Sartre: Psicologia & Filosofia

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1 Sartre: Psicologia & Filosofia (O programa, o manifesto, o Caminho) O que é uma mesa, uma rocha, uma casa? “Um certo conjunto de conteúdos de consciência, uma ordem destes conteúdos.” Oh filosofia alimentar! (...) Contra a filosofia digestiva do empiriocriticismo, do neokantismo, contra todo “psicologismo”, Husserl não se cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na consciência. (Sartre: 1965: 109/110)

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Sartre: Psicologia & Filosofia(O programa, o manifesto, o Caminho)

O que é uma mesa, uma rocha,uma casa? “Um certo conjuntode conteúdos de consciência,uma ordem destes conteúdos.”Oh filosofia alimentar! (...) Contraa filosofia digestiva doempiriocriticismo, doneokantismo, contra todo“psicologismo”, Husserl não secansa de afirmar que não se podedissolver as coisas naconsciência. (Sartre: 1965:109/110)

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O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard(1813-1855) levantou sua voz contra o sistemahegeliano por dissolver o subjetivo no objetivo.Opôs o concreto ao abstrato. Estabeleceu seudiscurso em favor da singularidade da existênciahumana. Deu origem ao que se designagenericamente ou vagamente por“Existencialismo”. Por seu turno, o filósofo alemãoEdmund Husserl (1859-1938) revoltou-se contra osubjetivismo, a falta de rigor científico e ainconsistência das filosofias do sujeito, propondo-se uma “Ciência Rigorosa”. Segundo ele, seria pre-ciso fazer a filosofia retomar o mundo vivido (Le-benswelt) ou, como se diz propriamente: “volta àscoisas em si”, para ele voltar à contemplação dasessências (Wesenchau). Aí, nasceu aquilo que sechama, também vaga ou genericamente, por “feno-menologia”. Posteriormente, o filósofo francêsJean-Paul Sartre (1905-1980) retomou esses doiselementos e os teceu à dialética hegelianarevisitada. Então começou o que se chama de“Existencialismo Sartreano” ou, de maneira maisapropriada, Existencialismo Moderno.

Fundidos assim no caminho da reflexão críticasartreana: o existencialismo de Kierkegaard, a feno-menologia de Husserl e a dialética de Hegel se fize-ram indissociáveis, convertendo-se numa nova On-tologia, (teoria geral do ser da realidade mundanaou humana) numa Antropologia Filosófica (teoriageral do ser do homem) e numa nova Psicologia(teoria geral do psicológico ou psicofísico nohomem). Ele elaborou uma nova Teoria geral daPersonalidade Humana em “Transcendence deL’Ego” (1934); uma nova Teoria geral da

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Imaginação, em “L’imagination” e “L’imaginaire”,(1936); uma nova Teoria Geral das Emoções, em“Esquisse d’une Theorie dês Emotions”; uma novaTeoria Geral do Desejo de Ser, em “L’être et lenéant”; e, finalmente, uma nova Teoria Geral daDinâmica de Grupo, em “Critique de La raisondialectique” (1960). Também pavimentou ocaminho para uma Psicoterapia Científica Existen-cialista em: “em Saint Genet, comediant ET mártir(cura de uma esquizofrenia em Jean Genet); no seualentado trabalho biográfico sobre Gustve Flaubert,em “L’idiot e la famille”; e na sua autobiografia“Les Mosts”: Prêmio Nobel de Literatura em 1964.

“La Transcendence de L’Ego”, teoria dapersonalidade, foi publicado nas páginas 85 a 123,do nr. 06, de Recheches Philosophiques, em1936/7, e ficou praticamente esquecido. Em 1957,foi editado em Inglês pela Noonday Press, de NewYork, com 119 páginas, em tradução, prefácio enotas de Forrest Willians e Robert Kirkpatrick, sobo título de “The Transcendence Of The Ego:Existencialist Theory of Conscionsness”. Mas, emfrancês continuou difícil conseguir o ensaio, talcomo registrou Simone de Beauvoir em “La forcede l’age”:

“Cito suas últimas linhas, porque é difícil deconseguir o “Essai” e elas manifestam acontinuidade das preocupações de Sartre: (...)“Pareceu-me sempre que uma hipótese detrabalho tão fecunda como o materialismohistórico, não exigia absolutamente comofundamento o absurdo do materialismometafísico. Não é necessário, com efeito, que o

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objeto preceda o sujeito para que ospseudovalores espirituais se dissipem e paraque o mundo reencontre suas bases narealidade, basta que o eu seja contemporâneodo mundo e que a dualidade sujeito-objeto, queé puramente lógica, desapareça definitivamentedas preocupações filosóficas...” Tais condiçõessão suficientes, acrescentava ele, “para que oEu (indiretamente ou por intermédio dosestados) tire do mundo seu conteúdo. Não épreciso mais para fundar uma moral e umapolítica absolutamente positivas.” (Beauvoir:1961: 162/3)

Em Francês, “La Transcendence de l’Ego” somentevoltou à circulação em 1965, numa edição de 134páginas, pela “Librairie Philosophique J. Vrin, comintrodução, prefácio, notas e anexos de Sylvie LeBom; jovem então, recente amiga de Sartre eSimone, vindo a ser filha desta depois. Elaboradoem 1934, durante o curso de Berlim. Foi a primeiraincursão técnica de Sartre pela Psicologia CientíficaExistencialista, ao mesmo tempo que expôs umaTeoria da Personalidade, antecipou as coordenadasbásicas de todo o pensamento sartreano posterior.Não foi sem razão que Michel Contat e MichelRibalka observaram:

“La transcendence de L’Ego” contém emgerme a maior parte das posições filosóficasque se desenvolveriam em “L’être et le néant”e termina com o que se poderia chamar deprograma de toda obra filosófica futura,inclusive “Critique de La Raizon Dialectique”e a moral sempre em curso de elaboração.

