SANTOS, Bento Silva - A Questão Do Tempo No Livro XI Das Confissões de Agostinho

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    A CONCEPÇÃO DO “TEMPO”NO LIVRO XI DAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO1 

    BENTO SILVA SANTOS(UFES – Departamento de Filosofia)

    As páginas que Agostinho dedica no livro XI das Confissões ao problema de uma

    adequada interpretação filosófica do tempo em relação com a eternidade representam um

    ponto de referência clássico na literatura filosófica. A questão ainda mais discutida na teoria

    agostiniana consiste em interpretar corretamente a relação entre o animus e o tempo: épossível reduzir o espaço histórico-temporal à atividade do animus humanus? Uma

    distância longa no passado dependeria de um ato longo de recordar-se? O futuro longínquo

    consistiria no ato longo de esperar o evento futuro? Seria possível -  em se tratando do

    tempo - separar o indivíduo, que se recorda ou que espera, do movimento real da natureza

    e da história?

    Examinado a concepção global do tempo no livro XI-

      especialmente, as suasdimensões fundamentais (passado, presente e futuro) -, pretendo esclarecer o significado

    do texto agostiniano quanto à relação entre a alma e o tempo. Para compreender mais

    organicamente a argumentação agostiniana, seguirei os seguintes pontos: 1. Observações

    preliminares; 2. O uso do termo “tempus” em suas diversas formas; 3. A realidade do

    tempo.

    1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES 

    Na interpretação da qualquer obra filosófica, é necessário conhecer, ao menos em

    linhas gerais, a tendência geral do pensamento e a perspectiva filosófica do autor. Isto

    exige, antes de tudo, um conhecimento do background  histórico e das circunstâncias de seu

    tempo, pois nenhum homem, mesmo que seja assaz original, está inteiramente desprovido

    1 Publicado em: Em torno da Metafísica..1 ed.Rio de Janeiro : Sete Letras, 2001, 44-60

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    das idéias e da cultura de seus contemporâneos2. Ora, de um lado, quem faz uma leitura

    mais aprofundada do Livro XI das Confissões não deixará de perceber que a discussão de

    Agostinho evoca certamente as explicações de Aristóteles na Física (4,10-14)3 e de Plotino

    nas Enéadas (3,7: Sobre a eternidade e o tempo)4. De outro lado, a teoria agostiniana teve

    uma recepção fecunda na Idade Média, como, por exemplo, em Roberto de Grosseteste,

    Alberto Magno, Henrique de Gand e Pietro Giovanni Olivi. Esses testemunhos medievais,

    longe de encontrarem na teoria agostiniana do livro XI das Confissões a distinção moderna

    entre tempo natural / físico e tempo pessoal / psíquico, se posicionam criticamente contra a

    tese central de Agostinho (o tempo só existe na alma): como uma alma singular e

    individual poderia ser a causa da mutabilidade das coisas?5 

    Embora Agostinho seja devedor, em muitos aspectos, da tradição filosófica anterior

    - que elaborou não só uma consciência reflexiva do tempo cósmico, biológico e histórico

    mas também evidenciou a dimensão do tempo individual -, a sua reflexão profunda sobre o

    tempo é uma autêntica experiência filosófica que faz emergir paradoxos tais como: Que

    fazia Deus antes da criação? Que é o tempo? Se o tempo é a distensão da alma, como é

    possível que tenha havido tempo antes da criação do homem?6

     No contexto da intellectus

    2 No caso do Livro XI das Confissões, Agostinho é devedor de uma tradição filosófica anterior queabordou a questão do tempo sob diversos pontos de vista. Cf. neste sentido K. FLASCH, Was ist Zeit? Augustinus von Hippo. Das XI. Buch der Confessiones. Historisch-Philosophische Studie.Text-Übersetzung-Kommentar , Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann,1993, 109-159; cf. tambémM. CRISTIANI, Libro XI , in CRISTIANI, M.; SIMONETTI, M. & SOLIGNAC, A. Sant’Agostino,Confessioni  4:  Libri X-XI , Milano: Fondazione Lorenzo Valla-Arnoldo Mondadori Editore,1996,266-330.

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     Para um exame exaustivo de texto, cf. E. CAVAGNARO-STUIJT,  Aristotele e il tempo. Analisidi Physica, IV, 10-14, Leeuwarden: Elena Cavaganaro-Stuijt,1995; A. GIORDANI, Tempo estruttura dell’essere. Il concetto di tempo in Aristotele e i suoi fondamenti ontologici .Milano: Vitae Pensiero,1995

    4 Cf. a obra fundamental de W. BEIERWALTES, Plotin. Über Zeit und Ewigkeit . Enneade III 7übersetzt, eingeleitet und kommentiert .Frankfurt a.M., V. Klostermann,31981 (tr. it. Eternità etempo. Plotino, Enneade III 7. Saggio introduttivo, testo con traduzione e commentario , Milano:Vita e Pensiero,1995).

    5 Cf. K. FLASCH, Was ist Zeit?..., 160-195 (a recepção da teoria agostiniana na Idade Média).

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     fidei, Agostinho pressupõe uma verdade absoluta que se comunica na forma de linguagem

    temporalizada, uma Escritura mediada pela temporalidade criatural dos seus redatores

    divinamente inspirados que, por sua vez, narram a criação do mundo em sua dimensão

    temporal e a História da Salvação do homem.

