Sandra Lúcia Reimão - O Que é Romance Policial

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Leituras

afins

Coleção Primeiros Passos

• O que é Biblioteca — Luiz Milanesi • O que é Leitura — Maria Helena Martins • O que é Literatura — Mansa Lajolo• O que é Literatura Popular — Joseph M.Luyten• O que é Positivismo — João Ribeiro Jr.

Encanto Radical

• Alfred Hitchcok – o Mestre do Medo – Márcio Araújo• Georg Büchner – A Dramaturgia do Terror –Fernando Peixoto• Walter Benjamin – Os Cacos da História –Jeanne M. Gagnebin

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Sandra Lúcia Reimão

O QUE ÉROMANCE POLICIAL

2ª edição

editora brasiliense

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Copyright © Sandra Lúcia Reimão

Capa e ilustrações:Ettore Bottini

 Revisão: Newton T. L. Sodré

Tereza G. de Aguiar ISBN: 85-11-01109-91.ª edição 1983

 

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ÍNDICE

 – Introdução ......................................................... 7 – No século XIX ................................................. 11 – Allan Poe e seu detetive Dupin ....................... 17

 – Sherlock Holmes, o mais famoso dosDetetives ............................................................. 30 – Agatha Christie, a dama do crime .................... 42 – Dashiell Hammett e a narrativa Série Negra .... 51 – Marlowe, um discípulo de Spade ..................... 67 – Algumas conclusões ........................................ 73 – Indicações para leitura ..................................... 86

* A numeração das páginas deste índice correspondem à edição original. O texto após cadacolchete, indica à próxima página, exatamente fiel ao livro.

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[página 6 em branco]

INTRODUÇÃO

Quantas vezes eu, você, passamos numabanca de jornal, numa farmácia, numa livraria, esentimosum impulso irresistível de comprar um romancepolicial para ler antes de dormir?

Quantas vezes num domingo de inverno tudo oque a gente quer é ficar sentado quietinho e

quentinho devorando romances policiais?Não se preocupe. Assim como eu e você,muitas e muitas pessoas no mundo inteiro têm estaatração pela leitura de policiais. A tal ponto que estetipo de literatura é um dos mais vendidos de todosos tempos.

Mas será que já paramos e pensamos: Afinal de

contas, por que compramos um romance policial?Por que nos entretemos tantas e tantas horas comeste tipo de leitura? Como a literatura policialpode ser caracterizada? Quais de suas caracterís-[página 7] ticas fazem com que tantas e tantaspessoas gostem tanto deste tipo de leitura? Toda

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narrativa em que aparece um crime ou um delito ealguém disposto a desvendá-lo pode ser considerado policial? Afinal, o que é uma narrativa

policial?Toda narrativa policial apresenta um crime, umdelito, e alguém disposto a desvendá-lo, mas nemtoda narrativa em que esses elementos aparecempode ser classificada como policial. Isto porquealém da presença destes elementos é preciso umadeterminada forma de articular a narrativa, de

construir a relação do detetive com o crimee com a narração etc. Voltemo-nos um «pouco paraa historia" e tentemos entender como foi a criaçãodesta forma básica. Esta forma foi criada por Edgar Allan Poe, que a inaugura em seus contosque apresentam como personagem central oChevalier Dupin, e é a esses textos que devemosnos voltar, em primeiro lugar, para começarmosa pensar possíveis respostas para as questõeslevantadas acima.

Vamos, pois, juntos, tentar pensar um pouco,primeiro, na "invenção" do gênero policial comEdgar Allan Poe: quais as propostas básicas de Poe,

no que este gênero difere dos demais etc. A seguir vamos nos deter em dois dos seguidores maispopulares e conhecidos de Poe: Conan Doylecom seu detetive Sherlock Holmes e AgathaChristie com seus vários investigadores, mas,principalmente, com Hercule Poirot. Por fim, [página

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tentaremos localizar uma outra vertente doromance policial, o chamado romance série negra.

E, a seguir, retornaremos às questões iniciais,vendo se já podemos esclarecê-las ou melhor colocá-las em determinados pontos. No final destepercurso, talvez consigamos entrever que noperíodo em que estamos quietinhos e quentinhoslendo narrativas policiais podem estar acontecendocoisas que normalmente passam despercebidas e

que valem a pena ser pensadas. [página 10]

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 NO SÉCULO XIX...

O tipo mais divulgado de narrativa policial, istoque eu e você normalmente chamamos de romancepolicial, é a narrativa policial de detetive ou romancede enigma. A denominação romance de enigma nosparece perfeita, pois, de fato, esse gênero de policial

parte sempre de um enigma. Sua gênese, seu pontode partida é sempre uma dada situação de enigma.O enigma atua, então, como desencadeante danarrativa e a busca de sua solução, a elucidação,o explicar o enigma, o transformar o enigma emum não-enigma é o motor que impulsiona e mantéma narrativa; quando se esclarece o enigma, se

encerra a narrativa.Edgar Allan Poe (1809-1849), o criador dopolicial, é também, além de criador do gênero, oexemplo mais expressivo da narrativa de enigma.Estes atributos são possíveis porque se, ao criar [Página 11]  o gênero policial, Poe dá margem a

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vários tipos de narrativas policiais que surgirãodepois, ele próprio, em seus contos, escreve umanarrativa tipo policial de enigma ou romance de

detetive. Poe é a narrativa-enigma por excelência e,além disso, abriu a possibilidade do surgimento deoutros tipos de narrativa policial.

Mas' vamos por partes. Antes de começarmos apensar nos contos policiais criados por Poe, vamosnos deter um pouco no que estava acontecendo por volta de 1840 quando Poe cria o gênero. Pois as

condições de sua época influenciam grandementeos textos de Poe e propiciam a ele a invençãodo gênero. Vamos pensar estas condiçõesesquematicamente:

1º) Quando hoje o jornaleiro deixa todo dia o  jornal em nossa casa, ou alguém da família aosair para comprar pão o traz, raramente nos damosconta de que o hábito da leitura cotidiana de jornais peta classe média não é coisa tão velha eimutável assim. Foi no século XIX que surgiramna Europa os jornais populares de grande tiragem

(apesar de a imprensa ter surgido em meadosdo século XIII).

Esses jornais em algumas seções criam evalorizam o chamado "fato diverso": dramasindividuais, via de regra banais, ou então crimesraros e aparentemente inexplicáveis. O desafio domistério aliado a um certo prazer mórbido nadesgraça alheia e ao sentimento de justiça violada[Página 12] que requer então reparos, suo

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basicamente os elementos geradores da atração edo prazer na leitura deste tipo de narrativa.

Satisfazendo esses prazeres e, ao mesmo

tempo, habituando certo tipo de público á leituraregular dessas narrativas, esses jornais criamcondições para o surgimento e divulgação denarrativas outras que de alguma forma lidam,trabalham, se articulem sobre os mesmos elementosou elementos semelhantes aos que são articuladospor estas narrativas de jornais populares, entre elas

o romance policial.2º) O novo público criado pelos jornais degrande tiragem habita um novo espaço: as cidadesindustriais. As cidades industriais, produtos daRevolução Industrial estarão bastante presentes noromance policial Logo as primeiras narrativaspoliciais localizarão o crime no lugar onde eleaparecerá mais freqüentemente: a cidade. Asfachadas, as multidões humanas, os labirintos deruas serio, quase sempre, personagens mudosconstantes nas narrativas policiais.

3º) Outra coisa que raramente questionamos ésobre a origem da policia: parece ter sempreexistido, mas, na realidade, surgiu no século XIX.

É no século XIX que se desenvolverá a polícia,na acepção contemporânea do termo. No início doséculo XIX, os policiais franceses eram recrutadosentre os ex-condenados e um de seus chefes[Página 13] era o ex-condenado mais famoso detodos — Vidocq (1775-1857) —, que em 1828 lança

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suas memórias. Memórias estas importantes doponto de vista dos primórdios da narrativa policial,pois será em oposição a este tipo de investigador 

que Poe criará seu detetive Dupin.Vidocq, assim como os policiais do início doséculo, sendo um ex-contraventor, conhece por dentro o mundo dos crimes e os investigaempiricamente, convivendo com os criminosos, eatravés dessa convivência é que este policialconstrói suas investigações e chega a desvendar os

crimes que lhe são apresentados.Se num primeiro "momento há uma aceitação eaté uma certa louvação da polícia, logo a populaçãodas novas cidades industriais ficará desconfiada einsatisfeita com esta nova instituição. Paraas novas, instáveis e perplexas classes médias,, eratênue demais o limite entre um contraventor e um ex-contraventor.

É interessante notar que no plano da criaçãoliterária todos os primeiros grandes detetives serãonão policiais, serão investigadores que nãopertencem à polícia enquanto instituição.

4º) Se pensarmos no mundo das idéias, o queaconteceu de mais marcante no século XIX, eque terá, veremos mais a frente, um papel decisivona proposta literária de Poe e na criação de seudetetive Dupin, foi o Positivismo.

O Positivismo, um dos últimos movimentos[Página 14] filosóficos a obter grande divulgação,repercussão e aceitação fora do círculo dos

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especialistas, tinha como crença básica, comopressuposto fundamental, a afirmação de que osfenômenos são regidos por leis. Essas leis existiriam

tanto ao nível do mundo natural quanto do orgânicoe do universo humano. Uma das conseqüênciasdessas concepções positivistas é a crença de que oespírito humano está submetido a leis comoqualquer outro fenômeno, e a teoria da associaçãode idéias, já existente anteriormente, conhecerá seudesenvolvimento maior, especialmente com John

Stuart Mill. A crença em que a mecânica mentalobedece a certos princípios gerais e em que quemdominar estes princípios saberá usá-los em cadacadeia de idéias, de cada homem particular, estavaem plena voga.

5º) Ainda no mundo das idéias, um outro fatodeve ser salientado para que possamos entender melhor o surgimento do romance policial: ocriminoso passa a ser visto como um inimigo social.

O novo cidadão, inserido na nova organizaçãosocial da nova urbis industrial, conivente com asidéias positivistas de sua época, tem também umanova idéia de criminoso.

Se até a Idade Média (com exceção, talvez, doDireito Romano), o crime era considerado como umdelito entre indivíduos, que podia ser negociado esanado entre as partes lesadas, depois dosurgimento do Poder Judiciário, e da figura do[Página 15] procurador, aos poucos vão-se criando,solidificando e divulgando a idéia de crime como

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uma infração às leis do Estado e a idéia decriminosos como um inimigo público, que podeprejudicar não só os indivíduos diretamente lesados

por ele, mas também a sociedade como um todo.Ao lado dessa concepção de criminoso comoum inimigo público, um inimigo social, veremostambém que a figura do criminoso é patologizada.

O criminoso é um doente mental. Sua razão éàs vezes, quase tão perfeita quanto a normal.Sua falha está nos sentimentos éticos e morais

que, nele, estão deteriorados. Daí encontrarmos,ás vezes, na narrativa policial, a idéia de "gêniodo crime", em oposição ao "gênio da justiça" (odetetive), como, por exemplo, Sherlock Holmesversus Moriarty. [página 16]

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ALLAN POE E SEUDETETIVE DUPIN

Angariando o público leitor criado pelo surgi-mento dos jornais populares; elaborando a narra-tiva, entre outros, com os elementos articuladosnas narrativas de fatos raros destes jornais (curio-

sidade e desafio do mistério, atração pela desgraçaalheia, sensação de justiça que solicita reparosetc.); trabalhando com a nova realidade dosconglomerados urbanos industriais; lidando com ainsegurança da população, quê logo vem a nãoconfiar na polícia formada por ex-infratores;partilhando com seus contemporâneos o fascínio

pelas idéias positivistas e pela nova concepçãode homens que ele engendra; assim compartilhando,via de regra, pelo menos no início, a idéiade criminoso como um inimigo social, surgirá anarrativa policial moderna. [Página 17]

Enquanto na França, Inglaterra e nos Estados

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Unidos desenvolvia-se a novela de folhetins, comseus policiais, ex-condenados com métodos total-mente empíricos de investigação, em abril de

1841, um americano educado na Europa, comtextos já anteriormente publicados, lança, naGraham's. Magazine, aquela que é considerada aprimeira narrativa policial, a fundadora do gênero:"Assassinatos na rua Morgue".

