Sarlet_2008_Direito à Moradia e Penhora Do Imóvel Do Fiador Breves Notas a Respeito Da Atual...

7
____________________________________________________________________ DIREITO À MORADIA E PENHORA DO IMÓVEL DO FIADOR: BREVES NOTAS A RESPEITO DA ATUAL POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO INGO WOLFGANG SARLET * PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia – Penhora – Propriedade – Supremo Tribunal Federal Brasileiro. KEYWORDS: Right to Housing – Pledge – Property – Brazilian Federal Supreme Court. A despeito da evolução jurisprudencial precedente, que, especialmente a partir da inclusão do direito à moradia no art. 6º da Constituição, passou a tutelar cada vez mais a moradia na condição de bem fundamental, especialmente nas hipóteses em que estava em causa a proteção da propriedade imobiliária utilizada para fins de moradia contra uma penhora (seja ampliando o âmbito de proteção do assim chamado bem de família, seja por aplicação direta do direito à moradia, hipótese, todavia, menos comum), o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 08 de fevereiro de 2006 (Recurso Extraordinário nº 407.688-8, Rel. Min. Cezar Peluso), acabou por considerar constitucionalmente legítima a penhora do imóvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislação que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de família (art. 3º, inciso VII, da Lei Federal nº 8009/90, na versão que lhe deu a Lei Federal nº 8.245/91). Considerando que a penhora do imóvel residencial, que vinha, em regra – embora alguns temperamentos – sendo tida como inconstitucional por parte de expressiva jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e até mesmo, em decisão monocrática anterior, do próprio Supremo Tribunal Federal 1 , constitui uma possível forma de violação do direito à moradia (pois se cuida de uma afetação do bem constitucionalmente tutelado) coloca-se a questão do acerto da decisão ora comentada, ainda mais em se levando em conta os fundamentos esgrimidos pelos votos vencedores e a repercussão da decisão. Embora não se pretenda adentrar todos os possíveis aspectos ventilados na decisão, * Doutor e Pós-Doutor em Direito (Munique, Alemanha). Professor Titular e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da PUCRS. Professor de Direito Constitucional e Direitos Fundamentais na Escola da AJURIS e Juiz de Direito no RS. 1 V. a decisão nos Recursos Extraordinários de nº 352.940 e 449.657, relatados pelo Ministro Carlos Velloso.

description

Ingo Wolfgang Sarlet.

Transcript of Sarlet_2008_Direito à Moradia e Penhora Do Imóvel Do Fiador Breves Notas a Respeito Da Atual...

  • ____________________________________________________________________

    DIREITO MORADIA E PENHORA DO IMVEL DO FIADOR: BREVES NOTAS A

    RESPEITO DA ATUAL POSIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO

    INGO WOLFGANG SARLET

    PALAVRAS-CHAVE: Direito Moradia Penhora Propriedade Supremo Tribunal Federal Brasileiro.

    KEYWORDS: Right to Housing Pledge Property Brazilian Federal Supreme Court.

    A despeito da evoluo jurisprudencial precedente, que, especialmente a partir da incluso do direito moradia no art. 6 da Constituio, passou a tutelar cada vez mais a moradia na condio de bem fundamental, especialmente nas hipteses em que estava em causa a proteo da propriedade imobiliria utilizada para fins de moradia contra uma penhora (seja ampliando o mbito de proteo do assim chamado bem de famlia, seja por aplicao direta do direito moradia, hiptese, todavia, menos comum), o Supremo Tribunal Federal, em deciso proferida em 08 de fevereiro de 2006 (Recurso Extraordinrio n 407.688-8, Rel. Min. Cezar Peluso), acabou por considerar constitucionalmente legtima a penhora do imvel residencial do fiador, tal qual autorizada pela legislao que excepcionou a regra geral da impenhorabilidade do bem de famlia (art. 3, inciso VII, da Lei Federal n 8009/90, na verso que lhe deu a Lei Federal n 8.245/91). Considerando que a penhora do imvel residencial, que vinha, em regra embora alguns temperamentos sendo tida como inconstitucional por parte de expressiva jurisprudncia, inclusive do Superior Tribunal de Justia e at mesmo, em deciso monocrtica anterior, do prprio Supremo Tribunal Federal1, constitui uma possvel forma de violao do direito moradia (pois se cuida de uma afetao do bem constitucionalmente tutelado) coloca-se a questo do acerto da deciso ora comentada, ainda mais em se levando em conta os fundamentos esgrimidos pelos votos vencedores e a repercusso da deciso.