    Agostinho se interroga sobre a própria capacidade de transcender o tempo. Ora, a

    experiência de seu ser no tempo, de uma existência profana, revela precisamente a

    tendência oposta em perder-se na multiplicidade, em deixar destruir a própria unidade na

    infinita divisibilidade do instante. A percepção “racional” da temporalidade, isto é, a

    percepção ordenada segundo o número que constitui a mediação privilegiada entre osensível e o inteligível7, mostrou-se radicalmente insuficiente para subtrair o indivíduo às

    próprias tendências intimamente destrutivas. A possibilidade que permitirá ao homem

    reconstituir a desordem da própria vida em forma de narratio  e de confessio  será

    reconhecer na meditação da Escritura Sagrada o único itinerário de verdade percorrível do

    intelecto humano condicionado pela temporalidade. Aceitando que o Absoluto se

    manifestou na própria história pessoal, este intelecto finito pode, no entanto, intuir que o

    fundamento verdadeiro de toda verdade e conhecimento está para além do tempo, e só auma palavra de revelação consignada inexoravelmente em uma linguagem humana poderá

    salvar  o indivíduo da tirania da temporalidade.

    6 Esses são os três paradoxos ou problemas que R.J. TESKE discerne na reflexão de Agostinhosobre o tempo. As respostas de Agostinho se inspiraram nas Enéadas  (3,7)  de Plotino: 1) Nãohavia tempo antes da criação; Deus, “Idipsum” é eterno, em um eterno presente, sem passado, nemfuturo. 2) O tempo é a distensão da alma (individual) em seu tríplice ato de recordar o passado, deatenção ao presente, de espera do futuro. 3) O tempo antes do homem é a “distensão da vida” daqual fala Plotino, a da alma do mundo. Cf. Paradoxes of time in Saint Augustine, Milwaukee:Marquette University Press,1996

    7 Esta percepção foi teorizada no De Musica de Agostinho.

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    2. O USO DO TERMO “TEMPUS” EM SUAS DIVERSAS FORMAS8 

    Agostinho emprega raramente o termo tempus em um sentido universal, abrangendo

    tanto o tempo como a eternidade. Ele explica, por exemplo que, na Trindade, na relação do

    Pai com o Filho, o “tempo” não passa9. Os demônios, enquanto criaturas, estão eternamente

    relacionados com o “tempo”10. Este significado do vocábulo tempus chama a atenção na

    medida em que, para Agostinho, o tempo não é infinito. Deste modo, ele toma aqui o termo

    tempus no sentido de um período infinito, como “dia sem fim”11. Entretanto, de modo geral,

    Agostinho entende tempus  como decurso regular em contraposição à eternidade. Neste

    sentido, Agostinho distingue três aspectos.

    Em primeiro lugar, o tempo se identifica com o temporário e o transitório; por isso,

    o tempo como tal é característico para a vida humana na terra e, principalmente, para o

    mundo sublunar. Neste sentido, para tempus, Agostinho utiliza em geral o adjetivo

    temporalis, o advérbio temporaliter   e, uma vez, o substantivo temporalitas12.

    Normalmente, esses termos possuem um sentido negativo, pois apresentam seu objeto não

    somente como móvel e instável, mas também como transitório, como passível de ter umfim. O temporário inclina-se precisamente para o não-ser. Verdade é que tais vocábulos

    podem também conservar, ocasionalmente, um sentido positivo, ou unir os dois sentidos,

    mas temporalis é positivo apenas quando se faz uma comparação. Por exemplo, Agostinho

    8  Cf. G. F. D. LOCHER,  Die Beziehung der Zeit zur Ewigkeit bei Augustin, Theologische Zeitschrift  44 (1988): 147-167

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     AGOSTINHO, Sermo 195,1: tempus non transierit , cf. 119,1: non praeterit  (o tempo entre Pai eFilho).

    10 AGOSTINHO, De civitate Dei: Os demônios são: animalia... tempore aeterna.

    11  AGOSTINHO, Ennarationes in Psalmos 147,5,29: “in illa quippe habitatione tempus nonvoluitur ”. Ps. 60,8,4: “dies sine fine”.

    12  AGOSTINHO, Conf. IX,4,10: “devorans tempora et devoratus temporibus”; Sermo 51,22,32:temporaliter ; cf. Sermo 362,27,28; temporalitas  junto de  fragilitas como expressão datransitoriedade do mundo: Ennarationes in Psalmos 119,2,18

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    admite em  De civitate Dei  a “felicidade temporária” diante do pano de fundo de uma

    “eternidade miserável” como uma matéria relativamente favorável13.

    Em segundo lugar, o termo tempus designa para Agostinho um espaço de tempo ou

    um período. Este aspecto objetivo do conceito de tempo se relaciona com as fronteiras

    estabelecidas pela natureza e pela história para os homens. Tempus bem como templum 

    pertencem ao grego tevmnein tevmnein tevmnein tevmnein. Assim como templum designa um espaço limitado, tempus

    denomina também um tempo limitado.

    Para Platão, a conexão do tempo com a rotação do sol, da lua e dos planetasrepresenta uma papel importante em sua definição de tempo. Se Platão identificou o tempo,

    principalmente, com a rotação do universo é uma questão que deve permanecer em

    suspenso. É possível que Agostinho tenha tal fato como pressuposto quando contesta a

    “opinião de um homem erudito” entre outros atributos, segundo a qual, ante a ordem de

    Josué, o sol tenha parado, embora o tempo prosseguisse14. Em Platão, a ligação do tempo

    com a rotação do universo tem também importância decisiva para a moralidade. No Timeu,

    Platão pede que as almas singulares, a fim de poderem dominar seus corpos, orientem-sebem no universo para que seja criado como um ser vivente. Em épocas passadas Platão

    chamava “partes do tempo” (mevrh crov noumevrh crov noumevrh crov noumevrh crov nou), o que Ficino traduziu como temporis partes15.

