SANTOS. a Personagem Feminina. Raça. Classe Social. Gênero

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    A personagem feminina: raça,classe social, gênero

    The female character: race,social class, gender 

    Salete Rosa Pezzi dos Santos

     

    RESUMOConsiderações acerca da representação do sujeito feminino no uni-verso ficcional, a partir da análise de ações da protagonista e de suasrelações sociais, as quais são marcadas pelo cerceamento, pelo pre-conceito e pela falta de perspectiva de superação.

    PALAVRAS-CHAVESujeito feminino; Representação; Preconceito.

    ABSTRACTConsiderations concerning the representation of the female subject inthe fictional universe, from the analysis of actions of the protagonistand her social relations, which are marked by retrenchment, prejudiceand lack of perspective of overcoming.

    KEY WORDSFemale subject; Representation; Prejudice.

    No panorama multicultural, diversidades evidenciam-se, avizinham-se e reivindicam um espaço, contribuindo para a superação de diferenças,as quais, de forma cada vez mais contundente, se fazem notar e exigemimprimir sua identidade. Também, mais firmemente, conquista espaçoa produção de segmentos sociais que requerem alteridade de etnia,gênero, sexo, classe. A relevância dessas questões acarreta, “tanto naacademia quanto na própria produção artística, a emergência de uma

    nova política do valor, com o privilégio da dimensão cultural sobreconfinamento no literário, do ético-político sobre o estético, do cotidi-ano sobre a tradição letrada, do multicultural sobre o canônico [...]”

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    (CUNHA, 1998, p. 68). Como consequência, instaura-se um conjuntode novas escolhas, “na academia e na área das Letras”, culminandocom o que Cunha (1998) chama de “ousado gesto metodológico” de

    novos estudiosos. Nesse contexto, pode-se trazer à discussão a litera-tura dirigida à criança, cuja renovação, no Brasil, iniciou em meadosda década de 70 do Século XX, quando surgiu um número con-siderável de novos autores. Isso significou uma etapa importantepara essa produção cultural, visto que, após a criação literária de Mon-teiro Lobato, passaram-se décadas até surgirem, na literatura brasileirainfantil e juvenil, escritores que merecessem o prestígio da crítica e dosleitores. Apesar da expectativa positiva a esse respeito, não significaque toda produção literária resultante desse momento seja inovadoraou de qualidade, ou siga uma mesma linha de pensamento. Um grupo

    de escritores, em especial, destacou-se, por apresentar uma orientaçãocomum de ação, representando a vida a partir de uma perspec-tiva realista. Problemas existenciais como desigualdades de classe,racismo, poluição, morte, violência urbana, entre outros, começarama povoar a literatura infantil, por acreditar-se que a criança deveriaparticipar mais da realidade. Antonio Hohlfeldt, ao discorrer sobre aliteratura endereçada à criança e ao jovem, afirma:

    A obra  Nó na garganta  (1981), de Mirna Pinsky, é um exemplodessa perspectiva de criação literária, na qual se evidenciam questõesde etnia, classe social e gênero. A narrativa gravita em torno da per-sonagem Tânia, protótipo do ser humano que, por ser negra, pobre edo sexo feminino, sofre as implicações que esse fato pode acarretar,

    em uma sociedade eivada de preconceitos.Com o objetivo de analisar a representação do sujeito feminino

    dentro da narrativa, o foco de interesse deste trabalho volta-se paraas ações da protagonista, as quais são marcadas pelo cerceamento, namedida em que a voz narrativa não permite um espaço de superaçãopara a personagem. As reflexões que seguem buscam verificar como ahistória é conduzida, como a percepção sobre determinadas circunstân-cias vividas pela heroína e por outras personagens da narrativa reme-tem ao preconceito, que alternativas de atuação se oferecem à heroínae, por extensão, ao leitor, que se identifica com as vivências de Tânia.