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Num artigo publicado ao nr. 02, da Revista deCiências Humanas da Universidade Federal deSanta Catarina, nós já expusemos essa teoriasartreana da personalidade e vamos retomá-la maisadiante aos detalhes. Porém, a título de antecipaçãoe também pela autoridade que representa a autoraneste assunto, vale transcrever aqui o que Simonede Beauvoir escreveu em La force de l’age”:

Sartre trabalhava muito no ensaio em quedescrevia numa perspectiva Husserliana, masem oposição a algumas das mais recentes teoriasde Husserl, a relação do Eu com a Consciênciae o psíquico, ele estabelecia uma distinção quemanteria sempre; enquanto a consciência éuma imediata presença a si, o psíquico é umconjunto de objetos que só se aprendemmediante uma operação reflexiva e, comoobjetos da percepção só se dão por perfil; oódio, por exemplo, é um transcendente que seaprende através de “Erlebnissen” e cujaexistência é tão somente provável. Meu Ego éele próprio um ser-do-mundo tal qual o Ego deoutrem. Fundava assim Sartre uma de suascrenças mais antigas e obstinadas: há umaautonomia da consciência irrefletida; a relaçãocom o eu que, segundo “La Rochefoucauld” ea tradição psicológica francesa, perverterianossos movimentos mais espontâneos, sóaparece em circunstâncias particulares. O quelhe importava mais ainda é que essa teoria, eela unicamente, pensava, permitia escapar aosolipsismo; o psíquico, o Ego, existindo para

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outrem e para mim da mesma maneira objetiva;abolindo o solipsismo evitavam-se asarmadilhas do idealismo, e Sartre em suaconclusão insistia no alcance prático (moral epolítico) de sua tese.” (Beauvoir, 1961: 162) .

Efetivamente, o pensamento sartreano sempre foipolítico no mais verdadeiro sentido, mesmo quandoele não estava envolvido diretamente numa açãoespecífica, em militância determinada. Nas suasmãos, a literatura em geral, o jornalismo, a filosofiae a psicologia foram sempre instrumentos para atransformação prática revolucionária da sociedade eda civilização. Ele sempre fez suas reflexões ouelaborações passarem pela realidade objetiva enunca abriu mão disso, jamais admitiu converter-seem ventríloquo de um partido ou qualquer instituiçãofosse. Para ele, uma política que faltasse com averdade da práxis não teria razão de ser. Daí suasalianças transitórias e seus desacertos com militantesde várias facções. Desde os primeiros até os últimosinstantes de sua atividade intelectual, ele sempre sepreocupou com as consequências práticas (morais epolíticas) de suas teses. Assim é que, depois derevolucionar a Teoria da Personalidade, vai entregar-se ao estudo da Imaginação e do Imaginário.

Pretendendo fazer-se professor, como de fato o foino Havre, inscreveu-se no concurso de“Agregation”, buscando a função de substituto decatedrático. Em 1928, fracassou na prova escritapor defender ideias próprias; mas, em 1929,conquistou o primeiro lugar. O Professor H.Delacroix. Que orientou a dissertação, por volta de1934, dirigia a coleção “Nouvelle Encyclopédie”para edições Alcan e solicitou-lhe que preparasse o

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trabalho para publicação. Sartre produziu uma obrade mais de seiscentas paginas com título de“L’image”. A “Librarie Felix Alcan” editou apenasa primeira parte a título de “L’imagination”, com162 páginas, em 1936. Daí saiu a tradução para oPortuguês, por de Luiz Alberto Salina Fortes, para"Difusão Europeia do Livro”, com 122 páginas, eapresentação de Gerard Lebrun, em 1964.

Este texto tal como o temos em português destatradução não é mais do que uma introdução àpsicologia existencialista da imaginação. Sartrecomeça por submeter Descartes a uma críticarigorosa. Depois se estende a Leibniz, Spinosa,Hume, Bergson e a todas as psicologias mentalistas,que consideram a imagem como conteúdo mentalou de consciência. Posteriormente, numa IV parte,salienta as perspectivas promissoras abertas pelafenomenologia e, ao mesmo tempo, já marca suasdivergências significativas com Husserl. Tudoacaba por levá-lo a concluir que “a via está livrepara uma psicologia fenomenológica da imagem” ea anunciar sua teoria a ser exposta na obra seguinte.Depois de trabalhar muito e com urgência:

“Ele trabalhava enormemente. Terminara emBerlim a segunda versão de seu livro (ANáusea); e gostava; entretanto estava de acordocom Mme. Lemaire e Paginiez para achar queSartre abusara dos adjetivos e dascomparações: ele tinha a intenção de reverescrupulosamente cada página. Mas lhe haviampedido, para uma coleção publicada pelaAlcan, uma obra sobre a imaginação. Fora otema dos exames de sua “Agregation” , de que

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fizera um resumo que lhe valeu a menção“muito bem”. O assunto interessava-o.Abandonou Antoine Roquantin e voltou àpsicologia. Mas afinal desejava acabar comaquilo e concedia a si mesmo um repousodiminuto. ( Beauvoir, 1961: 179)

Dois anos depois de “L’imagination”. Vem apúblico mais um texto de Sartre sobre a problemáticada imagem. “Struture intentionnelle de l’image”,apareceu ao nr. 4, ano 445, da “Revue demetaphysique et de morale”, em 1938, ocupando aspáginas de 543 a 609. Depois, então, com o títulode “LCertain”, viria constituir a primeira parte,páginas 9 a 76, de “L’imaginaire”, psychologiephenomenologique de l’imagination, que se incluiriana “Bibliothèque dês idées”, da Gallimard, em1940; sendo reeditado na coleção “Idées”, damesma editora, a partir de 1966, com 378 páginas.Daí saiu a tradução de Manuel Lamana, para oespanhol, pela Editora Losada, em 1964, com 244páginas. Infelizmente não conhecemos aindatradução brasileira recomendável para essa obrarevolucionária no domínio da Psicologia. Parafazermos uma ideia do que isto representa, bastalembrarmos o que Gerard Lebrun escreveu na dobrade capa de A Imaginação:

As imagens, afirma o empirista, sãolembranças revivescentes, destroços depercepções, e todo o meu pensamento nãopassa de uma agenda de seus encontros. Isso éum erro, corrige o intelectualista: é preciso quemeu juízo se ausente para que eu leve a sérioessas fantasmagorias; é somente então que as