Com uma proposta inovadora em termos deliteratura e um protagonista, C. Auguste Dupin,

que se opõe aos policiais ex-condenados quetrabalham empiricamente. Poe inventa o detetivemoderno, inventa, como diz  Lacassin, "umarquétipo literário: o detetive amador, o homem quecoleciona enigmas como os outro colecionamobjetos”.

Para Dupin, assim como para a maioria dosdetetives posteriores ao chamado romance enigma,investigar é um "hobby", um passatempo que seapresenta como um substituto do ócio, e esta serátambém a forma básica de apresentação da narra-tiva policial ante o leitor — a narrativa policial,pelo menos em seu início, propor-se-á ao leitor como uma agradável e estimulante forma desteúltimo ocupar seu ócio.

Dupin não participa da polícia enquanto insti-tuição, ele é um detetive amador, suas investigaçõesse baseiam em grande parte nas rigorosas inferên-cias que faz a respeito das cadeias de pensamentos[Página 18] nas mentes dos envolvidos nos crimes

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em questão, interferências estas desvendadas e tãolouvadas pelo Positivismo de então, como vimos.Mas todo este rigor e cientificismo é aplicado sobre

um fato que articula os mesmos ingredientes dasnarrativas dos jornais populares — um crime —, eeste crime ocorre, via de regra, nas novas cidadesindustriais.

Mas este "arquétipo literário" tem vida curta,aparece apenas nos três contos policiais de Poe:"Assassinatos na Rua Morgue", "O Mistério de

Marte Roget" e "A Carta Roubada".A própria invenção do gênero policial é, naverdade, conseqüência de uma nova concepçãode literatura proposta por Poe; é essa a concepçãoque fará com que Poe consiga imaginar umanovela policial, isto é, uma combinação de ficçãonão mais com o "deixar-se tomar pela inspiração epela fantasia", ou com o "liberar seu potencial decriatividade", mas sim uma combinação de ficçãocom raciocínio e inferências lógicas.

Está concepção é exposta, entre outros textos,em "Método de Composição", onde ele colocaaquele que deve ser o método de criação de umtexto literário. Para se pensar a narrativa policial,é importante destacar dois pontos desse texto.

O primeiro deles é a substituição da intuição edo acaso pela presença da precisão e do rigor lógico na criação literária. Poe acredita que nada,no ato de criar literatura, pode ser atribuído aoacaso, mas que tudo caminha rigorosamente para

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[Página 19] a solução desejada.Um segundo ponto, correlato deste, é que então

a história deve ser escrita ao contrário, de trás para

adiante, para que todos os incidentes convirjampara o fim desejado.Por aqui se vê que a valorização do rigor lógico

não é apenas aplicada por Poe no método deinvestigação de seu personagem Dupin, mas, sim,é aplicada por Poe no seu próprio ato de construçãode um texto. Elaborar uma narrativa é, no limite,

para Poe, um teste e um exercício dos pressupostose dãs crenças do Positivismo.Apenas a referência a esses dois pontos já é

suficiente para indicara complexidade e a dimensãodas propostas e da obra de Poe, e o quanto essascolocações indicam a Poe o caminho da narrativapolicial.

Não é o próprio Dupin quem narra suas aven-turas; os  três contos policiais de Poe são emitidospor um narrador   anônimo, amigo do protagonistaDupin. O leitor não fica informado do nome, daaparência física, da idade etc., deste narrador.Sabe-se apenas que ele é um fiel amigo, admirador e companheiro de moradia de Dupin. Para oleitor, ele é apenas um mediador, um contador dasaventuras e das inferências e raciocínios de Dupin.Esta forma de narração — narrativas elaboradas por um fiel amigo ao mesmo tempo memorial e ajudantedo detetive protagonista — preconiza e estabeleceum modelo de enunciação que encon- [Página 20]

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traremos freqüentemente no romance policial deenigma.

Mas não é apenas sobre esse narrador anônimo

que o leitor dispõe de poucas informações. O próprioDupin é um personagem apenas esboçado. E o éintencionalmente. Dupin é primordialmente umamáquina de raciocinar, e é isso que Poe salientapara seu leitor então absorto pelas idéias positivistasê pela nova concepção de homem, a capacidade é origor nos raciocínios como um instrumento preciso

para investigar e desvendar a aparentemente einexplicável lógica das ações e motivaçõeshumanas.

Dupin, esta “máquina de raciocínio” conhece osfatos por “ouvir dizer" (através de jornais,como em "... Marie Roget" e em "... RuaMorgue", ou através do relato verbal, como em“A Carta Roubada"), e, através dessas informações,

preenchendo suas lacunas, correlacionando indíciosetc., constrói teorias para explica-los, sem que sejanecessário, no limite, qualquer contata empírico como local em que o fato ocorreu, com os envolvidosetc. Esta "máquina de raciocinar", atuandopor inferências lógicas, por leitura de índicesvi intelecto, pode desvendar enigmas sem sair de seu domicílio.

Entre as inferências e raciocínios de Dupin,estão aqueles que dizem respeito aos pensamentose sentimentos dos outros personagens, inferênciassempre brilhantes e rigorosas que, já vimos, são

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[Página 21] produtos da crença do século passadono "homem como uma máquina desmontável", comoum ser que raciocina segundo alguns princípios

universais como semelhança, contigüidade econtraste e aquele que dominar essas leis podeentão deduzir, através de índices, os pensamentos esentimentos alheios. Um dos exemplos dessasinferências pode ser quando Dupin diz quais seriamos pensamentos de Marie Roget na manhã do diaem foi assassinada. Dupin deduz a intenção de

Marie Roget em retardar o maior espaço de tempopossível até que notassem sua falta etc."O Mistério de Marie Roget" foi baseado em um

assassinato real (de Mary Cecília Rogers), aconte-cido nos Estados Unidos, que Poe transportapaira Paris e, através dos depoimentos publicadosem jornais e das diversas reportagens, indica quemdeve ser o culpado, o criminoso. Tomando, pois,como ponto de partida um fato real, Poe reconstrói,então, na ficção, e através da ficção indicacomo deveria ser o culpado real, através deraciocínio e inferências lógicas e plausíveis. Selevarmos em conta que o assassinato real de MaryC. Rogers foi um fato bastante divulgado edifundido pelos jornais da época, e o rigorosotrabalho de Poe com jornais e depoimentos, alémda logicidade e plausibilidade dos raciocíniosapresentados por Dupin, veremos que, para oleitor da época (assim como para os posteriores),Poe esfacelava assim os limites entre o real e

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[Página 22] o  ficcional. Há agora entre essas duasesferas um jogo em que o real é a matéria para oficcional, e este volta-se para aquele elucidando-o,

um jogo de "transbordamento" e açambarcamentomútuo.Dupin enquanto personagem interessa-se pelos

demais personagens das narrativas apenas comoelementos de suas equações mentais, e se tenta

“penetrar na mente" destes, é apenas paraconhecê-los melhor e assim inferir adequadamente,

e através dessas inferências "dar matéria”para Poe exercitar sua matemática de composição,nunca para julgá-los, envolver-se emocionalmenteou posicionar-se ante eles.

Dupin sempre se lança na tarefa deinvestigação depois de o crime e o delito etc., ter acontecido.

Tanto o trabalho de Dupin em relação aoscrimes em questão, quanto a narração de suasdeduções, são posteriores, acontecem depois dofato consumado, de o crime ter ocorrido. E estaserá uma regra básica no romance de enigma.Ou seja, o romance policial de enigma é, naverdade, composto por duas histórias: a do crime e ado inquérito.

No romance enigma, a primeira história (a docrime) não estando imediatamente presente nolivro, as investigações (e a narrativa) começamapós o crime, presente na narrativa através danarração dos personagens diretamente envolvidos

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nele; a segunda história (a do inquérito ou investi-gação) é o espaço onde os personagens, especial-[Página 23] mente o detetive e o narrador, não

agem, mas simplesmente detectam e investigamuma ação já consumada.Essas características de cada uma das duas

histórias, nessa dupla história, presentes em Poe,serão, sem dúvida, a estrutura básica de todo oromance enigma-clássico, estrutura que enfatizará,em última instância, não o próprio crime (primeira

história), mas a forma de apreensão do detetivesobre uma ação passada, a forma de investigação,de condução do inquérito (segunda história). Énesse espaço da ambigüidade, entre o real ausente(o crime) e a presença do insignificante (o inquéritoinsignificante, já que não existe "em si", masapenas em função de um determinado crime), quese construirá a narrativa policial clássica, comomostramos no diagrama a seguir:

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Encontramos, também, no chamado romanceenigma, assim como nos contos policiais de Poe,uma das conseqüências básicas dessa estrutura:

[Página 24] a imunidade do detetive. Uma vez queos persona-gens da segunda história, a do inquérito,não agem, mas apreendem sobre uma açãopassada, e que as narrativas são elaboradas emforma de memória, via de regra, pelo amigo oumemorialista do detetive central, diminuem, emprincípio, as possibilidades de o detetive morrer ou

sofrer grandes danos no desenrolar da narrativa.Fato esse perfeitamente "enquadrável" naperspectiva inicial da narrativa policial, dada pelaconcepção do detetive não como um personagem,mas como uma "máquina de pensar". E as máquinasnão morrem. O detetive não é uma pessoa, mas

primeira história(ausente, mas real)

segunda historia(presente, mas

insignificante)personagens

principaiscriminoso

vítimadetetive narrador  

assuntoação propriamente

dita (o crime)

apreensão da ação

passada (o inquérito)

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uma máquina semelhante a um homem apenas noque diz respeito às faculdades do intelecto.

O narrador dos contos policiais de Poe não é a

"máquina de raciocínio" rigorosa e infalível que éDupin; ele despreza indícios reveladores, não seapercebe de lacunas etc., assim como o leitor médio.E Dupin sempre apresenta soluções relativamentesurpreendentes para ambos. Pois nem toda aintimidade de Dupin com seu narrador faz com queesse lhe adiante os resultados de suas investi-

gações. Em "A Carta Roubada", por exemplo, sóapós ter elucidado o fato e estar com a carta emsuas mãos, Dupin revela isso simultaneamente aodelegado de polícia, a seu companheiro narrador eao leitor. Vejamos esse trecho, pois ele é muitoelucidativo como exemplo da personalidade e daforma de atuação de Dupin: [Página 25]

"— Mas — disse o delegado, um tantodesconcertado — estou inteiramente disposto aouvir um conselho e a pagar por ele. Daria,realmente, cinqüenta mil francos a quem quer queme ajude nesse assunto.

— Nesse caso — respondeu Dupin, abrindouma gaveta e retirando um livro de cheques — podepreencher um cheque nessa quantia. Quando o tiver assinado, eu lhe entregarei a carta.

Fiquei perplexo. O delegado parecia fulminadopor um raio. Durante alguns minutos permaneceumudo e imóvel, olhando, incrédulo e boquiaberto, omeu amigo, com os olhos quase a saltar-lhe das

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órbitas. Depois, parecendo voltar, de certo modo, asi, apanhou uma caneta e, após várias pausas eolhares vagos, preencheu finalmente o cheque de

cinqüenta mil francos, entregando-o, por cima damesa, a Dupin. Este o examinou cuidadosamente eo colocou na carteira; depois, abrindo umaescrivaninha, tirou dela uma carta e entregou-a aodelegado de polícia. O funcionário apanhou-atomado como que de um espasmo de alegria, abriu-a com as mãos trêmulas, lançou um rápido olhar ao

seu conteúdo e, depois agarrando a porta e lutandopor abri-la, precipitou-se, por fim, sem a menor cerimônia, para fora do apartamento e do prédio,sem proferir uma única palavra desde o momentoem que Dupin lhe pediu para preencher o cheque.

Depois de sua partida, meu amigo entrou emalgumas explicações.

— A polícia parisiense — disse ele — /... /."[Página 26]

Narrador e leitor partilham do fato de nãoserem máquinas de raciocínio infalíveis e dofascínio pelas surpresas que as inferências destehomem-máquina podem causar.

