Saravá Metal – No Ritmo Da Gangrena

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 1 UFF   UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE  NATÁLIA RI BEIRO DA SI LVA SARAVÁ METAL   No Ritmo Da Gangrena  Niterói 2014

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade FederalFluminense como requisito parcial para a obtenção do grau Bacharel em Estudos de Mídia. Niterói 2014Por: Natália Ribeiro da SilvaOrientador: Prof. Dra. Simone Pereira de Sá.

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    UFF UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    NATLIA RIBEIRO DA SILVA

    SARAV METAL No Ritmo Da Gangrena

    Niteri 2014

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    UFF UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    NATLIA RIBEIRO DA SILVA

    SARAV METAL NO RITMO DA GANGRENA

    Trabalho de Concluso de

    Curso apresentado

    Universidade Federal

    Fluminense como requisito

    parcial para a obteno do

    grau Bacharel em

    Estudos de Mdia.

    ORIENTADOR: Prof. Dra. Simone Pereira de S.

    Niteri 2014

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    UFF UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    NATLIA RIBEIRO DA SILVA

    SARAV METAL NO RITMO DA GANGRENA

    Trabalho de Concluso de Curso

    apresentado Universidade Federal

    Fluminense como requisito parcial para a

    obteno do grau Bacharel em Estudos de

    Mdia.

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________

    Prof. Dra. Simone Pereira de S.

    UFF Universidade Federal Fluminense

    __________________________________________

    Prof. Dr. Marco Antonio Roxo da Silva

    UFF Universidade Federal Fluminense

    __________________________________________

    Prof. Dra. Melina Aparecida dos Santos Silva

    UFF Universidade Federal Fluminense

  • 4

    Dedico este trabalho;

    A meus pais, pois sem eles nada disso seria possvel,

    toda minha famlia que tanto me apoiou no caminho at aqui,

    aos grandes mestres e amigos que encontrei na universidade e

    a todas as pessoas que mantem a msica pesada como ela deve ser,

    suja e agressiva.

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    AGRADECIMENTOS

    Professora Simone Pereira de S

    Aos Professores Marco Roxo e Melina Santos

  • 6

    RESUMO

    O presente trabalho busca analisar a construo do sarav metal como uma filiao legtima ao

    gnero metal. Por meio de questes ligadas autenticidade so percorridos alguns dos caminhos

    e negociaes que tornam possveis a ligao de "pai de santo" com "blast beat", mostrando

    que possvel ligar o local com o global numa s expresso.

    Palavras- chave: heavy metal, autenticidade, gnero, underground

    ABSTRACT

    This paper aims to analyse the construction of sarav metal as a legit heavy metal filiation.

    Throughout questions related to authenticity that make possible the connection between "pai de

    santo" with "blast beat", showing that a unique expression can blend global and local.

    Key-words: heavy metal, authenticity, genre, underground

  • 7

    Sumrio

    INTRODUO 8-13

    CAPTULO 1 14-22

    CAPTULO 2 23-37

    CAPTULO 3 38-45

    CONCLUSO 46

    BIBLIOGRAFIA 48-49

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    SARAV METAL: NO RITMO DA GANGRENA

    *Nenhum animal foi sacrificado durante a realizao deste trabalho.

    INTRODUO

    Voc monta uma banda de rock pra zoar o barraco, se voc monta

    uma banda de rock pra ganhar dinheiro voc t errado na essncia

    (Cid Mesquita)1

    Sarav metal o nome dado ao som praticado pela banda carioca Gangrena Gasosa, que

    na inteno de zoar o barraco resolveu misturar heavy metal com macumba2. A mistura deu

    to certo que rendeu banda a gravao de um disco, vinil na poca, uma turn pela Europa,

    uma visita ao J Soares e agora, com mais de 20 anos de carreira, seu segundo documentrio.

    Gostando ou no da ideia o fato que muitos acabam se perguntando: o que diabos sarav

    metal?. Seja pelo nome de batismo convidativo da banda retirado de uma forma de infeco

    bacteriana grave que gera uma produo de gases e necrose entre os tecidos ou pelo fato de

    conseguirem juntar me de santo com blast beat3, o Gangrena Gasosa segue testando os

    limites de tolerncia e de intolerncia de quem ouse passar perto de seu trabalho.

    Diferente do que uma anlise mais superficial sobre como elementos da umbanda podem ser

    apropriados por uma banda de heavy metal possa sugerir, o maior diferencial do Gangrena

    Gasosa no est na introduo desses diferentes elementos, ou novos vocabulrios, um gnero

    que parece estar sempre em vias de saturao. O maior artifcio do Gangrena est em propor

    uma determinada leitura desses novos elementos a partir de uma nova perspectiva apresentada

    por eles.

    1 Um dos fundadores do Gangrena Gasosa em entrevista ao documentrio Desagradvel Black Vomit Filmes e Locomotiva Fimes, 2013.

    2 Segundo o minidicionrio Houaiss da lngua portuguesa "macumba" tem como primeira definio:

    "designao leiga dos cultos afro-brasileiros em geral (e seus rituais respectivos)."

    3 Tcnica de uso do pedal duplo de bumbo, muito usada por bateristas de death e black metal. uma

    das principais caractersticas dos gneros mais extremos do metal.

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    Em outras palavras, a maior conquista do Gangrena Gasosa foi fazer algo to diferente e

    inesperado dentro do metal que acabou gerando uma srie rupturas com suas afiliaes

    anteriores. Em consequncia dessas rupturas, foi preciso um remanejamento das fronteiras, para

    que o sarav metal fosse ento anexado ao territrio do metal. A movimentao gerada pelas

    aes do sarav metal no universo do heavy metal sero usadas ao longo de todo este texto para

    pensarmos como as discusses em torno da autenticidade, e os esforos envolvidos em torno

    de sua disputa, ajudam-nos a entender as dinmicas que envolvem a consolidao de um gnero

    musical.

    O heavy metal um gnero musical considerado global, pois ouvido e praticado em boa

    parte do mundo, no entanto, a partir da ideia de cena que ocorre a materializao da escuta

    musical.

    Mas a circulao de msica nas cenas ganha corpoatravs de sua materializao nos encontros, ranhuras e propagao das sonoridades noespao

    urbano.

    Uma cena heavy metal, por exemplo, certamente reconhecida por

    sonoridades de um gnero musical que apresenta caractersticas estilstica

    especficas em qualquer lugar do planeta, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas

    caractersticas so negociadas e se transformam em diferenas sonoras e valores

    sociais que se conformam de acordo com assingularidades dos territrios

    sonoros em que circulam. (JANOTTI, 2012, p.9)

    O que o Gangrena Gasosa fez foi pegar elementos reconhecidos globalmente como: blast

    beat, afinao baixa, guitarras distorcidas, vocais berrados, etc. E misturar com elementos

    ligados uma cultura de fora do universo da msica metal, mas bastante prxima da realidade

    do Rio de Janeiro, do local aonde a banda nasceu e se desenvolveu. Atabaques, pandeiro,

    tringulo e outros elementos percussivos tpicos de cultos afro-brasileiros passaram a fazer cada

    vez mais parte da performance da banda. A banda se tornou um link entre o heavy metal e a

    macumba.

    A introduo de vrios elementos, em especial os da umbanda, nos mais diferentes aspectos

    da criao e execuo da performance, dificultavam a colocao do Gangrena Gasosa dentro

    de um ou outro gnero, sendo estes hbridos4 ou no. Uma vez que j no tinham mais como se

    4 cada vez mais comum no metal a adoo de uma nomenclatura genrica hibrida, que mistura dois

    ou mais gneros. Por exemplo "death/thrash metal" e "death metal/hardcore" ou "deathcore".

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    identificar como death metal, crossover, grindcore, ou qualquer outro, a proposta de uma nova

    rotulao, tornou-se vivel e atrativa, visto que seriam responsveis por algo at ento indito

    dentro do metal, que dialoga em tenso com as marcas do metal global. O sarav metal passou

    a representar o ritmo da Gangrena.

    A noo de gnero miditico proposta por Jeder Janotti (2005), descreve o gnero musical,

    entre outras coisas, como um texto composto por diferentes elementos passiveis de serem lidos,

    cujo sentido e o valor so configurados atravs das relaes entre a msica e ouvinte e, por sua

    vez, destes com o ambiente em que coexistem.

    "O gnero miditico definido ento por elementos textuais, sociolgicos e

    ideolgicos, uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produo

    s estratgias de leitura inscritas nos produtos miditicos. O sentido e o valor da

    msica popular massiva so configurados atravs do encontro entre msica e

    ouvinte, uma interao que est relacionada aos aspectos histricos e

    contextuais do processo de recepo, bem como aos seus elementos

    semiticos." (JANOTTI, 2005, p8).

    Pensar o sarav metal e como ele negocia com o gnero metal de caractersticas globais

    mais do que saber do que ele feito e como ele inscrito, pensar como ele lido pelos

    ouvintes e como se d o processo de transcrio e leitura. Esse processo pode ser chamado de

    processo de autenticao, como prope Fernanda Fernandes (2007, p.57). O processo de

    autenticao um processo comunicacional de disputa e atribuio de valor que tem como

    matria principal questes relacionadas autenticidade.

    Ao dispor novos elementos sobre a gama do que j vinha sendo trabalhado pelo metal, foi

    preciso que esses elementos fossem avaliados e estudados por aqueles que fazem parte e que

    ajudam a significar o universo metlico. Isso um processo contnuo que se d de forma muitas

    vezes natural, o que dificulta sua apreenso. Sem percebermos, em diversas situaes nos

    encontramos discutindo sobre o que pode e o que no pode em determinado gnero ou

    determinada banda.

    O que busco analisar neste trabalho como o sarav metal dialoga com um gnero musical

    de caractersticas globais to fortes quanto o metal.

    O presente trabalho discorre sobre a construo da autenticidade em torno do sarav metal,

    descrevendo alguns dos esforos de autenticao e dos ciclos de autenticao

    (PETERSON, 2005, apud FERNANDES, 2007), bem como a economia simblica da

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    autenticidade (GARZIAN, 2004) que ajuda a alimentar esses processos. Embora os termos

    no sejam bem apropriado, o que busco descrever com essas noes seria uma mecnica da

    autenticidade, que alimenta as questes sobre gnero musical e que no caso do heavy metal,

    fundamental na manuteno do gnero.

    Existe um ciclo, um impulso que gera a movimentao dentro desse ciclo, assim como a

    expanso do mesmo, que seriam os esforos de autenticao, e existe a economia simblica da

    autenticidade, que ajuda a mensurar os valores dentro dessas equaes. Essas noes sero

    melhor apresentadas no decorrer deste trabalho. O importante agora que consigamos perceber

    a importncia da autenticidade para a questo do gnero, que ela faz parte de um processo e que

    no fixa.

