SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela...

12
Página1 VII Simpósio Nacional de História Cultural HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo – USP São Paulo – SP 10 e 14 de Novembro de 2014 SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO: AS CARICATURAS DE COSTUMES NOS PRIMEIROS ANOS DA SEMANA ILUSTRADA (1860-1864) Isabela Moura Mota INTRODUÇÃO À SEMANA ILUSTRADA E A SEU EDITOR, HENRIQUE FLEIÜSS No final do ano de 1860, um novo periódico foi lançado na capital do império: a Semana Ilustrada (1860-1876), criada pela firma de três estrangeiros cujo líder era o prussiano Henrique Fleiüss. A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas de costumes pode ser entendida como um projeto civilizatório de seus criadores, especialmente de Henrique Fleüiss, editor da Semana Ilustrada, aqui sugerido como um “naturalista dos costumes”. Henrique Fleiüss, cujo nome original era Heinrich, nasceu 28 de agosto de 1823, na cidade de Colônia sob domínio da Prússia 1 . Filho de família tradicional, quando criança, já demonstrava inclinação artística, tendo cursado Belas Artes em Colônia e depois em Dusseldorf, onde aprendeu desenho, gravura e pintura. Fleiüss foi, em seguida, para Munique completar os estudos de ciências naturais e iniciar os de música. Ali, foi discípulo de Carl Friederich Phillipp von Martius, naturalista de grande importância para a historia da ciência no Brasil. Segundo relato de seu filho, Max Fleiüss, na Revista do 1 A unificação dos estados alemães em um Estado-Nação só ocorre em 1871. Assim, acreditamos ser mais preciso referir-se a Fleiüss como prussiano em vez de alemão.

Transcript of SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela...

Page 1: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

Pág

ina1

VII Simpósio Nacional de História Cultural

HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO,

LEITURAS E RECEPÇÕES

Universidade de São Paulo – USP

São Paulo – SP

10 e 14 de Novembro de 2014

SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO: AS

CARICATURAS DE COSTUMES NOS PRIMEIROS ANOS DA SEMANA

ILUSTRADA (1860-1864)

Isabela Moura Mota

INTRODUÇÃO À SEMANA ILUSTRADA E A SEU EDITOR, HENRIQUE FLEIÜSS

No final do ano de 1860, um novo periódico foi lançado na capital do império:

a Semana Ilustrada (1860-1876), criada pela firma de três estrangeiros cujo líder era o

prussiano Henrique Fleiüss. A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de

caricaturas de costumes pode ser entendida como um projeto civilizatório de seus

criadores, especialmente de Henrique Fleüiss, editor da Semana Ilustrada, aqui sugerido

como um “naturalista dos costumes”.

Henrique Fleiüss, cujo nome original era Heinrich, nasceu 28 de agosto de 1823,

na cidade de Colônia sob domínio da Prússia1. Filho de família tradicional, quando

criança, já demonstrava inclinação artística, tendo cursado Belas Artes em Colônia e

depois em Dusseldorf, onde aprendeu desenho, gravura e pintura. Fleiüss foi, em seguida,

para Munique completar os estudos de ciências naturais e iniciar os de música. Ali, foi

discípulo de Carl Friederich Phillipp von Martius, naturalista de grande importância para

a historia da ciência no Brasil. Segundo relato de seu filho, Max Fleiüss, na Revista do

1 A unificação dos estados alemães em um Estado-Nação só ocorre em 1871. Assim, acreditamos ser

mais preciso referir-se a Fleiüss como prussiano em vez de alemão.

Page 2: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina2

IHGB de 1923, teria viajado por quase toda Europa, demorando-se principalmente na

Holanda2.

Acompanhado do irmão, Carl Fleiüss, artista litógrafo e pintor, e do amigo Carl

Linde, pintor e gravurista, Henrique veio para o Brasil em 1858, aos 35 anos. Munido de

carta de recomendação redigida por Martius e endereçada ao imperador D. Pedro II,

Henrique, no entanto, desembarcou em Salvador em vez do Rio de Janeiro, ponto de

partida de seu professor.

