São Boaventura Revista Filosófica · mente aos “principiantes” do estudo de filosofia. ......
Transcript of São Boaventura Revista Filosófica · mente aos “principiantes” do estudo de filosofia. ......
Revista Filosófica
SãoBoaventura
ISSN 1984-1728
Fae - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Curitiba 2011
SãoBoaventuraRevista Filosófica
São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 1-124
julho/dezembro 2011
Copyright © 2008 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
FAE - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)R. 24 de maio, 135 – 80230-080 – Curitiba PR
http://www.saoboaventura.edu.br/E-mail: [email protected]
Reitor: Fr. Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos
Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão
Diretor do IFSB: Dr. Jairo Ferrandin
Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini
Comissão editorial:Dr. Roberto H. PichMs. Vicente KellerDr. Jaime SpenglerDr. João Mannes
Dr. Marcelo Perine
Conselho editorial:Dr. Osmar Ponchirolli
Dr. Mauro SimõesDr. Antônio Joaquim Pinto
Dr. Écio Elvis PizzetaDr. Leonardo Mees
Ms. Solange Aparecida de Campos CostaDr. Renato Kirchner
Revisão: Editoria
Diagramação: Sheila Roque
Capa: Roland Cirilo
Catalogação na fonte
Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.
v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23
SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto deFilosofia São Boaventura.
CDD - 105
SUMÁRIO
EDITORIALEnio Paulo Giachini ...................................................................................................... 7
ARTIGOSDe como estudarHermógenes Harada .................................................................................................... 11
Do mistério do ser – Entre o pensador e o poeta [do Da-sein]Luiz Carlos Mariano da Rosa ........................................................................................ 77
Educação e liberdadeEduardo M. Valandro ................................................................................................... 101
TRADUÇÕESA determinação do intelectual
Johann Gottlieb Fichte ................................................................................................. 109
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 7-8, jul./dez. 2011 7
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini
Há muito que se está à busca de uma oportunidade paradisponibilizar a um público mais amplo, em forma impressa,esse ensaio sobre metodologia de estudo, que consta comoprimeiro artigo deste número da revista, escrito logo nos pri-meiros anos de atuação de ensino de Fr. Harada. Trata-se deuma joia preciosa de introdução ao pensar filosófico, de in-trodução ao pensar; “manual” que muitos franciscanos estu-dantes de filosofia e outros tiveram oportunidade de utilizarde forma formal ou informal no caminho de seus estudos. Éuma espécie de apostila-manual de introdução à filosofia, umaespécie de introdução ao modo de filosofar, voltado direta-mente aos “principiantes” do estudo de filosofia. Vale lem-brar, porém, que em filosofia, todos e sempre são iniciantes. Éum escrito, portanto, que serve indiscriminadamente paraquem quer exercitar o pensamento originário e buscar, pelopensar, abrir espaço para a transformação da vida, rumo àgrande Vida. O escrito sofreu poucos acertos de sintaxe e al-guma atualização quanto à normalização. Nada mais. Con-servou-se estilo e divisão do texto.
O número desta revista traz ainda dois artigos, um voltadoà distinção entre ser e ente, nas peripécias do curso historialocidental, a partir de duas obras centrais de Heidegger; e ooutro buscando de forma bastante simples e direta estabe-lecer alguns pontos de contato entre o tema da educação eda liberdade.
No embalo da preocupação pela questão da educação e doestudo, o número apresenta a tradução de um texto deFichte, Über die Bestimmung des Gelehrten, sobre a deter-minação, a definição ou o teor do intelectual.
Mais do que nunca, é preciso repensar com calma e perse-verança a prática e a concepção de estudo. Nos dias atuais,
GIACHINI, Enio Paulo. Editorial8
via de regra e na generalidade, com uma evidência parda efixa, considera-se o estudo ainda somente como meio, pra-ticamente exclusivamente voltado para a formação profissi-onal. Cada vez mais assiste-se a um nivelamento,afunilamento do saber em função do predomínio econômi-co. A hegemonia e tirania do econômico, além de solaparqualquer espaço para a criação humana, se impõe comosupremo Deus de todo esforço transformador.
Por isso, e por outras razões, que podem ser entre-lidas nostextos, se propõem esses textos para a leitura.
ARTIGOS
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 11
De como estudar
arti
go
s
Hermógenes Harada *
1 A ética do estudo
O estudo de filosofia é um estudo superior. É supe-
rior porque exige uma atitude pessoal que manifesta
uma superioridade humana no estudo, isto é, no de-
sempenho do trabalho intelectual.
Superioridade humana não significa ser mais pode-
roso, mais dotado, mais inteligente, mais convencido
do seu saber. Antes, significa ser mais maduro na expe-
riência daquilo que perfaz a essência do homem. E a
essência do homem é vida.
Há várias tentativas de buscar a compreensão da
essência do viver do homem. Cada tentativa, embora
diferente entre si no seu ponto de partida, se for radical
na caminhada da busca, nos conduz à experiência úni-
ca e originária. É nessa experiência única e originária
que somos atingidos pela compreensão do que seja a
essência do homem, a vida.
O estudo superior exige a superioridade humana.
Isto significa: exige a madureza na experiência daquilo
que perfaz a essência do homem. Isto quer dizer: exige
que sejamos atingidos pela compreensão do que seja a
HARADA, Hermógenes. De como estudar12
essência do homem, isto é, a vida, numa experiência única e originária, através de
uma tentativa radical de busca.
Acontece, porém, que uma tal experiência é o fruto de um longo trabalho. Como
pode a filosofia, o estudo superior, exigir de início, de antemão, algo que é o fruto de
um longo trabalho?
Contudo, sem a madureza na experiência da essência do homem, isto é, se não
formos atingidos pela compreensão do que seja a vida, numa experiência única e
originária, através de uma tentativa radical de busca, jamais seremos afeiçoados pelo
estudo superior de filosofia.
Sem essa experiência, o estudo superior de filosofia se transforma em “teoria”
abstrata, acadêmica, oposto à prática e à concreção; se reduz ao acúmulo do saber
para fins pastorais, uma instituição escolar que deve ser tolerada para a formação de
um funcionário da Igreja, chamado pároco, vigário ou padre.
Que a filosofia seja assim considerada como meio institucional de formação,
como “teoria intelectual”, abstrata, imprática, não é culpa dela. A causa de uma tal
consideração está na nossa imaturidade humana que ainda não caminhou suficien-
temente a viagem da vida, para perceber que uma tal maneira de abordar o estudo
superior de filosofia vem da falta de experiência vivida, sofrida e trabalhada do que
seja verdadeiramente o trabalho intelectual, a teoria, a abstração, a pastoral. Pois
consideramos a realidade, na medida em que vemos. Vemos, na medida em que
sabemos. Sabemos, na medida em que somos. E somos na medida em que vivemos.
Se eu jamais vivi intensamente o trabalho da teoria intelectual, como posso dizer que
ela é abstrata, imprática, sem vida?
A vida não é aquilo que gostaria que ela fosse. A vida é aquilo que se me impõe
através de um paciente e penoso trabalho de uma longa caminhada.
Assim, se agrava a questão acima colocada: se a experiência única e originária da
essência do homem é a vida, se a compreensão da vida é a condição primária e
necessária para eu poder acolher bem o estudo superior de filosofia e se uma tal
experiência é o fruto de um longo trabalho, o que fazer, como fazer para poder
entrar bem no estudo superior de filosofia?
A resposta dessa questão não se torna visível, a não ser que coloquemos de fato
a questão. Colocar a questão não é apenas perguntar assim por curiosidade. Não é
também perguntar à guisa de um questionário que já tem uma resposta correspon-
dente dentro de um sistema do saber.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 13
Colocar a questão é antes colocar-se na questão. Ou melhor, ser colocado pela
questão, isto é, ser atingido pela questão, de tal sorte que a busca da resposta se
torne uma questão de vida e morte. Aqui a resposta nasce, isto é, salta do devotamento
à pergunta.
Portanto, a resposta à questão “o que fazer, como fazer para eu entrar bem no
estudo superior de filosofia” é um salto. O que fazer, como fazer para saltar por sobre
um abismo e alcançar a outra margem?
Correndo de todo o coração, de corpo e alma para ser embalado na afeição do
salto.
Como é, porém, a atitude inicial da largada, na corrida para o salto? Não é assim
que já no instante da largada eu devo-me abandonar ao salto? Abandonar-me ao
salto significa: dar de mim tudo o que posso para o salto, sem me distrair.
Dar de si tudo o que se pode no empenho de um salto chama-se na tradição do
Ocidente: ética. A ética é o vigor no trabalho da obra. A ética, o vigor no trabalho da
obra, faz exigências. As exigências da ética exigem obediência: obediência da nossa
jovialidade. É na obediência da nossa jovialidade que seremos jovens, isto é, partici-
pantes do vigor de Jóvis: da generosidade de viver divinamente em todos os desafios
da vida.
“De como estudar” é apenas uma recordação. Recordação é a cordialização do
que já sabemos. Recordação da ética da vida que levamos, concentrados no estudo
superior de filosofia.
Essa recordação consiste em refletir avulsamente acerca do nosso fazer cotidiano
no estudo, à guisa de moralização. Moralização que, bem ouvida, pode oferecer
indicações para você mesmo fazer a experiência da vida, no trabalho árduo do estu-
do, na prática demorada da teoria intelectual.
2 O tempo do estudo
Costumamos dividir a vida cotidiana em tempos para fazer uma porção de coi-
sas. Assim, temos o tempo para dormir, o tempo para despertar, o tempo para co-
mer, o tempo para estudar, o tempo para jogar, o tempo para rezar, o tempo para
fazer pastoral etc.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar14
O que significa tempo em todos esses tempos para fazer isso ou aquilo?
Significa o tempo cronológico, o tempo do relógio. Esse tempo nada me diz
acerca do interesse da vida, no qual faço isso ou aquilo. Por isso, se eu constato que
gasto três horas por dia para o estudo, a cifra três horas nada me diz acerca do vigor
do meu estudo.
O tempo do estudo não é o tempo cronológico. Mas é por isso mesmo que o
tempo do estudo diagnostica a Vida do meu interesse acerca do estudo, quando
gasto muito pouco tempo cronológico para ao estudo.
Como entender isso? Dissemos acima: o tempo do estudo não é o tempo crono-
lógico. Dessa constatação somos tentados a tirar com demasiada precipitação a con-
clusão: logo, tanto faz o tempo cronológico material que gasto para o estudo. É
válida essa conclusão?
Perguntemos pois: por que digo “tanto faz”? Qual o interesse que me faz dizer:
“tanto faz”?
Se atrás desse “tanto faz” pelo tempo cronológico que gasto para o estudo esti-
ver o desinteresse, então o “tanto faz” faz muito para o questionamento do meu
próprio viver. Onde coloco o interesse da minha vida durante esses anos do estudo
superior de filosofia? O que quero afinal na vida, eu que estou aqui, concretamente,
hoje, dentro dessa situação e dessa instituição de ensino e aprendizagem?
Cada um de nós está aqui porque foi ou está orientado por uma causa que um
dia o atingiu. Tem, pois, seu interesse.
Talvez o estudo superior de filosofia, aqui nesta instituição, não corresponda à
minha causa. Por isso, a partir do meu interesse, não acho interesse no estudo e digo:
“tanto faz”, pois o estudo em nada contribui para o crescimento da minha causa.
No entanto, como sei que o estudo superior de filosofia não contribui para o
crescimento da minha causa? Quanto tempo perdi para o estudo, para poder dizer
isso com responsabilidade diante de mim mesmo? Diz Éxupéry: “É o tempo que per-
deste por e para a tua rosa que faz a tua rosa tão importante”.
Isto quer dizer que é necessário perder muito tempo cronológico para que uma
coisa comece a se tornar importante, de interesse?
Certamente, se algo me é importante, me atinge, me diz alguma coisa, não me
importo em gastar para ele muito tempo. Se algo me é importante, o tempo crono-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 15
lógico não conta, isto é, com gosto dedico-lhe todo o meu tempo cronológico à
disposição, não meço sacrifícios.
Pode ser que o tempo cronológico, o tempo do relógio em si nada me diga
acerca do interesse da Vida, no qual faço isso ou aquilo. Mas, se algo me é importan-
te, me atinge, eu dedico-lhe todo o tempo cronológico que está à minha disposição.
Isto significa: o que comanda, o que move o tempo cronológico, que gasto para
fazer alguma coisa, é o vigor do interesse que aciona a minha vida cotidiana. O vigor
do interesse é o que move a minha vida, ordena e concentra todas as coisas, todo o
tempo cronológico do meu cotidiano para a realização do seu interesse.
É costume chamar esse interesse vital também de tempo. Tempo agora não é
mais apenas o tempo cronológico do relógio, mas sim o próprio vigor do interesse da
vida que determina o ritmo do meu tempo cronológico. É nesse sentido que falamos
por exemplo do tempo da salvação.
E quando falamos do tempo do estudo, entendemos a palavra tempo nesse novo
sentido. O tempo do estudo significa portanto: o vigor do interesse da vida que me
faz concentrar todas as coisas, todo o tempo cronológico à disposição, todos os
meus “interesses”, ao redor do estudo, à maneira de um artista que coloca tudo na
jogada do trabalho artesanal para criar uma obra-prima.
Pergunto, pois: tenho algo na minha vida para o qual não meço sacrifícios, para
o qual o tempo cronológico não conta, para o qual perco todo o meu tempo à
disposição? Qual é pois o tempo dos meus tempos? Pode ser que esse algo, para o
qual não meço sacrifícios, não seja o estudo superior de filosofia.
Mas colocar assim dessa maneira o estudo como o centro do interesse do meu
cotidiano não é unilateralidade intelectualista? Nós queremos ser, em primeiro lugar,
bons religiosos franciscanos e não apenas intelectuais. Onde fica o tempo da oração?
Da meditação? Onde fica o tempo do encontro fraternal? Do trabalho pastoral? Não
é assim que se recomenda sempre de novo que nos formemos integralmente: a for-
mação do homem todo?
Mas como é isto, a formação integral? Quantas partes tem a formação integral
franciscana para poder ser integral? Oração, meditação, encontro fraternal, jogo,
pastoral são partes de um todo, uma ao lado da outra sem seccionamentos? O que
entendo, pois, quando digo: agora é o tempo da oração, da meditação, do encontro
fraternal, do jogo etc.? Não estamos pensando no tempo cronológico? Não estamos arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar16
representando a Vida como se ela fosse uma coisa, algo como um queijo espiritual,
cujas partes estão uma fora da outra?
Não é assim que, para a Vida ser integral, para a minha formação ser total, torna-
se necessário ter-se a vida em tudo o que fazemos? Essa maneira de ver a vida em
partes, não é ela justamente uma concepção que não sabe, não experimentou ainda
o que seja isto: a Vida total, a formação integral?
A formação integral, nós a temos quando meditamos como rezamos, rezamos
como estudamos, estudamos como nos encontramos fraternalmente, encontramo-
nos fraternalmente como pastoreamos, pastoreamos como meditamos, como estu-
damos, como jogamos, sim, como comemos e dormimos.
Vamos ilustrar o que dissemos acima com um exemplo:
Se séria e pacientemente assumo dia por dia o trabalho da meditação, ele me
transforma com o tempo. Surge no fundo da minha identidade uma serenidade cal-
mamente vigorosa, cresce em mim a força de recolhimento, a concentração, a minha
receptividade adquire uma tal afinação que percebo as mínimas diferenças dos fatos,
da realidade, do sentido das coisas, da fala, do pensamento, dos desejos etc. Assim,
a meditação me conduz à vitalidade do vigor da vida.
Termina a hora da meditação e vou para a aula, para a hora do estudo. Mas a
minha identidade com toda a vitalidade do vigor da Vida adquirida na hora da medi-
tação, eu não a deixo para trás. Eu a levo comigo para a aula, pois essa identidade
sou eu mesmo.
Como acolhi o texto da Sagrada Escritura na hora da meditação, na serenidade,
na concentração recolhida e afinada da vitalidade do vigor da Vida, agora também
acolho a fala do professor com a mesma vitalidade. Assim, vivo em cheio a aula como
vivi em cheio a meditação. E continuo assim, crescendo no vigor da meditação na
aula. Embora a hora da meditação e a hora da aula sejam diferentes no seu exterior
cronológico, na realidade, no fundo da minha identidade, são o mesmo e uno: o
crescimento na vitalidade do vigor da vida.
Com o tempo, começo a ver em tudo que faço e não faço uma unidade interior.
Unidade interior, a integridade da Vida, a formação integral, que não me dispersa e
distrai em diferentes aparências disso ou daquilo, mas que, em fazendo isso ou aqui-
lo, me conduz sempre de novo, cada vez mais para a identidade do meu viver. Assim,
de repente, descubro que no diálogo fraternal estou escutando o meu irmão como
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 17
na meditação ouço o texto da Sagrada Escritura, como na aula ouço a preleção do
professor e vice-versa; na aula e na meditação estou ouvindo o texto da Sagrada
Escritura e a preleção do professor como ouço o meu irmão no diálogo fraternal.
A essa altura da reflexão, repitamos a pergunta (n. 6) suspensa no ar: Tenho algo
na minha vida para o qual não meço sacrifícios, para o qual o tempo cronológico não
conta, para o qual perco todo o meu tempo à disposição? Qual é, pois, o tempo dos
meus tempos? Pode ser que esse algo, para o qual não meço sacrifícios, não seja o
estudo superior de filosofia.
Se o algo para o qual não meço sacrifícios não for o estudo superior de filosofia
e, se por causa disso, o estudo superior de filosofia é uma perda de tempo para a
realização da minha identidade, então é necessário perguntar-me, por que afinal
esse algo importante não me leva a acolher o estudo com a mesma cordialidade da
Vida com que acolho esse algo importante? Por que vejo no estudo a exclusão da
minha realização e não a sua inclusão? Não é porque a minha dedicação à causa
desse algo satisfaz o meu pequeno eu? Não é porque só consigo viver, vibrar, en-
quanto posso fazer aquilo que satisfaz o meu pequeno eu? Não é porque construo a
vida a partir do ângulo de vista do meu pequeno eu, tentando bitolar a grande Vida
dentro daquilo que eu gostaria que ela fosse?
Se for assim, a causa do meu interesse não é vida, mas sim o produto do meu
pequeno eu. E como tal, com o tempo, há de me estreitar de tal maneira o coração
que não mais suportarei o desafio jovial da vida. E o desafio da vida está em toda
parte.
Não se abrir sempre de novo ao desafio da vida, isto é, não tentar acolher, naqui-
lo que é diferente do meu gosto, a chance de alargar e aprofundar a vitalidade da
minha identidade, a unidade interior é, na realidade, abafar a minha juventude, isto
é, não ser na força divina da vida.
Percebemos assim que, para poder estudar bem, é necessário começar nos per-
guntando, paciente, sincera e tenazmente: como vivo afinal a minha vida? Isso por-
que estudaremos na medida em que vivermos profundamente. Mas, se tentarmos
em tudo viver profundamente, haveremos de estudar bem, integral e vitalmente.
A seguir, algumas sugestões para reflexão:
– O estudo superior de filosofia exige o tempo integral de trabalho, principal-
mente se venho dos estudos secundários. É necessário que no início gaste todo o arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar18
tempo à disposição, para acostumar a minha mente à nova situação do estudo, ao
novo hábito de estudo.
– Se logo de início não me coloco inteiramente à disposição do estudo, de corpo
e alma, terei muita dificuldade nos anos seguintes em seguir o estudo. Arrastar-se
por anos na indecisão, no mais ou menos de um estudo mal começado e não bem
assumido, leva o estudante e o professor à frustração. Tudo depende do impacto
inicial da largada.
– Se estou muito disperso em mil e mil ocupações, é necessário cortar por própria
iniciativa essa inflação de ativismo e recolher-me, para concentrar todas as minhas
ações no empenho de assumir em cheio esse trabalho do estudo que, por sua natu-
reza, é difícil e exige o tempo integral de dedicação.
– O estudo superior de filosofia requer uma mentalidade aberta, viva, disposta a
fazer experiência nova, mais rigorosa, de novo tipo, mais exigente de estudo. Requer,
portanto, um novo tempo interior.
Hoje em dia, o estudante que vem do ensino secundário, costuma estar bitolado
e acomodado intelectualmente à opinião pública da sociedade de consumo. Assim,
tem muito pouco treino na flexibilidade e na disciplina de pensar, está preso a slogans
e a um saber de informação usual, os quais confunde com a realidade e a vida. Essa
fixidez no status não lhe permite enfrentar o novo, o diferente, o difícil, o profundo
como um desafio para o seu crescimento. Antes, o faz reagir contra tudo isso como
algo negativo, bitolado, como falta de didática, pedagogia, falta de compreensão e
comunicação.
Essa situação é prejudicial ao estudo superior de filosofia.
– É necessário, pois, abandonar essa tentativa de querer acomodar-se no que
sabe, de querer encaixar a nova situação do estudo superior de filosofia dentro
daquilo que até agora achava ser pedagogia, didática, comunicação, compreen-
são etc., para abrir-se com mais coragem e disposição à nova e diferente experi-
ência do estudo.
– Para que possa dedicar-me com eficiência ao estudo superior de filosofia, devo
aprender, a partir de mim mesmo, a organizar melhor a minha própria vida cotidiana.
Devo, portanto, aprender a dar comando a mim mesmo para me disciplinar num
trabalho artesanal do estudo.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 19
– É importante aprender a acolher a imposição do horário do estudo como um
dos fatores de crescimento na disciplina interior da minha liberdade para a eficiência
do trabalho. Por exemplo, mesmo que guarde bem a pontualidade externamente, se
antes não me dei o tempo para me concentrar interiormente para as aulas, não estou
bem presente no início das aulas. A imposição do tempo cronológico começa a signi-
ficar um convite para eu criar dentro de mim um tempo de recolhimento. Aliás, sem
o recolhimento interior não há progresso no estudo superior de filosofia.
– O tempo cronológico de estudo individual no recolhimento da cela é indispen-
sável para se progredir no estudo superior de filosofia. Seria útil se perguntar: quanto
tempo gasto para o estudo individual? E como faço para aumentar esse tempo de
estudo individual?
– É necessário aprender a criar dentro de si um ritmo interior de serenidade e reco-
lhimento. Quem está continuamente agitado não conseguirá acolher a vida do estudo
de filosofia. Para essa aprendizagem é muito prático eu aprender a ficar sentado à mesa
do estudo, mesmo que sinta a terrível tentação de sair, de fazer algo, de me distrair.
– O horário de todos os dias cria rotina. No entanto, a rotina é importante para o
crescimento real e constante do estudo. Se a rotina é concentração de força para o
recolhimento ou se é um arrastar-se monótono e indiferente da minha frustração,
isto tudo depende de como eu acolho a rotina. Pode ser que nada faço com a rotina,
porque não estou acostumado à disciplina interior na qual devo cada dia de novo
assumir o estudo com novo ânimo e iniciativa. Se detesto a rotina, devo examinar-me
se não estou apenas buscando novidades e vivências como fuga do trabalho árduo,
lento e paciente do estudo.
3 A imposição do estudo
Para aquilo que nos toca, que nos importa, não medimos esforços. É fácil dedi-
car-lhe tempo. Mas, por outro lado, é o tempo que perdemos para o estudo que
faz o estudo importante.
Se o estudo ainda não me é importante, então há a necessidade de eu dedicar-
lhe tempo. Mas dedicar tempo para o que ainda não me é importante é forçado.
O que significa forçado? Forçado é o que exige força. É o que não flui espontane-
amente, gostosamente, sem esforço. Que força é exigida no estudo forçado? A força
do meu querer.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar20
O querer é autodeterminação. É autoimposição. Eu me imponho a mim mesmo o
que não vai comigo. Mas o que é que costuma ir comigo? O agradável.
Acontece, porém, que eu sou na medida em que vou. Se o agradável é o que vai
comigo, então sou somente na medida em que as coisas me vão agradavelmente. Tal
caminhar não tem o desafio do crescimento. Não tem o vigor da autosuperação para
o gosto da autodeterminação.
Torno-me adulto somente na medida em que começo a gostar da autoimposição,
pela qual eu me imponho livremente a mim mesmo o que não vai comigo. É na
medida em que gasto o tempo para o crescimento dessa autoimposição que os desa-
fios da vida se me tornam importantes.
O estudo superior de filosofia, ao menos no início, reclama a autoimposição da
autonomia. Reclama, portanto, o trabalho forçado, imposto por mim a mim mesmo.
A nossa dificuldade está nisto que organizamos a vida segundo o princípio do
agradável. Que o façamos, pertence à vida. Somente que o nosso agradável é anêmi-
co demais para poder constituir o vigor jovial que consegue achar no trabalho peno-
so e artesanal do estudo um nível superior de gosto da vida.
Por isso, torna-se necessária a imposição exterior do trabalho forçado, horários,
programas, créditos, exames, a instituição. Se deixarmos o trabalho do estudo a nosso
bel-prazer, se facilitarmos, permaneceremos parados no agradável infantil dos nossos
desejos, sem jamais nos abrir para o horizonte livre dos desafios da grande vida.
Assim, desde o início do estudo superior de filosofia, é de grande utilidade para
o progresso do estudo e sua eficiência encarar e acolher livremente as imposições do
trabalho escolar como o caminho de ascese e de disciplina para o crescimento da
autonomia no poder de autoimposição. Livremente, porém, não significa à maneira
do meu gosto, mas sim: de modo a descobrir e a acolher um sentido mais profundo
da vida naquilo que vem sobre mim como imposição da minha situação.
Certamente, tudo isso pode soar ao iniciante no estudo superior de filosofia
como uma moralização demasiadamente séria, sem muita compreensão da pedago-
gia nem da psicologia da juventude. No entanto, quem inicia o estudo superior de
filosofia e até então estava acostumado às maneiras e aos métodos de motivação da
juventude, à “pastoral da juventude”, faz bem em deixar para trás a sua concepção e
abrir-se incondicionalmente a um modo de caminhar que visa diretamente, através
das vicissitudes do trabalho, o crescimento mais adulto e profundo da autoidentidade.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 21
Algumas sugestões para a reflexão:
– Obedecer à imposição da situação, venha ela donde vier, com coragem e inte-
ligência da autoimposição. Obedecer não significa ser “bonzinho”. Significa muito
mais: significa assumir a imposição como se fosse um comando dado por mim a mim
mesmo.
– Nessa obediência, não perder tempo nem energia com a tentativa de esquivar-
se das dificuldades da imposição.
– Combater logo de início, de todo o coração, a poluição emocional que vem do
descontentamento ou do receio de não conseguir dar conta do recado. Toda a tomada
de posição feita de antemão, como por exemplo medo, desagrado, dúvida, desconten-
tamento não é suficientemente livre para poder ser realmente obediente ao desafio da
imposição. Não perder a energia com coisas laterais, não questionar o fato da imposi-
ção. Antes, acolhê-la como a coisa mais natural da Vida e imediatamente arregaçar as
mangas para se perguntar: o que e como fazer para melhor realizar aquilo que a impo-
sição está exigindo de mim, para o meu próprio crescimento?
– Evitar críticas “acríticas” à imposição. Criticar significa: decidir para purificar,
purificando-se. Jamais confundir a crítica com lamúria ou amargura de um descon-
tentamento que trai a falta de identidade. Uma tal “crítica” lamurienta envenena a
minha própria vida com decrepitude. A jovialidade da crítica, isto é, a juventude da
crítica é a alegria divina em assumir as imposições como possibilidades do aumento
da minha autodeterminação.
– É somente na medida em que cresço na identidade serena e vigorosa da auto-
determinação que eu tenho o poder e domínio para mudar as imposições, proporci-
onando-me uma outra imposição mais perfeita.
– Não pedir nem desejar que o professor facilite o trabalho. Não pedir, nem
desejar que o professor desça de nível, para me facilitar a compreensão. Descer de
nível não é boa pedagogia para o estudo superior de filosofia. Pois, em descendo,
jamais superamos a nossa acomodação. Antes, eu mesmo, tenaz, paciente e corajo-
samente devo tentar subir para o nível em que está a imposição do professor.
– Para isso, lutar contra a timidez e o medo de ser ignorante, perguntar sempre
de novo o que não entendeu. E isso não só na aula, mas também em particular. arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar22
Mas, ao perguntar sempre de novo, procurar perguntar de tal maneira que não
seja uma mera repetição à toa sempre igual. Pensar para perguntar bem, trabalhar
eu mesmo na minha própria pergunta antes de ir perguntar. E, se levar uma bronca
do professor por causa da minha pergunta, não perder o sangue frio, não me enco-
lher para dentro da timidez e do descontentamento. Aproveitar a bronca para me-
lhor pensar e formular a pergunta.
– Considerar todas as imposições, críticas e repreensões do professor como se
fossem imposições, repreensões e críticas de um treinador de esporte, como etapas
do trabalho de um treinamento para um jogo muito importante. Ter uma boa memó-
ria para o que me foi dito e aproveitar bem as críticas e as repreensões do professor.
– Para cada aula, tentar vir preparado. Isto é, estudar no dia anterior ou já antes,
o que se falou na aula anterior. Ir, portanto, para a aula como quem vai preparado
para o trabalho difícil e não como quem vai preparado para um passeio ou para o
cinema.
– Tentar não exigir que os professores ensinem, ajam de modo igual. Não compa-
rar um professor com outro. Entrar na jogada de cada professor e do modo de ser da
sua disciplina. Não se deixar perturbar pelos defeitos do professor. Antes, ver com
coragem a coisa ela mesma, a causa real daquilo que ele ensina.
– Quando a imposição do estudo exigir horas extras de trabalho, fazer essas
horas extras com cordialidade.
– Se receber uma tarefa para fazer, começar logo o trabalho no mesmo dia. O
mesmo vale para a preparação para o exame ou para as provas. E não confiar no dia
de amanhã. É muito mais inteligente eu acelerar o ritmo do trabalho bem no início
do que no fim, quando já começa a me inquietar. Criar um hábito nesse sentido.
Esse método de obediência cordial à imposição pode parecer um método que me
leve à falta de personalidade própria e à falta de espírito crítico, principalmente se,
sem muita crítica bem refletida, estou influenciado por e acomodado à opinião pú-
blica do status quo acerca do que é personalidade e crítica; um tal método pode
parecer acomodação à imposição. No entanto, o método, se assumido, me conduz a
uma real autonomia e ao vigor da crítica.
O estudo superior de filosofia deve nos levar ao espírito crítico, isto é, ao vigor
crítico. Vigor crítico não é opinião do meu pequeno eu, mas sim o faro e a intuição
vigorosa que crescem de uma longa caminhada de experiência. O faro e a intuição eu
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 23
só os adquiro se, aceitando a imposição de uma situação bem concreta, trabalhar em
mim mesmo, paciente e tenazmente, um certo tempo, na absoluta obediência, até
começar a sentir que sou mais forte do que a coisa criticada. Assim, por exemplo, no
esporte, eu devo me sujeitar por longo tempo à imposição do treinador, até começar
a crescer em mim a medida certa do meu saber, do meu poder.
– Ao elaborar um trabalho, ser exigente consigo mesmo. É dolorido e humilhante
ser criticado naquilo que me acho ser bom. No entanto, aqui também abandonar a
sensibilidade narcisista de autoagrado, para me expor corajosa e jovialmente à críti-
ca. E não ter medo de fracassar. Não ter medo de ter que escrever muitas vezes o
mesmo trabalho, até que ele saia perfeito. É tentando-se sempre de novo que se
cresce para o rigor e o vigor do Espírito.
– Mais do que em qualquer outro exercício espiritual, é no exercício do trabalho
e da disciplina sob a imposição do estudo que aparecem os nossos defeitos. Pois, sob
a pressão da realidade impositiva, vêm à luz as fraquezas da nossa fibra espiritual.
Aproveitar, pois, a imposição do estudo para nos conhecer e, com calma, mas com
tenacidade, corrigir-nos, aproveitando o próprio tempo e as dificuldades do estudo.
– Quais são os defeitos da sua pessoa que já estão aparecendo ao sofrer sob a
imposição do estudo?
– Diz Dietrich Bonhoeffer:
Se partes em busca da liberdade, aprende, antes de tudo, a disciplina dos teus senti-
dos e da tua alma, a fim de que teus desejos e teu corpo não te levem à aventura. Que
teu espírito e teu corpo sejam afinados, inteiramente submissos a ti, e que obedientes
procurem a meta que lhes é assignada. Ninguém experimenta o mistério da liberda-
de, se não na disciplina1.
4 O trabalho do estudo
É de grande importância para a realização pessoal no estudo superior de filosofia
assumir o estudo como um trabalho profissional. A profissão do filósofo é intelectual.
O ser do intelectual como nós hoje o imaginamos está deformado. Deformado, por-
que, não sei por qual opinião superficial, o opomos ao ser prático e produtivo de
1 Bonhoeffer, um dos maiores teólogos da modernidade, foi pastor protestante alemão. É mártir. Foi morto pelosnazistas. Dentre outros livros dele, temos em português o livro: Resistência e submissão. Rio de Janeiro: LivrariaPaz e Terra, 1968. ar
tig
os
HARADA, Hermógenes. De como estudar24
uma vida pastoral ou vivencial mística. Se não abandonarmos radicalmente esse pre-
conceito anti-intelectual, corremos o risco de nos arrastarmos pela vida a fora como
um ser híbrido de meia tigela que, por não ser profunda e vigorosamente intelectual,
nem é intelectual, nem prático e nem vivencial.