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imagens são vividas como percepções ou falsosjuízos... Ora, replica Sartre, eu não vivo oobjeto- enquanto-imaginado como se fosse umobjeto existente. Se imagino que fulano estáem São Paulo quando sei que está na França,tenho nítida consciência de não o perceber. E,no entanto, de alguma forma ele me aparece.Detenhamo-nos nesse enigma: o aparecer-em-imagem (nem juízo nem percepção) abalatodas as teorias que pretendiam escamoteá-lonuma figura da Razão ou num produto dohábito. A Imaginação não é um delírio emerece mais do que ser deixada por conta deuma patologia do erro ou de uma psicologia daassociação. (...) Essa é a boa nova anunciada porSartre em 1936: ele tira à loucura, para devolvê-la a uma consciência clara e ampla, a “folle Dulogis” – e assim abre caminho à crítica radicalde toda a Psicologia. (...) Enfim, se os clássicostanto quanto os psicólogos, desconheceram aessência da imaginação – por não terempercebido ser ela o signo de nossa desnaturação– é toda a sua ontologia que é preciso revisar. É“O Ser e O Nada” que é preciso escrever.Dessa crítica, que é particular apenas naaparência, surgirá uma obra sempre coerenteconsigo mesma. (...) Neste pequeno livro, se osoubermos ler, encontra-se Sartre todo. Todo,até sua desconfiança em relação aoinconsciente, até sua audaciosa negação dequalquer positividade no âmago de nósmesmos. Assim, o sonho – arte poéticainvoluntária, dizia Kant – era, outrora, a formamais significativa da imaginação. Sartre veránisso apenas uma das maneiras de expressão de

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“consciência-da-imagem” que, podendo apenasalienar-se, permanece, contudo, secretamentelúcida em seu delírio. À medida que aimaginação se torna mais sossegadora, aconsciência de si mesmo, onipresente, conjuratodo “inconsciente” possível. (Sartre:1964: loc.Cit.)

Essa revolução que começara com o pequenogrande artigo sobre a intencionalidade eprosseguiria em “A Transcendence de L’Ego”,porém, vai muito mais longe que o texto“L’Imagination” poderia insinuar ou sugerir.Limaginaire tem alcances que escapam à psicologiasimplesmente, para atingir de modo contundente aPsicopatologia Psiquiátrica ou psicanalítica, aFilosofia da arte, e a própria Ontologia. Simone deBeauvoir registra que

Sartre redigira a parte crítica do livro sobre“L’Imagination”, que lhe solicitara o ProfessorDelacroix, para Alcan; iniciava uma segundaparte muito mais original em que reestudavadesde a raiz o problema da imagem, utilizandoas noções fenomenológicas de intencionalidadee de “hylé”; foi então que acertou as primeirasideias chaves de sua filosofia: a absolutavacuidade da consciência, seu poder denadização. Essa pesquisa em que inventava aomesmo tempo método e conteúdo, tirandotodos os seus materiais de sua própriaexperiência, exigia uma concentraçãoconsiderável; não sendo detido por nenhumapreocupação de forma, escrevia com extremarapidez, esfalfando-se em seguir com a pena o

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movimento de seu pensamento; ao contrário deseu trabalho literário, essa invenção contínua eprecipitada cansava-o. Ele se interessavavivamente pelo sonho, pelas imagenshipnagógicas, pelas anomalias da percepção.Em fevereiro, um de seus antigos camaradas, oDoutor Lagache, propõe-lhe ir a Sainte-Annetomar injeções de mescalina; a drogaprovocava alucinações e Sartre poderiaobservar o fenômeno em si próprio. Sartrearriscava-se quando muito a ter durantealgumas horas “condutas estranhas”.(Beauvoir: 1961: 186)

O Dr. Lagache fora seu camarada no concurso de“Agregation” e o convite vinha irrecusável paraalguém disposto a escrever a partir das experiênciaspróprias. As coisas foram mais longe do que oresultado proporcionando dados muito interessantespara as teorias de “L’imaginaire”. Simone deBeauvoir deu-se aos relatos em detalhes:

Eu passei o dia no Bulevar Raspel com Mme.Lemaire e Pagniez. No fim da tarde, comotínhamos combinado, telefonei para Saint-Anne; Sartre respondeu-me numa vozengrolada, que meu chamado o tirava de umaluta contra polvos que, certamente, não teriavencido. Chegou meia hora depois. Tinham-noestendido numa cama em um quartofracamente iluminado; não tivera alucinações;mas os objetos que percebia deformavam-se deuma maneira horrível; vira guarda-chuvas comforma de corvos, sapatos esqueletos, rostosmonstruosos; por detrás dele e a seu lado

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formigavam caranguejos, polos, coisasescarninhas. Um dos internos espantara-se comisso; com ele, contou depois da experiência, amescalina produzia efeitos muito diferentes;tinha andado aos saltos por prados em flor emmeio a huris maravilhosas. Sartre dizia, meioqueixoso, que se tivesse sido prevenido, talvezse houvesse voltado para essas visõesparadisíacas. Mas, as previsões de Lagachetinham influído. Falava sem alegria, observandoos fios telefônicos que cortavam o tapete. Notrem, silenciou muito. Eu estava com sapatosde lagarto cujos laços terminavam numaespécie de bolota; ele esperava vê-lostransformarem-se de um minuto a outro emgigantescos besouros. Houve também umorangotango suspenso sem dúvida pelos pés aoteto do vagão e que colava à janela uma cararidícula. No dia seguinte, Sartre ia muito bem etornou a falar-me de Sainta-Anna comdespreocupação. (Beauvoir: 1961: 186/7).

