Saudades da Terra Volume 1

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    FICHA TCNICA

    Ttulo SAUDADES DA TERRA Livro I

    Autor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO

    Edio INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA

    Reviso de textoe reformulao de ndices JERNIMO CABRAL

    Catalogao Proposta

    FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591

    Saudades da terra : livro I / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavrasprvias de Joo Bernardo de Oliveira Rodrigues ; Notciabiogrfica do Dr. Gaspar Frutuoso por Rodrigo Rodrigues] - Novaed. Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998.

    Ass: AORES / HISTRIA / HISTORIOGRAFIA AORIANA. sc. 15 -16

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    SAUDADES DA TERRA Livro Primeiro

    Palavras Prvias VI

    PALAVRAS PRVIAS

    Joo Bernado de Oliveira RodriguesPonta Delgada, 4 de Janeiro de 1966

    Na sequncia da empresa a que o Instituto Cultural de Ponta Delgada meteu ombros - apublicao completa da obra conhecida do Dr. Gaspar Frutuoso, de acordo com o texto original- cabe agora a vez ao Livro I das Saudades da Terra, cujos captulos so, no dizer de ManuelMonteiro Velho Arruda, o prtico do magnfico monumento histrico que o insigne patriarcadas letras aorianas legou s psteras geraes destas terras insulares (1).

    J em outra oportunidade dissemos dos motivos que levaram os editores desta obra a norespeitar no trabalho tipogrfico a ordem que o autor deliberadamente deu aos livros queconstituem o precioso cdice, hoje depositado na Biblioteca e Arquivo Distrital de PontaDelgada(2).

    Assim, depois dos Livros V e VI, publicados respectivamente em 1964 e 1963 - um, ento,ainda indito e o outro mal e incompletamente conhecido atravs de revistas e publicaesperidicas por iniciativa do falecido investigador faialense Antnio Ferreira de Serpa - segue-seo volume que damos agora estampa, e que, como o seu ttulo indica, deveria ter precedidoaqueles na presente publicao.

    Deste Livro I, com base em uma cpia existente na referida Biblioteca (legado do Dr.Ernesto do Canto) e mediante um subsdio concedido pela Junta Geral do Distrito, o falecidoinvestigador mariense, atrs citado, Dr. Manuel Monteiro Velho Arruda, fizera em 1939 uma

    edio, que, antecedida de notvel ensaio crtico da sua autoria, rapidamente se esgotou, dadoo interesse que a obra de Frutuoso sempre tem despertado nos meios cultos do nosso pas. Edigo sempre, porque esse interesse no apenas dos nossos dias; vem de longe, podemosmesmo afirm-lo coevo do prprio cronista, isto , desde que correu fama o valor documentaldas Saudades da Terra como fonte primeva e fidedigna dos primeiros tempos da existnciadas populaes insulanas.

    De facto, digna de registo a considerao que a crnica frutuosiana tem merecido atravsdos tempos, alis, bem comprovada nas numerosas cpias que profusamente se achamespalhadas por bibliotecas pblicas e particulares. Na sua excelente Notcia bibliogrfica dasSaudades da Terra j o erudito biblifilo Joo de Simas chamou a ateno para estepormenor, apontando nada menos do que 45 cpias conhecidas, nmero a que ajuntou maisduas, quando tomou conhecimento, aps a publicao daquele trabalho, das que existem norico esplio literrio da Casa dos Duques de Cadaval(3).

    Joo de Simas enumera ainda, a este propsito, copiosa bibliografia acerca de Frutuoso,que muito nos ajuda a ajuizar do seu valor como cronista e do apreo em que foi tida a suaobra(4).

    No admira, pois, que cedo desaparecessem dos escaparates das livrarias a edio levadaa cabo pelo Dr. Velho Arruda, para mais valorizada com o ensaio crtico a que nos referimos ecuja erudio permite ao seu autor enfileirar entre os melhores comentadores do afamadocronista micaelense.

    De uma parte deste Livro I - a que respeita s ilhas Canrias - e com excelente aspectogrfico, foi h pouco tempo (l964) publicado um volume, dentro da coleco Fontes Rerum

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    Palavras Prvias VII

    Canariarum, por iniciativa do Instituto de Estudos Canrios, que funciona adjunto Faculdadede Filosofia e Letras da Universidade de La Laguna.

    Trabalho a que entusistica e proficientemente se dedicou o Dr. Sebastio Pestana, quenaquela escola universitria h anos vem exercendo as funes de leitor de Portugus, e a quedeu modesto contributo quem subscreve estas linhas, cedendo para tal fim o exemplar daedio de Velho Arruda que minuciosamente anotara em confronto com o manuscrito original,impe-se, acima de tudo, pelas notas que sabiamente esclarecem ou corrigem afirmaes

    confusas do autor e se devem tambm proficincia dos professores E. Serra e J. Regulo. Umglossrio, da autoria daquele nosso compatriota, tambm muito o valoriza, bem como o textotraduzido em espanhol moderno, de significado muito especial, por representar a primeiraverso em lngua estrangeira de um escrito de Frutuoso.

    Como acentua o Dr. Sebastio Pestana no prefcio que abre to abalisado e til trabalho,este constitui uma homenagem ao escritor portugus que com mais curiosidade se debruousobre os formosos rinces da terra espanhola, que so as Canrias (5).

    E, embora Sebastio Pestana observe que nem sempre sejam dignas de f as fontes deinformao de que Frutuoso se serviu - natural consequncia dos processos a que recorreu,quase todos com base na via oral -, reconhece a propsito que nem tudo o que afirma joio,constituindo aqueles captulos um testemunho at certo ponto vlido de uma poca distante eatinente a um perodo pouco documentado da histria daquele arquiplago(6).

    J aquando da primeira edio, um ilustre fillogo e etngrafo daquelas ilhas, Jos PerezVidal, doutor em Filosofia e Letras em Santa Cruz de Las Palmas, se impressionara com oavultado nmero e o interesse das notcias que sobre os costumes, vida e tradies dosislenhos podemos colher atravs dos captulos que Frutuoso lhes dedicou. Emcorrespondncia mantida com Velho Arruda e encontrada no esplio que este nos transmitiu,Perez Vidal no esconde a sua admirao pelo cronista aoriano, cujo conhecimento divulgouem revistas espanholas da especialidade, elogiando-o como fonte extremamente curiosa dahistoriografia insular.

    Igual apreo manifesta o Sr. A. H. de Oliveira Marques em artigo vindo a lume na revistaGarcia da Horta com respeito ao captulo deste Livro I que trata do arquiplago de CaboVerde. Nesse trabalho, o autor no hesita em considerar as Saudades da Terra documento atodos os ttulos excelente para a histria caboverdeana, sobretudo no que se refere scaractersticas da explorao econmica(7).

    Na sua opinio, e apesar de datarem dos fins do sculo XVI, elas (Saudades da Terra)fornecem uma srie preciosa de dados para a histria das descobertas e da colonizao dosculo XV, j atravs da recolha de tradies e memrias depois perdidas, j pela prpriaobservao directa do autor e das condies suas contemporneas que reflectiam quantasvezes estdios bem prximos da era de quatrocentos (8). E mais adiante: estasinformaes conciliadas com as outras fontes sobre os primrdios da colonizao de CaboVerde permitem traar um quadro relativamente perfeito da actividade econmica doarquiplago (9).

    Tais depoimentos, provenientes de pessoas de subido relevo intelectual e para maisinsuspeitas, por serem estranhas aos Aores, -nos sobremaneira agradvel report-los comoresposta aos que, dominados por um incompreensvel preconceito, se empenham em detrair afigura do nosso cronista, no lhe desculpando uma credulidade por vezes excessiva nainformao ou recolha das fontes e recusando-lhe os reais mritos de historiador probo ehonesto que possua.