Intelectual vem do verbo latino intelligere. Intelligere significa ser no vigor da
inteligência. Inter-legere é ler entre as coisas, ler no relacionamento exterior das coi-
sas o interior, a essência das coisas. Ler, legere significa colher, ajuntar, acolher. O
inter-lectual é portanto aquele que, no vigor do espírito e na sensibilidade vital da
sua percepção, penetra através da superfície da realidade para acolher com admira-
ção, amor e reverência, o cerne, o coração, a vida das coisas. Isto significa: o ser inter-
lectual é a profissão do santo, do poeta e do pensador. Nesse sentido originário do
intelectual, São Francisco de Assis foi um dos maiores intelectuais da história.
Ora, o estudo superior de filosofia é o lugar e o tempo de exercício para o aper-
feiçoamento dessa nossa profissão do intelectual. Todo o nosso trabalho pastoral do
futuro depende disso: se nós, através do estudo superior de filosofia, nos tornamos
bons profissionais dessa intuição essencial. Isso porque, sem essa intuição intelectu-
al, sem essa sensibilidade radical para a essência da realidade, a pastoral, a práxis, se
transforma em mera imposição da nossa grossura, da nossa mediocridade, da nossa
ideologia superficial.
Hoje, fala-se muito da necessidade de preparar os candidatos à vida religiosa
para o serviço da Igreja atual, para o serviço aos irmãos etc. etc. Fala-se também que
essa preparação deve ser prático-pastoral, adaptada ao homem de hoje, às áreas de
trabalhos futuros etc.
Na perspectiva dessa orientação, a tendência é de eliminar aos poucos o estudo
de cunho mais especulativo, teorético, que não tenha aplicação “concreta” e “práti-
ca” na vida, para acentuar o estudo de uso imediato na ação.
Essa maneira de conceber o estudo superior de filosofia é superficial. Ela jamais
poderá formar os religiosos, porque tal visão de filosofia e da vida já está completa-
mente fora da dimensão religioso-espiritual. Essa concepção, aliás hoje dominante, é
ingênua. Ela não percebe que está cegamente sob a dominação de uma ideologia, da
mesma que está atrás da práxis de uma firma industrial.
Se o estudo superior de filosofia é um meio para formar técnicos e funcionários
ingênuos e bitolados de uma ideologia de dominação pastoral, que quiçá produz
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 25
muito, se agita muito, faz muito barulho, mas nem sequer percebe o esquecimento
da sua própria identidade, então o nosso estudo de filosofia em tal instituto está fora
da moda, alienado, e não serve para nada.
A pressuposição, a afeição, sim a paixão que dita e comanda o nosso estudo
superior de filosofia é diferente. Ela é decididamente devotada ao trabalho de uma
formação especulativo-teorética. E isto, não porque se despreze a prática e a pasto-
ral, mas porque se compreende a práxis e a pastoral não como o fazer da dominação,
como o acionar de uma ideologia, mas sim como uma caminhada, como um cresci-
mento lento, profundo e radical que nos transforma, nos converte em hermeneutas
sensíveis e vigorosos, obedientes e afinados do mistério de Deus na terra dos ho-
mens. Para isso é necessário ser inter-lectual no sentido originário da palavra intelec-
tual acima insinuado. É necessário realizar um trabalho árduo, sofrido de experiência
na existência especulativo-teorética, para libertar o vigor do espírito, a percepção
bem afinada e temperada em referência às “coisas” de Deus. E é na medida em que
crescemos nesse vigor de percepção das “coisas” de Deus, por si mesmo, sem o
acréscimo de aplicação “prática”, que todo o corpo da nossa existência é em si e por
si prática e pastoral.
Assim, o próprio caminhar do estudo, isto é, do intelectual, da formação
especulativo-teorética é o mesmo caminhar da práxis e da pastoral e vice-versa.
E a nossa profissionalização, a nossa profissão de religiosos está nisso: em ser-
mos bons inter-lectuais, isto é, em sermos hermeneutas, os anjos do mistério de
Deus. E não esqueçamos: a essência, o vigor radical do homem e de tudo que se
refere ao homem, o humano, recebe o sentido e a vida do mistério de Deus.
Por isso, o trabalho do estudo superior de filosofia deverá ser não só nesses anos
de estudo acadêmico, mas por toda a nossa vida, o trabalho full time da nossa pro-
fissão. É o trabalho profissional da nossa identidade, identidade de religiosos
franciscanos.
Esse nosso trabalho profissional, o trabalho inter-lectual exige a cura, o cuidado
constante, para que cresçamos sempre e pacientemente no vigor do espírito, no arar,
no mondar o terreno da nossa existência, evitando assim de confundir o nosso traba-
lho profissional de hermeneutas do mistério de Deus com a ação de um fazer ideoló-
gico dos técnicos e funcionários do poder.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar26
Assim, um senhor feudal de Ch’ang Wu disse a Tsu-Lao:
– Ao governar um país, não o faças a grosso modo, sumariamente. Ao reger o povo,
não o faças de modo dispersivo, de qualquer jeito. Outrora cultivei trigo. Se, ao arar
a terra, o fazia a grosso modo, sumariamente, a terra me correspondia com colheita
sumária, vazia, a grosso modo. Se, ao mondar o campo, o fazia de modo dispersivo,
de qualquer jeito, as mudas, uma vez crescidas, me correspondiam de modo dispersivo,
de qualquer jeito com colheita imprestável, misturada de joios. Nos anos seguintes,
mudei o modo de trabalhar. Arei a terra com cuidado, lenta e profundamente. Pulve-
rizei os torrões grossos com paciência. Ao mandar as mudas, arranquei com cuidado
joio por joio. Cobri as raízes das mudas uma por uma com terra macia, carinhosamen-
te. As mudas cresceram. Abriram-se flores do trigo e surgiram espigas generosas.
Assim gozei de abundância por ano inteiro.
Chuang-tsu ouviu essas palavras e disse:
– Hoje em dia, muita gente, ao reger a forma do corpo, ao dispor o coração à realiza-
ção da sua identidade, faz como o fez de início o senhor feudal de Ch’ang Wu. Foge
da paciência dos céus; afasta-se da sua natureza; destroi o seu sentimento; apaga a
sua jovialidade; se preocupa com a representação alheia; vive arrastada pela opinião
pública. Quem assim ara a grosso modo, sumariamente a sua terra, e monda o seu
campo de modo dispersivo, de qualquer jeito, per-mite a inflação confusa e a prolife-
ração de cobiças e inclinações na sua natureza. De início a inflação da cobiça parece
criar e aumentar o vigor do crescimento. Com o tempo, porém, ela se revela como
uma perigosa inchação da vida, que ao se agitar, se esvazia totalmente, envenenan-
do, pela raiz, o vigor do crescimento. E quando, então, explode, brotam por toda
parte feridas purulentas, e todo o corpo da existência arde em febres, infeccionado
pela urina, misturada de pus.
Algumas sugestões para reflexão:
Numa profissão, antes de se tornar um bom profissional, é necessário gastar um
bom tempo para se familiarizar bem com as coisas elementares do trabalho profissi-
onal. Esses elementos não são menos importantes do que as obras-primas. Pois a
qualidade das obras-primas depende da elaboração dos elementos. Por isso é de
importância eu me preocupar com o treino constante:
– da memória, quando devo decorar com precisão dados e fatos;
– da fortaleza da atenção, quando ouço preleções;
– em me escutar, quando falo nas discussões;
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 27
– do bom manejo crítico e preciso das palavras, das frases e suas concatenações,
quando devo escrever um trabalho;
– da paciência comigo mesmo, quando o trabalho não vai como eu gostaria;
– em fazer o pouco que posso de todo o coração, sem me precipitar;
– em animar-me a mim mesmo, quando me assalta o sentimento de desânimo e
inutilidade do meu trabalho;
– em primeiro executar o exigido, para depois dedicar-me ao agradável;
– em crescer passo por passo num trabalho artesanal, sem dar saltos inflacioná-
rios da minha capacidade atual;
– em aguentar a solidão do trabalho na minha cela etc.
– É muito útil eu não me deixar distrair pela preocupação: será que tal teoria ou
especulação é útil para o futuro?
A utilidade da teoria ou da especulação não está na sua aplicação. A sua prática
e utilidade já está nela mesma, enquanto, se bem trabalhada, me transforma e me
aumenta a sensibilidade da percepção das coisas. Aliás, é muito imprático preocupar-
me sobre o fazer no futuro, pois não é possível determinar de antemão a situação
concreta em que vou cair. É muito mais prático aumentar o vigor e a sensibilidade do
espírito, da percepção, de tal sorte que tenha no futuro a capacidade de perceber
cada vez de novo a medida certa do meu fazer em diferentes situações da vida. Teoria
e especulação são treinamentos para o aumento do vigor do espírito.
– Ter sempre de novo à mente que o estudo superior de filosofia não é um cursi-
nho técnico que me informa como fazer isso ou aquilo na prática, mas sim ele mes-
mo já é um fazer atual e concreto, em cujo exercício transformo-me e faço crescer em
mim o vigor do espírito.
5 De como trabalhar no estudo
O que segue é apenas indicação. A indicação é imperfeita e esquemática. Ela só
tem valor se você mesmo procura se observar, se experimentar com muita iniciativa,
para descobrir um modo de caminhar próprio. Vá para as aulas, sente-se à mesa do
estudo individual, discuta, leia como alguém que explora uma nova terra em busca
de dados para poder estabelecer no coração dessa terra a sua habitação.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar28
5.1 As preleções
As preleções são aulas expositivas. Quem fala é o professor. Quem ouve é o estu-
dante. Isto tudo é óbvio. Mas o fato de o professor falar e o estudante escutar deter-
mina o estilo, o modo de trabalho que eu, o estudante, devo realizar. Se estou nas
preleções, é necessário guardar bem o estilo todo especial desse trabalho.
O trabalho do estudante aqui nas preleções tem o estilo do ouvinte: é ouvir. É de
grande importância perceber que ouvir, ser ouvinte é um trabalho difícil, o qual quer
ser exercitado. O mau ouvinte não tem boa chance no estudo superior de filosofia.
Ouvir não é um simples assistir, um apenas estar ali “passivo” diante da ocorrência da
fala do professor. Antes, é uma intensa atividade da atenção, da participação.
Quando se fala da atenção, da participação, surge aqui um pernicioso equívoco
a respeito das preleções no estudo superior de filosofia. O estudante que não tem
ainda a experiência do estudo superior espera encontrar na exposição do professor
as motivações que lhe facilitem a prestar a atenção, a participar das aulas com gosto.
Se quiser ser fiel a sua causa e não se degradar ao ensino ginasial, é necessário que o
estudante de ensino superior de filosofia corte pela raiz tais expectativas.
O tempo em que o professor devia motivar o aluno a prestar atenção tornando-
lhe a exposição mais agradável, mais gostosa, por meio de “truques” de motivação,
deve ser para o estudante filósofo uma época passada. Do contrário, ele jamais sairá
da mentalidade primária ou ginasial.
Nas preleções, o professor concentra todo seu esforço em expor a sua matéria
como ela é, com todas as suas dificuldades reais, sem camuflar a realidade. Quanto
mais ele o fizer, tanto melhor a sua exposição. Pois, assim, está devotando toda a sua
energia, sem dispersão, à causa, à coisa ela mesma de sua ciência. Se precisar se
preocupar em animar sempre de novo os ouvintes a lhe prestar atenção, em cuidar
que os ouvintes guardem o silêncio e a concentração, que os ouvintes não se distrai-
am, ele gastará a metade da sua energia naquilo que essencialmente não pertence à
causa ela mesma de sua ciência.
Exige-se portanto do estudante filósofo o suficiente brio diante de si mesmo e a
maturidade para que não espere nem exija da exposição a realização daquela parte
do trabalho que cabe a ele, na sua autonomia. Com outras palavras, as preleções já
pressupõem como algo mais natural do mundo adulto que o estudante está ali para
trabalhar no duro e não para primeiro ser motivado e animado a trabalhar; e, se o
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 29
estudante não tem na hora a disposição do trabalho, que ele mesmo na sua autono-
mia procure se motivar para o trabalho.
Criar em si, por sua própria iniciativa a disposição de trabalho na audiência de
uma preleção é a primeira tarefa desse trabalho que denominamos: ouvir, ser ouvin-
te. Essa primeira tarefa se concretiza em diferentes empenhos para a autoformação
da atitude do ouvinte. Exemplifiquemos alguns deles, indicando o que não é bom
trabalho no desempenho da disposição de bem ouvir:
– Se eu chego na aula em cima da hora, ainda ofegante da corrida, ou com a
atenção completamente presa à atividade anterior, não começo a trabalhar bem na
audiência da preleção.
– Se durante a aula, quando a minha atenção enfraquece pela monotonia ou
chateação – e isto acontece a qualquer um de nós –, se não reajo contra mim mesmo,
se eu me largo, desligo e começo a me distrair, conversar e fazer outra coisa etc., não
estou trabalhando bem na audiência da preleção.
– Se por qualquer imprevisto acontecer durante a preleção uma interrupção da
exposição, se ao ouvir uma piada engraçada, ao explodir uma alegre risada, eu me
largo para a algazarra, e não me controlo imediatamente, quando a exposição pros-
segue, se procuro prolongar o gozo daquele desabafo, não estou trabalhando bem
na audiência da preleção.
– Se ao tocar o sinal para o término da aula, começo a me agitar e a falar, sem
deixar que a exposição chegue ao término do pensamento iniciado, então estou mais
interessado no descanso do que no trabalho e não estou trabalhando bem na audi-
ência da preleção.
Percebemos assim, pelos exemplos relacionados, que o recolhimento interior é
uma das condições fundamentais para o bom desempenho no trabalho da audição,
do bom ouvir.
Um dos fatores que mais enfraquece o vigor do recolhimento no trabalho da
audição é o distúrbio emocional. Acontecem casos em que o estudante, na sua ativi-
dade pastoral, se envolve num caso sentimental. Com o tempo, esse envolvimento o
absorve de tal maneira que, estando na aula com o seu corpo, está completamente
ausente da audição da preleção. Se o estudante já não tem em si uma grande matu-
ridade de autonomia e tarimba na autoimposição e na experiência da vida, uma tal
situação pode infernizar o trabalho do estudo. A sua existência de operário no traba- arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar30
lho intelectual parece ser sem gosto, alienada, sem vida. Torna-se monótona, sem
qualquer sentido.
O problema aqui não é mais apenas uma dificuldade de atenção. É, antes, um
problema acerca do sentido da minha vida: por que e para que estou aqui nesse
instituto de estudo superior de filosofia?
Assim, numa tal situação, o problema do trabalho da audição de uma preleção
se transforma no trabalho da audição do sentido de toda a minha existência. Se aqui
eu não me recolher séria e sinceramente em mim e não fizer uma total revisão da
maneira de ver a minha própria vida, a minha pastoral etc., corro o risco de me
arrastar na confusão e, é bem possível, que esteja perdendo o meu tempo.
Algo semelhante se pode dizer por exemplo de cinemas, televisão, vídeo, Internet
etc. Se no dia anterior, até altas horas da noite, eu me deixei emocionalmente impres-
sionar e me perturbar por espetáculos visuais ou programações de sites, chats e
outros, pode ser que no dia seguinte não consiga trabalhar bem na audição de uma
preleção. Falta-me o devido recolhimento para me concentrar por causa da demasia-
da poluição emocional.
Surge aqui uma questão metodológica para o trabalho do estudo: por que e
para que deixo-me assim impressionar emocionalmente, de tal sorte que me torno
imprestável para o trabalho que é minha vida?
A reflexão não está dizendo que estou proibido de assistir aos espetáculos às
altas horas da noite. Está apenas colocando uma questão prática, concreta e funda-
mental da vida: como assumo a minha vida, meu compromisso intelectual para o
crescimento real da minha identidade e maturidade humana no trabalho do estudo
superior de filosofia?
Pode ser que esteja fazendo tudo isso para justamente amadurecer em mim mesmo
a identidade emocional ou para ajudar realmente o outro. É necessário, no entanto,
perguntar-me, para o meu próprio bem, se essa maneira de eu querer amadurecer ou
de ajudar o outro não é como diz o texto chinês acima mencionado:
A inflação confusa e proliferação de cobiças e inclinações da minha natureza ainda
imatura. De início a inflação da cobiça parece criar e aumentar o vigor do crescimen-
to. Com o tempo, porém, ela se revela como uma perigosa inchação da vida, que ao
se agitar, se esvazia totalmente, envenenando, pela raiz, o vigor de crescimento.
A reflexão não está minimizando “intelectualisticamente” a importância da emo-
ção. Antes, pelo contrário, é porque toma a sério a importância vital da emoção que
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 31
se coloca a questão acerca da seriedade do meu querer na busca da maturidade
emocional. Emoção não é apenas vivência extática, fogaréu de palha, mas sim um
vigor firme, constante e forte da identidade bem experimentada no crescimento len-
to e bem trabalhado. É pois o mesmo vigor da identidade a que aspira e pelo qual
luta o estudo superior de filosofia.
A primeira condição fundamental e primária para a eficiência no trabalho de
ouvir as preleções é portanto o recolhimento interior. O recolhimento interior e o
silêncio exterior vão juntos. O recolhimento interior causa espontaneamente um re-
colhimento exterior. Mas não é o recolhimento exterior que causa o recolhimento
interior. No entanto, num instituto de estudo onde não há o recolhimento exterior ou
lá onde o recolhimento exterior deve ser exigido à força da lei, não há condição
elementar para o trabalho sério do estudo, pois, não há lugar para o ouvinte.
Aqui a única instância onde se pode apelar é a autonomia, a autoimposição, a
corresponsabilidade. Pois, enquanto eu não me decidir a criar em mim mesmo o
recolhimento interior e não organizar a minha vida para isso, todo e qualquer apelo
para se criar um ambiente de audiência no estudo gera descontentamento. E o des-
contentamento é poluição acústica do recolhimento interior.
No entanto, quem livremente não busca o recolhimento interior no estudo e não
organiza o seu fazer e não fazer para o seu crescimento é infantil. E, se é religioso,
“ainda” não fez o noviciado. Pois, o que vale no noviciado para a oração e o silêncio,
vale no estudo superior de filosofia para o próprio trabalho do estudo.
Assim, percebemos que a disciplina monacal do recolhimento não é algo do
passado. Antes, pelo contrário, é a tarefa e o desafio da modernidade. Pois a discipli-
na monacal do recolhimento está mais do que nunca presente na modernidade. Não,
lá onde se dá a inchação da burguesia de consumo da modernidade, mas, sim, lá
onde se criam os valores da modernidade, como por exemplo nas oficinas do traba-
lho técnico, nos laboratórios, nas salas de planejamento industrial, nos centros de
pesquisas científicas.
5.1.1 Tipos de preleção
Conforme a intenção da fala do professor há diferentes tipos de preleção. Cada
tipo de preleção quer ser ouvido a seu modo. É o trabalho do ouvinte ajustar cada
vez de novo o registro da sua audiência ao tipo de preleção que está ouvindo. arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar32
a) Existe, por exemplo, a preleção informativa sobre “coisas”, onde se relatam
nomes, ocorrências, estruturas, fatos etc. Nesse caso, a minha atenção há de procu-
rar fixar na memória, o mais que pode, os dados fornecidos na preleção.
Aqui não devo exigir da preleção reflexões profundas. Se faço perguntas, essas
devem se referir aos dados e não às pressuposições reflexivas acerca de fundamenta-
ção e interpretação que dizem respeito ao sentido radical da própria disciplina, da
qual a preleção é uma exposição. Por exemplo, se numa preleção a exposição dá
informações arqueológicas sobre o uso de um utensílio litúrgico, não devo exigir
dessa exposição que faça uma reflexão acerca da essência da liturgia ou acerca do
sentido ontológico do uso ou do utensílio.
Em se tratando de preleção informativa desse tipo, o estudo em casa sobre essa
preleção deverá ser muito mais um trabalho de guardar de cor os dados fornecidos e
saber bem o relacionamento que existe entre um dado e outro. Aqui entra em ação o
importante trabalho de aprender de cor e relacionar um dado com o outro, através
de raciocínio ou também através de associação de imagens.
b) Existe a preleção informativa, onde se expõe um sistema de conceitos, ou do
professor ou de outro autor. Aqui, a exposição não fica só na informação, pois, em se
tratando de conceitos, entra-se, mesmo não querendo, na reflexão. No entanto, a
intenção da preleção é mais informativa. Procura-se expor o conjunto de conceitos
que constitui uma interpretação da vida.
A minha atenção há de fixar os conceitos principais que sempre de novo ocorrem
na exposição.
Dentro de tal exposição há dois tipos de conceitos. Um tipo de conceitos que são
fixos, como que tema fundamental de uma sinfonia. Estes conceitos são os funda-
mentais e principais. Há também outro tipo de conceitos que não estão fixos, mas
que modulam a sua significação como que variações do tema fundamental de uma
sinfonia. Esses conceitos que variam servem para explicitar, explicar, fazer soar os
conceitos fixos fundamentais.
Essa explicação de dois tipos de conceitos não é muito exata nem rigorosa. A
realidade de uma exposição e dos conceitos é muito mais complexa e diferenciada.
Mas representemos a realidade da preleção em conceitos fixos e em conceitos varian-
tes, só para pegar o jeito de ouvir bem a exposição de um sistema de conceitos.
Vamos dar um exemplo de conceitos fixos e de conceitos variantes. O professor
na aula expõe:
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 33
Antes de abordarmos teologicamente o tema do purgatório, convém, como dizia o
Pe. Congar, proceder a um purgatório do purgatório. Como acerca do inferno, tam-
bém sobre o purgatório a tradição homilética e popular acumulou representações
absurdas, indignas da esperança libertadora do cristianismo. Apresentou-se o purga-
tório não como uma graça concedida por Deus ao homem para se purificar em vista
do futuro com Deus, mas como um castigo e uma vingança divina em vista do passa-
do do homem (BOFF, 1973, p. 56-7).
Aqui o conceito fixo é o purgatório. E todos os outros conceitos são varian-
tes. Os variantes cercam o conceito fixo purgatório. E levantam suas vozes em
diferentes modulações para me dizer de vários modos o que a preleção entende
por purgatório. Em si, só a palavra purgatório, se ela existisse ali só no mundo,
não diria nada, seria muda. Acontece porém que ela nunca está só, pois já antes
de ouvir essa preleção, nós a ouvimos em outras ocasiões, cercada de outros
conceitos variantes. Mas, se a palavra purgatório realmente ali estivesse isolada,
só num sentido absoluto, ela nada significaria. Ela começa a falar somente atra-
vés das modulações dos conceitos variantes.
Vejamos alguns conceitos variantes para ver como funciona a explicação do con-
ceito fixo purgatório. O conceito fixo: purgatório: a atenção da audiência fica em
alerta e eu abro a orelha do meu coração na expectativa: o que será que o professor
vai dizer do purgatório?
Os conceitos variantes:
– “Antes de abordarmos teologicamente o tema purgatório”: a atenção de au-
diência começa a vibrar: Aha! a preleção vai só abordar o purgatório teologicamen-
te! Isto quer dizer que existem outros ângulos de abordagem do purgatório? O pur-
gatório tratado aqui, agora, na preleção é, portanto, o que a gente entende na filo-
sofia por purgatório. Escutemos pois o que a filosofia entende por purgatório.
– Como dizia o Pe. Congar, “convém proceder a um purgatório do purgatório”:
que negócio é esse purgatório do purgatório? Duas vezes a mesma palavra? Mas
atenção! Escute bem! O primeiro purgatório não soa igual ao segundo purgatório...
O segundo purgatório é um conceito fixo, constante. É o mesmo conceito que acima
foi explicado como aquilo que a gente entende na filosofia por purgatório. O primei-
ro tem uma outra modulação: purgatório do purgatório! Escute bem! Purgatório do
purgatório... Aha, o primeiro purgatório aqui soa assim como purgante! Está dizen-
do: convém purgar, purificar o conceito fixo do purgatório. Isto quer dizer que o
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar34
conceito fixo do purgatório como a gente o entende na filosofia não é limpo? De que
sujeira a gente deve limpá-lo?
E assim por adiante com outros conceitos variantes como: – “como uma graça
concedida por Deus ao homem para se purificar em vista do futuro – como um casti-
go e uma vingança divina em vista do passado do homem” etc. etc.
De variante em variante, o conceito fixo principal purgatório vai me comunican-
do o que a preleção entende por purgatório. Assim, o estudante ouvinte fixa bem na
mente o conceito fixo principal ou os conceitos fixos principais. E então vai arrolando
ao lado dele ou deles os conceitos variantes correspondentes. Ordena resumidamen-
te o que os conceitos variantes disseram do conceito fixo principal e tenta memorizar
esses dados conceptuais da melhor maneira possível.
É necessário, porém, observar que quando ocorrem vários conceitos fixos princi-
pais, um conceito principal pode funcionar por sua vez como conceito variante do
outro conceito principal.
Certamente, todos esses passos de explicitações funcionam sem que eu me dê
conta deles tematicamente. Mas é interessante e é muito útil observar mais conscien-
temente esse funcionamento para aguçar o nosso ouvido e assim treinar a boa audi-
ção de uma preleção acerca do sistema de conceitos.
c) Existe também preleção reflexiva que não intenciona informar, mas apenas
fazer o movimento de reflexão. Esse tipo de exposição é a mais difícil de ser ouvida.
De início, esse tipo de preleção não difere muito da exposição informativa, onde
se tenta comunicar um sistema de conceitos. Mas logo as modulações dos conceitos
variantes começam a vibrar em questionamentos. Começam a interrogar pelo senti-
do pré-jacente de todos os conceitos em operação. Em fazendo isso, o movimento de
reflexão, aos poucos, se recolhe num único questionamento, sempre de novo repeti-
do, acerca do sentido radical do ser. Os conceitos fixos do saber do ouvinte começam
a fluir numa baila caótica, o estudante ouvinte começa a não mais entender o que
antes sabia com toda a segurança. Mas, se permanecer tenaz e recolhido na audiên-
cia, surge desse caos um silêncio de estranhamento e de reverência, não diante de
uma solução, mas sim diante do abismo do próprio questionamento.
O trabalho de audiência de tal reflexão é antes padecer na intensa atenção de
ausculta a co-agitação dos conceitos e nesse padecimento deixar-se afetar por um
recolhimento estranho de admiração do mistério do ser.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 35
Para isso, são exigidas do estudante muita paciência e a coragem de permanecer
alerta com o ouvido colado à audiência obediente da reflexão, mesmo que nada
compreenda por longo tempo. É pois uma audiência, onde com todo o corpo da
existência o estudante começa a fazer a experiência do servo inútil do desvelamento
e do velamento do mistério do ser, da verdade. Tal experiência da audiência radical
não pode ser descrita adequadamente. É necessário pois fazer a experiência.
As preleções do estudo superior de filosofia nunca se apresentam limpidamente
de maneira exclusiva como um desses tipos da exposição acima mencionados. Quase
sempre os três tipos se acham numa única exposição como que misturados. A habi-
lidade do estudante na arte de ouvir consiste em que ele, cada vez que se apresentam
esses tipos de exposição dentro de uma preleção, ajuste o ouvido à maneira típica da
exposição correspondente.
5.1.2 Algumas sugestões práticas no trabalho de ouviras preleções
– Quando ocorre um termo desconhecido, perguntar sem receio ao professor ou
procurar no dicionário pelo sentido do termo.
– Mas também experimentar a capacidade de descobrir o sentido de um termo
desconhecido, tentando adivinhá-lo através do contexto da preleção.
– Quando houver barulho ou se o companheiro me estorva, em vez de tentar
eliminar esse estorvo, em vez de gastar a atenção em reagir contra esse estorvo,
aumentar a intensidade de concentração na preleção. O mesmo vale quando um
defeito, a linguagem, ou o tom de voz do professor me irrita. Portanto, não dividir a
energia de ausculta, deixando-me tentar pelo desejo de eliminar o estorvo, reagindo
contra ele. Antes, só cuidar de não dividir a energia, isto é, concentrar-me cada vez
mais na preleção.
– Quando algo me preocupa, procurar imaginar que aquela hora da preleção é a
única realidade real que de fato existe. Nós só existimos no presente. Nós só pode-
mos o que podemos aqui e agora na hora presente.
– Quando a exposição é enrolada, não ter medo da complicação. A maior parte
das dificuldades em compreender com clareza a realidade diferenciada e complexa
vem da impaciência em percorrer passo a passo as etapas de uma estrutura e em
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar36
querer simplificar a realidade vitalmente complexa que não se deixa reduzir a um
esquema unidimensional.
– Quando entra a confusão de conceitos, não perder a cabeça só porque não
entendo quase nada. Tentar fixar ao menos o pouco que penso ter entendido. É
desse pouco que nascem os fios condutores que nos levam a ordenar a complexidade
de uma coisa.
– Treinar no trabalho difícil de ouvir com atenção uma longa exposição. Esse
treino hoje é mais do que nunca necessário e útil, pois a humanidade está ficando
cada vez mais raquítica e anêmica nesse ponto.
– Quando a atenção diminui durante a preleção, tentar reanimar-se, inventando
para mim truques de autoreanimação.
– Cuidar da posição do corpo. Ela pode influenciar mais do que eu penso na
alerta e na presença da minha audição.
5.2 O Seminário
O seminário, no estudo superior de filosofia, não é bem o que se denomina
usualmente de seminário, por exemplo, nas páginas dos jornais, quando se notifica:
“Realizou-se ontem na PUC um seminário sobre os meios de comunicação”. No estu-
do superior de filosofia, o seminário, talvez até mesmo mais do que a preleção, per-
faz o coração, o centro do nosso trabalho do estudo.
Quem se dedicou de corpo e alma, ao menos uma vez, ao trabalho artesanal de
um seminário bem feito, começará a experimentar o gosto e as vicissitudes, a ventura
e a aventura do trabalho operário intelectual. O seminário é a oficina do trabalho
inter-lectual.
A palavra seminário vem do latim seminarium que designa ao mesmo tempo o
campo, o canteiro, o terreno onde se semeia e o próprio trabalho de preparação do
terreno, a ação de semear, a semeadura e o cuidado no crescimento lento das semen-
tes. O terreno somos nós. As sementes são o saber, o pensamento e a nossa própria
transformação na idade madura da identidade inter-lectual. A semeadura é o nosso
trabalho paciente e tenaz, cuidadoso e afeiçoado nesse crescimento.
Muitas vezes chama-se também de seminário o lugar onde se realizam as reuniões
do seminário. Em geral, nas universidades antigas, esse lugar é formado de duas ou
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 37
três salas. Numa sala se acha uma biblioteca especializada, mesas e cadeiras onde o
estudante num absoluto silêncio pode estudar e se reunir na hora do seminário; uma
outra sala contígua à primeira acima mencionada é a sala do assistente. Este trabalha
ali o dia todo e está à disposição dos estudantes para as consultas. E por fim uma
terceira sala, onde o professor trabalha e recebe os estudante para orientação.
Esse conjunto é por assim dizer uma espécie de pequena oficina, especializada
no trabalho, e é por isso que serve também para representar, de modo geral, a secção
da disciplina universitária de um professor catedrático. Assim se chama também de
seminário o departamento de uma disciplina universitária.
Em geral, o como realizar o trabalho de um seminário difere de professor para
professor.
5.2.1 O espírito do seminário
O importante no seminário não é tanto a técnica do seu fazer, mas sim o modo
de ser, o espírito, o vigor que o anima.
O vigor da alma do seminário é o discipulado.
À primeira vista, o discipulado designa o relacionamento do discípulo com o
mestre. O discípulo segue o mestre, aprende dele. O mestre nesse caso seria aquele
que sabe mais e melhor, o poderoso no saber: o condutor. O discípulo, aquele que
sabe menos e pior, o fraco no saber: o conduzido.
Essa concepção do discipulado é decadente. Não trás à luz o verdadeiro sentido
e o vigor do discipulado.
O discipulado não é um dever do discípulo em relação ao mestre e um dever do
mestre em referência a esse dever do discípulo. Antes, é um e o mesmo dever do
mestre e do discípulo, unindo-os numa amizade sui generis de questionamento e de
desafio mútuo.
O que é isto, o terceiro que afeiçoa o mestre e o discípulo numa amizade de
questionamento e de desafio mútuo?
O aprender, o eu-aprender, em latim dis-cipio, do qual deriva a palavra dis-cípulo.
Dis-cípulo significa: eu capto, apreendo o sentido radical daquilo que afeiçoa a mi-
nha decisão de total empenho da busca.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar38
E o que é isto que afeiçoa a minha decisão de busca no estudo superior de teo-
logia? Dizemos: é Deus, ho théos. A logia significa: o vigor da acolhida, da apreen-
são. teo-logia significa portanto: ser no dis-cipio de Deus.
No entanto, a irreverência do nosso saber diz com facilidade: é Deus. E esquece
na sua pretensão o fascínio tremendo do mistério inominável, o qual nenhum mortal
é digno de mencionar. Mas, por outro lado, é o fascínio tremendo do mistério
inominável que afeiçoa, e-voca, envia e consuma a nossa busca. Mas como captar
sob a nossa pergunta o que é anterior à própria pergunta e constitui a própria possi-
bilidade de eu perguntar? Como posso querer captar o mistério inominável, Deus, se
ele é anterior ao meu querer e constitui a própria possibilidade de eu querer? Como
pois saber, querer, captar, apreender, o que é inacessível ao meu arbítrio do querer,
saber e poder, por ser ele anterior a tudo isso?