    A abordagem proposta nos pargrafos acima busca ampliar a discusso sobre as diferentes

    formas de atribuio de valor msica, bem como as dinmicas envolvidas nesse processo,

    indo alm da questo da cooptao, atualizando questes acerca do mainstream e do

    underground. A ideia levar o foco da discusso cada vez mais para as relaes no

    necessariamente comerciais entre banda e pblico, pblico e banda, gnero e mercado, etc.

    Antes de entrarmos na parte mais terica este trabalho, aonde apresentarei com maior

    propriedade as noes e os conceitos que servem de suporte terico para a anlise do sarav

    metal enquanto gnero musical autntico, gostaria de dedicar os prximos pargrafos ao meu

    encontro com este objeto um tanto peculiar.

    Se Deus 10, Satans 666 foi provavelmente a primeira msica que conheci do Gangrena

    Gasosa h alguns anos. O ttulo, a meu ver, um tanto cmico e divertido, soava ao mesmo tempo

    rebelde e libertador, especialmente para adolescentes que como eu, tinham no heavy metal uma

    espcie de fuga da vista familiar, sendo algo que s eu ouvia e somente eu compreenderia,

    diferente dos meus pais. A forma enrgica como o refro cantado era e ainda hoje, como um

    grito de liberdade, hoje no mais contra tutela familiar, mas contra uma srie de valores nos

    quais se baseiam nossa sociedade e que afetam o nosso dia a dia de uma forma ou de outra.

    O que mais chama minha ateno na performance do Gangrena Gasosa a mistura do peso

    com o ritmo da batucada, com percusso, pandeiro e outros instrumentos atpicos ao heavy

    metal. Como eles conseguem unir dois universos to diferentes entre si, numa coisa coerente o

    bastante para entendermos e fazermos parte daquilo? O som do Gangrena carregado de uma

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    brasilidade, o que faz com que os fs sintam-se representados dentro do heavy metal de uma

    maneira prpria, no a partir de elementos importados de outras culturas.

    Quando vejo os integrantes vestidos de entidades e os despachos em cima do palco sinto que

    isso representa a cena carioca, ou a cena brasileira de um modo geral. como se fosse possvel

    expressar nosso pertencimento na cena global, dominada pela lngua inglesa e imaginrio

    folclrico europeu, etc., a partir do nosso prprio vocabulrio. Isso acontece com outras bandas

    tambm, no Brasil temos vrias bandas de destaque nacional e internacional, cada uma delas

    com sua identidade e representando a nossa nacionalidade de alguma forma, mas o Gangrena

    traz elementos culturais mais especficos e mais evidentes.

    Embora a banda conte com mais de duas dcadas de histria, o sarav metal tem seus

    processos e esforos de autenticao em torno da legitimao de um estilo musical ainda muito

    presentes, o que em outros gneros tendemos a naturalizar, a esquecer esse processo. Enquanto

    headbangers ouvimos tanto falar de thrash metal que nem nos preocupamos em saber como

    isso veio parar em nosso vocabulrio, por que isso significa determinada sonoridade, atitude,

    etc. Nos prximos captulos mostrarei como os processos e esforos em torno da idia de

    autenticidade atuam na construo da ideia do sarav metal.

    O primeiro captulo trata de uma fundamentao terica acerca de noes mais primordiais

    como: gnero, msica popular massiva, cena musical, mainstream e underground, e noes

    mais centrais para a nossa discusso, ligadas questo da autenticidade. aonde pretendo

    apresentar com maior propriedade noes citadas anteriormente para fins de introduo a este

    trabalho, como: esforos de autenticidade, processos e ciclo de autenticao e economia

    simblica da autenticidade.

    O segundo captulo dividido em duas partes: a primeira com uma breve contextualizao

    histrica do metal e da cena aonde surge o Gangrena Gasosa e a segunda parte mais focada na

    banda, em sua relao com gnero metal, e as questes relacionadas autenticidade.

    importante que consigamos localizar o Gangrena Gasosa no gnero metal a partir de sua

    organizao para entendermos como se d a associao do sarav metal dentro desse contexto.

    Entendido o contexto, preciso que nos aproximemos para poder observar com maior

    propriedade os processos de negociao e trabalho envolvendo a autenticidade.

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    O terceiro captulo dedicado aos processos e esforos de autenticao que envolvem o

    sarav metal. Como, atravs do encontro entre msica e ouvinte, o sentido e o valor da msica

    vo sendo configurados (JANOTTI, 2005, p.8). O envolvimento da comunidade de ouvintes

    com a banda, a relao da banda com o metal e com a sociedade formam relaes fundamentais

    para o estudo de como a autenticidade trabalhada pelo gnero. No captulo 3 focaremos na

    trajetria da banda e como a questo da autenticidade trabalhada pela banda e ao redor dela.

  • 14

    CAPTULO 1

    Quando dizemos que o sarav metal, ou qualquer outra classificao, autntica, a que de

    fato estamos nos referindo? De modo geral, podemos dizer que quase todo gnero musical

    amplamente reconhecido autntico ou carrega uma parcela de autenticidade. O que diferencia

    o ax do sertanejo, ou a musica clssica da msica eletrnica, por exemplo, o fato de

    reconhecermos nesses gneros elementos caractersticos de cada um deles, caso contrrio no

    haveria necessidade de classific-los como algo distinto.

    O sarav metal, como o prprio nome sugere, possui grande afinidade como o metal. Esse

    gnero possui uma ligao especial com a ideia de underground, vejamos o que Jeder Janotti

    define como underground:

    Os produtos subterrneos possuem uma organizao de produo e circulao particulares. (...) Trata-se de um posicionamento valorativo

    oposicional no qual o positivo corresponde a uma partilha segmentada,

    que se contrape ao amplo consumo. Um produto underground quase

    sempre definido como obra autntica, longe do esquemo, produto no-comercial (JANOTTI, 2005, p. 8-9)

    A maior parte das produes ligadas ao metal e seus subgneros no est acessvel nos meios

    mainstreans - no fluxo principal. Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath, etc., apesar de serem

    bandas mundialmente reconhecidas, com papis fundamentais no gnero, juntas represetam

    uma parcela mnima do que feito pelo metal, a maior parte encontra-se no que o autor chama

    de subterrneo. Embora o acesso aos produtos undergrounds que tambm podem ser

    entendidos como produtos de nicho seja hoje bastante facilitado via internet, redes sociais e

    plataformas de msica online, essa categoria continua relevante no que diz respeito aos

    processos de autenticidade.

    Underground tambm representa uma proximao maior entre banda e pblico e com os

    demais elementos envolvidos na cena musical, o que favorece as trocas e negociaes.

    Analisadas de forma mais acurada por Fernanda Fernandes (2007) e pelos textos contidos na

    coletnea de BENETT, A. e PETERSON, R. Music scenes: local, translocal & virtual de

    2004, as relaes entre msica e pblico, provenientes da ideia gnero musical miditico,

    permitem nos aproximarmos da questo da autenticidade, e de como ela se relaciona com os

    gneros musicais.

  • 15

    Percebemos que as estratgias textuais capazes de orientar expectativas contidas na ideia

    de gnero so configuradas a partir de processos que envolvem tanto banda/artista quanto

    pblico, que, por sua vez, encontram-se organizados num contexto social e cultural mais amplo,

    tambm fruto de processos histricos, sociais e etc. Para pensarmos sobre como a autenticidade

    atua nesses processos preciso avaliar a relao entre msica e ouvinte para alm da relao

    entre produto e consumidor.

    O consumidor de determinado produto cultural tem sua expectativa orientada a partir dos

    gneros, mas, alm disso, ao consumir est envolvido num processo criativo, seja de forma mais

    ou menos consciente. Fernanda Fernandes (2007) nos lembrar que nem sempre o significado

    pretendido pelos produtores amplamente aceito pela audincia.

    O consumo tambm se constitui como uma esfera que pode requerer certo grau de atividade e criatividade dos indivduos, na

    medida em que nem sempre o significado pretendido pelos produtores

    amplamente aceito pelas audincias. (FERNANDES, 2007, p.59).

    Sendo assim, a lacuna entre o que o produtor almeja e o que o consumidor procura em

    determinado produto abre espao para novas concepes, tanto para o consumo, quanto para a

    produo. O consumidor/ouvinte tem papel fundamental na constituio de um gnero musical,

    visto que o ato de consumir msica, em vrios sentidos, mais do que uma simples relao

    comercial de compra e venda de determinado produto ou servio.

    A autenticidade neste sentido se configura como uma relao de autonomia em relao ao

    mercado. Uma banda que se veste como entidade e no poupa grias, termos de baixo calo e

    lana um lbum chamado Se Deus 10, Satans 666 no pode estar to preocupada com o

    mercado quanto uma banda que almeja tocar no Fausto ou ser includa na trilha sonora de

    Malhao. No underground a banda desfruta de mais liberdade para a experimentao, visto

    que no precisa atender a certos protocolos necessrios aos produtos para a as massas.

    David Grazian (In: BENETT, A.; PETERSON, R., 2004) aponta a autenticidade como um

    objetivo comum como uma demanda entre os consumidores na busca por poder cultural,

    demonstra ainda que a questo sobre a autenticidade pode variar de grau, foco e intensidade

    dependendo do local ou performance em particular:

    Enquanto a autenticidade pode representar um objetivo comum entre os consumidores na busca de poder cultural, na realidade,

    diferentes tipos de audincia abordam a questo da autenticidade com

    variados graus de intensidade e foco e s vezes eles dependem de

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    conjuntos contraditrios de critrios na avaliao de um lugar ou de

    uma performance em particular. (GRAZIAN, 2004, p.45)5

    No caso do Gangrena Gasosa nem todos entendem a banda como autntica e se recusam a

    aceitar a banda como um estilo associado ao metal. Aqueles que entendem a proposta e aceitam

    a ideia do sarava metal como algo autntico esto dispostos a defender seu posicionamento, o

    que alimenta a discusso em relao ao grupo.

    Neste sentido temos que, alm de varivel, a autenticidade negociada. No sendo uma

    caracterstica inerente a algo, pessoa ou performance:

    No uma caracterstica inerente a objeto, pessoa, ou performance

    tidos como autnticos. Ao contrrio, A autenticidade uma reclamao

    feita por ou para algum, alguma coisa ou performance, e pode tanto

    ser aceita como rejeitada pelos outros relevantes (Peterson, 2005, p.

    1086) (apud FERNANDES, 2007, p. 57)

    Ao dizer que determinada msica ou gnero autntico, ou simplesmente dizendo que ele

    o que , estamos na verdade reproduzindo uma sentena, resultado de uma negociao.

    preciso fazer um movimento de desnaturalizao da ideia de autenticidade, pois mesmo os

    gneros tidos como de raiz, em algum momento foram baseados ou inspirados em algum

    gnero predecessor. Ele passou a ser autntico e de raiz a partir de processos, esforos e

    negociaes envolvendo autenticidade, pertencimento, entre outros valores para ele relevantes.