No final da década de trinta, quando se comentavaque “La Nausée” seria objeto de um dos grandesprêmios literários daquele momento francês, Sartreconcede uma entrevista a Claudine Chonez, paraMarianne de 7 de dezembro de 1938, em que anunciasua próxima obra com o título de “La Psyché” e quecorresponderia a um tratado de PsicologiaFenomenológica. Foi a esse trabalho que ele seaplicou durante os anos de 1937 e 38. O registro deSimone de Beauvoir a respeito é o seguinte:

Sartre, entrementes, escrevia um tratado de

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Psicologia Fenomenológica que intitulou “LaPsyché” e de que só publicaria um trecho como título de “Esquisse d’une théoriephenomenologique dês emotions”.Desenvolvia a teoria do objeto psíquico,esboçada em “Essai sur La transcendence deL’Ego. Mas, a seus olhos isso não passava deum exercício e ele o interrompeu ao fim dequatrocentas páginas, a fim de terminar suacoletânea de novelas. (Beauvoir: 1961: 282)

“La Psyché” jamais seria retomada. Seus textosseriam distribuídos por vários momentos de “L’êtreet Le néant”, exceto a parte que veio a públicocomo Teoria da Emoções. Sua primeira ediçãocorresponde ao nr. 838, da coleção “Atualitésscientifiques et industrielles" de EditicionsScientifique Hermann, 1939, com 52 páginas. Umanova edição francesa foi providenciada em 1960,mantendo-se o texto original. Em 1965, Fernandode Castro Ferro traduziu o texto para ZaharEditores, Rio de Janeiro, sob o titulo Esboço deuma Teoria das emoções, um volume com 85páginas. Michel Contat e Mihel Ribalka salientaramque:

Por seu caráter ao mesmo tempo acessível erigoroso, o Esboço de uma Teoria dasemoções, a despeito de sua brevidade, constituia melhor introdução a “L’être et le néant”.(Contat et Ribalka: 1970: 71).

Em se tratando dos textos técnicos, a produçãosartreana seguinte seria o seu tratado de OntologiaFenomenológica, conhecido entre nós por “O Ser eo Nada”. Preparando-se para tanto ele começara o

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ano de 1939, aplicando-se desde o início, ao estudode Heidegger na tradução francesa de Corbin e nooriginal alemão. Mas, não teria a tranquilidadeesperada para tanto. O Paris-Midi de primeiro desetembro daquele ano noticiava a declaração deguerra à Polônia por Hitler e o Governo Francêsdecretava a mobilização a partir de zero hora do diaseguinte. Obedecendo à convocação, Sartre dirigiu-se de taxi, com Simone, para uma praça da Igrejachamada Hérbert, onde se apresentou. Cumprira oserviço militar em Saint Cyr, como meteorologista,a partir de dezembro de 1929, sob orientação doamigo Raymond Aron, seu sargento instrutor. Porisso, deveria engajar-se no serviço de meteorologiana Alsácia, para onde tomou o trem às 7:50 horas,em 2 de setembro de 1939. Mas, não abandonariaseu projeto de uma nova ontologia: em plenaguerra, continuou estudando e escrevendo. Emmeados de abril de 1940, numa de suas licençaspara visita a Paris expôs as coordenadas básicas aSimone, que faz o seguinte registro a respeito:

L”maginaire acabava de ser editado finalmentepela Gallimard. Sartre apontava no livro ateoria da “nadificação” que estavaaprofundando. Nos cadernos de pano-couro emque anotava sua vida diariamente, bem comouma porção de reflexões sobre si mesmo e seupassado, esboçava uma filosofia; expôs-me asgrandes linhas dessa filosofia uma noite emque deambulávamos por perto da estação doNorte; as ruas estavam escuras e úmidas e tiveuma impressão de irremediável desolação; eudesejara demais o absoluto e sofrera a suaausência, para não sentir em mim esse inútil

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projeto de ser que descreve em “L’être e Lenéant”; mas que triste ilusão essa procuraindefinidamente recomeçada em que aexistência se consome! Nos dias seguintes,discutimos certos problemas particulares esobretudo a relação da situação com aliberdade. Eu sustentava que, do ponto de vistada liberdade tal qual Sartre a definia – nãoresignação estoica e sim superação ativa dodado – as situações não são equivalentes; quala superação possível para uma mulherencerrada num harém? Mesmo essaclaustração, há diferentes maneiras de vivê-la,dizia-me Sartre. Obstinei-me durante muitotempo e só cedi superficialmente. No fundo eutinha razão. Mas para defender minha posição,fora preciso abandonar o terreno da moralindividual, logo idealista, em que noscolocávamos. (Beauvoir, 1961:II: 63/64)

Em junho de 1940, com a ocupação alemã da França,Sartre foi feito prisioneiro em Lorena, transferidopara Nancy e, em agosto por fim, para o StalalagXII D, na Alemanha. Ali viveu sua experiência decampo de concentração, do qual conseguiu escaparem março de 1941, para retornar a Paris e participarda organização da Resistência Francesa. Detalhesdesse período estão expostos em “Les Carnets deLa Drôle de Guerre”, que resultou da publicação decinco daqueles cadernos de pano-couro referidos hápouco, desde Simone de Beauvoir: mais precisamente,os de números III, V, XI, XII, XIV, posto que osdemais foram extraviados por Sartre durante umade suas viagens. Veio por uma publicação daGallimard 1983, após a morte do autor pois, com a

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apresentação de sua filha Arlete Elkaim Sartre e tevetradução portuguesa por Aulide Soares Rodrigues,para editora Nova Fronteira, também em 1983. Sualeitura vale a pena não só pela riqueza de detalhes,mas também ou, sobretudo, pelo esboço de muitostemas chaves de “O Ser e o Nada” que aliencontramos na sua versão embrionária.

Assim como não o fez enquanto na frente debatalha ou prisioneiro, também durante aResistence, Sartre não interrompeu sua atividadeintelectual. Além da literatura e do teatro continuaproduzindo sua ontologia. Então, em 25 de junho de1943, concluiu-se a impressão para Bibliotèque dêsIdées, da Gallimard, do alentado volume de 724páginas, intitulado “L’être et Le néant”especificado, como “Essai d’ontotologiephenomenologique, da autoria de Jean-Paul Sartre,dedicado ao Castor: Simone de Beauvoir.