    Esses esquecem-se de que o prprio Frutuoso em mais de um passo das Saudades daTerra, alude s dificuldades com que se defrontou para obter notcias exactas ou satisfatrias,designadamente dos tempos nebulosos do descobrimento e da colonizao, recorrendo noscasos mais controvertidos e nisto est a seriedade dos seus processos exposio dasvrias verses que ao seu conhecimento chegaram sobre determinado assunto, sempre quelhe no era possvel pronunciar-se decididamente pela que lhe parecia mais conforme com averdade.

    A to apregoada falha de senso crtico que lhe atribuem, tem, afinal, a sua razo de ser noescrpulo com que redigiu as Saudades da Terra, dando ao leitor a faculdade de escolher,entre as variantes que apresenta, aquela que se lhe afigurar mais aceitvel.

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    Palavras Prvias VIII

    Nem mesmo se pode admitir que um homem da sua envergadura intelectual, formado emescolas universitrias e detentor de um saber enciclopdico, bem patente em tudo quantoescreveu, fosse completamente destitudo de esprito crtico; enferma, certo, de prejuzos epreconceitos correntes na sua poca, filhos da influncia escolar que recebera, ainda longe dorigor que caracteriza a investigao cientfica dos tempos modernos.

    Havemos, pois, de convir que se afasta muito do escritor pouco inteligente e falho dediscernimento com que alguns teimam em desfigurar a sua personalidade.

    Alis, os investigadores aorianos de maior vulto e dispenso-me de citar-lhes os nomes,por demais conhecidos, para me referir apenas ao Dr. Ernesto do Canto, o notabilssmofundador dos modernos estudos da historiografia insular foram unnimes em consider-lofonte nica e a muitos ttulos digna de f em matria de Histria e Genealogia, sem a qualdesconheceramos em absoluto os primrdios da civilizao portuguesa nestes rinces doAtlntico.

    *

    * *

    Apesar do texto que Velho Arruda editou corresponder a uma cpia que o Dr. Ernesto doCanto em Fevereiro de 1876 mandara corrigir em face do original e talvez por isso ela noacuse faltas demasiado graves so, contudo, to numerosas e frequentes as incorrecesdevidas a m leitura ou a negligncia, que se impunha a reposio do autgrafo, mesmo, se ajustific-la, no existisse a circunstncia de se terem esgotado os respectivos exemplares. Nemmesmo faria sentido que ao pretender reproduzir-se a parte j conhecida da sua obra,divulgada atravs das edies de lvaro Rodrigues de Avezedo e Damio Peres (Livro II), daedio centenria de 1922 (Livros III e IV) e da j citada do Dr. Velho Arruda, no secomeasse pelo livro com que o Dr. Frutuoso quis inaugurar a sua histria dos arquiplagosatlnticos.

    Tal trabalho possvel, bem como o da publicao de todo o manuscrito das Saudades daTerra, devido atitude altamente compreensiva e generosa do Senhor Marqus da Praia eMonforte, que, como actual representante da famlia possuidora desse cdice, por largo espaode tempo sonegado a olhos estranhos, corajosamente rompeu com esta absurda tradio,arrematando-o na hasta pblica que se seguiu ao falecimento da sua ltima detentora eoferecendo-o Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada, que, por sua vez, o depositou naBiblioteca Pblica desta cidade, onde est consulta e curiosidade dos estudiosos como omais valioso cimlio que ali se guarda.

    J no primeiro volume da presente edio o Livro VI se prestou a homenagem devidaa um tal acto de benemerncia e subida elegncia intelectual, pelo que nos dispensamos defazer-lhe mais largo comentrio(10).

    Apenas com estas palavras pretendemos sublinhar o valor de uma tal ddiva para otrabalho que temos entre mos, por encargo do Instituto Cultural de Ponta Delgada, de que nosvamos desempenhando mais vagarosamente do que desejaramos.

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    Palavras Prvias IX

    J tambm em outra oportunidade se disse o motivo por que ao publicar um texto do sculoXVI, como este das Saudades da Terra, se no respeitou a ortografia e pontuao doautor, segundo as modernas exigncias da cincia diplomtica. Atendendo a que o Livro I todo escrito pela mo de Frutuoso, hemos de reconhecer que nenhum outro critrio seria deseguir seno copiar fielmente o que saiu da sua pena, respeitando com rigorosa observncia aforma antiquada de pontuar, as variantes ortogrficas e as abreviaturas, de que em largaescala usou na redaco da sua obra.

    Mas levando em linha de conta, alm das razes j oportunamente aduzidas (11), acircunstncia da uniformidade a que deve obedecer a impresso de toda a obra, optou-se pelaconvenincia de utilizar a ortografia actual, tanto mais que a escrita de Frutuoso,admiravelmente legvel, no suscita dvidas ou embaraos de natureza paleogrfica querequeressem uma reproduo literal do texto. E, assim, no seguimento do critrio seguido noslivros j atrs publicados, aplicaram-se as normas ortogrficas oficiais e modificou-se apontuao sempre de maneira a que a ideia no resultasse deturpada. Contudo, houve ocuidado de reproduzir os vocbulos nas formas e variantes com que so enunciados, jamaisactualizando os que pelo seu sabor arcaico nos do a nota sugestiva da linguagem do tempo.

    Na publicao deste Livro, por ser aquele que Frutuoso intitulou o primeiro das Saudadesda Terra, julgamos indispensvel incluir uma biografia do autor, no s como homenagem quelhe devida por parte dos que tomaram a iniciativa de editar a sua obra, de acordo com omanuscrito original, mas tambm para esclarecimento e inteligncia daqueles que, ao folhe-lo,desejem conhecer a sua invulgar personalidade. Para tal, pareceu-nos oportuna a Notciabiogrfica do Dr. Gaspar Frutuoso, que Rodrigo Rodrigues escreveu em 1923 para a ediocentenria e que abriu o primeiro volume que nessa altura se publicou, o Livro III, dedicado ilha de Santa Maria.

    Trabalho ainda bastante vlido, cujas concluses de um modo geral no foram, que meconste, at aqui contestadas, , indiscutivelmente, a biografia mais completa que se redigiusobre o nosso cronista. Conferindo e criticando tudo o que de importante se dissera a seurespeito nos sculos XVII e XVIII, designadamente os escritores Fr. Agostinho de MonteAlverne, Pe. Antnio Cordeiro, Francisco Afonso de Chaves e Melo e D. Antnio Caetano deSousa, e no sculo XIX o Dr. Ernesto do Canto, a quem se ficou devendo um primeiro trabalhode crtica documental, resumido em breve notcia publicada no Archivo dos Aores, RodrigoRodrigues ajuntou a estes materiais o produto da sua prpria investigao, sobretudo no quese refere famlia da qual se presume ter nascido Frutuoso. Conseguiu, assim, fazer umestudo exaustivo, em que ps prova as suas inegveis qualidades de investigador e

    genealogista, e que mereceu do erudito e notvel madeirense, Pe. Fernando Augusto da Silva,as prestigiosas palavras de apreo que passo a transcrever:

    A Notcia Biogrfica do Dr. Gaspar Frutuoso, da autoria de Rodrigo Rodrigues, estudoque revela no somente um paciente e consciencioso trabalho de investigao histrica, a pardo mais apurado e severo esprito crtico, do erudito e do historiador, entrando em conta comas condies do tempo, do meio e de outras circunstncias especiais em que a obra foilaborada.

    Do magistral estudo do sr. Rodrigo Rodrigues, cumpre destacar o captulo III intitulado OHumanista, o Historiador e o valor da sua obra (pg. XXXIX - LV), que, sem a sombra dehiprbole, se pode colocar no mesmo plano de trabalhos congneres de D. Carolina Michalis,Tefilo Braga, Mendes dos Remdios e Fidelino de Figueiredo, os mais autorizados mestres dahistoriografia literria do nosso pas (12).