    Personagens de narrativas infantis nem sempre detêm um lugar deatuação que as conduzem à emancipação. Esse dirigismo é facilitadopelo fato de ser um produto do adulto para a criança. Trata-se de

    Uma releitura dos textos mais recentes dedicados ajovens e crianças, em nosso país, permite-nos, dequalquer forma, notar a emergência de alguns te-mas, como a violência política institucionalizada;o racismo – não apenas ao negro, como ao índio;a questão da terceira idade; o problema, hoje cres-cente, dos pais separados; o excepcional; a perspec-tiva de igualdade entre os sexos; a discriminação so-cial [...]. (HOHLFELDT, 2006, p. 54)

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    tão-somente emergirá da renúncia ao normativo, oque implica o abandono do ponto de vista do adulto,a ampliação do horizonte temático de representaçãoe a incorporação de uma linguagem renovadora,atenta ao discurso da vanguarda, às modalidades da

    uma literatura endereçada ao público mirim, que a consome, mas decuja elaboração não participa. O leitor recebe o resultado final, nãocompartilha de sua idealização, e o produtor privilegia os interesses

    particulares do mundo adulto. Essa assertiva não deixa de ser umageneralização, entretanto, ainda que haja autores que publiquem umaliteratura de caráter emancipatório, é forçoso reconhecer que a dis-cussão procede. Essa questão encontra raízes no final do século XVII,quando a infância começa a acontecer; antes disso, ela não existia, ouseja, não da forma como é entendida hoje. Até então, criança e adultoparticipavam, indistintamente, de todos os acontecimentos referentesà família, como nascimento, morte, subsistência, fatos partilhadosnaturalmente nos circuitos sociais de então. Interesses sociais de quehaja uma nova concepção de família fazem emergir outra mentalidade

    de estrutura familiar, cuja privacidade e afeição entre seus membrostornam-se alvo de conquista, fomentando maior afetividade entre aspessoas. Graças a isso, o desenvolvimento intelectual e emocional doinfante fica mais exposto ao controle do adulto que busca apoio paraa educação da criança fora do âmbito familiar. É quando a escolasofre modificações e se instaura como veículo de educação burguesa,portadora da ideologia que sustenta o funcionamento do Estado e dasociedade. Além disso, a literatura é arquitetada, surgindo como outromeio pelo qual se poderia atingir a criança, atendendo, não às ne-cessidades do mundo infantil, mas aos anseios do adulto que aspira.A intenção primeira foi conservar na criança o mundo primitivo ebom, enquanto vivendo o período da infância, e, em segundo lugar,manter sobre os pequenos a superioridade de quem detém o poderdo conhecimento, assegurando o jugo incontestável do adulto sobre osujeito infantil. Essa ascendência aumenta, à medida que ao mundopueril nega-se a alternativa de participação e decisão. Nesse sentido,a literatura adultocêntrica, veiculada por pais e escola, atinge seusobjetivos, pois opera sobre a emoção experimentada pela criança, e,por mais apropriada que pareça a realidade a ela oferecida, será algoque ela não assinalou.

    A voz narrativa - que poderá ser de aprovação ou de desrespeito

    ao mundo infantil - possibilita ao leitor o contato com o mundo fic-cional. Numa obra em que o narrador adere empaticamente à vivênciado pequeno herói, haverá espaço para que este vivencie livremente aação, permitindo ao leitor - através da identificação que se estabelece- desenvolver seu próprio universo e abandonar o ponto de vista doadulto. Do contrário, inevitavelmente, acontecerá a traição ao leitor, ea obra não apresentará o valor literário que

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    paródia, enfim, acompanhando a evolução da arteliterária, que se dá sempre como ruptura e não comoobediência. (ZILBERMAN, 1981, p. 37).

    A atitude do narrador torna-se determinante para que o mundoficcional alcance a participação do leitor, visto que, ao evitar o diri-gismo, o narrador estará assegurando à criança um lugar na composiçãoliterária. E essa participação poderá promover a atualização do objetoliterário, independentemente da época em que o texto tenha sido es-crito. Ao processar o preenchimento de vazios da obra literária, cal-cado em suas vivências, o leitor estabelece um intercurso entre mundoficcional e mundo real, resultando uma revitalização daquele e, aomesmo tempo, um alargamento de sua visão do mundo, a partir doquestionamento sobre o universo ficcional e o seu próprio contexto.De um lado, o leitor se legitima pelo seu papel de revitalizador do tex-to literário, através do preenchimento de lacunas, e, de outro, a obraliterária tem sua qualidade assegurada, justamente porque o narradorabandona a posição centralizadora e intervencionista, abrindo espaçopara a atuação do destinatário.