Depois de quase um ano no norte brasileiro, fixando paisagens em aquarela,

Henrique desembarcou finalmente no Rio de Janeiro em 15 de julho de 1859. Seu talento

artístico chegou ao conhecimento da corte e Fleiüss passou a receber encomendas de

retratos e pequenos trabalhos. Estabelecendo-se na capital, ele abriu, em 11 de janeiro de

1860, a firma Fleiüss, Irmão & Linde. Em dezembro do mesmo ano, em parceria com o

irmão e o amigo Linde, iniciou a publicação do semanário Semana Ilustrada, criando o

padrão que seria depois copiado largamente na imprensa carioca. De formato considerado

pequeno, o periódico tinha oito páginas, quatro de texto e quatro de ilustrações. A Semana

Ilustrada circulava aos domingos, com o preço de 500 réis para o exemplar avulso3,

mantendo-se economicamente através do sistema de assinaturas.

A parte escrita oferecia contos, poesias, crônicas e pequenas notas, além do

editorial, que habitualmente comentava algum assunto de interesse atual da população,

realizando uma crítica social dos costumes dentro da chave humorística. A redação da

revista contou com colaborações literárias ilustres durante sua carreira: Machado de

Assis, Joaquim Manoel de Macedo, Quintino Bocaiúva, Pedro Luís, Ernesto Cibrão,

Saldanha Marinho e Bruno Seabra animaram a vida do hebdomadário. As ilustrações

ficavam a cargo de Henrique Fleiüss, que depois do décimo número passou a contar com

o auxílio de H. Aranha, Pinheiro Guimarães, Aristides Seelinger e do jovem caricaturista

Ernesto Augusto de Souza e Silva Rio, o Flumen Junius.

Do primeiro ao último número da Semana Ilustrada, o cabeçalho que ocupava

quase a metade superior inteira da página de capa manteve-se o mesmo. Em primeiro

2 Cf. FLEIUSS, Max. “Centenário de Henrique Fleiüss”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 123, tomo 94, vol. 148.

3 Laura Nery faz notar que o preço do exemplar avulso pode ser considerado caro, uma vez que jornais

diários costumavam ter valor dez vezes mais baixo. NERY, Laura. “As apoquentações do Dr. Semana.

Aproximações e divergências entre Henrique Fleiüss e Angelo Agostini”. In: LUSTOSA, Isabel (org.).

Cem anos de Angelo Agostini, no prelo, 2014.

Page 3: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina3

plano ressaltava-se a figura do Dr. Semana, personagem considerado alterego de Fleiüss,

segurando na mão direita um exemplar da Semana Ilustrada, “enquanto a mão esquerda

ajuda dois ‘bobos da corte’ a passar uma tira com imagens numa ‘lanterna mágica”4. Na

objetiva da lanterna, o lema do periódico: ridendo castigat mores, na tradução do latim

algo como “rindo, corrigem-se os costumes”.

FIG. 1 - O cabeçalho da Semana Ilustrada, presente da primeira à última edição, preservando o

erro de português em “Lanterna Mágica”, talvez uma negligência, talvez um capricho do editor

prussiano.

A capa da Semana Ilustrada ostentava geralmente uma dupla de personagens

contrastantes, advindos do topo e da base de uma lógica social escravista. Na capa do

periódico, além do cabeçalho fixo, salvo raras vezes, havia frequentemente a mesma

estrutura: o personagem do Dr. Semana, homem viajado e entusiasta das artes, em diálogo

com seu escravo, o Moleque, o outro personagem porta-voz da revista. O Moleque era

alfabetizado e expressava-se muito bem, distinguindo-se da maioria dos escravos de sua

época, geralmente iletrados na língua portuguesa.

Neste formato cômico, os dois comentavam os fatos corriqueiros do dia-a-dia,

principalmente sobre os personagens que se sobressaíam na vida política e sobre os

acontecimentos mais notórios como a Questão Christie, a Guerra do Paraguai, a Lei do

Ventre Livre e o debate em torno da abolição da escravidão. Além dos assuntos públicos,

os personagens, narradores da “viagem humorística” da Semana Ilustrada na América

4 ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil. A fotografia na

imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro, Editora Campus, Elsevier, Edições

Biblioteca Nacional, 2004, p. 124.