    Apoiado em to lisonjeiro como honroso parecer, sinto-me vontade para introduzir na

    presente edio essa Notcia biogrfica, a qual, parte a importncia, a meu ver semfundamento, que nela se d ao Livro V ou Histria de Dois Amigos, de que RodrigoRodrigues apenas conhecia os nomes dos captulos e por isso a considerou, na esteira do Dr.Joo Teixeira Soares, uma rebuada autobiografia (13), tem ainda toda a actualidade emerece ser de novo posta em letra de forma pela luz que lana sobre a eminentepersonalidade do nosso cronista.

    Uma palavra de homenagem Junta Geral do Distrito de toda a justia lhe sejanovamente aqui endereada e muito em especial ao Sr. Engenheiro Pedro de ChavesCymbron Borges de Sousa, ao tempo seu presidente, pela compreenso exacta do significado

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    Palavras Prvias X

    do trabalho que vimos realizando para a cultura aoriana, e mesmo portuguesa, removendocom entusiasmo todos os obstculos que se lhe poderiam antepor.

    Honra seja feita igualmente aos seus sucessores na gerncia daquele alto corpoadministrativo, pelo apoio que tm continuado a dar a este empreendimento, facultando aoInstituto Cultural de Ponta Delgada a possibilidade financeira de ocorrer s vultosas despesasque ele acarreta.

    Tal circunstncia , indubitavelmente, mais um motivo de regozijo e congratulao peloregime administrativo que rege os distritos insulanos, visto que sem o auxlio das Juntas Gerais jamais seria possvel editar esta e outras obras de valor regional, indispensveis para oconhecimento das nossas ilhas adjacentes, nos seus aspectos histrico, literrio e cientfico.

    No quero terminar sem dirigir os meus agradecimentos ao Sr. Alfredo Machado Gonalves,director da Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de Ponta Delgada, pelas facilidades quesempre me tem dispensado nas minhas consultas quase dirias no estabelecimento que dirigecom todo o zelo, e tambm ao Sr. Hugo Moreira, pelas notas e extractos documentais queamavelmente me cedeu e muito abonam o seu meritrio labor no campo da investigaohistrica. Para o Sr. Nuno lvares Pereira vai da mesma forma o meu reconhecimento, poisque, sem o seu precioso auxlio, em especial na organizao dos ndices, com dificuldade mepoderia desempenhar do encargo que pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, da presidnciado Sr. Dr. Joo Anglin, me foi honrosamente cometido.

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XI

    NOTCIA BIOGRFICA DO DR. GASPAR FRUTUOSO

    I

    DADOS BIOGRFICOS

    So escassos e incompletos os elementos de que dispomos para compor uma narraominuciosa e fundamentada da vida do Dr. Gaspar Frutuoso, sobretudo no que respeita suafiliao, poca da juventude e circunstncias do perodo que passou fora da ilha de S. Miguel,sua terra natal.

    Agora que, com a publicao de parte da sua obra histrica, as Saudades da Terra, secomemora o quarto centenrio do seu nascimento, tentamos esboar este ensaio biogrfico,que pouco avana s notcias j publicadas sobre o assunto, mas em que, concatenando-as ecomparando-as em confronto simultneo com os poucos documentos que existem, pelaprimeira vez se apresenta uma notcia sobre a sua famlia e se conjectura quem foram os seus

    progenitores, problema que at hoje se considerou insolvel.O Padre Dr. Gaspar Frutuoso foi o primeiro cronista insulano e nessa qualidade uma

    ldima glria da nossa terra a que se no tem prestado a devida venerao; contudo, a suapersonalidade curiosa sob diversos aspectos que diligenciaremos mostrar, porque, a par desacerdote virtuosssimo, Frutuoso representa plenamente o tipo do humanista da Renascena,enciclopdico quinhentista, literato, artista e msico, observador atento dos fenmenosnaturais, preocupando-se com experimentaes alquimistas e tentando especulaes nosdomnios da geologia, da mineralogia e da petrografia. Na ilha de S. Miguel, onde viveu a maiorparte da sua existncia, foi sem dvida um dos homens mais ilustrados do seu tempo, e pelosseus mritos, saber e prestgio, um cidado que muito deve ter infludo no aperfeioamento doscostumes e na organizao da sociedade coeva, a um sculo da primitiva colonizao e,portanto, no perodo mais interessante do seu incipiente desenvolvimento administrativo,agrcola, industrial e comercial.

    Vamos apresentar todos os elementos que se conhecem sobre a vida de este homem portantos ttulos eminente, comeando por enumerar os seus mais antigos bigrafos, que so emordem cronolgica:

    Frei Agostinho de MontAlverne (1629-1726), franciscano micaelense, que at ao ano de1695 escreveu as Crnicas da Provncia de S. Joo Evangelista das Ilhas dos Aores,manuscrito indito guardado na Biblioteca Pblica de Ponta Delgada;

    Padre Antnio Cordeiro (1641 - 1722), jesuta terceirense, autor da conhecida HistriaInsulana, editada a primeira vez em Lisboa, em 1717;

    Francisco Afonso de Chaves e Melo, micaelense, autor da Margarita Animada e deuma Descrio da Ilha de S. Miguel, publicadas juntamente em Lisboa, em 1723;

    D. Antnio Caetano de Sousa, o clebre teatino, que apresenta quatro notcias sobreFrutuoso nas seguintes obras: Catlogo dos Bispos da Egreja de S. Salvador da cidade de

    Angra, oferecido em 1722 Academia Real de Histria e publicado no 2. tomo dos seusDocumentos e Memrias, (reimpresso e anotado no 2. volume do Archivo dos Aores);Histria Genealogica da Casa Real Portuguesa, impressa em Lisboa, de 1735 a 1749 (tomoI., Aparato, pg. LIII); e Agiologio Lusitano, tomo 4., publicado em Lisboa em 1744 (a pg.647 e 653). Nesta ltima cita o autor duas obras para ns desconhecidas, em que h notasbiogrficas acerca de Frutuoso, que nada adiantam, porque, tendo-as visto o Padre D. AntnioCaetano de Sousa, nas suas quatro notcias apenas reproduz Cordeiro e Chaves e Melo; soelas uma Memria para a Bibliotheca Lusitana, manuscrito da Biblioteca da Ajuda, compostapelo Padre Francisco da Cruz, jesuta que professou em 1643 e morreu com 77 anos em 1706;e um manuscrito de Franco (sic), que presumimos ser Joo Franco Barreto, mas que nosabemos o que seja, nem onde para;

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XII

    e Diogo Barbosa Machado, que tambm na sua Bibliotheca Lusitana se referesucintamente a Frutuoso e sua obra.

    Posteriormente, e apenas sobre as notcias que ficam apontadas, se bordaram, com poucacrtica, outras biografias de Frutuoso, das quais destacamos a de Jos de Torres, na folha dePonta Delgada O Philologo, n.s 10 e 11 de 15 de Maio e 1 de Junho de 1844; a de AntnioPereira que acompanhou a edio dos primeiros 36 captulos do Livro 4. das Saudades daTerra, feita em Ponta Delgada, em 1876, por F. M. Supico e J. P. Cardoso, sob o ttulo

    Genealogias da Ilha de S. Mlguel; e a ligeira nota de Inocncio F. da Silva, no DiccionarioBibliographico, tomo 2., pg. 368.

    O Dr. Ernesto do Canto, a quem tanto devem os estudos histricos dos Aores, o primeiroa iniciar a crtica documental da vida de Frutuoso, notando algumas inexactides da biografiado Padre Cordeiro e mandando investigar nas Universidades de Salamanca, Coimbra e voraos registos de matrculas e graus, em busca de vestgios da passagem do Dr. Frutuoso poraquelas escolas. Os resultados dessas investigaes e dos exames a que procedeu nosregistos paroquiais das Matrizes da Lagoa e Ribeira Grande, em que Frutuoso escreveu,acham-se resumidos numa breve notcia que publicou no 1. volume do Archivo dos Aores, apg. 403 e seguintes, acompanhada de quatro documentos que provam a sua frequncia naUniversidade de Salamanca, de 1553 a 1555, o seu bacharelamento em Teologia em 1558 namesma Universidade, a sua posse de vigrio da Matriz da Ribeira Grande em 1565, e que ograu de doutor no lhe foi conferido nem em Salamanca, nem em Coimbra. A estesdocumentos juntou o Dr. Ernesto do Canto um alvar rgio de 1585 para acrescentamento dacngrua de pregador ao Dr. Frutuoso; e no 10. volume do dito Archivo(pg. 486 e seguintes)mais quatro documentos de 1565, concernentes ao seu ordenado de vigrio, confirmaodeste cargo e nomeao e confirmao do de pregador da Matriz da Ribeira Grande.