    Ao revelar certos fatos, ao fazer determinado comentário ou, aopenetrar na intimidade de alguma personagem a partir de sua própriaótica, a voz narrativa poderá atingir o destinatário em seu mundo emo-cional, interferindo em sua percepção do espaço ficcional e orientar suainterpretação. Quando isso ocorre, o lugar do leitor não é resguardado,

    acontecendo a negação de sua autonomia intelectual. Assim, o nar-rador poderá intervir na narrativa, preenchendo-a com comentáriosde forma a não permitir a participação do leitor, ou estabelecer umespaço para o destinatário através das lacunas que a obra apresenta.

    Leitura crítica e uma tomada de posição diante de um contextoa ser decifrado resultam de uma criação literária que não apresentapapéis fixos e oferece pontos de indeterminação a serem completados.Consequentemente, a literatura, como arte que aspira à ruptura domodelo vigente e busca concretizar permanência e novidade, atingeseu objetivo junto ao destinatário ao assegurar-lhe que alcance o pro-

    cesso de reflexão sobre o estabelecido e amplie o horizonte de ex-pectativas, alargando sua visão de mundo. O caráter emancipatórioque advém dessa circunstância facultará ao leitor posicionar-se critica-mente diante das normas, outorgando ao processo de leitura legitimi-dade de ordem existencial.

    Na esteira dessas considerações, retoma-se a obra Nó na Garganta (1981), de Mirna Pinsky. A atenção do leitor em relação ao livro já ésuscitada a partir da capa, devido a dois aspectos em especial: o títuloda narrativa e a ilustração. O primeiro – Nó na garganta – faz suporsituações que poderão atingir a sensibilização do leitor, levando-o aexperimentar “um nó na garganta”, e a ilustração, de alguma forma,corrobora essa constatação, uma vez que, de um grupo de criançasque brinca na praia, apenas uma está isolada das demais, somente

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    observando as outras brincarem. Esta criança solitária é uma meninanegra. Atenta à alusão inscrita nessa imagem da capa, o pessoa quelê, antecipadamente, poderá conjecturar sobre acontecimentos menos

    favoráveis envolvendo uma personagem, talvez a própria heroína.Ao iniciar-se a narrativa, Tânia, a protagonista, menina negra de

    dez anos, e a família partem de São Paulo para Santana, cidadepraiana do litoral paulista, em busca de novas perspectivas de vida,com maior tranquilidade, com casa para morar, sem preocupações compagamento de aluguel, pois serão caseiros de Dona Matilde, senhorabranca, que lhes oferece a oportunidade de mudança. Logo fica clara asituação social da família, e esse aspecto de pobreza é manipulado du-rante a narrativa não somente como elemento ligado à condição de ne-gritude de Tânia, mas também de gênero. Embora, em muitos momen-

    tos, por envolver também os pais da protagonista, a questão de raçaparece determinante para fomentar a compaixão do destinatário emrelação às personagens negras, a questão de gênero assoma toda vezque Pedro, menino branco e tão pobre quanto a heroína, não sofre omesmo tipo de discriminação, tampouco é levado à autocomiseração,como ocorre com Tânia. A voz narrativa se compraz em comover,sensibilizar o leitor através da exploração da piedade, pois a meninanão é tratada como um ser humano que passa por problemas a seremsuperados e pode viver, livremente, peripécias que a ajudarão nessepercurso, ao contrário, o aspecto da miséria em que vive é acentuado,ligado ao fato de ser negra, criança e menina. Não se trata da históriade uma heroína que se movimenta com naturalidade dentro da nar-rativa, independentemente da condição étnica, social ou de gênero, aoinvés disso, toda vez que o leitor acredita na superação de situaçõesadversas, algo ocorre para enfatizar que ela é incapaz disso. Quando apersonagem dá mostras que pode superar obstáculos, a voz narrativaretoma o discurso e, novamente, sobressai a posição de compaixão emrelação às suas tentativas, porque redundam inúteis. E isso não deixade surpreender, pois, no início da narrativa, Tânia não entende porquea mãe insiste tanto em espichar-lhe o cabelo e pensa que “tambéma mãe ficaria mais bonita se não insistisse tanto em ficar alisando o