Page 4: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina4

Meridional5, discutiam assuntos de suas vidas particulares, anunciando a mescla entre o

público e o privado que seria uma das principais marcas da sátira da revista. No

semanário, o Dr. Semana envolveu-se com D. Marmota e o Moleque se casou com Dona

Negrinha, temas que se tornam muitas vezes o mote da capa. Com essas estratégias

narrativas, A Semana Ilustrada produzia uma humanização de seus personagens

ficcionais, valendo-se de estratégias de teatro.

Embora a revista tenha sobrevivido até 1876, o recorte temporal aqui

estabelecido, 1860-1864, advém de uma proposição da própria revista. É no momento

inicial da publicação que Fleiüss e sua equipe focam quase que exclusivamente na

construção de uma ideia sobre a cidade do Rio de Janeiro, classificando tipos, espaços e

costumes urbanos, buscando o riso “saudável”. Nosso interesse reside naquilo que

Baudelaire divisou como a sátira própria de Molière, que estabeleceu a base da moderna

comédia de costumes.

O PROJETO CIVILIZATÓRIO DO DR. SEMANA

Conforme já se assinalou, a Semana Ilustrada, em seus primeiros anos, tratava

principalmente dos hábitos do cotidiano da vida na cidade, expondo satiricamente a

ineficiência de determinados serviços públicos, como o correio e a fiscalização sanitária,

as festas de salão, as modas extravagantes na vestimenta feminina, a conduta interesseira

dos arrivistas, o comprometimento político irregular dos deputados e senadores, além de

publicar retratos honrosos de pessoas vistas com apreço pelo periódico, criando inúmeros

personagens urbanos. A Semana tinha uma linha editorial patriótica e suas caricaturas

cultivavam uma função cívica e pedagógica6, usando o humor como instrumento para

difusão das maneiras polidas.

Aqui, “polir” e “policiar” são afiliadas de “civilizar”, conforme salienta

Starobinski7, poli (polido) e policé (policiado) são palavras foneticamente próximas. No

5 Semana Ilustrada, Ano 01, N º 01, Rio de Janeiro, 16/12/1860, capa.

6 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. “Henrique Fleiüss: a função cívica e pedagógica da caricatura

nas páginas da Semana Ilustrada”. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos P.

das (org.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, 2009, v.1, pp. 153-179.

7 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. Tradução de Maria Lúcia Machado. São

Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 25.

Page 5: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina5

entanto, suas etimologias são distintas. Polir vem do latim polire, denotando a ação de

polir. Já, polícia é oriunda do termo grego polis, politeia. “A atração entre elas não é

apenas fonética, é semântica”. Com isso, destacamos que ambas são instâncias

civilizadoras, implicando a palavra polir em um devir, “uma ação progressiva” que

equivale a civilizar, “os indivíduos, suas maneiras e sua linguagem”.

Tanto o sentido próprio quanto o sentido figurado podem conduzir a

ideia de ordem coletiva, de leis, de instituições que assegurem a

brandura do comércio humano. A passagem é feita pelo verbo policiar,

que diz respeito aos indivíduos reunidos, às nações8.

Com o objetivo de incentivar o progresso da atrasada capital imperial e

desejando polir os costumes dos brasileiros sob moldes europeus, entendidos como

altamente civilizados, Fleiüss e seu periódico estimularam mudanças de costumes da

população, instruindo e ensinando as regras do convívio social através da lente do humor.

Uma das maiores críticas do periódico em seus primeiros anos, não é de se estranhar, é a

ineficiência da polícia em punir as irregularidades. Sem dar nomes, a Semana Ilustrada

criticava a instituição como um todo e abusava de ironias para destacar a morosidade dos

oficiais de polícia.

FIG.2 – O descaso da polícia era uma preocupação constante do periódico que frequentemente

debochava da sua falta de eficiência. (Semana Ilustrada, Ano 01, N º 34, Rio de Janeiro,

09/06/1861, p. 4.)

