EngelmannJoaquim BispoJu BlasinaLeandro LuizLeonardo AlvesLusa FrestaMario Filipe CavalcantiPriscila Queiroz

    Tatyanny Souza do NascimentoVolmar Camargo JuniorYvisson Gomes dos Santos

    Textos de:

    Bernardim Ribeiro

    www.revistasamizdat.com

    ISSN 2281-0668

    SAMIZDAT 42outubro de 2014

    Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedadaa Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

    Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royaltyfree ou sob licena Creative Commons.

    Os textos publicados so de domnio pblico, com consensoou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei deCopyright dos EUA (107-112).

    As ideias expressas so de inteira responsabilidade de seusautores. A revista adota o Novo Acordo Ortogrco. A aceitaoda reviso proposta depende da vontade expressa dos colabora-dores da revista.

    Editorial

    J estive em algumas feiras de livro em minha vida antes: amenor no ptio da Reitoria da UFPR em Curitiba, a maior emBuenos Aires, a mais inesperada em Santiago do Chile, a nicaao ar livre em Madri.

    No entanto, nenhuma delas me preparou para a Feira doLivro de Frankfurt, um monstro nico. Nela, no se vendelivros; nela, vende-se o direito de publicar estes livros; vende-se

    tradues; vende-se, em essncia, o prprio autor, o seu nome, amarca que ele ou que pode se tornar.Que um livro um produto, todos sabem; mas que o pr-

    prio autor tambm acaba por se tornar comercializvel, esta uma triste constatao que nem todos esto preparados paraassimilar. Vendendo-nos, vendemos os nossos produtos.

    Fui com credencial de imprensa, representando a RevistaSAMIZDAT, esta persistente revista eletrnica independenteque desaa a lgica do mercado. Ningum ganha nada aqui,nenhum dos autores, nenhum daqueles que a editam. Nem umcentavo rola por estas pginas, ningum produto, ningum

    vendido.Entretanto, todos fazemos dela a nossa vitrine para o

    mercado, torcendo para que, na cacofonia dos tempos modernos,algum nos descubra, e nos revele.

    Henry Alfred Bugalho

    Imagem da Capa: https://www.ickr.com/photos/muckster/8080560609

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    SumrioPOR QUE SAMIZDAT? 6

    Henry Alfred Bugalho

    RECOMENDAO DE LEITURAKappa 8

    Edweine Loureiro

    AUTOR EM LNGUA PORTUGUESAHistria de menina e moa 10

    Bernardim Ribeiro

    CONTOs Feliz? 14

    Joaquim Bispo

    Dvida 17Leandro Luiz

    Confsses a Santo Antonio 18

    Claudia Isadora Fernandes de Oliveira

    Sem Fim 20Yvisson Gomes dos Santos

    O espelho 21Priscila Queiroz

    Introduo ao corpo nu 22Joo Gilberto Engelmann

    De se comer com os olhos 24Caio Russo

    A menina dos amores trancados 26Fernando Sousa Leite

    O enCanto da sereia da baa 28Lusa Fresta

    Lucas pensa que no possvel 31Anderson S. Freixo

    Passos no telhado 32Cinthia Kriemler

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    Buraco Negro 34Mario Filipe Cavalcanti

    Trivia 38Chris Sevla

    Abate 40Guilherme Scalzilli

    Segundo 42Volmar Camargo Junior

    ARTIGO4 razes por que todo escritor deveria ir Feira do Livro deFrankfurt pelo menos uma vez na vida 46

    Henry Alfred Bugalho

    TEORIA LITERRIAO Tnel de Ernesto Sabato, por ele mesmo 50

    Tatyanny Souza do Nascimento

    CRNICADo atum ao mate 54

    Ana Beatriz Manier

    POESIAReverberar 56

    Francisco da Silva

    Do destino origem 57J. Maffeis

    Quatro improvisos 58Leonardo Alves

    Pueril 60Ju Blasina

    Consequncia 62Gilmar Ricarte de Almeira

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    Incluso e Excluso

    Nas relaes humanas, sempre h uma din-mica de incluso e excluso.

    O grupo dominante, pela prpria naturezarestritiva do poder, costuma excluir ou ignorar

    tudo aquilo que no pertena a seu projeto, ouque esteja contra seus princpios.

    Em regimes autoritrios, esta excluso muito evidente, sob forma de perseguio,censura, exlio. Qualquer um que se interponhano caminho dos dirigentes afastado e ostraci-zado.

    As razes disto so muito simples de secompreender: o diferente, o dissidente perigo-so, pois apresenta alternativas, s vezes, muitomelhores do que o estabelecido. Por isto,

    necessrio suprimir, esconder, banir.A Unio Sovitica no foi muito diferente

    de demais regimes autocrticos. Origina-secomo uma forma de governo humanitria,

    igualitria, mas logo se converte em uma dita-dura como qualquer outra. a microfsica dopoder.

    Em reao, aqueles que se acreditavamcomo livres-pensadores, que no queriam,ou no conseguiam, fazer parte da mquinaadministrativa que estipulava como deveriaser a cultura, a informao, a voz do povo ,encontraram na autopublicao clandestina ummeio de expresso.

    Datilografando, mimeografando, ou sim-plesmente manuscrevendo, tais autores rus-sos disseminavam suas ideias. E ao leitor eraincumbida a tarefa de continuar esta cadeia,reproduzindo tais obras e tambm as passandoadiante. Este processo foi designado "samizdat",que nada mais signica em russo do que "auto-publicado", em oposio s publicaes ociais

    do regime sovitico.

    Por que Samizdat?

    Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo

    e posso ser preso por causa disto

    Vladimir Bukovsky

    Henry Alfred Bugalho

    [email protected]

    Foto:exemplo de um samizdat.

    Cortesia do Gulag Museum em

    Perm-36.

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    E por que Samizdat?

    A indstria cultural e o mercado literriofaz parte dela tambm realiza um processode excluso, baseado no que se julga no ter

    valor de mercado. Inexplicavelmente, estabele-ceu-se que contos, poemas, autores desconhe-

    cidos no podem ser comercializados, que novale a pena investir neles, pois os gastos seriammaiores do que o lucro.

    A indstria deseja o produto pronto e comconsumidores. No basta qualidade, no bastacompetncia; se houver quem compre, mesmoo lixo possui prioridades na hora de ser absor-

    vido pelo mercado.

    E a autopublicao, como em qualquer regi-me excludente, torna-se a via para produtoresculturais atingirem o pblico.

    Este um processo solitrio e gradativo.O autor precisa conquistar leitor a leitor. Noh grandes aparatos miditicos como TV,revistas, jornais onde ele possa divulgar seutrabalho. O nico aspecto que conta o prazerque a obra causa no leitor.

    Enquanto que este um trabalho difcil, poroutro lado, concede ao criador uma liberdade euma autonomia total: ele dono de sua pala-

    vra, o responsvel pelo que diz, o culpadopor seus erros, quem recebe os louros porseus acertos.

    E, com a internet, os autores possuem acessodireto e imediato a seus leitores. A repercussodo que escrevem (quando h) surge em questode minutos.

    A serem obrigados a burlar a indstria cul-tural, os autores conquistaram algo que jamaisconseguiriam de outro modo, o contato quasepessoal com os leitores, o dilogo capaz detornar a obra melhor, a rede de contatos que, seno to inuente quanto a da grande mdia,faz do leitor um colaborador, um co-autor daobra que l. No h sucesso, no h grandestiragens que substituam o prazer de ouvir orespaldo de leitores sinceros, que no estoatrs de grandes autores populares, que noperseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

    Os autores que compem este projetono fazem parte de nenhum movimento

    literrio organizado, no so modernistas,ps-modernistas, vanguardistas ou qualqueroutra denio que vise rotular e denir aorientao dum grupo. So apenas escritoresinteressados em trocar experincias e sostica-rem suas escritas. A qualidade deles no umaorientao de estilo, mas sim a heterogeneida-de.

    Enm, Samizdat porque a internet ummeio de autopublicao, mas Samizdat porquetambm um modo de contornar um processode excluso e de atingir o objetivo fundamental

    da escrita: ser lido por algum.

    SAMIZDAT uma revista eletrnicagratuita, escrita, editada e publicada pelanovssima gerao de autores lusfonos.Diariamente so includos novos textos deautores consagrados e de jovens escritoresamadores, entusiastas e prossionais. Contos,crnicas, poemas, resenhas literrias e muitomais.

    www.revistasamizdat.com

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    8 SAMIZDAToutubro de 2014

    Recomendao de Leitura

    Edweine Loureiro

    KAPPA

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    No ms passado, reli uma das obras quemais me fascinam na Literatura Japonesa:trata-se do livro intitulado Kappa, do genialRynosuke Akutagawa (1892 1927), e publicadono ano da morte do autor.

    Akutagawa certamente mais conhecidono Ocidente pelo livro Rashmon, adaptado

    ao cinema por outro grande mestre: AkiraKurosawa. Mas, particularmente, prero a obraKappa: talvez por melhor reetir as inquietu-des de Akutagawa que cometeu suicdio aostrinta e cinco anos de idade, deixando um bi-lhete aos amigos (e, por que no dizer, a todaa Humanidade), agradecendo, ironicamente,por conduzirem-no a tal deciso.

    E, em Kappa, esse misto de ironia e amargu-ra tambm est presente. O livro conta-nos ahistria de um mundo s avessas, habitado porseres hbridos (com traos pertencentes tanto a

    um sapo quanto a um macaco), e cujas regrassociais so, para dizer o mnimo, curiosas: porexemplo, a cpula tem incio com a fmea per-seguindo o macho (no to s avessas, diriamos mais modernos; mas lembrem-se que esta-mos falando de uma obra quase centenria). E,

    vale frisar, tal inverso de papis, na poca, eratambm um claro protesto contra a submissoda mulher a uma sociedade japonesa indubita-

    velmente misgina situao que, pasmem, nomelhorou muito em pleno sculo vinte e um.

    Outra passagem curiosa a que se refere

    ao nascimento dos lhotes kappas. Momentosantes do parto, o futuro pai faz a perguntaao nascituro: Tens certeza que desejas vir aeste mundo?. Se a resposta do feto negativa,a barriga materna imediatamente desincha(para visualizarem a cena, tentem imaginarum balo sendo esvaziado), e todos retornam aseus respectivos afazeres, como se nada tivesse

    acontecido. E tudo graas a uma deciso feitapelo sbio feto.

    Ousada? Sem dvida. Mas eu ainda preroo adjetivo visionria para descrever Kappa:uma obra-prima, que diverte ao mesmo tempoque nos leva a reetir sobre aquilo que, meiosculo depois, o grupo ingls Monty Python

    descreveria como o sentido da vida.

    Edweine LoureiroNasceu em Manaus, em 20 de Setembro de 1975. advogado, professor de Literatu-

    ra e Idiomas, e reside no Japo desde 2001. Premiado em diversos concursos literriosno Brasil, na Espanha, em Portugal e no Japo, autor dos livros: Sonhador Sim Se-nhor! (2000), Clandestinos [e outras crnicas] (2011), Em Curto Espao (2012) e No m-nimo, o Innito (2013). Facebook: https://www.facebook.com/edweine.loureiro?ref=tn_tnmn

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    10 SAMIZDAToutubro de 2014

    Autor em Lngua Portuguesa

    Bernardim Ribeiro

    Histria de Menina e moaCaptulo V [de XXXI]

    Do que Lamentor passou naquelaparte onde foi aportar com a sua nau, eda batalha que teve com o cavaleiro daponte e do que mais lhe sucedeu

    De reinos estranhos, dizem que veio num

    tempo passado ter a estas partes um nobre efamoso cavaleiro.