O mestre chinês Dschau-dschou costumava ensinar:
– O supremo caminho do mistério inominável - a theo-logia - não é difícil. Apenas
inacessível à escolha do arbítrio. Lá onde nem se afirma e nem se nega existe a clari-
dade, aberta, sem nuvens,
Um discípulo lhe perguntou:
– Se a gente já não se acha na claridade sem nuvens, para que se empenhar? O que
buscar?
Respondeu o mestre:
– Eu também não sei!
Disse-lhe o discípulo:
– Se o senhor não sabe, como pode dizer que não se acha na claridade sem nuvens?
Para saber que não sabe é necessário saber o que não sabe.
Respondeu-lhe o mestre:
– A questão acerca da busca tu já a colocaste. Resta inclinar a cabeça com reverência
e retirar-te.
Seja qual for o tema, no caminho da teo-logia, na medida em que se caminha na
busca radical de Deus, o nosso saber é colocado ante a face do mistério inominável. Em
vez de saber mais e melhor, começamos a apreender o abismo escuro do mistério.
Nós que começamos a caminhada, querendo saber mais e melhor acerca de Deus
e da sua causa, começamos a inclinar a cabeça em espanto, admiração ante a face do
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 39
mistério inominável. O nosso saber se transforma em recolhimento de um silêncio
claro na humildade da reverência: eu também não sei.
O discípulo é aquele que apreende na sua própria caminhada do saber esse não-
saber reverente ante a face do mistério inominável que chamamos tão frivolamente
de Deus. E o mestre é aquele discípulo que, na sua própria caminhada do saber mais
e melhor, apreende esse mesmo não saber reverente e tenta permanecer sempre de
novo, com rigor, na afeição desse silêncio claro da reverência. No entanto, a precisão
de seu silêncio repercute na caminhada dos outros, a-cordando-lhes a afeição cres-
cente do gosto pelo não-saber reverente ante a face do mistério inominável. O mes-
tre é, portanto, aquele que mais e melhor aprende o não-saber reverente e no seu
aprender arrasta os outros na afeição do mesmo aprender.
O mestre e o discípulo são, pois, discípulos do não-saber do mistério inominável
de Deus.
O espírito do seminário é, pois, a paixão desse aprender que faz o mestre e o
discípulo cada vez mais pobres na pretensão do seu saber, para uni-los na amizade
da mútua provocação, ao crescimento dessa disposição reverente em face do misté-
rio inominável. Por isso, o relacionamento do professor e aluno no seminário não se
dá a modo de um ensinar “paternal” do professor ao aluno sobre algo que o profes-
sor já sabe e que o aluno ainda não sabe. É antes um caminhar juntos no rigor do
seguimento de um empenho do saber, onde cada qual caminha o seu caminho para
a humildade radical do saber ante a face do Senhor. Essa caminhada pessoal, no
entanto, se relaciona no seminário não a modo de cada qual para si e Deus para
todos, mas sim como o desafio mútuo, no qual quem mais e melhor caminha provo-
ca o outro a caminhar com mais empenho, mais rigor e obediência.
Se a amizade está nesse desafio, então eu não poderei contentar-me mais ou
menos com a mediocridade do outro. Assim, por causa da amizade típica dessa cami-
nhada, o aluno e o professor se tornam mutuamente rigorosos na crítica a um traba-
lho mal feito.
De tudo isso percebemos que o seminário não é um trabalho grupal. Eu não me
encosto no outro nem o outro em mim para facilitar o trabalho. Antes, eu me coloco
diante de mim mesmo, o outro se coloca diante de si mesmo no empenho da busca
discipular, na disciplina do discipulado, no sentido acima mencionado. A provocação
mútua para o rigor na fidelidade ao discípulo é o elo de união que congrega os
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar40
participantes do seminário, professor e aluno, não numa dinâmica de grupo, não na
técnica de criatividade, mas sim na comunidade do munus inter-lectual.
Por isso, o seminário exige de cada participante um devotamento pessoal ao
trabalho e à tarefa do seminário, durante o tempo de preparação para o seminário. A
reunião do seminário é de 1 a 2 horas semanais, conforme a determinação de cada
professor. No entanto, essas horas de reunião semanal são como que uma pequena
parte, como que a ponta de um iceberg, formado de horas de preparação pessoal da
semana que precede à hora da reunião. No seminário tudo depende dessa prepara-
ção pessoal.
Por isso, não é aconselhável fazer diversos seminários no mesmo semestre. É
melhor fazer um só seminário por semestre com toda a dedicação de que sou capaz.
Falamos acima do espírito do seminário como do empenho de caminhada para o
não-saber reverente ante a face do mistério. Tal explicação pode ser mal entendida. O
seminário não é o lugar onde se semeiam as vivências “espirituais” de um fervorinho
devocional. É antes uma oficina de trabalho do estudo, do saber rigoroso e sistemá-
tico. A caminhada para a pobreza do espírito deve se dar não como a negação do
saber a favor de vivências devotas, mas sim na radicalização do próprio saber. É do
seio do próprio saber que deve repercutir a piedade do pensamento como o silêncio
claro da louvação do Senhor, na sobriedade contida de um não-saber bem experi-
mentado na labuta apaixonada do nosso saber.
5.2.2 Como fazer o seminário
Como dissemos acima, o modo como realizar o seminário depende da orienta-
ção do professor. Geralmente, na primeira reunião, o professor expõe a finalidade e
o modo de proceder do seminário. Por isso, para a técnica do seminário, a primeira
reunião é importante. O estudante, então, tentará seguir da melhor maneira possível
as orientações técnicas do professor.
Como no caso das preleções, a intenção do professor ao fazer o seminário e o
modo de ser da disciplina em questão influem na maneira de como proceder no
seminário.
Usualmente distinguimos tipos de seminário, seminário temático, seminário de
leitura de um texto, seminário coloquial ou colóquio, seminário de pesquisa.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 41
a) O seminário temático
No seminário temático o trabalho individual e as reuniões do seminário se pro-
cessam sob um tema.
O que é tema? Tema é o produto da monografia. Monografia é afirmação. O que
é afirmação? Afirmação é tomada de posição. Só podemos tomar posição na posição
em que estamos. A posição em que estamos é o que somos, a partir donde afirma-
mos e negamos. O que somos, a partir donde afirmamos e negamos é o nosso saber.
É do nosso saber que partem os enfoques nos quais e pelos quais apreendemos,
analisamos e ordenamos a realidade.
Tema é o enfoque produzido pelo nosso saber. Tema é a abertura de uma pers-
pectiva, determinada pelo nosso saber, através e dentro da qual tentamos apreender,
analisar e ordenar a realidade.
No seminário temático enuncia-se o tema, o enfoque dentro do qual se quer
examinar o material. O material é aquilo sobre o qual impostamos o enfoque
para estudar. O material pode ser diverso: um fenômeno, por exemplo, a vida do
camponês; uma obra, por exemplo, Os Escritos de São Francisco de Assis; as
opiniões dos outros, por exemplo, o que dizem os Santos Padres acerca do batis-
mo das crianças etc.
O que dá unidade ao seminário não é o material. Cada participante pode receber
diferentes materiais para examinar, mas os examina sob o aspecto do tema que co-
manda o seminário.
Em geral, o próprio material que examinamos já está sob um tema, sob um
enfoque. Por exemplo, se num seminário de filosofia, cujo tema é libertação, eu
recebo uma monografia escrita por um psicólogo. Esse material já está na perspecti-
va do tema psicológico. Nesse caso, conforme a determinação do professor, o meu
trabalho pode consistir somente em examinar o que diz o autor acerca de um certo
assunto sob o enfoque psicológico. Mas, conforme a determinação do professor,
pode ser também que esse trabalho seja só uma preparação para o meu trabalho
propriamente dito no seminário, a saber, o de confrontar o enfoque psicológico com
o enfoque teológico, o tema propriamente dito do seminário.
É importante, portanto, antes de mais nada, tentar ter clareza acerca do tema do
seminário. Por isso, é necessário desde o início do seminário, na medida do possível,
gastar o tempo suficiente para examinar, esclarecer o tema do seminário. arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar42
Acontece, porém, que toda e qualquer determinação do tema é provisória. De
início, estamos seguros do nosso saber. Na compreensão usual das coisas, pensamos
saber o que significa o título que designa o tema do seminário. De tal maneira que
até estranhamos a exigência de determinar melhor e com maior clareza o tema. No
entanto, na medida em que, a partir do tema, começamos a enfocar o material a nós
confiado para o estudo, começamos a perceber a imprecisão, a falta de determina-
ção, a confusão do tema. Assim, o próprio tema a partir do qual iniciamos a cami-
nhada, começa a caminhar e se torna a própria questão do nosso tema. Mas é na
medida em que o próprio tema sente a necessidade de uma determinação mais rigo-
rosa que o seminário está caminhando na viagem de um confronto radical com o que
sabemos, conosco mesmos, caminhando na busca da afeição da reverência do não-
saber acerca da verdade, que nos envia à busca, na tematização de todas as coisas
por amor à verdade.
Assim, no seminário, ao tematizar o material, o próprio tema caminha para a
compreensão sempre mais rigorosa dele mesmo. Mas, para que essa caminhada se
dê realmente, passo a passo, sem a dispersão confusa, na qual se passa de um tema
a outro sem fio condutor de crescimento, é necessário determinar bem o tema do
seminário.
Quanto melhor se determina o tema, tanto mais existe a possibilidade de o pró-
prio tema entrar em autoconfronto consigo mesmo. Se o tema fica vago, de tal sorte
que sob o “tema” se pode falar de tudo, então há o perigo de se estar falando de
nada, por não surgir a diferença de concreção e, assim, estar se pulando de um tema
para outro, não se tomando nada a sério, numa diarreia confusa de opiniões.
b) O seminário de leitura de um texto
A finalidade desse tipo de seminário é ler um texto fundamental. Escolhe-se ge-
ralmente obras de grandes autores clássicos. Aqui se trava uma espécie de luta livre,
corpo a corpo com o texto, em cuja contenda se dá o confronto do nosso saber
consigo mesmo e a pré-compreensão da nossa existência vem à luz na sua nudez,
acordando em nós a afeição de uma estranha reverência diante da obra do pensa-
mento.
Sobre o movimento da caminhada desse tipo de seminário, falaremos depois,
quando falarmos da leitura.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 43
c) O seminário coloquial: o colóquio
A finalidade desse tipo de seminário é entrar num movimento de colóquio, isto é,
de diálogo, a partir de um assunto qualquer. O diálogo aqui não é uma discussão,
isto é, contenda de posição, na qual uma das posições, a certa, elimina as outras, as
erradas, no triunfo definitivo da razão. Não é também uma espécie de “meditação
comunitária”, na qual cada participante expõe “em partilhas” a sua opinião e suas
vivências subjetivas. É antes uma rigorosa caminhada de busca, na qual os dialogantes
deixam-se conduzir pela disciplina do discipulado à evocação da verdade.
Sobre o movimento da caminhada desse tipo de seminário falaremos depois,
quando falarmos do diálogo.
d) O seminário de pesquisa
O seminário de pesquisa é temático. Tem-se um enfoque e a partir e dentro do
âmbito do enfoque se procura examinar o material, para melhor definir o significado
do material para o enfoque.
No entanto, no seminário de pesquisa, o tema não é colocado em questão. Não
é, pois, como no caso do seminário temático, onde o movimento principal consiste
no autoconfronto do tema com a sua própria possibilidade.
No seminário de pesquisa, o tema é o pressuposto operativo, em cujo ocular se
examina e se tenta ordenar o material, sem colocar em movimento o próprio pressu-
posto. Aqui, diferem, conforme cada disciplina, os enfoques e o modo de examinar o
material sob esses enfoques. Cada professor dará para a sua disciplina a orientação
necessária sobre o método de abordagem do material.
Esses tipos de seminário acima mencionados podem-se entrelaçar num seminá-
rio. Por exemplo, num seminário temático, podem ocorrer o modo de ser do seminá-
rio de leitura, do diálogo, da pesquisa como etapas de preparação ou de realização
do seminário.
A seguir, vamos dar algumas sugestões referentes ao seminário. As sugestões não
se referem ao movimento interno do seminário nem ao seu espírito. Referem-se antes à
práxis externa, sem uma definição mais rigorosa do modo de ser dos seus elementos.
Como o tipo de seminário mais em uso entre nós é o temático e o de pesquisa, as
sugestões que seguem valem mais para esses tipos de seminário. Sobre a práxis ex- arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar44
terna do seminário de leitura e do colóquio é difícil falar, pois varia, cada vez, confor-
me o andamento da leitura e do diálogo.
5.2.3 O tema do seminário
Meditar bem o tema. Ter a coragem de tomar o tempo suficiente para isso. Na
medida do possível devo ter claro o tema. Do contrário, poderei perder o tempo,
examinando assuntos que não pertencem ao tema. Se não entendi os termos que
ocorrem no tema, não os deixar na compreensão vaga e confusa.
Conforme o tema, perguntar-me o que devo fazer. Por exemplo:
– descobrir os componentes de um conceito;
– achar e descrever, enumerar as características de um fenômeno;
– resumir um assunto;
– criticar os argumentos de uma tese;
– defender e fundamentar com argumentos uma tese;
– descobrir as pressuposições ocultas de uma afirmação;
– ver a evolução histórica de uma ideia, de um sistema;
– constatar a situação histórica de um acontecimento etc.
5.2.4 O material para o seminário
Em geral, o material dos nossos seminários é documento escrito: fontes escritas,
monografias, artigos. No manuseio do material surge a dificuldade das línguas.
Existem certas disciplinas filosóficas onde se exige no seminário, além do portu-
guês, o conhecimento de línguas como, por exemplo, hebraico, grego, latim, fran-
cês, alemão, espanhol etc.
Quem estuda essas línguas no primeiro ou segundo graus ou já sabe algumas
dessas línguas de casa deveria continuar se aperfeiçoando nelas durante o estudo de
filosofia. É na medida em que se afeiçoa no estudo de filosofia, que se começa a
sentir a necessidade de saber uma determinada língua. Então o estudante deverá
começar a estudá-la. Em 5 a 6 anos, com tenacidade e constância se faz muita coisa
na aprendizagem de uma língua.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 45
Na busca do material para o trabalho do seminário, sob a indicação do professor,
vasculhar a biblioteca à caça do material. Na busca do material:
– olhar os catálogos bibliográficos;
– olhar enciclopédias, dicionários e manuais clássicos de filosofia;
– olhar os dados bibliográficos nas obras e nos artigos já conhecidos.
Muitas vezes, é necessário folhear página por página uma obra ou um artigo
para ver se encontra uma pista para o material. Depois de ajuntar o material biblio-
gráfico, selecioná-lo. Se encontro uma boa monografia que já tratou bem do assunto
em questão não é necessário recomeçar a pesquisa desde a estaca zero.
Para que possa encontrar o material, é necessário que me familiarize com a bibli-
oteca. Há pessoas que tem medo de entrar na biblioteca. É que, no início, a aparente
confusão dessa imensa floresta de livros nos atordoa. No entanto, a biblioteca é
armazém do material de estudo. Um comerciante que não ama o seu armazém e não
sabe onde estão as mercadorias do seu armazém é um péssimo profissional.
Para me familiarizar com a biblioteca é útil fazer o seguinte: passar na biblioteca
algumas horas por dia, só para ver a ordem de colocação dos livros em diferentes
seções, passar à vista livro por livro, lendo com curiosidade os títulos dos livros. E se
encontro um livro curioso, experimentar folheá-lo. Entrar, assim, em contacto corpo-
ral com a biblioteca. Com o tempo, a confusão desaparece e eu começo a sentir-me
em casa dentro desse imenso armazém do meu estudo. Examinar o fichário, olhar os
títulos dos livros e tentar ver se consigo encontrar os livros ali assinados.
Cada classe, no início do estudo superior de filosofia, deveria, por própria inicia-
tiva, pedir ao bibliotecário que a conduza através da biblioteca.
5.2.5 O trabalho individual de preparação para o seminário
Esse trabalho é essencial. Aqui o importante é ver o problema, analisar o material
sob o enfoque do tema, descobrir algumas ideias centrais e sintetizar o que analisou.
Concentrar todo o esforço nesse trabalho, sem me preocupar muito, por
enquanto, com o problema: como vou apresentá-lo no seminário. Quanto mais
eu ordenar as minhas ideias, tanto mais facilmente eu as consigo ordenar numa
exposição.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar46
Muitas vezes o estudante tem dificuldade de se expressar. No entanto, se a parte
do estudo de análise for bem feita, a apresentação pode ser falha, o trabalho, porém,
é valioso. Pois a exposição que eu faço no seminário não é a exposição de uma bela
conferência. A minha função de expositor é de suscitar questionamento bem coloca-
do, sugerir soluções novas, provocar e dinamizar a discussão. Muitas vezes, basta eu
descobrir uma única ideia interessante e trabalhar bem sobre essa ideia. A descober-
ta pode ser uma valiosa contribuição para o seminário.
Se na análise do material não conseguir avançar, não ficar frustrado. Pode ser
que o material não preste. Pode ser que eu ainda não tenha trabalhado o suficiente
sobre o material. Pode ser que esteja abordando o material de maneira inadequada.
Persistir no trabalho, insistir, tenaz e pacientemente. Se, porém, o trabalho ficar com-
pletamente bloqueado, então não ficar parado, desanimado. Fazer alguma coisa,
por exemplo, buscar auxílio com um colega ou com um professor, não para me en-
costar neles e me poupar o trabalho pessoal, mas para receber deles um empurrão e
o ânimo, a fim de eu acionar em mim mesmo a inventividade, a iniciativa criativa e
talvez uma nova abordagem, mais prática e melhor, do material.
O segredo da eficiência no trabalho individual reside em grande parte nisto: em
eu me dar pontapé a mim mesmo para que me anime, de qualquer jeito, a avançar
realmente na busca.
E enquanto assim analiso o material individualmente, conversar e discutir sobre
o assunto com os colegas do seminário. Eu posso receber dessa conversa muita inspira-
ção para o meu trabalho.
Vamos agora especificar um pouco mais o trabalho de preparação para o semi-
nário, sugerindo como trabalhar o material.
Uma vez ajuntado o material, distinguir entre o material principal e secundário.
O material principal são as fontes e as obras conhecidas como as fundamentais em
referência ao tema. Ao lado destas, existem trabalhos e artigos menores, menos
fundamentais que constituem o material secundário. É a assim chamada literatura
secundária.
Em primeiro lugar, começo lendo o material principal. E como fazer? Ler bem
devagar todo o texto. Tentar entendê-lo. Depois de ler, largar o livro e se perguntar:
do que eu acabei de ler, o que é que posso aproveitar para o meu tema? O que o
texto diz em referência ao meu tema? Divagar, meditar, examinando, ainda que de
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 47
modo indeterminado, as possibilidades de perguntas e respostas em referência ao
meu tema.
Depois disso, ler o texto de novo. Desta vez, porém, só e rigorosamente sob o
enfoque do meu tema. Ficar de olho, atento, ao que o texto me pode dar como
perguntas, respostas, questionamentos acerca do meu tema.
Ao fazer isso, não olhar somente no texto os trechos que falam direto e explicita-
mente do meu tema, mas também e principalmente os trechos que falam dele indire-
ta e implicitamente. Desenvolver assim a capacidade de farejar os vestígios do meu
tema, também no texto onde os vestígios estão ocultos atrás de assuntos aparente-
mente indiferentes.
Talvez seja útil aprender a fixar em fichas o que li e analisei sob o enfoque do meu
tema. Assim, tenho o material analisado à mão, quando vou redigir o trabalho para
o expor no seminário.
Tomar uma ficha, e colocar em cima, em forma de um título ou em frase telegrá-
fica o que encontrei acerca do tema. Citar o texto encontrado ou resumir o seu con-
teúdo.
Indicar o autor, o título do livro, a cidade, a editora, o ano da edição e a página
onde se encontra o texto etc., conforme as normas da ABNT, que no geral são segui-
das por todas as universidades do país, de acordo com as referências que vêm ao
final do texto, nos elementos pós-textuais.
Vamos supor que eu tenha que expor no seminário como tema o conceito de
Filosofia em Nietzsche: Sucumbir / filosofar; conceito de filosofia / em Nietzsche. O
texto: “Um burro, pode ser ele trágico? Sucumbir sob o peso, que não pode suportar,
nem pode lançar fora. Eis o caso do filósofo...” (NIETZSCHE, Friedrich. Goetzen-
Daemmerung. Obras editadas por Schlechte, tomo II, Darmstadt, 1960, p. tal e tal).
O resumo: sucumbir significa: ir ao fundo das realidades humanas. Isto significa:
sucumbir, isto é, fracassar: o trágico. Filosofar é ser trágico. Mas o que é ser trágico?
Se, durante a leitura, encontrar a citação de uma boa monografia ou um bom
estudo sobre o meu tema, fazer logo fichas bibliográficas dessas obras. Na ficha
devem constar:
- o nome completo do autor, colocando em maiúsculas o nome de família que
vem antes;
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar48
- o título da obra; se for tradução, tradução de que língua para que língua;
- em que edição está a obra;
- o lugar da edição;
- o nome da editora;
- o ano da edição;
- o número de páginas;
- a que coleção ou série pertence.
Se o assunto for, por exemplo, o fraternismo universal, os elementos da citação
de um livro referente ao assunto aparecem assim:
MOIX, Candide. O pensamento de Emmanuel Mounier. Tradução de (...),2. ed.
Guanabara: Paz e Terra, 1968, 368 p. Série Encontro e Diálogo, volume 10.
Depois de ter, assim, analisado e colecionado os dados, abandonar o livro e fami-
liarizar-se com os dados que ajuntou:
– meditar cada ficha;
– comparar os vários dados das fichas;
– agrupar as fichas em unidades de dados semelhantes;
– contrapor os dados contraditórios;
– tentar ver uma certa ordem de pensamento no conjunto de dados;
– tentar ver um fio condutor através de diversos dados;
– meditar, mexer os dados, até ter uma intuição núcleo.
Tentar ver então os dados ajuntados e meditados numa unidade organizada:
– qual é o pensamento central?
– quais os pensamentos que enriquecem, completam, interpretam o pensamen-
to central?
– quais os problemas que surgem do conjunto?
– quais os pensamentos que não se encaixam no conjunto?
– o que tiro de tudo isso para o meu tema?
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 49
Depois de ter trabalhado bem o material principal e ter conseguido uma visão
fundamental de seu conteúdo acerca do meu tema, examinar o material secundário:
– comparar o resultado obtido no estudo do material principal com o que diz o
material secundário;
– se o que diz o material secundário for medíocre, deixá-lo de lado;
– se o que diz o material secundário for bom e confirmar o resultado do meu
estudo obtido através da análise do material principal, citá-lo;
– se o que diz o material secundário for bom e não concordar com o resultado
obtido através da análise do material principal, citá-lo e refutá-lo, se estou con-
vencido da superioridade do resultado do meu estudo;
– se o que diz o material secundário for bom e tem uma visão melhor e mais
profunda do que a visão obtida pelo meu estudo do material principal, adotá-lo
e citá-lo, corrigindo o resultado do meu estudo.
Só depois desse trabalho todo, começar a redigir a exposição para o seminário.
5.2.6 A redação da exposição a ser apresentada no seminário
Não devo me preocupar em escrever bonito, mas sim: claro, simples e ordenado;
ter um fio condutor que perpasse toda a exposição. Não fazer nem retórica nem
fervorinho, mas em tudo ser sóbrio e “objetivo”.
Tudo o que não pertence ao tema, tudo o que é supérfluo, cortar fora, mesmo
que me doa. Mas, nos pontos importantes ao tema, ser detalhado e explícito.
O critério supremo da exposição é dizer da melhor maneira possível o que se
intuiu. Cuidar do estilo só depois de ter redigido os pensamentos. O estilo deve estar
em função do critério supremo, acima mencionado. Planejar a introdução do traba-
lho junto com a conclusão, portanto, só depois de ter redigido o corpo da exposição.
Um esquema que pode ser proposto para a redação da exposição é o seguinte.
Uma exposição deve ter sempre bem definidos: introdução, corpo e conclusão.
1 Introdução
Apresentar o tema:
– anunciar o tema; arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar50
– esclarecer os termos do tema;
– delimitar o tema;
– dar a impostação ao problema do tema.
Apresentar o método:
– dizer como se examinou o material;
– declarar sumariamente como se vai expor o assunto, as partes princi-
pais, a divisão;
– explanar os termos que se usa num sentido todo especial etc.
2 Corpo
O modo de expor depende do tipo do tema. Examinar cada vez, em concreto, o
tipo do tema. Talvez consultar os respectivos professores.
Sugestões gerais:
– ser claro, medir bem as palavras que uso;
– preocupar-me em mostrar sempre de novo o fio condutor que unifica a
exposição;
– não só afirmar, mas argumentar bem;
– se a exposição ficar muito abstrata, ilustrá-la com exemplos;
– mencionar os problemas que não estão resolvidos como perguntas
abertas.
3 Conclusão
Escrever a conclusão juntamente com a introdução: tentar sintonizar o co-
meço e o fim. Dar um resumo e um apanhado geral muito bem feito do pensa-
mento principal.
4 As citações
No trabalho, quando se expõe o pensamento de outro autor, é necessário citá-lo.
Há diversas maneiras de citar um autor. É bom a gente adotar uma única maneira de
citar. Salvo raras exceções, na elaboração desses trabalhos acadêmicos, exige-se hoje
o seguimento das normas da ABNT.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 51
Seja qual for a modalidade da citação, é necessário ser sempre bem preciso e
completo na citação. A precisão da citação é uma espécie de serviço fraternal ao
leitor. Dá-lhe indicações exatas e completas para que ele possa encontrar com facili-
dade a obra que eu usei.
Sempre coloco o texto do autor citado entre aspas ou com grifo, para indicar que
não é meu texto. Para indicar donde tirei o texto citado posso fazer assim:
– Colocar no corpo da minha exposição, depois do texto citado entre aspas, em
parêntesis os dados bibliográficos. Por exemplo:
Como disse Francisco Pereira: “As águas de Amazonas não afogam o Mar Adriático”
(PEREIRA, Francisco. O Brasil no Ano 2001. Petrópolis: Editora Andrômeda, 1978, p.
56. Coleção Problemas Brasileiros, volume IV). O mais usado hoje é o sistema autor,
data (PEREIRA, 1978, p. 56), e ao final, nas referências, colocam-se as informações
bibliográficas completas da obra.
– Ou assinalar a última palavra do texto citado com um sinal (algarismo, alfabe-
to) e dar no rodapé da mesma página, onde se encontra a citação, os dados biblio-
gráficos, colocando-lhes na frente o sinal (algarismo, alfabeto) correspondente ao
sinal que assinala a última palavra do texto citado (Notas de rodapé).
– Ou assinalar a última palavra do texto citado entre aspas, com um sinal (algaris-
mo, alfabeto) e dar no fim da exposição num apêndice especial os dados bibliográfi-
cos, colocando-lhes na frente o sinal (algarismo, alfabeto) correspondente ao sinal
que assinala a última palavra do texto citado (Notas de fim). Por exemplo:
Como disse Francisco Pereira: “As águas de Amazonas não afogam o mar
Adriático”1.
No rodapé ou nota de fim:
1. PEREIRA, Francisco. O Brasil no Ano 2001. Petrópolis: Andrômeda, 1978, p. 56.
Coleção Problemas Brasileiros, vol. IV.
Para ser preciso na citação, seria bom acostumar-se a colocar os dados bibliográ-
ficos numa certa ordem sempre constante, mais ou menos na ordem como se fichou
a obra de Candide Moix, O pensamento de Emmanuel Mounier, quando falamos
acima de ficha bibliográfica.
Quando o trabalho citado é artigo de uma revista, é necessário indicar o ano em
que se publicou a revista, o mês e o número da série. arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar52
Quando eu resumo o texto de um autor, digo o seu pensamento com minhas
palavras ou o interpreto, então não devo usar aspas, pois estas palavras são minhas
de certa forma. Mas devo indicar a sua procedência, citando o autor e a sua obra
como acima se exemplificou, mas colocando antes dos dados bibliográficos a abrevi-
ação “cf.”, que significa confira.
Se cita sempre de novo diferentes textos do mesmo autor e da mesma obra, ao
invés de cada vez repetir todos os dados bibliográficos, abreviá-los com “loc. cit., p.”
.... Loc. cit. significa: no lugar já citado; ou com ibidem p. ... Idibem significa: no
mesmo lugar.
5.2.7 A apresentação do trabalho feito, no seminário
Há vários modos de apresentar o trabalho e realizar o seminário. Talvez para o
nosso uso, a seguinte modalidade funcione bem.
Para cada reunião, todos estudam o mesmo tema. Mas em diferentes materiais,
por exemplo, em diferentes autores. Conforme a conveniência, em vez de cada um
tomar um autor, podem 2 ou 3 tomar o mesmo autor e trabalhar em equipes.
Na reunião anterior determinar a pessoa que vai expor o seu trabalho na seguin-
te reunião.
Só esta pessoa vai expor na reunião seguinte. Os outros que não expõem, já que
estudaram o mesmo tema, ouvem a exposição, ficam de olho no que o expositor
apresenta e anotam os seguintes pontos:
– o que coincide e concorda com o que examinei no meu material?
– o que contradiz o que eu examinei no meu material?
– o que difere daquilo que examinei no meu material?
– o que se assemelha ao que examinei no meu material?
– quais os pontos novos que não tenho no meu trabalho?
– quais os pontos que tenho no meu trabalho e que o expositor não tem no seu
trabalho?
– quais os problemas suscitados pela exposição?
– quais foram a ampliação, a limitação, os esclarecimentos que o enfoque do
tema sofreu durante ou através da exposição.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 53
5.2.8 O expositor
No começo da apresentação é bom dizer brevemente o estado da questão: de
que se trata, o problema, o enfoque do tema.
– Expor então o que descobriu. Pode ler o trabalho ou se é muito grande resumi-lo.
– No fim da exposição, repetir com as suas próprias palavras os problemas que
acha ser novos, os pontos que não conseguiu resolver ou não compreendeu etc.
– A exposição deve ser clara, precisa, centrada no essencial. Durante a exposição
não perder tempo no acidental. Seria bom se não falasse mais de 30 minutos. O
tempo ideal é de 15 a 20 minutos.
5.2.9 Os ouvintesOuvir com muita atenção, procurando seriamente seguir a exposição. Essa obser-
vação é tão óbvia que seria uma ofensa aqui mencioná-la, se não fosse o ponto em
que se falha com maior frequência na prática. Pois ouvir o outro falar é difícil, mor-
mente se o assunto é seco. No seminário, se uma ou mais pessoas se desligam, isso
pode diminuir sensivelmente a dinâmica e a comunicação do pensamento. O seminá-
rio é um convívio do pensamento.
Durante a exposição não objetar criticamente uma contratese. Se interrompo o
expositor, fazê-lo somente para pedir esclarecimento sobre os pontos que não conse-
gui entender na exposição. A discussão e a crítica vêm depois. Durante a exposição o
meu esforço deve-se concentrar de preferência em compreender da melhor maneira
possível o ponto de vista do expositor. Se há críticas contra, pontos em que discordo,
anotá-los silenciosamente no papel e guardá-los para a discussão.
Depois da exposição o expositor pergunta aos ouvintes se restou alguns pontos
da exposição que não ficaram claros.
5.2.10 A discussãoDepois da exposição e depois de o expositor ter esclarecido os pontos não bem
entendidos da sua exposição, entro na discussão.
É de grande importância, na discussão, evitar debates descontrolados. Que to-
dos não devem falar ao mesmo tempo é evidente. Em geral, nesse ponto não há
problemas, pois a educação e o bom senso nos fazem evitar essa falha. arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar54
Mas há um ponto essencial muito negligenciado, a saber, o de evitar uma discus-
são dispersiva em relação ao tema. Quando por exemplo dois estudantes estão discu-
tindo. A discussão está seguindo um fio, uma direção de pensamento. Os ouvintes
não seguem esse fio, porque se “desligaram” ou intervêm com objeções que nada
têm a ver com o fio do pensamento em discussão. Tudo isso descontrola completa-
mente a discussão. Os ouvintes devem, pois, seguir o fio da discussão e então julgar:
Vale a pena ir nessa direção ou não?
Se vale a pena, então as intervenções devem ser no sentido de contribuir no
esclarecimento e aprofundamento da questão, na direção em que está caminhando
a discussão. Antes de intervir com objeções, portanto, examinar a mim mesmo para
ver se não estou querendo fazer objeções a partir de uma posição que está fora do
assunto atualmente em discussão.
Mas uma discussão pode seguir um fio de pensamento que, em vez de progredir,
se afasta do tema. Então os ouvintes devem intervir e chamar a atenção para o desvio
da discussão, do tema.
Recordar sempre de novo que a discussão deve crescer no pensamento, contri-
buir para andar, aprofundar, esclarecer. Não ficar na simples troca de opinião. Não
repetir, pois, sempre de novo as mesmas objeções, as mesmas explicações que o
outro já deu, a não ser que eu queira insistir num ponto, porque está se correndo
demais na discussão, sem aprofundar o assunto.
Aqui algumas sugestões para a discussão:
– A discussão no fundo deve ter o movimento de um diálogo. Uma espécie de
jogo de ping-pong para o esclarecimento mútuo.