8 Idem.

Page 6: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina6

As charges em sua maioria apresentavam uma crítica social num tom comedido,

produzindo uma “sátira bem comportada”9, que não desejava macular a imagem de

nenhuma pessoa conhecida, pelo menos como princípio. Com este tipo de cômico, que o

poeta Charles Baudelaire classificaria de “puro significativo”, por ser mais utilitário e

fortemente referido à realidade10, a Semana Ilustrada construiu uma galeria de tipos e

costumes da cidade carioca no Segundo Reinado, galeria esta que nos permite ver um

precioso modo de representação da vida em uma sociedade de contradições marcantes,

onde o regime escravocrata convivia com o desejo de progresso.

As charges com o Dr. Semana e o Moleque mostravam uma relação de senhor e

escravo sob o prisma patriarcal, trazendo as tópicas de patriotismo, hierarquia, distinção

social, entretenimento, etc. Além desses personagens, muitos outros povoaram as

ilustrações da Semana Ilustrada. De maneira não menos sistemática, apareciam figuras

militares, tipos urbanos de vários níveis sociais, o Brasil personificado na figura do índio,

membros da vida política e artistas de vários segmentos, sobretudo do teatro. Também

eram retratados, de forma frequente, personagens negros (escravos e libertos pobres), que

segundo a historiadora Karen Fernanda Rodrigues de Souza eram mostrados geralmente

como figuras apáticas e ignorantes, sem poder de autonomia na sociedade.

Mesmo que a “modernidade” da Semana, seja “desconfortavelmente simultânea

ao seu conservadorismo”11, a “experiência ambivalente” é muito rica para uma análise

dos costumes da sociedade carioca do Segundo Reinado. Afinal a equipe da Semana

Ilustrada parecia querer colaborar para o desenvolvimento do processo civilizador12 no

9 Cf. NERY, Laura. “Os sentidos do humor: Henrique Fleiüss e as possibilidades de uma sátira bem

comportada”. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo

Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011.

10 Referimo-nos, aqui, aos ensaios sobre a arte cômica publicados entre 1855 e 1857 por Charles

Baudelaire. Cf. BAUDELAIRE, Charles. “Da essência do riso e de modo geral do cômico nas Artes

Plásticas”. In: BAUDELAIRE, C. Poesia e prosa. Ivo Barroso (org.) Rio de janeiro: Nova Aguilar,

1995.

11 Para Laura Nery, a Semana Ilustrada propaga uma modernidade conservadora: “o que há de moderno

no projeto liderado por Fleiüss relaciona-se com suas convicções de homem ilustrado, para quem o

progresso, a ciência, a educação, a técnica, o comércio e a arte são os caminhos para que o Brasil

alcançasse o mesmo patamar de civilização das nações europeias.” NERY, Laura. “Os sentidos do

humor: Henrique Fleiüss e as possibilidades de uma sátira bem comportada”. In: KNAUSS, Paulo

(org.). Op. cit., p. 187. Cabe indicar, nesse sentido, dois esforços pioneiros do alemão: a tentativa de

implementar o uso da xilografia na imprensa brasileira, criando uma escola de formação de mão-de-

obra para tal, e a proposta da utilização sistemática da fotografia entre 1865 e 1870, por ocasião da

cobertura da Guerra do Paraguai. Ver: ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. Op. cit.

12 Segundo Norbert Elias, nenhum ser humano chega civilizado ao mundo, é preciso passar por um

processo de “interiorização individual” do padrão de costumes, conforme compartilhado pela sociedade

Page 7: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina7

Brasil. O projeto moralizador é anunciado na primeira edição do periódico e perpetrada

na visão de mundo transmitida na escrita e nos desenhos do semanário.

Na política, no jornalismo, nos costumes, nas instituições, nas estações

públicas, no comércio, na indústria, nas ciências, nas artes, nos teatros,

nos bailes, nas modas acharemos para a Semana Ilustrada assunto

inexaurível, matéria inesgotável para empregar o lápis e a pena. (…)

resolutos a profligar o vício, a hipocrisia, o charlatanismo, a impostura;

a zombar do pseudo-catonismo, do falso mérito, da virtude pretensiosa,

das vocações mentirosas, das devoções mascaradas, do talento

fosfórico; e abrindo os braços a toda a personalidade, a toda a antítese

viva dessa cáfila asquerosa, dispostos a colher com aplauso, com afã,

com íntimo prazer toda ideia útil, toda a intenção generosa, todas as

provas evidentes de inteligência, de vocação, de merecimento profícuo

à grande causa do progresso.13

Explicitando a maneira pela qual o periódico em análise demonstrava seu projeto

civilizatório através da caricatura, veja-se uma charge do Brasil personificado na figura

de um índio, conforme já feito em caricaturas anteriores, em consulta com o alfaiate Dr.

