Sartre, Jean Paul - Da Liberdade Inútil à Consciência

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An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 139-143, jul. 2003 JEAN-PAUL SARTRE DA LIBERDADE INÚTIL À CONSCIÊNCIA CLÉA GOIS E SILVA Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ DCHLA da Universidade Veiga de Almeida - UVA xistencialismo ou a filosofia da existência é uma vasta corrente filosófica contempo- rânea que se afirma na Europa logo após a Primeira Guerra Mundial, se impõe no período entre as duas guerras e se desenvolve ainda mais e se expande até tornar-se moda sobretudo nas duas décadas poste- riores à Segunda Guerra Mundial. Assim, se consideramos o tempo de seu nascimento e de seu cresci- mento, é fácil perceber que o exis- tencialismo expressa e leva à consci- entização a situação histórica de uma Europa dilacerada física e mo- ralmente por duas guerras, de uma humanidade européia que, entre as duas guerras, experimentam em muitas de suas populações a perda da liberdade, com regimes totalitári- os. A época do existencialismo é época de crise: a crise daquele otimismo romântico que, durante todo o século XIX e a primeira década do século XX, garantia o sentido da história em nome da Razão, do Absoluto, da Idéia ou da Humanidade, funda- mentava valores estáveis e assegu- rava um progresso certo e incontível. O idealismo, o positivismo e o mar- xismo são todas filosofias otimistas, que presumem ter captado o princí- pio da realidade e o sentido progres- sivo absoluto da história. O existen- cialismo, porém, considera o homem como ser finito, lançado no mundo e continuamente dilacerado por situa- ções problemáticas ou absurdas. E é precisamente pelo homem, o homem em sua singularidade, que o existen- cialismo se interessa. O homem do existencialismo não é o objeto que exemplifica uma teoria, um membro de uma classe ou um exemplar de gênero substituível por outro exem- plar qualquer do mesmo gênero. Da mesma forma, o homem considerado pela filosofia da existência também não é simples momento do processo de uma Razão oniabrangente ou uma dedução do Sistema. A existên- cia é indedutível e a realidade não se identifica com a racionalidade e nem se reduz a ela. A não identificação da realidade com a racionalidade é acompanhada, como elemento característico, por três pontos básicos do pensamento existencialista, que são: a) a centra- lidade da existência como modo de ser daquele ente finito que é o ho- mem; b) a transcendência do ser - o mundo e/ou Deus - com o qual a existência se relaciona; c) a possibi- lidade como modo de ser constitutivo E

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  • An. Filos. So Joo del-Rei, n. 10. p. 139-143, jul. 2003

    JEAN-PAUL SARTREDA LIBERDADE INTIL CONSCINCIA

    CLA GOIS E SILVADepartamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJDCHLA da Universidade Veiga de Almeida - UVA

    xistencialismo ou a filosofiada existncia uma vastacorrente filosfica contempo-

    rnea que se afirma na Europa logoaps a Primeira Guerra Mundial, seimpe no perodo entre as duasguerras e se desenvolve ainda maise se expande at tornar-se modasobretudo nas duas dcadas poste-riores Segunda Guerra Mundial.Assim, se consideramos o tempo deseu nascimento e de seu cresci-mento, fcil perceber que o exis-tencialismo expressa e leva consci-entizao a situao histrica deuma Europa dilacerada fsica e mo-ralmente por duas guerras, de umahumanidade europia que, entre asduas guerras, experimentam emmuitas de suas populaes a perdada liberdade, com regimes totalitri-os.

    A poca do existencialismo pocade crise: a crise daquele otimismoromntico que, durante todo o sculoXIX e a primeira dcada do sculoXX, garantia o sentido da histria emnome da Razo, do Absoluto, daIdia ou da Humanidade, funda-mentava valores estveis e assegu-rava um progresso certo e incontvel.O idealismo, o positivismo e o mar-xismo so todas filosofias otimistas,

    que presumem ter captado o princ-pio da realidade e o sentido progres-sivo absoluto da histria. O existen-cialismo, porm, considera o homemcomo ser finito, lanado no mundo econtinuamente dilacerado por situa-es problemticas ou absurdas. E precisamente pelo homem, o homemem sua singularidade, que o existen-cialismo se interessa. O homem doexistencialismo no o objeto queexemplifica uma teoria, um membrode uma classe ou um exemplar degnero substituvel por outro exem-plar qualquer do mesmo gnero. Damesma forma, o homem consideradopela filosofia da existncia tambmno simples momento do processode uma Razo oniabrangente ouuma deduo do Sistema. A existn-cia indedutvel e a realidade no seidentifica com a racionalidade e nemse reduz a ela.