– A única medida válida nesse jogo é a evidência. Vence quem consegue mostrar
mais a própria realidade. Mostrar, porém, não é um simples afirmar. E, muitas
vezes, ocultar é a única maneira de mostrar.
– Ouvir atentamente o outro para ver se consigo colocar-me na sua perspectiva e
entrar na sua pele.
– Tentar ver aquilo que o outro parece estar vendo.
– Não se fixar fanaticamente na literalidade da expressão do outro. Pois pode ser
que o outro tenha uma boa intuição, mas não sabe se expressar. Atrás das pala-
vras do outro ver a sua intenção.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 55
– Não opor o meu juízo contra o juízo do outro. Mas tentar medir a mim mesmo
e o outro dentro do questionamento: será que o outro não está vendo mais do
que eu?
– Se percebo que o outro vê mais do que eu, ou se percebo que não entendi com
precisão o ponto de vista do outro, pedir-lhe esclarecimento e ouvir.
– É muito prático repetir o que o outro disse, com as minhas próprias palavras, e
pedir-lhe que controle, se o que repito corresponde ao que ele quis dizer antes.
– Se percebo que vejo mais do que o outro, procurar descrever da melhor manei-
ra possível o que vejo e controlar sempre de novo se o que quis dizer saltou
também na evidência do outro.
– Não querer convencer o outro, mas sim, mostrar o fenômeno para que o outro
veja também.
– Se objeto, pergunto, explico algo ao outro, ter sempre a mim mesmo sob a
mira do questionamento: será que o que digo não é uma afirmação dogmática,
faltando-me também a evidência concreta da própria realidade.
– Ter sempre como lema: ouvir, ver a realidade, ela mesma. Mas nem sempre, ou
quase nunca, o que acho ser real é realidade!
– Cuidar muito na precisão da fala. Falar de qualquer jeito, usar palavras-chave,
slogans sem pensar é preguiça mental.
– Fugir do formalismo das palavras: não se iludir com as palavras.
– Ter muita paciência comigo e com os outros, nesse jogo de vai-e-vem da discussão.
Antes de começar a reunião, o professor escolhe um coordenador. Mas é bom
lembrar sempre de novo que somos todos coordenadores, enquanto contribuímos
para o andamento da reunião.
5.2.11 O protocolo
No começo da reunião deve-se determinar o protocolante. O protocolo não deve
conter tudo o que se passou na reunião. Ele tem a função de dar continuidade e
síntese do problema em questão para a reunião seguinte. Não se trata, portanto, de
uma documentação histórica dos fatos. Não é necessário registrar o que o expositor
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar56
apresenta. Mas, se conseguir, é muito útil resumir em poucas palavras os pensamen-
tos centrais da exposição.
O importante é registrar a discussão. Mas só devem ser registrados:
– problemas novos;
– novos enfoques dos problemas;
– novas tentativas de solução;
– novas sugestões;
– problemas que ficam abertos.
É importante, sobretudo, apresentar uma síntese do que se disse na reunião, no
sentido de mostrar um fio crescente na compreensão do tema geral do seminário.
O protocolante deve elaborar um pequeno protocolo, isto é, exposição para ser
lida no início da reunião seguinte. No máximo uma exposição de 5 a 10 minutos. Tem
a função de relembrar o assunto da reunião passada na sua problemática e dar con-
tinuidade às reuniões. É um trabalho muito difícil, e, por isso, o protocolante deve
gastar um bom tempo para elaborar o protocolo.
Seria ideal se cada participante do seminário elaborasse uma exposição daquilo
que estudou e pesquisou e fizesse um protocolo.
Os trabalhos escritos, juntamente com os protocolos, serão então arquivados e
postos à disposição dos outros seminários para fomentar a mútua inspiração.
6 A leitura
No estudo superior de filosofia, a leitura é uma atividade elementar e básica do
nosso trabalho profissional. No entanto, talvez por ser elementar e básica seja uma
atividade difícil de ser exercida. Exige-se, portanto, o trabalho da leitura.
Como, pois, fazer a leitura?
Para fazer a leitura, é necessário pegar o livro. Pegar o livro não é apenas estabe-
lecer um contato qualquer entre uma coisa chamada mão e outra coisa chamada
livro. Pegar o livro é um contato todo especial. Eu posso, por exemplo, agarrar o livro
com as duas mãos e dar-lhe uma mordida. Com isso ainda não peguei o livro. Pegar
o livro para fazer a leitura significa certamente segurá-lo, agarrá-lo, tocá-lo com as
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 57
mãos. Mas esse sentido físico de pegar está assumido por um sentido concreto hu-
mano específico de pegar. E, ao pegar o livro para a leitura, o que importa é esse
sentido concreto humano específico de pegar.
Quando dizemos “é necessário pegar o livro”, a palavra pegar evoca aquele sen-
tido que nela está contido quando exclamamos: Meu amigo, agora, sim, te peguei! A
exclamação pode supor diversas situações. Talvez ando, há muito tempo, atrás do
amigo para cobrar dele uma dívida; talvez o surpreendi numa fossa, a ele que me
intrigava por estar sempre alegre e jamais triste; pode ser que eu o convenci de uma
ideia, depois de muito argumentar etc. Mas, seja qual for a situação em que se dê
essa exclamação, ela nos indica o pegar como um contato bem concreto de afeição
do interesse. “Te peguei” não tem a indiferença abstrata de uma ação física do con-
tato de uma coisa com a outra. É muito mais. É diferente. É um contato de afeição do
interesse. É nesse sentido concreto humano que o camponês pega a enxada; o piloto
de fórmula I, o volante; o sacerdote, o cálice; a mãe, a fralda; o esfaimado, o pão; o
moribundo, o crucifixo; Romeu, a mão de Julieta etc.
Pegar o livro é, portanto, um fazer movido por todo um mundo de afeição do
interesse. Se pegar o livro é tudo isso, então o que significa para mim a afirmação:
para fazer a leitura, é necessário pegar o livro?
A minha dificuldade no estudo superior de filosofia é pegar no livro. Pegar no
livro é ser pego por afeição de todo um mundo do interesse, afeição essa que me faz
pegar o livro como as mãos trêmulas do sedento pegam o copo de água salvadora.
Portanto, a condição da possibilidade da leitura não é a capacidade de manejar o
alfabeto. Antes, é a afeição do interesse do analfabeto, a sede e a fome de pegar,
com ambas as mãos do não-saber reverente, o livro. Sem essa afeição do interesse
não podemos ler. Sem essa afeição do interesse não pegamos o livro, apenas o toca-
mos na indiferença do consumidor, cheio de letras mortas.
Estar cheios de letras mortas é nossa situação hoje. Vivemos saturados de livros.
A saturação, no entanto, aparece mais lá, onde o nosso saber engole tudo, lê tudo,
sempre mais e mais em quantidade, sem poder demorar-se na acolhida de um
questionamento simples e bem experimentado. É que perdemos o sentido para o
elementar. Para poder ler é necessário, pois, recuperar o sentido para o elementar.
Na recuperação do elementar devemos ser corporais. Na corporalidade do conta-
to com o livro, voltemos talvez elementarmente à afeição do livro. Por isso, antes de
iniciar a leitura, pegar do livro, tateá-lo, olhá-lo de todos os lados, cheirá-lo, experi- arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar58
mentar folheá-lo, contemplar os tipos de letras, a qualidade das folhas etc., enfim:
criar a proximidade corporal com o livro. Essa familiaridade de contato corporal com
o livro é útil, pois a nossa tendência é de colocar-nos reticentes diante do livro na
estranha opacidade vazia do usual sempre já conhecido.
Depois, folhear o livro e tentar aproximá-lo de mim, tomando suas folhas sob o
tato dos meus olhos. Passar a vista no índice, procurando ver a estrutura da divisão
do conteúdo, os capítulos, os títulos dos assuntos anunciados. Folhear os capítulos e
passear com a vista sobre as frases ali expostas.
Depois dessa aproximação, ler de novo o índice. Agora, porém com um olhar
mais severo, tentando fixar a divisão e a subdivisão do livro em secções, capítulos,
subcapítulos, parágrafos, procurando descobrir o fio lógico da divisão, isto é, a razão
da divisão. Só então começar a ler, capítulo por capítulo, frase por frase, o livro. Ler
lentamente, como que tateando, como que me enroscando, me tropeçando nas pala-
vras, como que demorando nelas. Ler como se no mundo só existisse este livro, este
capítulo, esta página, esta frase. Deixar então vir a mim ideias, emoções, perguntas,
dúvidas. Sentir bem os trechos estranhos, sentir o obscuro do que não entendo. No
entanto, não divagar. Voltar sempre de novo ao elementar corporal da letra, ali escrita.
Assim, pegamos o livro. No entanto, não pegamos o livro como pegamos um
pedaço de queijo, pois o que buscamos, em pegando o livro, não é uma coisa.
Mas, então, o que é isto que buscamos, em pegando o livro? É a compreensão.
Compreensão de quê? Do que diz o livro. O que diz o livro? Depende do livro. Mas
atenção! O livro é uma coisa que me diz alguma coisa?! Sim: o livro diz! Fala!
Como diz? Como fala?
Por meio de discursos fixados por escrito. Temos, pois, diante de nós letras que se
compõem em palavra. Palavras se compõem em enunciação. Enunciações se com-
põem em oração. Palavras, enunciações e orações são signos escritos. Signos escritos
são coisas. Coisas, feitas de tinta preta sobre um fundo branco, chamado papel. O
que faz essas coisas pretas sobre fundo branco serem signos é a referência que essas
coisas têm a alguma coisa diferente delas. Os signos nos remetem adiante para outra
coisa.
Quando vemos as letras escritas em preto sobre o branco, a nossa atenção não
fica parada nessas coisas pretas, feitas de tinta. Logo embarca no movimento de
referência que nos leva adiante. Adiante, para onde?
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 59
A nossa tendência irrefletida é a de responder: para as coisas, para a realidade.
Depois, pensando melhor, respondemos: para as ideias que indicam as coisas, a rea-
lidade. Assim, as letras, formando signos em diferentes combinações, palavra,
enunciação e oração, indicam as ideias. As ideias podem se formar como conceito,
juízo e discurso. A palavra indica o conceito; a enunciação, o juízo; a oração, o discur-
so. As ideias são imagens mentais da realidade. Elas indicam as coisas da realidade.
Temos, pois, três coisas ou conjuntos de coisas, um indicando o outro? As letras
ou os signos como coisas escritas, indicando as ideias; as ideias como coisa mental,
indicando as coisas da realidade?
Aqui, não é o lugar para tematizarmos essa questão. Examinemos a questão
apenas o suficiente para mostrar um preconceito que nos pode dificultar a leitura.
Que preconceito é esse que nos dificulta a leitura? O de imaginarmos os signos,
as ideias e as coisas da realidade como coisa!
Mas como? A coisa da realidade, ao menos ela, não é coisa? Não. Por que não?
Não está ali diante de mim, concreta e visível?
Mas que coisa é essa, a concretude? Que coisa é essa, a visibilidade? Que coisa é
essa que faz com que a coisa seja realidade, a coisidade?
Não disse já de antemão: coisa? A coisa é realidade? Ou não é antes uma ideia?
Se com calma examinarmos o nosso saber, percebemos que tudo é ideia no nosso
saber. Quando dizemos que a ideia não é real, não é coisa, já estamos operando em
ideias “ideia”, “não é”, “real” e “coisa”. Tudo isso significa: o que chamamos de
realidade não é aquilo que pensamos sê-lo. O que é? Não sabemos!
A leitura, se for boa, nos deve conduzir para esse não-saber. Mas, para que a
leitura possa bem começar, já pressupõe que de alguma forma estejamos nesse não-
saber. E como estaremos de alguma forma nesse não saber? Em considerando que
tudo que sabemos são ideias.
Isto significa: os signos escritos em preto sobre branco nas folhas do livro nos
remetem às ideias. Mas as ideias não nos remetem às coisas da realidade como nós
estamos imaginando a coisa, a realidade, pois esta é na realidade uma ideia.
Mas, ao lermos o livro, não buscamos compreender a realidade? Não como nós
imaginamos a realidade. Mas que realidade buscamos, queremos compreender? A
realidade do jogo de ideias. Que realidade é essa, a do jogo? O próprio jogo. Mas
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar60
para que afinal jogamos o próprio jogo das ideias? Para apreender o sentido unitário
que comanda, relaciona, ordena e movimenta as ideias numa totalidade coerente e
concreta. Uma tal totalidade coerente de ideias se chama: mundo. O jogo de ideias é
pois a expressão do mundo. O que vem à fala na expressão do mundo? A vida, a
realidade.
A realidade, isto é, a vida não é, portanto, nenhuma coisa. Para quem vê tudo
como coisa, a vida é nada. Ela só é, cada vez diferente, mas sempre mais na compre-
ensão crescente, nos diferentes jogos de ideias.
Mas, para compreender a vida no jogo de ideias, é necessário jogar o jogo, isto é,
jogar-se no jogo, à maneira de um jogador de xadrez que, em jogando o xadrez,
começa a compreender a vida do xadrez.
Cada jogo tem a sua regra. Cada livro tem a sua regra de jogo: são as palavras e
as combinações de palavras que ali estão. Mas é na medida em que entro na regra do
jogo e começo a mexer as peças que constituem o jogo que começo a compreender
o sentido unitário da vida. Da vida que comanda o jogo do livro que estou lendo.
Assim, de jogo em jogo, de leitura em leitura, de livro em livro, cresce em mim a
experiência para com a fala da vida, a fala da realidade que se expressa no jogo de ideias
como todo um mundo de significação, unificando num sentido fundamental. E tudo
que nos importa fundamentalmente, como por exemplo liberdade, felicidade, verdade,
realização humana, pecado, mal, história, evangelho, Jesus Cristo, São Francisco, Deus,
amor, encontro, decisão etc., é uma outra palavra, cada vez diferente para dizer a vida,
de tal sorte que também vem à fala, expressando-se no jogo de ideias.
Se é assim, então ler não é uma atividade alienada de um acadêmico longe da
vida, mas sim a própria atividade pela qual acolho o vir-à-fala da própria vida. Esse
alerta do jogo em que, apreensivo, estou atento na ausculta da vida, que aparece
como fala, é o sentido original grego da palavra ideia e teoria.
Do que dissemos até aqui pode-se tirar uma importante observação acerca da
leitura: é necessário ler cada livro como se cada vez jogasse um jogo diferente.
Certamente, em diferentes livros, ocorrem sempre de novo as mesmas palavras.
No entanto, essas palavras não tem significação em si, independente das outras pa-
lavras que constituem a rede da totalidade do jogo chamado “este livro”. Por isso,
não basta saber a significação de uma palavra que está no dicionário. Pois, conforme
sua posição no jogo de um livro, a palavra tem significação totalmente diferente.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 61
Mas até mesmo dentro de um mesmo jogo, isto é, dentro do mesmo livro, conforme
a posição da palavra no processo do jogo, varia a sua significação.
E aqui surge uma questão que atinge o ponto crucial de toda leitura: a leitura de um
livro é sempre e cada vez sair de um jogo para entrar num outro jogo; e para sair de um
jogo, é necessário antes entrar seriamente no próprio jogo, do qual se quer sair.
Como entender isso? É que, quando pego do livro para ler, isto é, para jogar o
jogo deste livro, eu já estou num certo jogo, no jogo do meu saber, sem saber que o
meu saber é apenas um jogo.
Antes de mais nada, sabemos um mundo de coisas: o título do livro; a importân-
cia do livro; quem escreveu; de que se trata no livro; o que é o autor, a autoria; o que
é ler; o que é o alfabeto, letra, conceito, discurso; o que sou eu; o que é a realidade
etc. Sabemos também o que as palavras significam, o que é o significado das pala-
vras tiradas do dicionário. É por isso que conseguimos ler um livro. Esse nosso saber
é um jogo. Jogo do nosso usual cotidiano.
Ao pegar o livro para ler, eu o faço de tal modo que continuo jogando esse jogo.
O livro e a leitura entra dentro da regra desse meu jogo, transformando-se numa
peça do jogo usual cotidiano.
Mas, desse jeito, compreendemos o livro? Compreender o livro não é entrar no
jogo de ideias do livro? Mas existe outro jeito de ler o livro? O livro só é, quando o
leio. E quando o leio, sempre o leio a partir e dentro do meu saber usual e cotidiano.
Isto significa que ao ler o livro sempre o leio na medida da minha possibilidade?
Que, no fundo, leio a mim mesmo, projetado naquilo que entendo do livro? Que ao
ler o livro não saio de mim mesmo? Que, em lendo o livro, estou mexendo a mim
mesmo, agitando todo um mundo de ideias que constituem o jogo do meu saber, da
minha existência? Que ao ler o livro, estou é entrando cada vez mais em mim mes-
mo? Sim.
Mas, então, para que ler o livro? Para jogar bem o jogo do meu saber, o jogo da
minha existência usual e cotidiana. O que significa, porém, jogar bem o jogo? Signi-
fica agitar-me no mundo de ideias que constituem o jogo do meu saber, para experi-
mentar o recolhimento na vida, na realidade que me fala da interioridade dessa agi-
tação. Não diz o oráculo de Delfos, sabiamente: gnõthi seautón (Conhece-te a ti
mesmo)? Não diz Santo Agostinho: Noli foras ire, in te redi, in interiore homine
habitat veritas? arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar62
Mas para que me agitar no mundo de ideias que constituem o jogo do meu
saber? Para liquidificar, quebrar a fixidez da pretensão do meu saber que confunde
palavras e ideias com a realidade, com a vida, sem poder ver a realidade, a vida do
meu próprio jogo.
Na medida em que, na leitura, me agito no jogo do meu saber, começo a sentir
que o meu saber é um jogo. Em jogando esse um jogo, começo a sentir que para
além desse meu jogo há outros jogos bem diferentes, diferentes em dimensão, dife-
rentes em profundidade, que constituem diferentes níveis da minha própria
interioridade. Ao ler o livro, o livro é sempre o espelho daquilo que eu entendo dele.
No entanto, esse entendimento, que é o meu saber usual e cotidiano, não consegue
entender que o não saber, o não entender é o anúncio de outros níveis mais profun-
dos de mim mesmo. Na medida em que o meu saber usual e cotidiano deixa-se afetar
e provocar por esses níveis desconhecidos da minha interioridade, aumenta em mim
o vigor de percepção. E na medida em que aumenta o vigor de percepção, se me
torna possível deixar-me embalar pela agitação de um outro jogo e assim abrir-me à
fala da vida, sempre nova, sempre a mesma, sempre mais profunda e exigente na sua
evocação.
Depois dessa reflexão, vamos dar algumas sugestões referentes ao fazer de uma
leitura.
– Abordar o texto do livro numa atitude de suspensão do dogmatismo do meu
saber. Suspensão do dogmatismo do meu saber não significa negar o que sei. Eu só
entendo do livro o que sei. O meu saber é o ponto de partida, donde abordo o livro.
Por isso, deixar que o texto desperte em mim significações como eu as tenho usual-
mente. Tomar esse meu saber a sério. No entanto, não tomar esse saber como se
fosse a última palavra. Não confundir o meu saber com a realidade. Tomá-lo a sério,
mas deixá-lo em suspensão, em estado provisório, para uma eventual correção, na
medida em que avanço na leitura.
– Em primeiro lugar, ler o texto no seu teor literal. Examinar todas as palavras, a
sintaxe, o estilo, o uso de verbos, substantivos, adjetivos, advérbios, preposições e
conjunções; tentar entender o texto a partir do cabedal comum do vocabulário
lexicográfico. Usar muito o dicionário. Primeiro, fazer bem esse trabalho, pois, hoje
essa abordagem inicial literal e primária do texto é muito negligenciada. Recordar
tudo o que aprendi no curso secundário sobre sintaxe.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 63
Ao ler assim literalmente uma ou mais vezes o texto, começa-se a perceber certo
conjunto de ideias ou de conceitos que, por assim dizer, forma o esqueleto do trecho.
A compreensão ainda é vaga, formal, mas já é ordenada.
Sentir assim certa ordem de ideias no que se lê é sinal de que eu, a partir do meu
pretenso saber, estou tentando ordenar o que, na leitura, vem surgindo em mim de
emoções, ideias, evocações e questionamentos.
Mas, ao assim tentar ordenar a realidade despertada em mim pela leitura, perce-
bo logo que o texto me faz resistência.
A palavra que na primeira enunciação “a” do texto eu entendi de um modo, ao
ocorrer de novo numa outra enunciação “b” já não funciona na mesma significação
antes ocorrida na primeira enunciação “a”. Não abandonar sem mais nem menos a
significação da palavra que entendi na primeira enunciação “a”. Tentar ver, se a signi-
ficação da mesma palavra que agora ocorre numa outra enunciação “b” não é uma
ampliação, uma diferenciação, um aspecto mais profundo, mais vasto, mais oculto
da significação que ocorreu na primeira enunciação “a”. Depois de fazer isso, tentar
esquecer completamente a primeira enunciação “a” e experimentar ler a enunciação
“b” como se fosse a primeira enunciação que eu leio. Tentar extrair a significação
daquela palavra no contexto da enunciação “b”. Agora, a partir da significação da-
quela palavra na enunciação “b”, dirigir-me à enunciação “a” e ver se ali a significa-
ção daquela palavra não é uma ampliação, uma diferenciação, um aspecto mais pro-
fundo, mais vasto, mais oculto da significação que ocorreu na enunciação “b”.
Nesse vai-e-vem comparativo pode surgir uma terceira significação que assume e
integre numa crescente unidade da riqueza de conteúdo a significação da palavra na
enunciação “a” e a significação da mesma palavra na enunciação “b”.
Assim, nesse vai-e-vem sempre crescente da complexificação na significação da
mesma palavra começa a se formar um núcleo significativo prenhe de significações
unificadas. Tal núcleo significativo se chama categoria.
Quando descubro num texto várias categorias, portanto, vários núcleos significa-
tivos, aplico o processo comparativo acima mencionado de vai-e-vem entre as diver-
sas significações da palavra, agora às categorias. Se a leitura for bem feita, há de
surgir desse movimento um novo núcleo significativo fundamental que subsume e
integra os conteúdos das categorias numa única intuição radical, a partir de onde
todas as ideias recebem a claridade da sua significação. Essa intuição, no entanto, é
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar64
antes um silenciar compacto e recolhido de reverência ante a face do abismo inesgo-
tável de evocação do mistério da vida, que me colhe na sua profundidade.
Ser colhido assim na evocação do abismo da vida é o sentido original da palavra
légein, da qual deriva a palavra ler, e leitura.
Por ser a leitura o silenciar radical, é necessário ao ler, fechar-me na cela do
recolhimento monacal, como se estivesse numa solidão absoluta. É necessário, pois,
exercitar-me em suportar com alegria a solidão do recolhimento da leitura. O amor à
solidão é a fonte inter-lectual de uma intuição viva, na qual me é dado o verdadeiro
vigor para a comunidade universal. Pois há comunidade somente quando deixo-me
colher na minha interioridade radical pelo vigor unificante do abismo da vida.
7 O diálogo
Hoje, para nós, o diálogo está em função do poder. Por diálogo costumamos
entender a discussão pela qual queremos convencer o outro, ou ser convencidos pelo
outro, a aceitar o que sabemos e queremos, o que é certo e deve ser. É nesse sentido
que ouvimos dizer e dizemos: para resolver esse impasse é necessário dialogar.
7.1 A discussão
Na discussão partimos de diferentes posições, mas queremos que no fim as dife-
renças desapareçam para haver unanimidade numa posição comum, aceita igual-
mente por todos. Por isso, na discussão bem feita, sempre há no fim uma solução
definida, uma combinação pela qual se entra em acordo sobre um ponto de vista,
uma tese, uma norma comum que recebe então o nome de objetivo.
Para que possa haver bom andamento na discussão, é necessário, antes de discu-
tir, estabelecer uma plataforma de discussão, sobre a qual se possa debater as dife-
renças de posições.
Portanto, na discussão, há sempre pressuposições preestabelecidas intocáveis,
expressa ou tacitamente. Em geral, na discussão, essas pressuposições funcionam
como ideias ou conceitos evidentes que todo mundo compreende e deve aceitar. A
evidência de tais conceitos entra em pane na discussão, quando se reflete mais pro-
funda e tematicamente acerca deles. Arma-se então confusão de conceitos, a discus-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 65
são discorre em debates e se diz então que uma tal discussão é teorética e que ela
não leva a nenhum fim prático, útil, positivo e concreto.
No entanto, se examinarmos bem o modo de ser da discussão, a confusão já
existia na base da discussão. Não é o questionamento da reflexão que cria a confu-
são. O questionamento apenas traz à luz a indeterminação, isto é, a confusão latente
na base. Se os debates desandam em discursos infrutíferos e inúteis é porque os
conceitos pressupostos como a plataforma da discussão são, na realidade, vagos e
indeterminados, sem a fundamentação essencial con-creta. Para que a indeterminação
confusa da base pressuposta não venha à tona, é necessário que haja uma imposi-
ção. Imposição que afirma: é necessário não tocar em certos pontos básicos, para
que possamos levar adiante a discussão; do contrário, jamais chegaremos a um resul-
tado comum.
Poder-se-ia até dizer: na discussão tudo é permitido, apenas é proibido dialogar
acerca daquilo que constitui a possibilidade da discussão, a base comum, a obriga-
ção de se chegar a um resultado, a um objetivo comum. O que há, portanto, na
discussão é combinação, conscientização de uma base comum que desde o começo
todo mundo já deve ter aceito como a condição de uma discussão.
Geralmente, hoje, quando falamos de diálogo, não usamos essa palavra no seu
sentido rigorosamente originário, mas sim no sentido de combinação imposta. O
mesmo fazemos quando exigimos do outro um diálogo. A exigência do diálogo é
sintoma de que entendemos o diálogo como combinação imposta, portanto, combi-
nação do poder.
A discussão é importante no estudo superior de filosofia. Por isso, é necessário
aprender a discutir bem, com exatidão e rigor.
De como discutir, já falamos, quando falamos do seminário, embora sem fazer
uma distinção nítida entre a discussão e o diálogo propriamente dito.
A importância da discussão, no entanto, não está no poder de derrotar e conven-
cer o outro, para levá-lo a concordar numa única e igual posição. A sua importância
está antes nisso, que ela nos mostra a indeterminação, a confusão dos conceitos
pressupostos e impostos como base na discussão. Mas para que se dê essa descober-
ta da base na sua indeterminação é necessário antes acionar bem, com rigor, o vai-e-
vem da própria discussão, onde as posições começam a atrair a sua pertinência à
base comum não alisada e confusa.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar66
Há uma forma de discussão usada na escola da Idade Média que se mostra
muito eficiente em ordenar as nossas ideias para uma boa discussão. Essa forma
era usada nas assim chamadas quaestiones disputatae (questões disputadas),
onde os dois contundentes se atracavam numa espécie de torneio ou duelo inte-
lectual. Ela se chama utrum.
Utrum significa uma interrogação que pergunta: porventura, se por acaso, será
que é ou não é assim?
Daremos a seguir mais ou menos um esquema dessa forma de discussão.
– Utrum: a discussão começa colocando em título de interrogação a tese, iniciando-
se com a palavra utrum, por exemplo, Ultrum, isto é, se porventura Deus existe ou não?
– Status quaestionis: em seguida, vem o status quaestionis (o estado da questão)
que é a explicação da tese, ou melhor a explicação da questão, isto é, do que se busca
na tese, dos termos que ali ocorrem, demarcando-se assim o âmbito e o nível onde se
dá a discussão. Dá-se, pois, o estado da questão. Por exemplo, a questão aqui discu-
tida é uma questão que não pertence à fé. Portanto, não se trata aqui de uma ques-
tão da filosofia. Pressupõe como a condição da discussão apenas a luz da razão.
Trata-se, pois, de uma questão filosófica.
– Videtur quod sic: a seguir, afirma-se videtur quod sic, isto é, parece que sim.
Faz-se então um levantamento dos argumentos a favor da tese.
– Videtur quod non: vem a seguir a afirmação videtur quod non, isto é, parece
que não. Faz-se o levantamento dos argumentos contra a tese.
– Respondeo dicendum: depois de colocar os argumentos a favor e contra, co-
meça-se a expor o que se deve dizer, respondendo à pergunta Utrum da tese.
Respondeo dicendum significa: coloco-me à disposição responsável ao que se deve
dizer da tese. É o corpo da discussão, onde se examinam e se pesam os argumentos
a favor e contra a tese, de tal sorte que se chegue numa reflexão à conclusão, a favor
ou contra a tese.
Por fim, a partir da decisão tomada na reflexão, a favor ou contra a tese, a discus-
são volta-se para os argumentos arrolados no videtur quod sic e videtur quod non,
criticando-os: confirmá-los, diferenciá-los, purificá-los, se os argumentos forem a fa-
vor da conclusão do respondeo dicendum; rejeitá-los, refutá-los, distingui-los, se os
argumentos forem contra a conclusão do respondeo dicendum.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 67
7.2 A monografia
Em qualquer faculdade ou universidade exige-se, hoje, para a validade do curso,
que cada estudante, sob a orientação de um professor a sua escolha, escreva umamonografia. A monografia é um trabalho escrito, de formato científico, acerca deum tema dentro da matéria que escolheu para fazer a monografia.
A estrutura básica da monografia é no fundo a estrutura de utrum, embora não
nessa forma tão esquematizada, acima mencionada.
Como fazer a monografia, depende muito da orientação de cada professor. Noentanto, se, durante o seu estudo, aprendeu bem o modo de fazer a exposição do
trabalho do seminário e essa forma de discussão do utrum, o estudante conseguirácompor uma monografia com facilidade.
É muito útil o estudante, durante o tempo do estudo, examinar as monografiaspublicadas como monografia e estudar o modo como trabalhar numa monografia,
através da análise da estrutura da sua construção.
7.3 O diálogo propriamente dito
O diálogo tem um modo de ser diferente da discussão. No entanto, uma discus-
são bem feita, nos leva à necessidade do diálogo.
Para a mentalidade e para o interesse da discussão que não percebe aindeterminação da sua pressuposição, o diálogo não serve para nada, é inútil,imprático, não leva a nenhum resultado positivo, só serve para confundir, é perda de
tempo. Para que serve então o diálogo? Para nada.
O que acontece, porém, comigo, à existência utilitarista da discussão, ao entrarem contato com o nada?
Pode ser que a-corde na percepção da inutilidade da minha colocação que deixa
de ser útil à vida, por viver apenas quando me utilizo da vida.
Mas o que é o diálogo? Existe um pequeno texto medieval que pode orientar a
compreensão da essência do diálogo. O texto é de São Francisco de Assis:
E todos os irmãos se guardem de caluniar a alguém. Não façam contendas no nível
das palavras. Antes, apenas se empenhem em reter o silêncio, na medida em que
Deus lhes alargar o coração com a sua jovialidade.
Não briguem entre si nem com outros, mas cuidem de antemão responder dizendo:
somos servos inúteis. Não se irritem, não julguem, não condenem, não considerem arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar68
nos outros nem sequer os mínimos pecados. Antes, apenas mais e mais se voltem à
própria identidade no mordente de um empenho sofrido na doação total de toda a
sua alma (SILVEIRA, 1983, p. 79-80).
A condição fundamental para que se possa dar o diálogo é o silêncio, a capacida-
de de silenciar. Silenciar não é fechar a boca. Pois em fechando a boca, posso estar
gritando um protesto de rejeição, na atitude indiferente ao outro ou na agressão deuma censura. E posso estar falando, mas num recolhimento tal que as palavras me
caem da boca como pesados pingos de silêncio.
Silêncio é modo de ser. Para haver o silêncio nesse sentido, é necessário que
esteja livre de desejos de dominar, da vontade de ter razão, da precipitação em tervez, da convicção de superioridade, do saber de antemão, de preconceitos, de gave-
tas de informações, do sentimento de inferioridade, do medo de perder a posição,do medo de não ser reconhecido, em suma, eu devo estar livre no coração e no
intelecto, da ocupação, do enchimento do próprio eu.
Mas, para que se dê o silêncio vigoroso, não basta estar livre de tudo isso. Énecessário concentrar serena e pacientemente todo o meu ser no recolhimento deauscultar, para o que der e vier, como o servo que inclina o seu ouvido e se dispõe:
fala Senhor que o teu servo escuta!
Silêncio é, pois, ser todo ouvido no recolhimento, na ausculta de uma precisãolímpida de acolhimento. Para que tudo isso? Para não haver interferência do meu
próprio eu, quando ressoar no meu ouvido a diferença do outro.
Tal ouvir, qual instrumento de alta fidelidade na precisão, capta as mínimas nuances
da diferença do outro. Não ouve só as palavras. Ouve a modulação da voz que podeestar dizendo algo bem diferente do que dizem as palavras imediatamente. Ouve nas
palavras o sentido oculto que o outro não consegue ou não quer dizer. Esse silêncionão só capta com recato o que diz o outro. Capta também o mistério insondável da
interioridade da pessoa humana, do destino humano, da vida, e silencia com pudore reverência diante do mistério, deixando o mistério ser na sua liberdade. Tal liberda-de é a jovialidade de Deus que alarga o coração.