Semana.

FIG. 3 – Alfaiate: “- Levou muito tempo a fazer esta farda, mestre Semana; mas ao menos o

corpo e as abas estão muito chic. Além de bem talhado e tudo feito com superior fazenda

bordada a ouro fino, finíssimo mesmo… Dou-lhe os meus parabéns!(…)”

Dr. Semana: “- Não tenha cuidado, Sr. Brasil; as mangas e a gola são muito difíceis de acertar;

mas verá… que elegância!” (Semana Ilustrada, Ano 01, Nº. 14, Rio de Janeiro, 17/03/1861, p.

4)

da qual somos fruto. Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Tradução

de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1994.

13 Semana Ilustrada, Ano 01, N º 01, Rio de Janeiro, 16/12/1860, capa.

Page 8: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina8

Esta charge assinada por Henrique Fleiüss, deixa bastante evidente o tom da

Semana Ilustrada em seus primeiros anos, ajudar o jovem e “bom selvagem” Brasil a

fazer sua autoimagem dentro do padrão civilizado europeu. Para tal, o Dr. Semana

também ganhava as mais diversas profissões para auxiliar a imagem do Brasil.

FLEIÜSS, UM “NATURALISTA DOS COSTUMES”

Através da pesquisa junto à fonte primária, pode ser observado que a

característica determinante do jornal é o esforço gráfico-descritivo dos costumes e

personagens da sociedade carioca da segunda metade do século XIX.

Fleiüss é um editor estrangeiro cujo traço é a observação da natureza humana e

social, traço este inerente ao olhar dos viajantes de outros países que aqui aportaram.

O que os viajantes tem em comum? Num primeiro momento, seu olhar

de observadores eternos enquadra com clareza quase classificatória

tipos, costumes, normas de comportamento. Passado algum tempo, a

vivencia cotidiana leva-os a se misturar ao ambiente visitado, se tornar

íntimos de gente da terra, se familiarizar com as rotinas e os problemas

da cidade. Reclama do calor dos mosquitos, das chuvas torrenciais, da

sujeira das ruas, do descaso das autoridades, dos cocheiros e dos

caminhos para os diferentes sítios, da situação política. Nesse momento

não só figuram um Brasil, como ensinam a figurá-lo, a descrevê-lo.14

Ana Maria Mauad destaca que “a escrita em trânsito” dos viajantes fornece o

tom de “testemunha ocular”, e podemos nos apropriar dessa afirmação deslocando-a para

Henrique Fleiüss e suas caricaturas, acrescentando que a característica da produção quase

instantânea também aponta para o ofício de jornalista. Assim, admitimos aqui como

hipótese, que Fleiüss possuía uma veia etnográfica, precursora do estilo de reportagem

que produz flagrantes do cotidiano. De acordo com nossa hipótese, a formação naturalista

de Fleiüss resvala sua técnica de identificação e classificação de espécies para outro

âmbito, para o campo da caricatura de costumes, ao descrever satiricamente as cenas da

vida contemporânea. Fleiüss, um “naturalista dos costumes” em seu discurso gráfico,

fixou identidades e registrou a vida nas ruas, as formas de sociabilidade nos salões

frequentados pela elite e hábitos culturais fincados na lida cotidiana da cidade.

14 MAUAD, Ana Maria. “Imagem e autoimagem do Segundo Reinado”. In: ALECASTRO, Luiz Felipe

de (org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997, p. 187.