    Os documentos relativos frequncia da Universidade de Salamanca, completam-se comos extractos publicados no Apensoa esta biografia sob n. 3, que agora obtivemos do arquivodaquela Universidade, graas ao amvel interesse que por este assunto tomou o ilustrehistoriador da cincia nutica portuguesa, Dr. Joaquim Bensaude, que para este efeito se psem comunicao com o Sr. D. Jos de Bustos y Miguel, professor da Faculdade de Cincias deSalamanca; a ambos reiteramos aqui os nossos agradecimentos. Estes novos dados alongama estada de Frutuoso em Salamanca, de 1549 a 1558, marcando estes anos limites os seusbacharelamentos em Artes e em Teologia.

    Com idntico critrio publicou o Sr. Marqus de Jcome Correa, no jornal Ecos do Norte, daRibeira Grande (n.s 58 a 71, de Agosto a Novembro de 1917), algumas consideraes sobre avida de Frutuoso, tomando por base os citados documentos e uma sinopse das datas dostermos do registo paroquial da Matriz daquela vila, desde 1565 a 1591, que lhe foi fornecidapelo oficial do Registo Civil, Sr. Dr. Jos de Sousa Larocq.

    H ainda um elemento que nos parece de muita importncia para se reconstituir aexistncia do Dr. Frutuoso no perodo da sua mocidade, de que muito pouco se sabe. aHistria dos dois amigos da Ilha de S. Miguel, narrada em forma pastoril no Livro 5. dasSaudades da Terraque na opinio do erudito jorgense Dr. Joo Teixeira Soares, encerra umarebuada autobiografia (14).

    Esta parte da obra de Frutuoso est fora do nosso alcance, porque o texto do Livro 5. (ques o manuscrito original contm, e esse est sonegado a toda a consulta) ningum o conhece,nenhuma cpia o reproduz, pelo menos as que hoje existem das enumeradas pelo Dr. Ernestodo Canto (15), alm de mais duas que vimos e que no foram por ele mencionadas a daBiblioteca da Ajuda, contempornea, ou quase, de Frutuoso, e a de Frei Nicolau de S.

    Loureno, que pertenceu ao falecido Conde de Botelho, de Vila Franca do Campo (16).A conjectura do Dr. Joo Teixeira Soares apenas firmada na leitura dos ttulos dos

    captulos do Livro 5., que constam do ndice geral da obra, publicado a pg. 133 e seguintesda Bibliotheca Aoreana do Dr. Ernesto do Canto, e tambm a pg. 409 e seguintes do 1.volume do Archivo dos Aores. Efectivamente, a anlise dos ttulos desses captulos,verdadeiros eptomes dos respectivos textos (segundo inferimos dos do resto da obra, queconhecemos), leva-nos a crer que Frutuoso se descreve num dos dois amigos, talvez oPhilomesto, aquem o pai manda a terras estranhas em companhia de um mercador, para laprender (cap. 2.). J no final do ltimo captulo do Livro 4. h uma referncia preparatriada entrada da Histria dos dois amigos do Livro imediato, quando a Verdade diz Fama

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XIII

    (porque as Saudades da Terraso contadas pela Verdade Fama), que pe fim narraoda ilha de S. Miguel ainda que o no tem as Saudades da Terra, nem menos as do Cu, queos dois amigos, seus naturais, nela e fora dela tiveram.

    Um dos episdios da Histriadecorre nas margens do rio Tormes, afluente do Douro, quepassa em Salamanca, onde Frutuoso estudou com outros micaelenses, um deles o Dr. GasparGonalves, depois mdico na Ribeira Grande; isto por ocasio das exquias do prncipe D.Joo, filho de D. Joo 3., celebradas naquela terra estranha;foi portanto em 1554, porque a

    2 de Janeiro desse ano que faleceu o prncipe D. Joo, quando Frutuoso frequentava aUniversidade de Salamanca, o que se sabe com preciso pelo documento n. 1 de pg. 405 do1. volume do Archivo dos Aores. No decorrer da Histria, em que h referncias s Saudadesde Bernardim Ribeiro, ao Crisfal e um soneto a Cames, encontram-se anagramas, comoNarfendo (Fernando), Natonio (Antnio), Ricatena(Catarina), Gurioma(Guiomar), Guardarima(Margarida) e outros, que devem representar pessoas com quem se passaram porventuraepisdios emocionantes da juventude acidentada do autor.

    Os dois amigos aparecem tambm no captulo 4. das Saudades do Cu, obra que, emcontinuao das Saudades da Terra, Frutuoso deixou incompleta, e que apenas se conhecepelos eptomes dos seus quatro nicos captulos, como sucede com o Livro 5..

    Muitas vezes neste trabalho, recorremos s vagas indicaes do ndice da Histria dos doisamigos, na persuaso de que ela foi realmente vividapelo nosso biografado (17).

    Da parte documental, resta-nos mencionar o registo paroquial da Matriz de Santa Cruz davila da Lagoa, onde existe um fragmento e folhas soltas do Livro 1. de casamentos, em queFrutuoso lavrou alguns termos, de 2 de Outubro de 1558 a 16 de Maro de 1560; e o registoparoquial da Matriz de Nossa Senhora da Estrela da vila da Ribeira Grande, onde h trs livrosde batisados e um de casamentos, com termos por ele lavrados, como vigrio que foi nessaparquia, durante vinte e seis anos. curioso notar que nesse longo perodo nunca lavrou umtermo de bito, havendo, contudo, os respectivos livros, que foram escritos por outros padresem servio na freguesia.

    O primeiro termo escrito por Frutuoso na Ribeira Grande foi o do batismo de Gaspar, filhode Gaspar Martins e de sua mulher Ceroneza da Costa, em 23 de Dezembro de 1565, e estregistado a fls. 29 do Livro 2., que comea em Janeiro de 1563 e termina a 8 de Janeiro de1584, (Documento n. 25 do Apenso). Seguem-se no mesmo Livro mais 2268 termos, dosquaes s 107 so lavrados por Frutuoso, notando-se que de 9 de Outubro de 1577 at 6 deAbril de 1580 no h nenhum termo por ele escrito; em 1581, s um, a 12 de Janeiro, e em

    1582 tambm apenas um, a 15 de Agosto. No Livro 3. de batisados, que principia em Janeirode 1584 e termina a 14 de Janeiro de 1590, e no 4., at 31 de Maro de 1591, data do ltimotermo que Frutuoso lavrou (Documento n. 26 do Apenso), h 1021 termos, dos quaes s 24por ele escritos. Estes trs livros esto numerados e rubricados por Frutuoso.

    Dos livros de casamentos s escreveu no 1., onde a fls. 29 aparece o termo da sua posse(18), e a fls. 34 verso o do primeiro casamento que lavrou a 7 de Janeiro de 1567, de Diogo deCaravaca, filho de Francisco de Caravaca (mestre da fbrica de pedra-hume de que se ocupao captulo 92. do Livro 4. das Saudades da Terra), com Ins Cerveira, celebrado pelo PadreManoel Vaz (Documento n. 27 do Apenso).