    cabelo para trás.” (PINSKY, 1981, p. 6.). Essa fala da personagem levao leitor a depreender que ela se aceita muito bem, visto que critica aatitude da mãe. A história poderia ter seguido outro direcionamento,se o narrador tivesse tratado a heroína com mais naturalidade. Pos-sivelmente, se não ocorresse tanta interferência, a personagem pode-ria ter seguido outra trajetória e ter empolgado o leitor por sua forçae determinação, entretanto o que ela angaria é a piedade ao longo daobra, como uma pessoa desventurada que precisa ser vista com olhosde aceitação, não por ter problemas como qualquer ser humano, maspor não ter capacidade para solucioná-los, sempre lembrando que é

    uma menina negra. Ao longo das peripécias narrativas, ela passa porsituações em que se acentuam rejeição e opressão. Por vezes, tem-sea impressão que a protagonista vai alçar vôo e se afastar da posição

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    do sujeito feminino merecedor de compaixão, de atenção especial,no entanto, novamente, Tânia vivencia uma situação desoladora quecomove o leitor, continuando vítima da comiseração que lhe dedica o

    narrador. O leitor volta a apiedar-se da heroína, esvaindo-se a possibi-lidade de ela ser igual a todo mundo.

    A voz narrativa penetra a intimidade da protagonista e coloca oque ela poderia estar sentindo, transferindo a sua própria ótica parao leitor. Tanto Tânia quanto o leitor são tolhidos em sua liberdade: aprimeira, para agir mais livremente, o segundo, para depreender o queacontece, pois a voz narrativa apresenta a inferência antes que o desti-natário o faça, e o mais perigoso é que isso acontece sem isenção, vemcomprometido pela visão do narrador. Quando, por exemplo, Tâniaentra na vendinha de Seu Lucas, não é a heroína quem nos transmite

    o que sente, o que pensa, é o discurso do narrador que permite aoleitor situar-se na psique da personagem e mostra que ela “lembraque um dia sonhou que era mais branca que essa moça.” (PINSKY,1981, p. 29). Há várias estampas de mulheres nuas nas paredes dapequena mercearia, e a cor da pele de uma das jovens é quase tãoescura quanto a de Tânia, entretanto, segundo a voz narrativa, elanão se detém naquela, ela acha mais bonita a de cabelos loiros e lisos.Esse comportamento mostra-se incoerente com o posicionamento ini-cial da personagem, quando achava que ficaria melhor com o cabelosolto como o da moça da televisão. E, quando fala do cabelo “ruim”,é o narrador quem coloca essa observação no discurso de Tânia quepondera ser a mãe a pensar assim.

    Chama a atenção a forma como Pedrinho, menino branco, amigode Tânia, também filho de caseiros e vivenciando a mesma situaçãosocial de pobreza que a heroína, é tratado diferentemente dentroda história. Parece não ter nada a resgatar, ao contrário, em muitosmomentos, vai servir de amparo à menina negra, pela qual experi-menta um sentimento de amizade mesclado com piedade. Em váriasocasiões, ele toma a defesa da heroína, e, quase no final da narrativa,quando o narrador leva Tânia a assumir um discurso de autocomis-eração, confirma-se a compaixão de Pedrinho pela amiga. Esse senti-

    mento não é mais apenas insinuado, pois o narrador o corrobora emseu próprio discurso: “Pedrinho reagiu assombrado, ao mesmo tempomorrendo de pena dela.” (PINSKY, 1981, p. 55). O movimento de au-tocompaixão de Tânia remete a considerações de Bourdieu a respeitoda relação que se estabelece entre dominados e dominadores: “Os domi-nados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantesàs relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais. Oque pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até de autodesprezosistemáticos [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 46).