Outro elemento, que é importante perceber para melhor entender a questão da construção danarrativa em Poe, é o abuso de superlativo,hipérboles, etc. Vejamos o trecho em que o narrador anônimo dos contos policiais de Poe descreveseu primeiro contato com Dupin, e a decisãoposterior de ambos partilharem aposentos:

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"Interessou-me  profundamente a pequenahistória de família que ele me contou  pormenorizadamente I... I  surpreendeu-me,

também, a vasta extensão de suasleituras e, acima de tudo, senti-me inflamadopelo intenso ardor e extrema vivacidade de suaimaginação /... / coube-me a despesa de alugar e mobiliar /... / um velho e grotesco casarão,arruinado pelo tempo, havia muitodesabitado /.../. A casa, situada num recanto

desolado e retirado de Faubourg Saint-Germain,era tão velha, que estremecia sob nossos  passos, comose estivesse prestes a ruir." 

Como se pode notar, superlativos e hipérbolesnão são poupados; essas figuras, juntamente coma antítese, povoam os contos policiais de Poe,coisa que pode causar certa estranheza ao leitor contemporâneo, habituado a descrições e narraçõesmais discretas; mas se lembrarmos os folhetins do[Página 27] século XIX e as narrativas dos jornaispopulares, veremos o quanto elas são adequadas edestinam-se a envolver o leitor de então (e não sóde então).

Para encerrar essa abordagem dos contos poli-ciais de Poe, é importante salientar que, nessestextos, encontramos outro elemento que perma-necerá por toda evolução do romance policial: Os jogos Intertextuais. Ou seja, aquelas passagens em

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que uma narrativa se refere, critica, recontextualizaou elogia outra narrativa. Esses jogos podemacontecer também entre personagens de narrativas

diferentes. E essas narrativas e esses personagenspodem ser explicitamente citados ou apenasindiretamente referidos.

Entre os contos policiais de Poe, há sempre um jogo de referência. "O  Mistério de Marie Roget"é apresentado como uma continuação de "Assas-sinatos na rua Morgue" e logo no início de

"A Carta Roubada", o narrador se refere às suaslembranças, anteriores às de Dupin.Mas estes jogos intertextuais, não se limitam

apenas ao interior da própria obra de Poe. Em“Assassinatos na Rua Morgue", Poe faz Dupinverbalizar, por exemplo, uma crítica a seu ante-cessor Vidocq:

"I... I Quando tais qualidades de nada servem,seus planos fracassam. Vidocq, por exemplo,era um excelente adivinhador, além de ser umhomem persistente. Mas, não dispondo de umainteligência educada, errava [Página 28]continuamente, devido à própria intensidade desuas investigações. Sua visão era prejudicada,por olhar   muito de perto o objeto. Podia ver,talvez dois ou três pontos com extraordináriaclareza, mas, ao fazê-lo perdianecessariamente, a visão total do assunto. Aíestá o defeito de ser demasiadamente profundo.

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A verdade nem sempre se encontra no fundo deum poço. Na realidade creio que aquilo quemais importa conhecer é, invariavelmente,

superficial. A profundidade se encontra nosvales em que a procuramos, e não nos cumesdas montanhas /... /."

Se a referência é bastante crítica, salientando afalta de método e a ausência da visão deconjunto em Vidocq, por outro lado estabelece-se

uma certa filiação entre Vidocq e Dupin, estandoambos preocupados e interessados na elucidaçãode enigmas.

Acredito que a crítica a Vidocq visa distinguir e salientar, para o leitor, os métodos de Dupin,enquanto detetive. Ao passo que os jogos inter-textuais entre os contos policiais de Poe recordam,para o leitor que conhece os outros contos, obrilhantismo das atuações de Dupin, e, para os quenão os conhecem, indicam-nos como leituraa ser feita. [Página 29]

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SHERLOCK HOLMES, O MAISFAMOSO DOS DETETIVES

Conan Doyle (1859-1930) criou o mais famosodetetive de todos os tempos: Sherlock Holmes.Holmes foi imortalizado por seu autor em quatroromances e cinco livros de contos. Além dessestextos de Conan Doyle, vários outros autoresescreveram narrativas parodiando, ressuscitando ou

fazendo pastiches com esse personagem. O cinematambém dedicou vários filmes a Holmes.A fama de Sherlock Holmes chegou a tal ponto

que até hoje muitas pessoas acreditam que eletenha realmente existido, enquanto pessoa e nãoenquanto pessoa e não como criação literária Noendereço criado por Conan Doyle como sendo

residência de Holmes, 221-B Baker Street, nãoparavam de chegar, e ainda chegam, cartascongratulando Holmes por seus feitos ou propondo-lhe serviço, cartas que [Página 30] são reenviadasao filho de Doyle.

Na obra de Conan Doyle, cujo protagonista é

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Holmes (Doyle escreveu também outras narrativasde aventuras, relatos de viagem etc.), uma figura,  já existente nos contos policiais de Poe, passa a

adquirir importância central: o narrador.A grande maioria dos detetives do chamadoromance de enigma clássico tem suas aventurasnarradas por outros personagens do texto. Essespersonagens-narradores podem variar entre ospersonagens de cada narrativa, ou podem ser personagens-narradores fixos, que seriam os memo-

rialistas desses detetives. Nesse último caso,encontramos o Dr. Watson para Sherlock Holmes, oCapitão Hastings para Hercule Poirot e ArchieGoodwin para Nero Wolfe, por exemplo.

A grande recorrência a personagens-narradoresno romance de enigma, como fato geral, tem umarazão facilmente explicável. O detetive desse tipode romance é, via de regra, uma "mente dedutiva","uma maquina de pensar", que, através de vestígios,

pistas, indícios, consegue reconstruir uma história,um fato passado, e assim descobrir o (s) culpado (s).

Se a narrativa fosse elaborada por essa "mentededutiva", o leitor estaria sempre passo a passo como detetive (o que contraria a própria concepção deleitor, nesse tipo de narrativa). Assim, uma dascaracterísticas fundamentais do romance enigma —a revelação final e a conseqüente reconstrução datrama — perderia seu sentido. Além de, é claro,

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[Página 31] esses personagens auxiliaresintensificarem o halo de admiração que rodeia odetetive.

Se o fato de o próprio detetive ser o narrador cria dificuldades para a narrativa, e se o narrador onisciente está, por princípio, descartado doromance enigma, trás formas de emissão restam (senos limitarmos às tradicionais): o narrador impessoal (mas nunca onisciente), vários narradorese a recorrência a personagens-narradores. Como

acabamos de ver, esta ultima forma será a maisusual no romance de enigma, e é nesse caso que seencaixam os personagens-narradores fixos, osmemorialistas ou historiógrafos dos detetives.

Embora John Watson se proponha como omediador que fará com que o público tome conhe-cimento dos fatos vividos e desvendados por Sherlock Holmes (e, num dos momentos dessasnarrativas que não têm Watson como narrador,um outro narrador se refira a ele como um regis-trador, um recordador, das aventuras de Holmes)e apesar de o próprio Holmes também se referir a Watson como um cronista de seus feitos, JohnWatson é muito mais do que um mero mediador,um simples registrador.

Watson é um narrador, em primeiro lugar, queescolhe e seleciona as aventuras de seu prota-gonista que devem ser narradas. Nem todas asaventuras de Holmes, que Watson toma conhe-cimento e registra em seu diário, vão se transformar 

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em narrativas. É Watson quem escolhe aquelas que[Página 32] terão esse destino, E ele o fazvalorizando: 1º) aquelas que não tiveram "grande

publicidade através dos jornais"; 2º) aquelas queoferecem um "campo apropriado para salientar aquelas qualidades que meu amigo possuía em tãoalto grau e cuja demonstração é objetivo dessaspáginas"; e 3°) aqueles casos que fossemesclarecidos por "provas absolutamente lógicascomo era de seu agrado" (como é salientado em

"Um Caso de Identidade", em "As Aventuras deSherlock Holmes").Como se pode notar, o primeiro argumentoarrolado por Watson, para a seleção das aventurasde Holmes que serão transformadas em narrativas,diz respeito diretamente ao público leitor. Watsonvisa narrar algo que não tenha sido desgastadopelas notícias e narrativas de jornal, algo que sejainédito para seu público leitor, o que implica, então,que o público é concebido como formado por feitoressedentos pelo raro, pelo inédito. O primeiroargumento, então, diz respeito à especificidadeda matéria a ser narrada ao público leitor. Osegundo e o terceiro argumentos dizem respeitoà especificidade da forma de tratamento dessamatéria, isto é, como esta matéria, que poderia ser abordada de várias formas, será trabalhada por Holmes de maneira bastante específica — provaslógicas, deduzidas com todo o rigor, deduções essasque são a qualidade mental fundamental de Holmes.

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De onde se deduz uma concepção de [Página 33]detetive que o particulariza como sendo aquele quetem uma forma única, distinta, específica

de trabalhar uma matéria. Forma essa que deveser narrada, pois merece ser acompanhada,admirada.

Em segundo lugar, Watson é um narrador queescolhe, que opta por sua forma de narração.Opção que não se coaduna com o que seu prota-gonista crê deveria ser a narrativa de seus feitos.

Como nos relata o próprio Watson (em "O Signodos Quatro"), Holmes não gostou da forma"romanceada" com que Watson construiu a primeiranarrativa: Honestamente não posso congratulá-lo. Adetecção è, ou deveria ser, uma ciênciaexata, e deveria ser tratada da mesma maneirafria e sem envolvimento emocional. Você tentoupintá-la com romantismo, o que dá o mesmoefeito de você elaborar uma estória de amor oufuga com o auxílio do quinto postulado deEuclides."

É bom lembrar que o próprio Holmes é autor de alguns artigos e várias monografias técnicas,formas que melhor se coadunariam com o queele esperava que fosse a narração de seus feitos.

Holmes, via de regra, se lança ao trabalho deinvestigação após o enigma estabelecido, o fato

(o delito, o crime etc.) consumado; Watson, por seu turno, começa a atuar, como narrador, quandoo enigma já foi resolvido por Holmes. Watson

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atuaria como o detetive do detetive. Se Holmes[Página 34]

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 investiga, um crime. Watson, pata elaborar a narra-tiva, segue as pistas de Holmes a respeito da

investi-gação, e as transmite ao leitor; Watsoninvestiga etenta compreender o processo de investigação deHolmes: Se Holmes visa elucidar um crime, Watson,por seu turno, visa esclarecer e transmitir o processode investigação desse crime.

Além disso, Watson, enquanto narrador, é um

narrador = personagem, sua visão dos fatos éparcial, ele sabe tanto quanto qualquer personagem,ele só pode oferecer explicações para osacontecimentos quando os outros personagens já aencontraram. Esse fato facilita ao leitor identificar-secom esse narrador, a fim de que possa seguir anarrativa compartilhando os pontos de vista deWatson. Em última instância, este fato faz com queWatson atue como um leitor-na-obra.

Deixemos agora Watson um pouco de lado, enos centremos em Holmes.

Watson fica tão perplexo ao conhecer Holmesque, na tentativa de adivinhar sua profissão, elaborauma lista de seus conhecimentos, para depoistentar conciliar essas qualidades com uma profissãoque as exigisse. E a lista elaborada por Watson éa seguinte:

"SHERLOCK HOLMES-seus limites.

1. Conhecimentos de Literatura — Zero.

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2. Conhecimentos de Filosofia — Zero.[Página 36]

3. Conhecimentos de Astronomia — Zero.

4. Conhecimentos de Política — Escassos.5. Conhecimentos de Botânica — Variáveis.Conhece a fundo a beladona, o ópio e os venenosem geral. Não conhece nada sobre jardinagemprática.

6. Conhecimentos de Geologia — Práticos, maslimitados. Reconhece à primeira vista as diversas

qualidades de solo.Voltando de seus passeios, mostra-me manchasnas calças, e diz-me pela sua cor e consistência emque parte de Londres as recebeu.

7. Conhecimentos de Química — Profundos.8. Conhecimentos de Anatomia — Exatos, mas

pouco sistemáticos.9. Conhecimentos de Literatura Sensacional —

Imensos. Parece conhecer cada detalhe de todos oshorrores perpetrados no século.