    Seguem-se, at 23 de Outubro de 1580, data do ltimo registo de casamento que escreveu,310 termos, todos por ele escritos e assinados, excepto doze lavrados pelo Padre ManuelTavares, desde 22 de Junho de 1573 at 7 de Outubro do mesmo ano, dizendo o dito padre noprimeiro desses doze termos: e por o vigairo ser ausente me deixou este encarego e em

    seu nome assino (Documento n. 20 do Apenso). Seguem os imediatos, de 18 de Outubro de1573 a 23 de Outubro de 1580, todos da autoria de Frutuoso. Os restantes 32 termos destelivro, de fls. 74 a 78, so lavrados pelo Padre Antnio Rodrigues, de 4 de Novembro de 1581 aJunho de 1582, no se lendo j as datas precisas dos ltimos quatro. Parece ter havido umalacuna de registos entre o ltimo termo de Frutuoso, no alto de fls. 74, e o imediato da mesmafolha, do Padre Antnio Rodrigues.

    No Livro 2. de casamentos no lavrou Frutuoso nenhum termo; so todos escritos peloPadre Mateus Nunes, at 21 de Julho de 1591. Entre o desta data e o imediato de 22 deSetembro seguinte, est entrelinhada esta nota: O Dr. Gaspar Fructuoso tomou possedesta Igr. em 15 de Agt. de 1565, Vide Livro 1. fs. 28, esteve nesta Igr. 26 an.s, e nove dias.

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XIV

    O termo asima foi o ltimo q. se fez no tempo e vida do Dr. Gaspar Fructuoso q. faleceo a 24de ag. de 1591. O vigr. Per. o fez em 1790. Nenhum dos livros de casamentos rubricadopor Frutuoso.

    Nos livros de bitos, s h a mencionar no 2., a fs. 85 verso, o termo do seu falecimento,em 24 de Agosto de 1591, publicado no Apenso(Documento n. 16).

    Os termos que Frutuoso lavrou so precisos, concisos e sempre escritos com clareza, boa

    caligrafia e ortografia correcta como se v das reprodues sob n.s 25, 26 e 27 do Apensoqueacompanha esta notcia.

    A damos por extracto ou na ntegra 27 documentos em que h referncias a Frutuoso, sua famlia ou aos seus homnimos; por eles se faz elucidao directa ou indirecta dos seusparentescos e de alguns traos da sua vida, do seu carcter e do prestgio que teve entre osseus contemporneos. De muitos documentos do sculo XVI em que incidentalmente apareceo nome de Frutuoso, s estes selecionamos sob o critrio da utilidade biogrfica com exclusivaaplicao a esta notcia, e apenas dos inditos, ou daqueles cuja anterior publicaodesconhecemos.

    Como todos os bigrafos antes de Ernesto do Canto se guiaram pelo Padre AntnioCordeiro (19), quando no decorrer deste ensaio houver referncias s mais antigas biografiasdo Dr. Gaspar Frutuoso, s a de Cordeiro teremos em vista, por ter servido de norma a todasas outras; confront-la-emos com a de Frei Agostinho de Monte Alverne, que anterior, parecemais fiel e menos palavrosa; vai publicada no Apenso (Documento n. 1), por estar indita eser pouco conhecida (20).

    Anotando-as e corrigindo-as em face dos documentos, seguiremos estas duas narrativas davida de Frutuoso, que nos parecem independentes, mas que certamente foram bebidas nasmesmas fontes a tradio oral das populaes desta ilha (onde viveu Monte Alverne e depassagem esteve Cordeiro) e alguns apontamentos possivelmente fornecidos a ambos osautores pelos padres do Colgio dos Jesutas de Ponta Delgada, instituto da particular afeiode Frutuoso, herdeiro da sua livraria e dos seus manuscritos, entre eles o das Saudades daTerra, que at extino da Companhia em 1760 se conservou naquele Colgio.

    II

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    SAUDADES DA TERRA Livro Primeiro

    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XV

    NASCIMENTO, VIDA E MORTE DO DR. FRUTUOSO

    O Padre Dr. Gaspar Frutuoso nasceu na cidade, ento vila, de Ponta Delgada, da ilha de S.

    Miguel, no ano de 1522, de pais ricos e nobres, aqui moradores. Assim o afirmam Cordeiro etodos os demais bigrafos, sem precisarem o dia e ms do nascimento, nem mencionarem osnomes dos pais. Monte Alverne corrobora a mesma naturalidade e ano, sem contudo se referiraos pais nem sua condio; duas vezes declara o ano do nascimento: directamente noprincpio da notcia e depois por modo indirecto, quando diz ter Frutuoso 43 anos na poca emque veio paroquiar para a Ribeira Grande, que sabemos pelos documentos ter sido em 1565.

    A acta do bacharelamento do Dr. Frutuoso na Universidade de Salamanca, em 9 deFevereiro de 1558 (21), confirma a naturalidade, ao dizer: Bachalaureus in sacra TheologiaGaspar Fructuoso Presbiter civitatis ponte delgada ex insula divi Michaelis Archangeli RegniLusitaniae ... ; e tambm nos d a certeza de ser nosso conterrneo a carta de confirmaoda vigararia da Matriz da Ribeira Grande, de 20 de Maio de 1565 (22), dizendo ser o DoutorGaspar Fructuoso clrigo de missa, natural da ilha de S. Miguel ... (23).

    Quanto ao ano do nascimento, nenhum documento o comprova, nem h maneira de o

    verificar. No havia, ento, registo paroquial, que s depois das prescries do conclio deTrento comeou a ser Iavrado com regular continuidade em todas as freguesias (24). Tambmno existe o arquivo diocesano de Angra, hoje perdido, onde talvez se encontrasse o processode genere, vita et moribus da sua ordenao, documento que conteria, seno a data donascimento, pelo menos a idade do ordenando e a sua filiao, isto na hiptese de Frutuoso seter ordenado em S. Miguel, conforme asseveram os bigrafos e se depreende do que vamosver.

    Prosseguindo, diz Cordeiro que os pais de Frutuoso, proprietrios de terrenos dados desesmaria, os mandavam cultivar sob a vigilncia do filho Gaspar, ento moo, que,descuidando-se da tarefa, de preferncia se entregava leitura e meditao, revelandoprecoce vocao para o estudo, j antecipadamente manifestada na aula primria de gramticalatina; os pais determinaram, ento, mand-lo cursar a Universidade de Salamanca,frequentada por outros estudantes micaelenses. Isto diz Cordeiro, incorrendo em flagranteanacronismo, porque s em 1549 nos aparece Frutuoso bacharelando-se em Artes na

    Universidade de Salamanca, portanto com 27 anos, idade em que j no era um moo sadodos estudos primrios. Monte Alverne, mais substancial em factos e mais sbrio de palavriado, deficiente nesta parte, pois apenas diz ter ele ido estudar a Salamanca, sem indicar quando,nem por que idade.

    o perodo da vida de Frutuoso mais apagado, de que no h traos nas biografias, nemvestgios nos documentos, este da juventude at entrada na Universidade, talvez em 1548,com 26 anos ou pouco antes, (25). No h dvida, porm, de que era j um homem feito, cujavida intensa a Histria dos dois amigosdesvendaria, em parte, se fosse conhecida. Debaldeprocurmos quaisquer indcios sobre que pudssemos conjecturar a ocupao de Frutuoso dosdezoito aos vinte e seis anos, perodo interessante na vida de quase todos os indivduosnormais, sempre repleto de actividade, quer prtica, quer mental ou sentimental, e que para umhomem excepcional, como foi Frutuoso, no pode ter sido passado a vigiar os trabalhosagrcolas do pai, como diz o bigrafo Padre Cordeiro, cujas afirmaes tm sido acolhidas semcrtica nem discernimento pelos escritores que aps ele trataram a vida do nosso historiador.

    Veremos adiante que o pai do Dr. Gaspar Frutuoso, por nenhum bigrafo nomeado, muitoprovavelmente um Frutuoso Dias, a quem o filho faz uma ligeira referncia no captulo 31. doLivro 4. das Saudades da Terra, sem deixar suspeitar nenhum lao de parentesco, porque, deresto, Gaspar Frutuoso, ao tratar das genealogias de todas as famlias micaelenses nosprimeiros 36 captulos do Livro 4. nunca declaradamente sua se refere, como tambm emtoda a obra nunca a si se menciona, seno quando, ao enumerar os vigrios da Matriz daRibeira Grande, diz: - o stimo, o Doutor Gaspar Frutuoso que ora serve os mesmos cargosde vigrio e pregador (26).