Page 9: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina9

Sobre o entendimento do caricaturista como utilizador de um método

descritivo, etnográfico, seguimos Laura Nery, em sua dissertação de mestrado, “Cenas da

vida carioca: Raul Pederneiras e a belle époque de seu tempo”. No supracitado trabalho,

a autora defende que a obra de Raul, caricaturista da Primeira República, de forma

análoga, pode ser considerada um relato etnográfico, uma descrição densa dos fenômenos

que o artista presenciou. De forma similar à hipótese de Nery, para quem Raul Pederneiras

utilizava o método etnográfico, concordamos com a hipótese de Fleiüss como antecipador

do mesmo método. Diferenciando-se de Raul em aspectos que só intensificam a

disposição para observação diferenciada do cotidiano: Fleiüss viveu 35 anos em outras

culturas que não a brasileira, construiu formação naturalista e indicou através de séries

sistematizadas, como as séries “Passeios pela cidade” e “Typos do Rio de Janeiro”, a

intimidade com a linguagem das fisiologias. Dessa forma, esse estudo concorda com

Nery, que pensa em Fleiüss na chave de um “viajante naturalista”, destacando o papel da

voga dos panfletos com tipos urbanos em seu tempo;

Existe um laço entre o caricaturista e o viajante naturalista, cujo elo

pode ser encontrado num outro gênero que se popularizara na Europa

em meados do século XIX: as fisiologias. Nos seus anos de formação

em Munique e Dusseldorf, na década de 1840, Fleiüss viu crescer a

popularidade destes pequenos livros que combinavam descrições da

vida da cidade, ilustrações das cenas cotidianas e retratos dos tipos

urbanos. Partilhando, em geral, um mesmo grupo de colaboradores que

as revistas ilustradas, estas publicações mantinham um forte vínculo

com a chamada “caricatura de costumes”, centrada na vida cotidiana. 15

A gênese das fisiologias reside no momento em que as ciências sociais ainda

guardavam pontos de contato com as ciências naturais, pautadas em mecanismos de

descrição e classificação de fenômenos. Surgiram na primeira metade do século XIX,

dentro do que Benjamin denominou de “literatura panorâmica”, coletâneas de fundo

informativo cujo texto descritivo revelavam a observação da cidade.

Nesse gênero (literatura panorâmica) ocupavam lugar privilegiado os

fascículos de aparência insignificante, e em formato de bolso, chamados

fisiologias. Ocupavam-se de descrições dos tipos encontrados por quem

visita a feira. Desde o vendedor ambulante do bulevar até o elegante

foyer da ópera, não havia nenhuma figura da vida parisiense que o

‘fisiólogo’ não tivesse retratado. O momento áureo do gênero acontece

15 NERY, Laura. Projeto de pesquisa “Henrique Fleüiss e a Semana Ilustrada (1860-1876): ambiguidades

de uma sátira bem comportada”. A pesquisa se insere no eixo de análise "Cultura, Intelectuais e poder",

do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (LRPRC), na UERJ, coordenado pelas professoras

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Lúcia Maria Paschoal Guimarães.

Page 10: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina1

0

no início dos anos 1840.(...) Depois de se terem dedicado aos tipos

humanos, chega a vez de se dedicarem à cidade.16

FIG. 4 – A série “Typos do Rio de Janeiro” inventariou personagens e costumes da cidade

imperial. (Semana Ilustrada, Ano 03, N. 116, 01/03/1863, p. 2.)

Segundo Margareth Cohen, a Monarquia de Julho (1830-1848), marcou um

período de transformações na França em que “a burguesia passou a exercer dominação

cultural, política e econômica” e o cotidiano sofreu “promoção a objeto merecedor de

atenção representacional”. Cohen destaca que “a gênese da modernidade caracteriza-se

pela concepção do cotidiano como prática” 17. Pensar que Fleiüss corroborou para uma

consciência do público leitor de seu próprio cotidiano dentro de um “humor conservador”,

conforme cunhou Nery, leva a ressaltar a ambiguidade de sua produção. Conforme já

destacamos, exatamente por haver a tensão de conservadorismo e modernidade na

Semana Ilustrada, seu exame constitui interessante problema histórico. Essa ambivalência

registra, de um lado, conservadorismo; apoio político ao império no formato de sátira que

16 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo, São Paulo: Brasiliense,

1989, p. 34.