Há poluições acústicas, usualmente dominantes que impedem o recolhimento
da audição no silêncio. O texto enumera algumas delas:
A calúnia: calunio quando atribuo ao outro a falta que ele não cometeu. Noentanto, há também uma espécie de calúnia numa discussão. A calúnia na discussão
consiste em atribuir ao outro uma posição que ele não defende, isto é, em colocar ooutro numa posição em que ele não se acha. Essa atitude de calúnia pode acontecer
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 69
não só em relação aos homens, mas também em relação aos acontecimentos. Porfalta de silêncio interior atribuo aos acontecimentos um sentido que eles não têm; é
uma espécie de calúnia contra Deus, a blasfêmia.
Contendas no nível das palavras: contendas no nível das palavras é a ocupaçãocom discussões vãs.
Ocupar-se significa encher o meu ser de tal sorte que não sobre mais o espaço de
jogo, não há mais lugar livre para poder ouvir, poder ressoar. Um tambor ocupadonão repercute mais.
Discussão vã é quando cada qual está cheio de palavras mortas, posicionadas, detal maneira que não há mais a troca recíproca de comunicação.
Palavras mortas posicionadas são a expressão de uma posição fixa da minha
existência, onde coloco a segurança do meu próprio eu.
Para haver a troca, a comunicação, cada qual deve poder movimentar a sua po-sição, ceder, dar lugar a, por em questionamento a si mesmo, vivificar suas palavras.
Paradoxalmente, quando há contendas no nível das palavras, isto é, quando háchoque irredutível de duas posições em oposição, as duas posições se acham no
mesmo nível de compreensão, embora em lugares opostos e extremos. Assim, tantoum que diz sim como o outro que diz não, estão de antemão ocupados pela posição
fixa comum que nenhum dos dois põe em questão. Por exemplo, X diz que fez tudopara dialogar com Y. Y diz que X nada fez para dialogar com ele. Mas tanto X como
Y já estão ocupados e fixos na mesma fixação da palavra “diálogo” e da palavra“fazer tudo para o outro”. Estão também fixos na mesma exigência da posição derequerer do outro o dever de retribuir o esforço que a gente faz pelo outro.
O texto de São Francisco insinua: tal paralisação do pensar é vã, pois, não cami-
nha. Para se caminhar é necessário abandonar a posição e a fixação das palavras,para se dispor à atitude do servo inútil, isto é, do servo que não faz a reivindicação da
sua posição, do seu direito, e que se abre jovial e acolhedor ao serviço da verdade,
não como a gente gostaria que ela fosse, mas como a vida me dita no seu ad-vir.
Na contenda, quase sempre quero ter razão, quero provar que tenho razão. Mas,
na vida, a realidade é tal que de nada serve para o crescimento na acolhida da vida e
da sua verdade, do seu desvelamento, eu ter razão!...
As contendas no nível das palavras são agressão em palavras, o homicídio. Toda
e qualquer agressão polui a audição no silêncio do recolhimento. Pois, ou me endu-
reço na posição de defesa, ou obrigo o outro a se fechar na sua própria posição. Isso arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar70
tudo não deixa a mim mesmo e ao outro viver na cordialidade livre da vida. É uma
espécie de homicídio, esse não deixar viver o ser na cordialidade da vida.
A irritação: a irritação não é propriamente a explosão inocente de uma indigna-
ção vigorosa. Irritação não tem a inocência do vigor de uma indignação cordial. É
antes uma espécie de exacerbação, diria, neurótica de sensibilidade ferida. Como tal,é sintoma de fraqueza e falta de vigor.
Há na irritação a agressão e o espírito de vingança de quem defende o seu pe-queno eu, que se sente ameaçado ou se sente impaciente, porque o outro, a Realida-
de, a Vida não é como gostaria que fosse.
Para que aumente o vigor de audiência serena, recolhida, atenta e acolhedora, énecessário pois um trabalho lento, tenaz e constante em mim mesmo, sem olhar,
julgar os outros. É necessário a concentração de pouca força que tenho, para traba-lhar em cheio em mim mesmo. E é na medida em que eu voltar à identidade profun-
da de mim mesmo, no empenho mordente e sofrido de uma longa caminhada, queme disponho ao silêncio acolhedor, no qual me é dada a clareza do olhar, a afinaçãoda audição, para poder em verdade julgar e considerar o outro na sua diferença.
Como é, pois, o ser do diálogo? Para descrevê-lo, tomemos o exemplo acima
mencionado: X diz que fez tudo para dialogar com Y, mas digamos que Y se fechoucompletamente e não aceita o diálogo, nem mais fala com X.
Como se manifesta o ser do diálogo numa real situação? Se houver o silênciorecolhido de audição, X há de ouvir a vida, em situação, lhe colocar as seguintes
perguntas:
– Você diz que Y não se comunica, não fala, não dialoga com você. Mas não estápercebendo que a mudez, o fechamento de Y está falando, sim está gritando de tal
maneira, que você fica perturbado? Não percebe que o não falar, o não dialogar étambém um modo de falar? Falar que não é de Y, mas sim a fala da vida que fala bem
alto através da mudez de Y? A sua atitude diante da vida, como é? Você não é umapessoa superficial que só ouve, pensa, sente o que está diante de si materialmente,sem perceber que, em tudo, a vida está nos comunicando um sentido?
– Você não está colocando Y num lugar em que ele não está, você não o está
caluniando? Não é assim que você está acostumado a só ouvir o que se fala expres-samente, e jamais sensibilizou o seu ouvir ao que está silenciado? Talvez Y seja uma
pessoa introvertida. Não é assim que você no seu “fiz tudo” jamais respeitou e aco-lheu esse modo de ser diferente de Y?
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 71
– Você diz que fez tudo. Você já se ouviu, em dizendo isso? O que está realmentedizendo? Não está dizendo: eu já fiz o meu dever, agora exijo que ele, o Y também faça
o seu dever? Ou, eu me empenhei tanto por ele e ele não me retribui o meu favor?
O que aconteceu nessa conversa da vida com X? X está caminhando para dentrodele mesmo, está desvelando, des-cobrindo as posições fixas dentro dele mesmo, vai
percebendo essas posições, per-correndo, atravessando as suas próprias pressuposi-ções e ao fazer isso, vai ouvindo o que a vida vai lhe ditando. Esse per-correr a simesmo para dentro do abismo da própria interioridade, esse movimento é o que o
termo grego diá quer exprimir na palavra diá-logo.
E o que se dá nesse per-correr a si mesmo, nesse diá? A percepção de X vaiajuntando, recolhendo a constituição da sua própria interioridade. E, ao assim se
recolher, ao assim se ajuntar, ele vai desvelando, vai se colocando à luz diante de simesmo, vai se abrindo a seus próprios olhos, como ele é.
Esse recolher, esse ajuntar a sua interioridade e, em assim fazendo, ir se desvelan-do, ir se colocando aberto a seus olhos é o que quer significar o verbo grego légein,
cujo substantivo é logos, donde provém diá-logo.
Légein significa originariamente ajuntar, colher, recolher. Légein é, porém, tam-bém, o termo, cuja raiz deu origem ao verbo alemão legen, que significa colocar, pôr,
no sentido de colocar alguma coisa estendida, aberta, por exemplo, sobre a mesa.Mais tarde légein, lógos começou a significar a fala, o dizer, a palavra, o discurso,justamente porque esse modo de desvelar a interioridade, colocando-se à luz, é a
essência da fala: o vir-à-luz de uma coisa.
É na medida em que X assim dia-loga consigo, se desvela a si mesmo diante de si,de ponta a ponta, isto é, diá, que cresce nele o silêncio de respeito diante do mistério
da interioridade abscôndita da sua própria existência. E é só na medida em quecresce em silêncio respeitoso acerca da profundidade de si mesmo, que X começa aser capaz de fazer justiça à diferença de Y.
Diálogo, portanto, é sempre um caminhar comigo mesmo para dentro de mim.
Mas isto não é ensimesmamento? Não. Pois, em assim caminhando, estou dialo-
gando com a vida. É na medida em que dialogo com a vida que me disponho a poder
dialogar com o outro, pois o outro jamais é só aquela coisa que está na minha frente,
mas sim a manifestação do mistério da vida que está também no outro como em
mim na diferença de cada identidade. Como tal, não há nada que não seja o desafio
do diálogo. A própria falta de diálogo do outro é também o desafio que a vida me fazpara o diá-logo da experiência no dia-légein. ar
tig
os
HARADA, Hermógenes. De como estudar72
Mas para assim poder caminhar em tudo, para o vir-à-fala da minha interioridade,cujo fundamento último e profundo é o mistério da vida, é necessário me dispor àcaminhada que caminha, não porque o outro caminha, mas caminha na gratuidadelivre e generosa dos próprios passos, na medida em que Deus alarga o coração coma sua jovialidade.
Depois desse comentário do texto de São Francisco, podemos fazer mais al-gumas observações acerca do diálogo a título de sugestões para a repetição nareflexão:
– Na discussão há sempre duas ou mais posições diferentes. A tendência da dis-cussão é a de eliminar as diferenças. No diálogo só há uma posição, a minha própriaposição. A posição do outro, a diferença do outro jamais aparece como ela é, en-quanto eu não perder no diálogo a minha própria posição. Com outras palavras, aposição do outro, a diferença do outro jamais é diferente de mim, jamais é do outro,enquanto não percorrer a minha posição até o fim, no diálogo. Pois o outro, a dife-rença é apenas a projeção da minha posição.
– Isto significa: no diálogo não se dá o relacionamento entre a minha posição e ado outro, mas sim entre a minha posição e a condição de possibilidade, isto é, ainterioridade da minha própria posição. Trata-se pois de um questionamento radicaldo fundamento da minha própria posição.
– Como, porém, o que chamo de minha posição é a minha própria existência nasua totalidade, o diálogo é o questionamento radical do fundamento da minha exis-tência total.
– Ora, tudo o que sei e posso pertence à minha posição, à totalidade da minhaexistência. Na medida em que me aprofundo no movimento do diálogo e questionoo fundamento, a condição radical da possibilidade da minha existência total, começoa nada saber, a nada poder. O fundamento da minha existência total vem a mimcomo nada do silêncio claro do não-saber, do não-poder. Esse não-saber, esse não-poder não é, porém, um não-saber que espera um dia superar o seu não-saber, nãoé um não-poder que espera um dia superar o seu não-poder. É antes um modo de sertotalmente diferente, o modo de ser da reverência no recolhimento de ausculta.
– Esse modo de ser nada sabe, nada pode. É apenas algo como a quietude serenae clara do silêncio, onde a minha própria posição, a posição do outro, enfim, todas ascoisas aparecem, cada qual, na sua diferença como são. Por isso, a tendência do
diálogo não é a de eliminar a diferença. Antes, pelo contrário, a sua tendência é a de
recuperar, conservar, restituir a cada coisa a sua própria diferença, isto é, a sua pró-
pria identidade, no frescor, na nascividade originária da inocência da vida.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 73
– No diálogo caminho comigo mesmo para lá aonde não quero ir, para lá onde
jamais estive, para lá, cujo caminho desconheço. Caminho comigo mesmo, sempre
de novo, para lá onde se dá a liberdade da vida, liberdade essa que sempre foi, é e
será, sempre de novo a interioridade de mim mesmo, o lugar onde sempre estive.
8 Os exames
Os exames pertencem à imposição do trabalho do estudo. Como fazer, pois, esse
trabalho imposto pelo estudo? No entanto, são necessários, realmente, os exames?
No estudo superior de filosofia, quem vai responder essa minha pergunta sou eu
mesmo.
Digamos que responda com toda a convicção: sim. Digamos que responda com
toda a convicção: não. Diga sim, diga não, eu nada disse propriamente de real, en-
quanto não disser o que é necessário, a necessidade para mim.
A palavra necessário vem do latim e é composto de non e cedo. Non é a negação.
Cedo, cessi, cessum, cedere significa: ceder, dar lugar a, retrair, ir (no sentido da
expressão “o negócio vai indo”). Necessário significa, portanto, o que não dá lugar,
não cede, não recua, não dá passagem, não vai. Daí, o necessário é o que não dá de
outro jeito, o que não tem outra possibilidade de ser.
Os exames são necessários nessa acepção acima mencionada? Certamente que
não! Mas quem diz: certamente que não? Eu mesmo. A quem o digo? A mim mes-
mo. Dizer a mim mesmo, porém, significa: responsabilizar-se diante de mim. Isto
quer dizer que, para mim, os exames podem ceder, recuar, deixar de ser? Sim. Mas o
que significa esse sim na responsabilidade de mim a mim mesmo?
Significa que. no estudo, eu consigo trabalhar de tal maneira que os exames
podem ser dispensados. Isto significa, por sua vez, que eu na responsabilidade, na
real efetividade do trabalho no estudo, tenho uma decisão firme e assumida de tal
sorte, que esse meu querer não cede, não recua, não deixa de ser diante de nenhumadificuldade. Com outras palavras: os exames não me são necessários, porque o estu-
do se me tornou necessário.
Somente quando o trabalho do estudo se me torna necessário, portanto, se metorna uma necessidade do meu viver, agora e aqui, os exames podem se tornar des-
necessários.
arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar74
Quem acha que os exames não são necessários deve provar no próprio trabalhoreal do estudo cotidiano que não precisa de exames, porque nele o trabalho doestudo é necessário, isto é, porque ele não pode senão estudar, ou melhor, não podenão estudar.
Não poder senão estudar, não poder não estudar é necessidade. Tal necessidadesignifica: a plenitude do vigor interior da autonomia. Trata-se, pois, de uma força daautonomia que não cede, não recua, não deixa de ser, por mais e maiores dificulda-des que tenha de enfrentar.
Se no estudo procuro um crescimento para tal força da autonomia, o trabalho doestudo se me torna uma necessidade e a necessidade dos exames um desafio deminha necessidade. Com isso, os exames deixam de ser necessários.
Lá onde não há a busca da autonomia, surge a imposição institucional. Comoutras palavras, onde o meu querer é fraco na vontade de trabalhar no estudo, surgea necessidade de incentivo exterior chamado exames. Quem provoca, pois, a necessi-dade da imposição dos exames é a fraqueza do meu próprio querer trabalhar.
Se não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho e acho que osexames são desnecessários, eu não sei o que quero, não sei o que digo.
Se eu não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho e faço osexames de qualquer jeito, só para passar de ano por sorte, não sei bem o que querona minha vida.
Se eu não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho, mas uso detruques nos exames para enganar o professor e para assim me assegurar da notasuficiente, pode ser que eu me engane a mim mesmo.
Se, porém, quero gostar de trabalhar no estudo, se me empenho, pacientemen-te, constante e tenazmente, mas não consigo corresponder às exigências dos exa-mes, devo enfrentar esse fracasso aparente como se fosse um desafio para o cresci-mento na minha vida. Se assim o fizer, correspondendo plenamente ao sentido dosexames e mesmo que não passe de ano, passei bem nos exames da vida. O empenho,se continuado, sempre aparece, vem à luz como vigor do espírito.
Como pois fazer os exames? Existe uma única resposta a essa pergunta: estudando,sempre, constantemente, dedicando-se de todo o coração ao trabalho do estudo.
9 A poesia do estudo
“De como estudar” foi o título da preocupação da nossa reflexão. O como do
estudar não é uma estrada traçada ou traçável. É antes o próprio crescimento da vida
no estudar. Estudar, porém, é querer, a busca do que não se possui para ser.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 11-76, jul./dez. 2011 75
O querer, a busca do que não se possui para ser, se concretiza no estudo superior
de filosofia em diferentes disciplinas escolares que recebem nomes como Introdução
à Filosofia, Lógica, Metafísica, Epistemologia, Antropologia, História da Filosofia An-
tiga, Medieval, Moderna e Contemporânea etc.
O estudar, o querer, busca em todas essas concretizações o que não se possuipara ser. O que é isto que buscamos, porque não o possuímos, para ser? O próprio
querer do estudo nos responde: é Deus.
Buscamos a Deus? Para possuí-lo? Deus é algo que podemos buscar para possuí-
lo? Não. Por que então o buscamos? Para ser. Mas, para ser, não é necessário possuí-lo? No entanto, Deus não pode ser possuído!? Por que, pois, o buscamos? Para
sermos mais e mais apenas a própria busca!
Sermos mais e mais apenas a própria busca quer dizer: tornamo-nos sempre maisnítidos, puros na determinação da busca. Determinação da busca é o que perfaz a
identidade da busca. Na medida em que nos tornamos nítidos, puros na determina-ção da busca, vem à fala sempre mais límpido o limite da busca.
Limite da busca, porém, não é a demarcação do que a busca pode e ainda nãopode. É antes o vir-à-fala do poder da busca na consumação como a impossibilidade
de não poder a não ser o poder do seu poder.
No estudo superior de filosofia buscamos a Deus. Buscamos, não para possuí-lo,mas sim para sermos mais e mais apenas a própria busca, isto é, para tornar-nos maise mais nítidos e puros na acolhida do limite da busca: da impossibilidade de a busca
não poder a não ser o poder do seu poder.
O que há de bom numa tal acolhida? Ela permite deixar Deus ser Deus, na suadiferença como o mistério do radical-outro. O mistério do radical-outro, que sempre
de novo inacessível, insondável, inefável, a-corda silencioso o coração da busca naafeição de um toque qual apenas um sopro acerca de nada.
Na disciplina das disciplinas teológicas cursamos o fazer de uma busca que naconsumação do seu poder termina na límpida determinação do seu poder, em cuja
impossibilidade de não poder a não ser o poder do seu poder, silenciamos reverentesna acolhida de uma entoação: fala Senhor que o teu servo escuta!
Esse fazer do estudo, no empenho do trabalho decidido, que ama o silêncio recolhi-
do no limite da sua consumação, se diz em grego poiein, donde deriva poiesis, a poesia.
Tão-somente quando o estudo se tornar poesia, no rigor e na disciplina da sua
determinação, na pureza científica da sua busca, começaremos a ser afeiçoados pela arti
go
s
HARADA, Hermógenes. De como estudar76
poesia do estudo, na evocação silenciosa de um sopro acerca de nada, do espírito do
Senhor.
Como o aceno da via, na busca consumada do estudo superior de filosofia entoa
o poeta a poiesis da teo-logia:
Um Deus o pode. Como, porém, dize-me, deve
Um homem segui-lo pelo frágil fio de uma lira?
Sua afeição é dis-corde. No cruzamento
De dois caminhos do desejo
Não surge nenhum Templo a Apolo.
Canto, como tu lhe ensinas, não é cobiça,
Não a busca acerca de um por fim ainda alcançado;
Canto é ek-sistência. Para o qual
Deus, a leveza.
Quando, porém, somos nós? E quando volta ele
Ao nosso ser a Terra e as Estrelas?
Isto não o é, ó Jovem, que tu amas, mesmo quando
A voz à boca te eclode. –
Aprende esquecer, que tu entoaste. Isto discorre.
Em verdade, cantar é um outro hálito.
Um hálito acerca de Nada. Um sopro, em Deus. Um vento (Rainer Maria Rilke, Os
Sonetos a Orfeu, I, 3).
Muito obrigado, HH.
Petrópolis, segundo semestre de 1974.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 77
Luiz Carlos Mariano da Rosa *
Resumo: Detendo-se na noção do Ser, o artigo em questão acenacom a distinção essencial entre o ente e o Ser, que se impõe comoa misteriosa origem da sua presença, convergindo para a ques-tão que envolve da procura do seu sentido à verdade comodesvelamento, diagnosticando o seu esquecimento e sublinhan-do a singularidade que caracteriza o Da-sein no tocante à recupe-ração da sua compreensão no horizonte da metafísica, ao qualdo pensamento se requer a sua superação, o retorno ao seu fun-damento, enfim, como o propõe a leitura heideggeriana.
Palavras-chave: Ser, Da-sein, metafísica, ente, verdade, pensamento,linguagem.
Abstract: Dwelling on the notion of Being, the nods article in questionthe essential distinction between entity and Being, which stands asthe mysterious origin of his presence, converging on the issue involvingthe search of his sense of true as disclosure, diagnosing yourforgetfulness and stressing the uniqueness that characterizes the Da-sein in relation of recovery on the horizon of his understanding ofmetaphysics, towhich the thinking is required to overcome them, returnto its ground, finally, as proposed by reading heideggerian.
Key words: Being, Da-sein, metaphysical, entity, true, thought,language.
Aspectos introdutórios
Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus par-
tiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro
fronteiro
arti
go
s
Do mistério do ser – entre opensador e o poeta [Do Da-sein]
Of the mystery of Being – Betweenthe thinker and the poet[of the Da-sein]
* Poeta e letrista, ensaísta e crí-tico literário; Autor de O todoessencial, Lisboa: UniversitáriaEditora. Membro do Movimen-to “Poetas Del Mundo”, Chile,do “World Poets Society”,Grécia, e da UBE-SP [União Bra-sileira de Escritores]; acadêmi-co do CEUCLAR [SP]; pesquisa-dor [filosofia, educação e cul-tura] e empreendedorsociocultural [Espaço PolitikónZôon, CNPJ nº 10.642.249/0001-54, Rua Tamoio, 393,Meudon, Teresópolis, Estado doRio de Janeiro, CEP: 25954-240,Fone/Fax: (21) 3641-1290].
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...78
Naus partem – naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...
Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho o meu pensamento que me doi estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir... [PESSOA, 2008, p. 15, grifos
meus].
Um pedaço de giz. Se trata-se de uma coisa extensa, que carrega uma relativa
consistência, tanto quanto uma determinada forma e cor [branca], no âmbito de
tudo que o caracteriza e o envolve como tal se impõe ainda como uma coisa para
escrever, tão certo que é que dele há correspondência quanto ao estar aqui, do mes-
mo modo não estar aqui ou não ter o tamanho que possui lhe pertence poder, en-
quanto que a possibilidade de que seja conduzido pelo quadro negro e consumido
não torna-se algo que simplesmente com o pensamento se lhe acrescenta, tendo em
vista que o próprio, como o ente que é, guarda essa condição, à medida que do
contrário não seria um giz, qual instrumento para escrever na pedra, como explica
Heidegger, dialogando com a questão metafísica fundamental, a saber, “por que há
simplesmente o ente e não antes o Nada?”
Correspondentemente, todo ente traz consigo, de modo diferente em cada caso,
uma tal possibilidade. Essa possibilidade pertence ao giz. É ele que tem consigo mes-
mo determinada possibilidade para determinado uso. Sem dúvida, na procura dessas
possibilidades estamos habituados e inclinados a dizer, que não as vemos nem toca-
mos. É um preconceito. Afastá-lo pertence ao desenvolvimento da questão
[HEIDEGGER, 1999, p. 58].
“O que é o ser?” “Quem é o ser?” À análise que envolve o conceito de ser se
impõem as fronteiras que assinalam a impossibilidade de sua definição, conforme
propõe o pensamento de Hegel, que o identifica com o conceito de “nada”, à medida
que do Ser, pois, não se pode predicar “nada” [mesmo que, de outra parte, se possa
predicar tudo].
Se ao ser escapa a possibilidade que acena com uma definição, que demanda a
sua introdução em um âmbito conceitual capaz de abarcá-lo, assinalá-lo, pois, indicá-
lo, tornando-o, portanto, objeto de intuição, que envolve, em suma, uma relação
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 79
que emerge através da imediatez, se impõe, convergindo para um procedimento que
reclama então a distinção entre o ser que é [autêntico] e o ser que não é [inautêntico].
Descobri-lo, no entanto, exige que, diante de algo que se pretenda como ser, haja o
seguinte questionamento: “Que és?” A possibilidade de “dissolvê-lo, tornando-o
redutível, revelará a sua inautenticidade [“o ser em outro”], ao passo que a impossi-
bilidade de ultrapassá-lo confirmará o seu status, a sua identidade [“o ser em si”]
[MORENTE, 1967, p. 60].
Se “o ser em si” corresponde à existência, “o ser em outro” equivale à consis-
tência, eis a relação que se impõe entre tais significações e as questões propos-
tas anteriormente: “‘Que é’ existir?”, “‘Quem’ existe?”, “‘Que é’ consistir?”,
“‘Quem’ consiste?”. Eliminando, sob a consideração de que a existência é algo
intuído [não passível de definição], a primeira pergunta da Ontologia, várias
respostas se impõem à segunda, tais como: “eu existo, porém não as coisas”; ou,
“nem eu, nem as coisas existimos na verdade, mas somente Deus existe”; etc. E
Se há resposta para a terceira, pois “existem maneiras, modos, formas variadas
do consistir”, não há para a quarta, já que não sabendo quem existe, não se
pode saber quem consiste [MORENTE, 1967, p. 61].
“‘Quem’ existe?” “‘Que é’ consistir?” Se a metafísica [parte da Ontologia] assu-
mirá o encargo da primeira questão, a segunda será resolvida pela teoria do objeto,
da objetividade, ou a teoria da consistência dos objetos em geral. Conclusão: Existen-
cial metafísico e objetivo consistencial - eis as duas perspectivas para as quais conver-
ge a leitura em questão.
A metafísica é aquela parte da ontologia que se encaminha a decidir quem existe, ou
seja, quem é o ser em si, o ser que não é em outro, que não é redutível a outro; e
então os demais seres serão seres nesse ser em si. A metafísica é a parte da ontologia
que responde ao problema da existência, da autêntica e verdadeira existência, da
existência em si […] [MORENTE, 1967, p. 62, grifo do autor].
Da metafísica dos pré-socráticos [realismo metafísico] à metafísica cartesiana, eis
o movimento de construção do pensamento que, à medida que se desenvolve histo-
ricamente, tende a se desdobrar em questões que trazem em si a possibilidade de
estabelecer uma relação de conhecimento envolvendo a realidade que, na circunscri-
ção da modernidade, reclama a investigação de um problema ontológico que, man-
tendo-se intocado, subjacente, emerge, imperativo, a saber, a vida, a vida mesma, a
existência, enfim.
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...80
Perseguindo os historiais rastros parmenídeos, constitutivos, pois, de um atalho
que visa um ente caracterizado pela concreticidade e particularidade, o “ente-coisa”
concentra duas linhas de interpretação, a saber, do “ser já” [despido de temporalidade,
abortando qualquer possibilidade de futuro] à identidade [que repugna a variabilida-
de], contrapondo-se, dessa forma, como conceitos lógicos utilizados para a reprodução
da estruturalidade da realidade, à própria vida [no sentido de ente primário da existên-
cia], ao diálogo da sua apreensão, melhor dizendo, visto que a sua construcionalidade
ontológica desnuda um tipo que não é adequado às conceitualidades que emergem do
arcabouço da lógica, inclinando-se à ocasionalidade de algumas imagens que logo se
esgotam, incapazes, enfim, de instituir a fixação do ser que “é o nome daquilo que
ainda não é” [a vida, no caso] [MORENTE, 1967, p. 306].
É nessa perspectiva, pois, que a metafísica se perde [ou finge não se encontrar,
refém do legado socrático-platônico, vítima do projeto cartesiano], incapaz de alcan-
çar o absoluto e autêntico, o Ser, tendo em vista que a interpretação do rumo
parmenídeo estruturaliza uma realidade da qual escapa a relação dialógica que a
misteriosa origem da presença de todo ente reclama, como o denuncia Heidegger,
que apelando à superação da tá metà physiká, propõe, afinal, o retorno ao seu fun-
damento:
Seja qual for o modo de explicação do ente, como espírito no sentido do espiritualismo,
como matéria e força no sentido do materialismo, como vir-a-ser e vida, como repre-
sentação, como vontade, como substância, como sujeito, como enérgeia, como eter-
no retorno do mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece na luz do ser. Em toda
parte, se iluminou o ser, quando a metafísica representa o ente. O ser se manifestou
num desvelamento (a-létheia) [HEIDEGGER, 1996, p. 77, grifos do autor].
O esquecimento do Ser. Confrontando as relações sinonímicas estabelecidas nas
fronteiras ontológicas não só entre ser e ente, mas envolvendo verdade e realidade,
essência e substância, que, enfim, provocam a ruptura entre a essência [“ontos on”]
e a existência [“phainomenon”], culminando no estado designado como “o esqueci-
mento do Ser”, Heidegger recorre à tradução hermenêutica do termo grego antigo
“a-létheia” para justificar a leitura da verdade segundo os pensadores pré-socráticos
[que a tratavam como o desvelamento de um Ser obscuro, que ora se revela, ora se
oculta] [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 186].
Brotando do solo deste pensamento, sintomático do enigma do Ser, a filosofia,
regada por uma concepção da verdade que cada vez mais ignora o mistério em sua
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 81
natureza subentendida, o confunde com a realidade prosaica dos entes, tornando-se
inescapável à procura do seu sentido a emergência da distinção essencial que se
impõe em relação àqueles [aos entes, pois], tanto quanto o rompimento com a lin-
guagem que os caracteriza, à medida que esta se sobrepõe à condição de instrumen-
to, guardando a possibilidade de revelação do Ser, como o provam os pensadores e,
por excelência, os poetas [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 188].
Da noção do Ser
Se ao “ser” correspondem outras formas, como “o sonhar”, por exemplo, que
trazendo uma forma linguística que emerge na linguagem como “a habitação”, des-
ta, contudo, se diferencia diante da possibilidade que acena para a sua redução ao
verbo “sonhar”, o que esta última não possibilita, embora acene para a forma verbal
“habitar”, divergindo, enfim, quanto ao significado, pois a relação gramatical entre
“a habitação” e “habitar” não guarda similitude com a relação que se impõe entre “o
sonhar” e “sonhar”, havendo também formações verbais que sendo equivalentes a
“o sonhar” detêm caráter e significação idênticos a “a habitação”, como no caso de
“o embaixador deu um jantar”, que escapa ao fato de pertencer tal forma a um
verbo, tendo em vista a transformação do verbo em substantivo, um nome, que se
desenvolve através do “modus infinitivus”.
É nessa perspectiva, pois, que emerge a palavra “ser” que, como substantivo [que
origina-se do verbo, caracterizando-se como um “substantivo verbal”], reduz-se ao
infinitivo, que pertence às formas “tu és”, “ele é”, segundo a leitura de Heidegger, que
destaca o infinitivo [“ser”] como a forma prévia e decisiva que se impõe à formação da
forma nominal [“o Ser”], à medida que observa a transição da forma do verbo para a
forma de um substantivo, tornando-se Verbo, Infinitivo, Substantivo as formas grama-
ticais que fundamentam a determinação do caráter nominal da palavra “o Ser”.
Se a compreensão da significação de tais formas gramaticais se impõe, o Verbo e o
Substantivo guardam relação com a origem da gramática ocidental, caracterizando-se
como as formas fundamentais das palavras e da gramática, correspondendo a questão
sobre a Essencialização de ambas com aquela que envolve a Essencialização da lingua-
gem como tal, tendo em vista que “o problema, se a forma originária da palavra é o
nome (substantivo) ou o verbo, coincide com a questão sobre o caráter originário de
todo dizer e falar” [HEIDEGGER, 1999, p. 84], que converge para as fronteiras da origem
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...82
da linguagem, alcançando relevância, na leitura em questão, a forma gramatical que
participa da formação do substantivo verbal, a saber, infinitivo [“modus infinitivus”], o
modo da ilimitação, da indeterminação, que acena, em suma, para a maneira como um
verbo indica e exerce os seus serviços e a direção de seu significado.
A distinção das formas fundamentais das palavras [substantivo, “nomem”, e ver-
bo, “verbum”] através da leitura grega de onoma e rhema guarda relação com a
concepção e interpretação do Ser, que caracteriza-se como normativa, segundo a
perspectiva ocidental, emergindo a conjugação desses dois acontecimentos no diálo-
go O Sofista de Platão, embora os títulos em questão [a saber, onoma e rhema] sejam
pré-existentes ao referido texto, como o esclarece Heidegger, comentando a sua sig-
nificação:
Onoma significa duas coisas: a designação linguística, como tal, em oposição à pes-
soa ou coisa designada, e o pronunciar de uma palavra, que mais tarde a gramática
concebeu como rhema. Enquanto rhema significa, por sua vez, a sentença, a oração.
Assim rhetor é o orador, que não só pronuncia verbos mas também onomata, no
sentido restrito de substantivo [HEIDEGGER, 1999, p. 85, grifos do autor].
Designando originariamente todo falar, onoma e rhema, sofrendo posteriormen-
te restrição em seu significado, assumem a condição de títulos das duas primeiras
classes de palavras, fenômeno justificado pela leitura platônica que, trazendo como
fundamento a caracterização geral das funções da palavra, assinala que em sua
acepção mais abrangente onoma emerge como “manifestação relativa à e dentro da
esfera do ser do ente”, em cujo domínio pode-se diferenciar pragma [correspondendo
às coisas com as quais o homem se ocupa] e praxis [representando o agir e fazer, no
sentido mais amplo, incluindo também a poiesis], carregando as palavras dois gêne-
ros, a saber, “são deloma pragmatos (onoma), manifestação das coisas, e deloma
praxeos (rhema), manifestação de um fazer”, havendo o logos elachistos te kai protos
– o dizer mais breve e simultaneamente primeiro [no sentido de próprio] – diante da
ocorrência de um plegma [uma symploke, uma composição ou crase de ambos].
A interpretação metafísica do logos no sentido da proposição enunciativa,
construída pela perspectiva aristotélica, estabelece a distinção entre onoma como
semantikon aneu chronou e rhema como prossemainon chronon, cuja concepção
torna-se padrão para a constituição posterior da lógica e gramática.