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XVI

    O Frutuoso Dias, que temos como pai do Dr. Gaspar Frutuoso (porque h outro do mesmonome, irmo deste e filho daquele), foi morador em Ponta Delgada (Documento n. 17 doApenso), como dizem os bigrafos, e designado por mercadorno Livro 1. da Irmandade daMisericrdia de Ponta Delgada, a fls. 7.

    Esta designao no invalida a de Cordeiro, que o d como lavrador, porque em S. Miguel,durante o sculo XVI e sobretudo na sua primeira metade, quase todos os mercadores eramsimultneamente proprietrios rsticos e lavradores. A inscrio de irmo da Misericrdia deve

    ser anterior a 27 de Abril de 1533, porque na respectiva relao, que parece seguir a ordemcronolgica das admisses na irmandade, o seu nome antecede os nomes de dezoito irmosao de Joo lvares, alfaiate, que por um documento do arquivo da mesma Misericrdiasabemos ter sido admitido na referida data.

    Concluimos que Frutuoso Dias era vivo por 1533 e j falecido em 1568 data do casamentodo filho homnimo na Ribeira Grande (Documento n. 17 do Apenso). Sua mulher, IsabelFernandes, constante do termo desse casamento, ser talvez a me do Dr. Gaspar Frutuoso, oque discutiremos adiante, mas certamente a primeira consorte de Frutuoso Dias, porque ocaptulo 31. do Livro 4. das Saudades da Terra, diz que Maria Dias (uma bisneta dePedro Vaz Marinheiro, de cuja gerao trata o captulo) casou com Frutuoso Dias, vivo, eacrescenta que tiveram trs filhos, Maria Dias, Joo Dias e Manuel Dias; e nada mais diz oautor sobre esta gente, que presumimos com bem fundadas razes, adiante expostas, ser asua mais prxima famlia. Maria Dias, segunda mulher de Frutuoso Dias, estava solteira em1541, segundo se induz do testamento de sua av materna, Maria Fernandes, que lhe deixouparte da tera dos seus bens. Suas irms, Leonor Dias (casada com Antnio Jorge Marecos) eBeatriz Lopes (casada com Joo Serro de Novais), tm filhos casados entre 1570 e 1580, oque pressupe os seus casamentos, bem como o de Maria Dias, por 1540 e tantos a 1550.

    Dos enlaces, a que nos vimos referindo, podemos inferir a boa condio do pai e da famliado Dr. Frutuoso, que pelo segundo matrimnio se aliou a uma famlia rica e que vivia lei danobreza, como ento se dizia. Consequentemente, o imaginoso Padre Cordeiro no seriaexcessivo atribuindo bens de fortuna e boa condio social ao pai do cronista.

    Continua ele contando que o estudante Frutuoso em Salamanca era provido com uma boamesada paterna; Monte Alverne d a entender que vivia pobremente, com privaes, emcompanhia do seu patrcio e amigo Gaspar Gonalves, que depois se doutorou e foi mdico daRibeira Grande; do documento n. 3 do Apensov-se que efectivamente foram condiscpulosem Salamanca nas disciplinas de filosofia natural, durante os anos lectivos de 1553-1554 e1554-1555. Tanto Cordeiro como Monte Alverne referem um sucesso milagroso passado emSalamanca com os dois estudantes Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonalves, num aperto de faltade meios para se sustentarem, em que foram socorridos por uma criatura confessada deFrutuoso; este caso deve ter acontecido no ano escolar de 1554-1555, depois dele ter sidoordenado presbtero, como adiante se demonstra. O aperto dos estudantes motiva-o Cordeirona escasss de navios que de S. Miguel lhes trouxessem as mesadas; Monte Alverne atribui-o pobreza em que viviam.

    Sabe-se, por o contar o captulo 92. do Livro 4. das Saudades da Terra, que o amigo ecompanheiro de Frutuoso, Gaspar Gonalves, foi em 1553 para Salamanca, no ms deSetembro; voltou quatro anos depois a S. Miguel (talvez j graduado em medicina), onde fezvrias experincias que determinaram a fundao da fbrica de pedra-hume. Tambm fezensaios experimentais na persuaso de encontrar prata em S. Miguel, e parece ter interessadonesses trabalhos o seu amigo Frutuoso, que vrias vezes o cita com encmios, como nocapitulo 34. do Livro 4., em que diz: O Dr. Gaspar Gonalves, de tanto nome e fama na

    medicina, alm de outras graas e perfeies de que o Senhor o dotou, que quando o chamampara curar algum enfermo, se diz commumente que chamam a sade (27). Da intimidadedestes dois Gaspares, companheiros de casa e de estudo em Salamanca, cuja amizade secontinuou depois na Ribeira Grande, onde ambos viveram, aventamos a hiptese de seremeles os dois amigosda Histria do Livro 5. das Saudades da Terra, a que j nos referimos;sobretudo pela coincidncia de, tendo ambos o mesmo nome prprio, terem os nomes pastorisdos dois amigos, Philidor e Philomesto, o mesmo radical Phil.

    Cada vez mais nos convencemos de que uma leitura atenta e uma interpretao criteriosado texto desconhecido da Histria dos dois amigos subministraria importantes materiais parapreencher as lacunas biogrficas e documentais da mocidade do nosso historiador e da sua

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XVII

    vida sentimental, verdadeiro enigma que apenas transparece dos ttulos dos captulos daHistria, cloga em que Philomesto (talvez Frutuoso?) se enamora sucessivamente de trspastoras, Ricatena, Tomariza e Gurioma, a ltima das quais a morte lhe arrebata, desenlaceeste que o conduz vida solitria, o que com plausibilidade poderemos traduzir vida dosacerdcio.

    Passamos agora parte mais documentada da vida de Frutuoso, que estudou artes eteologia em Salamanca, pelo menos nos anos escolares de 1548-1549, 1553-1554, 1554-1555,

    1555-1556 e 1557- 1558, como provam os j citados extractos sob n. 3 do Apenso, e odocumento de pg. 405 do 1. volume do Archivo dos Aores. Numa referncia propina quepelo seu bacharelamento em artes pagou o mestre Joo Gil de Nava em 1540 (Apenso,documento n. 3) e na matrcula do ano de 1553-1554 designado por Gaspar FructuosoBachiller em Artes; na matrcula do ano imediato e nas seguintes est inscrito GasparFructuoso Presbitero Bachiller. Conclui-se que a ordenao de presbtero teve lugar entreestes dois anos escolares consecutivos, talvez nas frias do primeiro para o segundo, vindo oestudante sua ptria com esse propsito, porque tanto Cordeiro como Monte Alverne, sounnimes em afirmar que Frutuoso veio de Salamanca ilha de S. Miguel tomar ordens desacerdote.

    Era, ento, prelado de Angra o Bispo D. Frei Jorge de Santiago, que veio para os Aoresem 1553, logo depois de confirmado (28). Seria ele quem ordenou Frutuoso, porque D. Jorgedeve ter vindo aqui por 1553 ou 1555, em visita pastoral, muito embora Ernesto do Canto nomencione esse facto nas anotaes que fez ao Catalogo dos Bispos da Egreja de S. Salvadorda cidade de Angra, de D. Antnio Caetano de Sousa, no 2. volume do Archivo dos Aores;isto porque o Bispo declara no prlogo das suas Constituies (Maio de 1559) que: viemos a este nosso bispado e h seis anos que nele pessoalmente residimos, no qual tempopor vezes o visitamos, provendo nas cousas necessrias, etc.

    de presumir que, tendo visitado o bispado, no tivesse deixado de vir, logo nos primeirosanos do seu governo, a esta ilha de S. Miguel, j ento a mais importante e mais populosa doarquiplago.