    Esse sentimento de autodepreciação é vivenciado por Tânia, jun-

    tamente com os pais, uma vez que, cerceados pelo medo e por sen-timentos de inferioridade, o apelo à sobrevivência é mais forte quequalquer disposição de luta por uma vida mais digna. A personagem

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    parecia que todas as coisas difíceis e duras da vidadeles entravam na cabeça da mãe e ficavam dizendopara ela que a vida não ia mudar nunca, ia ser sem-pre assim, pobre, feia, triste, nada ia dar certo, nuncairiam comprar uma casa, teriam que viver sempre dealuguel ou na casa dos outros, feito então. (PINSKY,1981, p. 36)

    Pelo fato de o fundamento da violência simbólica re-

    sidir não nas consciências mistificadas que bastariaesclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas es-truturas de dominação que as produzem, só se podechegar a uma ruptura da relação de cumplicidadeque as vítimas da dominação simbólica têm com osdominantes com uma transformação radical das con-dições sociais de produção das tendências que levamos dominados a adotar, sobre os dominantes e sobresi mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes.(BOURDIEU, 2007, p. 54)

    Desenha-se a imagem dos pais da heroína como pessoas que te-mem a vida, sem amor próprio, aos quais falta autoconfiança, e todos

    esses sentimentos são passados para Tânia na forma de repressão:ela não tem liberdade para agir normalmente como qualquer outracriança, pois a mãe teme o que dirão deles os vizinhos. A protagonistapensa em alternativas para driblar as preocupações da mãe, sonha emfugir para a floresta, sem ninguém para perguntar com quem brincouou para repreendê-la por seus atos. Entretanto sente medo e pensaque ficar solta sem mãe “é coisa de esfriar a espinha.” (PINSKY, 1981,p. 43). Sem dúvida, o contexto familiar atua como fomentador depreconceito, repressão e medo, e a voz narrativa reforça a condição deinfortúnio das personagens.

    Por sentir-se inferiorizada e rejeitada pelo grupo de crianças, aheroína busca na dissimulação a possibilidade de usufruir de coisasque, de outra forma, pensa jamais conseguir. Aprendera a lição desubmissão dos pais e finge não se contrariar com a conduta tirânicada amiga Juliana. Afinal “a casa da amiga, os brinquedos, a facilidadede abrir a geladeira e comer de tudo, faziam Tânia esquecer a raivade ter que satisfazer as vontades da outra.” (PINSKY, 1981, p. 57-58).Bourdieu, ao discorrer sobre a violência simbólica que perpassa asrelações entre dominadores e dominados, afirma de forma categórica:

    A atitude de subserviência da protagonista reproduz seu meio fa-

    miliar, cujas pessoas não se outorgam o direito de respeitarem suastradições e a si mesmas. É lamentável que a Tânia não se tenha fac-ultado a opção de agir como, por exemplo, Tom Sayer o fez em seu

    observa que a mãe recebe xingamentos da patroa sem refutar, calada,parecendo aceitar aquele desrespeito com naturalidade. Pensa na mãecismando com as coisas, pois

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    universo criativo e livre; não tenha podido usar todo seu potencialde criança que pensa e pode ter escolhas. Ela é vítima e, em suatrajetória, vai perdendo terreno na transgressão do preconceito, explo-

    rado pelo narrador em espiral ascendente, alcançando o ápice quandoacontece o leilão da boneca-coração que é resgatada pelo pai de Ju-liana. O pai de Tânia, com a ajuda de Pedrinho, também participado leilão, “mas não deu nem para alegrar. Os três perceberam que aboneca estava perdida.” (PINSKY, 1981, p. 63). E, no momento emque Juliana apanha a boneca e sai correndo, a protagonista aindacorre atrás da amiga e pede para segurar um pouquinho, porém elasai em disparada, dizendo que vai guardar a boneca, pois pode sujar aroupa dela. Esse fato atinge a culminância na exploração sentimentaldo leitor, suscitando o nó na garganta pela frustração que a menina

    experimenta. Fica patente que a heroína não pode desejar nada, poisnão conseguirá o almejado, visto que alguém lhe usurpará a vez.Ainda que chocada com a atitude da amiga, Tânia continua na

    quermesse. Participa do jogo de argolas e consegue o prêmio maiscobiçado por toda garotada. É uma vitória importante para Tânia,porém, mais uma vez, o narrador empana a conquista, reavivando opreconceito pelo discurso de Rafael, irmão de Juliana, que comenta:“Uma vez por ano até escravo tem vez!” E continua instigando: “Vai,escrava, vai comemorar o teu dia de glória!” (PINSKY, 1981, p. 64-65). Os acontecimentos seguintes levam o leitor a pressupor que aprotagonista, finalmente, terá uma alternativa para superar a condiçãode inferioridade a que ficou reduzida durante sua trajetória. As crian-ças ajudam-na a enfrentar Rafael, participam do confronto, entretantoacaba sendo um movimento muito rápido, pois os adultos resolvem aquestão, interferindo na briga. A heroína fica sozinha, vai para casa,e o que lhe resta fazer é chorar. Deseja que a mãe volte logo e possaconsolá-la: “Mas a mãe... coitada da mãe, a mãe não entendia nada.A mãe era até capaz de dizer que ela tinha que pedir desculpas proRafael. E o pai iria ficar quieto, concordando.” (PINSKY, 1981, p. 66).