    At para que se tenha algo novo, geralmente a partir de alguma ruptura, preciso de algo

    anterior para ser rompido.

    Deena Weinstein ao trabalhar com o heavy metal em sua obra Heavy Metal: the music and

    its culture precisou fazer este movimento de desnaturalizao em sua obra para chegar aos

    elementos mais essenciais do gnero, para assim analis-lo. A autora usou os padres de

    formao propostos por Ronald Byrnside para promover uma abertura na anlise sobre a

    formao do gnero conforme sua proposta de estudo. Os padres propostos demonstram que

    5"While authenticity may represent a common goal among consumers in search of its cultural power, in

    reality different kinds of audiences approach the issue of authenticity with varying degrees of intensity

    and focus, and they sometimes rely on contradictory sets of criteria when evaluating a particular place

    or performance. The search for authenticity is an exercise in symbolic production in which participants

    frequently disagree on what specific kinds of symbols connote or suggest authenticity, and even those

    who agree on the symbols themselves may share different views on how they might manifest themselves

    in the world." (BENETT, A.; PETERSON, R. 2004, p.45) - traduo prpria.

  • 17

    tanto o heavy metal como outros gneros musicais, s so identificados como gneros

    (autnticos) depois de j terem iniciado os processos de autenticao.

    "Como Ronald Byrnside observa, estilos musicais geralmente seguem um padro de formao, cristalizao, e decadncia. Durante o perodo de formao, a distino entre o novo estilo e os estilos dos

    quais ele entra em erupo ainda no esto claros. Mais tarde, durante

    o perodo de cristalizao, o modelo reconhecido conscientemente.

    Seu pblico o reconhece como um estilo distinto. Mas os limites do

    estilo no so rgidos."6 (WEINSTEIN, 2000, p.)

    Os padres descritos por Ronald Byrnside demostram que os gneros passam por diferentes

    estgios at se tornarem autoconscientes. Primeiro preciso que a audincia seja capaz de

    reconhec-lo como algo distinto para que ele passe do estgio de formao para o de

    cristalizao, na fase de cristalizao as bandas comeam a adotar e reproduzir aquela

    linguagem, j na fase de decadncia essa linguagem vai sendo abandonada. Em todos os padres

    propostos por Byrnside participao da audincia continua determinante nos processos de

    autenticao.

    O processo de autenticao:

    Os produtos culturais, portanto, so submetidos a processos de

    autenticao, iniciados por meio das avaliaes dos chamados experts:

    crticos, historiadores, arquivistas, professores, documentaristas,

    especialistas em msica e similares, que desembocam na autenticao

    feita pelo consumidor final, o f. (PETERSON, 2005, p.1092) apud

    (FERNANDES, 2007, p. 57)

    Fernandes reconhece a existncia de um ciclo de autenticao, que comearia com as

    avaliaes dos experts e desembocaria no pblico. Embora a pesquisadora discorde de Peterson

    quando este coloca crticos, historiadores, arquivistas e etc., em posies privilegiadas dentro

    desse ciclo;

    Apesar da existncia de um ciclo de autenticao, que envolve cada

    personagem ativo no campo cultural, no h como atribuir a nenhuma

    pessoa ou grupo especficos o poder de conceder o carter autntico a

    6 "As Ronald Byrnside notes, musical styles "generally follow a pattern of formation, crystallization,

    and decay. 'During the period of formation, the distinction between the new style and the styles out of

    which it erupts are still unclear. Later, in the period of crystallization, the style is self-consciously

    acknowledged. Its audience recognizes it as a distinctive style. But the boundaries of that style are not

    rigid." (WEINSTEIN, 2000, p.). Traduo prpria.

  • 18

    prticas, indivduos ou produtos culturais. (FERNANDES, 2007, p.

    57)

    Isso se deve ao fato de que a autenticidade no algo dado. Ao falar da cena indie carioca

    Fernanda Ferdandes se aproxima das discusses relacionadas aos cenrios undergrounds de

    onde vem o Gangrena Gasosa e o sarav metal, por compartilharem de formas de produo e

    circulao parecidas. Em suma, por atuarem mais diretamente sobre suas produes, sem o

    suporte das grandes gravadoras ou empresas mais voltadas para o mercado amplo. No trecho

    acima a pesquisadora fala da incapacidade de atribuio de carter autntico a prticas,

    indivduos ou produtos culturais por parte de uma nica pessoa ou grupo especfico. Isso

    destaca o carter comunicacional do processo de autenticao, que toma forma a partir de

    discusses e disputas entre diferentes interesses.

    Vejamos os esforos de autenticidade, que compreendem a autenticidade como categoria

    socialmente construda:

    A autenticidade , portanto, uma categoria socialmente construda

    e adquire importncia diferenciada nos variados contextos da vida

    social. E, na medida em que seu carter de construto ressaltado e est

    sujeito a mudanas contnuas, ela claramente se esfora para parecer

    autntica. Este esforo de autenticidade pode se manifestar de diversas

    formas (FERNANDES, 2007, p.60).

    Uma vez que se trata de uma construo a partir de negociaes entre diferentes indivduos,

    sujeita a mudanas contnuas, a ideia de autenticidade, atribuda a alguma pratica, indivduo ou

    produto cultural, depende de um certo esforo para manter-se autntica. Quando se tem

    diferentes foras atuando preciso que haja um trabalho no sentido de se manter uma posio

    ou argumento. Alm de um esforo, preciso algo que alimente esse esforo, que ajude a manter

    esse movimento. Os esforos de autenticidade foram traduzido por Grazian (2004), como a

    busca por autenticidade7.

    Para o autor a busca por autenticidade um objetivo comum entre os consumidores que

    buscam poder cultural. Os esforos envolvidos nesse processo de busca e manuteno da

    7 "The search for authenticity"

  • 19

    autenticidade e do carter autntico representam um exerccio (esforo) de produo simblica

    realizado pelos envolvidos nessa cena musical:

    A busca por autenticidade um exerccio de produo simblica

    em que os participantes frequentemente discordam sobre que tipos

    especficos de smbolos conotam ou sugerem autenticidade, e mesmo

    aqueles que concordam entre si sobre os smbolos, podem compartilhar

    uma opinio diferente sobre como eles se manifestam no mundo

    (GRAZIAN, 2004, p.45)8

    Os esforos de autenticidade advm da volatilidade da noo de autenticidade, que flida

    e no-fixa, tornando difcil sua manuteno e a permanencia desses valores, dificultando a sua

    apreenso. um exerccio quase contnuo de produo simblica realizado por participantes

    que integram os ciclos de autenticao de determinada prtica, objeto ou performance.

    Esses exerccios, por sua vez, so gerados a partir de uma dinmica, que Grazian identifica

    como sendo produzida pela realao entre subculturas locais e a comodificao da cultura

    global num determinado contexto. Essa relao dessas diferentes foras dentro desse contexto,

    geram uma dinmica que leva os participantes e se engajarem nos esforos de autenticidade.

    Na verdade, ele est dizendo que a interao entre subculturas

    locais e a comodificao da cultura global neste contexto produz uma

    economia simblica da autenticidade, porque esse processo parece

    indicativo de um conjunto maior de dinmicas que operam em vrios

    outros tipos de entretenimento e artes urbanas. (GRAZIAN, 2004,

    p.46)9

    O que Grazian est chamando de economia simblica da autenticidade a forma como

    essas dinmicas so organizadas em torno de um determinado gnero ou contexto. Em outras

    palavras, Grazian sugere que a interao entre subculturas locais e a comodificao da cultura

    global, junto s diferentes formas de atribuio de valor geradas a partir disso, so que do vida

    economia simblica da autenticidade.

    8 The search for authenticity is an exercise in symbolic production in which participants frequently

    disagree on what specific kinds of symbols connote or suggest authenticity, and even those who agree

    on the symbols themselves may share different views on how they might manifest themselves in the

    world." (GRAZIAN, 2004, p.45). Traduo prpria. 9 In fact, it is telling that the interaction between local subcultures and the commodification of global culture in this context produces a symbolic economy of authenticity, because this process seems

    indicative of a larger set of dynamics that operates in many other types of entertainment landscapes and

    urban art worlds. (GRAZIAN, 2004, p.46). Traduo prpria.

  • 20

    A economia simblica da autenticidade se organiza de forma diferenciada dependendo do

    contexto em que se desenvolve. Ela a organizao das foras e dos esforos de autenticidade,

    atua na busca por autenticidade e na forma como se organizam essas foras.

    Segundo o mni dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, dinmica tem como segunda

    definio: movimento interno que estimula e faz com que algo evolua, a primeira faz relao

    ao estudo da Fsica sobre o movimento. Pensando nessas duas definies possvel concluirmos

    por meio de deduo que as dinmicas das quais tratamos neste trabalho, so geradas pelas

    diferentes foras envolvidas na economia simblica da autenticidade.

    Como prope Thomas Solomon, a partir dessas dinmicas que os participantes constroem

    sentidos de valor e de pertencimento que os ajudam a se localizarem nesse processo. Fazer parte

    do processo, estar fazendo parte desta dinmica.

    "Como Negus sugeriu, 'Da perspectiva conhecida da teoria

    acadmica, comrcio versus criatividade pode ser um argumento clich,

    mas da perspectiva dos participantes das cenas musicais essas ideias so

    parte da forma como eles do sentido ao que est acontecendo com

    eles'(Negus 1996, p. 48). (apud, SOLOM, 2005, p.18)10

    A discusso sobre se determinada banda ou artista ou no vendido esbarra numa srie de

    valores, de gostos e ideologias que varia de pessoa para pessoa e de grupo para grupo. Fazer

    parte dessas discusses fazer parte do grupo, ao passo vo ganhando sentido, novas questes

    esto sendo elaboradas. Essa diferena de fora e de interesses dentro de um grupo que

    alimenta os esforos de autenticao, que alimentam o gnero e o engajamento do grupo com

    os valores do gnero.

    Um caso conhecido do Brasil o da banda Ratos de Poro, formada em 1981, bastio do

    punk nacional, que dcadas mais tarde teve seu vocalista contratado pelo canal MTV, o que

    significou uma afronta a muitos fs mais puristas da banda que passaram a cham-los de

    traidores do movimento. Mas independente dos fs no liberais e conservadores o Ratos de

    Poro continua na atividade, sendo possvel falarmos sem grandes dificuldades que esse

    10 As Negus has suggested, From the knowing perspective of academic theory, commerce versus creativity may be a clichd argument, but from the perspective of participants of music scenes these

    ideas are part of the way in which they make sense of what is happening to them (Negus 1996, p. 48). (apud, SOLOM, 2005, p.18). Traduo prpria.

  • 21

    impasse mais favoreceu a banda do que prejudicou, pois acabou gerando uma

    movimentao/disputa dentro do grupo.