    Cícero definia o tempo necessário para a execução de uma tarefa de Estado como uma parte

    da eternidade e queria dizer, com isso, de espaço de tempo (spatium)16.

    13  AGOSTINHO, Sermo 157, 1,1: “iactantes suas delicias temporales”..., cf. Ibidem 5,5. Sermo125,11; 157,1,1; Sermo 80,7: “temporalia aliquando prosunt ... aliquando obsunt ”; Sermo 139,2,3;

     De Trinitate IV,18,24; De Civ. Dei VIII,16,25: “melhor est enim temporalis felicitas quam miseraaeternitas”; junto com transire: Sermo 88,10,9

    14  Cf. PLATÃO, Timeu 38 c-d; 39 c; AGOSTINHO, Conf. XI, 23,29 e ibidem 30 sobre Js 10,12:sol stabat sed tempus ibat .

    15  Cf. PLATÃO, Timeu 39 e; 37 e; FICINO, cf. Platonis opera (ed. Henrici Stephani cum MarsiliiFicini interpretatione, Biponti.vol. IX),1786, 279 ss.  Apud G. F. D. LOCHER,  Die Beziehung der Zeit zur Ewigkeit bei Augustin, 149, notas 8 e 9

    16  CÍCERO, De inventione I,38: tempus autem est ... pars quaedam aeternitatis...

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    Encontra-se freqüentemente com Agostinho, para o termo “época”, somente o

    vocábulo tempora17 . Da classificação natural de tempo, através do sol e da lua, ele extrai

    normalmente os dias (dies). O singular (o dia, abrangendo dia e noite) significa,

    ocasionalmente, “luz” em sentido religioso, ao passo que o plural (“os dias”),

    freqüentemente, quer dizer os tempos do mundo. Igualmente, para o tempo de vida das

    pessoas (aetates), como fases naturais das mesmas, Agostinho prefere aplicar os períodos

    da História Sagrada. Além disso, ele combina às vezes “tempo de vida” e “dia”, pois, deste

    modo, pode esboçar os tempos do mundo com os estágios da criação18. Todavia, eventos

    históricos criam também oportunidades para caracterizar tempora, (épocas ou  períodos),por exemplo, a transição do Império romano ao Cristianismo. Com isto, diz Agostinho,

    começavam os tempora christiana19.

    Agostinho parafraseava algumas vezes os períodos como partes do tempo (temporis

     partes) e, freqüentemente, porém, como espaços de tempo, para o qual afirma, vez por

    outra, intervalum  e, na maioria das vezes, spatium. Em outras ocasiões, Agostinho

    circunscreve os períodos como esferas do tempo (orbes, volumina), aludindo deste modo àrotação do universo20. Os termos temperare (cf. nosso “temperar”), obtemperari e

    contemplari são citadas formalmente para ligar o tempo à vida espiritual21.

    Para Agostinho, tempus como espaço de tempo é, portanto, um dado objetivo,

    delimitado pelo próprio Criador. Isto resulta, particularmente, de seu emprego no singular:

    17  AGOSTINHO, Sermo 72,2,3; cf. 82,7,10: distribuite tempora et concordat scriptura. Cf. Sermo

    83,7,8; 110,1,1; 131, 9,9;  De lib. arb. III,21,60: “ per ordinatissiman seriem temporum, quam nonnegligat liberationem nostram Deus...”

    18 Por exemplo, AGOSTINHO, Sermo 105,6,8

    19 Cf. AGOSTINHO, Sermo 81,7; cf. também 105,6,8

    20  Temporis partes, cf. Conf. XI,21,17; temporis spatia ib.; intervalla temporum XI,16,21; orbestemporum : Mus. VI,11,19; spatia et volumina saeculorum: sermo 311,8

    21  Temperare, Ps. 66,1,40; obtemperare, Mus. IV,11,29; contemplare: Trin. IV,18,24

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    tempus. Ele designa assim não apenas nosso próprio prazo de vida, mas também o prazo

    absoluto do ser de todo o mundo criado por Deus. Na sua opinião, o mundo existe apenas

    por um tempo limitado. É sob este aspecto que diferenciam Agostinho e os platônicos não-

    cristãos. Ele vê em nossos períodos as partes de um período absoluto. Algumas vezes,

    indica todo o tempo como spatium temporis e, às vezes, ele o caracteriza como decurso de

    tempo, tractus temporis. Particularmente considerável é a representação do tempo do

    mundo como tempestade: tempestas saeculi; a tempestade do mundo não pode prejudicar o

    navio ancorado da Igreja22.

    Em terceiro lugar, os tempora podem significar a diferença entre passado, presente efuturo23. Platão os chamou ei[dh crov nou ei[dh crov nou ei[dh crov nou ei[dh crov nou, Ficino as traduziu com temporis species. Existem

     juntamente aos espaços de tempo (temporis spatium) formas de tempo. Em contraposição a

    espaço de tempo (temporis spatium) - ao aspecto objetivo do conceito de tempo -, a forma

    de tempo (temporis species) representa a experiência subjetiva do tempo. Através da

    experiência, o tempo consegue separar-se em  futurum,  praesens  e  praeteritum. Que tais

    formas de tempo estejam estreitamente ligadas à alma é algo já reconhecido por Platão que

    distinguiu as formas de tempo como esperança, sensação e recordação24

    . Estas três formaspossuem em Platão categorias desiguais, no sentido de que futuro e passado podem

    reivindicar um “ser” em sentido impróprio. Só o presente expressa corretamente o ser25. O

    que será ou o que era, isto não “é” precisamente efetivo.