Por mais de uma vez, a Fenomenologia batera àsportas de Sartre. A primeira dela foi em 1927,quando trabalhou com Nizan na tradução francesa daobra Psicopatologia Geral de Karl Jaspers; quandose interessou sobremaneira pela ideia de<compreensão>. Beauvoir informa os detalhes:

O que lhe interessava antes de tudo eram aspessoas. À psicologia analítica e empoeiradaque ensinavam na Sorbonne, ele desejava oporuma compreensão concreta, logo, sintética dosindivíduos. Essa noção, ele a tinha encontradoem Jaspers, cujo trato de Psicopatologia,escrito em 1913, fora traduzido em 1927;corrigira as provas do texto francês com Nizan.Jaspers opunha à explicação causal, utilizada

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nas ciências, outro tipo de pensamento que nãose assenta em nenhum princípio universal, masque apreende relações singulares, medianteintuições, mais afetivas do que racionais e deirrecusável evidencia; ele a definia e justificavaa partir da fenomenologia. Sartre ignorava tudodessa filosofia, mas nem por isso deixara dereter a ideia de compreensão e tentava aplicá-la. (Beauvoir: 1961: I: 37)

O caminho a seguir era e seria mesmo aFenomenologia, para alcançar seus propósitosfilosóficos e intelectuais. Mas, aquele primeirocontato indireto com a disciplina de Husserl aindanão o conquistaria de vez. Continuaria ainda maisseis anos tentando encontrar seu método próprio.

Na noção de compreensão tomada de Jasperssó encontrávamos uma diretriz bastante vaga;para apreender sinteticamente os indivíduos emsuas singularidades, eram necessáriosesquemas que não possuíamos. Nosso esforçodurante esses anos tendeu para induzi-los einventá-los; foi um trabalho cotidiano e creioque nos enriqueceu mais do que qualquerleitura ou qualquer contribuição exterior. Sartreforjou a noção de má-fé que explicava, a seuver, todos os fenômenos que outros atribuíamao inconsciente. Aplicávamo-nos a desencová-la sob todos os aspectos: trapaças delinguagem, mentiras da memória, fugas,compensações, sublimações. Regozijávamo-nos cada vez que descobríamos uma novaforma. (...) Outra questão que nos preocupavaera a relação da consciência com o organismo;

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em nós mesmos e em outrem procurávamosdeslindar o que depende de uma fatalidade físicae o que decorre de um livre consentimento. Eucriticava Sartre por considerar seu corpo comoum feixe de músculos estriados e amputar-lheo sistema simpático; se nos entregávamos àslágrimas, às crises de nervos, ao enjoo no mar,era, dizia, por complacência. Eu pretendia queo estômago, as glândulas lacrimais e a cabeçaobedecem por vezes a forças irreprimíveis. [...]Fabricando, no decurso dessa exploração,nossos próprios instrumentos e nossasperspectivas, deplorávamos a estreiteza docampo em que estávamos confinados.Tínhamos um número restrito de amigos,pouquíssimas relações. (Beauvoir: 1961; I:115/6)

O encontro decisivo com a Fenomenologia dar-se-ia através de Raymond Aron. Ele contava entre aspoucas amizades sartreanas desde 1929, quandofora seu sargento instrutor em “Saint Cyr”, emmeteorologia que aconselhara para o serviçomilitar, desde novembro daquele ano. Conheciabem os interesses e propósitos de Sartre a indicar aFenomenologia como caminho promissor. E o fez,como Beauvoir relata:

Continuamos a dedicar-nos exclusivamente anossos escritos e a nossas pesquisas. Sartrepercebia que para organizar com coerência asideias que o dividiam precisava de auxílio. Asprimeiras traduções de Kierkegaard nessaépoca; nada nos incitava a lê-las e nós asignoramos. Em compensação, ele foivivamente atraído pelo que ouviu dizer da

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fenomenologia alemã. Raymond Aron passavao ano no Instituto Francês de Berlim e,enquanto preparava uma tese sobre história,estudava Husserl. Quando veio a Paris, faloucom Sartre. Passamos uma noite juntos no Becde Gaz, na Rua Montparnasse; pedimos aespecialidade da casa: coquetéis de abricó.Aron apontou seu copo: “Estás vendo, meucamaradinha, se tu és fenomenologista, podesfalar deste coquetel, e é filosofia.” Sartreempalideceu de emoção, ou quase; eraexatamente o que ambicionava há anos: falardas coisas tais como as tocava, e que fossefilosofia. Aron convenceu-o de que afenomenologia atendia exatamente a suaspreocupações: ultrapassar a oposição dorealismo e do idealismo, afirmar a um tempo asoberania da consciência e a presença domundo, tal como ele se dá a nós. Sartrecomprou no Bulevar Saint-Michel, a obra deLévinas sobre Husserl e estava tão apressadoem se informar que, andando folheava o livroainda não aberto. Sentiu um golpe no coraçãoao encontrar nele alusões à contingência.Cortara- lhe alguém a iniciativa? Continuandoa ler tranquilizou-se. A contingência nãoparecia desempenhar um papel importante nosistema de Husserl de que Lévinas dava apenas,de resto, uma descrição formal e muito vaga.Sartre resolveu estudá-lo seriamente e, porinstigação de Aron, fez as gestões necessáriaspara no ano seguinte substituir seu camaradano Instituto Francês de Berlim. (Beauvoir:1961: I: 121)

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Foi com esse entusiasmo e durante tal curso emBerlim que Sartre escreveu o pequeno artigo “Umaideia fundamental da fenomenologia de Husserl: aintencionalidade”; o qual vale por um manifesto e,ao mesmo tempo, por um programa de trabalho queseria de vida inteira: anunciou acontecimentorevolucionário, que jamais se cogitara até então, qualseja a constatação factual de dois absolutos. Apartir dali, todo filosofar que se pretendesserigoroso deveria pôr-se em coerência com tanto e,por isso, recomeçar tudo desde aquela nova base.Toda a filosofia precedente não tivera como fazerteste de realidade das suas formulações teóricasficando sempre na dependência de interpretaçõese deduções, por conta de derivações das verdadesde uma primeira que somente ao fim dos tempos,maneira de juízo final, dar-se-ia em “carne e osso”.Pelo mesmo princípio que nos devolveu as coisasem sua nudez, a fenomenologia passada pelo pentefino sartreano, detectava a consciência como umfato absoluto, já não objeto de crenças metafísicas.Isto punha em questão todo o pensamento filosóficoaté então, racionalidades lógico-dedutivas. Se aconsciência revelou-se um absoluto detransparência relativo a um absoluto de opacidade,obviamente a implicação entre ambos reclamavaformulação em novos termos. Foi bem o que Sartrepercebeu e anunciava em seu célebre artigo.