    Que ele c esteve, no resta dvida, pois o prprio Frutuoso o testemunha no captulo 15.do Livro 4. das Saudades da Terra, quando ao falar de Jernimo Tavares, surdo-mudo denascena, a quem os padres negavam os sacramentos, diz que D. Jorge de Santiago o viu elhos mandou dar, por o achar apto a receb-los. No podemos, porm, por esta nicareferncia, precisar o ano em que veio a esta ilha.

    Como dissemos, parece que j no existe o processo prvio da ordenao de Frutuoso,onde este ponto e outros de maior interesse para a sua biografia se achariam porventuraesclarecidos. Por mais diligncias que fizssemos para pessoalmente intentarmos a sua buscanos arquivos eclesisticos da sede deste bispado, no foi possvel conseguir a necessriapermisso, porque as autoridades competentes, tanto do pao episcopal como do Cabido, nosafirmaram no haver nenhuns papis antigos nos respectivos arquivos, incendiados em pocaremota. Queremos crer que, infelizmente, assim .

    Continuando com os dois bigrafos que vamos seguindo, Frutuoso, depois de ordenado,voltou a Salamanca para se graduar em Teologia, onde teve por mestre o insigne dominicanoFrei Domingos de Soto, que lhe dispensou estima e patrocnio (29).

    Salamanca era, ento, um meio de alta cultura intelectual, onde professavam homenseminentes que deixaram nome afamado na histria, na poltica e na literatura; no entanto,Frutuoso conseguiu sobressair nesse meio, dizem os bigrafos, e acrescenta Chaves e Melo,

    que foi to distinto no seu curso, que na Universidade o apelidavam EI grande sabio de lasIslas de Portugal.

    A 9 de Fevereiro de 1558 tomou o grau de bacharel em Teologia na mesma Universidade(Documento n. 3 de pg. 407 do 1. volume do Archivo dos Aores), depois de nove anos deestudos universitrios, talvez interrompidos de 1549, ano em que se bacharelou em Artes e oprimeiro em que h vestgios seus no arquivo da Universidade, at o de 1553, em que o seunome aparece como estudante no registo das matrculas. A sua ocupao nesse lapso detempo desconhecida; no a dizem os bigrafos, nem transparece dos documentos at hojeencontrados; mas deve ter sido preenchido pelo estudo, embora sem permanncia na

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XVIII

    Universidade, cuja frequncia s em 1553 parece ter retomado, talvez depois de prolongadavisita sua ilha, que pode muito bem ter sido motivada pelo falecimento do pai.

    Quanto ao doutoramento nada se sabe; nem onde, nem quando se graduou. O facto queem todos os documentos oficiais em que aparece, depois de nomeado vigrio da Matriz daRibeira Grande em 1565 (30), e nos posteriores publicados no Apenso(n. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 13e 16), bem como em todas as biografias, lhe dado o tratamento de doutor, que ele prprioconfirma em meio do pargrafo 1. do captulo 46. do Livro 4. das Saudades da Terra, nica

    vez em que nesta obra escreveu o seu nome. Cordeiro diz que ele se doutorou naUniversidade de Salamanca, mas nos arquivos daquela escola no se encontra o registo de lheter sido ali conferido esse grau, nem o precedente de licenciado, os quais eram semprerevestidos de solenidades e de certas formalidades, de que se no acham vestgios. Tampouco se acham no arquivo da Universidade de Coimbra, onde Ernesto do Canto estendeusem resultado as suas pesquisas (31).

    Resta a hiptese de se ter doutorado na Universidade de vora, de que s h registos de1569 em diante (segundo as informaes do Sr. Joo Maria de Aguiar, a pg. 51 e 52 do 14.volume do Archivo dos Aores), mas cujo funcionamento deve ter principiado em 1559 ou1560, porque as bulas da sua fundao foram expedidas em Roma a 18 de Setembro de 1558,tomando dela posse a Companhia de Jesus, a que ficou sujeita, em 1 de Novembro de 1559.Em abono desta hiptese concorrem dois factos: a forte simpatia de Frutuoso pela Companhia,com cujos filhos conviveu em Salamanca e depois em Bragana (32), levando-o talvez a tomarna sua nova Universidade o grau de doutor em teologia; e a notcia da sua passagem emvora, onde esteve com o jesuta Padre Gonalo do Rego, natural da ilha de S. Miguel e seucondiscpulo em Salamanca, incidentalmente referida por Cordeiro, sem precisar a poca doencontro dos dois patrcios e amigos (33).

    As afinidades de Frutuoso com a Companhia datam da sua estada em Salamanca, onde sefamiliarizou intimamente com o Padre Miguel de Torres, fundador do Colgio daquela cidade,amigo e companheiro de Santo Incio de Loyola (33); depois em Bragana continuou aintimidade com os jesutas, lecionando no Colgio ali fundado em 1561 por intercesso doBispo D. Julio de Alva e de que era reitor o Padre Rui Vicente ( 33). Desta convivncia lheadveio uma singular afeio pela Companhia de Jesus, para cuja entrada anos depois em S.Miguel muito contribuiu Frutuoso, na justa persuaso da urgente necessidade de se educar einstruir uma sociedade, que, contando somente um sculo de existncia, nunca tratara da suacultura moral e mental, apenas absorvida pela rdua tarefa do arroteamento dos terrenosvirgens e da construo dos centros de populao ( 34).

    Em vora, como parece mais provvel, ou em Salamanca, como diz Cordeiro, ou em outraUniversidade estrangeira, o que pouco presumvel, porque da sua obra no se vislumbranenhum indcio de ter estado fora de Portugal e Espanha, doutorou-se Frutuoso entre 1560 e1565, segundo a opinio do Dr. Ernesto do Canto, com fundamento em documentos a que nosvamos referir, comparando-os com as biografias de Monte Alverne e de Cordeiro. Esteselementos mostram que no perodo de 1560 a 1565, Frutuoso esteve fora desta ilha de S.Miguel, tendo, todavia, permanecido aqui de 1558 a 1560 em servio paroquial na Matriz daLagoa. Os dois bigrafos citados parece terem desconhecido a sua estada na Lagoa, no sporque se no referem ao facto, mas tambm porque no do soluo de continuidade aosdois incidentes distintos e espaados, o do seu curso em Salamanca e o da sua ida paraBragana. Acerca do curso, j vimos que foi frequentado at 1558, ano em que se bacharelouna Faculdade de Teologia. Mas entre esse acto, a 9 de Fevereiro de 1558, e a ida paraBragana coadjuvar o Bispo D. Julio de Alva, certo ter Frutuoso servido na Matriz da vila daLagoa, pelo menos desde 2 de Outubro de 1558 at 16 de Maro de 1560, como mostram as

    datas do primeiro e ltimo dos termos de casamentos que ali celebrou, ainda hoje existentesnum fragmento de livro, que foi talvez o primeiro dos matrimnios daquela parquia ( 35), se que as folhas perdidas do livro no alongavam este perodo de ano e meio.

    A hiptese do doutoramento antes de 1560, logo a seguir ao acto de bacharel, difcil deadmitir, porque, mediando entre esse acto e o primeiro dos referidos termos o curto espao deoito meses, parece-nos pouco tempo para as delongas da preparao para o grau, acto dodoutoramento e a incerta e por vezes longa viagem de regresso a S. Miguel. mais provvelque, s depois de ter estado na Lagoa, se tivesse resolvido a doutorar-se, devendo, ento, terpartido para o continente no mesmo ano de 1560, para ainda se encontrar com o mestre FreiDomingos de Soto, que, segundo Cordeiro e Monte Alverne, foi quem o recomendou ao Bispo

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XIX

    de Bragana D. Julio de Alva, recentemente confirmado em Maro desse ano, que foi tambmo ano em que faleceu Frei Domingos de Soto, a 15 de Novembro, ou poucos dias antes.