    Embora no se pretenda adentrar todos os possveis aspectos ventilados na deciso,

    Doutor e Ps-Doutor em Direito (Munique, Alemanha). Professor Titular e Coordenador do Programa de

    Ps-Graduao em Direito (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da PUCRS. Professor de Direito Constitucional e Direitos Fundamentais na Escola da AJURIS e Juiz de Direito no RS. 1 V. a deciso nos Recursos Extraordinrios de n 352.940 e 449.657, relatados pelo Ministro Carlos Velloso.

  • ____________________________________________________________________

    alguns pontos chamam particularmente a ateno e reclamam uma avaliao crtica. Para tanto, faz-se necessria uma breve resenha dos principais argumentos colacionados tanto no voto do relator, Ministro Cezar Peluso, quanto nos demais votos proferidos. Iniciando pelo que disse o ilustre relator na sua fundamentao, verifica-se que boa parte das premissas que sustentam as concluses podem ser facilmente ratificadas. Com efeito, aps ter reconhecido que o direito moradia direito social e que constitui direito subjetivo que compe o espao existencial da pessoa humana, o relator, igualmente com acerto, averbou serem vrias, se no ilimitadas, as modalidades ou formas por meio das quais o Estado, definindo-lhe o objeto ou o contedo das prestaes possveis, pode concretizar condies materiais de exerccio do direito social moradia. Mais adiante, afinado com a doutrina atualmente prevalente e mesmo com os parmetros internacionais, destaca o voto vencedor que o direito moradia no se confunde, necessariamente, com o direito propriedade imobiliria ou o direito de ser proprietrio de bem imvel, salientando, todavia (e neste passo j principia o encaminhamento da concluso), que o direito moradia pode, sem prejuzo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurdica que estimule ou favorea o incremento da oferta de imveis para fins de locao habitacional, mediante previso de reforo das garantias contratuais dos locadores. Na seqncia, ao afirmar que a ratio legis da exceo legal regra da impenhorabilidade reside justamente na garantia do acesso moradia pela via da locao de imveis, obstaculizada pela falta, insuficincia ou onerosidade de garantias contratuais licitamente exigveis pelos proprietrios ou possuidores de imveis de aluguel, o Ministro relator lana sua concluso, no sentido de que a salvaguarda da exceo legal, por assegurar o acesso moradia de uma classe ampla de pessoas interessadas na locao h de prevalecer em face do dano menor resultante para os fiadores proprietrios de um s imvel, ainda mais no sendo estes obrigados a prestar fiana. Para finalizar, averba o relator que castrar essa tcnica legislativa, que no pr-exclui aes estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilbrio do mercado, despertando exigncia sistemtica de garantias mais custosas para as locaes residenciais, com conseqente desfalque do campo de abrangncia do prprio direito constitucional moradia.

    Em face do arcabouo argumentativo esgrimido no voto condutor da deciso, impe-se uma srie de consideraes, parte delas ventilada no bojo dos outros votos proferidos, muito embora em boa parte sem maior desenvolvimento.