    22  Spatium temporis: Ps. 147,1,33; tractus temporis: sermo 361,22,21; tempestas saeculi: sermo177,8; cf. Ps. 54,18,15

    23 Civ. Dei XI,21,24: ... non... eius... scientia trium temporum, praesentis videlicet et praeteriti vel futuri varietate mutatur .

    24 Para ejlpi" ejlpi" ejlpi" ejlpi", ai[sqhsi"ai[sqhsi"ai[sqhsi"ai[sqhsi", mnhvmhmnhvmhmnhvmhmnhvmh como formas subjetivas do passado, do presente e do futuro, cf.PLATÃO, Filebo 39 e; ARISTÓTELES, Metafísica XI,7, 1072b 18; Retórica II,8,1386 a 2s.30; Dememoria I,449b 10ss

    25  Platão define o tempo como “uma imagem móvel da eternidade”, ou seja, como odesenvolvimento do é no era  e no  será, e, mais precisamente, como imagem eterna que procedesegundo o número. Cf. Timeu 37 e; 38 b

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    Em Agostinho, o tempo é uma fronteira que não se expande entre passado e futuro.

    O como se pode falar sobre isso, que “são” as três formas de tempo, é um problema da

    alma, questão esta aprofundada no Livro XI das Confissões. Indagações psicológicas

    exercem uma função importante nesta discussão, que as páginas abaixo procurarão

    apresentar.

    3. A REALIDADE DO TEMPO 

    No contexto de um aprofundamento escriturístico, Agostinho inicia sua reflexão

    sobre a natureza do tempo: “Existe uma noção mais familiar e conhecida, em nossosdiscursos, do que o tempo? (...) O que é, portanto, o tempo?”26. Agostinho não responde

    esta pergunta e nem tampouco fornece uma definição do conceito de tempo. A conhecida

    afirmação de que a percepção do tempo é uma distentio animi  não pode ser considerada

    como uma fórmula que definiria a natureza do tempo, mas, antes de tudo, a adaptação da

    alma à sucessão. O vocábulo distentio não explica o modo pelo qual medimos mentalmente

    o tempo, ainda que forneça uma representação figurada dos efeitos colaterais deste

    processo: “... O tempo não é outra coisa senão distensão (distentionem); mas de que coisao seja, ignoro-o. Eu me admiraria se não fosse uma distensão da própria alma   (ipsius

    animi)”27. Em outras palavras, trata-se de uma metáfora que “evoca tudo aquilo que

    acompanha ou segue o ato cognitivo mediante o qual medimos o tempo”28.

    Quem lê o texto de Agostinho, verifica que a pergunta inicial (“O que é o tempo?”)

    é várias vezes reformulada. Quando falamos freqüentemente de períodos breves e longos,

     julgamos medir e confrontar os vários períodos de tempo. O problema consistirá em saber

    como medir o tempo, como um certo período comporta uma dada duração e como pode-se

    conhecer tal duração. Sem diminuir a profundidade e eficácia da argumentação, Agostinho

    26  AGOSTINHO, Conf.  XI,17, 5-10: “Quid autem familiarius et notius in loquendocommemoramus quam tempus? (...) Quid est ergo tempus?”.

    27 AGOSTINHO, Conf. XI, 33, 20-22: “... nihil esse aliud tempus quam distentionem: sed cuius rei,nescio, e mirum, si non ipsius animi”.

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    deixa entrever na formulação modificada, ao menos, a incapacidade de definir o tempo em

    termos explícitos. Todavia, isto não impede que se chegue a explicar eficazmente o método

    de medição e de comparação de diversas durações; é assim possível analisar o conceito de

    medida do tempo sem, porém, definir o conceito de tempo. O exame, portanto, das

    argumentações do ponto de vista da medida do tempo permitirá descortinar com maior

    exatidão as intenções de Agostinho.

    A. Existe o tempo presente? 

    Se o senso comum atesta naturalmente a experiência imediata do tempo que norteiatoda a vida humana, a reflexão filosófica depara com paradoxos onde parece inexistir esta

    realidade tão evidente e familiar. Agostinho tematiza esta problemática quando sugere,

    inicialmente, a identificação do tempo com sua infinita divisibilidade:

    “Mas se, portanto, o presente, para ser tempo, torna-se tal porque

    tem de passar para o pretérito, como podemos dizer que ele existe, se a

    única razão de seu existir é que não existirá, não podendo realmente dizerque o tempo existe senão enquanto tende a não existir?”29.

    Este questionamento conduz ao limite extremo do paradoxo aquelas aporias da

    linguagem que Platão já sublinhara na utilização do “ser” a propósito da temporalidade30.

    28 G. O’DALY, La filosofia della mente in Agostino, Palermo: Edizioni Augustinus,1988, 19129 AGOSTINHO, Conf. XI, 17, 17-20: “Si ergo praesens ut tempus sit, ideo fit quia in praeteritum

    transit, quomodo et hoc esse dicimus, cui causa ut sit, illa est quia non erit, ut scilicet non veredicamus tempus esse, nisi quia tendit non esse?”