Depois que a consciência revelou-se transparênciaabsoluta para si mesma, em contrapartida ou porconsequência, o Ego não poderia nem precisaria seruma presença nela, a imagem também não poderianem precisaria ser um conteúdo de consciência, e apercepção não poderia nem precisaria nos mesmos

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termos dissolver as coisas na consciência. Orealismo e o idealismo mostraram-se filosofiasalimentares, ilusão de digerir as coisas peloprocesso de conhecimento que corresponderia aomesmo que digerir, caindo na esparrela de queconhecer seria comer, e um mundo paralelo ao realviria a estruturar-se dentro de nós, com as coisas ase converterem em simulacros na consciência.Então:

“Ele comia-a com os olhos”. Esta frase e muitosoutros indicativos mostram muito claramente ailusão comum ao idealismo e ao realismo, paraos quais conhecer é comer. A filosofia francesa,depois de cem anos de academismos ainda seencontra nisto. Todos lemos Bunschvicg,Lalande e Meyerson, todos acreditamos que o“Espírito Aranha” atraia as coisas para sua teia,cobria-as com uma baba branca e as deglutialentamente, reduzia-as à sua própriasubstância. O que seria uma mesa, uma rocha,uma casa? Um certo conjunto de conteúdos deconsciência, uma ordem destes conteúdos. Ohfilosofia alimentar! Nada parecia maisevidente: não é a mesa o conteúdo atual daminha percepção, não é ela o estado presentede minha consciência? Nutrição, assimilação.Assimilação – dizia Lalande – das coisas pelasideias, das ideias entre elas e dos espíritosentre si. As rígidas arestas do mundo eram roídaspor estas diástases diligentes: assimilação,unificação, identificação. Entre nós, os maissimples e os mais rudes procuravam em vãoalgo sólido, algo que não fosse o espíritoenfim; mas, por toda parte encontravamapenas uma névoa branca e muito ilustre: eles

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mesmos. (...) Contra a filosofia digestiva doempiriocriticismo, do neokantismo, contratodo “psicologismo,” Husserl não se cansa deafirmar que não se pode dissolver as coisas naConsciência. Vêm esta árvore, seja, estão a vê-la no próprio lugar em que se encontra; à beirado caminho, no meio do pó, só e retorcida pelocalor, há vinte léguas da costa mediterrânea.(Sartre: 1965: 109/110)

Esta árvore, porém, não apareceria como tal por simesma, na condição de um “ser-em-si”: descoladade sua condição transfenomênica é que ela se impõecomo objeto em sua opacidade e transcendência noespaço e no tempos reais sem recurso. A mesmaconsciência que se esgota em buscar uma estruturaconstitutiva lá fora posiciona a realidade objetivadaque, por ela, e somente por ela (consciência!) orga-niza-se em paisagem para um sujeito. A árvore nãoestá lá desde sempre à espera de nós para impor-seà nossa surpresa, posta por um mistério metafísicocomo pensa o realismo ingênuo. A mesma irreduti-bilidade intransponível que separa sujeito e objetotambém os articula em dois absolutos relativos umao outro. Assim continua Sartre:

Julgareis reconhecer aqui Bergson e o primeirocapítulo de “Matière et Mémoire”. Mas, Hus-serl não é realista: essa árvore colocada numpe- daço de terra gretada não constitui umabsoluto que entraria em comunicação conoscomais tarde. A consciência e o mundo surgemsimultaneamente: exterior por essência, omundo objetivo é por essência, relativo aosujeito. Husserl considera a consciência uma

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ocorrência irredutível que nenhuma imagempoderia representar. Exceto a imagem rápida eobscura de estouro. (Sartre: 1965: 110)

Aí, o “Espírito aranha” tão caro aos estoicos, quepermearam nossa filosofia ocidental, já não tem maisquê fazer. Conhecer na acepção primária, querdizer: perceber, imaginar ou pensar e descobrir-seno mundo vem a ser mesma coisa: já enredar-secom as coisas e os outros, já implicar-seirremediavelmente, já tecer-se no mundo e aomundo sem reservas: mundanos e humanos,simplesmente humanos, em contingênciaincontornável, expressa transcendência naobjetivação de sujeitos entre coisas e outros. Não hácomo cortar este cordão umbilical com o mundo econhecer não é assimilar, unificar, muito menos di-gerir o mundo num interior de nós mesmos, refúgiode “má-fé”:

Conhecer é <estourar para> arrancar-se da hú-mida intimidade gástrica para prosseguir por aíem fora, perto da árvore e, todavia, fora dela,pois, escapa-se e repele-me e eu não posso per-der-me nela mais do que ela diluir-se em mim:fora dela, fora de mim. Não reconheceis poracaso nessa descrição as vossas exigências epressentimentos? Sabíeis muito bem que a ár-vore não era vós mesmos, que não podíeisfazê- la entrar nos vossos estômagos obscuros eque o conhecimento não podia, semdesonestidade, comparar-se com a posse.(Sartre: 1965: 111)

Estamos de saída, envolvidos na contingência domundo, sem passagem para um refúgio interior que

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seria nossa salvação antecipada. Expostos sem re-curso, implicados em carne e osso até a medula:mundanos e humanos. Uma verdade que se nos im-põe por todo instante de “consciência de”; uma con-dição sempre antes camuflada pelas manobras queinventam as diástases diligentes:

Ao mesmo tempo, a consciência purificou-se, éclara como a ventania, já nada há nela, excetoum movimento para fugir, um deslizamento forade si. Se por acaso entrásseis <em> umaconsciência seríeis arrastados por um turbilhãoe lançados fora, perto da árvore, em plenapoeira, pois a consciência não tem <interior>; ésimplesmente o exterior dela própria; e é essafuga absoluta, e essa recusa a ser substânciaque a constitui como consciência. Imaginaiuma série ligada de estalidos que nos arrancamde nós próprios, que não deixam sequer a um<nós mesmos> o tempo necessário para seformar após eles; mas que, pelo contrário, noslançam para além deles, na poeira seca domundo, na terra rude, entre as coisas; imaginaique somos expulsos dessa maneira,abandonados por nossa própria natureza nummundo indiferente, hostil e teimoso: tereiscompreendido o sentido profundo dadescoberta que Husserl exprime nesta frasefamosa: <Toda consciência é consciência dealguma coisa.> (Sartre: 1965: 111)