10. Toca bem violino.11. É um perito em bastão, boxe e esgrima.12. Tem um bom conhecimento prático das leis

inglesas."

Ao chegar a esse ponto da lista, Watsondesanima e contenta-se em desconhecer, por maisum tempo, o tipo de trabalho a que Holmes sededicava. É só algum tempo mais tarde que Holmesse definirá, para Watson, como um "detetive de

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consultas", um orientador mental dos detetivesoficiais e particulares.

A máquina de raciocinar chamada Sherlock

[Página 37] Holmes é um instrumento preciso eprecioso no trabalho de orientação daqueles quecorrelacionam pistas, buscam índices etc. Acapacidade mental dessa máquina é alvo daadmiração tanto de Watson quanto do leitor que, apartir de uma atitude inicial cética, vai aos poucosaprendendo a admirar e a fascinar-se com as

atuações desse incrível detetive.Dois outros fatores devem ser salientados natentativa de entender o papel de Conan Doyle nodesenrolar cronológico da narrativa policial, fatoresque talvez sirvam como subsídios para se tentar explicar a enorme popularidade de Sherlock Holmesenquanto personagem.

O primeiro deles diz respeito à personalidade deHolmes. Se Dupin não existia enquantopersonagem, mas apenas enquanto detetive,enquanto máquina de raciocínio, Holmes, além deser, enquanto detetive, uma máquina dedutiva aelaborar equações, nem por isso abdica de ter personalidade própria. Ao lado de Holmes detetive, é justaposto, agregado, Holmes, o homem. Enquantohomem, Holmes tem hábitos pouco aceitossocialmente quanto à morfina e â cocaína, adoratocar violino enquanto medita, e é uma pessoa quese entendia profundamente com o ócio.

Essas características não se relacionam direta-

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mente às atividades de Holmes enquanto detetive, ecreio que elas são uma das causas da populari-zação e grande aceitação desse personagem.

Através [Página 38] dessa "humanização", parece-me que o detetive toma mais próximo e, portanto,mais assimilável para o leitor.

Outro fator que é importante notar diz respeitoà metodologia de ação de Holmes diante de umdado enigma. Se o método de ação de Dupinpodia ser caracterizado, em última análise, como

uma leitura de índices via intelecto, em Holmes essemétodo encontrará a seu serviço procedimentostécnicos científicos: colheita e análise de impressõesdigitais, análise de tipo sangüíneo, testes de tempode coagulação sangüínea, pesquisa de rastros,marcas, vestígios, etc. Quem dos leitoresde Holmes não formou a imagem dessa fina e sutilfigura, vestida com sua capa e seu chapéu, saindosoturnamente em busca de indícios, vestígios etc.,como um verdadeiro mastim?

A questão dos jogos intertextuais, que vimosaparecer em Poe, reaparecerá nos textos de ConanDoyle que têm Holmes como protagonista. Alémdos inúmeros jogos de citação e referências nointerior da própria obra de Doyle, há também  jogos de referências críticas a investigadoresanteriores a Holmes. Em "Estudo em Vermelho”,esses jogos aparecem, entre outros, com relaçãoa Dupin. Vejamos essa passagem.

Depois de explicar a Watson como ele, Holmes,

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sabia que Watson era um médico do exército,ferido no Afeganistão, Watson lhe diz: [Página 39]

"I... I  Você me faz lembrar o Dupin de Edgar 

Allan Poe/.../"ao que Holmes respondeu:

"Sem dúvida, você acha que está me elogiando,comparando-me a Dupin /.../. Pois, na minhaopinião, Dupin era um sujeito bem inferior.Aquele seu estratagema de intervir nos

pensamentos de seu amigo, depois de quinzeminutos de silêncio, é realmente muitopretensioso e superficial. Tinha certo gênioanalítico, sem dúvida; mas não era de jeitonenhum o fenômeno que Poe parecia imaginar."

Como se pode notar, essa referência é bastantedesfavorável ao referido, e seu intuito maior é dar especificidade a Holmes enquanto detetive. Esse jogo intertextual com narrativas e policiais anterioresé uma metalinguagem, uma auto-reflexão, dogênero nascida na própria história deste, e que semanterá em grande quantidade em todo o desen-volver do romance enigma, até nossos dias, e quepode, também, ser facilmente encontrada nasnarrativas "Série Noire".

Acredito que esses jogos intertextuais, comunsno gênero policial, devem ser abordados sob doisângulos. Em primeiro lugar, do ponto de vista deum leitor não-habituado no gênero e que, eventual-

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mente, tem em mãos um romance policial, essasdigressões não passam de meros "ruídos", na[Página 40] medida em que esse leitor  

provavelmente desconhece o outro referido e essasdigressões não alteram a trama básica do romance.Em segundo lugar, do ponto de vista de um leitor assíduo do gênero, esses jogos intertextuais sãofundamentais, pois são eles que darão aespecificidade do texto que ele tem em ante osdemais textos do gênero. Temos, pois, alta taxa de

presença de jogos intertextuais no gênero policial,algo que vale a pena ser salientado: trata-se de umacaracterística do gênero que visa exatamente perfilar cada texto ou grupo de textos em relação aoutras narrativas do gênero, em relação ao policialenquanto tradição. [Página 41]

 

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AGATHA CHRISTIEA DAMA DO CRIME

É muito difícil precisar o número de textosescritos por Agatha Christie (1891-1976). Isto devidoàs diferenças entre as edições inglesas e

americanas e ao fato de um mesmo grupo de contosser muitas vezes encaixado de forma diferente, emvolumes diferentes. Agatha Christie escreveu,aproximadamente, 61 romances, 165 contos, 14textos para teatro (escritos originalmente para teatroou teatralizados por ela mesma); além disso,escreveu mais oito textos sob outros nomes (Mary

Westmacott e Agatha Christie Mallowan).Seus romances e contos deram material paramuitos filmes, dos quais os mais conhecidos são"Assassinato no Orient Express" e "Os DezNegrinhos", è para muitas montagens teatrais.[Página 42]

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Na vasta obra de Agatha Christie, encontra-seum pouco de tudo, em termos de narrativa policial.Muitas dessas narrativas têm como protagonista

Hercule Poirot (aproximadamente 31 romances,57 contos e seis peças), Esse detetive belga comcaracterísticas francesas foi o primeiro criado por Christie, e sem duvida é o mais famoso detetiveda história da narrativa policial, depois de SherlockHolmes. No geral, os textos que têm Poirot comopersonagem central seguem uma linha mais

"clássica" do romance enigma, são textos queseguem mais fielmente os modelos criados por Poe e Conan Doyle. Em alguns desses textospodemos encontrar outro personagem bastantepopular e outra feliz criação de Agatha Christie, oCapitão Hastings, que atua como amigo, compa-nheiro e memorialista narrador dos feitos de Poirot.

Outro detetive criado por Agatha Christie é afascinante Miss Jane Marple, aquela gentil e pacata,refinada, mas simples, velhinha inglesa, brilhantee certeira quando se trata de conhecer a naturezahumana e desvendar suas ações.

O casal Tommy e Turppence Beresford, Mrs.Ariadne Oliver, Superintendente Battle, Mr.Parker Pyne, Mr. Satterthwaite e Mr. Quin sãoos detetives criados pela dama do crime e encarre-gados de desvendar os mais complexos enigmas.

Ao lado das obras que seguem francamente ascorrentes mais clássicas do romance enigma, é[Página 43] interessante notar que encontramos

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também, em Agatha Christie, obras que rompemcom as regras consideradas básicas no gênero. Setomarmos como ponto de referência as "Vinte

Regras Para Escrever Histórias Policiais" de S. S.Van Dine, veremos, pelo menos, duas obras deAgatha Christie que rompem essas regras:"Assassinato de Roger Ackroyd" rompe a regra 4,pois o narrador, que ajuda o detetive nasinvestigações, é o criminoso; "Assassinato no OrientExpress" rompe a regra 12, pois o crime é planejado

e executado por vários personagens, exatamente12. Há ainda obras que rompem regras nãoindicadas por Van Dine, mas tidas por consensocomo elementares: em "Os Dez Negrinhos" todos ospersonagens principais morrem e em "Convidadoinesperado" (teatro), o público sabe desde o inícioque é o assassino.

Vamos ver agora um pouco os textos que têmPoirot como protagonista e, especialmente, aquelesem que o Capitão Hastings também aparece,enquanto narrador.

Hercule Poirot surge em "O Misterioso CasoStyles", em 1920, e com ele surge também oCapitão Hastings, seu primeiro biógrafo. Hastings,assim como Watson e o narrador anônimo dasaventuras de Dupin, tornou-se narrador a pedidos.

Como Dr. Watson, Capitão Hastings "tinhavoltado da frente de batalha, em conseqüência degraves ferimentos", e, ainda como Watson, depoisda convalescença estava de licença e desocupado

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[Página 44] "já que não tinha parentes ou amigos" aquem visitar, e é nessas condições que Hastingsreencontra Hercule Poirot, a quem já conhecera

anteriormente na Bélgica. E se Watson encontraHolmes porque este procurava com quem partilhar seus aposentos, é só no segundo volume da duplaPoirot-Hastings que esses vão repartir asacomodações. Outra diferença Hastings-Watson éque se Watson era médico de profissão, Hastingsalimentava o desejo de se tornar detetive.

Hastings, como Watson, é um narrador = perso-nagem, o narrador com a visão "com", aqueleque sabe tanto quanto os personagens. E Hastingsserá o "pior" dos personagens, aquele que demoramais tempo para encontrar as explicações dosacontecimentos.

Hastings é ludibriado pelos demais personagens(como, por exemplo, por Cinderela em "Assassinatono Campo de Golfe") e o próprio Poirot às vezeso incumbe, sem que Hastings saiba, de divulgar falsas pistas e falsas interpretações, É importantenotar que, nesse jogo de divulgação do falso,algumas vezes nós, leitores, somos ludibriados juntamente com Hastings, já que este é o porta-voz,o emissor da narrativa. Mas, muitas outras vezes,fica patente para o leitor que Hastings está sendoludibriado e, assim, o leitor adianta-se e essenarrador-personagem, que é basicamente "aquém-leitor-médio" em relação a sua capacidade inte-lectual. [Página 45]

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A relação de Hastings com Poirot é basicamenteuma relação de admiração e de inveja; entreHastings e Poirot encontramos uma clássica relação

do "ele é o que eu gostaria de ser". O que de certaforma atua, faz dar vazão ao espaço das fantasiasreprimidas de cada leitor, que, como todo ser humano, sempre sonha em envolver-se em ativi-dades desafiantes: ser astronauta, investigador etc.

Mas deixemos agora Hastings um pouco delado, e vamos nos deter em Poirot enquanto

detetive.Poirot não é tão neutro emocionalmente comrelação aos personagens das narrativas quanto jávimos ser Holmes; ele atenta mais para o que osindícios psicológicos de um personagem podemrevelar em termos de sua personalidade, seu tipode atuação etc., para assim melhor construir suasequações mentais.

Para esse vaidoso e refinado investigador belga, o trabalho de investigar é composto, assimcomo erapara Holmes, tanto do trabalho de dedução mental,"as células cinzentas" quanto do trabalhoempírico, reconstruir pistas etc. Só que Poirotvaloriza e considera decisivo apenas o trabalhomental, como ele diz em "Assassinato no Campode Golfe": "o verdadeiro trabalho é feito aquidentro. As pequenas células cinzas — sempre selembre das células cinzas, meu amigo".

Em vez dê considerar um elogio a comparação

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com um mastim (freqüentemente aplicada a [Página46] Holmes), Poirot considera esse papel ridículo eprefere trabalhar com as "células cinzentas".

Se em Poe temos um caso real reconstruído nacriação literária, lentamente, na evolução doromance enigma, a criação literária vai-se "desco-lando" do real, e até mesmo do campo do verossí-mil, para enveredar na «esfera dos possíveis.Recorre-se a sofisticadíssimos métodos de assas-sinar: venenos orientais desconhecidos pelos cien-

tistas, armas pré-reguláveis etc. A inventividade docriminoso é tal que, como diz Chandler, requer "umconjunto de qualidades que não se encontram nomesmo cérebro", chegando a parecer que a intençãoúnica do assassino foi dificultar o trabalhode investigação e que cometeu o crime apenas "parafornecer um cadáver para o autor".