    30  Cf. PLATÃO, Timeu  38 b: “Todas as expressões deste gênero: o que veio a ser é  passado ( tov te gegono;" ei\ nai gegono;" tov te gegono;" ei\ nai gegono;" tov te gegono;" ei\ nai gegono;" tov te gegono;" ei\ nai gegono;"); o que se torna está  em devir(kai; to; gignovmenon ei\ nai gignovmenonkai; to; gignovmenon ei\ nai gignovmenonkai; to; gignovmenon ei\ nai gignovmenonkai; to; gignovmenon ei\ nai gignovmenon) , ou ainda, o futuro é futuro(to; genhsovmenon ei\ nai genhsovmenon to; genhsovmenon ei\ nai genhsovmenon to; genhsovmenon ei\ nai genhsovmenon to; genhsovmenon ei\ nai genhsovmenon) , o não-ser é não-ser ( to; mh; o[ n mh; o[ n ei\ nai to; mh; o[ n mh; o[ n ei\ nai to; mh; o[ n mh; o[ n ei\ nai to; mh; o[ n mh; o[ n ei\ nai) , sãoexpressões usadas sempre de maneira inexata”. Segundo a teoria do tempo desenvolvida porPlatão nesta passagem, o tempo está ligado à mudança e não existe para as realidades eternas: aexpressão “é” ( e[stin e[stin e[stin e[stin) só se aplica à substância eterna e está, portanto, fora da temporalidade; aocontrário, os termos “era” ( h\ n h\ n h\ n h\ n) e “será” ( e[stai e[stai e[stai e[stai) convêm às realidades que nascem e progridem notempo.

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    Mesmo que Agostinho em sua reflexão ultrapasse o valor exortativo do argumento da

    divisibilidade e dissipação do tempo, ele tem em vista, porém, recuperar ou eventualmente

    “salvar” o sentido da duração: se a realidade do passado e do futuro se desvanece quando se

    procura “situá-la”, e especialmente medi-la, Agostinho julga, no entanto, que a realidade do

    tempo deve ser garantida por uma certa duração porque sem duração não existe narratio e

    não existe confessio31.

    Depois de sublinhar a inapreensibilidade do presente com uma amplificatio 

    retórica32, o paradoxo de sua inexistência é assim concebido: “Eis aqui o tempo presente, o

    único que julgávamos possível chamar longo, reduzido apenas ao espaço de um só dia. Mas discutamos também acerca dele mesmo, porque nem sequer um dia é inteiramente

     presente”. Neste contexto, Agostinho pensa que o tempo seja um contínuo divisível ao

    infinito, e os termos utilizados deixam entrever a possibilidade da existência de uma

    entidade mínima indivisível, uma espécie de ‘átomo temporal’:  “Se é pensável uma fração

    de tempo que não possa ser subdividida em ulteriores - por mais pequeninas que sejam -

     partes, só essa é definível como presente”33.

    Acontece, porém, que a suposta existência de uma entidade mínima indivisível não

    existe porque o que chamaríamos de tempo presente “voa tão rapidamente do futuro ao

     passado, que não tem a mínima duração”34. Ora, o paradoxo da infinita divisibilidade do

    tempo é ainda ainda tematizado no âmbito teórico-prático que assume a medida do tempo

    no exemplo da imagem de uma realidade corpórea, como som, no espírito: como medir o

    31 Cf. AGOSTINHO, Conf. 18, 6-8 (As três divisões do tempo: presente, passado e futuro).

    32  Cf. AGOSTINHO, Conf. XI, 19, 39-41. A duração de cem anos, um espaço que poderazoavelmente definir-se longo, se reduz progressivamente a um só ano, a um só mês, a um só dia.

    33  AGOSTINHO, Conf. XI, 20, 50-53: “Si quid intellegitur temporis, quod in nullas iam velminutissimas momentorum partes dividi possit, id solum est quod praesens dicatur ”.

    34 AGOSTINHO, Conf. XI, 20, 52-53: “... quod tamen ita raptim a futuro in praeteritum transvolat,ut nulla morula extendatur ”.

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    que não tem espaço ou como medir o que não tem existência, já que o presente devora a si

    mesmo no momento em que é presente?

    “Eis, por exemplo, que uma voz corpórea começa a ressoar, ecoa e

    continua a ecoar e eis que cala-se, já é silêncio; a voz é passada e não há

    mais voz. Antes de ressoar, era futura e não se podia medir, porque ainda

    não existia, e agora também não é possível medi-la porque já se calou.

    Quando ressoava, podia-se, porque então existia, medi-la. Mas nem isto

    era estável, pois ia e passava. Não seria talvez justamente por isso que se

    podia medi-la? Passando, de fato, se estendia por um certo espaço detempo que a tornava mensurável, ao passo que o presente não tem

    nenhuma extensão”35. 

    Segundo O’ Daly, a argumentação de Agostinho seria errônea. Errônea na medida

    em que afirma que só o presente “existe” (no sentido de que “existe” neste momento),

    mesmo que seja privado de extensão e de duração. Este erro pode ser considerado sob dois

    aspectos:

    Em um  primeiro momento, poderia colocar-se em dúvida o implícito postulado do

    conceito de “presente”, até mesmo no sentido limitado de alguma coisa que “existe neste

    momento”. Agostinho parece ter a mesma concepção errônea do tempo que foi sustentada

    pela grande maioria dos filósofos desde a antigüidade: o tempo é concebido como um fluxo

    ou seqüência de eventos. Ora, se considerarmos os eventos como um fluxo ou uma

    seqüência ininterrupta, lhes daremos um caráter histórico – um passado, um presente e um

    futuro. Mas os eventos não existem, ao passo que os objetos – estáveis ou mutáveis – sem

    dúvida existem. Partir da existência das pessoas ou dos objetos tem um sentido; falar da

    existência de partes do tempo, porém, não tem sentido. O problema de Agostinho é assaz

    conhecido na tradição filosófica. A aparente não-existência de passado e futuro é

    considerada por Aristóteles como um paradoxo. O problema se complica por causa das

    35 AGOSTINHO, Conf . XI,27, 34.

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    implicações relativas aos significados e aos tempos do verbo “ser”. Agostinho parece não

    compreender o fato de que as expressões lingüísticas relativas ao tempo – como os termos

    “passado, presente e futuro” –  podem ter valor simbólico, isto é, podem ser definidos,

    implícita e explicitamente, só em termos de reciprocidade. Verdade é que Agostinho, em

    parte, tem consciência de que as expressões temporais funcionam deste modo, porém não

    extrai devidamente todas as conseqüências e as implicações de tal observação.