    Aportou, cerca daqui, em uma nau grande,carregada de muita riqueza, e, sobretudo, deduas formosas irms, a uma das quais ele maisque a si queria. Para que ela no sentisse a

    saudade de sua terra, trouxeram a outra irm,donzela, mais pequena que aquela por quemele vinha buscar terras estranhas.

    Contam que elas eram lhas de um po-deroso senhor, como depois, com o tempo, sesuspeitou, pelos muitos cavaleiros andantes quepelo mundo foram espalhados naquela poca.Mas esta histria ser longa.

    Aportando Lamentor (que assim se cha-mava) nestas partes, como digo; havida inteira

    informao da terra, e da gente dela, porque,como ele viesse da maneira que vinha, noqueria fazer seu assento em nenhum lugarmuito povoado; e, saindo um dia pela manhda nau, com todas as suas riquezas, comeoua caminhar por este vale acima, que para

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    tudo tinham j seus criados feito o concertonecessrio.

    Em umas ricas andas, que Lamentor na nautrouxera, iam as duas irms; porque a maior

    vinha quase no m do tempo da prenhez.

    A manh era graciosa. Parecia que assim seacertou, para a terra mais lhes contentar. Ia oano no ms dabril, quando orescem as rvo-res, e as aves, que at ento estiveram caladas,comeavam a andar fazendo os gorjeios dooutro ano, pelo que, por entre o arvoredo deste

    vale (bem podeis cuidar quejando seria ento,pois agora tanto) estavam elas tomando re-creio, ora numa cousa ora em outra.

    Tudo buscava Lamentor para que sua se-nhora e a donzela sua irm, de alguma manei-ra, perdessem a saudade de sua terra, e o enjoodo mar.

    Sendo eles cerca de uma ponte, que a pertoainda est, e querendo-a passar, lhe disse umescudeiro que no comeo dela estava:

    Senhor cavaleiro, se quereis passar, con-vm que faais, uma, de duas: ou que confes-seis que o cavaleiro que mantm esta passagemquer bem com mais razo que ningum, ou odeterminar a justa.

    Muitas coisas havia mister de saber (lherespondeu Lamentor) quem houvesse de res-ponder a essa pergunta: e como se pode saberse quer ele bem com mais razo sem ouvir

    primeiro onde, ou como o quer? Mas, por ago-ra, disso eu no curo: porque a mim basta-mesaber que, por mais razo com que ele queirabem, eu o quero mais que ele, e que todos osdo mundo.

    Isto que sei, certo de mim, me escusa sabermais dele que a condio com que ele guardaesta ponte. A razo que tem para isso, guarde-apara si; que, para ele, poder ser que parea amaior do mundo. Deveis, bom escudeiro, dizer--lhe que faria bem em deixar-nos passar, antesque o julgue a justa.

    O escudeiro, que j olhara para as andas, enunca coisa to bem lhe parecera, lhe tornou:

    escusada, para ele, essa embaixada,porque est to ufano, que no pode agoraningum com ele (e na verdade tem causa);

    porque far daqui a oito dias trs anos que elemantm este passo, sem achar cavaleiro que o

    vencesse, sendo o mais esforado deles que portoda esta terra h. E ento se acaba o prazo quelhe foi dado por uma donzela, a mais formo-sa que nestas partes se sabe, lha do senhordaquele castelo que ali vedes, em que ela lhe

    prometeu seu amor, sendo esta ponte por eleguardada com a dita condio. Mas se ele fossesabedor da companhia que vs trazeis, com ra-zo deveria temer agora, mais que nunca; maseu no lho posso ir dizer, que j outras vezeslhe levei assim embaixadas, e ele tornava-mem resposta: e sucedendo depois sua vontademo deitava em rosto, como que a minha ten-o casse, pelo seu acontecimento, culpada.

    Ora, pois, determine-o a justa, disse La-mentor, olhando j para as andas.

    Tirando ento, de um tiracolo, o escudeiro

    uma corneta, tocou-a.Da a um pouco, deixou-se sair dum es-

    pesso arvoredo, que alm da ponte estava, umcavaleiro bem armado, a cavalo, e vindo direitopara a ponte, ali houveram ambos justa, de quemeu pai contava muitas coisas de grande esfor-o e valentia, que vos eu no contarei; porque,ainda que as mulheres folguem muito de ouvircavalarias, no lhes est bem contarem-nas,nem elas parecem, nas suas bocas, como nasdos homens que as fazem.

    Mas, contudo, dissera-vo-las eu, se me lem-brassem inteiramente; porm, no me lembraseno que contava meu pai que romperam trslanas, e quarta caiu o cavaleiro da ponte; ecom a queda grande do encontro (que tambmfoi grande) cara sem se poder levantar porum pouco.

    Lamentor se apeou rapidamente. Quandochegou junto dele, o achou sem fala, e, desco-brindo-o, lhe pareceu como morto. Mas, daa um pouco, acordou, todo mudado na cor, elevantando os olhos para Lamentor, que sobreele estava, com um suspiro:

    Ai! ai! cavaleiro, lhe disse. Que vosnunca vira, prouvera a Deus, ou que ao menos

    vos no tornara a ver!

    Lamentor houve dele d, maiormente desuas lgrimas, que lhe viu; e, tomando-o pelo

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    brao, o ajudou a erguer, dizendo:

    Do amor, senhor cavaleiro, nos podemosqueixar com razo; que, assim como vos ele a

    vs fez aqui guardar esta passagem, me fez amim fazer-vos dano. De vo-lo ter feito, me pesacomo homem; que, fazer-vo-lo, foi como namo-rado. Noutra alguma coisa de vosso contenta-mento vo-lo emendarei, quando mandardes.

    O cavaleiro da ponte, que assim o viu co-medido, bem lhe pareceu razo de lhe agrade-cer aquela vontade; mas tamanha era a dor quetinha no corao que no pde acabar de for-ar a sua. Contudo, porque era de alta criao,lhe disse, como desculpando-se:

    O amor demasiado no vive em terrade razo, mas eu irei tomar vingana delenoutras, alongadas desta, onde no veja coisacom que os meus olhos descansem; ainda que

    esta vingana bem me pesa, pois que h deser de mim e de meu cuidado?!

    E assim se virou para outro lado, e deu aandar pelo vale abaixo. E como ele da quedagrande que dera casse maltratado, e (segun-do depois pareceu) quebrasse alguma coisa dedentro, no foi muito pelo vale abaixo, porque,acabando o seu escudeiro de tomar o cavalo,comeando dir aps ele, o alcanou perto dali:e achando-o j lanado no cho, de bruos, foipara o erguer, e viu que ele era em estado demorte.

    Comeou a chor-lo amargamente, e La-mentor, que o ouviu, deu a correr para l. Evendo que estava o escudeiro com seu senhor,como morto, nos braos, desceu-se prestemente,e foi-se para ele; e vendo-o no derradeiro ter-mo de sua vida, e como desmaiado, lhe come-ou a dizer:

    Que isto, senhor cavaleiro?... Esforai!que este o passo verdadeiro para que tomas-tes a ordem de cavalaria.

    E ele, acordando, ps os olhos em Lamentor,e estendeu-lhe, vagarosamente, a mo direita,como em sinal que parecia de paz. E, com uma

    voz cansada, disse:

    Ao esforo, se me ele pudera valer, per-doara eu tudo; pois me falece agora, quando amim tanto cumpre viver...

    E com a fora que fez para dizer isto(como homem que tinha alguma dor grande dedentro) foi-se-lhe o flego, e, cerrando os seusolhos, cou como passado deste mundo. Mas,da a um pouco, os tornou a abrir, e fazendomeno com o rosto para aquela parte ondeestava o castelo da donzela por quem guarda-

    va a passagem, e que todo aquele vale desco-bria, e levando para l os olhos, parece quelembrando-lhe que no tinha j mais de oitodias para acabar o prazo que lhe fora assinado,e como coisa que lhe mais magoava aindadisse estas derradeiras palavras:

    castelo, quo perto ainda agora estavade vs!

    E, com isto, deixaram-se-lhe os seus olhos ir,cansadamente, cerrando para sempre.

    * * *In http://www.gutenberg.org/

    les/27725/27725-h/27725-h.htm

    (Ortograa atualizada, exceto nascontraes de palavras incorporando umapstrofo.)

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    Bernardim Ribeiro (Torro, 1482?Lisboa, 1552?) foi um escritor e poetarenascentista portugus. A sua princi-pal obra a novela Saudades, mais co-nhecida, porm, como Menina e Moa(da primeira frase da novela, que setornou um tpico da literatura portu-

    guesa): Menina e moa me levaram decasa de meu pai para longes terras.

    Ter cursado a universidade, de1507 a 1512, frequentado a corte deLisboa e pertencido roda dos poetaspalacianos, juntamente com Gil Vicen-te, S de Miranda, e Garcia de Resende,em cujo Cancioneiro Geral colaborou.

    Com S de Miranda ter visitado aItlia e tido contacto com as inovaesliterrias.

    considerado o introdutor dobucolismo em Portugal. Os temas dassuas obras andam volta da infelici-dade amorosa. Chegaram at ns umlivro, meio romance de cavalaria, meioromance pastoril. o autor que marcaa transio entre estes dois gneros.

    (Pesquisa de Joaquim Bispo)

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    14 SAMIZDAToutubro de 2014

    Joaquim Bispo

    s Feliz?Conto

    14 SAMIZDAToutubro de 2014

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    Todos sabemos que os mortos no voltam;por uma razo muito simples morreram.No entanto, uma inaptido para lidar coma interrupo do devir leva-nos a imaginaros nossos mortos, em forma carnal incor-rupta, como quando os conhecemos. Alis,

    a aventura humana, com as suas contnuasentregas de testemunho cultural, muitoecaz a fazer-nos proceder como se houvesseum devir contnuo. E um contnuo progres-so. Esta nossa capacidade de abstrao e deidealizao permite-nos imaginar os cenriosmais inverosmeis com a naturalidade dascoisas quotidianas.

    Um av meu morreu em 1950, quandoeu tinha dois anos. Uma lembrana quetenho dele , provavelmente, falsa. Era umagricultor que tinha vivido sempre na al-deia exceto a passagem por Frana, na IGuerra Mundial e cuja informao se fazianos mercados, nas conversas de vizinhos e,talvez, num jornal mensal. O mundo dele eracalmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo dasestaes. A curiosidade de o conhecer na-tural. Como seria se o encontrasse hoje, eleparado nos cinquenta e tal anos da fotogra-a da parede, bem mais novo que eu agora?

    Como nos relacionaramos, se convivssemosdurante, digamos, um ms? Como camara-das? A sua ascendncia prevaleceria, ou aminha maior idade f-lo-ia reverente, vindoele dum tempo em que o respeito pelos maisvelhos era sagrado?