Agatha Christie foi, sem dúvida, um dos autoresde romance enigma a abandonar mais radicalmenteo campo do verossímil. Nessa questão, podemosver, entre outros "Um Destino Ignorado", narrativaem que os principais cientistas do mundoocidental são seqüestrados por um homem que osmantém em um recinto, ocultado por um sistema deportas blindadas invisíveis a olho nu, numa colôniade leprosos. A coisa toda só consegue ser provadapelo depoimento de um desses cientistas, que colore(por pigmentação) a sua pele e faz e faz inchar seuslábios (com injeção de parafina) e assim se fazpassar por criado marroquino e tem contato com

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autoridades visitantes. Isso tudo acompanhado[Página 47] de pérolas falsas numeradas, luvas quedeixam marcas fosforescentes etc.

Retornando às obras de Agatha Christie em quePoirot aparece como personagem central, é inte-ressante perceber que Agatha Christie mantém atradição da presença dos jogos intertextuais.

Em "Os Crimes ABC", por exemplo, há umareferência crítica a Sherlock Holmes, quandoPoirot, depois de blefar com uma dedução fanta-

siosa, diz a Hastings:"— Mas o que quer, mon ami ? Você me encaracom um ar de devoção canina, e exige de mimum procedimento à Ia Sherlock Holmes! Agorafalemos a verdade: Eu não sei como é oassassino, nem onde vive e nem como pôr asmãos nele."

As referências a obras da própria dupla tambémsão freqüentes. Logo no primeiro parágrafo doconto "O Caso do Baile da Vitória", vemos "OMisterioso Caso Styles" ser referido; no capítulo 11de "Assassinato no Campo de Golfe", Hastingsrefere-se à descrição que ele tinha feito de Poirotem "O Misterioso Caso Styles" etc.

Mesmo em obras posteriores, em que Hastings já não é narrador, Poirot freqüentemente se referea ele, como, por exemplo, em "A Morte da Sra.McGinty", onde, ao ser acusado de romântico,

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Poirot diz: [Página 48]

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"Nada disso /... / Meu amigo Hastings, ele é queera romântico e sentimental, eu nunca! Eu, eu

sou severamente prático /... /."Ou ainda em "Os Relógios", quando, por associação com a dupla Holmes-Watson, Poirotmurmura:

"— Ce cher Hastings! Meu amigo Hastings, dequem você me ouviu falar tantas vezes. Há

muito Tempo que não tenho notícias dele. Queabsurdo ir enterrar-se na América do Sul, ondeestão sempre tendo revoluções. " [Página 50]

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DASHIELL HAMMETT E A NARRATIVA SÉRIE NEGRA

Outro tipo de narrativa policial também bastantedivulgado é "romance negro" romance da "SérieNegra" ou romance americano, cujo criador foiDashiell Hammett (1894-1961), e um dos seguidores

mais expressivos foi Raymond Chandler (1888-1959).O "romance negro" tem na coleção "Série

Noire", que começou a ser publicada na França em1945, seu ápice e seu reconhecimento pelo público.Mas a sua plataforma de lançamento foi a revistaBlack Mask, uma típica "pulp magazine", revistas

baratas com baixa qualidade de impressão e degosto duvidoso, nas quais os escritores são pagospor palavras, onde, a partir de 1925, Hammettcomeçou a publicar seus contos e todos os seustextos importantes. Foi aí, também, que dez anosmais [Página 51] tarde Chandler iniciou sua carreira

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de escritor policial, no período mais fértil da revista(1926-1936), período em que a revista optou por direções mais precisas e se tornou famosa, tendo

Joseph Shaw como editor.Hammett inicia sua atividade literária no inícioda década dos 20, mas no fim desta e começo dos30, com os romances "Safra Vermelha", "EstranhaMaldição" e "A Chave de Vidro", temos o seuperíodo mais fértil e mais valorizado pela crítica.Seu protagonista, um detetive profissional, inicial-

mente sem nome, e depois denominado SamSpade, é uma figura antológica do romance policial.Posteriormente Hammett publica "The Thin

Man", em que Sam Spade não aparece, mas ondetemos Nick e Nora Charles, casal rico que freqüentaa classe alta, e detetives por "hobby", num texto quefoge totalmente das características dos textos quetêm Sam Spade como protagonista.

Marcel Duhamell, criador e diretor da coleção"Série Noire", assinava um texto que aparecia nosprimeiros volumes, em que apresentava assim acoleção:

"O leitor desprevenido que se acautele: osvolumes da Série Noire não podem, sem perigo,estar em todas as mãos. O amante de enigmasa Sherlock Holmes aí não encontrará nada aseu gosto. O otimismo sistemático tampouco. Aimoralidade, admitida em geral nesse gênero deobras, unicamente para contrabalançar, a

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[Página 52] moralidade convencional, aí seencontra bem como os belos sentimentos, ou aamoralidade simplesmente. O espírito é

raramente conformista. Aí vemos policiais maiscorrompidos do que os malfeitores queperseguem. O detetive simpático não resolvesempre o mistério. Algumas vezes nem hámistério. E até mesmo, outras vezes, nemdetetive. E então?

Então resta a ação, a angústia, a violência,

— sob todas as formas especialmente as maisvis —, a pancadaria é o massacre. Como nosbons filmes, os estados d'alma se Traduzem por gestos, e os amantes da literatura introspectivadeverão fazer uma ginástica inversa. Há ainda oamor, de preferência bestial, a paixão desor-denada, o ódio sem perdão, todos ossentimentos que numa sociedade policiada sódevem ser encontrados raramente, mas queaqui são moeda corrente, e são,algumas vezes, expressos numa linguagembem pouco acadêmica, mas onde dominasempre, rosa ou negro, o humor."

Esse texto destina-se ao potencial leitor que,por acaso, tem em mãos um dos primeiros volumesda "Série Noire", e sua função básica é apresentar as narrativas dessa coleção, através de sua caracte-rização geral.

É importante perceber que todo o primeiro

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bloco de características arroladas são característicasnegativas, características de oposição, ou seja,define-se o romance "Série Noire" por aquilo que ele

não é; por àquilo a que ele se opõe. [Página 53]Avisa-se ao leitor que se acautele. Avisa-se quetemos aqui um romance policial, mas que não édestinado ao leitor "amante de enigmas a SherlockHolmes", ou seja, busca-se atingir, tem-se comoalvo, o leitor saturado e insatisfeito com o romancede enigma clássico. A partir desse ponto inicial —

oposição ao romance enigma —, enumeram-setodas as características correlatas do romanceenigma abandonadas pelo romance "Série Noire":otimismo, moralidade convencional, espíritoconformista a um detetive que sempre resolve osmistérios. Avisa-se que nessa nova forma denarrativa policial não se verá otimismo sistemático, aimoralidade ou amoralidade é admitida e nãoaparece apenas como contraponto da moralidadegeralmente admitida como tal, não há conformismo,o detetive também é falível e nem sempre hámistério, um enigma inicial e radicaliza-se, por oposição, a apresentação, avisando-se que pode atéocorrer que não haja detetive.

É importante notar que essa "reviravolta"proposta pelo romance "Série Negra" é feita numaépoca em que o mundo está em "reviravolta”,estamos (nos inícios do romance  americano) àsvésperas da Segunda Grande Guerra, à véspera do"crack" da Bolsa em 1929. E, ao nível das idéias,

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estamos presenciando uma importância crescenteda filosofia de Nietzsche, do vitalismo de Bergson,da psicanálise e os primórdios do Existencialismo,

que engendram um clima cultural que se opõe ao[Página 54] otimismo racionalista oriundo doPositivismo.

Depois de deixar bem claro para o  leitor aoposição de base do romance "Série Noire" comrelação ao romance de enigma clássico, são arrola-das as características inovadoras (e não somente

inovadoras por oposição) desse tipo de narrativa.Não se tenta amenizar a presença da ação: pelocontrário, exploram-se, detalham-se as açõesviolentas, brutais, as violências físicas. Enfatiza-se aação, e cabe ao leitor, a partir dessas descriçõesexternas, deduzir o caráter, a personalidade, ossentimentos dos personagens. Explorem-se eaprofundam-se as situações angustiantes, em que ohomem pode se envolver. Exploram-se e admitem-se todos os tipos de sentimentos, mesmo os conven-cionalmente tidos como ignóbeis: paixões bestiais,ódios ardentes etc. A gíria e os palavrões sãoadmitidos, usa-se a linguagem coloquial do dia-a-dia, e vê-se freqüentemente o humor.

Mas em vez de abordarmos aspectos geraisdesse tipo de narrativa, vamos nos deter no "pai"da narrativa "Série Negra", Dashiell Hammett, eem especial no seu livro antológico, naquele queé considerado um dos melhores romances policiaisde todos os tempos, além de ter obtido grande

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sucesso de público: "O Falcão Maltês".Comecemos examinando a figura do detetive,

personagem central desse texto: Sam Spade.

Em vez de bem educado, fino, elegante, sutil,como a maioria dos famosos detetives do romanceenigma, [Página 55] Sam Spade é rude, vulgar,áspero ao expressar-se e deselegante. É bom notar que essa oposição não é gratuita nem casual; opróprio sobrenome do detetive já a indicia, pois"spade", em inglês, quer dizer, entre outras coisas,

"chamar as coisas pelos seus nomes, falar franca-mente ou asperamente".Além disso, Sam Spade não é um diletante, ele

trabalha para sobreviver, ele é um empregadoassalariado da Agência Continental.

Numa paródia á tão propagada abstinênciasexual dos grandes detetives do romance enigma, eao mesmo tempo satirizando os valores sociais queregem os relacionamentos afetivos-sexuais emnossas sociedades burguesas. Sam Spade viveenvolvido com mulheres, e suas relações nãoseguem os padrões aceitos e reforçados na nossasociedade (em "O Falcão Maltês" ele é amante daesposa de seu sócio); seus relacionamentos sãorudes, duros e sem nenhum romantismo.

Mas não só a figura do detetive, proposta peloromance negro, é oposta àquela apresentada peloromance enigma. A própria forma de construçãonarrativa, no romance negro, é radicalmentedistinta daquela que encontramos no romance

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de detetive.Em "O Falcão Maltês", a narrativa é construída

por um narrador impessoal e indefinido, fato raro,

nos romances de Hammett e no romance "SérieNoire" em geral, pois, na maioria, o narrador é[Página 56] o próprio protagonista.

A narrativa é construída no presente,acompanha o correr dos fatos, segue asinvestigações, inclusive as infrutíferas, e a ordemdos acontecimentos. Ou seja, no romance negro a

narrativa se dá ao mesmo tempo que a ação. Não setrata de reconstituir um crime passado e seudesvendamento, mas de atuar lado a lado com o (s)criminoso (s) e tentar adiantar-se a ele (s).

Ao contrário do romance enigma escrito, via deregra, em forma de memória, no romance negro(quer escrito por um narrador impessoal, quer sendonarrado pelo próprio detetive protagonista, o que émais comum), já que a narrativa coincide com aação, o narrador e o receptor estão sempre passo apasso, o narrador não dispõe de nenhuma verdadeposterior como ponto de partida retrospectivo, apartir do qual ele leria os fatos, sendo tão passívelde engano e de ser ludibriado quanto o leitor.

Ainda em conseqüência do anteriormente dito,vemos surgir outra característica do romance negro:a não garantia da imunidade física do detetive. Se,no romance enigma escrito em forma de memórias,os detetives não agem, mas detectam sobre umaação passada, estando, via de regra, incólumes a

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um grande acidente ou à morte, no romance "SérieNoire" os detetives não estão imunes a essesperigos.

Os detetives da Série Noire se [Página 57]envolvem e muitas vezes são desencadeantes dasações que constituem a trama dos romances.Esses detetives também se envolvem totalmentecom os demais personagens da narrativa — amamdesenfreadamente, odeiam radicalmente etc.

O narrador desse tipo de romance quer seja o

próprio detetive ou não, é não-introspectivo,nunca aborda aspectos psicológicos dos persona-gens de suas narrativas.