17 COHEN, Margaret. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In CHARNEY, L.

(org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 260.

Page 11: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina1

1

quer o riso benfazejo visando a correção dos vícios, e, de outro, modernidade, uma

experiência precursora de publicação, com a valorização do cotidiano, que aponta para o

futuro da reportagem jornalística.

Em seu jornalismo, o editor Fleiüss vai desenvolvendo seu olhar, dentro do

recorte temporal estipulado nessa pesquisa, e passa de estrangeiro que não conhece as

regras do jogo da cidade, para habitante aclimatado, sustentando a dinâmica de porta-voz

das reivindicações da população. Fleiüss passa assim a

ocupar o papel de porta-voz das reivindicações dos habitantes da

cidade, tornando-se uma espécie de fiscal da cena pública, um

representante das demandas dos cidadãos livres da Corte. O ponto de

vista que antes tomava a cidade tropical de um modo negativo converte-

se, então, num olhar solidário e engajado na vida cotidiana.18

Mesmo sentindo-se “em casa”, Fleiüss não abandona o método etnográfico

potencializado pelo olhar estrangeiro, muito pelo contrário. Parece residir aí, na sua faceta

de “naturalista de costumes”, sua grande satisfação profissional e seu talento: observar a

cultura local, registrando-a, sem com isso deixar de recomendar o progresso rumo à

civilização e à universalização dos costumes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALECASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte

e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil. A

fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro, Editora Campus,

Elsevier, Edições Biblioteca Nacional, 2004.

BAUDELAIRE, Charles. “Da essência do riso e de modo geral do cômico nas Artes

Plásticas”. In: BAUDELAIRE, C. Poesia e prosa. Ivo Barroso (org.) Rio de janeiro: Nova

Aguilar, 2006.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo, São Paulo: Brasiliense, 1989.

COHEN, Margaret. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In

CHARNEY, L. (org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify,

2001.

18 NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleiüss e as possibilidades de uma sátira bem

comportada. In: KNAUSS, Paulo (org.). Op. cit., p. 177.

Page 12: SÁTIRA DO COTIDIANO NA CAPITAL DO IMPÉRIO …gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Isabela Moura Mota.pdf · A tentativa deste trabalho é demonstrar como a coleção de caricaturas

VII Simpósio Nacional de História Cultural

Anais do Evento

Pág

ina1

2

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Tradução de Ruy

Jungmann. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1994.

FLEIUSS, Max. “Centenário de Henrique Fleiuss”. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 123, tomo 94, vol. 148.

NERY, Laura. “As apoquentações do Dr. Semana. Aproximações e divergências entre

Henrique Fleiüss e Angelo Agostini”. In: LUSTOSA, Isabel (org.). Cem anos de Angelo

Agostini, no prelo, 2014.

____________. “Os sentidos do humor: Henrique Fleiüss e as possibilidades de uma

sátira bem comportada”. In: KNAUSS, Paulo (org.). Op. cit., p. 184.

____________. Caricatura: microcosmo da questão da arte na modernidade.

Departamento de História. Tese de Doutorado, PUC-Rio, 2006.

____________. Cenas da vida carioca: Raul Pederneiras e a belle époque de seu tempo.

Departamento de História. Dissertação de Mestrado, PUC-Rio, 2000.

_____________. Projeto de pesquisa “Henrique Fleüiss e a Semana Ilustrada (1860-

1876): ambiguidades de uma sátira bem comportada”. A pesquisa se insere no eixo de

análise "Cultura, Intelectuais e poder", do Laboratório Redes de Poder e Relações

Culturais (LRPRC), na UERJ, coordenado pelas professoras Lúcia Maria Bastos Pereira

das Neves e Lúcia Maria Paschoal Guimarães.

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal . Henrique Fleiüss: a função cívica e pedagógica

da caricatura nas páginas da Semana Ilustrada. In: CARVALHO, José Murilo de;

NEVES, Lucia Maria Bastos P. das (org.). Op. cit., pp. 153-179.

MAUAD, Ana Maria. “Imagem e autoimagem do Segundo Reinado”. In: ALECASTRO,

Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade

nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. Tradução de Maria Lúcia

Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.