O sujeito e o objeto como momentos do mudo obje-tivo, chafurdados na contingência, sem fazer faltaalguma ao “em-si” que lhes serve de estruturaconstitutiva, sem o qual nada existiria;

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especialmente o “néant” e a própria consciênciadele. Então, o mundo e o homem fazem águas dorio de Heráclito, em constante mudança ou expressadialética: destotalizando-se e retotalizando-se aoinfinito, jamais ao eterno; impedidos de ser-em-si.Como também im- pedidos de ser apenas “para si”,numa dialética que não alcança a dimensãotransfenomênica: seja do sujeito, seja do objeto.Como assinalou Fredric Jameson:

Os contemporâneos ficarão, portanto, aliviadosao saber que Sartre insiste aqui – e talvez sejaesse o momento mais notável da discussão –em dizer que a subjetividade é um fenômenoevanescente: não uma estrutura nem umaessência, mas um momento, e momento que,quase de imediato, vai perder-se de novo naobjetividade, no mundo e na ação no mundo.(Sartre: 2015: 150)

Aquela árvore não aparece como tal por si mesma,na condição de “ser em si”: descolada da dimensãotransfenomênica é que ela se impõe como objeto,transcendente no tempo e no espaço, reais. Amesma intencionalidade que se esgota em buscaruma estrutura constitutiva lá fora posiciona arealidade que, por ela e somente por ela, seorganiza em paisagem objetivada. A árvore não estálá à espera, posta por qualquer ente metafísico,como pensa o realismo ingênuo. A mesmairredutibilidade intransponível que separaconsciência e objeto também articula aos dois emrelatividade absoluta. A consciência e o mundo sedão em simultâneo acontecer:

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Pouco faltará para por cobro a essa molefilosofia da imanência, em que tudo se fazmediante acordos e permutas protoplasmáticas,mediante uma morna química celular. A filosofiada transcendência põe-nos no grande caminho,no meio de ameaças, sob uma luz ofuscante.Ser – diz Heidegger – é ser no mundo.Compreenda-se este <ser em> no sentido demovimento. Existir é estourar no mundo, é apartir dum nada de mundo e de consciênciapara subitamente se-estourar-consciência-no-mundo. Se a consciência tenta recuperar-se, setenta por fim coincidir consigo mesma aquente, com as janelas fecha- das, aniquila-se.A esta necessidade que tem a consciência deexistir como consciência de outra coisadiferente dela, chama Husserl, <inten-cionalidade>. (1965: 111/ 2)

A revolução não se restringe ao domínio do conhe-cimento, porém. Muito menos à percepção, conce-dendo-lhe uma primazia que já não faz sentido.Pela natureza dos próprios fenômenos alcançados, aintencionalidade tece em termos irremediáveis afilosofia e a psicologia; elas se permeiammutuamente, transfundem-se inextrincáveis. Aliás,assim aconteceu ao extenso da obra sartreana quenão comporta uma leitura de uma sem a outra, sobpena de distorção e desonestidade intelectualinclusive. Também a imaginação e as emoçõespuseram-se a outras luzes, ganharam a realidademundana e humana que lhes é devida por natureza.

Falei primeiro do conhecimento para me fazercompreender melhor: a filosofia francesa, que

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nos formou, já quase não conhece mais nadaalém da epistemologia. Mas, para Husserl e osfenomenólogos, a consciência que adquirimosdas coisas não se limita ao seu conhecimento.O conhecimento ou pura <representação> éapenas uma das formas possíveis de minhaconsciência <de> esta árvore: posso tambémgostar dela, receá-la, odiá-la, e esse exceder-seda consciência por ela própria, a que se chama<intencionalidade>, torna a encontrar-se noreceio, no ódio, no amor. Odiar outrem é aindauma maneira de estourar para ele, é encontrar-se de súbito frente a um desconhecido de quese vê e se sente primeiramente a qualidadeobjetiva de odiável. Aí está como, de repente,essas famosas reações <subjetivas>, ódio,amor, receio, simpatia, que ficavam nasalmoura malcheirosa do Espírito, se separamdele; são apenas maneiras de descobrir omundo. As coisas é que se revelam a nósimediatamente como odientas, simpáticas,horríveis ou amáveis. Ser horrível é umapropriedade de um certa máscara japonesa: éuma propriedade inesgotável, que constituiriasua própria natureza – jamais a soma de nossasreações subjetivas a um pedaço de madeira es-culpida. Husserl reinstalou o horror e o encantonas coisas. Restituiu-nos o mundo dos artistas edos profetas: espantoso, hostil, perigoso, comancoradouros de amor e de graça. (Sartre:1965: 112/3)

O mundo percebido, em descrédito pelas ilusões deótica de Descartes ou Kant e outros, recupera seu sta-tus de realidade efetiva, bruta às vezes, maravilhosa

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outras vezes. Os profetas dispensados pelas ideiasclaras e distintas, inatas pois, retomam a palavra demensageiros do Divino. Os livros sagradosretornam a seus lugares, as comunidades de crençasde todos os matizes voltam à sua voz e vez, osgênios da arte e da poesia reencontram sua fonte deprovocações ou inspirações no cotidiano daspaisagens objetivas, mundanas e humanas. Aspercepções, as imaginações e as emoções voltam àcondição de fenômenos de todos os dias, entre ascoisas e os outros. A moral requer um novocaminho, posto que a Fenomenologia

Preparou o terreno para um novo tratado das pai-xões que se inspiraria nessa verdade tãosimples tão profundamente desconhecida pelosnossos requintados: Se amamos a uma mulher, éporque ela é amável. Eis-nos libertos de Proust!Libertos, portanto, da <vida interior>: em vãoprocuraríamos com Amiel, como uma criança aquem se beija o ombro, as carícias, os carinhosda nossa intimidade, porque no fim de contas,tudo está fora, tudo até nós próprios: fora, nomundo, entre os outros. Não é em nenhumrefúgio que nos descobriremos: é na rua, nacidade, no meio da multidão, coisa entre ascoisas, homem entre os homens. (Sartre: 1965:113)