    Desde logo, como bem lembrou o Ministro Eros Grau, autor de um dos trs votos divergentes, preciso considerar que a penhora recaiu sobre o nico bem imvel de propriedade do fiador, no caso, o imvel que lhe serve de moradia, recordando, ainda, que a impenhorabilidade do imvel residencial instrumenta a proteo do indivduo e de sua famlia quanto a necessidades materiais, de sorte a prover sua subsistncia. Alm disso, aps enfatizar o vnculo entre a tutela do imvel residencial e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, evoca simultnea violao do princpio isonmico, visto que o afianado, que no pagou os alugueres, estaria beneficiado pela impenhorabilidade, ao passo que ao fiador estaria subtrado o benefcio. Mais adiante, j no embate direto com o Ministro-Relator, refuta o carter programtico das normas constitucionais, afirmando o seu efeito vinculante, bem como afastando o argumento

  • ____________________________________________________________________

    de que a impenhorabilidade do bem de famlia causar forte impacto no mercado de locaes, j que polticas pblicas devero assegurar este mercado de modo apropriado.

    Muito embora no se possa imputar ao Relator o fato de ter outorgado ao direito moradia a condio de norma programtica, e a despeito de ter aquele esclarecido que a inteno justamente proteger os que no so proprietrios, j que estes constituem uma minoria no Brasil, seguem em aberto algumas questes vinculadas argumentao do Ministro Eros Grau, merecedoras de reflexo mais detida.

    A primeira diz respeito ao fato de que em se cuidando do nico imvel do fiador e servindo este de residncia para aquele e/ou sua famlia, em princpio, no se pode simplesmente admitir o sacrifcio do direito fundamental (e, no caso, possivelmente, a depender das circunstncias!, at mesmo uma violao da prpria dignidade da pessoa humana) por conta de uma alegao genrica e ainda por cima desacompanhada at mesmo de dados comprobatrios, de uma tutela do direito moradia de um conjunto maior de pessoas. A dignidade da pessoa humana, assim como o ncleo essencial dos direitos fundamentais de um modo geral, no pode ser pura e simplesmente funcionalizada em prol do interesse pblico, mesmo que este seja compreendido como interesse socialmente relevante de uma comunidade de pessoas. Importa recordar, nesta quadra, que embora legtimas, em determinadas circunstncias, restries a direitos fundamentais, estas devem respeitar os critrios da proporcionalidade e, acima de tudo, preservar o ncleo essencial do direito restringido. Alis, justamente no exame dos critrios da proporcionalidade que reside uma das lacunas da deciso ora comentada. Se aos rgos estatais incumbe um permanente dever de proteo de todos os bens fundamentais e a restrio de algum direito encontra fundamento na tutela de outro, impe-se, de qualquer modo, sempre a observncia dos critrios da proporcionalidade na sua dupla acepo, pois tanto est vedado ao Estado intervir excessivamente na esfera de proteo de bens fundamentais quando atuar de modo manifestamente insuficiente (ou o que pior, sequer atuar) na tutela do mesmo ou de outros bens fundamentais2.

    Mesmo que aqui no se v adentrar nas possveis distines entre os institutos da proibio de excesso e de proteo insuficiente, importa pelo menos lanar algumas indagaes em relao a esta perspectiva de abordagem do problema ora discutido. Assim, se de fato plausvel aceitar, a exemplo do que argumentou o Relator, que a possibilidade da penhora do imvel do fiador, por constituir garantia do contrato de locao, acaba tambm sendo um meio de assegurar o acesso locao e, portanto, moradia para quem no proprietrio, j no que diz com o critrio da necessidade as

    2 A respeito desta dupla perspectiva (proibio de excessos e de proteo insuficiente ou deficiente) v.,

    entre ns, especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. Constituio e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibio de excesso e de insuficincia, in: Revista Brasileira de Cincias Criminais n 47, maro-abril de 2004, p. 60-122, assim como STRECK, Lenio Luiz. Da proibio de excesso (bermassverbot) proibio de proteo deficiente (Untermassverbot): de como no h blindagem contra normas penais inconstitucionais, in: Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica n 2 (2004), p. 243 e ss, assim como FELDENS, Luciano. A Constituio Penal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. Dentre a literatura estrangeira, notadamente no que diz com a aplicao da proibio de insuficincia e dos imperativos de tutela no mbito do Direito Privado, v. o pioneiro e paradigmtico CANARIS, Claus-Wilhelm, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2003, traduo da edio alem de 1999, onde o autor retoma e desenvolve seus estudos sobre o tema desde j o incio dos anos 1980.