    Alm dos esforos da economia simblica da autenticidade, outra noo importante para este

    trabalho a ideia de cena musical, que ser trabalhada sob a perspectiva de Grazian e de Will

    Straw, como contexto que agrupa produtores, msicos e fs, que compartilham coletivamente

    seus gostos musicais, e de forma coletiva, distinguem-se nos outros (insiders X outsiders). A

    delimitao de uma fronteira imaginria, alm de fazer parte dos esforos organizados em torno

    da autenticidade, ajuda a distinguir os que esto dentro e os que esto fora, separa insiders de

    outsiders.

    O conceito de cena musical, originalmente usado principalmente

    em contextos jornalsticos e cotidianos, cada vez mais utilizado por

    pesquisadores acadmicos para designar os contextos em que grupos de

    produtores, msicos e fs compartilham coletivamente seus gostos

    musicais comuns e coletivamente distinguem-se dos outros.

    (GRAZIAN, 2004, p.01)11

    A delimitao dessas fronteiras representa a forma como questes relacionadas a

    autenticidade de um determinado grupo sero trabalhadas. Existe uma dinmica interna e uma

    dinmica externa que ajudam na construo e manuteno dessa autenticidade, a diferena entre

    os que esto de fora e os que esto de dentro alimentam a disputa. Cena para Grazian est mais

    ligada a uma questo imaginria do que territorial propriamente dita, o que mais conveniente

    para este trabalho.

    No caso do Gangrena Gasosa, enquanto pessoas mais ligadas s religies criticam a banda

    por estarem mexendo com algo que supostamente no sabem o que , isso usado

    positivamente para construir uma alternativa oposta a esse modo de pensar ou trabalhar

    justamente com esse receio das pessoas. A banda tenta se esquivar quando o assunto a

    religio, seja para resguardar a opinio pessoal de cada membro da banda ou para aliviar a

    tenso entre aqueles que levam esse assunto mais a srio.

    11 The concept music scene, originally used primarily in journalistic and everyday contexts, is increasingly used by academic researchers to designate the contexts in which clusters of producers,

    musicians, and fans collectively share their common musical tastes and collectively distinguish

    themselves from others. (GRAZIAN, 2004, p.01). Traduo prpria.

  • 22

    Ai vem as perguntas clssicas. Algum aqui macumbeiro? No. A

    gente toca essa porra pra ser escroto mesmo (Renato Choro)12

    J internamente a questo segue em outros termos, pensando se o fato dos integrantes se

    vestirem de entidades legtimo ou no dentro de uma banda de heavy metal, entre outras

    questes.

    12 No trailer do DVD Desagradvel.

  • 23

    CAPTULO 2

    Para uma retrospectiva histrica do gnero, capaz de desvendar especificidades de sua

    formao, bem como a fundamentao de alguns dos seus valores importantes na interpretao

    dos efeitos da autenticidade, sero usados especialmente Ian CHRISTE, 2010 e Deena

    WEINSTEIN, 1991, por serem fontes oficiais e reconhecidas entre trabalhos que abordam o

    heavy metal. No entanto, o uso de meios no oficiais, que possam servir de dados empricos

    para a pesquisa no foram descartados, visto que boa parte do que circula pelo underground

    no encontra vias oficiais de escoamento.

    O metal um gnero que emerge j no contexto da msica popular massiva, termo proposto

    por Jeder Janotti que representa um novo momento para a produo e distribuio musical. Na

    dcada de 1970 o metal se firma como gnero musical, dando incio s produes do heavy

    metal, ou seja, adquire uma liguagem prpria que comeava a ser apropriada, geralmente por

    bandas que anteriormente pertenciam ao heavy rock e ao hard rock.

    A partir da dcada de 80 acontece uma exploso de subgneros e heavy metal passa a ser

    sinnimo de classic metal, enquanto metal passa a denominar todo universo possvel de

    compreenso do gnero. Dependendo da gerao de quem estiver falando, heavy metal passa a

    ser mais entendido como uma subcategoria, enquanto que metal passa a englobar o gnero e

    suas diversas variaes.

    Como aponta Deena Weinstein (2000, p.11), o heavy metal surge no incio da dcada de 70

    dentro de um complexo cultural mais amplo, acompanhando o desenvolvimento da msica rock

    e do rock and roll da dcada de 50. O que Weinstein chama de complexo cultural mais amplo

    o sentido mais abrangente que a msica rock adquire com o tempo e as apropriaes. O rock

    deixa de ser apenas mais um gnero musical e passa a simbolizar todo um universo de consumo

    e produo de sentido ligado juventude que comea a se desenhar no ps-guerra.

    O maior smbolo dessa nova cultura juvenil o rockn roll, que

    aparece como uma msica delimitada etariamente, especificamente

    juvenil, como uma linguagem internacional da juventude, que

    acompanha e expressa todas essas novas atividades de lazer, assim

    como o comportamento explosivo da juventude. (ABRAMO, 1994,

    p.30)

    No decorrer da dcada de 50 houve um aumento significativo do consumo e da produo de

    bens variados, assim como o crescimento da importncia dos meios de comunicao e do

  • 24

    entretenimento dentro da cultura de massa. A cultura do consumo estava cada vez mais presente

    e passava a significar cada vez mais para a sociedade.

    Devido s medidas sociais do welfare state adotadas no ps-guerra poltica de bem estar

    social gerida pelo Estado houve um aumento na oferta de emprego para jovens recm-egressos

    da escola, que combinado com o aumento da renda familiar, possibilitou que parte do dinheiro

    conseguido pelos adolescentes em seus empregos pudesse ser gasto em consumo prprio

    guiado principalmente para bens de diverso e de consumo. (ABRAMO, 1994, p. 29).

    O mercado adolescente constitudo e em plena expanso chamou a ateno da indstria que

    comeou a agir rapidamente no atendimento dessa demanda a juventude desenhada agora

    como categoria de consumo produzindo bens especficos para esses consumidores. Os jovens

    passam a se diferenciar cada vez mais de seus pais e adquirir maior autonomia, no apenas

    tem termos financeiros, mas principalmente em termos de pensamento e ideias. Por meio do

    que consumiam, viam novas possibilidades de se diferenciarem, tanto dos pais, quanto de outros

    jovens.

    Teddy boys, mods e rockers so algumas das manifestaes culturais juvenis surgidas

    nas primeiras dcadas do ps-guerra, em especial na Inglaterra, grande parte focadas na msica

    rock e/ou na msica negra como o blues, o jazz e o rhythm and blues. Cabe ressaltar que o rock

    e a msica negra atraam grande interesse, em especial por serem gneros criticados pelos

    adultos.

    Neste mesmo contexto surge o movimento beat nos Estados Unidos, vinculado ao universo

    estudantil universitrio, mais intelectualizado e que buscava inspirao e um contato maior

    com os setores marginalizados da sociedade americana, como os negros, os msicos de jazz e

    os andarilhos (ABRAMO, 1994, p. 31). Os beats foram os predecessores dos movimentos

    contra culturais das dcadas de 60 e 70.

    Diante do tdio e da hipocrisia da sociedade tecnocrtica, a juventude da dcada de 60

    engaja-se na tentativa de construir um novo modo de vida: A juventude agora aparece como

    um foco de contestao radical da ordem poltica, cultural e moral, empenhada numa luta contra

    o establishment, reivindicando uma inteira reverso do modo de ser da sociedade. (ABRAMO,

    1994, p. 39).

  • 25

    O que antes era visto apenas como fonte de diverso e entretenimento, algo no aprovado

    pelos adultos, e portanto, apoiado pela juventude, foi adquirindo novas facetas. A juventude

    tinha o rock como principal forma de expresso, e aos poucos os temas foram ganhando

    aprofundamentos sociais, polticos de ideolgicos. Alguns elementos basilares para a formao

    do heavy metal so retirados da contracultura e do movimento hippie.

    A importncia do visual, por meio da forma caracterstica de se vestir, o cabelo longo para

    os homens foi mantido e potencializado, na msica foi o momento para uma maior

    experimentao, tanto em termos de composies quanto de tcnicas e novas tecnologias. No

    campo ideolgico a ideia do paz e amor no foi mantida heavy metal13, mas a ideia de

    contestao de valores permanece, seja em relao aos valores paternos, ou das geraes

    anteriores, sejam os valores da prpria ordem comercial.

    Segundo Weinstein o heavy metal primeiramente a juno de duas fontes: o blues rock e a

    psychedelic music (2000, p.16).14 Para a autora o guitarrista Jimi Hendrix funciona como um

    paradigma para entendermos essa mistura e como ela foi incorporada ao heavy metal:

    Ele [Hendrix] morreu antes do heavy metal se tornar um gnero bem

    definido, mas exerceu uma enorme influncia na eventual emergncia

    do heavy metal atravs do seu carisma pessoal e talento, e atravs da

    "corporificao" das duas maiores tradies que formam as bases para

    o gnero. (WEINSTEIN, 2000, p.16)15

    As duas maiores tradies as quais a autora se refere so justamente o blues rock e msica

    psicodlica, que Hendrix trazia tona em forma de performance e virtuose. O blues direto e

    viceral mas ao mesmo tempo cheio de experimentalismos era a noo de liberdade presente

    na poca, quebrando padres rtmicos e escalas musicais a ideia do virtuosismo aliado

    performance foram elementos adotados rapidamente pelo metal. As canes no heavy metal

    costumam exigir bastante da capacidade tcnica dos msicos, solos ultra velozes, tcnica vocal

    13 A temtica do caos uma constante na maioria das composies de metal 14 Heavy metal is primarily a blend of two sources, blues rock and psychedelic music. (WEINSTEIN, 2000, p.16) 15 He died before heavy metal became a well-defined genre, but he exerted an enormous influence on

    the eventual emergence of heavy metal through his personal charisma and talent, and through his

    embodiment of the two major traditions that formed the foundation for the genre. (WEINSTEIN, 2000,

    p.16). Traduo prpria.

  • 26

    apurada, seja para alcanar notas super agudas ou super graves, como o caso do gutural, o uso

    do blast beat16, entre outras, so exemplo de tcnicas que exigem muito da capacidade do artista.

    Outro ritmo de origem negra de grande importncia para a formao do heavy metal o jazz.

    Elementos do jazz foram introduzidos por Hendrix e pelo Cream17 (WEINSTEIN, 2000, p.16)

    principalmente em seus solos, alguns deles super estendidos. Estruturas mais simples so

    repetidas (influncia do blues) e organizadas de forma a compor um background sonoro mais

    complexo. No primeiro episdio do documentrio Metal Evolution18, do mesmo responsvel

    por Heavy Metal Jouney, Bill Ward, baterista do Black Sabbath fala sobre a grande influncia

    jazz da sua forma de tocar, ele diz Est na msica do Sabbath. D para ouvir o swing..