    Se bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. Omeu av esteve connosco um ms. Acompa-nhou a minha famlia em todos os momen-tos, desde os de lazer caseiro, aos de afoba-mento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe asmaravilhas do meu tempo e indaguei-o sobremuitos aspetos do dele. Levei-o velozmentepelos lisos tapetes das autoestradas do pas,mostrei-lhe a ponte de dezassete quilme-

    tros sobre o Tejo, mergulhmos de metro noventre da cidade em hora de ponta, guiei-opelas avenidas dos grandes centros comer-ciais e outros formigueiros. Ele mostrava-seum pouco confuso, mas muito adaptvel.Gostou especialmente da televiso por cabo.

    Devorava sobretudo as notcias. Embora seadmirasse com os telemveis, o computadore a internet, cava particularmente descon-ado com o microondas e divertido com amquina eltrica de barbear. Achava piadas roupas deste tempo e s pessoas nos gi-nsios. Ver-me a pedalar em seco levava-o slgrimas. Gostou de encontrar roupa prontaa vestir e de conhecer as vrias utilizaesdos plsticos. Apreciou o servio de aconse-lhamento mdico pelo telefone, a que tive de

    recorrer. Admirava a utilidade de conserva-o do frigorco e a frescura das bebidas eda fruta, embora achasse esta inspida, apesardas cores fortes e dos tamanhos surpreen-dentes.

    Finalmente, chegou o dia em que o prazoplaneado acabava. Chamou-me de lado e cito de memria disse-me:

    Amaro, meu homnimo, meu velho neto,gostei muito de conhecer a tua famlia e o

    teu mundo. um mundo admirvel, masdifcil de compreender para um homem domeu tempo. Custa-me a crer que os homensforam Lua, que desvendaram as entra-nhas da vida, que criaram certas maravilhastecnolgicas. Talvez tenham feito tudo isso,mas continuam a no ser solidrios; nemsequer conseguem viver juntos. As guerrasso permanentes, e em inmeros pontos doplaneta h milhares de pessoas a morrer defome que conceito abominvel enquantonos pases ricos se destroem milhares de to-neladas de alimentos, para no deixar baixaros preos. As cidades esto cheias de fumoe sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se

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    16 SAMIZDAToutubro de 2014

    Joaquim BispoPortugus, reformado, ex-tcnico da televiso pblica, licenciado tardio em Histria

    da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimentaa escrita de co desde 2007. Integra vrias coletneas resultantes de concursos lite-rrios dos dois lados do Atlntico e publica regularmente na revista Samizdat desde2008.

    Contacto: [email protected]

    em pequenos espaos, trabalham toda a vidapara pagar a casa, quase no veem os lhos.Toda a gente tira cursos superiores, mas pou-cos conseguem exercer uma prosso nessarea de estudos. Os jovens apenas conse-guem trabalhos precrios, s vezes, escravatu-

    ra encapotada, com nomes pomposos comoestgio no-remunerado.

    E, no entanto, tens razoveis condiespara ter uma vida boa: j no trabalhas, rece-bes o suciente para viver, tens tempo e sa-de, podes fazer o que quiseres. E o que fazestu? Agora brincas aos cronistas, como tensbrincado aos bloguistas e aos contistas. Pas-sas demasiado tempo ao computador. Tensmais amigos na internet que na vida real.As novidades tecnolgicas vm, envolvem-tee passam. Tens centenas de DVD que nuncavs, dezenas de CD que nunca ouves, rdios,oitenta canais de televiso, dos quais vsmeia dzia. A oferta avassaladora, dispersa--te. Era um mundo assim que idealizavas?Parece-me que ests esquecido dos sonhos daadolescncia. Diz-me: s feliz?

    Antes que eu tivesse tempo de responder,deu-me um abrao e foi-se embora. Melo-dramtico, este meu av, mas interessante.

    Gostava de ter estado mais tempo com ele!

    * * *

    (Esta crnica integra a coletnea resultanteda edio de 2013 do Concurso Literrio daCidade de Presidente Prudente.)

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    17www.revistasamizdat.com

    Leandro Luiz

    Conto

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    untrained

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    Passou mais da metade da sua vida di-zendo o que era certo e o que era errado.

    Tinha na ponta da lngua frases motiva-cionais para os momentos mais difceis dahistria de qualquer ser humano.

    Possua um conhecimento extraordin-rio sobre os grandes lderes do mundo.

    Escrevia poesias inspiradoras dignas derespeito nos quatro cantos do pas.

    Arrastou multides por onde passava.Todos o conhecem pela sua essncia auda-ciosa, guerreira e batalhadora.

    Apesar de tudo, at hoje, ainda restauma dvida: por que ele se matou?

    Leandro Luiz

    32 anos, publicitrio, redator e escritor. Em 2013, publicou o livro Hora da Escrita Contos, Crnicas e Outras Mentiras de Leandro Luiz, baseado no seu blog, que acu-mula diversos prmios literrios nacionais e internacionais.

    Dvida

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    18 SAMIZDAToutubro de 2014

    Conto

    Claudia Isadora Fernandes de Oliveira

    CONFISSES A SANTO ANTONIOSanto Antonio, por favor, me escute por

    um segundo. Acho que no gostar do queeu vou lhe falar, mas eu preciso desabafar.Tenho que lhe contar o que eu z nessesltimos tempos com o senhor. Primeiro,comprei um Santo Antonio igualzinho ao se-nhor, de tamanho mdio, na loja de produtosreligiosos perto do meu servio. Peguei umata rosa e amarrei na sua cintura e coloquei

    voc debaixo da minha cama, de ponta cabe-a. A moa que faz faxina em casa achou-oe comeou a dar risada. Perdeu a graa eeu o tirei de l. A segunda vez eu ganhei osenhor de uma amiga. Segundo ela, quando

    se ganha de presente um Santo Antonio que d certo. Ela me falou que o seu lho de-via ir para o congelador, que s o devolvessequando recebesse o que houvera pedido aosenhor, que eu nem vou falar o que , j mecansei de pronunci-lo. Eu pus o seu bebno congelador, mas depois quei com pro-blema de conscincia e coloquei-o em cimada minha mesa. A minha gata comeou a

    brincar com o seu lho e nunca mais achei--o. Deve ter entrado num limbo, pois euprocurei, procurei e nunca mais o achei. Noque brabo com a Pufy. Ela assim mesmo.Uma vez, z um curso s para mulheres, que,

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    entre outras coisas, ensinava as tcnicas dopompoarismo para se fazer em casa, lgico(sim, eu me prestei a isso, Santo Antonio, nome recrimine, eu era mais nova). Eu volteipara casa com as bolinhas e coloquei-as numpote em cima do armarinho do banheiro. A,estava eu na cozinha quando de repente olho

    para a Pufy e o que eu encontro penduradona boca dela? Sim, Santo Antonio, a benditabolinha do pompoarismo. Pus fora imediata-mente e acabou a farra. Enm, guas passa-das. Abafe o caso.

    Achei uma outra tcnica tempos depois,no to drstica quanto essa ltima dosequestro, que consistia em por o senhor decabea para baixo (por que tem sempre queestar nessa posio, para lhe dar labirintite? por isso que nunca entregou a minha inti-

    mao, pois o senhor estava com uma crisede labirintite, se perdeu e no achou o meuendereo? rsrsrs), dentro de um copo comgua. Bom, a gua secou, claro, eu esquecide colocar mais e, bvio, o que veio nesseentremeio no fruticou e tambm mir-rou Uma outra vez, uma amiga minhafoi na igreja com o seu nome, perto da casadela. Ela conseguiu pegar dois pezinhos quedevamos comer no dia 13 de junho. Fizemosa orao e proferimos a demanda rsrsrs. Aocolocar o po na boca, quase quebrou o meu

    dente da frente de to duro que estava. Poxa,os padres no usam fermento nos pes ouno colocam manteiga? Uma heresia, SantoAntonio! Por m agora, comprei uma est-

    tua pequena do senhor. No z nada comela, no sequestrei o lho, no o coloquei deponta cabea, no z nenhuma encomen-da Deixei-o simplesmente l na minhaestante, com o beb no colo, a me olhare fui para o shopping. Ah, Santo Antonio,comprei umas lingeries que eu sempre tive

    vontade de comprar, mas no tinha coragem,de vrias cores, amarelo, azul-petrleo, lils,verde-gua Sem inteno nenhuma, ape-nas com o objetivo de satisfazer um desejomaterial pessoal! No nada cristo, eu sei.No sei o que vai surgir da, tambm nome interessa. Ah, no quero mais tocar nesseassunto, Santo Antonio. Venho confessar-lheque no mais lhe incomodarei. Voc vivera sua vida de santo em paz e eu continuareicom a minha vida de Claudia de sempre.Est tudo bem. Sim, estou feliz assim, no

    se preocupe, Santo Antonio. Pode ir em boaharmoniaNo, praaaaa! Volteeeeeeeeee,Santo Antonio! Eu estava brincando! Bom,voc sabe o que eu quero, n? No? Ento, oque eu mais desejo ser feliz, ter sade, paze amor. Simples assim!

    Claudia Isadora Fernandes de Oliveira

    Nasceu em Dom Pedrito, Rio Grande do Sul, em 26 de junho de 1979. Veio para Guaru -lhos aos 23 anos quando passou no concurso para taqugrafa da Cmara Municipal de Gua-rulhos e desde ento reside nessa cidade. formada em Letras, Portugus/Ingls, pela Ung.Fez ps-graduao em Lngua Portuguesa na Faculdade So Lus Jaboticabal. Frequentou ocurso de Escrita Criativa do professor Rodrigo Petrnio, do Instituto Ema Klabin e a Ocinade Roteiro do SENAC Lapa Scipiao. Atualmente, escreve para o seu blog http://claudinhaisa-dora.com.br e tambm no site www.somostodosum.com.br, na rea do Clube do Assinante.Faz curso de teatro da Escola Viva de Artes Cnicas de Guarulhos e o Curso de FormaoCinematogrca de Guarulhos.

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    20 SAMIZDAToutubro de 2014

    Conto

    Yvisson Gomes dos Santos

    SEM FIM

    Senza ne a msica predileta de Amaroquando ouve canes italianas. Nega suasorigens para cantar Senza ne. precisoludibriar algumas vezes a realidade. E ele fazisso sem m.

    Yvisson Gomes dos Santos psiclogo alagoano e licenciado em Filosoa. Fez Especializao em Lngua Por-

    tuguesa e Literatura Brasileira pela UNICID/AAL. Atualmente mestrando em Educa-o Brasileira pela UFAL.

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    No espelho, uma face parecida com aminha. Sigo em direo ao olhar que meolha, tento penetrar na profundidade. En-contro lgrimas escondidas e uma cartaque no fora escrita. Atravs do espelho,como fendas em muros, outros lados demim.

    Priscila Queiroz

    Nasceu em 1982 e reside em So Jos do Rio Preto, interior de So Paulo. Iniciou suas

    publicaes em 2010, com o conto O homem, no livro Labirintos e palavras, editado pelaGuemanisse. Em 2012 publica o conto Primeiros passos, no livro Dinmica das palavras,por meio da mesma editora. Em 2014 inicia publicaes no Jornal Literrio Olaria das Letras,nas edies de junho e julho, disponveis online. A autora tambm psicloga.

    Priscila Queiroz

    O espelho

    Conto

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    22 SAMIZDAToutubro de 2014

    Corpo nu sou eu mesmo, de roupas, alivia-do do olho gordo das gentes, das preces, das

    velas, da penetrao. Dos vermes em potncia,que em ato me ho de consumir, ou o fogo.Por aqui no temos bondades. Nessas paragensno temos misericrdias; temos gente, gentes.