    A situação dos pais, na percepção da heroína, é irreversível, semsolução: “é muito tarde para tentar mudar eles,” (PINSKY, 1981, p.

    66), conclui Tânia, e, quanto a ela, o consolo vem da constatação deque é bonita. Na última parte da história, ela diz alto: “Eu sou bonita!Como eu sou bonita” (PINSKY, 1981, p. 66). Essa passagem poderiater alcançado maior dimensão, mais força dentro das peripécias nar-rativas, pois, em muitos momentos, a protagonista se mostra ativa,como quando faz desaparecer os óculos de Dona Matilde, ou quando,por desforra, presenteia Pedrinho com uma fita colorida para que omenino amarre o próprio cabelo, reagindo contra as injustiças de queé vítima e as coisas que lhe desagradam. Entretanto, as circunstânciasque a envolvem a tolhem, a prendem, a refreiam e, somente, no final,

    ela observa, pelo próprio discurso, que é bonita. E mesmo essaconstatação não deixa de ser desoladora, na medida em que, noBrasil, a mulata bonita continua sendo mercadoria-exportação, cartão

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    de visita para os turistas que veem na mulher negra objeto de estímuloerótico do qual se pode usufruir, enquanto a performance satisfizeraos exigentes gostos dos clientes. Assim, aquilo que poderia significar

    uma forma de regeneração para o sofrido percurso da protagonista,mais uma vez, se perde. E, ainda que, ao final da narrativa, a protago-nista se configure satisfeita com sua aparência, a condução da históriadilui a força dessa constatação, transferindo para a personagem a pie-dade que o leitor experimenta ao longo da leitura da obra. Para o lei-tor branco sobra a comiseração que foi fomentada repetidamente, epara o leitor negro, a confirmação de que, realmente, a pessoa negrae pobre sofre discriminação, dificilmente conseguirá atingir um lugarde reconhecimento social, e o que lhe resta é gostar de si mesmo, umavez que poderá contar com pouco afeto real. A voz narrativa, que

    assumiu o discurso do adulto, não respeitou Tânia e, por extensão,não respeitou o leitor, pois não afloram alternativas de solução paraa vivência da heroína: o narrador fecha a questão do preconceito queela sofre, com a exploração da compaixão. A heroína, que se comprazcom a constatação de sua beleza, não logra servir de modelo de eman-cipação para outros seres humanos que vivem a mesma situação depressão moral.

    REFERÊNCIAS

    BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

    CUNHA, Eneida Leal. Literatura comparada e estudos culturais.In: MARQUES, Reinaldo; BITTENCOURT, Gilda Neves. (Org.). Limiares críticos: ensaios de literatura comparada. Belo Horizon-te: Autêntica, 1998.

    DUARTE, Eduardo de Assis. Gênero e comparatismo. In: MARQUES,Reinaldo; BITTENCOURT, Gilda Neves. (Org.).  Limiares críticos: en-

    saios de literatura comparada. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

    HOHLFELDT, Antonio. Literatura infanto-juvenil: teoria e prática. Por-to Alegre: Mercado Aberto, 2006.

    PINSKY, Mirna. Nó na garganta. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

    ZILBERMAN, Regina.  A literatura infantil na escola. São Paulo:Global, 1981.

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    SALETE ROSA PEZZI DOS SANTOSDoutorada em Letras Literatura Comparada pela UFRGS.Professora e coordenadora do Curso de Letras- Português da Universi-

    dade de Caxias do Sul .E-mail: [email protected]

    Recebido em 30/08/2012

    Aceito em 30/11/2012

    SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos. A personagem feminina: raça, classesocial, gênero. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 15, n. 19,p. 225-234, 2012.

    A personagem feminina: raça, classe social, gênero