    No episdio que conta sobre a pr-histria do heavy metal o antroplogo e diretor Sunn

    Dum, atenta tambm para a influncia da msica clssica, tanto em termos musicais, agindo

    diretamente na forma de tocar dos msicos buscando um nvel de virtuose cada vez maior, ou

    buscando de alguma forma a essncia da msica quanto na forma teatral que adquirem boa

    parte das performances. No entanto, a influncia mais direta da msica clssica posterior ao

    surgimento do metal no incio da dcada de 70.

    importante lembrarmos, como veremos mais frente, que o metal um gnero que se

    encontra em constante expanso. De tempos em tempos entram em cena novos subgneros que

    conseguem estabelecer um vnculo com esse metal clssico fundador, garantindo sua patente e

    fazendo a manuteno do gnero. Posterior ao perodo que segue at a primeira parte da dcada

    de 70, o metal, j como um gnero cristalizado, entra em contato com outras conjunturas e passa

    a sofrer mutaes, dando origem a outras vertentes e ajudando a ressignificar a ideia anterior

    de metal.

    Na segunda metade da dcada de 70 o punk entre em cena e influencia de forma determinante

    em uma srie de conjunturas, O rock nunca mais seria o mesmo. Algumas apropriaes feitas

    a partir punk foram essenciais para o metal. interessante notarmos que tanto o punk quanto o

    16 Ver nota 4 deste trabalho. 17 Cream, power trio dos anos 1960, um supergrupo constitudo por baixista / vocalista Jack Bruce, o

    baterista Ginger Baker, e o guitarrista / cantor Eric Clapton. Seu som foi caracterizado por um hbrido

    de blues rock, hard rock e rock psicodlico. Em: http://en.wikipedia.org/wiki/Cream_band 18 Metal Evolution - Episode 1 - Pre History of Heavy Metal em 24:30:00

  • 27

    heavy metal representam manifestaes culturais juvenis surgidas da insatisfao e da falta de

    perspectiva da classe operria:

    Durante os anos 70 a(s) classe(es) operria(s) no Ocidente estava sob

    cerco. A feroz "estagflao", econmica causada em parte pelo cartel

    do petrleo OPEP, prejudicava seriamente as pessoas que trabalham em

    empregos na indstria. Jovens de classe operria no podia mais esperar

    que acompanhariam seus pais e tios nas fbricas prximas. [...] A

    posio estrutural da juventude mais influenciada por perodos de

    recuperao e recesso na economia. O punk na Inglaterra foi uma

    resposta s condies de deteriorao e o heavy metal foi a outra.

    (WEINSTEIN, 2000, p 114)19

    Diferente dos beats e dos hippies, mais ligados classe mdia prspera de nvel universitrio,

    o punk e o heavy metal foram expresses que vieram de baixo, apresentando uma nova viso.

    A questo ideolgica perde espao para a realidade dura e violenta, os jovens que na dcada de

    50 experimentavam com euforia sua independncia financeira, viam agora na recesso e no

    desemprego o no future, um no-futuro.

    Em termos sonoros o punk adiciona crueza e velocidade ao som, a forma de tocar e a

    atitude punk is atittude20 no palco tornam-se ainda mais viscerais. To ou mais

    importante que a questo sonora, o punk trouxe consigo a bandeira do Do it Yourself, DIY

    faa voc mesmo que ajudou a impulsionar formas independentes de produo distribuio

    e consumo. Para o heavy metal o punk representou a chegada de um novo momento.

    As novas bandas do metal britnico comearam a trilhar caminhos distindos, dependendo da

    inclinao de cada uma. Enquanto algumas foram para o lado mais comercial, o que Deena

    Weinstein chama de lite metal, outras optaram por seguir para um lado mais pesado, rpido

    e visceral, sem a preocupao de servir a um mercado j constitudo.

    19 During the 1970s the working class(es) in the West were under siege. The fierce economic

    "stagflation," caused in part by the OPEC oil cartel, seriously hurt those working at manufacturing jobs.

    Working-class youths could no longer expect to follow their fathers and uncles into the nearby factories.

    []The structural position of youth is most influenced by upturns and downturns in the economy. Punk in England was one response to the deteriorating conditions and heavy metal was another.

    (WEINSTEIN, 2000, p 114)

    20 comum acharmos relaes da ideia de punk com a ideia de atitude. Principalmente no meio

    underground.

  • 28

    O lite metal se desenvolve esticando suas fronteiras em direo msica pop, a uma

    pegada mais rockn roll e a outros elementos culturais que deram origem ao glam, ou hair

    metal (termos normalmente usados pejorativamente) e ao hard rock mais pesado. J o outro

    ramo da bifurcao, desenvolveu o speed/thrash metal adicionando posteriormente elementos

    do punk, hardcore e cultura street, dando origem ao power metal, ao crossover, ao death metal,

    entre outros.

    As bandas de speed/thrash metal britnicas surgidas nesse contexto deram origem ao

    chamado NWOBHM, uma sigla que soa um tanto estranha, mas bastante familiar aos

    headbangers. A New Wave Of British Heavy Metal, como o prprio nome sugere, foi uma

    renovao do heavy metal que vinha sendo praticado na Inglaterra, seu pas de origem. A

    NWOBHM interessante pois marcar a dispora do metal atravs do mundo.

    Essas novas bandas em sua maioria, faziam parte de novos selos que viam em determinados

    nichos possibilidades de atuao. Peso e velocidade eram as novas demandas da juventude.

    Favorecidos pelas tecnologias de gravao cada vez mais acessveis e a maiores possibilidades

    de divulgao, essas pequenas empresas alimentavam o consumo underground assim como

    integravam o seu circuito. Apesar de ainda no existir a internet, as redes de troca, de contatos

    e o tape trading lembrando que a tecnologia do K7 representou uma verdadeira revoluo

    poca estavam funcionando em pleno vapor e eram um tanto eficientes, copiar e enviar

    msica para outras pessoas j era uma prtica comum e incentivada naquela poca.

    Somados a esses motivos importante lembrarmos da relativa popularidade que o rock e

    mesmo o heavy metal, possuam na poca, o que favoreceu a chegada desses gneros em alguns

    territrios como no caso do Brasil. No final da dcada de 70 e incio da dcada de 80 o metal

    no era mais um produto especfico de uma parte do mundo, surgiam bandas de metal em

    diversos lugares e nos mais distintos contextos.

    Como vimos nas pginas anteriores, o gnero no representa necessariamente uma estrutura

    rgida e pode variar de diferentes formas dependendo dos discursos que so elaborados. No

    entanto, quando estamos falando de gnero musical, um fator que deve ser levado em conta o

    da cena musical aonde esse gnero consumido e/ou se desenvolve. Quando o metal comea a

    ser produzido para alm da Inglaterra ele comea a ganhar diferentes caractersticas e elementos

    conforme vai sendo consumido e apropriado por diferentes cenas.

  • 29

    Para Simone S as cenas so fundamentais para a ideia de gnero e na formao de

    subgneros, como o caso do sarav metal.

    Assim, do ponto de vista da nossa perspectiva, os gneros musicais so um conjunto de regras tcnicas, semiticas e formais que so encenadas ou atualizadas pelas cenas. , portanto nas cenas que eles se

    confirmam ou so transformados em possveis novos gneros ou subgneros e esta articulao entre as duas noes que nos parece produtiva. (S, 2011, p.154)

    Da dcada de 80 em diante houve uma verdadeira avalanche de subgneros filiados ao metal,

    muitos deles ligados territorialidades ou a cenas especficas como: o true norwegian black

    metal, o thrash metal da bay area, o thash metal alemo e o Swedish death metal. Aqui

    destaca-se a articulao do metal global em cenas locais, visto que as cenas locais so

    espaos privilegiados de atuao no gnero.

    A coisa mais impressionante sobre a carreira do Sepultura o nmero de cenas de que faziam parte - a cena do metal brasileira, a cena

    death metal, a cena do metal extremo mundial, a cena global de heavy

    metal. Essas cenas existem de forma quase autnoma uma das outras e

    afetam umas s outras e trajetria do Sepultura. (HARRIS, 200, p.25)

    Esses diferentes extratos das cenas associadas ao metal demostram como essas cenas so

    organizada. Elas no seguem necessariamente uma formao hierrquica, mas constroem

    diferentes nveis dependendo da escala que est sendo utilizada. Ao dizer que o Gangrena

    Gasosa uma banda de metal estamos a localizando num contexto mais amplo, mas quando

    falamos de sarav metal, entramos num contexto mais restrito. Mesmo aqueles que nunca

    ouviram falar do Gangrena, ou ouvirem o termos sarav metal, podem, a partir dessa pequena

    informao genrica, pensarem em algo prximo ao que produzido pelo Gangrena.

    Quando o gnero chega ao Brasil, apesar das dificuldades em termos de acesso e de poder

    aquisitivo, alguns fs j comeam a fazer parte desse universo. Esses fs alm de irem caa

    de discos e K7s, comeavam a montar suas prprias bandas com o que havia disponvel. Um

    exemplo interessante desse perodo a banda Stress, formada em 1977, considerada a primeira

    banda brasileira de heavy metal a lanar um lbum, o disco homnimo Stress de 1982,

    gravado no Rio de Janeiro.

    Nessa poca existia no Rio alm do Estdio Sonoviso, responsvel pela gravao do disco

    Stress, a rdio Fluminense FM, que em 1981, e nos anos seguintes, teve sua programao

    voltada exclusivamente para o rock e tambm para o metal. Ainda na primeira metade da dcada

  • 30

    de 80, mais exatamente em 1985 acontecia na cidade a primeira edio do festival Rock in Rio.

    Por conta disso, possvel dizermos que nesse perodo o Rio de Janeiro era uma cidade um

    tanto abastada em relao ao metal, o que foi mudando com o tempo.

    Apesar do Rio estar funcionando como uma espcie de plo da produo roqueira nacional,

    as duas maiores bandas de rock pesado nacionais nascem justamente nos Estados vizinhos, o

    Ratos de Poro em So Paulo e o Sepultura em Minas Gerais, que so influncias claras e

    explcitas do Gangrena Gasosa. Essas duas bandas apesar de no terem tocado no Rock in Rio

    nem terem feito parte do movimento do rock nacional na poca, foram grandes divulgadoras

    do nome do Brasil atravs do globo. Gosto de lembrar que o Sepultura foi a primeira banda

    brasileira a ter tocado em todos os continentes.

    Sepultura e Ratos de Poro so duas das influencias mais claras do Gangrena Gasosa. A

    primeira pela grande influncia que teve em vrias outras bandas de metal extremo nacionais e

    internacionais, alm do Sepultura ter elevado o metal a nveis mais extremos, foi a primeira

    banda que conseguiu chegar l, sair do Brasil e ser reconhecida fora do pas.