    Mas coisa comum. Nudez no nudez elamesma, pelos mostra, como sem-vergonhice.Moro longe, ainda no disse. Pipocam no trempessoas, como regra quietas; como regra comtudo por dizer. outra nudez.

    Introduzir um corpo nu bobagem. umametfora. Nus s alguns prestam. Desvelados, amaioria no vale nada. Porcaria do ser, onto-logia das formas pedantes. Se presto, prestointeiramente. Quem presta por aspectos? Quempresta em partes? Ningum presta em partescomo ser. Uns penetram os outros e tudo isso

    o bastante. Nudez talvez uma ocorrnciaminha uma no esperana, uma nulidade deexpectativas. Vou nu. O gozo uma projeo,uma mnima coisa que acontece nem sempre.Somos de vomitar durante o coito.

    Mas no gostamos disso. De falar essascoisas. So limites. Todos vomitam, mas nin-gum vomita. Todos defecam, mas ningumdefeca. Todos odeiam aquela tela, mas ningumodeia aquela tela. Todos acham Clarice louca,mas ningum acha Clarice louca. Essas regras.Quem gosta de escrever em padres? Algum

    h de gostar. No pode dizer todos, que generalizao. No pode frases longas, por-que isso. No pode repetir preposio, porqueaquilo. Tudo no pode e o que sobra o comoescrevemos. Corpo nu sou eu mesmo, aliviadodessa falta de vontade.

    Vou usar essa ideia do corpo nu. Porque euquero seria uma explicao bastante, mas grosseira. A nudez me torna grosseiro. A nudez um sinnimo de saco cheio tambm. alvio.Coisa que todos gostariam de fazer. Fazer semexplicaes. No tenho de ser consequente.

    Mas agradar um fardo. Nem escreveria essascoisas se no fosse para agradar. Quem noquer agradar j pode morrer. Ainda assim, dis-sertar um lixo. Introduo, desenvolvimentoem dois pargrafos e concluso?

    Por aqui no temos imaginao. Est tudopronto. O que mais falta a ser construdo?Todo mundo quer sempre criatividade. in-til porque o mundo tem todo tipo de gente.Ordinrios tambm gostam de Cora Coralina.Idiotas tambm escutam Gal. No temos crit-rios, temos vontades e vaidades. Nudez essa

    ausncia tambm. O ausente que no exigenada, porque ele mesmo no est. Fazemos ascoisas, todos os dias, meio que sem pensar. Oquanto faramos se pensssemos? Mas isso no bom. Pensar no to legal assim, no alivia.Essa erudio, essa de que temos de ler Nietzs-che, escutar Bach, contemplar Rodin. A nudezno tem disso. Tem autenticidade, eu acho.Corpo nu sou eu mesmo, de roupas, aliviadodo olho gordo das gentes, das preces, das velas,da penetrao.

    Mas me deixem contar-vos algo, chegou aqui

    um moo para entregar o galo dgua e eraum menino magro de uns 17 anos e, pelo jeito,no gostava do que fazia, mas isso outra his-tria, no devemos nos meter, que se meter emalgo assim seria ilegtimo, a menos que ele esti-

    vesse sendo forado, que a no s bom, mas

    Joo Gilberto Engelmann

    Introduoao corpo nu

    Conto

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    dever e dever no se descumpre, sob penade omisso, o que seria horrvel para a minhareputao, mas veio ele e fez tudo direitinho,lavou o suporte, fez testes com o aparelho edeixou tudo funcionando, que era sua funo,ou seja, f-la bem, apesar daquele aspecto deparecer no gostar do que fazia, mas o fato

    que fez e fez bem, apenas tendo se recusadoa receber o pagamento em moedas, ruim decarregar, disse ele, e eu retribu, problema seu,sabendo que era meio grosseiro, mas na verda-de o problema era mesmo dele, que era quemcarregava as ditas moedas, ento camos nesse

    vai e vem e ele querendo receber em cdulas,quanto menos cdulas melhor, ainda teve acoragem de dizer e eu, instrudo, disse que orisco da atividade era dele, ou do chefe dele, aoque me respondeu, o senhor mal- educadoe eu, desconversando, disse, quer ento levar a

    gua de volta? e ele, no, no posso, j instaleino equipamento e eu, ento no vou pagar, eele, ento vais preso, ao que respondi, nestepas no se vai preso por dvida e ele achouque eu era arrogante, sendo que ao nal levouas moedas, sem cont-las, e saiu resmungandoe eu me pergunto, moralista que sou, o queesto ensinando para essas crianas?

    Mas a nudez persiste apesar do moo esse.Alis, que moo nu este! Sequer trouxe juntocom a pochete aqueles modos que mamesensinam. Ou ainda aqueles modos articiais,

    indignos, de se tratar bem a clientela para queno fuja. Disso ele no houvera tomado co-nhecimento. No lhe ocorreu e talvez nolhe ocorra nunca que o respeito deva nascercom a idade, medida que os anos escorrem. a nudez desse moo sobre o qual ora trata-mos. Talvez o respeito nada tenha a ver comidade mesmo, est ele certo, portanto. A est:a nudez tem tambm esta nalidade, fazer en-xergar o outro, suas reticncias, suas rabugices,suas canalhices e tudo mais e, tando-as, tara si mesmo diante de um espelho frgil, comofrgil somos no reexo e na vida real. Se bem

    que nada exista capaz de assegurar a autocons-cincia de se estar sendo pattico.

    melhor se achar pattico do que ser acha-do pattico. Tem a ver com senso do ridculo,ao que parece. No importa se chegamos aoponto de no podermos mais fazer armaes

    categricas, mormente essas em que se diz melhor. Nudez no ter medo, mas ento esta-mos sinalizando um inverno tremendo, incapazde deixar as pessoas nuas em pelo. Anote paraseu vocabulrio dirio as palavras pattico epedante. So boas de uso e se prestam bem sdenies do ns-mesmos cotidiano.

    Hoje sou um pouco desnudado pelos outros.To pssimo perder as calas em pblico,dar a bunda aos olhos de todos, branca e semgraa, to minha, to guardada, to ntima e sa-grada. Esto abrindo a porta do meu banheiro

    e eu arriado, sozinho com minhas limitaes,meus pecados, minha limpidez enlouquecedo-ra, quase a vomitar as vsceras para no dar aningum meus segredos. Para no sentirem omeu cheiro, no mirarem minha tez sem p ebase. No so apenas minhas particularidades,so os meus mantos, meus sacros, destinados a

    jamais serem profanados, estendidos vista dealgum.

    Ningum contra mim exibe esse direito.Diante deste no transijo, sou inexvel, duro,

    varapau no permissivo como o junco, como

    o santa-f. Homem injuriado frente os outros.Posto ao ridculo pelo xingamento e pela igno-rncia. O que mais di? Di mais a ignorncia,a chateao do no saber. Ningum quer ser

    visto como ignaro, de pouco caso com a razo,a cincia, ou essas imitaes do mito. Patticoat somos sem maiores objees, mas burro,servil, despreparado di mais, principalmenteporque nem sempre somos culpados de nossaprpria fraqueza. Nudez nudez. Exposio rasgar com sofreguido o vu que nos esconde,retirar do rol a nossas debilidades.

    Joo Gilberto EngelmannNascido em Alecrim/RS, bacharel em Filosoa e Direito.

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    24 SAMIZDAToutubro de 2014

    Caio Russo

    De se comer com os olhosConto

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    A quem me mostrou que h nos olhos ocromatismo oriundo de uma s cor, como emtela de Whistler

    21 e poucas da noite. S sentido Tucuruvi.Vagava vago. Parou. Porta se abriu e pus-

    -me dentro da mortalha de ferro. Do hbitodo dia que se prolonga em todos outros diasdo ano. Segurava em ferro frio uma clidadonzela primaveril. Rapariga em or a sedesabrochar em plena ora urbana. Flor deconcreto armado. Estampido de escapamento.Regada a petrleo e mijo. Cosmopolita. Luz.Um moletom e um bon de marca qualquera trajar um jovem. Prestimoso. Robusto. Chupa meu pau, sua puta. Agarrou a perene

    jovem pelos cabelos a lhe cair meliuamentepelos ombros, colocou-a de joelhos. Comurgncia. Sem aviso. Em p. Abriu a cala.Enou. Fundo. Garganta adentro impedindoas cordas vocais de vibrarem. Do som sair.Grunhido. Jorrou e sentou-se calmamente nobanco. Recomps-se a jovem. J sem umaptala. Tiradentes. Senhor bem trajado. Deterno vincado. Terna face de amoroso pai. Ah, que boceta gostosa. Mordia e espicaavacom seus curtos bigodes a pequena caixa de

    pandora da jovem. Silenciosa. Calada pelaboca que a invadia. Armnia. Antes quepudesse notar. Se reclamar, eno o dedo

    em seu cu tambm. Adentrava em dana umdedo aps outro. Cabelos presos. Loiro jovemem jaqueta de couro. Camiseta de banda.Sentou-se o nobre lho de Odim. Portugue-sa-Tiet. Blusa de l. Sapatnis. Barba porfazer. culos hipster. Ah, como voc

    gostosa, vou comer voc inteira, meter semparar, sua vadia. Quantas e quantas vezes.Juntaram-se cena os anteriores. Escarcude bocas. Dentes. Sangue a escorrer. Vidaexangue em metr de ferro. Batiam em suapudica face. Trovavam os trovadores medie-vais seus versos de amigo. Carandiru. Prisosem celas. Branco. Porta afora. Euiu a orsem ptalas pela slida estao. Rasgada.Mal-matada. Fragmento de esquecimento.Flor sem jardim, histria ou regador. Capa de

    revista a caminhar. Estuprada. Estuprada porolhos alheios que a comem sem sua permis-so. Sem dividirem seu almoo. Sem soluarpor sua existncia.

    Caio Russo

    Estuda Histria na Faculdade de Cincias e Letras UNESP Campus de Assis. Dedica-se aoestudo da Histria da Arte e Esttica, com enfoque em Nova Msica do Sculo XX e a TeoriaEsttica de Theodor W. Adorno. Dedica-se a prosa, com predileo pelo conto. Escafandristade nascena pe-se a relatar sobre os microscpicos animais, objetos e resduos, que decan-tam do fundo do lago, a pairar no vidro do capacete um instante antes de nunca mais seremvistos nas turvas guas dos dias. Escreve para no afogar-se em si mesmo.

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    26 SAMIZDAToutubro de 2014

    Fernando Sousa Leite

    A menina dos amores trancados

    Conto

    Mais um amor chegava ao m. Pela casa,ainda se encontravam coisas do antigo com-panheiro. Pares de tnis debaixo do tanquede lavar roupas, aparelho de barbear nobanheiro, livros com dedicatrias romnticasnas estantes e algumas bermudas espalhadaspelo armrio. Importava agora subtrair desua vista e de seu cotidiano aquelas coisasirregularmente distribudas pelos cmodosde seu lar, insistindo em evocar situaes

    vividas, momentos compartilhados a dois.Contudo, no sabia se o parceiro voltaria

    ou se ainda teria interesse em recuperar seuspertences. J prevendo que esse embaraoaconteceria, por ocasio do trmino insistiraque levasse tudo. Invariavelmente, no af dahora, quando os nimos se exaltam e ver-dades e mentiras so ditas, impossvel nodeixar algo para trs. Naqueles dias, porm,no se falavam. Pensavam ou pelo menos

    ele pensava que seria pior se entrassemem contato. Ela, preocupada com o estadodaquele que tanto amara, ainda tentou falarcom o rapaz, mas no logrou obter resposta.