Já não somos “titers” (bonecos de ventríloquos) deuma Razão Universal tirana e ventríloqua,inventada por inadvertências ou conveniências daservidão voluntária. A existência nos convoca paraa ação entre os outros e as coisas, num mundoobjetivo sem restrições, em processo de

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totalizações, destotalizações, retotalizações aoinfinito, jamais ao eterno, que o “ens causa sui” senos pôs fora de alcance em todos os domínios,caminho do fracasso inadvertido sempre para oshumanos. A Fenomenologia assim recepcionadapor Sartre, o Existencialismo, sartreano sequiserem, assim concebido em seu manifesto, pôs aOntologia e a Psicologia em seus lugares devidos:racionalidades entre racionalidades, disciplinas entredisciplinas: feitas ciências experimentais de campo,antropológicas se preferem. Ficam os metafísicoscom seus delineamentos, suas elucubrações profa-nas, seu projeto de pretensão, sua paixão inútil deser Deus; suas especulações meramente reflexivas,na circularidade dedutivo-indutiva. Fica aos Teólogoso direito e o dever de elucidar a fascinante ecomplexa problemática da relação do homem comseu Criador, a Criação e seus Caminhos. AOntologia e a Psicologia por fim tomam seuscaminhos de ciências rigorosas em seus domíniosdemarcados: francas, sinceras com os homens;honestas e leais para com Deus, como se concluiem “L’être ET Le néant”: revogado o cogitocartesiano e toda sua filosofia do subjetivismoabsoluto.

Chegou-nos a hora de concluir. Desde nossaintrodução descobrimos a consciência comoum chamado ao ser e verificamos que o cogitoremete imediatamente a um “ser-em-si” objetoda consciência. Porém, parecia difícilestabelecer um nexo entre o <para-si> e o <em-si> com a ameaça de cairmos num dualismoinsuperável. [...] Nossas investigações vieramresponder que eles estão reunidos por uma

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conexão sintética, a qual não é outra que o<para-si>. Ele não é mais que a “nadificação” do“em-si”; é como um agulheiro de ser no seio doSer. (...) Sua única qualificação lhe vem de ser“nadificação” do “em-si” individual e singular,jamais de um ser em geral. (...) Se o cogitoconduz necessariamente para fora de si, se aconsciência é uma encosta resvaladiça em quenão é possível instalar-se sem encontrar-se depronto precipitado para fora, sobre o <ser-em-si>, isto se deve ao fato de que a consciêncianão tem por si mesma nenhuma suficiência deser como subjetividade absoluta, e remetesempre à coisa de que é consciência. (...)Assim, o <para-si> é um absoluto,“unselbststandig” aquilo a que chamamos de ab-soluto não substancial. Sua realidade é pura-mente interrogativa. (...) Cabe aqui um pro-blema metafísico que poderia formular-se as-sim: Por que o <para-si> surge a partir do ser?Chamamos de metafísico, com efeito, aoestudo dos processos individuais que deramorigem ao mundo como totalidade concretasingular. Neste sentido a Metafísica é para aOntologia, o mesmo que a sociologia para ahistória. (...) O <para-si> com efeito, tem odireito de formular-se a pergunta por suaorigem. O ser pelo qual o “por que” chega aoser tem o direito de colocar-se seu próprio “porque”, posto que ele próprio é uma interrogação,um “por quê?” A esta pergunta a Ontologia nãopoderia responder, pois se trata de explicaruma origem e não uma estrutura. (...) A outraindicação que a Metafísica poderia extrair daOntologia seria a de que o <para-si> é

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efetivamente perpétuo projeto de fundar-se a simesmo e ser em perpétuo fracasso desseprojeto. (Sartre: 1943)

Então, o homem sujeito à "intencionalidade”, porconsequência à liberdade sem recurso, condenado a“ser-no-mundo”, tal como Adão e Eva dispensadosdo Paraíso, não pode ser alcançado por nenhuma ti-rania metafísica a lhe impor determinismos especu-lativos de ordem alguma. Nenhuma Ontologia de ri-gor científico, horizontal, pois; nenhuma Psicologiahonesta para com a condição humana pode ignoraristo. A dúvida é uma pergunta. A fé é uma respostalivre e consciente. A diversidade de credos e crenças,como de tudo o mais, constitui finalmente o climaantropológico de nosso Terceiro Milênio. APsicologia e a filosofia sartreanas estão aí parailuminar-nos os caminhos, mediar-nos em nossasrelações de toda ordem, entre os homens e ascoisas. Mas, não encontramos tudo nem em “L’êtreet le néant” nem nas obras que o precederam. Ascoisas iriam mais longe. E o próprio Jean-Paul nosdiz como aconteceu:

Uma revista polonesa decidira publicar duranteo inverno de 1957, um número consagrado àcultura francesa; queria dar a seus leitores umpanorama do que ainda se chama entre nós “nos-sas famílias espirituais”. Pediu a colaboraçãode numerosos autores e me propôs tratar destetema: “Situação do existencialismo em 1957”(Sartre: 1966:5)

Acontecia a fecundação e se desencadeava a gesta-ção da nova Razão Dialética: sem o materialismometafísico, sem ateísmo materialista. O artigo que

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se chamou na origem Existencialismo e Marxismo,re- visitado para publicação em francês, passou achamar-se Questão de Método e veio a preceder<Critique de La Raizon Dialectique>. O caminhoestava percorrido, o programa estava cumprido e omanifesto realizado “in totum”. Então, Sartrepoderia retomar sua autobiografia, “Les Mots”começado 10 anos antes, e conquistar o Prêmio Nobelde 1964. Poderia empreender a, sempre ditamonumental, biografia de Gustav Flaubert, mostrandocomo uma personalidade pode ser conhecida aosdetalhes com sua fascinante corte de fenômenospsíquicos ou psicológicos. Estava ao dispor, emteoria e prática realizada, a Psicologia CientíficaExistencialista ou, se quiserem Psicologiaexistencialista sartreana.

Pedro Bertolino/2015