    A no identificao da realidade coma racionalidade acompanhada,como elemento caracterstico, portrs pontos bsicos do pensamentoexistencialista, que so: a) a centra-lidade da existncia como modo deser daquele ente finito que o ho-mem; b) a transcendncia do ser - omundo e/ou Deus - com o qual aexistncia se relaciona; c) a possibi-lidade como modo de ser constitutivo

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    da existncia e, como categoria in-substituvel na anlise da prpriaexistncia.

    Mas como se qualifica o conceito deexistncia no interior do existencia-lismo? A primeira coisa que se devedestacar que a existncia cons-tituda do sujeito que filosofa e o ni-co sujeito que filosofa o homem:por isso, ela exclusivamente tpicado homem, j que o homem o ni-co sujeito a filosofar. Alm disso, aexistncia modo de ser finito e possibilidade, isto , um poder-ser. Aexistncia, precisamente, no es-sncia, coisa dada por natureza,realidade predeterminada e no mo-dificvel. As coisas e os animais soo que so e permanecem o que so.Mas o homem ser o que ele decidiuser. O seu modo de ser, a existncia, um sair para fora em direo de-ciso e automoldagem. Assim, aexistncia um poder-ser e, portan-to, incerteza, problematicidade,risco, deciso, impulso adiante. Esteimpulso pode ser em direo a Deus,ao mundo, ao prprio homem, a li-berdade, ao nada. Aqui comeam ase dividir as correntes do existencia-lismo conforme a direo tomada.

    Na perspectiva da histria das idias,o existencialismo se apresenta comouma das manifestaes da grandecrise do hegelianismo, manifesta-es que se expressam no pessi-mismo de Schopenhauer, no huma-nismo de Feuerbach e na filosofia deNietzsche e que, por outro lado, en-contram sua correspondncia naobra literria de Dostojewskij e deKafka, obra permeada de to pro-

    funda problematicidade humana .

    Nas razes do existencialismo en-contra-se o pensamento de Kierke-gaard. O chamado renascimentoKierkegaardiano constitui a divisa danova tendncia teolgica do cristia-nismo reformado e teve a sua melhorexpresso na obra de Karl Barth.Sua obra mais importante o co-mentrio Epstola de So Paulo,Carta aos Romanos (1919), refere-seexplicitamente especulao de Ki-erkegaard e uma tentativa de tra-duzir nas formas de tal especulaoum cristianismo depurado dos seusaspectos mticos e farisaicos. Escre-veu Barth

    Se tenho um sistema, ele consiste em

    ter constantemente presente no seu

    significado negativo e positivo aquilo a

    que Kierkegaard chamou a infinita

    diferena qualitativa entre tempo e

    eternidade. Deus est no cu e ns na

    terra. A relao entre este Deus e o

    homem, a relao entre o homem e

    este Deus para mim o tema nico

    da Bblia e da filosofia (p. XIII).

    Mas esta relao o nico tema daBblia e da filosofia porque constitui aprpria existncia do homem.

    Se Kierkegaard a raiz do existenci-alismo, a Fenomenologia a raizmais prxima ainda do existencialis-mo. Com efeito, o existencialismo searticula em contnuo exerccio deanlise da existncia e das relaesda existncia humana com o mundodas coisas e o mundo dos homens.A existncia humana no pode e nodeve ser deduzida a priori; ao contr-

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    rio, ela deve ser escrupulosamentedescrita assim como se manifestamsuas variadas formas da experinciahumana efetiva, esta descrio aaplicao do mtodo fenomenolgi-co.