    Conjecturava quando seria que tudo

    aquilo chegaria ao m. Um amor aps ooutro... Quando, nalmente, encontrariaalgum com quem poderia compartilhar suavida? Sua casa estava devidamente mobiliada,sua independncia nanceira virtuosamen-te conquistada. No seria a hora, anal, deprocurar construir algo em comum comalgum? Ou seria esse um sentimento tipica-mente burgus, defendendo uma vida dividi-da em comeo, meio e m? Sair da casa dos

    pais, conseguir um bom emprego, casar e terlhos. A ela no importava qual era a qua-lidade doutrinria daquela ideia. Sabia, tosomente, que era aquilo que tinha vontade derealizar naquela fase de sua vida. No sabiase no decorrer dos anos continuaria a pensardessa forma, mas de que importava?

    Saiu ento recolhendo as coisas olvidadas.Cada um daqueles objetos remetia a momen-tos, vivncias, lembranas e cheiros diversos.

    Resolveu colocar tudo aquilo dentro de umasacola e procurar algum lugar para arma-zen-la. Para isso, a parte superior de seuarmrio viria bem a calhar.

    Tamanha foi sua surpresa, no entanto,

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    quando foi deixar ali aquelas coisas. Haviaalguns pares de sacolas preenchendo todoo local e dicultando a utilizao daqueleespao. Esquecera-se daquilo. Tratava-se deobjetos de outros amores, mais antigos, masque permaneciam ali, trancaados, silen-

    ciosamente espreita em seu armrio. Derepente comeou a se lembrar do que viveracom outros companheiros. As compara-es, claro, eram inevitveis. Todos tinhaminmeras qualidades, assim como incontveisdefeitos. Todos se encaixavam em algummomento especco de sua vida ou, se nose adequavam, talvez fosse por isso que orelacionamento viria bancarrota. Mas issoera um pensamento retrospectivo, com infor-maes que no dispunha na poca.

    Sentia uma intromisso por parte daquelespertences de outras pessoas. Por que perma-neciam ali? No havia pedido, solicitamente,que se retirassem de sua vida? No haviaaceitado complacentemente os respectivostrminos? Nesse momento, no pensava queestava articulando mentalmente com obje-tos, mas sim com pessoas. Parecia que, dealguma forma, aqueles eram uma extenso,uma parte destas. Talvez fosse por isso que,

    constantemente, parecia no estar sozinhaem casa. Nunca estava. Sentia presenasconstantes. Lembranas de relacionamentospassados eram frequentes e as comparaes,habituais. Pensava que tivesse superado tudoaquilo, mas agora sentia que sua propriedade,sua casa e sua vida estavam sendo continua-mente violadas. Estava tendo sua privacidadesubtrada.

    No queria mais viver aquilo. Mas comose livrar daquele estorvo? Sair procura decada ex-namorado para devolver suas coi-sas? No queria encontr-los. Mesmo se notivesse problemas com isso, fazia tempo queaqueles relacionamentos chegaram ao seu

    trmino. Aqueles antigos amantes, acreditava,no viriam agora ou depois para recuperarsuas coisas. Ademais, pela experincia, sabiaque seu affaire mais recente tambm novoltaria para realizar esse intento.

    Pensou em abrir um brech para dar umm naquelas coisas. Chamar seus amigospara um grande almoo, em que poderiavender, doar ou trocar aqueles objetos. E foiisso que fez. Convidou vrios conhecidospara uma abastada refeio no m de se-mana. Conseguiu se livrar de tudo e aindaadquirir algum dinheiro com as transaes.

    Depois daquele dia estafante, sentou-seao sof e sentiu um profundo alvio. Pareciater dado m a um grande peso, uma gravepresena que insistia em assombrar seus diase seus novos relacionamentos. Era como seagora tivesse um caderno novinho em fo-lha, pronto para ser escrito com uma bonitahistria, de preferncia um romance assaz

    romntico. De fato, tinha um caderninho deanotaes que comprara havia poucos dias.Agora poderia arranjar-lhe uma utilidade: es-tava pronta para comear a escrever. Lem-brou-se ento de uma cano de Edith Piaf,e essas foram as primeiras palavras grafadasem seu livreto: Mais toi, tes le dernier, maistoi, tes le premier! Avant toi, y avait rien,avec toi je suis bien!.

    Fernando Sousa Leite24 anos, natural de Braslia, cidade na qual reside atualmente. Passou a infncia no Acre,

    onde mora parte de sua famlia. Formou-se em Relaes Internacionais na Universidade deBraslia (UnB), mesma instituio em que hoje cursa mestrado em Histria.

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    Lusa Fresta

    O enCanto da sereia da baa

    Conto

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    Era um daqueles sbados sem expetativas,em que tudo parecia previsvel e controlado,inclusive a inevitabilidade do funje[1], daschoupas grelhadas e dos amigos em torno deum convvio totalmente espontneo; a roti-na controla-nos os movimentos, regula-noso discurso e freia-nos as inquietaes mais

    promissoras. Naquela manh, Luanda exa-lava um calor intenso e cobria-nos com umcu cor de alabastro tecido de uma nuvems, imensa, pesada; entrei no jipe colossal eespaoso e deixei-me guiar, desconhecendo arota pr-denida, que me conduziria a desti-nos insuspeitveis.

    Tentei em vo balbuciar uma perguntaincua como aonde vamos?, ou desaadoracomo porque que os condutores aqui nun-ca param nas passadeiras?. Dispus apenas

    de alguns segundos para me aperceber doridculo da situao, enquanto me esforavadesesperadamente por esmagar o incmodosilncio nas mos e quebrar um gelo inexis-tente. O meu interlocutor pareceu adivinharo meu embarao e largou-me, entredentes,quase sussurrando, apenas um ouve s isto.Mentalmente suspirei de alvio e cumpri omeu destino imediato, obedecendo.

    Os primeiros sons que me invadiram,misturados com a msica da cidade, confun-diram-me desde logo: abalaram as minhas

    estruturas, deixando no ar um suave aromade mcua[2], de sal, de mar, qualquer coisa deindenvel e estranhamente agradvel. A vozda kianda[3] enfeitiou tambm os ocupantesdos carros ao nosso redor, e todos nos enca-minhmos disciplinadamente para o abismoda melodia que, numa repentina espiral azul,nos sugou para o ventre da sua magia natu-ral.

    No tenho memria de mais nada, a noser dos muitos instrumentos que se juntaram

    pouco a pouco no meu crebro, e me arrasta-ram numa vertiginosa viagem pelas ruas mo-vimentadas de Luanda, misturando populososmusseques[4] com zonas nobres e tranquilas,voos de pssaros coloridos, crianas rindoum riso de gua com mulheres sosticadas

    ostentando um orgulho natural, sorrisos quevalem uma janela aberta sobre o oceano.Nessa viagem senti o gosto da pitanga e dosns de tarde em Cabo Ledo, a promessa datnue embriaguez do marufo[5], misturei BaaAzul com Caotinha e ouvi canes ances-trais com roupagens de futuro; percebi a fala

    suave dos instrumentos tentando alertar-nospara o m da noite (talvez at para o mde ns), presenciei o casamento da marimbacom o trombone e senti a queda iminentedas barreiras de segurana s quais nos agar-ramos para camuar as nossas mortais fragi-lidades. A bossa nova falou-me noutra lngua,de expresso angolana, e a nossa terra abriuas portas ao universo inteiro. O jazz atreveu--se a abraar todas as notas musicais, ariscase fugidias, e com elas se fundiu numa melo-dia inventada pelo suor e transportada pelo

    vento. O meu parceiro de viagem apenassorria com os olhos, e assim dialogvamos jem total intimidade.

    A msica, dona do Sol e da Lua, adonou-setambm, sem aviso, de todos os mortais quea escutavam.

    Aquela doce nusea reduziu-nos entoos sinais vitais sua expresso mais terna,e mal percebi a respirao do companheiroque a meu lado se tinha deixado encantartambm pela sedutora ameaa da sereia.

    No sei quantas horas cmos inconscien-tes (teria eu algum dia estado consciente?);disseram-me depois que tnhamos sofridouma insolao, houve at quem levianamentealvitrasse que tnhamos sido expostos a umalucinognio. Estvamos, isso sim, profunda-mente desidratados, estranhamente felizes,esgotados, exauridos de ns. Ficmos emobservao, e aproveitei o momento paraobservar tambm (aquele instante nico emque ningum repara em ns, como indiv-

    duos, mas apenas nos mecanismos do nossocorpo fundamental para olharmos emvolta e nos situarmos). As mquinas daquelelocal asstico pareciam sorrir discretamente,o eletrocardiograma desenhava-se incessante-mente em cores arrojadas num trao regular

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    e hipnotizante. O esgmomanmetro regis-tava o dia e o ms do meu nascimento efoi ento que me apercebi da precaridadeda minha difana condio. A enfermeiraaproximou-se deslizando pela rampa breveda espuma do mar e reparei que a sua caudatinha reexos azuis e prola e a sua voz so-

    ava a msica, que eu tentei em vo trautear.Era msica em estado lquido, inacessvel aosmortais.

    Acordei com a estranha sensao de terultrapassado as fronteiras do bom senso, em-barcando sem preparo numa viagem clandes-tina e inenarrvel. No assento ao meu ladonem sombras de vida, apenas um CD comuma menina na capa, que me recordou a en-fermeira com cauda madreprola. A meninacom ar etreo desdobrava-se voando numa

    dana inumana ( qual chamou apenas Mo-vimento), e assinava o CD com um nome

    que me era at ento desconhecido, o que in-terpretei como um gesto de cordialidade dasereia cicerone, que ao desvendar-se tentavaredimir-se da tormenta que tinha inventadopara os seus convidados. Pura brincadeirada sereia, que deixou espelhado no disco umsorriso infantil, como que pedindo desculpa.

    Notas:

    1 - Acompanhamento base da gastro-nomia angolana que consiste numa massaespessa feita geralmente de farinha de man-dioca ou milho.

    2 - Fruto do embondeiro.

    3 - Sereia.

    4 - Bairros suburbanos de Luanda ocupa-dos pela populao com menos recursos.

    5 - Vinho de palmeira.

    Lusa Fresta

    Nascida em Portugal, viveu a maior parte da sua infncia e adolescncia em Angola, pascom o qual mantm laos de cidadania e envolvimento cultural e familiar, estando radicadaem Portugal desde 1993.

    Estudou engenharia civil em Frana na dcada de 80 do sc. XX, exerceu a prossodurante alguns anos at que passou a dedicar-se a outras reas, nomeadamente tradues emais recentemente escrita (rea qual sempre se dedicou formal ou informalmente) sob aforma de contos, crnicas e poemas.

    Em 1998 participou, em Portugal, no concurso de contos curtos Expo 98 palavras noqual viu o seu conto Crime publicado juntamente com cerca de outros 100, entre 2364 can-didatos.

    Em 2013 cou classicada em 2 lugar no 9 concurso online II Prmio Licinho Cam-pos de Poesias de Amor (Brasil) com o poema Soneto do Amor no Feminino. Tambm nesseano obteve o 2 prmio no 1 Concurso Internacional de Literatura de Alacib, (Brasil), nacategoria Crnica, com o texto intitulado Outros Campeonatos.