À investigação da forma verbal designada como infinitivus se impõe a expressão
negativa, modus in-finitivus verbi, que alude a um modus finitus, um modo de limi-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 83
tação e determinação do significado verbal, que traz como paradigma grego de dis-
tinção a leitura que Heidegger propõe relacionando a expressão modus, designação
dos gramáticos romanos, com a concepção grega que envolve egklisis, inclinação
para o lado, cuja palavra guarda correspondência com o significado para o qual
converge uma outra palavra formal da gramática grega, que a tradução latina, pois,
expõe, ptosis [casus] – caso, no sentido das variações de um nome –, que se origina-
riamente designa qualquer espécie de variação [declinação] das palavras fundamen-
tais da língua, abrangendo tanto os substantivos como os verbos, a diferenciação
delineada entre ambos culmina na mudança das titulações das variações, tornando-
se ptosis [casus] a variação do nome, egklisis [declinatio] a variação do verbo.
Se à reflexão sobre a linguagem e suas variações se impõe, nessa perspectiva, a
utilização de ptosis e egklisis, não é senão em virtude de que como um ente entre os
demais entes a sua concepção e determinação guarda relação com o entendimento
grego acerca do ente em seu ser, convergindo a leitura heideggeriana para mostrar
que a interpretação e a experiência da linguagem normativa para o mundo ocidental
nasce e se desenvolve através de uma determinada compreensão do Ser.
Significando cair, virar, perdendo o equilíbrio, e inclinar-se, ptosis e egklisis inclu-
em sempre um des-viar-se de um estado ereto e em pé, enquanto que “esse estar
erguido sobre si mesmo, o vir e permanecer num tal estado” configura o entendi-
mento grego acerca do Ser, que emerge como o que dessa forma alcança uma con-
sistência e torna-se assim consistente em si mesmo, instalando-se livremente e por si
próprio dentro da necessidade de seus limites [“peras”], os quais não representam
nada que sobrevém de fora ao ente, não se detendo também na perspectiva que
envolve uma deficiência no sentido de uma restrição privativa.
O manter-se, que se contém nos limites, o ter-se seguro a si mesmo, aquilo no que se
sustenta o consistente, é o ser do ente. Faz com que o ente seja tal em distinção ao
não-ente. Vir à consistência significa portanto: conquistar limites para si, de-limitar-
se. Daí ser um caráter fundamental do ente o telos, que não diz nem finalidade nem
meta ou alvo e sim “fim”. Mas “fim” não é entendido aqui no sentido negativo, como
se alguma coisa não já continuasse e sim findasse e cessasse de todo. “Fim” é conclu-
são no sentido do grau supremo de plenitude. No sentido de per-feição. Pois bem,
limite e fim constituem aquilo em que o ente principia a ser. São os princípios do ser
de um ente [HEIDEGGER, 1999, p. 88, grifo do autor].
É nessa perspectiva, pois, que Aristóteles impõe ao Ser o título supremo, a saber,
entelecheia, o manter-se a si mesmo na conclusão [e limite], de cuja dimensão o arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...84
pensamento filosófico posteriormente escapa, como também a leitura da biologia.
“O que se põe em seus limites, integrando-os em sua perfeição e assim se mantém,
possui forma, morphe. A forma, entendida como os gregos, retira sua essencialização
de um pôr-se-a-si-mesma-dentro-dos-limites (Sich-in-die-Grenze-stellen)” [HEIDEGGER,
1999, p. 88, grifo do autor].
O que é consistência em si mesmo, sob a perspectiva de um espectador, torna-se
o que se ex-põe, oferecendo-se no aspecto em que se apresenta, designando-se este
– a saber, o aspecto de uma coisa –, segundo a leitura grega, eidos ou idea, que se
impõe originariamente ao entendimento de que uma coisa tem uma fisionomia, que
pode deixar-se ver, que “está presente no aparecimento que faz de sua essencialização”,
determinações do Ser que se fundam e se mantêm reunidas através da experiência
grega denominada ousia ou parousia, que, escapando à tradução que a assinala
como “substância”, converge em alemão para a palavra An-wesen, que “significa
cortiço (Hofgut), uma propriedade fechada em si mesma de uma fazenda (Bauerngut)”,
sentido que ousia ainda no tempo de Aristóteles carrega simultaneamente com o
significado filosófico da palavra.
“Algo se apresenta. Consiste em si mesmo e assim se propõe. É” [HEIDEGGER,
1999, p. 89, grifo do autor]. Se “Ser” corresponde a esse estado de apresentação e
presença [Anwesenheit], segundo a concepção grega, a sua filosofia não retorna
mais a esse fundamento que se impõe como “aquilo que encobre e protege”, deten-
do-se na “superfície do presente na presença”, procurando considerá-lo nas determi-
nações mencionadas.
À investigação da interpretação grega do Ser se impõe a explicação da pala-
vra Metafísica, que não acena senão para “a percepção do Ser, como physis”,
segundo Heidegger, que propõe o afastamento do conceito posterior de “natu-
reza” à medida que
physis significa o surgir emergente, que brota. O desabrochar e desprender-se que
em si mesmo permanece. A partir de uma unidade originária se incluem e manifes-
tam nesse vigor repouso e movimento. É a presença predominante, ainda não domi-
nada pelo pensamento. Nesse vigor (Walten) o presente se apresenta como ente. A
vigência de tal vigor só se instaura a partir do ocultamento. Isso significa para os
gregos: a aletheia (o des-ocultamento) se processa e acontece, quando o vigor se
conquista a si mesmo como um mundo! Só através do mundo o ente faz ente.
[HEIDEGGER, 1999, p. 89, grifos do autor].
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 85
“Dis-puta que vigora e impera antes de tudo que é divino e humano”, eis o
sentido de polemos, que emerge do texto de Heráclito, guardando relação com um
embate que, escapando ao horizonte de uma guerra de caráter humano, se impõe
como aquilo que faz com que o presente se des-dobre originariamente em contras-
tes, possibilitando ocupar posição, condição e hierarquia na presença, em cuja dis-
posição vácuos, distâncias e junturas se manifestam, engendrando mundo, não se-
parando nem destruindo a unidade, antes instituindo-a, sendo princípio unificante
[Logos]. “Polemos e logos são o mesmo” [HEIDEGGER, 1999, p. 90, grifos do autor].
Combate originário, o embate, suportado pelos criadores, projeta e desenvolve o
in-audito, não apenas deixando surgir mas também protegendo e conservando o
ente em sua consistência, à medida que só através dele “o ente vem a ser, como tal,
como ente”, constituindo esse vir-a-ser do mundo [Weltwerden] a História, configu-
rando a sua extinção [a saber, do embate] o retraimento do mundo, não o desapare-
cimento do ente, que, não se afirmando, torna-se um achado, acenando o perfeito
[das Vollendete] para o que está pronto, à disposição, escapando, pois, ao que se
estabelece dentro de limites, ao que alcança a plenitude de sua forma, convergindo,
em suma, para o objetivamente dado, pondo e dispondo o homem, nesta perspecti-
va, do disponível.
Se o ente se converte em objeto tanto para a contemplação [aspecto e imagem]
como para a ação produtiva [produto e cálculo], a physis, que instaura mundo origi-
nariamente, decai e degrada-se em modelo de imitação e cópia, transformando-se a
natureza em uma esfera distinta da arte e de tudo que se pode produzir e planificar,
tornando-se o aparecer [no sentido da epifania de um mundo] visibilidade ostentável
de coisas objetivamente dadas, adquirindo a visão, convertida em simples exame, um
aspecto que se detém no ótico, comprometendo a perspicácia originária que “pers-
crutava no vigor imperante o projeto e assim perscrutando ex-punha a obra”
[HEIDEGGER, 1999, p. 90].
Tendo se tornado “objeto” de uma atividade sem fim e rica de variações, razão
pela qual mantém ainda uma aparência de constância, o ente continua sendo, em-
bora dele o Ser haja se retirado, tornando-se os criadores, nessa perspectiva, “curio-
sidades marginais”, transferindo-se o verdadeiro embate para a atividade do homem
dentro do positivamente dado, característica do início da decadência.
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...86
O ente e o Ser [Da distinção essencial]
Se “Ser”, segundo a concepção grega, significa a consistência [Staendigkeit] –
tanto na leitura de “o estar em si mesmo, enquanto surgindo de si mesmo [physis]”,
como na acepção de “o perdurar constante [permanente, como tal (ousia)]” –, não-
ser acena para “desistir, sair dessa consistência emergente que surge”, guardando
relação com o sentido de existência e existir [existasthai], cuja designação atual, en-
volvendo o “ser”, demonstra a alienação diante do Ser, segundo a investigação de
Heidegger, que detendo-se no significado de ptosis e egklisis, que não se impõem
senão como cair, inclinar-se, convergindo, em suma, para “sair da consistência, do
estar erguido em si mesmo, exprimindo um desvio de tal estado”, trazendo a signifi-
cação de ambas a pressuposição da representação de “um estado em pé, erecto”,
alcançando relevância o seu emprego na reflexão sobre a linguagem à medida que a
concepção desta emerge como “algo que é”, correspondendo a sua compreensão do
Ser, perfazendo o ente o que, como tal, se apresenta, aparece, o consistente, enfim,
que se dispõe prevalentemente à visão [HEIDEGGER, 1999, p. 91].
À variação que se impõe como capaz de fazer aparecer simultaneamente pessoa,
número, gênero, modo, que traz como fundamento o fato de a palavra ser palavra
[enquanto faz aparecer (deloun)], designa-se egklisis paremphatikos, caracterizan-
do-se a forma verbal que demonstra uma deficiência neste sentido [a saber, de fazer
aparecer significações] como egklisis a-paremphatikos, título negativo que guarda
correspondência com o nome latino modus infinitivus, cuja tradução torna
determinante a representação meramente formal de limitação, convergindo para o
desaparecimento do momento originariamente grego, “que se refere ao aspecto e
ao pôr-em-evidência daquilo que está em si mesmo em pé e se inclina” [HEIDEGGER,
1999, p. 92].
Caracterizando-se como uma forma verbal que separa o que significa de toda
relação significativa determinada, o infinitivo, segundo a concepção latina, prescinde
[abstrai] de todas as referências particulares, apresentando, nessa abstração, somen-
te o que simplesmente se concebe com a palavra em si, tornando-se para a gramática
atual “o conceito verbal abstrato”, emergindo, de acordo com a perspectiva grega,
como um modus verbi especial, uma egklisis, faculdade pela qual a palavra, que está
em pé, perde o equilíbrio e se inclina para o lado, não sendo apresentado o que se
designa como realmente dado, mas apenas como possível, ora fazendo comparecer,
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 87
deixando também entender e ver outra coisa, convergindo, nessa perspectiva, para a
caracterização da expressão egklisis paremphatikos, cuja qualificação [paremphaino]
assinala a atitude fundamental dos gregos diante do ente, a saber, como o consisten-
te, termo utilizado por Platão em um contexto que acena para a investigação da
essencialização do devir [vir a ser], que carrega, em suma, três distinções:
1. to gignomenon, oque devém; 2. to en o gignetai, aquilo em que devém, isto é, o
meio em que se desenvolve o devir; 3. to hothen aphonoioumenon, aquilo do qual o
que devém retira o molde da adequação. Pois tudo que devém e vem a ser alguma
coisa, toma antecipadamente por modelo de seu devir o que vem-a-ser [HEIDEGGER,
1999, p. 94, grifos do autor].
Detendo-se na investigação do significado de paremphaino, Heidegger se inclina
sobre o item 2 [to en o gignetai], esclarecendo que “aquilo em que uma coisa devém”
não é senão o “espaço”, para cuja designação, não por acaso, não há nenhuma
palavra grega possível, tendo em vista que a experiência que envolve a “espacialidade”
não guarda relação com a extensio mas sim com o lugar [topos], como chora, que
escapa ao sentido de lugar ou espaço, assinalando “o que é tomado e ocupado pelo
que está em si mesmo”, pertencendo o lugar, nessa perspectiva, à própria coisa em si
mesma, à medida que dentre as diversas coisas cada qual tem seu lugar próprio.
Se no âmbito desse “espaço” caracterizado pelo lugar o que devém se põe, é
retirado e extraído, tal possibilidade somente se impõe se o mesmo se expõe destitu-
ído de qualquer aspecto que pudesse assumir de outra parte, tendo em vista que se
guardasse similaridade com uma das modalidades de aspecto com as quais dialoga
não haveria possibilidade quanto à realização perfeita do modelo, à medida que
recebe formas de essência caracterizadas pela oposição e diversidade. Conclusão:
“Aquilo em que as coisas que devêm são postas não pode oferecer um aspecto e um
viso próprio” [HEIDEGGER, 1999, p. 94].
Se a referência a Platão [Timeu] esclarece a “compertinência” [significando “o
estado de duas ou mais coisas pertencerem em conjunto uma à outra”] envolvendo
paremphaino e on [comparecer e ser] como consistência, objetiva Heidegger tam-
bém através dela pôr em relevo a questão da interpretação do ser como idea, cujo
horizonte prepara a transformação da essencialização do lugar [topos] e da chora no
espaço determinado pela extensão. “Chora não poderia significar: o que se aparta de
todo particular, o que se desvia para uma parte, a fim de precisamente desse modo
admitir outra coisa e lhe dar lugar?” [HEIDEGGER, 1999, p. 94]. arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...88
Forma designativa do verbo [em alemão], o infinitivo traz uma deficiência, uma
falha, em sua forma verbal e em seu modo de significar, não fazendo aparecer o que
o verbo manifesta de outras maneiras, emergindo também como um resultado pos-
terior na ordem sequencial histórica das formas verbais da linguagem, conforme o
assinala a investigação envolvendo a palavra grega “ser”, einai, no dialeto ático,
enai, no arcádico, emmenai, no lésbico, emen, no dórico, esse, em latim, ezum, no
osco, erom, no úmbrio, conforme esclarece Heidegger, que assinala que enquanto a
egklisis aparemphatikos ainda carregava as suas particularidades dialetais, dentre as
quais oscilava, os modi finiti haviam alcançado consolidação, tornando-se patrimônio
comum, circunstância que se impõe como um indício de que o infinito guarda um
valor proeminente no conjunto da linguagem, no arcabouço da qual a questão que
envolve a permanência das formas do infinitivo acena ou para o fato de representa-
rem uma forma verbal tardia e abstrata, ou em virtude de estarem à base de todas as
variações do verbo, transmitindo, em suma, sob a perspectiva gramatical, o mínimo
da significação de um verbo.
Considerando o modo habitual que envolve a referência do falar de “ser”,
Heidegger esclarece que “o ser” resulta de uma substantivação do infinito, tendo em
vista a anteposição do artigo [to einai], que originariamente se impõe como um
pronome demonstrativo, dizendo que o que assim se mostra, está e é por si mesmo,
à medida que as denominações demonstrativas e indicativas cumprem na linguagem
uma função proeminente, acenando para a indeterminação a forma que as omite,
encerrando o sentido de fixar-se o vazio, subjacente ao infinitivo, a transformação
linguística deste em um substantivo verbal.
O substantivo “ser” supõe que aquilo que dessa maneira se diz “seja” por si mesmo. “O
ser” torna-se agora alguma coisa que “é”, quando manifestamente só o ente é, não o
ser. Todavia fosse o ser, em si mesmo, algo, quando o ser-ente se nos oferece nos entes,
mesmo quando não que é no ente, então deveríamos encontrá-lo, principalmente quando
o ser-ente se nos oferece nos entes, mesmo quando não lhes tenhamos apreendido com
precisão as propriedades específicas [HEIDEGGER, 1999, p. 96].
À necessidade de se evitar o extremo vazio da forma de um substantivo verbal,
tanto quanto a abstração do infinitivo “ser”, Heidegger, sob a perspectiva que envol-
ve uma relação com o “ser” através da linguagem, impõe, detendo-se na leitura das
suas formas verbais determinadas [como “eu sou”, por exemplo], uma conclusão
que assinala que tal investigação não esclarece o seu sentido, mas produz novas
dificuldades, a saber:
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 89
Comparemos o infinitivo “dizer” e a sua forma fundamental “eu digo” com o infinitivo
“ser” e sua forma fundamental “eu sou”. “Ser” (sein) e “sou” (bin) mostram-se como
vocábulos de radical diferente. Dessas diferem, por sua vez, as formas do passado
“era” e “sido” (war e gewesen). É a questão sobre as diferentes raízes da palavra “ser”
[HEIDEGGER, 1999, p. 97].
Investigando as raízes que se impõem às variações do verbo “ser”, Heidegger
descobre “es” como a mais antiga e própria, “em sânscrito asus, a vida, o vivente,
que por si mesmo está em si mesmo, o que tem consistência própria”, enquanto que
a outra é bhü, bheu, também indo-germânica, à qual pertence “o grego phyo, surgir,
vigorar, imperar, chegar, por si mesmo, a pôr-se, a estar de pé e permanecer nessa
posição”, cuja interpretação, no caso de bhü, emerge de acordo com a concepção
superficial de physis e phyein como natureza e crescer, revelando-se este último, sob
o horizonte que dialoga com o princípio da filosofia grega, na acepção de surgir, que,
por sua vez, guarda correspondência com aparecer e apresentar-se [estar presente],
tornando-se a physis, nessa perspectiva, “o que surge para a luz, phyein, luzir, brilhar
e, por conseguinte, aparecer” [HEIDEGGER, 1999, p. 98, grifos do autor].
Emergindo apenas no âmbito de flexão do verbo germânico “sein” [ser] – “wes,
sânscrito: vesami, germano: wesan = habitar, permanecer, deter-se” –, a terceira raiz
engendra [no alemão] “gewesen”, como ainda wesen, por exemplo, cujo substanti-
vo não significa originariamente “o que é”, a quidditas, mas o perdurar, enquanto
presente, “a presença e ausência”, como esclarece Heidegger, que através da investi-
gação em referência alcança três significações, a saber, viver, surgir, permanecer,
estabelecidas pela filologia, em cujo horizonte desaparecem, conservando-se somen-
te um sentido abstrato, “ser”, que envolve questões como a concordância das três
raízes indicadas, a saga do Ser [sage, palavra alemã derivada do verbo sagen, “dizer”,
que a leitura heideggeriana relaciona ao “dizer originário do Ser, que constitui o
espaço em que a linguagem se essencializa”], o fundamento do dizer do Ser através
das suas variações linguísticas, a relação abrangendo a compreensão do Ser e o dizer
do Ser, a distinção entre Ser e ente na saga do Ser.
“O que há com o Ser?” Se o próprio fundamento da metafísica carrega a referida
questão – “Por que há simplesmente o ente e não antes o nada?”, o entendimento
das palavras “ser” e “o ser” se impõe como a apreensão do inapreensível, embora
seja inegável a constatação quanto ao toque dos entes, dos quais, como entes que
somos, dependemos, segundo Heidegger, que assinala que o valor do “Ser”, nesta
perspectiva, se esgota como um som verbal, um termo gasto, restando a análise do arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...90
comportamento da palavra, “o ser”, que emerge das fronteiras da gramática e da
etimologia:
1. A consideração gramatical da morfologia da palavra deu o seguinte resultado: os
modos determinados da significação da palavra já não chegam a ter validez no infinitivo
mas desaparecem. A substantivação do infinito fixa e objetiva completamente esse
desaparecimento. A palavra se torna um nome que designa algo indeterminado.
2. A consideração etimológica do sentido da palavra chegou a estabelecer: o que hoje
e desde há muito evocamos com o nome “ser”, é, segundo o significado, uma fusão
niveladora de três significações de raízes diversas. Em sentido próprio e de modo
determinante, nenhuma delas prevalece no significado do nome. Essa fusão e aquele
desaparecimento convergem entre si. Na conjugação desses dois processos encontra-
mos, assim, uma explicação suficiente para o fato, donde partimos, i. é para o fato de
ser a palavra “ser” vazia e de significação flutuante [HEIDEGGER, 1999, pp. 100-101].
Da questão do Ser [Da procura do sentido do Ser à verdadecomo desvelamento]
“Por que afinal ente e não antes Nada?” É nessa contextualidade perspectivacional,
pois, que a reflexão heideggeriana se desenvolve, referencializada pela questão “Que
é metafísica?”, objeto [que vem do grego tá metà physiká], ao qual se impõe a “ca-
racterização da interrogação que vai metá – trans, ‘além’ do ente enquanto tal”
[HEIDEGGER, 1996, p. 61, grifos do autor], circunscrevendo-se, como primeira ins-
tância da filosofia, a representar o ente enquanto ente [sob o ponto de vista deste],
ignorando a própria luz que possibilita tal visão, o Ser mesmo, afinal, que se manifes-
tando em um desvelamento [a-létheia], “não é pensado em sua essência desveladora,
isto é, em sua verdade” [HEIDEGGER, 1996, p. 77].
Na etimologia de aletheia, primeiro termo que na Grécia significava verdade (não-
velamento: a, privativo; lanthanô, dissimular, esquecer; lethé, esquecimento), Heidegger
entrevê a acepção primordial do verdadeiro sentido da verdade: a ocultação e a dissi-
mulação são-lhe constitutivos. Os pensadores pré-socráticos falavam da verdade como
se se tratasse do desvelamento de um Ser obscuro, que ora se revela ora se oculta. A
filosofia despontou no seio deste pensamento de uma verdade clara-escura que apon-
tava o enigma do Ser. Mas não deixou de se voltar para uma concepção da verdade
que cada vez mais desconsiderava o mistério, confundindo o Ser com a realidade
prosaica dos entes [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 186, grifos do autor].
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 91
Misteriosa origem da presença de toda realidade que existe empiricamente [o
ente, pois], o Ser, reduzido pelo pensamento filosófico a um ente superior [Deus, o
Absoluto], em contraposição à conceituação da sua forma degradada, sucumbe ao
alheamento, ao fenômeno da anulação da diferença radical em relação a este, pro-
cesso engendrado pelo legado platônico-aristotélico, que atribui à construção
identitária da filosofia um sentido que converge, em suma, para a noção de um saber
que envolve o Ser, o ente e as suas relações. Transformando “a dádiva misteriosa da
presença do Ser em que os entes aparecem em essência, no ‘eidos’ dos entes, aquilo
que neles há a ver, aquilo que os torna claros e perceptíveis” [BARAQUIN; LAFFITTE,
2004, p. 186, grifos do autor], Platão, substituindo o ângulo que remete ao horizon-
te de “O que é o Ser?” pela questão do ente na sua totalidade, instaura uma leitura
interpretativa que procura explicar o ente pelo ente, remontando, de causa em cau-
sa, a um ente primeiro, princípio único de explicação, que, afinal, impele a metafísica
para os atalhos da onto-teologia.
Pretendendo a recuperação da integridade e da compreensão do Ser – o seu
sentido, pois –, Heidegger propõe “o fim da filosofia enquanto metafísica”, não como
a cessação de um processo, sentido negativo, mas como “acabamento”, tendo em
vista a convergência do significado dos termos em questão, a saber, “fim” [ende] e
“lugar” [ort], que torna equivalentes as expressões “de um fim a outro” e “de um
lugar a outro”. “Fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supre-
mas” [HEIDEGGER, 1996, p. 96], conclui o filósofo alemão que, longe de rejeitar a
metafísica, defende o retorno ao seu fundamento, condição sine qua non para a sua
superação que, em suma, assinala a possibilidade de o pensar se voltar para o pró-
prio Ser, detendo-se nele, afinal.
[…] A verdade do ser pode chamar-se, por isso, o chão no qual a metafísica, como
raiz da árvore da filosofia se apoia e do qual retira seu alimento. Pelo fato de a metafísica
interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente e não se volta para o
ser enquanto ser. Como raiz da árvore, ela envia todas as seivas e forças para o tronco
e os ramos. A raiz se espalha pelo solo para que a árvore dele surgida possa crescer e
abandoná-lo. A árvore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raízes da metafísica.
O solo é, sem dúvida, o elemento no qual a raiz da árvore se desenvolve, mas o
crescimento da árvore jamais será capaz de assimilar em si de tal maneira o chão de
suas raízes que desapareça como algo arbóreo na árvore. Pelo contrário, as raízes se
perdem no solo até as últimas radículas. O chão é chão para a raiz; dentro dele ela se
esquece em favor da árvore. Também a raiz ainda pertence à árvore, mesmo que a seu
modo se entregue ao elemento do solo. Ela dissipa seu elemento e a si mesma pela arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...92
árvore. Como raiz, ela não se volta para o solo; ao menos não de modo tal como se
fosse sua essência desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento. Provavel-
mente, também o solo não é tal elemento sem que o perpasse a raiz [HEIDEGGER,
1996, p. 78]
Tendo em vista que no percurso historial, de Anaximandro a Nietzsche, designa-
do como o “último metafísico” [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 187], a verdade do
Ser manteve-se intocada pela metafísica, de acordo com a perspectiva heideggeriana,
a possibilidade quanto ao regresso do pensamento ao seu fundamento [da metafísica,
no caso], implica uma “metamorfose”, cuja transformação supõe orbitar entre a es-
sência humana e a tá metà physiká. Para tanto, Heidegger empreende uma investiga-
ção envolvendo o “princípio da identidade”, de Parmênides, o teor da qual, referente
a uma das suas proposições, assim transcreve: “O mesmo, pois, tanto é apreender
(pensar) como também ser” [HEIDEGGER, 1996, p. 175].
Usando a fórmula “A=A”, à qual tal princípio remete, Heidegger prova que o
“princípio da identidade” não traz consigo a expressão da igualdade, como no caso
de “A” e “A” [que pressupõe que um “A” se assemelha a um outro], visto que “idênti-
co” [em latim, idem] designa-se em grego tó autó, que significa “o mesmo”, cuja
repetição redunda em uma tautologia. “Para que algo possa ser o mesmo, basta
cada vez um. Não é preciso dois como na igualdade”, justifica-se Heidegger, que
argumenta: “A fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A não diz
apenas: cada A é ele mesmo o mesmo; ela diz antes: consigo mesmo é cada A ele
mesmo o mesmo” [HEIDEGGER, 1996, pp. 173-174].
Descobrindo, em cada identidade, a relação “com”, que traz a ideia de media-
ção, ligação, síntese, “a união numa unidade”, em suma, e que indica a exclusão da
monótona uniformidade [tanto quanto do caráter abstrato que a sua construção
carregaria sem tal pressuposto], Heidegger conclui: “Pensar e ser têm seu lugar no
mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade” [HEIDEGGER, 1996, p. 175].
“Comum-pertencer”. Eis o sentido da mesmidade da proposição parmenídica.
Se até Descartes, inclusive, o sujeito corresponde, segundo a leitura heideggeriana,
ao sentido imposto ao ser pela concepção grega [ousia e hypokeimenon], a metafísica
moderna emerge através da ruptura cartesiana que transforma em seu único sujeito
[subjectum, que remete à subjetividade, indicando “o que vem antes e subjaz”] o eu
humano [i-ness, eu-dade], o homem propriamente, cuja construção, pressupondo a
procura do fundamento da verdade, em detrimento da relação entre esta e o ser
[como ente] até então mantida, instaura, através do “método” a determinação da
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 93
sua essência, a saber, a “certeza de si”, que peregrinando nas fronteiras da represen-
tação e da linguagem, alcança a sua arquetipificação no superhomem nietzschiano
[SOBRINHO, 2003, pp. 35-36].
Heidegger, porém, conclui, a partir dos pressupostos da leitura do “princípio da
identidade”, contrapondo-se ao projeto cartesiano – de cuja armadilha, pretendendo
escapar, Nietzsche torna-se refém –, que, como existência, a essência do homem não
é uma substância real, se por esta entende-se “aquilo que subsiste por si” [“o que jaz
debaixo”, hipokéimenos, em grego, o “substante”], por aquela “o que se constitui
fora” [ex, “fora”]. Mas por existir, exposto na presença do que se apresenta, o ho-
mem se “essencializa”, pois, como Da-sein, é “o ser que está aí para si próprio, o ente
singular que tem como modo de ser não o modo das coisas, mas a possibilidade”
[BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 185].
A partir do “ser-aí”, Heidegger demonstra a especificidade do ser do homem, que é a
existência. Se o homem é lançado no mundo de maneira passiva, pode tomar a inici-
ativa de descobrir o sentido da existência e orientar suas ações em direções as mais
diversas. A isso se chama transcendência. No processo, o homem descobre a
temporalidade, pois, ao tentar compreender o seu ser, dá sentido ao passado e proje-
ta o futuro. Ao superar a facticidade, atinge um estágio superior, que é a Existenz, a
pura existência do Dasein [ARANHA; MARTINS, 1995, p. 305, grifos do autor].
Compreendendo-se “a partir da sua possibilidade de ser ou de não ser ele próprio”,
considerando a relação do Ser com o homem [e não a relação deste com o Ser] como
prerrogativa [que o destina à existência], o “‘ser-aí’ implica uma pressuposição de verda-
de, na medida em que é o ‘aí’ numa experiência de manifestação, um desvelamento das
coisas e, através delas, do Ser” [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, pp. 185-186].
Se à questão do Ser se impõe a análise existencial do homem, não é senão em
virtude deste emergir como ser-aí [Da-sein], acenando com uma relação com o Ser
que converge para caracterizar a sua existência como ôntico-ontológica, à medida
que, guardando referência com os entes em geral carrega a capacidade de se inclinar
para as fronteiras do Ser, tendo em vista que, inserido neste, se dispõe para desvelá-
lo, tornando-se o único que detém condições de compreendê-lo e interpretá-lo sob o
horizonte que, encerrando revelação e ocultamento, o envolve.
[...] O caminho que leva ao ser – pensa Heidegger – passa pelo homem, na medida em
que este está sozinho para interrogar-se sobre si mesmo, colocar-se em questão e
refletir sobre seu próprio ser. O filósofo deve, portanto, partir da existência humana
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...94
(na linguagem heideggeriana, dasein: “ser-aí”), tal como se dá imediatamente à cons-
ciência, a fim de elevar-se até o desvelamento do ser em si mesmo, último objetivo de
toda reflexão filosófica [...] [CHAUÍ, In: HEIDEGGER, 1996, p. 7, grifo do autor].
Recorrendo ao pensamento hegeliano, que defende que “o verdadeiro (da Filo-
sofia) não deve ser concebido e expresso como substância, mas do mesmo modo
como sujeito”, Heidegger assinala que a presença do ser manifesta-se, alcançando a
plenitude, quando se faz para si própria presente na “ideia absoluta”, embora o
pensamento cartesiano haja instaurado a concepção que lê idea como perceptio,
superestimando o movimento do pensamento em detrimento da “questão mesma”,
da “questão da filosofia que como metafísica é o ser do ente, sua presença, na forma
da substancialidade e subjetividade” [HEIDEGGER, 1996, p. 100].
Primeiro a refletir sobre o ser do ente, Parmênides, através do seu poema filosó-
fico, deixa rastros de compreensão e atalhos de possibilidade para a relação do ho-
mem com a verdade na superação dos limites [tá metà physiká]:
“tu, porém, deves aprender tudo: tanto o coração inconcusso do desvelamento em
sua esfericidade perfeita como a opinião dos mortais, a que falta a confiança no
desvelado”.
Aqui é nomeada a Alétheia, o desvelamento. Ela é chamada de perfeitamente esféri-
ca, porque girando na pura circularidade do círculo, na qual, em cada ponto, começo
e fim coincidem. Desta rotação, fica excluída toda a possibilidade de desvio, de defor-
mação e de ocultação. O homem que medita deve experimentar o coração inconcusso
do desvelamento? Refere-se a este mesmo no que tem de mais próprio, refere-se ao
lugar do silêncio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita
desvelamento [HEIDEGGER, 1996, p. 104, grifo do autor].
A-létheia. Se a perspectiva de revelação da verdade torna-se, sob a influência do
projeto cartesiano, que propõe o domínio técnico-científico do real, o desvelamento
do ente que, em síntese, traz o significado de “originar um ‘ser’ que mais não é do
que a natureza dada ao saber e à ação, um simples reservatório de energia, de forças
calculáveis e aproveitáveis” [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 186], Heidegger desco-
bre o seu sentido no termo em questão, na constitutividade do qual dialoga a ocultação
e a dissimulação, e sob cujo horizonte acena com um pensamento irredutível às
compartimentalidades antagonizantes da racionalidade e da irracionalidade até en-
tão determinantes, que agoniza entre o esgotamento da metafísica [e o aborto da
problemática filosófica] e a gestação cientificista da prometeica civilização da razão
instrumental, tendo em vista que
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 95
[...] O ser do qual se fala, é, até certo ponto, a própria realidade; não está oculto atrás
dos entes, sendo os próprios entes enquanto presentes. Essa presença transcorreria
dentro da história e teria um destino, que se confundiria com a história e o destino do
pensar essencial, enquanto pensamento e linguagem “comemorativos”. O pensar
essencial seria o pensar que “joga” com o ser e se reflete nele, fazendo-o, ao mesmo
tempo, surgir [CHAUÍ, in: HEIDEGGER, 1996, p. 10].
Quem sabe não será neste pensamento que o homem encontrará o horizonte
que envolve a “não-indiferença” que caracteriza a vida em si, tanto quanto o sentido
heideggeriano que não se esgota na angústia, situação afetiva do ser diante do nada,
que “surge da tensão entre o que o homem é e aquilo que virá a ser, como dono do
seu próprio destino” [ARANHA; MARTINS, 1995, p. 305], mas que apela ao cuidado
[antecipação de si próprio], demandando, pois, uma das duas possibilidades, ou a
inautenticidade ou a autenticidade, segundo o sentido que a sua ação carrega.