    A anlise da existncia no foi objetosomente de obras filosficas, como o caso da analtica existencial reali-zada com o mtodo fenomenolgicopor Heidegger em Ser e Tempo, mastambm de vasta obra literria que ,sobretudo com Jean-Paul Sartre eSimone de Beauvoir, sublinhou ostraos menos nobres, mais tristes edolorosos das vicissitudes humanase, com Gabriel Marcel, destacou ostraos mais positivos da experinciada pessoa.

    Na Frana, os representante doexistencialismo so Jean-Paul Sar-tre, Gabriel Marcel, Maurice Merleau-Ponty e Albert Camus.

    No imediato aps guerra, o pensa-mento de Jean-Paul Sartre, nascidoem Paris em 1905, se imps ao p-blico mundial durante cerca de duasdcadas, graas ao seu teatro desituaes, influindo amplamente nasociedade e nos costumes.

    Sartre iniciou a sua atividade depensador com anlises de psicologiafenomenolgica relativas ao eu, imaginao, s emoes. Para Sar-tre, em A Nusea, a vida da perso-nagem de Roquentin desprovidade sentido; nenhum objetivo conse-gue mais orient-lo; ele existe comouma coisa, como todas as coisasque emergem, na experincia da

    nusea, em sua gratuidade e em seuabsurdo: um sujeito sem sentidocancela de golpe o sentido de todasas coisas e passam a faltar instru-es para o seu uso. Tudo gratuito,e quando acontece de nos darmosconta disso, revolta-nos o estomagoe tudo se pe a flutuar, eis a Nu-sea.

    Se a experincia da nusea revela agratuidade das coisas e do homemreduzido a coisa e submerso nascoisas, a anlise desenvolvida em OSer e o Nada revela, antes de maisnada, que a conscincia em primei-ro lugar conscincia de alguma coisae de qualquer coisa que no cons-cincia. Sartre chama a este qual-quer coisa de ser-em-si. O ser-em-sis pode descrever-se analiticamentecomo o ser que aquilo que (p.33), expresso que torna clara a suaopacidade, o seu carter macio eesttico devido ao qual no nempossvel nem necessrio, simples-mente. Relativamente ao ser-em-si aconscincia o ser-para-si , isto ,presena a si mesma. A presena asi mesma implica sua ciso, umaseparao interior no ser da consci-ncia. Uma crena, por exemplo, como tal, sempre conscincia dacrena; mas, para a atingir comocrena, preciso de qualquer modofix-la como crena, separ-la daconscincia, a que presente. Sepa-r-la atravs do Nada. Nada existe epode existir a separar o sujeito de simesmo. A distncia ideal, o lapso detempo, a diferena psicolgica impli-cam certamente, como tais, elemen-tos de positividade; mas a sua fun-o sempre negativa. O nada que

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    surge no corao da conscincia no, mas sim foi. A conscincia est nomundo, no ser-em-si, mas radical-mente diferente do mundo, no estligada ao mundo. A conscincia, quevem a ser a existncia, isto , o ho-mem, , portanto, absolutamentelivre. O ser-em-si o ser que o que; a conscincia no objeto. O serpleno e completo; a conscincia vazia de ser, possibilidade, e apossibilidade no realidade. Aconscincia liberdade.

    A liberdade, segundo Sartre, apossibilidade permanente daquelaruptura ou nulificao do mundo que a prpria estrutura da existncia.

    Eu estou condenado, a existir para

    sempre para alm da minha essncia,

    para alm dos mbiles ou moventes e

    dos motivos do meu ato: eu estou

    condenado a ser livre. (p.515)

    Isto significa que no se pode en-contrar para a minha liberdade ou-tros limites alm da prpria liberdade:ou, se se preferir, que no somoslivres de deixar de ser livres. A liber-dade no o arbtrio ou o caprichomomentneo do indivduo: radica namais ntima estrutura da existncia, a prpria existncia. Um existenteque, como conscincia, est neces-sariamente separado de todos osoutros, j que esses se encontramem relao com ele apenas na me-dida em que existem para ele, umexistente que decide do seu passa-do, sob forma de tradio, luz doseu futuro, em vez de deix-lo pura esimplesmente determinar o seu pre-sente, um existente que se perspec-