    Publicou em 2012 e 2013 uma srie de crnicas enquadradas num ciclo dedicado sdcadas de 70/80 da vida em Luanda, atravs do Jornal Cultura Jornal Angolano de Artese Letras (http://jornalcultura.sapo.ao/) com o qual colabora regularmente e publicou tambmpontualmente na revista moambicana Literatas. Desde Outubro de 2013 escreve quinzenal-mente no portal brasileiro O Gazzeta, (www.ogazzeta.blogspot.com.br) coordenado pelo jor-nalista e poeta Germano Xavier e desde 2014 no site Africin (www.africine.org) no Senegal.

    OBRAS DA AUTORA:

    49 Passos / Entre os Limites e o Innito (poesia), Chiado Editora, 2014

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    Um zumbido de tdio e de no-expectati-va nas coisas. Vozes saindo de bocas que semexem, como uma paisagem. Uma tristezaleve, quase lrica no sentido de que tristetudo aquilo que no feliz, mesmo que nodoa, necessariamente. A fatalidade cansadade ter de se movimentar no porque sejapreciso se movimentar, mas sim porque necessrio fazer alguma coisa para se livrarda inanio.

    Lucas estava sob efeito de calmantes eantidepressivos pesados enquanto observavainconsciente o voo confuso de uma abelha

    a poucos metros de distncia. Sabia apenassobre as coisas que eram necessrias. Seushorrios, compromissos e planos, que rodo-piavam muito lentamente em sua cabea,como se operados por engrenagens enferru-jadas. No fundo, sentia-se numa espcie decaverna de Plato, consciente de que estavasendo privado de uma quantidade enormede sensaes, emoes. No conseguia sentirraiva por estar sendo domesticado pela psi-quiatria como um animal selvagem o poralgum que julga ser seu dono. Era necess-

    rio, no m das contas.A camiseta suja de seu sangue e do sangue

    de outros, uma ferida de vermelho enegreci-do na testa, as cadeiras quebradas, o gargalode garrafa em suas mos. Imagens que sur-giam em sua mente como a justicativa deseu estado atual. Nasceu assim, um tanto sel-vagem. Fazer o qu? Tudo que queria era queno enchessem seu saco; que o deixassem nadele. Quando o aborrecem, o peito comea

    a queimar, as mos tremem e o seu pensa-mento borra: vira instinto, um ser humanobruto, no mais constitudo de linguagem.Mas a culpa no dele. No justo que sejacondenado a utilizar essas drogas enquantofaz sesses de terapia, muito infrutferas, emsua opinio. Queria ser livre para sentir, semo medo de machucar algum. Mas no possvel ser livre, nem sentir e nem perder omedo. E machucar algum algo sempre tofcil; fatal: vive-se, logo machuca-se.

    Seria mais fcil se no tivesse famlia, cr.Ningum que pudesse sentir vergonha dele,

    sofrer por ele, se preocupar com ele, intern--lo numa clnica. Seria mais fcil se pudessefugir. Seria mais fcil se pudesse machucar; ese pedir desculpas funcionasse.

    Pobre Lucas. O mundo no foi feito paraele, e nem ele para o mundo. Mas isso tocomum, a gente sempre nasce no tempoerrado, no lugar errado, do jeito errado.

    Sentiu aquele calor no peito, e quandoa primeira lgrima ameaou rolar por seu

    rosto, remexeu o bolso, puxou a caixinhade comprimidos e engoliu dois de uma vez,apenas com o auxlio da saliva. Recapitulouos compromissos do dia, checou as horas.Era melhor se apressar.

    E as outras pessoas que corriam, cami-nhavam, se divertiam e faziam piqueniquenaquele parque, ao tarem distraidamenteLucas em seu percurso, nem suspeitavam queali ia um animal enjaulado.

    Anderson S. Freixo

    LUCAS PENSA QUE NO POSSVELConto

    Anderson S. Freixo

    carioca residente em Salvador e estuda Letras na Universidade Federal da Bahia. Tevecontos publicados pelas revistas literrias online Outros Ares e mallarmargens, sob o pseu-dnimo de Don Soares e obteve, com o poema Saudade da dor, o segundo lugar no IVPrmio Literrio Srgio Farina, em 2012. Atualmente roda o blog zonadofreixo.blogspot.comonde compartilha seus contos, poemas e reexes.

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    Passos no telhado

    Conto

    Cinthia Kriemler

    Duas da manh e os grilos gritam maisbaixo no ar quente da noite. Cricrilam. Osgrilos cricrilam. Onomatopeia. Em que sriemesmo me ensinaram isso? Os gatos ronro-nam. As pombas arrulham. Os lees rugem.Os corvos crocitam. As vacas mugem. Asdaqui no mugem. No noite. Educadas ecompreensivas como o galo que s cocoricade dia. Hoje em dia os animais de stio ou-vem msica clssica. Nenhum se estressa ouca acordado de madrugada. S eu. A bestahumana que no prega os olhos faz mais deuma semana. Duas horas e meia, trs pornoite. o que tem dado pra dormir. Eu noentendo por qu. Sade boa, nanas razo-avelmente estveis, nem marido, nem lhospara sugar minha energia. Sequer um amigodoente, um amor destrambelhado, uma unhaquebrada, um o branco a mais nos cabelos,um quilo excedente. Tudo no lugar. Inclu-sive as onomatopeias e uma viagem para asilhas gregas marcada para daqui a um ms.Caprichos de mulher romntica que querver casinhas de pedra branca e conhecer amorada dos deuses.

    Est tudo bem. Menos este excesso de

    mato ao meu redor. E esta falta de sono. Eestes passos leves, bem leves, no telhado.Parecem garras arranhando as telhas. Osmeus ouvidos nunca me enganam. No soos gatos, porque os gatos esto comigo. Leo,Amarelo, Princesa e Donzela. Embolados nas

    caminhas enleiradas na parede, matandoa saudade de mim, porque faz mais de msque eu no dou as caras por aqui. Mas osrabos em p como radares me contam queno sou s eu que escuto os passos no teto.No sei se acendo a luz. Se for gente, no vaiadiantar. Se for bicho, no vai adiantar.

    Ser que gamb? Pode ser macaco. Ouento ... ona. Cruzes! Tem ona por aquide vez em quando, tocaiando o gato. E onasobe em rvore. Sem fazer barulho nenhum.Pisando como se fosse gato. E se sobe emrvore, sobe em telhado. No teve uma nointerior de So Paulo que fez isso? Deu o

    maior trabalho e era apenas lhote. Filhotede quantos quilos mesmo? Deixa eu olharaqui na internet. Vinte e cinco quilos! Serque o meu telhado de amianto aguenta? Equem vai tirar ela de l? Ainda faltam umastrs horas para amanhecer. Neste m demundo no tem bombeiro, no tem polciaque chegue logo. Seu Z Romualdo acorda squatro para ir para a roa, mas como queeu fao para ele vir aqui em casa logo cedo?Ele vai pensar que eu estou dormindo e vaidireto para a lavoura com os homens.

    Melhor car quieta que a ona vai em-bora. Nossa! L em So Paulo as telhas co-mearam a ceder com o peso dela e quaseque ela caa dentro da casa. E se cair aqui?Aqui nem telha de cermica nem nada! O

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    que que eu fao? Ser que ela me ataca?Onas so caadoras noturnas. Est dizendoaqui, no site. E so tmidas. Ser? Vai que elaresolva perder a timidez logo comigo. E osgatos? Coitadinhos! Melhor deixar a portado quarto aberta para eles poderem pelomenos tentar fugir. Eu no sei como que

    eles continuam dormindo. Deve ser porquefelinos no se estranham, se estranham? Seil! No entendo nada de onas. Gatos traido-res! S com esses rabos a abanando, dandoas boas-vindas ao parente visitante. E eu aqui,querendo gritar. Eu vou gritar. Ningum vaime ouvir mesmo. Eu e esta mania de carsozinha. Que droga!

    A arma que era do papai est no outroquarto. Ser que ainda est carregada? Serque eu dou conta de atirar? Ser que eu te-nho coragem de atirar? Um bicho to lindo,to majestoso. Que d! Deve estar com maismedo de mim do que eu dela. E com fome.Sim, com fome. De carne, claro. Qualquercarne. Eu vou atirar. Juro que vou! Depoispasso o resto da vida me arrependendo, mas,entre mim e ela, sinto muito, eu me escolho.

    Merda! Cad a arma do papai? Ah, no!Algum tirou daqui. No tem arma, o sinalde celular acabou de sumir e no tem nin-gum alm de mim na casa. Merda, merda!E agora os gatos se levantaram. O Amare-

    lo subiu no parapeito da janela. Ouviu ospassos, seu gato preguioso? Acordando meiotarde para o perigo, no? Ainda bem que asjanelas esto fechadas. Bem fechadas. Mas oque uma janelinha de nada para uma onade uns 40 quilos que sobe sorrateiramenteno telhado e pisa como se tivesse almofada

    nas patas? Ave Maria, cheia de gr... Aiii! Temmais de uma! Eu ouvi, eu ouvi! Umas duas...No! Acho que so trs! A famlia inteirasubiu no telhado! O teto vai desabar a qual-quer momento sob o peso dessas onas de60 quilos! E elas vo me esquartejar. Vodisputar meus pedaos como se eu fosse um

    frango. Coxa, sobrecoxa, peito, midos. Porqu, Senhor? Por que essa morte horrorosa?

    Essa Donzela mesmo uma gracinha! Veiopara o meu colo s porque sentiu que eu es-tou apavorada. Obrigada, lindinha. Mas vocno pode nos salvar dessa famlia de onasque subiu no... O que isso? Parece a voz doseu Z Romualdo falando com o Chico. Elesviram as onas e vieram me salvar! Obrigada,meu Deus, obrigada! A gente est salva, Don-zela! No ltimo minuto! Mas que barulheira essa? Est escutando, Donzela? T fraco, tfraco, t fraco. Por que que eles trouxeramessas galinhas pra c? Ser que esto usan-do as coitadinhas para atrair as onas? Quedestino tris... Esto batendo na porta. Comcerteza seu Z Romualdo pra me avisarque eles espantaram as onas. Deixa eu abrire oferecer um caf para ele. Que bom queesse inferno acabou!

    Noite, D. Angela. Eu s vim avisar que...

    Espantaram as onas, n, seu Z? Quemaravilha!

    Ona? Que ona, D. Angela? Eu s vimavisar que o Chico aqui mais eu j acabamosde recolher as angolas que tinham fugido dogalinheiro. Tava tudo no seu telhado, andan-do pra l e pra c. Deu um trabalho subirat l! Mas, ona... Ona mesmo que bomns no viu no, n, Chico?

    Cinthia Kriemler

    Contista e poeta. Comeou a escrever em 2007, na ocina Desao dos Escritores do Ncleo deLiteratura da Cmara dos Deputados. Autora dos livros: Sob os escombros e Do todo que me cerca,

    pela Editora Patu; Para enm me deitar na minha alma, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal FAC; e do e-book Atos e omisses, pela Amazon Brasil. Participa dediversas coletneas de poesia, de contos e de minicontos. Membro da Academia de Letras do Brasil,Seo DF, do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras REBRA.Carioca, mora em Braslia h mais de 40 anos. Graduada e ps-graduada em Comunicao Social.Escreve para a Revista SAMIZDAT todo dia 16.