  • ____________________________________________________________________

    coisas no parecem to simples, pois, em havendo outros meios disponveis, a opo deveria recair no meio menos gravoso, considerado como tal o que menos restringe o direito fundamental colidente, no caso, o direito moradia do fiador e de sua famlia, pois sequer se est aqui argumentando com a tutela da propriedade na sua dimenso meramente patrimonial. O argumento de que no existem outras garantias para o crdito em execuo evidentemente falho, visto que no foi examinada a possibilidade de se lanar mo de outros meios, como, por exemplo, a exigncia de fiador proprietrio de imvel que no seja residencial ou mesmo a utilizao do seguro fiana, que, se fosse mais difundido e submetido a controle rigoroso, poderia inclusive gerar a total desnecessidade da utilizao de garantias reais. A no-utilizao das alternativas referidas (ou mesmo de outras, que, de resto, tambm incumbe ao Estado disponibilizar no mbito dos seus deveres de proteo!) no significa que no estejam disponveis e que, portanto, no possam ser levadas em conta. Assim, vista a questo sob este vis, no mnimo haver de se considerar a possibilidade de considerar, nas circunstncias do caso, que a penhora do imvel residencial (nico imvel do fiador) como violao da proporcionalidade. De outra parte, mesmo superado o exame do critrio da necessidade, haveria de se avaliar a violao da assim designada proporcionalidade em sentido estrito ou, para quem assim o preferir, a ingerncia no ncleo essencial do direito fundamental, que, quando detectada, implica a manifesta inconstitucionalidade do ato. Sem que se v aqui avanar mais neste exame, inclusive para fins de anlise do atendimento das exigncias tambm da proibio de proteo deficiente, a crtica mais contundente que possivelmente poder ser direcionada que tais questes, a despeito de sua relevncia (pois inequivocamente este em causa uma restrio de direito fundamental) no chegaram a ser minimamente desenvolvidas na deciso.

    Seguindo j outra linha de raciocnio, tanto o Ministro Joaquim Barbosa quanto o Ministro Gilmar Mendes, ambos secundados pelo Ministro Seplveda Pertence (invocando que se poderia estar chancelando a incapacidade civil do fiador) enfatizaram, em sntese, que a regra legal que excepciona a impenhorabilidade no constitui violao do direito moradia pelo fato de que o fiador voluntariamente, portanto, no pleno exerccio da sua autonomia de vontade. Por mais que se deva admitir que a prpria liberdade contratual expressa uma manifestao da mesma dignidade da pessoa humana que serve de fundamento ao contedo existencial da propriedade, quando, por exemplo, serve de moradia ao seu titular, no se pode olvidar que a ordem jurdica impe limites significativos autonomia privada, especialmente quando se cuida de hipteses de renncia a direitos fundamentais. A prpria alienao voluntria da integralidade do patrimnio, em havendo herdeiros necessrios ou eventualmente outros interesses a serem tutelados encontra limites em determinadas circunstncias, sendo, se resto, equivocada a apontada identidade entre a venda e a prestao de fiana3, tal como afirmou o Ministro Cezar Peluso ao intervir no voto do Ministro Carlos Britto, que justamente invocou (ainda que se possa controverter a correo da tese luz do caso concreto) a indisponibilidade do direito moradia.

    3 No mnimo, h que levar em conta que a venda do patrimnio resulta em benefcio patrimonial para

    prprio vendedor (alienante) e que tal situao no pode ser equiparada dao em garantia que poder resultar na expropriao do imvel!