Ou seja, o narrador relata aspectos exterioresda personalidade e das relações dos personagensda narrativa, e raramente nos dá algum índice dapsicologia destes, ficando por conta do leitor deduzir a partir desses dados.

É bom notarmos que após a Primeira GrandeGuerra, temos o predomínio do chamado romancepsicológico, cujos representantes mais divulgadose aceitos então são Marcel Proust e André Gide,e, acredito, esse traço desta nova narrativa deveser encarado, também, como uma oposição entrea narrativa americana e romance psicológico.

Nesse sentido, citemos duas passagens de "OFalcão Maltês":

"Era alta de uma esbeltez flexível, semangulosidades. Tinha o talhe ereto e o colo

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alteado, pernas longas, mãos e pés estreitos.Usava dois tons de azul, escolhidos de acordocom os olhos. O cabelo, caindo em anéis sob o

chapéu azul, era de um vermelho sombrio, e oslábios cheios, de um vermelho mais vivo.Dentes alvos [Página 58] brilhavam na meia-luafeita por seu sorriso tímido"/ ... /"Ela reteve a respiração e dirigiu-lhe o olhar.Depois tomou fôlego e disse precipitadamente

— Poderia o senhor...? Eu pensei... eu... isto é...— mordeu o lábio inferior com os cientesbrilhantes e ficou calada. Apenas os olhosescuros falavam agora, suplicando."

Como se pode notar nessas duas passagens,apenas uma palavra em cada uma delas pôde ser vista como descrevendo psiques: tímida (naprimeira citação) e suplicando (na segunda); odemais fica como função do leitor, é ele quem, apartir dos dados objetivos, exteriores, deve deduzir a respeito do caráter, dos sentimentos, personali-dades e reações dos personagens.

O receptor passa, então, a ser complementador do texto, é a ele' que compete, a partir de descri-ções objetivas, inferir o mundo psíquico dospersonagens em questão.

Pensando-se na questão da atividade dodetetive na narrativa "Série Negra", e especialmentedo detetive criado por Hammett, é importante

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perceber a "fragilidade" de Sam Spade enquantoinvestigador.

Ao contrário dos "superdetetives" do romance

de enigma que, num "passe de mágica", revelamfinalmente à platéia boquiaberta o culpado a partir da soma de muitas pistas, remontando, recons-truindo, reinterpretando essas pistas numa lógicarigorosa e inequívoca, Sam Spade confessa que[Página 59] nem sempre hipóteses construídas apartir de indícios reveladores são a garantia de uma

solução prática, real. Em "A Décima Pista", por exemplo, as pistas de que Spade dispõe sãobastante claras e expressivas e nem por issorevelam-se, na prática, eficazes. Depois de reunir todas as pistas que o levariam ao culpado, tudo oque Sam Spade proclama é:

"A partir de agora vou considerar essas novelindas pistas como sem valor algum. E vou fazer exatamente o contrário delas. Vou procurar umhomem cujo nome não é Emil Bonfils, cujasiniciais não são nem E. nem B., que não éfrancês, que não esteve em Paris em 1902, umhomem que não tem cabelo louro, não andacom uma pistola calibre 45 e nem senteinteresse pelas colunas sociais dos jornais. Emsuma, um homem que não matou Gantvoortpara recuperar qualquer coisa que pudesseestar escondida num sapato ou num botão decolarinho. É esse o tipo de cara que eu vou

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caçar a partir de agora."

Ao contrário dos infalíveis Holmes e Dupin,

que, no limite, conseguiam desvendar um caso semsair de uma poltrona, Spade não acredita nessapossibilidade e afirma que às vezes, nem mesmo umconjunto de indícios, quase completo e indiscutível,revela-se útil quando confrontada com o real.

Ainda pensando na atividade do detetive em[Página 60] Hammett, ao contrário do clássico

romance de enigma, onde a versão final dos fatosdesvendados pelo protagonista é sempre "umexercício de desambiguação", "uma explicaçãoconclusiva tranqüilizadora", temos que, comocolocou S. Marcus, o relato, a explicação propostapelo detetive ao fim da história, "não é mais passível— nem se destina a ser — do que as histórias quelhe foram contadas por todas as partes interessadas,culpadas ou inocentes, no decorrer de seu trabalho".Não existe verdade final indiscutível, inquestionável,uma interpretação acima de qualquer suspeita. Todainterpretação é uma entre outras possíveis. Ainterpretação final proposta pelo detetive não é,necessariamente, mais plausível ou inquestionáveldo que as demais interpretações propostas dediferentes pontos de vista no decorrer da narrativa. Aassunção do ambíguo em relação à tarefa e àinterpretação do investigador fica clara, por exemplo,em "A Estranha Maldição", onde Spade encerra ocaso (e a narrativa) sem se decidir se Owen

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Fitzstephan era realmente um alienado mental ouapenas tinha-se feito passar por tal.

O ponto central, estruturador, fundamental, dos

textos de Hammett é a crítica ético-político-social.Através de seu detetive e das tramas em que ele seenvolve, Hammett nos mostra o quanto o mundodo crime participa e é solicitado pela sociedadecapitalista. Ou, usando as palavras de S. Marcus,"na verdade, invariavelmente, Hammett mostra o[Página 61] mundo do crime como uma reprodução,

em estrutura e detalhe, da moderna sociedade capi-talista de que ele depende, que explora e da qualfaz parte /... /".

O tempo todo, ao fazer seu detetive penetrar nas minúcias do mundo do crime, Hammett vaifazendo com que nós, leitores, nos apercebamosdas contradições, das ambigüidades, dos jogosduplos do mundo burguês em que vivemos, numaverdadeira alegoria econômico-político-social danossa sociedade.

Utilizando o mundo do crime como metáfora dasociedade em geral, Hammett vai denunciando*afalência das instituições burguesas, a corrupção, oegoísmo, a falsa moralidade etc. E faz com quenós, leitores, passemos a enxergar com outrosolhos não a própria narrativa policial, mas omundo em que vivemos cotidianamente.

Esse colocar o mundo do crime no espaço maisamplo, político-social em que ele se insere, e assimfazer com que esse espaço seja repensado, é fruto

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de uma opção de Hammett. Vale a pena lembrar que, em plena época de "caça às bruxas", ao ser chamado pelo Senador Joseph MacCarthy a depor 

no Comitê de Atividades Anti-Americanas,Hammett declarou: "É impossível escrever qualquer coisa sem alguma conotação social / ... /."

O próprio "Falcão Maltês" pode ser visto comouma metáfora da história do capitalismo. O falcãoera a estátua desse pássaro incrustada com pedras[Página 62] preciosas que, no século XVI, foi

enviada como um tributo do governo de Malta aogoverno espanhol, mas que foi pilhada no meio docaminhe. Depois de pilhado, esse objeto édisfarçado. Na narrativa de Hammett, todos andamatrás dessa relíquia, e, quando Sam Spadefinalmente o encontra, descobre-se que o falcão quetodos lutavam por conseguir era uma cópia falsafeita de chumbo. O verdadeiro tinha ficado com umrusso, com quem já estava antes de começar toda atrama. Trata-se, pois, como notou S. Marcus,"inicialmente de um caso de pilhagem, parte daquiloque Marx chamou de 'acumulação primitiva'. Quandoseu ouro, incrustado de gemas, é pintado, ele setransforma em um objeto disfarçado, em umamercadoria em si; é uma peça cuja propriedade aninguém pertence - quem a guarda realmente não apossui. Simultaneamente, é outra ficção, umarepresentação ou objeto de arte — que se revelacomo uma contrafação, desde que é feito dechumbo".

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O leitor habituado a narrativas de enigma sedefronta com outro tipo de leitura. Um protagonistaque se opõe ao detetive clássico. Um detetive que

convive e faz com que o leitor conviva,freqüentemente, sem que a linguagem tenteamenizar, com violência, com agressão, comfreqüentes descrições de lutas e violações corporais,

e envolva-se, vivencie toda essa emoção da bestia-Iidade. Um detetive que mostra as falácias a que

podem-nos conduzir as hipóteses racionais, quando[Página 63] confrontadas com o real, que vê suaatividade como um emprego, que assume apossibilidade do engano; enfim, um detetive quequestiona e satiriza a possibilidade da existência eda eficácia do famoso racional-dedutivo-frio-infalível"super-detetive" do romance enigma.

O leitor habituado ao romance enigma, acostu-mado, pois, à "palavra final" do detetive clássico,que consegue encaixar numa versão lógica einquestionável as pistas aparentemente maisdispersas possíveis, passa a acompanhar, em péde igualdade, os tropeços e os enganos deste novodetetive, cuja "palavra final" não é inquestionávelnem acima de qualquer suspeita.

O leitor, no romance "Série Noire", se vê cha-mado a cooperar, a complementar o texto, como jávimos, ao nível da intelecção do texto; o leitor éconvocado a preencher os vazios, as entrelinhasdas descrições objetivas e exteriores com os

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significados psicológicos e emocionais que elasindicam.

Ao ter em mãos uma obra de Hammett que tem

como protagonista Sam Spade, o leitor, além defruir uma narrativa de ação e aventura, pode,também, aperceber-se de outros níveis de leitura

(a crítica política, a crítica social, ética etc.),níveis que constroem uma visão de mundo, quepode fazer com que o leitor questione, descubrae desvende um pouco mais o mundo que o cerca.

Ainda aqui essa presença de vários níveis de[Página 64]

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leitura, principalmente nas obras que têm SamSpade como protagonista, níveis que dialogam com

o leitor oferecendo-lhe, além de um romancepolicial, a possibilidade de percepção de uma visãode mundo abordável em vários níveis, não algocasual. Note-se que "spade" também significa"ferramenta ou instrumento de mesma formapara diversos fins". [Página 66]

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MARLOWE, UM DISCÍPULODE SPADE

A produção de Raymond Chandler (1896-1959)é relativamente pequena, em comparação à médiados autores policiais: vinte e três contos e sete

romances.Em seus contos, Chandler vai aos poucos for-mando a figura de seu detetive Philip Marlowe —primeiramente um detetive sem nome, que narravaem primeira pessoa —, protagonista de seusromances.

O próprio Chandler se considerava como um

"imitador" de Hammett:

"Eu não inventei o romance negro, e nuncaescondi que do meu ponto de vista a glóriapertence a Dashiell Hammett. No fim todomundo imita / ... /." [Página 67]

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Se algumas das obras de Hammett, que têmSam Spade como protagonista, são narradas por um

narrador impessoal e indefinido, todos os romancesde Chandler são narrados por seu detetive prota-gonista, Philip Marlowe, tipo de narração que seráquase uma regra no policial negro.

As narrativas de Marlowe e, principalmente, osdiálogos são ásperos, deselegantes, repletos degírias e com alguns erros de gramática. Essa forma

de expressão é defendida e explicada por Chandler,numa carta a um de seus editores que, acredito,vale a pena ser citada.

"Queria apresentar meus respeitos ao puristaque lê suas provas e dizer-lhe que eu escrevouma espécie de 'patois' um pouco como umalíngua falada por um maître de hotel suíço, equando pareço fazer erros de gramática, meuDeus, é intencional, e quando interrompo odesenvolvimento aveludado de minha sintaxemais ou menos elegante com uma ou duaspalavras de gíria de bar, eu faço isso com osolhos abertos e o espírito mais tranqüilo que umsentinela. O método pode não ser perfeito, masnão tenho melhor. Creio que seu corretor é muito gentil em querer me conduzir aocaminho correto, e eu o agradeço, mas creio ser capaz de caminhar sozinho, desde que medêem as calçadas e os sapatos."

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Philip Marlowe é um detetive profissional, trabalhapor dinheiro, mas também é capaz de diminuir o

preço, dependendo do caso, e até de [Página 68]trabalhar de graça, quando se envolve emocional-mente com o caso.

Ao contrário de Sam Spade, que está semprebêbado e bebendo, Marlowe nunca bebe enquantotrabalha. Assim como Spade, Marlowe tambémvive cercado por mulheres que o assediam, mas, ao

contrário daquele, Marlowe, via de regra, recusa-sea envolver-se sexualmente com essas mulheres.Também como Sam Spade, Marlowe é

insolente, descontraído e há sempre em suasposições e em seu modo de falar uma boa dose dehumor cáustico, principalmente voltado para os fatose figuras sociais.