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    BURACO NEGROMario Filipe Cavalcanti

    Conto

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    De repente me deu um medo de carlouco. como se... No, no como. Mas foisendo. Aquela coisa veio vindo em meio aoscalhamaos de papel. Como se nos calhama-os da papelada daquele processo morasse ognio demonaco que assola os felizes. Aqui-lo era felicidade? Aquilo era, eu digo e te

    pergunto sem noo do que falo. Usando essalinguagem, essa linguagem que o modo,o meio, o tudo. A linguagem que se me eeu no consigo sem ela. Ningum conseguesem ela. Mas naquele momento como se euno quisesse. No, como se eu no pudessecom ela. E o que eu queria? Saber o que sequer pode ser a chave, mas eu havia perdido,havia me desencontrado de todas as chaves.Havia cado e cado cada vez mais dentro docalhamao de papel.

    Eles me disseram que o delegado erainocente. O delegado Fragoso era uma vtimado sistema. Um sistema atroz onde o pro-cesso tem o cheiro de Joseph K. O processotem o cheiro, o gosto e o medo do senhorK. E tambm tem o beco onde envergonha-do, como um co, como um co vira-lata,ele morreu. Mas eu no acreditava muitono delegado Fragoso. Eu descria nele, comodescria em todos os homens. Li, li todo oprocesso do delegado Fragoso. Sabia de cada

    palavra por trs daquelas acusaes que lhedirigiam. Sabia o que era e o que no era.Mas eu no queria o que teria sido. Queriaa verossimilhana. Queria a aparncia. Eme olhava no espelho enquanto estudava oprocesso administrativo do delegado Fragosoe eu no era eu. Eu era uma mquina quedigitava no computador uns argumentos alevantar contra o Estado. Uns argumentosde um peixe contra um boi. Um camarocontra uma baleia. Mas a baleia, o Estado, oLeviat, esse monstro maquinal era compostode vrios camares, de vrios peixinhos quejuntinhos pareciam um peixe grande, comonum cardume. E no fundo era sempre culpanossa. Era sempre culpa nossa tudo aquilo.Eu acreditava no eu? EU, EU, EU, no sei.

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    E aquilo foi me vindo. Era como ummomento, um instante absoluto de pausa ede luta e de anulao do tempo e do espao.Aquilo

    era como uma fome que de repente apa-rece e nos toma. E eu fui sendo vassalo dasuserania do medo que me deu. Mas primei-ro no veio o medo. Primeiro o medo no ,depois ele vem sendo, depois ele. Sim, somen-te isso: depois ele. O instante do medo louco.Mas no meu caso louco no foi o medo.Louco foi o instante.

    Inocente inocente inocente era s essaa frmula argumentativa da minha lgica in-formal. Eu tinha que provar que o delegadoFragoso estava agindo no estrito cumprimen-to do dever legal, mas eu no sabia o que aspalavras podiam querer de mim, se diantedo papel, as linhas tortas e pretas no fundobranco talvez dissessem ao juiz justamente ocontrrio. Mas essa no era a minha preocu-pao. Essa no fora. E eu ia, ia, ia chegar naconcatenao mais perfeita da argumentaojurdica. Eu tinha a sanha de convencer, eusempre tive. Era o liderzinho dos meninosamarelos que eu guiava no to da brincadei-ra. Eles no sabiam como, mas eu inventavao jogo, eu inventava as estrias e punha todomundo pra acreditar nelas e brincar e ser e

    fazer com que o faz de contas fosse. Mas que eu no podia. Eu no sabia nem comoera o rosto do delegado Fragoso. Como eupodia defender algum que eu no vira nemo rosto? Por que ele seria digno de nota? Porconta da palavra escrita no papel, nas duasmil folhas de processo administrativo emque se dizia A B e depois A no pode ser B,mas C. Ora, aquilo era vida pra mim. Aquiloera uma vida possvel. Um destino pra mim.

    E de repente me veio um medo de car

    louco. Aquilo me veio vindo enquanto euolhava o calhamao de papel. E me tomoutodo. O peito. Meu peito foi cando estufadoe eu fui sentindo o segredo do mundo. Eu fuisentindo a chave da advinha. Mas o que era?

    No, no aches isso. No era coisa de se sa-ber, era apenas de se sentir e eu no queria,sim, eu no queria utilizar a linguagem. Joga-ra fora Descartes, Locke e Wittgenstein, todosos trs puta que os pariu! E no tinha maisnada, nada que no fosse aquele momento deinsanidade. A fome que eu ia sentindo, uma

    fome de loucura, uma fome que era umasada. A fome que representava toda a con-trovrsia da vida. A vida era a fome que eusentia e que ia matando aos poucos. Mas eusabia, eu sabia que no podia car satisfeito.Eu sabia que car satisfeito era o princpiodo m, que eu podia cair no buraco e mor-rer, levar uma topada e ser lanado para forada rbita da Terra. E se um buraco negro metragasse? O buraco negro de nossa galxiaest h anos-luz de distncia de ns, uma

    merda! O buraco negro est em ns. E eusentia aquela atrao dos corpos que se anu-lam. Mas eu no podia cair em mim. Noassim sem nenhuma proteo, sem nenhumpreparo. E era como se eu fosse cando sa-tisfeito e estivesse sendo tragado pelo buraconegro e acabasse como tudo o que acaba emseu bojo: satisfeito. Se eu estivesse satisfeito,eu seria a matria morta com tempo e espa-o anulados. Eu seria o no-ser e o no-estardo buraco negro. Eu seria a antimatria, sechocando com o corpo delgado, entre amare-lo e marrom, sensual que eu era. O buraconegro no um buraco, mais um saco queum buraco, vi na revista cientca e ri. Ricomo um doido. O b-u-r-a-c-o n-e-g-r-o O.Tudo isso so palavras, so somente palavrase aquela coisa a que chamam buraco negro o ralo do universo. Aquela coisa um botoreset. Aquilo a descarga do universo e eusei, eu sei que se eu casse satisfeito eu esta-ria me resetando, estaria me matando muitomais que o matar da fome. que restaria

    morta a fome de vez.E eu tinha a fome que se mata dia aps

    dia. Mas aquilo me pegou despercebido e eusenti a vontade. O mundo, no sei se von-tade de potncia, mas vontade, tanta von-

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    MARIO FILIPE CAVALCANTI(MARIO FILIPE CAVALCANTI DE SOUZA SANTOS) brasileiro, natural de Recife,

    capital do estado de Pernambuco, nascido em 15 de janeiro de 1992, escritor: con-tista e poeta. Acadmico quartanista da centenria Faculdade de Direito do Recife,

    da Universidade Federal de Pernambuco. Estudou piano clssico na Escola de Artesdo Recife. Prmios: Foi vencedor de vrios concursos literrios no Brasil, como os decontos da Associao Nacional de Escritores (Braslia/DF, 2012), de contos Cidadedas Asas da Secretaria de Cultura do Municpio de Gavio Peixoto (So Paulo, 2013),Meno Honrosa no de poesia VIII Varal de poesia da Faculdade Metropolitana deMaring e Academia de Letras de Maring (Paran, 2013) e Seminalista do PrmioSESC de Literatura 2014. Publicaes: participante de Antologias poticas no Bra-sil (IHGM, UFMA, 2013 Mil poemas para Gonalves Dias) e na Europa (ChiadoEditora, Porto, Portugal, 2013 IV Antologia de Poesia Contempornea Entre o sonoe o sonho). colunista da Revista SAMIZDAT. Autor dos livros Comdia de enga-nos (Guaratinguet/SP: Editora Penalux, 2013), livro Seminalista no Prmio SESC deLiteratura 2014 e Morte e vida e outros contos (Recife/PE: EdUFPE, prelo). Publicouem edies impressas das revistas eletrnicas SAMIZDAT e Varal do Brasil (Genebra,Sua) e em edies online da Revista de poesia 7 faces (Natal/RN). Mantm o blogliterrio: www.mariolipecavalcanti.blogspot.com.

    tade que eu amo. tanta vontade, vontade decomer os olhos, a boca, o respirar, at aquelavoz, aquela voz que ouvia na conversa, von-tade de no sei. Mas a minha vontade veiovindo sem escrpulos e sem a capa do saber.Eu olhei pro calhamao de papel e no vi,no ouvi, no nada, no nada, porra nona-

    da! Meu peito se encheu de ar e eu queiestufado e me veio. Senti vontade e me deudepois o impulso de levantar da cadeira aospulos e gritar, gritar, gritar, bater nas paredes,derrubar todo mundo, bater, bater e s usar alinguagem pra dizer AHHHHHHHHHHHH-HHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH-HHHHHHHHHHHHHHHHHHH! Voc senteisso, voc sente? No, pelo amor de deus, noentenda isso. No quero que voc entenda,quero apenas que sinta. Sentir? No sei, no

    sei o que quero contigo, mas eu precisava di-zer, ir dizendo, ir dizendo, ir falando, ir, ir, ir,ir. E da levantei a cabea assustado, ao meuredor ouvia a zoada do teclado dos outros.

    Os advogados teclavam o direito dos outros.Assim: tec, tec, tec, tec, tec, tec. Aquilo era adignidade da Justia. E eu abaixei os olhoscom medo de Thmis. Eu baixei os olhosporque ela tudo v e tudo julga. Thmis uma inconcluso. Mas ela .

    Eu no sou. Nunca fui e nunca serei. E mecontive. Eu contive dentro de mim a vontade.E esperei. Esperei a morte da minha loucura.Esperei que cessasse dentro de mim aque-la vontade de car louco. Fui descansandocomo no m do sexo. Fui assentando o juzocomo quem goza. Era como se eu estivesseno instante do buraco negro e agora eu mefosse dissolvendo. E eu olhei para mim eestava novamente de gravata. Eu estava deterno e gravata e eu estava bonito, com abarba feita e os cabelos cortados. E ento eu

    estava quase satisfeito. E ento morri.

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    Chris Sevla

    Conto

    trivia

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    Demorou muito tempo para convencer aspessoas sobre o que realmente sentia. Noera como se deixar contaminar por amorsabendo que se vai morrer, mas era uma do-ena que deveria acabar em morte, por amor.

    Por ele, suas dores e agonias; por seusraros momentos de alegria. Pela prpria dor

    que sentia, pela impotncia, coisas que nemdizia. Da que no estranhou quando ele feza proposta.

    Toda pessoa doente, ainda mais em estgioterminal, diz que quer morrer; e ele o fez atfaltar o ar. Daquela vez ele havia pedido paramorrer. No a Deus, a ela. Porque sabia, que,diferente do Todo-poderoso, ela, sim, fariaqualquer coisa que ele pedisse.

    Comeou a organizar os detalhes e a lhemostrar, nos raros momentos em que estava

    acordado. Corrigiu rotas, treinou falas, com-prou travesseiros novos, velou seu sono anes-tsico. Viu seu rosto se contorcer mesmo naausncia regada morna. E agonizou junto.Tambm sabia que faria tudo o que ele lhepedisse. O que ele no conhecia, e ela desco-briu, foi que faria tambm o que ele nuncateria coragem de suplicar.

    Organizou detalhes sem lhe mostrar,corrigiu rotas, treinou outras falas, borrifoulavanda nos travesseiros ainda no usados.Foi a vez dele velar seu sono durante suas

    presenas doloridas, o cenho sempre carre-gado, as arrumaes em pares. Mas no falounada at o dia combinado.