    O sucesso do Sepultura foi um fator-chave para inspirar cenas Death Metal em todo o mundo, abrindo possibilidades para as bandas

    de cenas marginalizadas em todos os lugares. (HARRIS, 200, p.20)

    E o Ratos de Poro por ser um smbolo mximo do underground nacional e representar toda

    atitude punk. A banda conseguiu unir o punk e o hardcore ao heavy metal, tanto sonoramente

    quanto em termos de pblico. A sonoridade mais pesada, agradava tanto os punks quanto os

    headbangers, o que pode ser considerado uma proeza na poca, visto que inicialmente esses

    dois grupos no eram muito simpticos entre si.

    A princpio a sonoridade do Gangrena Gasosa no se associa diretamente a nenhum desses

    gneros, a banda mistura uma srie de elementos que vo desde o metal clssico, ao thrash

    metal e ao grindcore gnero que se apropria das variedades mais extremas death metal e metal

    extremo, entre outras influncias caticas, como o industrial e noise music. Essa dificuldade

    de associao por um lado representava um contratempo, principalmente na hora de apresentar

    a banda para novas audincias, mas por outro lado acabou levando a uma nova classificao

    genrica.

  • 31

    Gangrena gasosa

    Alm das batucadas, que fogem do padro baixo, bateria, guitarra e vocal, a banda introduz

    uma srie de elementos ligados umbanda, um culto religioso tipicamente brasileiro21, com

    letras que abordam, em sua maioria, um universo que nos familiar, como: Centro do Pica

    Pau Amarelo e a A Supervia Deseja a Todos uma Boa Viagem.

    A primeira uma referncia clara obra de Monteiro Lobato, boa parte da juventude das

    dcadas de 80 e 90 cresceu assistindo ao Stio do Picapau Amarelo na TV, alm claro, das

    demais geraes que convivem com as histrias do autor. Mas, segundo os integrantes do

    Gangrena Gasosa, Monteiro Lobato era um pai de santo de marca maior. Em Centro do Pica

    Pau Amarelo a letra diz:

    (...) Ela (a Cuca) tem um capeta no seu caldeiro

    E um demnio aprisionado dentro de um garrafo

    Sacrifica o Rabic em nome de Omul

    Emlia Pomba-Gira uma boneca de vodu

    Anastcia poderosa nos trabalhos de umbanda

    E nas macumbas mais sinistras Vov Benta quem manda (...)

    J A Supervia Deseja a Todos uma Boa Viagem descreve as adversidades pelas quais

    passam as pessoas que necessitam pegar o trem na cidade do Rio de Janeiro e o descaso da

    Supervia, empresa administradora do servio, com seus usurios. Aqui alm de uma

    aproximao com as questes do cotidiano de seu pblico, a banda se aproxima de um ponto

    relevante que ajudou a criar a base do que conhecemos hoje como heavy metal, a questo da

    classe trabalhadora, working class. Como veremos mais a diante neste trabalho, boa parte do

    etos do heavy metal tem origem na classe operria da Inglaterra das dcadas de 60 e 70.

    (...) Senhores passageiros a Supervia informa

    hoje todos os ramais operam com atraso

    senhores passageiros a Supervia informa

    a composio vazia s vai fazer manobra

    21 Segundo http://pt.m.wikipedia.org/wiki/Umbanda, acessado em 13/11/2013

  • 32

    Senhores passageiros a Supervia foda

    seu trem vai dar entrada l na outra plataforma

    Senhores passageiros quem quiser chegar na hora

    melhor sair correndo que ele vai partir agora (...)

    Outra caracterstica que desperta meu interesse sobre o Gangrena Gasosa a questo do

    sarcasmo, de zoar o barraco, de fazer troa. A maioria das bandas de heavy metal so muito

    sisudas, e dentro de suas esferas de criao, produo e performance no h muito espao para

    descontrao, mesmo que fora desse contexto seus integrantes sejam pessoas bem diferentes,

    bem humoradas e at divertidas. O sarav metal vem meio que de encontro a isso.

    O Gangrena Gasosa se expressa de forma bastante sarcstica e satrica, desde a forma de se

    comunicarem com o pblico, s apropriaes que fazem dos diversos elementos que se

    encontram sua volta. O modo como se comportam, o linguajar adotado pelos integrantes, o

    uso de vrias pardias, tudo isso faz parte da ideia do sarav metal. A banda brinca com

    coisas que so levadas muito a srio por algumas pessoas e instituies, em especial, o heavy

    metal, a umbanda e as religies crists. uma abordagem diferenciada, o que no

    necessariamente diminui o respeito que a banda e seus integrantes tem ou venha a ter por esses

    assuntos.

    evidente que nem todos vo entender ou concordar com essa abordagem, ainda mais se

    tratando de grupos to dogmticos. A banda vem h mais de duas dcadas resistindo a ataques

    das correntes mais ortodoxas e belicosas de headbangers e religiosos dos mais diferentes

    seguimentos e mesmo assim se mantm firme, conservando a sua energia. Como veremos mais

    frente, esses conflitos gerados pelo sarav metal na disputa por seu lugar na sociedade e na

    comunidade de ouvintes, so como motores, que mais favorecem do que debilitam a banda.

    O Gangrena Gasosa uma banda provocativa e seu objetivo no apenas atacar o status quo

    ou discursar sobre o caos, como a maioria das bandas de punk, rock e heavy metal em geral,

    sua inteno provocar agitao no ambiente, em seu prprio ou aonde quer que a banda

  • 33

    chegue; mais uma vez, a inteno zoar o barraco22. No toa que o nome do DVD lanado

    em 2013 contendo o segundo documentrio sobre a banda23 se chama Desagradvel.

    Produzido por Angelo Arede (vocalista e Z Pelintra da banda) junto com Fernando Rick,

    com direo de Fernando Rick, Desagradvel um verdadeiro tesouro do underground

    carioca, um apanhado de prolas e de lendas que se no estivessem sendo contadas por quem

    realmente esteve l, provavelmente no acreditaramos. Desagradvel conta com dois DVDs,

    o primeiro disco contm o documentrio e o segundo, um registro ao vivo chamado de

    Gangrena Gasosa no Inferno, com uma performance ao vivo no Inferno Clube em So Paulo,

    ainda nesse mesmo disco esto presentes alguns extras, entre eles o primeiro documentrio

    Sarav Metal de 1992, produzido por Adilson Pereira e Custdio Amaral.

    Por conta da riqueza de contedo desse registro, uso esse material como principal fonte de

    embasamento deste trabalho quando falamos de Gangrena Gasosa e sarav metal. Eu j

    conhecia a banda, tendo inclusive presenciado alguns shows, j era partidria do sarav metal,

    no entanto esse registro me fez enxergar a questo com mais clareza e perceber a riqueza desse

    trabalho enquanto objeto de estudo na rea de comunicao, consumo/produo musical,

    sociedade e tecnologia.

    O DVD conta com relatos de figuras ilustres da cena underground de rock e metal do Rio

    de Janeiro e do mundo. Um dos mais marcantes o do Fbio Costa, o Fbio do Garage, que

    faleceu pouco tempo depois, antes da finalizao do DVD. Fbio era responsvel pelo

    Garage, casa de show que, embora extinta, at hoje referncia na cena carioca. Ele conta

    como tudo ficava fedendo a despacho depois do show do Gangrena Gasosa, e que era preciso

    alm de trocar o carpete, exorcizar o ambiente. Fabio Costa recebia reclamaes constantes do

    centro que se localizava prximo casa de show, nos dias que o Gangrena tocava ficava difcil

    de segurar os exus que baixavam l no terreiro; alm de episdios mais sinistros envolvendo

    maldies e fenmenos paranormais.

    22 "Zoar o barraco" a expresso usada por Cid Mesquita, um dos fundadores do banda, no DVD

    "Desagradvel" para descrever as intenses e os objetivos do Gangrena Gasosa.

    23 O primeiro registro se trata do mini-documentrio "Sarav Metal", produzido em 1992, por Adilson

    Pereira e Custdio Amaral. Este material pode ser encontrado nos extras do DVD "Desagradvel" de

    2013.

  • 34

    Joo Gordo (Ratos de Poro), Jello Biafra (ex Dead Kennedys), BNego, Tom Leo, entre

    outros, tambm do seus relatos no filme. Eles dizem que o sarav metal tambm os pegou de

    surpresa e que aquela era uma das coisas mais autnticas que j tinham ouvido. Todas essas

    falas de indivduos relevantes, formadores de opinio que ocupam, portanto, um lugar

    privilegiado dentro do ciclo de autenticao, como veremos mais a frente ajudam a legitimar

    a banda e corroborar junto aos fs a ideia de que o sarava o sarav metal de fato autntico.

    por esse motivo que o Gangrena Gasosa e o sarav metal so to uteis discusso sobre

    autenticidade. Formada na Baixada Fluminense no incio da dcada de 90 com o principal

    intuito de abrir um show para o Ratos de Poro j na poca considerada a maior banda de

    punk/crossover24 do Brasil , que na poca estavam lanando o lbum Brasil no Circo

    Voador25. Um motivo que soa um tanto legtimo, principalmente para aqueles que fazem parte

    do meio underground. comum que integrantes da cena queiram participar de diferentes

    formas do circuito, muitos fs tambm so msicos, fotgrafos, fanzineiros, produtores, entre

    outros. Isso faz parte dos esforos e dos circuitos de autenticao.

    Tendo conquistado esse objetivo alguns anos mais tarde, o Gangrena Gasosa continuou a

    trilhar seu caminho, com o sarav metal conquistando fs e despertando o caos por onde quer

    que passe. Em 1998 a banda fez parte do tributo Traid: 20 bandas tocando Ratos de Poro,

    com Benzer at morrer/ Kurimba ruim, a nica msica do disco que no foi gravada pelo

    Ratos de Poro, mas sim pela banda. Benzer at morrer/ Kurimba ruim tambm faz parte do

    segundo lbum da banda Smells Like a Tenda Sprita, lanado em 2000.26

    Vale lembrar que Benzer at morrer uma aluso Beber at morrer, uma das msicas

    mais conhecidas do Ratos de Poro, e Smells Like a Tenda Sprita vem de Smells Like Teen

    Spirit uma dos maiores sucessos da banda Nirvana, lanado em 1991.

    24 A combinao de dois estilos distintos, geralmente punk e hardcore. 25 http://pt.wikipedia.org/wiki/Gangrena_Gasosa_(banda) 26 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Smells_Like_a_Tenda_Sp%C3%ADrita acessado em 16.12.2013

  • 35

    Benzer at morrer Gangrena Gasosa

    Por qu ser que o homem tem essa mania macumbeira

    De confiar no santo e na mo da rezadeira

    vela no terreiro pra vov e pra Oxal

    Viver incorporado melhor do que lutar

    Benzer at morrer, ser essa a soluo?

    o santo lhe domina, a pomba-gira e o guanxumo

    Mais outra bena agora voc s vai receber

    depois que me pagar, pode crer!!!