Os romances de Chandler, que têm como narra-dor o detetive-protagonista Marlowe, são cons-truídos no presente, forma que, também comovimos, é característica de romances policiais gênero"Série Noire".

Philip Marlowe, enquanto detetive, assim comoSpade, é muitas vezes desencadeante das açõesdos romances e, enquanto narrador, é totalmenteparcial: ama, odeia, despreza, em suma, envolve-setotalmente com os demais personagens.

Também encontramos em Chandler apercepção da fragilidade da atividade do detetive.Assim como Hammett-Spade, Chandler-Marlowe

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também pensa a atividade do detetive não maiscomo "exercício de desambiguação", regido por leislógicas, e que conduz a uma resposta inequívoca;

Marlowe percebe a imprecisão de sua atividade. Aocontrário [Página 69] do clássico detetive doromance de enigma, que, via de regra, se cala anteos fatos surpreendentes e que, no final, naapresentação do desvendamento da trama, nosrevela que aquele fato aparentementesurpreendente, sobre o qual ele se calou, já tinha

sido percebido por ele como um indício fundamentalpara o desvendamento da trama, Marlowe nosmostra toda fragilidade e imprecisão de suaatividade. Como em "Ingênua Perigosa", quando,após várias diligências e investigações, a únicaconclusão que Marlowe nos apresenta são vagasintuições negativas:

"Não sei. Tudo o que sei é que algo não é o queparece ser e que o velho mas sempre seguropalpite me diz que estou caminhando no sentidoerrado."

Ainda em oposição aos grandes detetives doromance enigma, Chandler-Marlowe nunca fazcadeias de deduções sem contrastá-las com arealidade, nem tira conclusões, a priori  a respeitodo caráter e dos atos das pessoas.

Quando se refere a detetives famosos dosromances policiais tipo enigma, Marlowe sempre o

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faz para distinguir, para opor sua pessoa à daquelesdetetives anteriores. Podemos notar essa oposiçãoem passagens como esta, de "A Beira do Abismo":

"Não sou nenhum Sherlock Holmes nemnenhum Philo Vance, e não espero percorrer uma pista que a [Página 70] polícia já percorreue reconstruir um caso a partir daí."

Mas não é só a figura do detetive clássico do

romance de enigma que Chandler critica e à qualopõe Marlowe, as próprias tramas do romance deenigma são criticadas por Chandler-Marlowe e, emoposição a estas, nos é apresentada uma novanoção de história policial. Como nessa passagem de"Adeus, minha Adorada", quando, ao ver suaatuação comparada com a de Philo Vance, Marloweretruca:

"E de repente o mordomo desmaia /... / Não éeste tipo de história /... / Não é flexível eengenhosa. É simplesmente escura e cheia desangue."

A crítica à própria trama, ao próprio tipo dehistória do romance policial de enigma, se elucidamelhor se acrescentarmos que o fundamentobásico dessa crítica é o quase nenhum grau derealidade e verossimilhança que o romance enigmaatingiu, em oposição às tramas que o romance

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"Série Noire" se propõe a apresentar, que são maissujas e violentas, e assim estão espelhando melhor a realidade das histórias policiais. Creio que é isso

que Marlowe afirma quando, em "A Beira doAbismo", ele diz saber "por experiência que amaioria das histórias policiais são (sujas)".

Chandler-Marlowe proporciona ao leitor a[Página 71] convivência com toda a fragilidade epossibilidade de erro de um detetive simplesmentehumano. Detetive que convive com a violência e não

a tenta disfarçar ao elaborar suas narrativas.Detetive que convive, deixa-se envolver e, às vezes,quase se ludibria com as falsas aparências daspessoas e dos valores que elas dizem sustentar,mas que sabe ser bastante crítico e cáustico quandopercebe a falsidade das aparências. E, ao lado dissotudo, um detetive-narrador que também ésentimento, que sabe-se emocionar e não escondeisto de seus leitores; um detetive que tem atitudesprotecionistas para com aqueles que ele consideranecessitar dessa atitude. Enfim, um detetiveplenamente humano, ou talvez pudéssemos afirmar tratar-se não mais de um detetive, mas de umhomem que casualmente investiga. [Página 72]

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ALGUMAS CONCLUSÕES

O livro acabou. Daqui para frentete proponho uma viagem

Para pensarmos a enorme aceitação doromance policial, escolhemos alguns momentos eescritores marcantes desse gênero literário etentamos caracterizá-los, pensá-los, em termos decomo são elaboradas essas narrativas e como nós,leitores, as fruímos.

Acredito que o percurso que elaboramos até

aqui, abordando cada grupo de narrativas isolada-mente, permite traçar algumas conclusões decaráter geral a respeito da novela policial. Eviden-temente, tais conclusões não pretendem ter umcaráter definitivo, mas estão sendo aqui colocadasantes enquanto possíveis pautas de reflexão.

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Abordemos, inicialmente, questões relacionadas[Página 73] com a evolução do chamado romanceenigma, e, dentre estas, primeiramente, com a

caracterização do detetive.Se Dupin aparecia nas narrativas de Poeapenas enquanto "máquina de raciocinar", Holmes ePoirot além de serem, enquanto detetives, também"mentes dedutivas" a elaborar equações, nem por isso abdicam de ter personalidades próprias. Holmesé morfinômano e cocainômano, adora tocar violino

enquanto medita e entedia-se profundamentequando não tem um caso a resolver; Poirot évaidoso e preocupa-se com o vestir, tem profundaamizade por Hastings e, em seus últimos textos,veremos um velhinho solitário sofrendo por causa dasaúde e excepcionalmente emotivo.

Essas características de personalidade própria,em Holmes e Poirot, não se relacionam diretamentecom suas atividades enquanto detetives; são"agregações", "justaposições" que, acredito poder afirmar, são uma das causas da popularização e dagrande aceitação destes. Através dessa "huma-nização", o detetive se torna mais próximo e,portanto, mais assimilável para o leitor. Mas, por outro lado, essas "agregações" colocam umaquestão: o que aconteceu com o paradigmaestabelecido por Poe em seus contos policiais, danarrativa enquanto apresentação da luta cérebro acérebro entre o criminoso e o detetive? O queaconteceu com a narrativa policial enquanto

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demonstração da solução quase matemática de[Página 74] enigmas, como o era em Poe? Acreditoque só podemos entender essas "justaposições"

como uma deterioração do paradigma de policialcriado por Poe. Deterioração que se iniciagradualmente em Conan Doyle e que AgathaChristie levará a cabo.

Apesar dessa deterioração do romance enigmaem relação ao paradigma de policiai proposto por Poe, do detetive enquanto "máquina de raciocinar”

e da narrativa enquanto "luta cérebro a cérebro"entre investigador e contraventor, por "agregações”características de personalidade própria nosdetetives posteriores, o romance enigma não alterasua estrutura básica. Ele continua apresentando-seao leitor como um fogo, como um quebra-cabeçaem que este tenta desvendar junto, ou se possívelantes do detetive, o enigma inicial. Ao leitor solicita-se que seja, à semelhança do detetive,também uma "máquina de raciocinar". É na esferado raciocínio que o romance enigma pretende fazer o leitor atuar, é no espaço do intelecto do leitor que o romance enigma propõe seu desafio.

Continuando abordando a questão da deterio-ração-manutenção do romance enigma, enfoque-mos um pouco mais de perto a questão dos méto-dos de ação do protagonista. Como vimos, Dupintem como metodologia básica a resolução deenigmas a leitura de índices via intelecto, emHolmes, este método encontrará a seu serviço

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  procedimentos técnicos científicos; e em Poirot,esta soma de procedimentos será repetida. A tal

[Página 75] ponto  chega o grau de repetição que

algumas novelas só se distinguem das outras pelainventividade do criminoso, que passa a recorrer amétodos cada vez mais sofisticados: ervas tropicais,venenos orientais desconhecidos pelos cientistas,envenenamento gradativo e sem vestígios etc.

A inventividade do criminoso é tal que, como já nos referimos anteriormente, requer "um conjunto

de qualidades que não se encontram no mesmocérebro", chegando a parecer que a intenção últimado assassino foi dificultar o trabalho de investigaçãoe que cometeu o crime apenas  "para fornecer umcadáver para o autor".

Não há mais verossimilhança nos crimes come-tidos, assim como não há mais  plausibilidade nosprocedimentos do detetive. Ao lidar com o inve-rossímil, o detetive passa a atuar no reino do provável, e é preciso pensar não só no plausível,mas, em crimes inverossímeis, é preciso pensar emtodas as probabilidades. E aqui mais uma vez, setomarmos como paradigma de narrativa policiai oscontos policiais de Poe, presenciamos umadeterioração do gênero: atuando na esfera doplausível, Dupin dava, em princípio, para o leitor,chance para que este tentasse, por seu turno,desvendar os enigmas propostos, ao passo queHolmes, e mais especificamente Poirot, emboraproponham ao leitor que tente resolver as questões

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propostas, na verdade esta chance se torna cadavez mais remota, pois atuando no reino do provável[Página 76] as possibilidades são tantas que as

chances de acerto por parte do leitor são mínimas.(O leitor pode desvendar o enigma inicial (e oleitor habituado à leitura de policiais o desvendafreqüentemente), mas não mais pela logicidadedo crime e, sim, pela repetição de estereótiposem relação à figura do criminoso, do inocente, àtécnica do crime etc., especialmente em um mesmo

autor.)Acredito que essa irrupção do provável, emsubstituição ao plausível, que dificulta a possibi-lidade de o leitor desvendar o enigma inicial, seráde uma forma "compensada", "contrabalançada"pela crescente importância que o narrador passaa ter na evolução do romance enigma.

Explicando melhor. Creio que a presença depossibilidades múltiplas, para o desvendamentodos crimes praticamente inverossímeis, distanciao leitor da real possibilidade de acompanhar asequações mentais do detetive central e, mais ainda,da possibilidade de adiantar-se a este. Mas estedistanciamento entre leitor e detetive,que vai gradualmente crescendo na evolução doromance enigma, vai sendo, por outro lado,gradualmente anulado e compensado pelocrescimento da figura do narrador, este, sim, umafigura bastante próxima do leitor médio, o que fazcom que o leitor identifique-se e possa acompanhar 

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as aventuras dos detetives através da cadeia depensamentos dos narradores. Até chegarmos emHas- [Página 77] tings, que é um narrador "aquém-

leitor-médio", o capitão Hastings é uma figura kitsch,sua percepção de situações e fatos está sempreaquém do percebido pelo leitor médio. Além disso,ele é sempre ludibriado por Poirot e até por outrospersonagens da narrativa, sendo, muitas vezes, alvode deboche dos mesmos, o que faz com que o leitor se sinta, se muitas vezes não consegue acompanhar 

os elos das equações mentais de Poirot, mais capazque Hastings e, portanto, gratificado e incentivadopor essa sensação de superioridade.

Essa "kitschização" de Hastings e suas conse-qüências no leitor parecem-me ser um dos fatoresque determinam o imenso sucesso de público deAgatha Christie.

Mas essa substituição do plausível pelo possívelaponta para outro fato fundamental, quandopensamos a evolução do romance enigma. Se, noscontos policiais de Poe, encontrávamos comoponto básico uma posição metalingüística que olevou a representar a realidade transvestida numalinguagem e num trabalho literário, a conceder  umenfoque ficcional para o real, em suma, a ver arealidade como ficção, no desenrolar do romanceenigma essa relação entre o real e o ficcional vaise perdendo, se descaracterizando, a Interrupçãoda contravenção possível, mas nãonecessariamente

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plausível, distancia, cada vez mais, o espaço entreo ficcional e o real. [Página 78]"Agregação" de personalidade própria ao

detetive, substituição do crime plausível pelacontravenção possível, mudança na relação real-fíccional, distância entre detetive e leitor, cresci-mento da importância e "kitschização" do narrador,esses me parecem são os elementos centrais dadeterioração-manutenção do romance enigma emrelação ao paradigma de narrativa policial criado por 

Poe. Deterioração-manutenção porque, se essesfatores alteram e até de uma certa formacontradizem o paradigma inicial, por outro lado, elesnão anulam a característica básica da narrativapolicial que encontramos em Poe: a narrativa comoa luta cérebro a cérebro entre contraventor einvestigador, a narrativa como a demonstraçãoquase matemática da solução do enigma inicial. Oromance enigma, apesar de todas as mutaçõesque vem sofrendo em seu desenvolvimento,continua apresentando-se ao leitor como um"quebra-cabeças", um jogo que requer a argúcia doseu intelecto para equiparar-se ou adiantar-se aoautor-detetive, que no caso atua como seu desa-fiante de partida.