    Deixou que ela soubesse o que ele sabia,de sua inteno de ir com ele. Sorriu diante

    de tamanha coisa. O natural seria fazer umdiscurso contrrio, politicamente correto.Ento entendeu que essa mesma ideia o aca-riciava.

    E ela sabia.

    Sabia e aceitava no poder mais prend-

    -lo a msculos incapazes de ngir para simesmos. Quis, de corao, ser o partir suave,a ponte amorosa, o apego da prxima vida,assim como o era nesta vida de caveira.

    Sabia.

    Queria.

    Preparou tudo duas vezes. Alisou-lhe atesta e aplicou a substncia no soro, j prxi-mo do m, tempo suciente para que a visseaplicando o outro frasco no dorso da mona que ele tanto gostava de apertar.

    Amaram-se em suspenso. Amaram-se emsoluo. Quando sentiu o efeito, olhou-a pelaltima vez e disse:

    At j!

    Ela sorriu para engolir o inchao na gar-ganta.

    At j!

    Ele deixou atrs de si um silncio, queseria total, no fosse ainda pela respiraofeminina.

    Ela levantou, foi at ele e fechou seusolhos. Depois beijou as duas lgrimas em suaface. Seria um silncio total, no fosse porseu suspiro. Agora precisava avisar a famlia.

    Chris SevlaNeurocientista de formao, Chris Sevla roteirista e diretora de cinema, de atu-

    ao. Escreveu para os sites Os Noivos, Guia do Sexo, Bolsa de Mulher, concedendoentrevistas a rdios e revistas. Considerada uma das seis escritoras mais bonitas daLiteratura Nacional, estreou no livro Territrio V (Terracota). Ilustrou ainda A His-tria da Arte Pirata (AND Publishing, Londres). Atualmente escreve para a pginaBanheiro Feminino (fb.com/banheirobffeminino).

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    40 SAMIZDAToutubro de 2014

    Guilherme Scalzilli

    Conto

    Abate

    Noningentsimo sexagsimo oitavo desdeo ltimo. Faltam seiscentos e cinquenta etrs mil, cento e quatorze; no, cento e treze,casal s vezes conta um. A velha de cabelomuito preto at as ndegas, tiara de cro-ch, mede um metro e meio. O menino falasozinho e sopra a franja. A moreninha deunhas rosas suspira. Torto sobre uma perna,o enfermeiro se esvai nas rbitas abauladas,engasga e caminhamos duzentos centmetros no tinha nada, presso baixa caiu des-

    maiada no cho ovo, arroz, batata vai quet grvida e o namorado pai nem comajuda do divino padre eterno. Os apitos du-plos, pui-n, anunciam nosso porqu. bom,s vezes o esquecemos, dispostos em zigueza-gue no cercado retangular, pedras sem valorde um grande domin. Vinte centmetros. Asenhora de vestido sangue e prolas plsticastem bigode. O patrulheiro me encara ento prolongado, que venceu dia cinco pro-longado paga segunda Igor! Desce da! Eu

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    no falei ergue o corpinho raqutico pelaextenso cida do brao que quero voccomigo, aqui?! Moleque burro do cacete um tapa no coco pediu cpia autenticadacom rma reconhecida. Bonitinha, saia dealgodo, tamancos. Ter chegado h talvez,quanto? Finge que l uma Capricho, mas os

    de trs olham sua bunda. Aquelas gargalhamde qu? Igor chora roxo, agarrado pernada me como um louco ao poste. A dasespinhas, bolsa de couro com ores borda-das. O bermuda peludo, de camiseta e pastaazul, exalando sabonete. O rapaz com carade peruano. Tambm tem pasta de elstico,mas cinza. A manca acha que me conhece apostando, ganhava maior vacilo sabea Isabel que eu t falando cheiinha, n? pano que no acaba mais, meu deus docu. O mnimo com anel de pedra vermelha

    afrouxa a gravata. A dentua ri. O do bigodecafunga. Puin. Talvez uns sessenta que eletava certeza quem botou esses caras noprego matam logo pra falar o outro lperdeu em So Paulo porque minha mej puxou mais pro lado do tio Nardinho que c lembra um pouco quantos anostem a Talita? no, mas pode pr junto.Bon de time, batuca num cilindro plsticosem gua, ouvido colado, parece descobriras ressonncias. A gordinha de conga. Maisuns dois metros. Certo alvio. O olhar per-

    dido, desfocado, pequeno, boceja. Nada nosresta seno bocejar. A dona passa na frente,carregando um garoto enorme com meiassujas de barro e joelho ralado. A de bobe,a ginasial, a madame, quase encostadas, em

    silncio, olhando o mesmo cho. Seiscentos evinte e cinco mil e oitenta e dois, frente.O fortinho quer ler um jornal, mas o outrofolheia rpido demais. Da calada at aqui,comeando em linha e se esgueirando pelacorda, so exatamente cento e quarenta mil,duzentas e nove almas em jiboia colossal.

    Ela tem um chaveiro de cachorro depoisque eu acabei ele veio com certeza troono, eu num tava te oferecendo chegoutarde, hein, Maria Lcia, e eu ainda nemtinha tomado banho manda ele ir na outra.Porque l em cima t foda ts. Vamo cnessa mesma j pensou? desisti trezen-tos cruza? rrbo. Gambitinhos bronzeados,calo de laicra azul, rdio amarelo na cin-tura fazendo scsscscscsscs, cabea pendendopara um lado, quadril para outro. J chegamnegativas, reclamaes, o trecrecrrec dos cai-

    xas. E telefones ento, h centenas, milharesde campainhas estridentes, graves, pausadas,histricas, alegres, e as que simplesmentetocam para sempre. Puin. Anulamos ento,quarenta centmetros? Pois bem. As portasda rua so fechadas num murmrio coleti-vo de j? O guarda consente a tetuda quechega destrambelhada, rindo e agradecendo.Igor chora pessoal faz favor, d uma aperta-da pra caber essa turma. Aqui, senhora, virae continua pela faixa. Mos na cintura, empose de foto, o gerente inexpressivo sonda

    por cima das cabeas. Puin. Vinte, vinte ecinco centmetros.

    Guilherme ScalzilliHistoriador e escritor, mestrando em Divulgao Cientca e Cultural (Labjor

    Unicamp). Autor do romance Crislida (Casa Amarela, 2007), alm de volumes decontos e poemas. Colaborador regular de diversos veculos de comunicao. Blog:www.guilhermescalzilli.blogspot.com

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    42 SAMIZDAToutubro de 2014

    Volmar Camargo Junior

    Conto

    Segundo

    O segundo a durao de 9 192 631 770 pe-rodos da radiao correspondente transioentre os dois nveis hipernos do estado funda-mental do tomo de csio 133. Inmetro

    Ela abriu a porta logo depois do toque.Dois sinais, meio segundo entre eles. Meiosegundo entre o primeiro e o ltimo. Isso me

    lembra demais a matemtica, que diz que en-tre dois nmeros h o innito. E me lembraa histria, aquela da echa que no se move,porque todo intervalo de tempo ou de espa-o pode ser dividido ao meio innitamente.Eu confundo as histrias. Sei que numa delastinha uma tartaruga. Para percorrer o espaoentre o primeiro e o segundo, preciso per-correr antes a metade do percurso, e antes, ametade da metade. E me lembram, esses doissinais, que eu sempre me perguntei comoeles calculam esse meio segundo.

    Ser que eles praticam? Tm aulas paraapertar a campainha desse jeito? E mesmoquem brinca tentando imit-los eu j can-sei de fazer isso nas casas dos outros, e per-deu a graa no engana ningum. Ao mes-mo tempo, inversamente, todo mundo sabequando um deles toca a campainha. Lembrotambm que j me perguntei se nosso siste-ma de medir o tempo em segundos no vemdeles: um segundo equivale ao intervalo detempo entre dois sinais da campainha quan-do um deles est porta. Lembro que pensei

    em escrever sobre isso, talvez teorizar e atregistrar essa ideia: mudar nosso sistema declculo do tempo, em que cada minuto teria120 sinais de campainha, e pensei nessaocasio que no havia considerado o tempoem que a campainha permanece pressionada.

    Ento lembrei que nessa ocasio pensei quena verdade um sinal deles dura precisamenteum segundo, porque os sinais, separados notempo por meio segundo, duram um quartode segundo cada. Minha tentativa de revolu-cionar a contagem do tempo e minha pro-missora carreira como fsico, ou matemtico,ou, sei l, cronlogo, foi permanentementefrustrada pelo simples fato de que aquilo

    que postulei j a realidade, e que dizerexatamente o que diz a prpria realidade eo que j foi observado por todas as pesso-as o senso comum, e no tem nenhumvalor cientco. Mas o exerccio foi vlido:eles tm plena cincia da durao do tempocomo ns o conhecemos. E se chamamossegundo a unidade de tempo exata de seutoque composto, de duas partes, isso talvezno seja por acaso. Descobrir isso, ou melhor,provar uma coisa dessas, isso talvez fossecientco, mas pensar nisso talvez seja gastar

    tempo inutilmente.Ela abre. Ele entra. Eu observo. J estranhei

    mais. Todo mundo estranha, na infncia. Naverdade, todo mundo, alguma vez na vida, seperguntou o que que eles fazem, quem soeles, de onde vm, para onde vo depois quesaem das casas. lgico que todo mundopensa nisso alguma vez na vida. Eu lembroque dei-me conta deles com uns quatro anos,e dou-me conta que sempre h um delesnuma das minhas lembranas.

    Eu tinha quatro anos e estava em casa.Minha me fazia alguma coisa na cozinha,era um dia bem claro, eu lembro. Ela no eramuito de usar avental, mas, no sei por que,eu lembro dela de avental nesse dia. Tocou acampainha, a me me disse para abrir. Abri,

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    e ele entrou. curioso porque eu lembro deno ter medo dele e curioso que a metenha dito para abrir a porta sem nenhumareserva, e isso refora minha teoria de quesempre se sabe quando um deles tocando acampainha. Ele entrou, e eu no me assustei,porque hoje eu no lembro de nada anterior

    quele dia, mas eu tinha, claro, memria jcom quatro anos ento, eles j deviam fazerparte da minha realidade. O que aconteceu que aquela foi a primeira vez que eu abri aporta para um deles, e por isso que eu melembro desse dia.

    Ele fez o que todos eles fazem, desdesempre: entram somente depois de queaquele que abriu a porta indique com a moo interior da casa uma formalidade, elesentram mesmo que no sejam convidados.Eu z isso. Abri a porta, olhei para ele, uma

    gura enorme para os meus padres de qua-tro anos, mas era mesmo alto, mais alto quemeu pai, por exemplo, que era um homemde quase dois metros. Apontei o meio da salacom a mozinha e disse entra. Ele fez isso.Entrou, caminhou lentamente para dentro, eufechei a porta.

    Lembro de sua pisada no tapete da sala,onde estavam meus brinquedos. Ele olhou,sem se deter, mas olhou para eles. Eram peci-nhas coloridas, um kit desses brinquedos demontar, e eu lembro que era meu brinque-do preferido, e lembro de meu pai dizendoque era porque eu seria engenheiro quandocrescesse.

    Minha me veio da cozinha pelo corredorenxugando as mos num pano de prato. Elame disse pega aquele estojo ali pra mim,lhinho? e era um estojo