    A curimba terminou e sua cabea foi raspada

    Seu corpo foi fechado pelo som da batucada

    Moedas para o Buda e beijos na foto do

    Papa

    Acenda uma vela para o seu anjo de guarda

    No vou mais frequentar essa kurimba ruim

    esse terreiro de ladro, o pai-de-santo

    me deixou na mo

    ele pediu dinheiro pro despacho,

    comprou tudo de carne e fez churrasco

    minha obrigao, virou foi um pagode

    e eu perdi tudo

    no vai dar, desse jeito o santo vai me cobrar...

    (...)

    Aps ter lanado a demo-tape Sarav Metal o Gangrena Gasosa conseguiu causar

    barulho suficiente para conseguir um contrato para lanar seu primeiro lbum, Welcome to

    Terreiro lanado em vinil pela Rock It! em 199327. No documentrio os membros da banda

    e outros participantes ativos da cena na poca lembram que existiam muitas bandas e conseguir

    um contrato desse tipo para lanar um disco no era nada fcil.

    A primeira faixa do lbum Troops of Olodum, verso olodum para Troops of Doom

    do Sepultura (do disco Schizophrenia de 1987). H quem diga que a mistura de elementos

    tribais feita pelo Sepultura no lbum Roots de 1996, que levou a banda para topo das paradas,

    foi anteriormente proposta nesta msica do Gangrena, que comea com praticamente a mesma

    27 Fonte: http://www.gangrenagasosa.com.br/portugues.php acessado em 16.12.2013

  • 36

    sesso rtmica de Troops of Doom, mas com batidas de percusso, que at ento, no faziam

    parte das composies do Sepultura, hoje uma das maiores marcas da banda.

    Os despacho sretirados fresquinhos28 das encruzilhadas e levados para o palco, em

    determinado momento da apresentao eram despejados sobre o pblico. Isso virou notcia nos

    jornais de grande circulao da poca e que acabou colaborando para a (m)fama da banda.

    Pedro Alvim (2006) lembra ainda da interdio que a banda sofreu, no pelo produtor do

    show ou do dono da casa de eventos, mas das prprias entidades:

    Outra clebre histria alada a lenda pelo pblico do Garage foi a proibio dos shows do Gangrena Gasosa, banda de sarav metal, por

    um terreiro de umbanda localizado poca (fim dos anos 1990-incio

    dos 2000) na rua atrs da casa, sob a alegao de que, segundo fs de

    metal presentes, as msicas da banda provocavam o caos nos cultos do

    centro esprita, pois s baixavam exus. O Gangrena Gasosa fazia seus shows satirizando diversas tradies religiosas brasileiras, como o neo-

    pentecostalismo, o catolicismo e os cultos afro-brasileiros. Provenientes

    da Baixada Fluminense e do subrbio carioca, seus integrantes

    cantavam paramentados com roupas e smbolos de entidades de

    umbanda (ALVIN, 2006, p.55)

    O segundo disco Smells Like a Tenda Sprita lanado em 1999, figurando como um dos

    melhores discos nacionais daquele ano29. Nesse registro esto presentes as j citadas: Centro

    do Pica Pau Amarelo e Benzer At Morrer/Kurimba Ruim. Depois de sair em turn pela

    Europa em 2001 a banda lana dois Eps, 6/6/6 e 12/12/12, respectivamente em 2006 e

    2007. Somente dez anos depois do ltimo disco full-length o Gangrena Gasosa lana o seu

    terceiro trabalho, Se Deus 10, Satans 666 de 2011 pela Tamborete Records e Free

    Mind Media30. As informaes disponveis sobre a banda encontram-se muitas vezes dispersas,

    por isso o registro presente no DVD Desagradvel to importante, nele podemos ver que a

    banda passou diferentes fases, tendo uma grande rotatividade de integrantes.

    Nesse ltimo lbum a banda faz um trabalho especial na percusso deixando o sarav

    ainda mais acentuado. As percusses ficaram a cargo de Elijan Rodrigues e Anjo Caldas,

    percussionista da Elba Ramalho e da banda Catapulta. Msicos profissionais envolvidos nas

    produes, dando mais legitimidade ao gnero. O som ficou ainda mais pesado e as passagens

    28 Segundo os depoimentos dos prprios integrantes no DVD Desagradvel. 29 Segundo http://www.gangrenagasosa.com.br/portugues.php acessado em 16.12.2013 30 http://pt.wikipedia.org/wiki/Se_Deus_%C3%89_10,_Satan%C3%A1s_%C3%89_666 acessado em

    16.12.13

  • 37

    rtmicas deram ainda mais energia s composies. Como dito no comeo desse trabalho, o

    Gangrena Gasosa a banda que conseguiu misturar me de santo com blast beat e o terreiro de

    macumba com o mosh pit.

  • 38

    CAPTULO 3

    E os caras fantasiados. Como que pode uma banda de metal em vez de estar usando cinturo de bala estar vestida de pomba-gira? Essa

    porra 't errada. (Marcos Bragatto)31

    Ao dizer que algo est errado com uma banda de metal que, em vez de usar cinturo de

    bala, est vestida de pomba-gira, o jornalista Marcos Bragatto deixa clara a sua posio mais

    conservadora em relao ao que ele entende como metal. Por fazer parte de uma cena

    extremamente codificada, no difcil imaginarmos que o Gangrena Gasosa seja

    constantemente questionado em relao ao seu modo de agir. No entanto, as provocaes

    contidas nesse questionamento, no so dispensadas, mas usada a favor da banda. O fato de no

    se vestirem como as outras bandas de metal, com cintures, coturnos, jeans e camisa preta,

    chama mais a ateno do que se todos estivessem dentro dos padres do gnero.

    Enquanto a mdia especializada tentava, e ainda tenta, compreender o que o sarav metal,

    tentando elucida-lo dentro de formas e padres j existentes, outros indivduos importantes no

    ciclo de autenticao como Joo Gordo, Jello Biafra e Bnego tinham curiosidade para ver

    que o de fato estava acontecendo. Esses por sua vez, com uma viso do sarav metal como algo

    novo, indito e curioso.

    Assim como a opinio dos experts podem divergir, a do pblico tambm encontra-se em

    conflito. Acompanhando a banda e seu pblico, vejo que algumas pessoas que se apoiam mais

    nas opinies dos experts ou ficam sem conseguir opinar sobre a banda, ou recusam o sarav

    metal como gnero autentico dentro do metal, ao passo que os que apoiam criticam esse

    posicionamento. Enquanto uns dizem que autntico e outros dizem que no , isso representa

    diferentes foras puxando para lados opostos, geram uma dinmica que ajuda a fomentar o

    gnero.

    Simone S fala sobre dois vetores bsicos que atuam no processo de formao e

    diferenciao entre as cenas, e que atuam em direes opostas, um a favor da estabilidade da

    uma tradio musical, o outro trabalhando no sentido da disrupo das continuidades.

    31 Ao DVD Desagradvel.

  • 39

    o primeiro trabalhando a favor da estabilizao de uma tradio musical como o caso, num exemplo familiar, da comunidade do samba no Brasil, eternamente engajada na busca das razes, origens e

    linhas de autenticidade; e o outro trabalhando no sentido da disrupo

    das continuidades, buscando um dilogo cosmopolita e relativizador

    das razes com o cenrio internacional e que tem na mudana, e no na

    estabilidade estilstica, a referncia mais importante, como seria o caso,

    tambm num exemplo que nos familiar, o da gerao do BRock dos

    anos 1980 no Brasil." (S, 2011, p.151)

    medida que o Gangrena Gasosa mantm os elementos bsicos da msica metal peso,

    distoro, velocidade, agressividade a banda mistura elementos de gneros regionais como

    tringulo, pandeiro e atabaque. Alguns podem achar essa mistura abominvel, mas o tempo de

    estrada e a trajetria da banda mostram que a maioria no s aceita, como defende o sarav

    metal como rtulo autntico ligado ao metal.

    A justificativa para a criao do sarav metal dada pelos msicos do Gangrena Gasosa em entrevistas imprensa era a de que sempre

    ouviam msicas heavy metal com referncias a seres do alm de outras

    paragens, da mitologia europeia, e que decidiram mudar essa temtica

    em suas composies remetendo-as s assombraes e ao alm interno

    ao territrio nacional, principalmente o sobrenatural da umbanda e dos

    neopentecostais. (ALVIN, 2006, p.58)

    O metal, assim como o samba no trecho de Simone S destacado acima, parece eternamente

    engajado na busca das suas razes, no entanto, atravs de novas propostas (rupturas) que o

    gnero se mantm vivo. Os processos de autenticao tomam-se ento essncias para essa

    sobrevivncia, uma vez que por meio desses processos que novos gneros autnticos,

    filiados ou no, podem surgir.

    O Gangrena Gasosa um autntico fruto do underground carioca, formada por pessoas que

    faziam parte dessa cena e eram profundos conhecedores do gnero, o que lhes permite falar de

    certo lugar de autoridade. Em Quem Gosta de Iron Maiden Tambm Gosta de KLB a banda

    faz questo de deixar isso bem claro:

    Quem Gosta de Iron Maiden Tambm Gosta de KLB

    Ainda tenho o meu primeiro disco heavy de vinil

    o Killers do Iron Maiden mano, puta que o pariu!

    Eu ouvia o dia inteiro ia at de madrugada

    Hoje em dia os metaleiros so uma puta pleiboyzada

  • 40

    No tinha nada de new metal, linkin park, limp bizkit,

    Korn, system of a down, e esse monte de bichice

    Naqueles tempo do slayer reining blood que era bom

    Salve os deuses do inferno kronos, mantas e abaddon

    Escutei slipknot mas no adiantou nada

    Botaram DJ no meio pra mim isso o que estraga

    S se salvam hoje em dia o anal cunt e brujeria

    S se salvam hoje em dia o anal cunt e brujeria

    Mas hoje em dia...

    Refro (2x):

    Quem gosta de iron meiden

    Tambm gosta de KLB

    (...)

    A letra uma provocao clara aos headbangers da nova gerao que ouvem bandas

    associadas ao new metal, um gnero considerado falso ou no autntico para os headbangers

    que seguem uma linhagem mais estrita ou mais ligada ao underground32. Quem Gosta de Iron

    Maiden Tambm Gosta de KLB uma crtica queles que s gostam das bandas mais

    manjadas, ou que esto na moda, e que no esto integrados aos processos do gnero e do

    underground, uma clara demonstrao de disputa simblica.

    Ao mesmo tempo que critica, a banda ensina o que bom ouvir e o que supostamente deveria

    ser valorizado no lugar desses novos sons: Slayer, Venon, Anal Cunt e Brujeria. Isso mostra

    um engajamento da banda com a cena e com os integrantes da mesma. Seguindo com a temtica

    e o clima de provocaes, Headbanger Voice faz meno seo de cartas da revista Rock

    Brigade e como os fs costumavam se expressar nesse espao.