    tiva atravs de algo distinto de si, isto, de um fim que no e que eleprojeta no outro lado do mundo, eisaquilo a que chamamos um existentelivre. evidente que a liberdade nose refere tanto aos atos e s voliesparticulares como ao projeto funda-mental em que eles se encontramcompreendidos, o qual constitui apossibilidade ltima da realidadehumana, a sua escolha originria. Oprojeto fundamental deixa sem dvi-da uma certa margem de contingn-cia s volies e aos atos particula-res, mas a liberdade originria aquela que inerente escolha doprprio projeto. E uma liberdadeincondicionada. A modificao doprojeto inicial a todo momento pos-svel. A angstia que, quando reve-lada, manifesta nossa conscinciaa nossa liberdade, testemunha amodificabilidade perptua do nossoprojeto inicial. Ns estamos perpetu-amente ameaados de nulificao danossa escolha atual, perpetuamenteameaados de escolhermos ser, eportanto tornarmo-nos, diferentes doque somos. A nossa escolha frgilpelo simples fato de ser absoluta:assentando sobre a escolha a nossaliberdade, colocamos simultanea-mente a sua perptua possibilidadede tornar-se um aqum ultrapassadopelo alm que eu serei. Certamente,a liberdade do projeto inicial no apossibilidade de fugir ao mundo eanular o prprio mundo. Se a liber-dade significa fugir ao dado ou aofacto, ela o facto do fugir ao facto.A liberdade permanece nos limitesda factualidade, isto , do mundo.Mas esta factualidade indetermina-da: a liberdade pe o mundo em ser

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    com a sua escolha. Por isso o ho-mem responsvel pelo mundo epor si mesmo enquanto maneira deser. Tudo o que acontece no mundoreporta-se liberdade e responsabi-lidade da escolha originria; por isso,nada daquilo que acontece ao ho-mem pode ser dito inumano. As maisatrozes situaes da guerra, as pio-res torturas no criam de fato umestado de coisas inumano. Noexiste a uma situao inumana: so-mente pelo medo, pela fuga ou pelorecurso a comportamento mgicos,decidiremos sobre aquilo que inu-mano; mas esta deciso humana edela terei inteira responsabilidade.Sou eu que decido sobre a adversi-dade das coisas e at da sua impre-visibilidade decidindo de mim prpria.No existem casos acidentais: umacontecimento social que ocorre su-bitamente e me arrasta no exteri-or a mim; se sou mobilizada parauma greve, esta a minha greve, aminha prpria imagem, e eu mereo-a. Mereo-a por que a escolhi, trata-se sempre de uma escolha.

    o homem, que se escolhe: a sualiberdade incondicional e ele podemudar seu projeto original ou inicial aqualquer momento. E, assim como anusea constitui aquela experinciametafsica que revela a gratuidade eo absurdo das coisas, da mesma

    forma a angstia, como j dissemos, a experincia metafsica do nada,isto , da liberdade incondicional.Com efeito, o homem e s o homem o ser para o qual todos os valoresexistem.

    As coisas do mundo so gratuitas eum valor no superior a outro. Ascoisas so desprovidas de sentido efundamento e as aes dos homensso desprovidas de valor. Em suma,a vida uma aventura absurda, ondeo homem se projeta continuamentealm de si mesmo, como para tornar-se deus. Escreve Sartre: o homem o ser que projeta ser Deus, mas, narealidade, ele se mostra como aquiloque , uma paixo intil (p.515). Ohomem fundamentalmente desejode ser Deus. Deus no seno estedesejo mal sucedido. O ser-em-si domundo e o ser-para-si da conscinciase encontram num estado de perp-tua ruptura com relao a uma sn-tese ideal que jamais existiu, masque sempre indicada, emborasempre impossvel.

    A liberdade consiste na escolha doprprio ser. E essa escolha absur-da. Assim o existencialismo sartrea-no afirmava a realidade dos homens,atravs da conscincia como liber-dade.

    Referncias Bibliogrficas

    SARTRE, Jean-Paul. Ltre et le Nant - Essai dOntologie Phnomnologique. Paris.Gallimard, 1953.

    _______. La Nause. Paris. Gallimard, 1938.