O romance americano, vimos, inverterá, ascaracterísticas básicas do detetive e de seusmétodos de ação. O detetive "Séria Noire" é rude,vulgar, deselegante e sempre com um humor cáustico ao expressar-se, vive em dificuldades

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econômicas e trabalha profissionalmente. O detetive"Série Noire" existe e atua in loco, na convivênciadireta [Página 79] com o crime, com os criminosos,

os envolvidos. O leitor acompanha passo a passosuas vivências e investigações, muitas vezes aprópria investigação engendra o crime. O detetive"Série Noire" é o detetive da ação; ele desconfia dededuções mentais não checadas com o real esatiriza os "milagres" dos procedimentos técnico-científicos, e o faz com humor e desdém. Além

disso, ao contrário do detetive do romance enigmaque consegue sempre elaborar uma versão final,inquestionável, da questão inicial, no romance "SérieNoire" a versão do detetive é apenas uma a mais,não soluciona necessariamente tudo aquilo que oproblema implicava e não se apresenta comoinquestionável.

Dadas as colocações acima, creio poder afirmar que, se nos centrarmos na caracterização doprotagonista e na questão de suas ações, o romance"Série Noire" efetuará uma paródia por inversãodo romance enigma, paródia que retomará, recon-textualizará, em linhas gerais, o modelo de inves-tigador e de suas ações, que encontramos emVidocq, Tabaret e Lecoq, ou seja, nos folhetins"embriões" do policial ou narrativas que guardamsemelhanças com estes.

O romance americano também romperá com aestrutura da dupla história (a do crime e a dainvestigação), quase suprindo a primeira e dando

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ênfase à segunda; fará coincidir narrativa e ação;suprimirá a figura do narrador memorialista e [Página80] utilizará não só uma linguagem coloquial como

também gírias, palavrões e humor cáustico.Além disso, o detetive da narrativa "Série Negra" secoloca como uma pessoa de carne e osso, tãocorruptível e passível de, em princípio, cometer infrações, quanto o contraventor que ele procura. Doponto de vista ético-moral, detetive, criminoso, leitor,as pessoas em geral, estamos todos no mesmo

patamar, estamos todos atuando e impregnadospela corrupção do mundo negro em que vivemos. Anarrativa "Série Noire" tentará tam-bém retratarãocrime no espaço do mundo real, de pessoas quetenham reais motivos para comete-los, e tentaráabordar os personagens em geral como pessoasreais, concretas, interagindo com o meio em quevivem, atuando no espaço das ambigüidades e dascontradições dos valores sociais, espaço que étambém, o da vivência do leitor, ò que faz com queesse possa ver seu cotidiano retratado e até, emprincípio, repensá-lo criticamente.

Abolição do enigma inicial; esfacelamento daestrutura da dupla historia: derrisão das verdades"bolso de colete" das narrativas em forma dememória; derrisão das versões finais inquestio-náveis; abandono das descrições introspectivas eênfase na ação: protagonistas no mesmo patamar ético-moral dos demais personagens e do leitor;protagonistas envolvidos emocionalmente com os

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demais personagens; abandono da linguagem[Página 81] sofisticada e utilização da linguagemcoloquial, vulgar, de gírias e palavrões, também ao

nível da narrativa enquanto discurso, creio poder afirmar que o romance "Série Noire" efetuará umaparódia por inversão do romance enigma, e essesfatores colocados acima são, parecem-me, oselementos centrais dessa paródia.

Essa inversão paródica, que pretende integrar omundo leitor na narrativa, possibilitando-lhe uma

narrativa passível de ser encarada em outros níveisde leitura, como o político, o social etc., abandona oespaço do desafio intelectual ao leitor e tenta atuar no espaço de sua emoção e de sua vivência. Não émais a seu cérebro, mas a seus nervos que essetipo de leitura vai requisitar. Em vez de se apresentar como um "quebra-cabeça" que, requer argúciamental do leitor, o romance "Série Noire" se anunciacomo uma narrativa que propõe ao leitor seuenvolvimento, sua participação e seu posicio-namento.

É claro que existe um certo "topos" comumque se mantém entre o paradigma inicial propostopor Poe, o romance enigma e o romance "SérieNoire" — uma certa idéia de contravenção, aproposta de alguém conhecer o (s) culpado (s) —;mas esse "topos" apresenta-se no romance "SérieNoire" diluído entre o recriar criticamente omundo, o universo do leitor, e, neste sentido,podemos dizer que o "topos" do policial se acha,

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no chamado romance americano, açambarcado por [Página 82] uma narrativa que, no limite, creio,poderíamos denominar de um romance de costumes

contemporâneo.Dadas as colocações anteriores, é possívelentender porque o romance "Série Noire" nãosubstituiu o romance enigma, havendo, hoje,convivência entre eles, aceitação e consumo dessesdois tipos de policial. É que esses dois tipos deliteratura policial se destinam, na verdade, a dois

públicos distintos. O romance enigma atua na esferado raciocínio quase matemático, na esfera demontagem racional, e o romance negro atuaesfera do viver e perceber criticamente o mundoque nos cerca.

Ao escolhermos um texto policial para devorar lentamente, sentados quietinhos e quentinhos emuma poltrona durante uma tarde de inverno,estamos escolhendo também o que esperamosdesenvolver, o que queremos acrescentar a nósmesmos, com o nosso lazer.

Existem algumas hipóteses e questãodecorrente dessas hipóteses que gostaria de colocar aqui, para encerrar esse texto, a título de umaproposta para reflexões posteriores do leitor.Acredito que elas devam ser colocadas, poisconstituem uma via de abordagem que podepossibilitar que situemos um dos contextos globaisem que uma reflexão sobre a literatura policial pode-se colocar.

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O primeiro grupo de hipóteses diz respeito a[Página 83] uma, possível tipologia da narrativapolicial, tomando como prisma a questão da sua

posição ante o problema da relação criação ficcional-realidade. Explicando melhor:O fato de o romance policial americano

pretender recriar ao nível da ficção a nossasociedade, o mundo em que vivemos, o universocom o qual nos, leitores, tomamos contatodiariamente e no qual atuamos, é, acredito,

simultaneamente ponto de partida e produto de umaposição-opção desse tipo de narrativa ante oproblema da relação criação ficcional-realidade. Ameu ver, romance ficcional americano pretendeconstruir, via lingua-gem, uma metáfora do mundopolítico e social contemporâneo.

Por outro lado, acredito que, no romanceenigma, o procedimento básico ante a questãoficção-real idade seria diferente do apontadoacima. Parece-me que o romance enigma isolariacertos casos e fatos do contexto mais global emque eles teriam ocorrido e, no interior dessescasos, isolaria certos atributos e ideais da socie-dade moderna (racionalidade, justiça etc.),esquecendo, abstraindo, colocando entre parên-teses todo um outro leque de atributos (ilogicidade,injustiça, acaso etc.) e, ao reconstruir num todocoerente apenas aquilo que foi isolado, o isoladonos é apresentado como o todo do real.

Esse isolar de atributos parece ser algo que vai

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crescendo com o desenvolvimento do romance, e[Página 84] o vai proporcionalmente ao abandono daverossimilhança nos crimes abordados e à

substituição da atuação provável pela possível. (Daí,talvez, a crescente exploração e valorização noromance enigma de crimes tipo "recinto fechado".)Nesse sentido, creio poder dizer que, do prisma daresposta dada ante o problema da relação ficção-realidade, o romance enigma manteria uma relaçãometonímica com o real.

Se essas hipóteses se comprovassem, algumasquestões se imporiam: esse abordar a narrativapolicial através da ótica da resposta dada ante aquestão da relação criação ficcional-realidade nãonos levaria a repensar o espaço desse tipo denarrativa ante a ficção literária em geral? Nãoseriam esses dois tipos de relação ficção-realidademodelos básicos de respostas da literatura ante odesafio que a realidade propõe à criação? [Página85]

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INDICAÇÕES PARA LEITURA

Em termos de narrativas policiais, citamosaquelas mais importantes historicamente: os contosde Poe, as narrativas de Conan Doyle, alguns textosde Agatha Christie, de Dashiell Hammett e deChandler.

Além desses textos, existem inúmeros outrosautores que o leitor pode ler com real proveito.Quanto ao romance enigma, gostaria de citar, entreoutros, G. K. Chesterton, Van Dine, Rex Stout eEllery Queen. Quanto ao romance policiai negro, umautor não citei nesse texto, mas que vale a pena ser lido é James H. Chase, principalmente o seu

romance mais conhecido — "Não Enviem Orquídeaspara Miss Blandish".Do ponto de vista teórico, praticamente

inexistem em português textos que tratam doassunto. Podemos encontrar o artigo de Todorov,"Tipologia do Romance Policial", incluído no volume

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"Poética da Prosa"; o livro de Paulo Medeiros eAlbuquerque, "O Mundo Emocionante do [Página 86]Romance Policial", que é fundamental do ponto de

vista informativo; e o conjunto de artigos sobrevários aspectos da narrativa policial, por váriosautores, publicado no "Caderno de Cultura de OEstado de S. Paulo – nº. 111.

Algumas idéias desse volume foram baseadasem alguns autores: como base para algumasinformações do item 1 (no século XIX...), utilizei os

textos de Lacassin (“Mythologie du Roman Policier”),de P. Boileau e T. Narcejac ("Le Roman Policier") ede F. Hoveyda ("Historia de  La Novela Policiaca");ainda no item 1, a questão da formação da noção docriminoso como inimigo social foi extraída de M.Foucault ("A Verdade e as Formas Jurídicas" in"Cadernos da PUC/RJ — nº. 16); a Steven Marcusdevo várias das idéias apresentadas e citadas noitem sobre Hammett (“ Introdução a Hammett" in "AFerradura Dourada"); a Todorov (principalmente nosartigos "Tipologia do Romance Policiai" e "AsCategorias da Narrativa Literária") devo as seguintesidéias: a questão da dupla história no policial (e suasconseqüências imediatas) e a questão da tipologiados narradores (narrador pode ser =, < ou >personagens); a noção de "Kitsch" foi baseada emA. Moles ("O Kistch"); as idéias de paródia einversão paródica foram baseadas em Bakhtin("Problemas da Poética de Dostoiévski") e emTynianov ("Destruction parodie" in "Change" nº. 2).

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Biografia

O interesse pela literatura apareceu cedo, coisade meio de adolescência, o interesse pela reflexãoteórica a respeito apareceu um pouco mais tarde.

Fiz Filosofia na USP onde me preocupeiespecialmente com questões estéticas: aspectos daprodução e do consumo da arte, tradição evanguarda, etc.

Depois disso fiz pós-graduação e mestrado emteoria literária (Programa de Comunicação) na PUC,onde defendi em maio de 83 a dissertação "Dupin,Holmes & Cia.". Este volume nasceu de parte do

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material da dissertação, a qual foi possível graças abolsas de estudo integrais do CAPES e CNPq.

Fora isso, algumas resenhas, críticas e etc.,

aqui e ali.Tenho 29 anos.Sou mãe de João Marcelo.

 __________________________________________ Caro leitor:

Se você tiver alguma sugestão de novos títulospara as nossas coleções, por favor nos envie. Novasidéias, novos títulos ou mesmo uma "segunda visão"de um já publicado serão sempre bem recebidos.

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Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupoEsta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo 

Digital Source para proporcionar, de maneira totalmenteDigital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podemgratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicoscomprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos 

 para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmentea sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e acondenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribuahumildade é a marca da distribuição, portanto distribua 

este livro livremente.este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidadeApós sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivandode adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.o autor e a publicação de novas obras.

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