  • ____________________________________________________________________

    Se de fato correta a tese, de resto sufragada por expressiva doutrina e inclusive acatada pelo voto do Relator, de que a moradia constitui um existencial humano, sendo, pelo menos naquilo em que revela uma conexo com a dignidade da pessoa humana, um direito de personalidade, no se pode deixar de reconhecer tambm, pelo menos em princpio, a existncia de um dever de proteo (que tambm vincula o Poder Judicirio!) da pessoa contra si mesma, pelo menos no mbito em que prevalece a indisponibilidade do direito, o que ocorre justamente no plano da sua dimenso existencial4. Da mesma forma, se em princpio se poder afastar a existncia de coao, tambm correto que em muitas hipteses resulta praticamente inexigvel a negativa da prestao da fiana, especialmente nos casos de garantias prestadas por familiares prximos. Embora as hipteses no sejam idnticas, a referncia difundida deciso do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha5, que versava justamente sobre a liberao da responsabilidade por parte da filha (na fase da execuo) que havia espontaneamente afianado um contrato de mtuo bancrio do pai no nos parece impertinente.

    Tambm aqui no houve maior considerao das circunstncias do caso concreto, pelo menos para investigar o efetivo carter existencial da moradia ou mesmo a existncia de alternativas viveis de acesso a uma moradia decente para o fiador e sua famlia (por exemplo, pelo menos um trabalho com certa estabilidade e com remunerao compatvel com o aluguel de uma moradia adequada), j que, convm reiterar este aspecto, o direito moradia no se confunde necessariamente com o direito de propriedade e, como ocorre com os demais direitos fundamentais, no assume a condio de direito absolutamente imune a qualquer restrio ou limite. No tendo sido efetuado este exame e em se tratando do nico imvel do fiador e sendo este utilizado para fins residenciais, haveria, por certo, de prevalecer pelo menos uma presuno (ainda que relativa) em favor da indisponibilidade. Neste mesmo contexto, cuidando-se de uma situao envolvendo o prprio contedo e limites da autonomia privada e da liberdade contratual, tambm seria possvel discutir a presena efetiva de uma vontade livre, no afetada por eventuais vcios do consentimento, o que, a depender das circunstncias, por si s j poderia fazer cair por terra o argumento da livre indicao do bem por parte do fiador. O que nos importa, quanto a este ponto, demonstrar o quanto a questo da eventual renncia (o que tambm ocorre nos casos de auto-limitao) ao bem por parte do fiador demanda maior digresso e o quanto est vinculada ao j mencionado problema das possibilidades e

    4 A respeito do tpico v. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio

    Federal de 1988, p.115 e ss. Sobre as possibilidades e limites das renncias em matria de direitos fundamentais, no mbito da literatura em lngua portuguesa, v. especialmente NOVAIS, Jorge Reis. Renncia a Direitos Fundamentais, in: MIRANDA, Jorge (Org). Perspectivas Constitucionais, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 263-335. Cuidando da temtica na perspectiva dos direitos de personalidade, v., dentre outros, MOTA PINTO, Paulo, Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito portugus, in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). A Constituio Concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61-84. 5 Cf. BVerfGE vol. 89, p. 214 e ss., onde prevaleceu justamente a tese de que a autonomia privada no

    pode ser entendida apenas num sentido formal, de tal sorte que, em determinadas circunstncias, a pessoa pode e deve ser tutelada em face de disposies contratuais que lhe so desvantajosas.

  • ____________________________________________________________________

    limites da assim designada proteo da pessoa contra si mesma, temtica que, dados os estreitos limites deste comentrio, no teremos condies de desenvolver.