    Em um segundo momento, do ponto de vista da concepção filosófica tradicional,

    Agostinho estaria também no erro. Em outras palavras, a conclusão a que chega sobre o

    conceito de presente permitiria pensar que “agora” indique um ponto ou uma parte detempo, até mesmo privada de duração; ele não consegue compreender que o resultado da

    divisão de uma entidade extensa é sempre um certo número de entidades, por sua vez,

    extensas36.

    Não obstante as críticas feitas à teoria agostiniana, devemos recordar que, em um

    texto diverso, Agostinho demonstra estar plenamente consciente de que, seja como for, a

    divisão de uma extensão divisível produz uma quantidade mensurável37

    . A dificuldadenasce provavelmente da ambigüidade originária do argumento da infinita divisibilidade,

    que, para os estóicos, é um paradoxo matemático, enquanto o tempo real é a duração da

    ação ou da percepção. Para Agostinho a experiência privilegiada e exemplar do tempo é

    dada pelo escandir da voz, que pronuncia uma sílaba, um pé, um metro, um verso, uma

    estrofe, um poema inteiro. No tempo da percepção, que possibilita o juízo, uma sílaba não

    pode ser contemporânea à sucessiva, que destrói a primeira:

    “Mas os ritmos que determinamos, mesmo que não sejamos ainda

    interrompidos, parecem ser cancelados por aqueles que seguem, quando

    no transcorrer os primeiros deixam espaço aos segundos, os segundos aos

    36 Cf. G. O’DALY, La filosofia della mente in Agostino, 192-194

    37 Cf. AGOSTINHO, De quantitate animae II, 18; 7,12 (cf. tr. bras. Sobre a potencialidade da Alma (De quantitate animae) [trad. Aloysio JANSEN DE FARIA].Petrópolis: Vozes,1997)

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    terceiros, e assim aqueles que vêm antes àqueles que vêm depois, até que

    a interrupção final cancele os últimos”38.

    O argumento pode ser usado, em um sentido mais acentuadamente “idealístico” em

    relação ao  De musica, para demonstrar que a imagem de uma realidade corpórea, como o

    som, no espírito, é mais excelente que a realidade em si mesma:

    “O mesmo sucede no ouvido. Se o espírito não formasse em si

    mesmo, na continuidade, a imagem da voz percebida pelos ouvidos e não

    a guardasse na memória, ignoraria se a segunda sílaba era mesmo asegunda, quando já eliminada a primeira, passara depois de ter tocado o

    ouvido”39.

    B. O passado e o futuro não existem?

    Os paradoxos da temporalidade emergem quando Agostinho problematiza o modo

    de ser do passado e do futuro; ambos, passado e futuro, ao mesmo tempo existem - isto é,estão presentes um na memória e o outro na esperança -  e não existem (no sentido

    específico de que não existem agora). Ora, já que posso narrar os acontecimentos passados

    porque os vi, anteriormente, com a imaginação, e que posso também predizer o futuro

    através de “sinais” ou causas”,  passado e futuro têm um modo de ser; não são puro nada,

    embora não existam atualmente:

    “Quando se diz que se vêem os acontecimentos futuros, não se

    vêem os próprios acontecimentos ainda inexistentes –  isto é, os fatos

    futuros -, mas sim as suas causas, talvez os seus prognósticos já dotados

    38 AGOSTINHO, De musica VI, 4, 6 (Patrologia Latina 32, 1166)

    39  AGOSTINHO, De Genesi ad litteram XII, 16, 33 (Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum 28, 1, 402).

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    de existência. Portanto, com relação aos que os vêem, esses

    acontecimentos não são futuros, mas sim presentes”40.

    Quando explicita as modalidades da presença do  passado e do  futuro, Agostinho

    estabelece não-existência dos três tempos: passado, presente e futuro. Na verdade, há

    somente três dimensões do tempo, ou mais exatamente, três dimensões do  presente, e

    Agostinho fala neste sentido do presente do passado ( praesens de praeteriris), do presente 

    do presente ( praesens de praesentibus) e do  presente do futuro ( praesens de futuris). São

    dimensões dinâmicas do tempo, e não dimensões real e estaticamente extensas, pois atrelar

    o tempo ao presente tem precisamente por efeito afastar a representação de um espaçotemporal, do qual todos os pontos seriam realmente dados ao mesmo tempo. Na verdade,

    todo “o ser” do passado e do futuro procede do presente. Agostinho afirmará que o passado

    e o futuro não nos colocam na posse da res ipsa, mas somente da lembrança e da

    antecipação:

    “Na minha infância, que já não existe presentemente, existe no

    passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se tornaobjeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está

    na minha memória”41.

    Agostinho fornece ulteriores explicações sobre as modalidades desta presença. Os

    eventos passados estão presentes nas imagens derivadas da percepção sensorial; a existência

    dos eventos futuros é mais difícil de ser explicada, mas podemos supor que a presença de

    “sinais” ou “causas” nos permite antecipá-los ou prevê-los. Portanto, Agostinho critica o

    uso dos três tempos gramaticais. A rigor, deveríamos falar somente de tempos  presentes,

    quando nos referimos a eventos passados, presentes ou futuros. Falar de três tempos

    40  AGOSTINHO, Conf. XI,18,23.

    41 AGOSTINHO, Conf. XI,18,23

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    gramaticais em sentido convencional significa exprimir-se “impropriamente” (non proprie).