[…] O homem inautêntico é o que se degrada vivendo de acordo com verdades e
normas dadas; a despersonalização o faz mergulhar no anonimato, que anula
qualquer originalidade. É o que Heidegger chama “mundo do man” (em alemão,
man significa “se”) e que designa a impessoalidade: come-se, bebe-se, vive-se,
como todos comem, bebem, vivem. Ao contrário, o homem autêntico é aquele
que se projeta no tempo, sempre em direção ao futuro [ARANHA; MARTINS, 1995,
p. 305, grifos do autor].
Quem sabe não recupera a condição sine qua non da sua existência, o seu modus
essendi, enfim, que só a metafísica possibilita, a saber, “falar assim como o Lógos
fala”, ou seja, correspondê-lo, em cujo realizar se impõe em relação ao sophón um
acordo que, sinonimizando harmonía, “se revela na recíproca integração de dois
seres, nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com
o outro” – harmonía que dialoga com o elemento específico de philein do amor
[segundo Heráclito], à medida que um anèr philósophos [ao qual remonta a palavra
grega philosophía], escapando ao significado que acena para “um homem ‘filosófi-
co’”, guarda o sentido que converge para hòs philei tò sophón: philein, que ama a
sophón [HEIDEGGER, 1996, p. 32].
O philein tò sophón, aquele acordo com o sophón de que falamos acima, a harmonía,
transformou-se em órecsis, num aspirar pelo sophón. O sophón – o ente no ser – é
agora propriamente procurado. Pelo fato de o philein não ser mais um acordo origi-
nário com o sophón, mas um singular aspirar pelo sophón, o philein tò sophón torna-
se “philosophía”. Esta aspiração é determinada pelo Éros [HEIDEGGER, 1996, p. 32,
grifos do autor]. arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...96
Tender para o sophón, despertando nos outros homens, através de sua própria
aspiração, o anseio por ele, mantendo-o aceso, eis o que se impõe segundo o hori-
zonte que intersecciona Heráclito e Parmênides, os quais, conforme a fala de Heidegger,
“ainda não eram ‘filósofos’”, tendo em vista que permanecendo sob uma outra di-
mensão do pensamento, alcançam, sim, as fronteiras da condição de “os maiores
pensadores”, no sentido de que se situavam no acordo com o Lógos [HEIDEGGER,
1996, p. 32-33].
[…] Para retomar a questão do Ser, era preciso romper com a língua do ente. Não
com o intuito de inventar uma nova linguagem, mas falar e ouvir com mais verdade a
nossa. Pois a linguagem é testemunha, por excelência, da pertença do homem ao Ser,
não no seu papel de instrumento de domínio, mas como lugar de escuta e resposta,
em que se opera uma dádiva, uma passagem: a palavra não é representação da coisa,
mas antes aquilo que lhe atribui ser e presença [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 188].
Ao homem, na acepção de “ser-aí”, como um “ser-no-mundo”, se impõe uma
condição que, segundo a leitura comparativa de Heidegger, remete a um vigia ou a
um pastor, cujo lugar não é senão na porta do Ser, guardando raízes a sua relação
com aquela que emerge das fronteiras que envolvem a própria língua, visto que se
mantém circunscrito ao âmbito do jogo original da linguagem, que escapa, nessa
perspectiva, ao caráter de instrumento, acenando com a possibilidade de revelação,
conforme o demonstra especificamente o tratamento dispensado pelos pensadores
e poetas, tendo em vista que pensar guarda correspondência com a linguagem da
metáfora, que se desenvolve na dimensão do “claro-escuro”, à medida que se torna
necessário o apoio dos entes para a fala, que desde sempre em seu exercício não se
esgota neles, mas carrega a pretensão de transpô-los, alcançando o que não é um
ente [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 188].
Aspectos conclusivos
O pensamento, dócil à voz do ser, procura encontrar-lhe a palavra através da qual a
verdade do ser chegue à linguagem. Apenas quando a linguagem do homem historial
emana da palavra, está ela inserida no destino que lhe foi traçado. Atingido, porém,
este equilíbrio em seu destino, então lhe acena a garantia da voz silenciosa de ocultas
fontes. O pensamento do ser protege a palavra e cumpre nesta solicitude seu destino.
Este é o cuidado pelo uso da linguagem. O dizer do pensamento vem do silêncio
longamente guardado e da cuidadosa clarificação do âmbito nele aberto. De igual
origem é o nomear do poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto é
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 97
distinto, e o poetar e o pensar terem a mais pura igualdade no cuidado da palavra,
estão ambos, ao mesmo tempo, maximamente separados em sua essência. O pensa-
dor diz o ser. O poeta nomeia o sagrado. Não podemos analisar aqui, sem dúvida,
como, pensado a partir do acontecimento (Wesen) do ser, o poetar e o reconhecer e
o pensar estão referidos um ao outro e ao mesmo tempo separados. Provavelmente o
reconhecer e o poetar se originam, ainda que de maneira diversa, do pensamento
originário que utilizam, sem, contudo, poderem ser, para si mesmos, um pensamento
[HEIDEGGER, 1996, p. 72].
Se o pensamento originário emerge como o eco do ser, sob o qual o aconteci-
mento que envolve o que o ente é se dispõe, acenando com a resposta humana à
palavra da sua voz, convergindo, pois, para o horizonte da linguagem, o que se
impõe não é senão que não escapa ao fundamento essencial do homem historial um
pensar cuja condição, se sobrepondo à esfera de compreensão da “lógica”, guarde
raízes nas fronteiras da verdade do ser, auxiliando o ser da verdade, através da sim-
ples in-sistência no ser-aí, no tocante a possibilidade de encontrar o seu lugar na
humanidade historial [HEIDEGGER, 1996, p. 72], tendo em vista que
[...] O ser “habita” antes a linguagem poética e criadora, na qual se pode “comemorá-
lo”, isto é, lembrá-lo conjuntamente, a fim de não se cair no esquecimento. Elevar-se
até o ser não seria, portanto, conhecê-lo pela análise metafísica, nem explicá-lo ou
interpretá-lo através da linguagem científica. Seria “habitar” nele, através da poesia.
Por outro lado, o ser é – para Heidegger – a “casa” que o homem pode habitar, é a
“clareira” no meio de um bosque, cujos caminhos não levam a parte alguma. O ser
pode aparecer e pode ocultar-se, porém em caso algum é mera aparência: é presença
permanente, o horizonte luminoso, no qual todos os entes encontrariam sua verda-
de. Não é o conjunto dos entes, nem um ente especial, é o “habitar” de todos os
entes [CHAUÍ, In: HEIDEGGER, 1996, p. 10].
O “ser-aí” se impõe ao homem como uma necessidade de resposta que emerge
do próprio Ser e que coloca em questão toda a realidade, à medida que converge
para afetá-lo através da contingência, encaminhando-o para as fronteiras do desco-
nhecido, que não remete senão ao abismo da origem, tendo em vista que ao Dasein
cabe o reconhecimento da posição que ocupa como lançado para si pela dádiva do
Ser, que envolve uma riqueza escondida, um mistério inesgotável, gratuidade da
presença que acena com a medida de tudo, tornando-se o “esquecimento do Ser”,
nessa perspectiva, que se caracteriza como um desleixo humano, uma viagem interi-
or ao Ser, que encerra a história da razão ocidental, segundo a leitura heideggeriana,
que propõe uma meditação que se detenha na forma da manifestação do referido
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...98
fenômeno no âmbito da metafísica, refazendo o percurso do desvio do seu sentido
[BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 187].
Nessa perspectiva, pois, ao pensamento se impõe a necessidade de escapar à ativi-
dade que acena com a fundamentação, convergindo para um horizonte que envolve
uma abordagem meditativa, interiorizante e rememorativa, que possibilita a emergên-
cia espontânea do essencial, à medida que se mantém oculto, guardando-se como
pobre, fragmentário, tal qual a errância e o jogo sem cálculo e destituído de objetivo da
dádiva do Ser, tendo em vista a demanda quanto a renúncia no que concerne a sobera-
nia humana diante de uma determinada concepção do humanismo que torna o homem
autoconstituinte e autosuficiente [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 187].
O ser humano destroi o seu vínculo com o Ser ao tornar-se o sujeito soberano, a
consciência clara, que define a sua relação com a verdade pela certeza das suas repre-
sentações. Perde também o seu ser-no-mundo, reduzindo o mundo a uma imagem
ou a uma representação matemática [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 187].
Acenando com a transposição das fronteiras do objetivismo da metafísica, ao
pensamento originário se impõe a possibilidade de retorno ao seu fundamento, pois
se daquele horizonte o próprio ser, confundido com o ente, escapa, a condição para
pensá-lo guarda raízes na transcendentalidade do “ser-aí”, que envolve a dimensão
que encerra o mistério da sua revelação, emergindo a questão do nada como rele-
vante através da leitura heideggeriana, sob a qual não corresponde a qualquer tipo
de niilismo ou pessimismo senão ao véu do ser, caracterizando-se como um nome
que o identifica, cuja manifestação permanece atrelada à angústia, que não expõe
algum estado psicológico ou sentimento mas um acontecer no “ser-aí” que converge
para a realização da experiência do ser como o nada e perfaz um horizonte que
encerra o homem como um ser-para-a-morte. “A máxima ‘situação-limite’, que é a
morte, ao aparecer no cotidiano possibilita ao homem o olhar crítico sobre sua exis-
tência” [ARANHA; MARTINS, 1995, p. 305].
A partir desse estado de angústia, abre-se para o homem, segundo Heidegger, uma
alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimensão mais profunda, isto
é, o ser, e retornar ao cotidiano; ou superar a própria angústia, manifestando seu
poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo [CHAUÍ, in: HEIDEGGER,
1996, p. 9].
Se a experiência da nulidade absoluta, no tocante à questão que acena com a sua
verdade e a sua compreensão, transpõe, em suma, as fronteiras do lógico do enten-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 77-100, jul./dez. 2011 99
dimento, da lógica dos entes, enfim, não tende a dialogar senão com uma perspec-
tiva que inter-relaciona poesia e filosofia, tendo em vista o valor atribuído à lingua-
gem segundo a concepção em questão, que defende o atalho especulativo-hermenêutico
contrapondo-se à tendência técnico-científica, que carrega a pretensão de estabelecer
um sistema de sinais que funcione como instrumento da ciência [encerrando em sua
circunscrição a totalidade do pensamento e da linguagem, inclusive da esfera filosófi-
ca], visto que se configura como o domínio que em seu interior possibilita a emergência
de qualquer espécie de pensamento e discurso, colocando em jogo o problema da
existência do homem e sua definição [STEIN, in: HEIDEGGER, 1996, p. 24], à medida que
“é a língua que fala e não o homem, e a relação do homem com a língua é a sua própria
relação com o Ser – profunda e velada” [BARAQUIN; LAFFITTE, 2004, p. 188], implican-
do que o homem somente possibilitará a manifestação do Ser quando ouvi-lo em sua
fala como um ente do qual se requer recebê-lo a partir das coisas que são, por tal
ente, trazidas para a sua circunscrição existencial, posto que longe de representá-las
a palavra se lhes atribui “ser e presença”.
Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdu-
ção à filosofia. São Paulo: Moderna, 1995.
BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. Dicionário de filósofos [Dictionnaire des
Philosophes]. Tradução de Pedro Elói Duarte. Coleção Lexis. Lisboa: Edições 70,
2004.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. Consultoria. pp. 5-13. In: HEIDEGGER, 1996,
p. 9.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas: Ernildo
Stein. Série: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural. 1996.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
MORENTE, Manuel García. Fundamentos de filosofia: Lições preliminares. Tradução e
prólogo de Guillermo de la Cruz Coronado. 3 ed. em português. São Paulo: Mestre
Jou, 1967.
arti
go
s
ROSA, Luiz Carlos Mariano da. Do mistério do ser...100
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Clássicos. 1. ed. São Paulo: Escala
Educacional, 2008.
SOBRINHO, Noéli Correia de Melo. “A interpretação de Heidegger a propósito da
crítica de Nietzsche ao sujeito cartesiano”. Comum, Rio de Janeiro – v. 7 - nº 20 - p. 35
a 59 - jan./jun. 2003. Disponível em <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/
comum20/pdf/a_interpretacao.pdf>. Acesso em 12/11/2008.
STEIN, Ernildo. Nota do tradutor. pp. 23-26. In: HEIDEGGER, M. Que é isto – A filoso-
fia? São Paulo: Abril, 1996.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 101-105, jul./dez. 2011 101
Eduardo M. Valandro
Uma projeção indiscriminada de nossos conceitos
usuais e máximas acerca do que vem a ser educação e
liberdade facilita-nos a compreensão dos termos como
também sua correlação, abstendo-nos da árdua tarefa
de pensar: “constantemente ver, ouvir, suspeitar e so-
nhar... coisas extraordinárias” (Nietzsche).
Com facilidade, no cotidiano, associamos educa-
ção com estudo acadêmico, ir à escola, o que a princí-
pio tem seus fundamentos. Porém, o que está deficien-
te é a nossa maneira de compreender estudo acadêmi-
co. De imediato o colocamos como sinônimo de esco-
la, e a esta associamos: graus de escolaridade, melho-
res colégios, bons mestres, máximo acúmulo de infor-
mação, tempo de duração de curso, tempo de forma-
ção ou ainda a interrogação: “para que tanto estudo”?
Essa compreensão de estudo, além de limitar a ca-
pacidade humana, é a terra fértil de onde brota a injus-
ta separação entre melhores e piores, inteligentes e “bur-
ros”, “formados” e analfabetos, capacitados e incapa-
citados, teoria e prática, alunos e professores, como
também possibilita manter o “status quo”.
No entanto, objeções sem conta podem ser levan-
tadas a partir dessa compreensão: Sabemos o que é o
arti
go
s
Educação e liberdade
VALANDRO, Eduardo M. Educação e liberdade102
homem em sua totalidade para podermos limitar cronologicamente sua educação?
Ou antes, o que é educação humana? É adestramento? Onde fica a riqueza da singu-
laridade de cada indivíduo? O que entendemos por formar? Não está por trás uma
ideia de fôrma, uniformização? Podemos limitar a educação dentro de um período
de anos? Educação é sinônimo de frequência escolar? Qual a situação de quem não
frequenta escola? Está fora do padrão? Sou mais inteligente do que o outro ou pos-
suo um saber “diferente”? O que os “bons” mestres transmitem é bom mesmo? É
bom para quê? Sacia ou estimula minha sede de saber? Ou minha plena aceitação
dos conteúdos é fruto da acomodação? E os melhores colégios, garantem a minha
educação? O estudo depende sempre dos bons mestres, do ambiente, sociedade,
família? Quem é o bom mestre?
Para questionarmos a compreensão usual que habita na mente da maioria acerca
do que vem a ser liberdade, partiremos do seguinte questionamento: Estudar é um
exercício da liberdade? Os simpatizantes de uma compreensão de liberdade como
sinônimo de escolha a partir de gostos pessoais em fazer isso ou aquilo, numa res-
posta a partir da sinceridade diriam: “ estudamos por necessidade”. Necessidade
aqui não como busca essencial e contínua da insaciável sede da verdade pela verda-
de, mas sim, colocada sob o peso da obrigação social, familiar, econômica, empregos
etc. Se perguntássemos: Por que não fazer dessa imposição circunstancial uma ma-
neira de viver e assumir a minha liberdade e realização, como também um “método”
de educação? É impossível, ouviríamos como resposta. Por quê? Porque com certeza
nossa compreensão de liberdade ainda paira no nível da escolha a partir de um gosto
pessoal em fazer isso e/ou aquilo. Porém, pode-se perguntar: quantos são os que não
vivem sob a imposição de uma situação? Em outras palavras: alguém teve a liberdade
de escolher família, ambiente, escola, ou morar aqui ou acolá, ser bonito ou feio, alto
ou baixo, capacitado ou não para tal função? Se explicamos a felicidade, a realização
sempre a partir de uma escolha, como então chegar à realização, quando na verdade
tudo é fruto da imposição de uma situação e não de uma escolha pessoal? O que
entendemos quando dizemos: o homem é livre para escolher? Mesmo em caso de
escolha, como ficará seu relacionamento com aquilo que não gosta, isto é, com o
não escolhido? Colocará tudo sob o seu padrão de gosto?
Em todos os tempos, a vida despreocupada da maioria dos homens parece de-
fender-se com êxito total contra as dúvidas, contra as suspeitas, contra as visões e
esperanças de que o que é pode ser diferente, ou que talvez não seja aquilo que
ferrenhamente defendemos. O duvidar, o suspeitar disso e/ou daquilo é a condição
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 101-105, jul./dez. 2011 103
sine qua non da possibilidade de crescimento. A dúvida nos livra do dogmatismo,
sobre o qual nos assentamos confortavelmente. Mesmo assim, procuramos reprimir
as dúvidas tão incômodas para a margem da vida. A afirmação de nossas máximas é
o sepultamento das dúvidas. É mais cômodo e prático não correr o risco.
Retomemos as dúvidas antes levantadas pelo questionar e a partir de um texto
de Nietzsche, procurando abrir-nos a uma visão nova acerca da educação e sua cor-
relação com a liberdade humana.
Assim falou Zaratustra:
Agora, prossigo sozinho, meus discípulos! E vós, também, agora, ide embora sozi-
nhos! Assim o quero.
Ligamos anteriormente educação com escola, e esta com acúmulo de dados,
tempo limitado para formação.... e liberdade com escolha pessoal para fazer isso e/
ou aquilo, a partir de um gosto, aptidão. Por estar muito em voga, essa compreensão
parece ser a ideal, única e indiscutível, pois é assim que a maioria vive e galga os
degraus do êxito social. Essa educação é agradável, pois tem meu “gosto” que sus-
tenta, como também é prática e funcional. Mas todos esses argumentos não são
suficientes para manifestar o que é o próprio do homem e como a partir desse pró-
prio se dá a educação em correlação com a liberdade.
Como então compreender educação e liberdade e sua correlação?
Mestres, escola, ambiente propício, fixação cronológica, são formas, tentativas,
momentos “especiais” e limitados de um trabalho que todo homem deveria assumir
por toda a vida no exercício de sua liberdade: educar-se. Esse educar-se não se limita
ao tempo cronológico em que permaneço nas dependências da escola ou no meu
ambiente de estudo. Trata-se antes de um modo de ser próprio do homem de colo-
car-se frente às mais diversas situações da vida, inclusive diante do trabalho de ir à
escola. É o modo de ser da liberdade ou autonomia que se posiciona e assume a vida
como ela se apresenta e não como aquilo que eu gostaria que ela fosse. Assume tudo
aquilo que se apresenta, agradável ou não, como um trabalho de educar-se imposto
por mim a mim mesmo, num caminhar arriscado, mas na grandeza do desafio que o
crescimento exige, da autosuperação da situação e de si mesmo. Esse é o modo de
ser do mestre, que, em sendo, faz com que o discípulo seja.
A colocação de Nietzsche não tem o fito de colocar em questão a importância de
bons mestres, ambiente, material didático etc... Mas fica a questão: e quando tudo
arti
go
s
VALANDRO, Eduardo M. Educação e liberdade104
isso nos faltar? Como ficará a educação? Quem nos transmitirá o conhecimento?
Educar é transmissão de conhecimentos acumulados ao longo das gerações? Ficare-
mos eternamente dependentes dos outros para nos dedicarmos ao estudo? Talvez,
quando tivermos perdido tudo isso, aprenderemos um modo novo de conceber a
educação e aparecerá com maior evidência o que significa educar-se no vigor da
liberdade. Começaremos então um caminhar, cujo método é o próprio caminhar com
as próprias pernas. Uma não dependência da escola não é aqui sinônimo de rejeição,
mas um assumir mais radical e um ir além de suas exigências. A isso chamamos de “
ir embora sozinho”. É esse o grande papel do mestre: possibilitar ao discípulo dar
seus próprios passos com liberdade e responsabilidade. Incitá-lo a voar. Fazendo-o
perceber que ninguém nasceu mestre, e que ser mestre não é repetir o que os outros
disseram. Ser mestre é continuamente trilhar o caminho da não segurança-padrão,
antes, é lançar-se na abertura para o inesperado, não passivo, mas receptivo, num
contínuo risco de perder-se, sendo, porém, possibilidade única de encontrar-se.
O homem de conhecimento não deve poder, somente, amar seus inimigos, mas, ain-
da, odiar também seus amigos.
Retribui-se mal um mestre, quando se permanece sempre e somente discípulo. E por
que não quereis arrancar folhas da minha coroa?
Repetir as palavras do mestre é presta-lhe um desfavor, é desonrá-lo. A honra lhe
é dada somente quando arrancarmos as folhas de sua coroa, isto é, quando pelo
nosso próprio caminhar nos tornamos seus inimigos no saber. Não contrários, talvez,
mas tão autênticos na busca a ponto de desinstalá-lo de seu trono e incitá-lo a con-
tinuar sua busca. Recordar-lhe que a busca não tem fim. Tirar folhas de sua coroa é
não colocá-lo como limite de busca. Como modelo padrão. Também não se trata de
querer colocar-se no seu lugar, como exemplo. Antes, “é ser cada qual sempre mais,
o melhor de si a si mesmo: ser ele mesmo”. Trata-se de cada qual, em sua autentici-
dade e busca radical, recordar e provocar o outro para dar o melhor de si, a superar-
se mais e mais a si, a transcender-se. O transcender-se, dar o melhor de si é o que
chamamos de autonomia ou liberdade, “o exercício da liberdade como vencer-se,
superar-se”, responsabilizando-se por tudo o que vier ao encontro como possibilida-
de de estudo-educação.
Quem são nossos amigos na caminhada rumo ao saber? Os que nos consolam
com os elogios, os que se maravilham com nossas colocações, ou os que tiram folhas
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 101-105, jul./dez. 2011 105
de nossa coroa, ou melhor, que nos lembram que talvez ainda não tenhamos nenhu-
ma coroa e que nossa grande mestra é a docta ignorantia?
Ainda não vos havíeis procurado a vós mesmos: então, me achastes.
Só poderemos estabelecer uma correlação entre educação e liberdade, quando a
educação for fruto do exercício da liberdade. Liberdade como o assumir intrepida-
mente tudo o que vier ao meu encontro, colocando-me como o único responsável
pelo meu caminhar. O que significa, a não mais dependência de um mestre, de um
modelo, de tempo cronológico, isto é, tempo para isso ou para aquilo, de ambiente
propício etc. Mas unicamente de uma incansável e intrépida procura de mim mesmo,
de conhecer-me a mim mesmo como homem e tudo o que lhe é próprio. O caminho
do “nosce te ipsum” foi o que Sócrates palmilhou. Não levou mestre ou doutor para
o acompanhar no caminho. Sua companheira inseparável fora sempre a docta
ignorantia: plena abertura para acolher e aprender com tudo o que viesse ao seu
encontro.
O aprender é sempre fruto de um esvaziamento de um suposto saber. Esvaziar-se
até da presunção de saber é a possibilidade de saber, porém não garantia. Perder-se,
libertando-se para o novo.
Em busca daquilo que assumiu na liberdade, o homem desafia todas as condi-
ções propostas. O máximo esforço é sempre nosso, a garantia, porém, é a própria
aventura de pautar a existência pela intrépida coragem de um perguntar contínuo e
claro pelo último porquê. Talvez seja essa a única forma de crescimento humano,
pois nos coloca sempre num estado de insaciável busca, num caminhar não cético,
mas sedento de clareza e transcendimento daquilo que nos é colocado como limite-
padrão de ser humano educado.ar
tig
os
TRADUÇÕES
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 109
Johann Gottlieb Fichtes
Sobre a determinação do homemem si
A intenção dessa preleção, que inauguro hoje, já é
parcialmente conhecida de vocês. Gostaria de respon-
der, ou melhor, gostaria de dar oportunidade a vocês,
meus senhores, de responderem para vocês as seguin-
tes perguntas: Qual é a determinação (Bestimmung) do
intelectual (Gelehrter)? Qual é sua relação para com o
todo da humanidade, assim como com os estados ou
profissões singulares dentro da mesma? Através de que
recursos poderá ele alcançar da forma a mais segura
sua mais elevada determinação?
O intelectual só é tal na medida em que se contra-
põe a outros seres humanos que também são intelectu-
ais; seu conceito surge a partir da comparação, através
de relação para com a sociedade: sob a qual não se
compreende apenas o Estado, por exemplo, mas via de
regra toda agregação de pessoas racionais que vivem
uma ao lado da outra no espaço, e com isso são reme-
tidos a relações mútuas.
Por isso, a determinação do intelectual, enquanto é
tal, só é pensável em sociedade, e assim, a resposta à
A determinação do intelectual*
* Johann Gottlieb Fichtessämmtliche Werke. Band 6,Berlin 1845/1846, S. 293-301. Tradução de Enio Pau-lo Giachini. tr
adu
ções
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual110
pergunta sobre “qual a determinação do intelectual?” pressupõe responder primeiro
uma outra, a saber: qual a determinação do homem na sociedade?
Mas a resposta a essa questão pressupõe uma outra, ainda mais elevada, a saber:
Qual a determinação do homem em si? Ou seja, do homem, na medida em que é
pensado meramente como humano, segundo o conceito de ser humano em geral; –
isolado, e fora de toda ligação que não esteja necessariamente implicada em seu
conceito.
Posso lhes dizer, todavia por hora sem demonstração, algo que a muitos de vocês
já está demonstrado desde há muito, e algo que outros pressentem de forma obscu-
ra, mas nem por isso menos fortemente, a saber, que toda a filosofia, que todo
pensar e ensino humano, que todo seu estudo, tudo isso que posso apresentar aos
senhores de modo especial, não pode objetivar nada além de responder às questões
lançadas, e de forma toda especial, a última questão, a suprema: qual é a determina-
ção do homem em geral, e através de que recursos ele poderá alcançá-la de forma a
mais segura?
Talvez se pressuponha a totalidade da filosofia e quiçá uma filosofia fundamental
e exaustiva, não para a possibilidade do sentimento dessa determinação, mas para a
visão límpida, clara e completa da mesma. – Essa determinação do homem em si é
igualmente o objeto de minha preleção de hoje. Vocês vêem, então, meus senhores,
que aquilo que tenho a dizer em relação a isso, nessa hora, não posso deduzir plena-
mente de seus fundamentos, se eu não quiser tratar nessa hora de toda a filosofia.
Mas posso edificar sobre seu sentimento. – Vocês vêem igualmente que a questão
que busco responder em minhas preleções públicas, a saber, “Qual a determinação
do intelectual?”, ou, o que significa o mesmo, como se mostrará a seu tempo – a
determinação do homem mais elevado e mais verdadeiro, a questão derradeira para
a pesquisa filosófica; – assim como a pergunta: qual a determinação do homem em
geral, cuja resposta tenho de fundamentar em minhas preleções particulares, mas
que hoje penso em apenas apontar brevemente – se constitui na primeira tarefa para
o mesmo. Agora vou responder as perguntas lançadas.
O que seria o propriamente espiritual no homem, o eu puro – em si, pura e
simplesmente – isolado – e além de toda determinação a algo além dele mesmo?
Essa questão não pode ser respondida, e, tomada propriamente, ela contém em si
uma contradição. É bem verdade que o eu puro seria um produto do não-eu – chamo
assim a tudo que é pensado como estando fora do eu, ao que é distinto do eu e a ele
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 111
contraposto –, que o eu puro seria, digo, um produto do não eu: – um tal princípio
expressaria um materialismo transcendental, coisa totalmente contrária à razão –
mas é seguramente verdadeiro e deverá ser demonstrado de forma rigorosa em seu
devido lugar que o eu jamais terá ciência de si mesmo, nem pode ter ciência, a não
ser em suas determinações empíricas, e que essas determinações empíricas pressu-
põem necessariamente um algo além do eu. Já o corpo que o homem chama de seu,
é algo que está fora do eu. Fora dessa ligação, ele nem sequer seria um homem, mas
algo para nós simplesmente impensável, se é que se pode ainda chamar de algo a tal
que nem sequer é uma coisa de pensamento. – Considerar o homem em si e isolado,
portanto, nem aqui nem em qualquer outro lugar significa considerá-lo mera e pura-
mente como eu, sem qualquer relação a algo além de seu eu puro; mas pensá-lo
meramente fora de toda relação a um ser racional igual a ele.
Mas se ele for assim pensado, o que é então sua determinação? O que é que lhe
advém, enquanto homem, segundo seu conceito, que não advém ao ser que nos é
conhecido como não-homem? Através do que ele se distingue do ser que nos é
conhecido como não-homem?
Eu devo partir de algo positivo, e uma vez que aqui não posso partir da frase
absoluta, positiva “eu sou”, então preciso propor uma frase como hipótese, inextirpável
do sentimento humano – que é o resultado de toda a filosofia e pode ser demonstra-
do com rigor – e que devo demonstrar de forma rigorosa em minhas preleções parti-
culares; a frase: tão certo quanto o homem possui razão, tão certo é ele seu próprio
fim. Isto é, ele não é porque algo outro deva ser – mas ele é pura e simplesmente,
porque ele deve ser: seu ser pura e simplesmente é o fim derradeiro de seu ser, ou o
que significa o mesmo que não se pode perguntar, sem qualquer contradição, por
qualquer fim de seu ser. Ele é porque ele é esse caráter do ser absoluto, do ser por e
para si mesmo, é seu caráter ou sua determinação, na medida em que é considerado
mera, pura e simplesmente como ser racional.
Mas ao homem não advém apenas o ser absoluto, o ser pura e simplesmente;
advêm-lhes também determinações específicas desse ser; ele não é pura e simplesmen-
te, mas ele é também alguma coisa; ele não diz pura e simplesmente “eu sou”; mas ele
também acrescenta: eu sou esse ou aquele. Na medida em que é, ele é ser racional; na
medida em que é algo, o que é ele então? – É essa questão que temos de responder.
Isso que ele é ele não o é de princípio porque ele é, mas porque ele é algo além
de si. – A autoconsciência empírica, ou seja, a consciência de alguma determinação trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual112
em nós não é possível a não ser sob a pressuposição de um não-eu, como já dissemos
acima e como demonstraremos em seu devido lugar. Esse não-eu deve atuar influen-
ciando em sua capacidade passiva, a qual chamamos de sensorialidade. Mas na me-
dida em que o homem é algo, é um ser sensorial. Ora, segundo o que se disse acima,
ele é também um ser racional e a razão deverá ser suspensa e subsumida por sua
sensorialidade, mas ambas devem persistir uma ao lado da outra. Nessa conjugação,
modifica-se a frase dita acima “o homem é porque é”, nesta outra “O homem deve
ser o que é simplesmente porque ele é, isto é, tudo que ele é deve ser referido a seu
eu puro, a sua egoidade pura e simples, tudo que é ele deve sê-lo porque ele é um eu;
e aquilo que ele não pode ser por ser um eu ele não deve ser de modo algum. Essa
fórmula, obscura até o presente, deverá logo ser esclarecida.
O eu puro só pode ser representado negativamente; como o contrário do não-
eu, cujo caráter é multiplicidade – portanto como igualdade absoluta e total; é sem-
pre um e o mesmo e jamais um outro. Além disso, a fórmula supramencionada pode
ser expressa também do seguinte modo: o homem deve ser sempre uno consigo
mesmo; ele jamais deverá contradizer-se. – A saber, o eu puro jamais deverá estar em
contradição para consigo mesmo, visto que nele não há qualquer diversidade; ao
contrário, ele sempre é um e igualmente o mesmo; mas o eu determinado e
determinável pelas coisas exteriores pode se contradizer; – e por mais vezes que ele
se contradiga, isso é uma marca segura de que é determinado não através da forma
do eu puro, não através de si mesmo, mas através de coisas exteriores. E não deve ser
assim; uma vez que o homem é o fim de si mesmo; ele deve determinar a si mesmo
e jamais deixar-se determinar por algo de estranho; ele deve ser o que ele é, porque
ele o quer ser, e deve querer ser isso mesmo. O eu empírico deve ser determinado de
tal modo como poderia ser determinado eternamente. Por isso, acrescentando ape-
nas de passagem e a título de esclarecimento, eu expressaria o fundamento da teoria
da ética do seguinte modo: age de tal modo a poderes pensar a máxima de tua
vontade como lei eterna para ti.
Segundo isso, então, a determinação última de todos os seres finitos racionais é
unibilidade (Einigkeit) absoluta, identidade constante, perfeita coincidência consigo
mesmo.
Essa identidade absoluta é a forma do eu puro e a única forma verdadeira do
mesmo; ou, antes: na pensabilidade da identidade reconhece-se a expressão daquela
forma. Mas determinação que pode ser pensada como de duração eterna, essa está
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 113
de acordo com a forma pura do eu. – que isso não seja compreendido apenas pela
metade, e unilateralmente. Não é meramente a vontade que tem de estar constante-
mente unida consigo mesma – desta só se fala na teoria da ética –, mas todas as
potências do ser humano que, em si, são apenas uma força, e só se tornam distintas
em sua aplicação em objetos distintos – todas elas devem coincidir na identidade
perfeita e concordar entre si.