    A partir do exposto e por mais que se possa avanar na discusso e avaliar outros argumentos, tenham, ou no, sido ventilados na deciso ora comentada, j possvel perceber o quanto uma soluo constitucionalmente adequada, mormente em matria de tamanha repercusso geral, reclama maior investimento argumentativo. Da mesma forma, verifica-se que se est apenas diante de mais uma dentre tantas questes decididas pelo Supremo Tribunal Federal que escancaram o quo falaciosa a distino entre matria de fato e matria de Direito. Alm disso, a desconsiderao de importantes dimenses do caso concreto aponta para a possibilidade de equvocos significativos no processo decisrio e, o que pior, de um resultado que pode implicar flagrante violao de princpios fundamentais e do prprio ncleo essencial de direito fundamental, apenas contornveis se forem levados a srio os cnones da interpretao constitucional, notadamente o de que toda a interpretao dever ser tpico-sistemtica6. A situao, todavia, acaba sendo ainda mais grave se deciso em favor da legitimidade constitucional da penhora vier a ser outorgada eficcia erga omnes e efeito vinculante, mormente se impeditiva pelo menos de uma divergncia justificvel luz das circunstncias do caso concreto, sem que se v aqui adentrar a discusso em torno da legitimidade constitucional do efeito vinculante em decises que sequer atendem o quorum qualificado da smula vinculante. To fundado o receio, que j se verifica uma tendncia, mesmo por parte de rgos judicantes que antes consideravam inconstitucional a exceo legal permissiva da penhora, de, sem qualquer reflexo adicional (sequer para justificar minimamente as razes da alterao de seu convencimento e mesmo sem qualquer olhar para as circunstncias do caso concreto) pura e simplesmente alterarem o seu posicionamento, afinando-o com a orientao ora imprimida pelo Supremo Tribunal Federal. Mais grave, todavia, a constatao de que existem at mesmo decises que, na contramo da prpria fundamentao do Supremo Tribunal Federal (visto que no se trata de uma razo ventilada como sustentculo da deciso ora comentada) e incidindo em flagrante violao do princpio da proibio de retrocesso, chegam a afirmar que o direito moradia constitui norma de cunho meramente programtico, destituda at mesmo da eficcia mnima atribuda s normas de eficcia limitada, designadamente a de revogar disposio legal anterior que lhe seja manifestamente contrria, tudo a demonstrar a urgncia e atualidade da discusso aqui travada.

    Importa enfatizar, nesta quadra, que no se trata aqui de fazer coro com os que pregam uma espcie de resistncia teimosa e irrefletida s decises do Supremo Tribunal Federal, pois a crtica que aqui se formula tambm abarca decises que, igualmente sem maior reflexo e conexo com as circunstncias do caso concreto (e da dignidade concreta das pessoas s quais dizem respeito os casos!) em vrias hipteses transformaram o discurso legtimo em prol do direito moradia em instrumento de tutela de propriedades de luxo, como se propriedade e moradia fossem direitos

    6 Sobre o tema v. as indispensveis lies de FREITAS, Juarez, A Interpretao Sistemtica do Direito,

    4 d., So Paulo: Malheiros, 2004, bem como de PASQUALINI, Alexandre. Hermenutica e Sistema Jurdico Uma Introduo Interpretao Sistemtica do Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

  • ____________________________________________________________________

    idnticos e como se fossem direitos absolutamente blindados a qualquer limite ou restrio. O que se buscou problematizar neste ensaio, foi justamente a necessidade de se exercer uma resistncia em relao a solues simplistas e generalizadas, e que a busca da melhor resposta implica avaliao criteriosa no apenas de algumas questes de ordem normativa e formal. O que se espera, que o Supremo Tribunal Federal, assim como j o fez no caso do direito sade (especificamente no caso da limitao do fornecimento de medicamentos apenas aos constantes na relao elaborada pelo Ministrio da Sade e que complementa a legislao) ou mesmo como ocorreu com os possveis temperamentos do efeito vinculante na hiptese da vedao de tutela antecipada contra a fazenda pblica, siga de portas abertas: se no ocorrer uma reformulao radical do entendimento ora prevalente e expresso pelo voto da maioria dos seus Ministros, pelo menos que haja sensibilidade suficiente para uma possvel flexibilizao luz das circunstncias do caso concreto, pena de, no limite, acabarem sendo chanceladas situaes de extrema injustia.