    Todos os tempos verbais são, portanto, reconduzíveis a formas do presente.

    C. O tempo: uma afecção mental? 

    Nas páginas anteriores esbocei a indagação tortuosa do livro XI sobre o tempo: as

    dimensões, isto é, o passado, o presente e o futuro, são produzidas pelo animus. O recordar-

    se do animus  faz o passado, a atenção faz o presente, a esperança produz o futuro.

    Agostinho não duvida que existem dadas coisas, fora do animus, que deixam as suasimpressões na alma. As coisas passadas deixaram os seus traços na alma, as coisas

    presentes sugerem a sua presença, as coisas futuras mostram os seus sinais no presente.

    Segundo Agostinho, o tempo é medido internamente pela mente: “É em ti, minha alma, que

    meço o tempo” ( In te, anime meus, tempora metior ...”)42. Esta é, portanto, a tese central de

    Agostinho: o tempo existe só na alma. Se Agostinho fala aqui de si mesmo -  enquanto

    alma individual - como aquele que mede o tempo, resta entender precisamente esta relação

    entre animus e  o tempo. No contexto desta teoria, Agostinho terá compartilhado a equaçãomoderna alma-individualidade-interioridade  ou terá pensado, ao contrário, na anima mundi

    que contém em si as diferenças individuais? Na teoria do tempo como afecção mental,

    Agostinho teria confundido o problema da consciência do tempo -  que é um modo de

    conhecer - com o problema do tempo como objeto do conhecimento?

    Seja como for, esta concepção psicológica do tempo não significa necessariamente

    uma novidade no contexto da tradição filosófica da antigüidade. Os estóicos não discordam

    totalmente acerca desta questão, já que concebem o tempo como um objeto incorpóreo,

    considerando-o assim, antes de tudo, como um objeto do pensamento e não como um

    componente material do mundo externo. O texto clássico de Aristóteles (Phys. IV 14, 223a

    21-29), embora seja assaz difícil, afirma que o tempo não pode existir sem a alma. Em

    42 AGOSTINHO, Conf. XI, 27, 36

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    outras palavras, o tempo, quando definido como o aspecto (potencialmente) calculável do

    movimento, parece pressupor a presença de uma mente que calcula43.

    Se desejamos constatar a relatividade cultural de certos conceitos modernos – como,

    por exemplo, a distinção entre tempo pessoal e tempo físico – é assaz instrutivo percorrer

    brevemente a recepção medieval da teoria agostiniana do tempo. Ora, houve quem pensasse

    que, tendo em vista a modernidade da teoria agostiniana, a filosofia medieval não teria sido

    capaz de perceber a sua importância filosófica44. Neste sentido, o Livro XI não precisou

    esperar Bergson, Husserl, Heidegger e Wittgenstein para que sua originalidade fosse

    reconhecida. Esta opinião é hsitoricamente falsa, como bem evidenciaram Kurt Flasch45 e,especialmente, Udo Jeck em seu livro repleto de documentos, alguns conhecidos e outros

    inéditos, acerca do debate medieval sobre a teoria agostiniana do tempo46.

    Uma crítica significativa ao Livro XI provém inicialmente de Roberto de

    Grosseteste47: Agostinho declara não conhecer a natureza do tempo. Agostinho quaesivit

    essentiam temporis  (não somente, portanto, o aspecto subjetivo do tempo), mas, segundo

    Roberto de Grosseteste, Agostinho  pressupõe  sempre a relação do tempo com omovimento, mas Agostinho não teria visto que precisamente esta é a definição do tempo.

    Portanto, a indagação do Livro XI era inútil, porque devia sempre recorrer à definição

    tradicional e evidente: medida do movimento.

    43 Segundo Aristóteles, existe uma relação essencial entre o tempo e o movimento, mas o temponão é idêntico ao movimento: o tempo é o prov teron kai; u{steron prov teron kai; u{steron prov teron kai; u{steron prov teron kai; u{steron do movimento. O tempo é onúmero da kiv nhsi"kiv nhsi"kiv nhsi"kiv nhsi". Como número deve ser o resultado da atividade da alma.

    44  Cf. R. DE MONTECELLI, Confessioni.Milano: Garzanti,1978, 378: “A fortuna filosófica destelivro é relativamente recente; a partir de Boécio, Isidoro de Sevilha e Alexandre de Hales, osfilósofos medievais não citam freqüentemente a doutrina agostiniana do tempo”.

    45  Cf. K. FLASCH, Was ist Zeit?..., 160-195

    46  Cf. U. R. JECK, Aristoteles contra Augustinum. Zur Frage nach dem Verhältnis von Zeit undSeele bei arabischen Aristoteleskommentatoren, im arabischen Aristotelismus und 13. Jahrhundert .Amsterdam: Grüner,1993

    47 Cf. ROBERTO DE GROSSETESTE, Commentarius in VIII libros Physicorum Aristotelis (ed. R.C. DALES).Boulder (Colorado),1963

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    Alberto Magno48  sustenta que a argumentação de Agostinho, segundo a qual o

    passado não mais existe e o futuro não existe agora, não demonstra a não-existência do

    tempo fora da alma. Tal argumentação demonstra somente que o tempo existe, mas como

    sucessão. Desenvolvendo posteriormente sua teoria, Alberto Magno criticou duramente a

    teoria agostiniana do tempo:  Nec Galienus nec Augustinus sciverunt bene naturas rerum.