Ora, as determinações empíricas de nosso eu, pelo menos em grande parte, não
dependem de nós mesmos, mas de alguma coisa fora de nós. É bem verdade que, em
seu círculo, ou seja, na abrangência de seus objetos, com os quais ela pode se relaci-
onar, a vontade pode ser absolutamente livre depois de ter-se tornado conhecida ao
homem, como será demonstrado com rigor a seu tempo. Mas o sentimento e a
reapresentação que pressupõe o mesmo não são livres, mas dependem das coisas
fora do eu, cujo caráter não é de identidade mas de multiplicidade. Mas se o eu tiver
de ser sempre unido consigo mesmo também a esse respeito, deverá esforçar-se e
buscar atuar imediatamente sobre as próprias coisas das quais dependem o senti-
mento e a representação do homem; o homem deve procurar modificar as mesmas,
trazendo-as à coincidência com a forma pura de seu eu, a fim de que também a
representação das mesmas, na medida em que depende de sua compleição, coincida
com aquela forma. — Ora, essa modificação das coisas, como elas devem ser segun-
do os conceitos necessários que delas temos, não é possível apenas pela mera vonta-
de, mas precisa para tal também de uma certa habilidade, conquistada e aperfeiçoa-
da pelo exercício.
Ademais, o que é ainda mais importante, nosso próprio eu, determinável
empiricamente, através da influência sem obstáculos das coisas sobre o mesmo, a
cuja influência nos largamos inocentemente enquanto nossa razão ainda não estiver
desperta, adota certas torções, que se torna impossível coincidirem com a forma de
nosso eu puro, uma vez que provêm das coisas que estão fora de nós. Para extirpar
essas e recuperar a forma pura originária – para isso, igualmente, a mera vontade
não basta, mas também para isso necessitamos daquela habilidade conquistada a
aperfeiçoada pelo exercício.
A conquista dessa habilidade de subjugar e exterminar em parte nossas tendên-
cias falhas surgidas antes de despertar a razão e do sentimento de nossa autonomia
de ação; de modificar parcialmente as coisas fora de nós, modificando-as segundo
trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual114
nossos conceitos – a conquista dessa habilidade, digo, chama-se cultura, e o determi-
nado nível dessa habilidade conquistada se chama do mesmo modo. A cultura só é
distinta em diversos graus; e é capaz de uma infinidade múltipla de graus. É o último
e mais elevado meio para a autofinalidade do homem, a perfeita coincidência consi-
go mesmo – quando o homem é considerado um ser racional, sensorial; é ela
autofinalidade também quando ele é considerado como mero ser sensorial. A
sensorialidade deve ser cultivada: é o que há de mais elevado e mais extremado que
se possa preferir no proceder para com a mesma.
O resultado final de tudo que se disse é o seguinte: a coincidência plena do
homem consigo mesmo, e – a fim de que ele possa coincidir consigo mesmo – a
coincidência de todas as coisas fora dele com seus conceitos práticos necessários – os
conceitos, que determinam como elas devem ser – é a finalidade última e suprema
do homem. Essa coincidência em geral, que tomo da terminologia da filosofia crítica –
é aquela que Kant chama de o bem supremo: esse supremo bem em si, como se depreende
do dito acima, não possui duas partes, mas é perfeitamente simples: é – a coincidência
plena de um ser racional consigo mesmo. Em relação a um ser racional que depende das
coisas fora de si, o mesmo pode ser considerado de dois modos: - como coincidência da
vontade com a ideia de uma vontade com validade eterna, ou – bem ético – como
coincidência das coisas que estão fora de nós com nossa vontade (compreenda-se, com
nossa vontade racional) ou bem-aventurança. – Lembre-se de passagem, porém, que
não é verdade que o homem seja determinado para o bem ético pelo anelo de bem-
aventurança, que, ao contrário, o próprio conceito de bem-aventurança e o anelo por
ela surgem apenas através da natureza ética do homem – não, que seja bom o que
torna feliz, mas, só torna feliz aquilo que é bom. Sem eticidade não é possível haver
bem-aventurança. É possível haver sentimentos agradáveis, mesmo sem ela e mesmo
em contraposição à mesma, e no lugar certo veremos por quê. Mas esses não são
bem-aventurança, mas via de regra até a contradizem.
Submeter-se a todo racional, dominar isso livremente e segundo suas próprias
leis, é a finalidade última e derradeira do homem; finalidade última que é totalmente
inalcançável e tem de permanecer eternamente inalcançável se é que o homem não
quiser deixar de ser homem, e se não quiser se tornar em Deus. Pertence ao conceito
de homem sua finalidade derradeira ser inalcançável, que seu caminho para a mesma
tenha de ser infinito e, por conseguinte, a determinação do homem não é alcançar
essa finalidade. Todavia, ele pode e deve aproximar-se cada vez mais dessa finalida-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 115
de: e é por isso que a infinda aproximação a essa finalidade é sua verdadeira determi-
nação enquanto homem, isto é, enquanto um ser racional, mas finito, sensorial, mas
livre. Ora, se chamarmos àquela plena coincidência consigo mesmo de perfeição
(Volkommenheit), na mais elevada significação da palavra que possa ser nomeada,
então perfeição é a finalidade máxima inalcançável do homem; mas sua determina-
ção é o aperfeiçoamento ao infinito. Ele está aí para tornar-se cada vez melhor etica-
mente, e tudo ao seu redor tornar-se sensorialmente melhor, e quando considerado
dentro da sociedade, tornar-se melhor também eticamente, e assim tornar a si mes-
mo sempre mais bem-aventurado.
Essa é a determinação do homem enquanto ele está isolado, ou seja, fora da
relação com outros seres racionais, seus semelhantes. Nós não somos seres isolados,
e se hoje não posso dirigir minhas considerações a uma associação geral de seres
racionais entre si, então tenho de lançar um olhar àquela associação na qual me
dirijo a vocês hoje, aqui. Aquela determinação elevada que vos expus hoje brevemen-
te é aquela pela qual devo fazer ascender a uma visão clara em muitos jovens espe-
rançosos; que eu lhes desejo como finalidade suprema e como fio condutor perma-
nente de toda sua vida – em jovens que estão determinados, por seu lado, a atuar
com a maior fortaleza possível na humanidade, um dia, em círculos restritos ou am-
plos, através do ensino ou da ação, ou de ambos, passando adiante a formação que
eles próprios receberam, e elevar benevolamente em todos os cantos nossa socieda-
de comum de irmãos a um nível de cultura mais elevado – nos jovens, em sua forma-
ção, imagino com bastante probabilidade milhões de pessoas ainda não nascidas. Se
alguns dentre eles tivessem o bondoso preconceito em relação a mim de que eu
sentiria a dignidade dessa minha determinação especial, que em minhas reflexões e
ensino eu teria como meta suprema o fomento da cultura e a elevação da humanida-
de neles, meus senhores, contribuindo em todos aqueles em quem um dia vocês
terão em comum um ponto de contato; e que eu considero toda a filosofia e toda a
ciência como um nada que não parte rumo a essa finalidade – se vocês julgarem
sobre mim, julguem – talvez me seja permitido dizer tal coisa – com total corretura de
minha vontade. Enquanto minhas forças devem corresponder a esse desejo, nem
tudo depende de mim; depende em parte de circunstâncias que não estão sob meu
poder. Em parte, depende também de vocês, meus senhores, de sua atenção, o que
peço de vosso esforço particular, com o que conto cheio de confiança alegre, de
vossa confiança em mim, à qual me recomendo, ao que procurarei corresponder
através de meu agir. trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual116
Sobre a determinação do intelectual
Hoje, devo falar da determinação do intelectual. Encontro-me numa situação
específica em relação a esse objeto. Todos vocês, meus senhores, ou a maioria esco-
lheu as ciências como sua ocupação de vida, e comigo se deu o mesmo; todos vocês
– é de se supor – empregam toda sua força para poderem ser contados com honra ao
estado de intelectuais; e eu fiz e continuo fazendo o mesmo. Enquanto intelectual,
devo falar sobre a determinação do intelectual a intelectuais precedentes. Devo in-
vestigar a fundo o objeto; se eu puder, devo esgotar suas possibilidades; na exposi-
ção da verdade, não devo dispensar nada. E como, se para essa profissão encontro,
frente a todas as demais, encontro uma determinação todo própria e característica;
serei capaz de expô-la sem ferir a modéstia, e desmerecer as demais profissões, pare-
cendo estarem cegadas pela escuridão própria? Todavia, falo como filósofo, quem é
responsável de determinar com rigor todo e qualquer conceito. O que posso fazer, se
precisamente esse conceito está na linha de ordem dentro do sistema? Não posso
dispensar nada à verdade reconhecida. Ela continua sempre sendo a verdade, e mes-
mo a modéstia lhes é subordinada, e onde ela faz seu próprio registro, trata-se de
uma modéstia falsa. Tentemos então investigar nosso objeto friamente e como se ele
não tivesse qualquer relação para conosco; investigá-lo como se fosse um conceito
de um universo totalmente estranho a nós. Permitam-nos tanto mais dar precisão a
nossas demonstrações. Não vamos esquecer-nos, sobre o que pretendo expor a seu
tempo, de forma nua e crua, com não menos força: de que toda profissão é necessá-
ria; todos merecem nossa atenção; que o que dignifica o indivíduo não é a profissão
mas a afirmação honrada da mesma; e que cada um só é digno e honrado na medida
em que, seguindo, chega o mais próximo possível da plena realização de sua profis-
são; – que justamente por isso o intelectual tem todos os motivos para ser o mais
modesto de todos, porque lhe foi descortinado uma meta, da qual ele se encontra
sempre muito longe e distanciado – visto que ele tem de alcançar um ideal muito
elevado, ao qual, usualmente, ele só se aproxima numa distância muito grande.
“No homem há inúmeros impulsos e disposições naturais, e a determinação de
cada indivíduo é desenvolver todas as suas disposições naturais o maximamente pos-
sível. Dentre outras coisas, ele tem em si o impulso para a sociedade; essa lhe apre-
senta uma formação nova, especial – a formação para a sociedade – e uma leveza
incomum da formação em geral. Nada foi prescrito ao homem sobre isso – se ele
* Johann Gottlieb Fichtes sämmtliche Werke. Band 6, Berlin 1845/1846, S. 323-335.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 117
quer desenvolver todas as suas disposições naturais, em conjunto, imediatamente na
natureza ou se ele as quer desenvolver de forma mediata através da sociedade. A
primeira opção é difícil e traz avanço para a sociedade; por isso, cada indivíduo na
sociedade escolhe para si, com direito, seu ramo determinado da formação geral,
deixando os restantes aos outros membros da sociedade, e espera que eles lhe per-
mitam tomar parte nos benefícios da formação deles, assim como ele permite que
eles participem dos seus; e essa é a origem e o fundamento de direito da diversidade
das profissões na sociedade”.
São esses os resultados das preleções que tenho feito até o presente. A uma
divisão das diversas profissões, segundo conceitos puros da razão, a qual é perfeita-
mente possível, dever-se-ia colocar como fundamento uma contagem exaustiva de
todas as disposições naturais inatas e necessidades do homem (e não por exemplo de
suas necessidades meramente fabricadas). - À cultura de cada disposição inata – ou o
que significa o mesmo – à satisfação de cada necessidade natural, baseada num
impulso que jaz originariamente no homem, pode-se dedicar uma profissão específi-
ca. Reservamos essa pesquisa para um outro momento, para abordarmos nesse ins-
tante uma outra questão que nos é mais próxima.
Se a questão sobre a perfeição ou não-perfeição de uma sociedade instituída se-
gundo os princípios fundamentais acima propostos se manifestasse – e, por meio dos
impulsos naturais do homem, sem qualquer direcionamento e totalmente por si, e toda
sociedade se orienta precisamente como se esclareceu a partir de nossa pesquisa sobre
a origem da sociedade – se essa questão se manifestasse, digo, então a resposta da
mesma pressuporia as seguintes questões: na sociedade real, cuida-se do desenvolvi-
mento e satisfação de todas as necessidades, e quiçá em vista do desenvolvimento e
satisfação igualitário de todos? Se houvesse cuidado por isso, a sociedade, enquanto
sociedade, seria perfeita, o que não significa que ela atingiria sua meta, a qual é impos-
sível de ser alcançada segundo nossas considerações precedentes; mas a sociedade es-
taria constituída de tal modo que necessariamente teria de se aproximar cada vez mais
de sua meta; se não se cuidasse para que isso aconteça, ela até poderia avançar no
caminho da cultura através de um feliz acaso; todavia, jamais poderíamos contar com
isso de forma segura; também poderia regredir através de um acaso infeliz.
O cuidado para esse desenvolvimento igualitário de todas as disposições inatas
do homem pressupõe antes de tudo o conhecimento de todas as suas disposições
naturais, o que cria um saber de todos os seus impulsos e necessidades, o
trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual118
dimensionamento de todo seu ser. Todavia, esse conhecimento total do homem por
inteiro se fundamenta ele próprio numa disposição natural que precisa ser desenvol-
vida; isso porque no homem há todavia um impulso de saber, e sobretudo de saber
aquilo que lhe é necessário. Mas o desenvolvimento dessa disposição natural deman-
da todo o tempo e todas as forças do homem; se há uma necessidade universal que
exige prementemente que uma profissão específica se dedique a sua satisfação, en-
tão é essa.
Ora, o mero conhecimento das disposições naturais e necessidades do homem,
sem a ciência para desenvolvê-las e satisfazê-las, não seria apenas extremamente
triste, como também deprimente; seria igualmente um conhecimento vazio e total-
mente inútil. Agiria como um verdadeiro inimigo aquele que apontasse uma falha
em mim, sem contudo me mostrar igualmente os meios para que eu possa sanar essa
falha; aquele que me leva a sentir minha necessidade, sem me conduzir ao estado de
poder satisfazer essa necessidade. Seria preferível que ele me tivesse deixado em
minha inconsciência bestial! Em resumo, aquele conhecimento não seria o que exige
a sociedade e por causa do qual ela teria de ter uma profissão específica, que residiria
na posse de conhecimentos; isso porque não objetivaria o aperfeiçoamento da gera-
ção, e por meio desse o aperfeiçoamento em vista da unificação, como deveria. –
Ligado com aquele conhecimento das necessidades tem de estar também, assim, o
conhecimento dos recursos, de como podem ser satisfeitos; e esse conhecimento,
com razão, pertence à mesma profissão, pois nenhum poderá tornar-se perfeito, e
muito menos ativo e vivo, sem o outro. O conhecimento do primeiro tipo fundamen-
ta-se sobre princípios puros da razão, e é filosófico; o segundo, em parte, sobre a
experiência, e nesse sentido é histórico-filosófico (não meramente histórico; isso por-
que preciso referir as finalidades que só podem ser reconhecidas filosoficamente com
os objetos que se dão na experiência, para poder ajuizar das últimas como meio para
alcançar as primeiras). – Esse conhecimento deve tornar-se útil à sociedade; então,
não está em questão apenas saber em geral quais as disposições naturais que tem o
homem, e através de que meios se poderá desenvolvê-las: um tal conhecimento con-
tinuaria sendo ainda totalmente infrutífero. É preciso dar mais um passo a fim de
assegurar realmente o proveito desejado. É preciso saber em qual estágio determina-
do da cultura estaria aquela sociedade da qual somos membros num determinado
ponto do tempo – a qual o estágio determinado ela tem de se elevar dali e de quais
meios ela deve lançar mão para tal. Ora, a partir de fundamentos racionais, pressu-
pondo uma experiência em geral, antes de toda experiência determinada, computar
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 119
o curso do gênero humano; podemos apontar mais ou menos os estágios singulares
pelos quais deve trilhar, a fim de alcançar um determinado grau da formação; mas
apontar os estágios nos quais está realmente num determinado ponto temporal, isso
dificilmente será possível a partir de meros fundamentos racionais; para isso será
preciso questionar a experiência; será preciso investigar os dados do mundo anterior
– mas aclarados através do olhar límpido da filosofia; será preciso voltar o olhar ao
redor de si, observando seus contemporâneos. Essa última parte do conhecimento
necessário para a sociedade é, então, meramente histórica.
Esses três tipos de conhecimento indicados, pensados de forma conjunta – e se
não for em conjunto eles proporcionam bem pouca utilidade – perfazem aquilo que
se chama de erudição (Gelehrsamkeit), ou pelo menos que deveria ser chamado por
exclusividade; e aquele que dedica sua vida à aquisição desses conhecimentos se
chama de intelectual (Gelehrter).
Mas não precisamente cada indivíduo deve abraçar todo o âmbito de alcance do
saber humano, segundo aqueles três tipos de conhecimento – isso seria na grande
maioria impossível e justo porque é impossível, o anelo para isso seria infrutífero e
um desperdício, sem qualquer proveito, de toda a vida de um membro – que poderia
ter sido útil à sociedade. Indivíduos podem demarcar para si partes singulares daque-
la região; mas cada um deveria trabalhar sua parte segundo aquelas três intenções:
filosófica, histórico-filosófica e meramente histórica. – Com isso aponto de passagem
aquilo que vou desdobrar mais demoradamente noutra ocasião; para pelo menos
asseverar com evidência através de meu testemunho que o estudo de uma filosofia
fundamental não é supérfluo para alcançar esses conhecimentos empíricos, supondo
porém que sejam fundamentais, mas que, ao contrário, expõe a indispensabilidade
dos mesmos para o que é mais convincente. – Ora, a meta de todos esses conheci-
mentos é a que foi mostrada acima: através dos meios, cuidar para que todas as
disposições naturais da humanidade se desenvolvam igualitariamente, mas sempre
progredindo: e daqui se depreende portanto a verdadeira determinação da profissão
do intelectual, a saber, é o controle de vigilância supremo sobre o real progresso do
gênero humano em universal, e o constante fomento desse progresso. – Faço violên-
cia a mim mesmo, meus senhores, para não deixar que meu sentir se esvaia dessa
ideia sublime que ora lhes exponho: o caminho para a fria investigação ainda não
está encerrado. Todavia, de passagem, preciso chamar a atenção sobre o que propri-
amente fariam aqueles que buscassem impedir o progresso livre das ciências. Digo:
buscassem, pois como posso saber se existe esse tipo de gente ou não. Do progresso
trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual120
das ciências depende imediatamente todo o progresso de todo o gênero humano.
Quem detém aquele, detém a este. - E quem detém a este, que tipo de caráter expõe
publicamente o mesmo, diante de sua época e diante do mundo que o seguirá? Com
altas e milhares de vozes, através de ações, ele invoca o mundo e o mundo do porvir,
em seus ouvidos moucos: pelo menos enquanto eu viver, as pessoas ao meu redor
não devem ser mais sábias e melhores; pois em seus progressos violentos, apesar de
toda minha resistência, também eu seria forçado a avançar, pelo menos nalgum as-
pecto; e eu abomino tal coisa; não quero me tornar mais iluminado, não quero ser
mais nobre: meu elemento são as trevas e a perversidade, e empregarei até minhas
últimas forças para não me deixar desviar disso. – A humanidade pode se dispensar
de tudo; tudo pode ser-lhe raptado, sem que se chegue perto de sua verdadeira
dignidade; só não, da possibilidade de aperfeiçoamento. Frios e astutos, como o ser
misantrópico narrado pela Bíblia, esses misantropos refletiram e calcularam, esqua-
drinhando a partir da mais sagradas das profundidades onde deveriam atacar a hu-
manidade para destruí-la em seu núcleo e – eles o encontraram. – Involuntariamente
a humanidade se afasta de sua imagem. – E nós retornamos a nossa investigação.
A própria ciência é um ramo da formação humana; cada ramo da mesma deve
ser levado avante, se quisermos desdobrar todas as disposições naturais da humani-
dade; convém portanto a cada intelectual, assim como a cada homem que escolheu
uma profissão específica, que se empenhe por fazer avançar a ciência e sobretudo a
parte da ciência específica que ele escolheu; isso lhe cabe, como é próprio de cada
homem em sua especialidade; sim, lhe cabe com ainda mais propriedade. Ele deve
custodiar os progressos das outras profissões, fomentá-las; e, ele próprio, não quere-
ria progredir? De seu progresso dependem os progressos de todos os demais estados
da formação humana; ele deve sempre adiantar-se aos mesmos para abrir caminho,
investigar o caminho e guiar os mesmos para esse caminho; e quereria ele ficar para
trás? A partir desse momento, ele deixaria de ser aquilo que deveria ser; e visto não
ser nada além disso, ele nada seria. – Não digo que todo intelectual tenha de levar
realmente avante sua especialidade; suponhamos que ele não o possa... Mas digo
que ele deveria anelar por levá-la adiante; que ele não deve sossegar – não deve crer
já ter feito o suficiente em seu dever, até tê-la levado adiante. Enquanto viver, ele
poderia levá-la cada vez mais adiante; se a morte o apressar, antes que ele tenha
alcançado sua meta – ora, então, ele estará desincumbido de seu dever para esse
mundo dos fenômenos e sua vontade mais grave lhes será computada como realiza-
da. Se a regra a seguir se aplica a todas as pessoas, aplica-se de modo especial aos
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 121
intelectuais: que o intelectual esqueça o que fez, tão logo o tenha feito, e pense
constantemente naquilo que ele ainda tem por fazer. Não terá ido longe aquele que
em cada passo palmilhado em seu campo não tiver ampliado esse mesmo campo.
O intelectual é predominante para a sociedade; ele confirma: é na medida em
que é intelectual, mais do que qualquer outra profissão, está aí propriamente apenas
por meio da sociedade e para ela; segundo isso, ele tem o dever bem específico de
desenvolver em si, predominantemente e no maior grau possível, os talentos sociais,
receptividade e capacidade de comunicação. Quando ele tiver adquirido de modo
pertinente os conhecimentos empíricos pertinentes, nele a receptividade já deveria
ter-se desenvolvido de maneira primordial. Ele deve ter familiaridade com aqueles
que já exerceram sua ciência antes dele: ele não poderá aprender isso de outro modo
que através de instrução – seja oral ou através da leitura de livro – mas não pode ser
desenvolvida através da reflexão a partir de meros fundamentos da razão. Mas, atra-
vés de uma constante intensificação do aprendizado, conservar essa receptividade;
deve guardar-se de um fechamento total, muito frequente, e às vezes pautado em
pensadores preferidos, frente a opiniões e modos de exposição alheios; isso porque
ninguém está de tal modo instruído que não possa ainda apreender mais, e às vezes
ter de apreender ainda algo muito necessário; e é muito raro encontrar alguém tão
ignorante que não pudesse, ele próprio, dizer algo ao maior dos intelectuais; isso
porque ele possui seu conhecimento não para si mesmo mas para a sociedade. Desde
a juventude ele deve exercitar-se nela, ele deve conservá-la em constante atividade –
a seu tempo pesquisaremos através de que recursos.
O conhecimento que conquistou para a sociedade, ele deve realmente empregá-
lo para utilidade da sociedade; ele deve levar os homens ao sentimento de suas
verdadeiras necessidades, e fazê-los conhecer os recursos para sua satisfação. Isso
porém não significa que deve empreender junto com eles essas investigações profun-
das que ele próprio deveria empreender, para encontrar algo de seguro e certo. Nes-
se caso, ele partiria do fato de querer tornar todos os homens em grandes intelectu-
ais como ele próprio pode ser; e isso é impossível e contrário à meta. O restante
também precisa ser feito; e para isso há outras profissões; e se esses tivessem de
dedicar seu tempo a investigações intelectuais, também os intelectuais logo teriam
de deixar de ser intelectuais. Como poderá ele então expandir seus conhecimentos?
A sociedade não pode subsistir sem a confiança na probidade e competência dos
outros, e essa confiança está gravada profundamente em nosso coração; e através de
um benefício da natureza, jamais o temos num grau tão elevado como quando ne-
trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual122
cessitamos com urgência da probidade e competência do outro. Ele poderá contar
com essa confiança em sua probidade e competência quando os adquiriu como deve.
– Ademais, em todos os homens há um sentimento do verdadeiro, o qual, porém,
sozinho não é suficiente, mas precisa ser desenvolvido, testado, esclarecido; e é essa
precisamente a tarefa do intelectual. Não bastaria ao inculto para conduzi-lo a todas
as verdades de que ele precisa. Mas apenas, se de outro modo – e isso se dá muitas
vezes precisamente através de pessoas que se contam entre os intelectuais – mas
apenas se, de outro modo, não foi distorcido artificialmente, por exemplo – sempre
será suficiente, quando um outro o leva a tal, que ele reconheça a verdade como
verdade, mesmo sem fundamentos profundos. O intelectual pode contar igualmente
com esse sentimento de verdade. – O intelectual, portanto, na medida em que desen-
volvemos o conceito do mesmo até o presente, é, segundo sua determinação, o
mestre do gênero humano.
Todavia, ele tem de tornar conhecidos aos homens suas necessidade e os meios
para satisfazê-las, não apenas de modo geral: deve guiá-los, especialmente, em cada
época e em cada lugar, nas necessidades que se apresentam precisamente agora, sob
essas determinadas circunstâncias, e nos determinados recursos, para alcançar as
metas que agora estão sem amparo. Ele não vê apenas o que está presente, vê tam-
bém o futuro; ele não vê apenas o estágio atual, ele vê também a direção para onde
tem de trilhar agora o gênero humano, quando se mantém no caminho para a meta
derradeira e não se desvia do mesmo, ou quando deve retornar ao mesmo. Ele não
pode exigir poder levá-lo de uma só vez ao ponto que para ele, por exemplo, é
evidente; não pode não assumir seu caminho: ele só deve preocupar-se em que o
gênero humano não fique parado e não retroceda. Nessa retrospectiva, o intelectual
se constitui como educador da humanidade. Chamo expressamente a atenção aqui
para o fato de que, nesse negócio e em todos os demais assuntos, o intelectual se
posicione sob o domínio da lei ética, da coincidência recomendada para consigo
mesmo. Sua atuação se dá sobre a sociedade; essa, porém, está ancorada no concei-
to de liberdade; ela e cada membro da mesma é livre; e ele não pode tratá-la de
modo diverso que através de meios morais. O intelectual não deve cair na tentação
de levar os homens a aceitar suas convicções, usando de recursos coativos, e com o
uso da força física; em nossa época já não deveríamos perder tempo para lutar con-
tra essa estultice; tampouco ele os deverá enganar. Sem contar que, com isso, ele se
perde em si mesmo; e que os deveres do homem, em todo caso, devem ser superio-
res aos deveres do intelectual; e com isso ele se perde também frente à sociedade.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2011 123
Cada indivíduo dentro da sociedade deve agir por escolha livre e a partir de uma
convicção que ele ajuíze ser suficiente; em cada uma de suas ações, ele deve poder
considerar a si mesmo também como um fim: e, assim, tratado por cada membro da
sociedade. Quem é enganado é tratado como mero meio.
O fim último de todo ser humano individual, assim como o de toda a sociedade,
incluindo também o de todos os trabalhos do intelectual na sociedade, é o
perfeccionamento ético da nobreza do ser humano como um todo. É o dever do
intelectual estabelecer isso como a última meta, tendo isso em vista em tudo que ele
faz na sociedade. Todavia ninguém que não seja um bom ser humano poderá traba-
lhar com felicidade nesse perfeccionamento ético da nobreza. Não ensinamos ape-
nas com palavras; ensinamos também e de forma muito mais penetrante através de
nosso exemplo; e cada um que vive na sociedade deve dar bom exemplo, pois a força
do exemplo só surge na sociedade através de nossa vida. Tanto mais é devedor disso
o intelectual, que em todos os setores da cultura deve anteceder as demais profis-
sões! Se ficar aquém desse primeiro e supremo estado, daquele estado a que toda
cultura objetiva, como poderá tornar-se o modelo, que, porém, ele tem de ser; e
como poderá acreditar que os outros seguirão seus ensinamentos, os quais ele con-
tradiz frente aos olhos de todos através de cada ação de sua vida? (As palavras dirigidas
pelo fundador da religião cristã a seus discípulos servem com total propriedade para
o intelectual: vós sois o sal da terra; se o sal perder a sua força, com que se haverá de
salgar? Se a escolha entre os seres humanos se perverteu, onde se poderá procurar
ainda bens éticos?) O intelectual, portanto, considerado segundo a última retrospec-
tiva, deve ser eticamente o melhor dos seres humanos de sua época, deve apresentar
em si o nível supremo da formação ética possível até então.
Essa é nossa determinação comunitária, meus senhores, esse é nosso destino
comunitário. Um destino venturoso, ser ainda determinado através de sua profissão
específica, fazer aquilo que se deveria fazer, enquanto ser humano, já por causa de
sua profissão comum – dever empregar seu tempo e suas forças em nada mais que
aquilo para que, ademais, dever-se-ia poupar tempo e forças, com uma frugalidade
inteligente – ter isso como trabalho, como negócio, como única tarefa diária de sua
vida, o que aos outros seria um doce descanso do trabalho! É um pensamento
fortalecedor, que enleva a alma, que pode ter cada um de vocês, que é digno de sua
determinação; a cultura de minha época e das épocas subsequentes também é con-
fiada a mim, pelo que me cabe; também a partir de meus trabalhos irá se desenvolver
o curso das futuras gerações, a história mundial das nações que ainda virão. Fui trad
uçõ
es
FICHTE, Johann Gottlieb. A determinação do intelectual124
chamado para dar testemunho da verdade; o que interessa não é minha vida e meu
destino; a influência e atuação de minha vida interessa infinitamente mais. Sou um
sacerdote da verdade, ela é meu soldo; eu estabeleci um vínculo de obrigatoriedade
de tudo fazer, ousar e sofrer por ela. Se eu for perseguido e odiado por causa dela, se
tivesse inclusive de morrer a seu serviço – o que faria de extraordinário, o que faria
além daquilo que simplesmente é minha obrigação? – Eu sei, meus senhores, o quan-
to eu disse agora; sei igualmente muito bem que uma época pouco viril e desprovida
de nervos não suporta esse sentimento e essa expressão do mesmo; que qualifica de
fanatismo aquilo em que não pode elevar a si mesma, com voz tímida, através da
qual denuncia a vergonha interna; que, com medo, retrai o olhar de uma pintura,
onde nada enxerga a não ser sua falta de nervos e sua vergonha; que tudo que é
forte e elevado cria nela uma impressão igual a todo toque que se faz nalguém
paralisado em todos os seus membros: eu sei de tudo isso; mas também sei onde
estou proferindo meu discurso. Falo frente a jovens, que através de seus anos já
vividos, já se asseguraram frente a essa completa apatia de nervos, e ao lado e atra-
vés de uma teoria ética viril gostaria de insertar em suas almas igualmente sentimen-
tos que pudessem conservar frente à mesma também no futuro. Confesso aberta-
mente que, a partir desse ponto em que me colocou a providência, gostaria de con-
tribuir com alguma coisa para levar a efeito um modo de pensar mais viril, um sentir
mais forte para a nobreza e a dignidade, um zelo ardente, por realizar sua determina-
ção, em qualquer perigo, divulgando isso em todas as direções, até onde alcança a
língua vernácula e, se puder, ainda mais adiante; a fim de que um dia, quando vocês
deixarem essas regiões e se espalharem por todos os recantos, ali em todos os recan-
tos onde vocês viverem, eu possa vos saber homens cuja mais especial amiga é a
verdade; que vocês nela se prendem na vida e na morte; que a acolhem quando ela
é desprezada por todo mundo; que vocês a protegem publicamente quando ela é
vilipendiada e ofendida; que por ela vocês suportam alegremente o ódio sagazmente
encoberto dos grandes, o riso insípido do escárnio e o gesto de indiferença compas-
siva da mesquinhez O que proferi, eu o disse nessa intenção e com essa intenção final
expresso tudo aquilo que tenho a dizer entre vocês.
Normas para publicação
Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, eencaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa.
A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ounão. Os artigos não publicados não serão devolvidos, sendo que os autores serão informadosda decisão.
Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em que tiver sido publicado seuartigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos.
Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidircom o pensamento da Faculdade.
O idioma de publicação é o português, não estando excluída e publicação ocasional de textosou artigos em outras línguas. Sugere-se que contenham entre 10 e 20 laudas (1 lauda = 2.100toques) e que venham acompanhados de um resumo de no mínimo 8 e no máximo dozelinhas.
Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s) nome(s) do(s) autor(es) e brevecurrículo, relatando experiência profissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalhaatualmente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.
É livre a transcrição das matérias aqui publicadas, obedecendo-se à citação das fontes.
O processo de aprovação e apreciação (pareceres) dos artigos deve primar pela lisura e objeti-vidade, ficando desvinculado de nomes, personalidades outras influências de ordemparticularizante. Os pareceres devem ficar arquivados.
Justo por não se exigir que as opiniões dos articulistas coincidam com as da organizaçãoresponsável pela revista, a responsabilidade pelo conteúdo das publicações é inteiramentedevida aos articulistas.
Os artigos a serem publicados serão encomendados ou solicitados pelo conselho editorial, soba orientação do(s) editor(es) da revista. Uma vez recebidos, são encaminhados à comissãoeditorial e ao conselho editorial para parecer. Sendo aprovados por estes, pelo diretor e peloeditor da revista, os artigos serão encaminhados para o processo de produção. Havendo ne-cessidade de reformulações, os artigos serão devolvidos aos autores de direito para as devidasemendas, estabelecendo-se para cada uma dessas etapas prazos compatíveis com o cumpri-mento das datas de confecção e publicação da revista.
Deste modo, a editoria da revista se reserva o direito de recusa, sugestão de reformulação, e/ou reserva de 2 anos a contar de seu recebimento para publicação dos artigos.
Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos e contribuições para endereçoabaixo:
Revista filosófica São BoaventuraBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso83607-000 Campo Largo – PROu: [email protected]
A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demànde l’èchange.
Pedidos e assinaturas
Assinatura anual (2 por ano - semestral):R$ 25,00; Número avulso R$ 15,00
PÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS
Nome: ____________________________________________________________________
Endereço: _________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Telefone: __________________________________________________________________
E-mail: ____________________________________________________________________
Outras informações _________________________________________________________