    32 O New Metal mistura hip hop com metal, bandas como Limp Bizkit, Korn e Linkin Park, presentes

    na primeira dcada do ano 2000, misturam DJs, batidas eletrnicas e samples nas msicas. Por estarem

    mais ligados tendncia impulsionada pelas gravadoras na poca, do que ao heavy metal ou subgneros

    tidos como mais autnticos, o new metal at hoje rejeitado por um grande nmero de fs.

  • 41

    Headbanger Voice

    Caros amigos da Brigade

    Escrevo pra protestar

    Contra certos imbecis

    Que s querem deturpar

    O verdadeiro heavy metal fazendo um monte de misturas

    Eu no concordo com essa porra, isso boiolice pura

    E se no bastasse o funk'o metal veio para completar

    Essa mistura com macumba, esse tal de Sarav

    J acompanho o seu trabalho

    Desde os tempos em preto & branco

    Prefiro mais os velhos tempos

    Me desculpem por ser franco

    Headbanger voice... Headbanger!!!

    E como sou leitor antigo, quero uma sugesto fazer

    Coloquem mais death metal se no eu vou parar de ler

    E pra aumentar ainda mais a minha felicidade

    Eu quero um pster do Glen Benton

    E uma entevista com o Deicide

    Antes de acabar a carta, um recado aos companheiros

    Quero me corresponder apenas com os fs do verdadeiro

    Deathnoisegrindblackmetalsplattercore

    No me escrevam os cabeludos ps Hollywood Rock

  • 42

    Eu curto Impaled Nazarene, Burzum, Behemoth & Samael

    O puro suco da maldade que vem l do fundo do hell

    As publicaes impressas de circulao nacional como a Rock Brigade e a Roadie Crew

    eram uma das principais formas de divulgao e circulao de notcias sobre o gnero. Hoje

    continuam relevantes embora disputem com inmeras outras fontes de informao. Era comum

    que os fs comprassem essas revistas e utilizassem o espao da seo de cartas, na maioria das

    vezes para protestar contra falsos fs ou atitudes no autnticas.

    A busca por autenticidade no metal, diferente do que prope David Grazian se desenha quase

    como obrigatoriedade, uma condio para o pertencimento ao gnero. Essas letras ligadas

    estreitamente ao contexto vivido pela banda demonstram estratgias de negociao de

    autenticidade, so uma forma da banda dizer que tambm parte daquele universo compartilhado

    com os fs. E que assim como eles, tambm so capazes de atuar como vigilantes de

    fronteiras.

    A proposta de fazer um black metal brasileiro, usando as temticas ocultas da nossa

    cultura, ao mesmo tempo que parece um tipo de brincadeira, em alguns parece ser levada

    bastante a srio. Mesmo no sendo da umbanda, os integrantes demostram um grande

    conhecimento sobre o tema. Alguns episdios sinistros fazem parte da histria da banda, o

    que ajuda a alimentar ainda mais esse lado black metal do Gangrena Gasosa.

    Alm de atrarem os exus para os centros prximos, alguns integrantes j passaram por

    situaes pouco provveis, sem contar a mar de azar constante que ronda a banda. Paulo,

    um dos primeiros vocalistas da banda foi espancado quase at a morte certa vez. Um grupo

    cercou o vocalista e perguntou se ele sabia com o que estava mexendo, tentando se defender

    sem nenhuma chance, ele no sabe explicar como escapou vivo do ataque.

    Outro episdio correu na linha do trem, o lugar estava deserto, o vocalista conta que uma

    mulher muito suja se aproximou e eles comearam a conversar, e isso at onde ele se lembra.

    No outro dia acordou nu, todo machucado e deitado na linha do trem. O fato que para mexer

    com esse tipo de assunto preciso saber o que est fazendo, seja para lidar com as entidades,

    seja de encarar os fanticos religiosos e demais tipos de represlia.

  • 43

    Chuta que Macumba

    Pode ser catlico, crente ou judeu

    Muulmano, hare krishna, budista e at ateu

    Quem tem c tem medo, as preguinhas ficam tensas

    Quando passa por despacho sempre pede d licena

    Ainda vem com aquele papo

    Que um cara que respeita

    Mas fica todo cagado

    Quando v uma vela preta

    Bagulho casca grossa

    quando o cara macumbro

    Que o terreiro um puxadinho

    Do lado do galinheiro

    A macumba tudo isso

    E ainda faz pior

    Quando pede s pecado

    E recebe aps o eb

    Tu j viu religio

    Que ainda pede sacrifcio?

    Pra fazer o mal ento

    Fica ainda mais difcil

    Religio que se aproxima

    a tal do maom

    Se o malandro chuta santa

    Pode ficar sem o p

    Mas enquanto eles mandam

    Mulher arrancar o grelo

  • 44

    Macumbro amarra o par

    Sacrificando carneiro

    Refro (4x)

    Meu ex cab de comer

    P parar de tremer

    Chuta que macumba! Chuta que macumba!

    Evanglico que foda

    Sempre luta com o diabo

    Pra se fingir de possudo

    Sempre tem um arrombado

    Quem acredita nessa porra

    Tem mais que se fuder

    O crente acha que o capeta

    No tem mais o que fazer

    Quem acredita nessa porra

    Tem mais que se fuder

    O crente acha que o capeta

    No tem mais o que fazer

    Podem at achar legal

    Quem bota cuia na molra

    Mas coloca uma guia

    Tu se sente uma caveira

    Te dichavam cum nojo

    Como fosse um bode preto

    Logo vem uma crente via

    Que te entope de panfleto

  • 45

    Arranca a cabea dela

    E bota dentro de um saco

    Joga na encruzilhada

    Com dend dentro do prato

    Refro (4x)

    Meu ex cab de comer

    P parar de tremer

    Chuta que macumba! Chuta que macumba!

    Algumas imagens antigas contidas no DVD Desagradvel mostram o pblico aps receber

    a chuva de despacho, alguns fs parecem realmente estarem possudos, bangeando33 de forma

    mais estranha que o normal, se verdade ou no, no temos como saber, mas alguns fs que

    no conseguiam fugir a tempo da chuva de farofa saiam da casa de show desconfiados de

    qualquer situao estranha que acontecesse.

    Alm da sonoridade, das letras, das performances e das lendas envolvendo o Gangrena

    Gasosa, seu posicionamento em relao ao mercado tambm demonstra uma atitude em direo

    busca por autenticidade. A banda est disposta a manter sua integridade, seguindo seus

    prprios interesses, independente de conseguirem um contrato com uma gravadora ou no. Seus

    ltimos trabalhos foram lanados de forma independente e a banda segue firme nesse objetivo.

    33 Bater cabea, a forma como os fs de metal costumam reagir msica.

  • 46

    CONCLUSO

    Dizer que o sarav metal um rtulo autntico afirmar que ele alm de ser algo

    minimamente original, est tambm inserido num ciclo de autenticao, conseguindo organizar

    esforos de forma eficiente e bem sucedida nos mais de 20 anos de carreira. A mistura de

    elementos pouco provveis para uma banda de metal foi negociada de maneira eficaz. O

    Gangrena Gasosa e continuar sendo, a primeira banda de sarav metal do mundo.

    Na confeco deste trabalho utilizei uma srie de textos e artigos que ligavam a questo da

    autenticidade ao gnero musical, passei por trabalhos que falavam da cena blues de Chicago,

    do hip hop em Istambul e da cena careca da regio do ABC paulista, entre outros. Alguns

    desses textos foram de grande importncia para a transcrio dos processos de autenticao que

    demonstrei aqui a partir do sarav metal. Isso me ajudou a descobrir que os esforos de

    autenticidade esto presentes nos mais diferentes gneros, s que organizados e administrados

    de formas distintas.

    O sarav metal conquistou seu espao como rtulo praticamente exclusivo atravs das

    disputas que podem ser representadas como movimentos de preservao e alargamento das

    fronteiras no territrio do metal. Hora preservando, buscando manter uma unidade e reforando

    sua filiao com o metal, hora estendendo os limites das fronteiras propostas pelo gnero e sua

    comunidade de fs e ouvintes. Talvez seja por conta desse ambiente de constante disputa, nem

    sempre amigvel, que geralmente msicos e bandas so associados a guerreiros, por suas aes,

    sonhos e batalhas a serem vencidas.

    Espero que com essa breve apresentao tenha conseguido ampliar as questes acerca da

    autenticidade, que deve ser pensada para alm das questes de cooptao ou de mercado, de

    mainstream x underground. Msica no cooptada no quer dizer necessariamente que seja

    autntica, assim como ser cooptada no exclui de uma banda ou artista seu possvel carter

    autntico. No o pblico, a banda, ou o mercado que decide o que legtimo ou no, mas sim

    todos esses meios juntos, cada um com seu discurso e sua forma gerir a autenticidade, h um

    grande espao para negociaes. Fugir dessa simplificao ajuda a compreendermos melhor as

    novas relaes que esto sendo construdas entre objetos de consumo e consumidores, a

    formao e a constituio dos nichos e dos gostos pessoais.

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    Sarav!

    Gangrena Gasosa

    Em p:

    Exu Caveira (Minoru Murakami - Guitarra)

    Pomba Gira (G - Percusso)

    Exu Tranca Rua (Will Vilante - Baixo)

    Z Pelintra (Angelo Arede - Vocal)

    Caboclo Sete Flechas (Heitor Peralles - Percusso).

    Agachados:

    Omulu (Rocco - Vocal)

    Exu Mirim (Renzo - Bateria).

    Foto por Karen Navega (http://www.facebook.com/karennavegafotografa)

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    Bibliografia

    ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis:Punks e darks no espetculo urbano. So Paulo:

    Scritta, 1994.

    CARDOSO FILHO, Jorge, JANOTTI Jr, Jeder. A msica popular massiva, o mainstream e

    o underground: trajetrias e caminhos da msica na cultura miditica. In: FREIRE FILHO, Joo

    e JANOTTI Jr, Jeder (org). Comunicao e msica popular massiva. Salvador: EDUFBA, 2006.

    CHRISTE, Ian. Heavy Metal A histria completa; traduo de Milena Duarte e Augusto

    Zantoz. So Paulo: Arx, 2010.

    FERNANDES, Fernanda Marques. Msica, Estilo de Vida e Produo Miditica na cena

    Indie Carioca. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO/UFRJ, Programa

    de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura; 2007

    GRAZIAN, David. The Symbolic Economy of Authenticity in the Chicago Blues Scene in

    BENETT, A.; PETERSON, R..Music scenes: local, translocal & virtual: Vanderbilt University

    Press, 2004. p. 31-47.

    HARRIS, Keith, 2000. 'Roots'?: the relationship between the global and the local within the

    Extreme Metal scene. Popular Music, 19 (1), pp. 13-30. ISSN 14740095 [Article]: Goldsmiths

    Research

    JANOTTI Jr., Jeder. Heavy metal com dend: rock pesado e mdia em tempos de