    Na sua opinião, o problema do tempo pertence à Física. Agostinho fala, portanto, de um

    problema físico sem descortinar de que coisa se trata. Segundo Boaventura, o tempo não é

    uma fictio animae, mas uma dispositio rei.

    O caso mais instrutivo parece ser Henrique de Gand49, membro da comissão que

    preparou a lista das 219 teses condenadas pelo bispo de Paris em 1277. Entre essas, a tese

    200 afirma: Quod aevum et tempus nichil in re, sed solum in apprenhesione. O Quodlibet

    III 18 de Henrique, escrito provavelmente no ano de 1288, critica a teoria agostiniana e

    sustenta a posição aristotélico-averroística. Sem enveredar para uma análise mais profunda,

    basta observar que, segundo diversos autores medievais, a teoria do Livro XI era assaz

    próxima da tese (200) condenada em 1277. Alguns autores forneciam uma interpretaçãodiversa do Livro XI para evitar uma crítica assaz dura a um Padre da Igreja. É o caso de

    Egidio Romano ( 1316).

    Na opinião de Egidio Romano, o texto agostiniano seria uma análise aporética sem

    resultado definitivo, visto que Agostinho non arguit tempus non esse, sed petit sibi

    quandam difficultatem solvi50. Segundo Egidio Romano, Agostinho teria razão também em

    48 Cf. ALBERTO MAGNO, Summa de creaturis I ( De IV coaequaevis), tr. 2, q. 5, a. 1 (ed. A.BORGNET 34, 367 a) (Opera omnia, T. XXXIV.Paris,1895).

    49  Cf. HENRIQUE DE GAND, Quodlibeta (Paris,1518; Opera omnia [ed. R. MACKEN].Louvain-Leiden,1979 ss. Cf. também P. PORRO, Enrico di Gand nella scolastica del XIII secolo. Unaquestione controversa: La natura del tempo.Bari,1987

    50 Cf. EGIDIO ROMANO, In 2 Sent. dist. 12 q. 2 a.3, ad 5 (Venezia, 1581), 534 a-c (cf. também K.FLASCH, Was ist Zeit?..., 173-176)

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    dizer que o tempo não pode existir sem a alma, mas acrescenta: tempus complementum

    suum habet ab anima numerante, et cum non erat anima humana numerans, erat anima

    mundi, id est Deus.

    Ora, a menção da anima mundi, sobre cuja teoria encontramos alusões nas obras de

    Agostinho ( De immortalitate animae 15,24;  De quantitate animae  32,69;  De ordine II

    11,30;  De vera religione 18 +  Retractationes I 11,4;  De Genesi ad litteram, liber

    imperfectus 4,17; De consensu evangelistarum I 23,35 e Retractationes I 11,14), era muito

    conhecida entre os pensadores antigos, até mesmo entre os cristãos. A doutrina da alma do

    mundo, que contém em si as diferenças individuais, não era estranha à especulaçãoagostiniana. Verdade é, porém, que Agostinho mostra não ser explícito acerca deste ponto

    crucial. Neste sentido, K. Flasch propõe a tese segundo a qual Agostinho em Conf. XI, 31,

    41 terá pensado na alma do mundo, si est . Muitas dificuldades do Livro XI desapareceriam

    se aceitássemos tal suposição. A teoria da alma do mundo retorna no debate medieval sobre

    a teoria agostiniana do tempo.

    Quanto ao texto das Confissões, Agostinho tem o mérito de ter colocado em relevo,definitivamente, o caráter psicológico do tempo, o ser pertencer à consciência: “ A

    impressão que as coisas deixam em ti à sua passagem, e que permanece depois de elas

    terem passado, é quanto eu meço o presente, e não as coisas que se sucederam para a

    impressão ser produzida; é isto que meço, quando meço o tempo”51. Agostinho afirma,

    inequivocamente, contra as tentações e sugestões de interpretação “idealista” em sentido

    moderno, que a sua teoria do tempo “é uma fenomenologia-fisiologia da percepção do

    tempo” e não uma indagação ontológico do tempo. As interpretações modernas de teoria do

    tempo em Agostinho poderiam ser esboçadas do seguinte modo: existem as coisas e as suas

    emissões, mas o  passado, sendo passado, como tal não existe mais, o  futuro, que está por

    vir, como tal não existe, as dimensões temporais  existem, portanto só na atividade do

    animus, e não de qualquer alma.

    51 AGOSTINHO, Conf. XI, 27, 36 

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    Agostinho jamais fala das dificuldades de reduzir a precedência temporal a atos

    individuais e, portanto, contrastando memórias diversas, mas no Livro XI teme somente a

    não-existência do tempo. Pensemos em dois indivíduos humanos, A e B. Enquanto o

    indivíduo  A  está atento à seqüência temporal, recordando-se ou esperando um

    acontecimento futuro, o indivíduo B dorme, não recordando-se de seu avô, não esperando o

     juízo universal ou o próximo dia de trabalho. Mas todos sustentam que para B o seu avô

    tem uma prioridade temporal; todos acreditam que Adão é antes de B; cada um espera que

    também para B seja iminente talvez não o juízo universal, mas o próximo dia de trabalho.

    Longe de ter ensinado a subjetivização completa do tempo, Agostinho teve provavelmente a

    intenção de descrever a experiência interna, humana do tempo, e não o tempo tout court .Talvez Agostinho tenha feito uma distinção entre o tempo das coisas, ou seja, o tempo

    objetivo, de um lado, e o tempo subjetivo, de outro lado. Agostinho terá analisado,

    fundamentalmente, a perceptio temporis, mas não o próprio tempo.