    Daqui se induz que, se a poca de servio na parquia de Santa Cruz da Lagoa foiporventura mais alongada do que aquela que manifesta o fragmento do Livro 1. deCasamentos, s o poderia ter sido anteriormente ao primeiro dos referidos termos,encurtando-se assim o perodo de oito meses que medeia entre o acto de bacharel e a datadesse termo.

    O facto que por 1560 foi para Bragana e l se manteve durante o governo de D. Julio deAlva (36), que lhe concedeu benefcios com rendimento superior a mil cruzados, no dizer dosbigrafos. Ali se ocupou, coadjuvando a administrao do bispado, devendo ter colaborado naredaco das primeiras constituies da diocese, que D. Julio fez publicar no final do seugoverno, em 1563. No ano imediato, sucedendo a D. Julio o Bispo D. Antnio Pinheiro (37),Frutuoso renunciou todos os seus benefcios e abandonou Bragana; no sabemos o motivodesta resoluo, mas dizem os bigrafos que apenas o movera a inteno de vir para osAores com o novo Bispo de Angra, D. Manoel de Almada, sucessor de D. Frei Jorge deSantiago, falecido em 1561.

    D. Manoel de Almada aparece pela primeira vez com a dignidade de Bispo de Angra em1564, mas nunca veio aos Aores, e resignou em 1567 para ir ocupar o cargo de Governadorda Relao do Porto. Desejando que algum com saber, prudncia e prtica da administraoepiscopal por ele regesse a diocese de Angra, solicitou para Bragana a vinda do Dr. Gaspar

    Frutuoso a Lisboa para o encarregar do governo do bispado. Isto dizem Cordeiro e MonteAlverne e natural que assim fosse: D. Manoel no tencionava vir para os Aores e deve terchegado at ele a fama do bom critrio e idoneidade de Frutuoso, pelos servios que emBragana prestara a D. Julio de Alva.

    Os dois bigrafos dizem que ele renunciou os seus benefcios em Bragana, nas mos doBispo D. Antnio Pinheiro; como j dissemos, desconhece-se o motivo desta renncia; mas, oupor no se dar com o novo Bispo, ou com a ideia nostlgica de vir para os Aores, o facto deveter-se passado em fins de 1564 ou princpios de 1565, quando este prelado tomou posse dadiocese, conforme opina o Sr. Fortunato de Almeida na Histria da Igreja em Portugal(38).

    O certo ter Frutuoso vindo para Lisboa encontrar-se com D. Manoel de Almada antes de20 de Maio de 1565, data da carta da sua confirmao de vigrio da Matriz da Ribeira Grande(39), e depois de 11 de Novembro de 1563, data em que D. Julio de Alva ainda no tinharesignado a diocese de Bragana.

    O Padre Cordeiro, escritor de imaginao excessiva, no captulo apologtico da vida deFrutuoso, assevera que D. Manoel de Almada, ao conhec-lo pessoalmente e verificando assuas distintas qualidades, quis logo resignar para Frutuoso ser nomeado Bispo de Angra, o queeste recusou. Monte Alverne, sempre mais exacto e cuidadoso que o hiperblico Cordeiro, sdiz que o Bispo, como ficava em Lisboa, lhe quis carregar nos ombros o governo destebispado;esta deve ser a lio verdadeira; o Bispo quis encarreg-lo da regncia do bispado,mas nunca lhe foi oferecida a mitra. No entanto, foi adotada a verso de Cordeiro em todas asbiografias posteriores, e como tal o menciona D. Antnio Caetano de Sousa no seu Catalogodos Bispos da Egreja de S. Salvador da cidade de Angra, na relao dos prelados nomeadosque no chegaram a exercer o governo.

    Em suma, Frutuoso recusou uma ou outra coisa e aceitou unicamente os cargos de vigrioe pregador da Matriz de Nossa Senhora da Estrela da vila da Ribeira Grande, vagos porfalecimento de Fr. Manoel Rodrigues Pereira (40). Foi confirmado na vigararia por carta de 20

    de Maio de 1565, passada em Lisboa pelo Bispo D. Manoel de Almada, precedendo provisorgia de apresentao, datada de 26 (sic) do mesmo ms e ano (41). Deve ter havido erro deleitura na data de um destes documentos, porque a proviso, datada de 26, est contida portraslado na carta de confirmao passada seis dias antes.

    Para o cargo de pregador foi nomeado em 19 de Junho do mesmo ano e confirmado a 14de Julho seguinte (42). natural que s depois desta ltima data tivesse embarcado para S.Miguel, onde a 15 de Agosto desse ano tomou posse da vigararia e do plpito da dita Matriz,como mostra o termo lavrado pelo Padre Amador Rodrigues, a fls. 28 do Livro 1. dosCasamentos daquela parquia (43). Talvez fosse ele prprio o portador destes diplomas, que

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    em 23 de Novembro do dito ano foram trasladados nos livros de registo da Alfndega de PontaDelgada, por onde eram pagos os ordenados e cngruas do clero.

    Ao vir definitivamente para a sua terra trazido pelas saudadesdela, tinha Frutuoso 43 anos,uma vasta ilustrao e uma longa experincia do mundo e dos assuntos da vida sacerdotal,como quem estudou, praticou e viajou por Portugal e Espanha durante dezassete anos,sempre em convvio com gente culta e distinta. no perodo que se segue de vinte e seis anosde humilde proco da Ribeira Grande que mais documentada est a sua vida e que mais

    proveitosa foi a sua existncia, para os contemporneos pela aco do seu ministrio, dosseus conselhos e do seu exemplo, e para os vindouros pela composio da obra histrica quenos legou. Contudo, a documentao destes ltimos vinte e seis anos no acusa nenhumacidente na monotonia da sua vida pacfica e remansosa, contrastando talvez com a mocidademovimentada e buliosa, em que parece ter havido afeies apaixonadas e cruis desilusesque o conduziram vida eclesistica, como atrs inferimos de conjecturas tiradas dos ttulosdos captulos da Histria dos dois amigos. Este ltimo perodo da existncia, passou-oFrutuoso todo entregue ao nus paroquial e prtica constante da caridade, que no dizer dosbigrafos atingiu a mxima abnegao e sacrifcio.

    tambm nos primeiros anos deste perodo que o seu esprito comea a estar ocupadocom a investigao dos documentos e a colheita das tradies da curta vida histrica das ilhas,cuja colonizao contava pouco mais de um sculo; perodo fecundo em que se dedica observao e estudo da sociedade coeva, em que deve ter percorrido toda a ilha de S. Miguele algumas outras deste arquiplago, em que esboa enfim o plano das Saudades da Terra,fonte nica das notcias primevas das mais antigas geraes insulanas, a que s nosderradeiros anos parece ter dado em parte, apenas a forma e redaco definitivas. Seriatambm nessa poca de maturao, de tranquilidade e reflexo, que escreveu as obrasmsticas e teolgicas que em dezasseis volumes manuscritos da sua letra deixou aos Jesutasde Ponta Delgada, e que se no sabe hoje onde param.

    Nos ltimos anos, de 1580 a 1583, assistiu como espectador indiferente e foi comentadorimparcial da intensa agitao poltica e dos sucessos sangrentos de que os Aores foramteatro, na luta travada entre os pretendentes ao trono portugus, D. Filipe 1. e D. Antnio,Prior do Crato. Esses sucessos que constituem uma das partes mais interessantes da suaobra, narrou-os Frutuoso em doze captulos do Livro 4. e em quinze do Livro 6., notransparecendo do que neles conta para qual dos partidos se inclinava. Trata com toda areverncia o vencedor, pois que, destinando-se, como nos parece, a obra publicidade, ocontrrio seria insensatez incompatvel com o seu esprito prudente e reflectido. Porm, essas

    perturbaes, por mais imparcial ou cauteloso em actos e opinies que fosse, devem terinterrompido a tranquilidade da sua existncia, porque o castigo impiedoso do vencedor tocoua muitos dos habitantes desta ilha, entre os quais Frutuoso contaria, porventura, parentes ouamigos (44).

    Nota Cordeiro que Frutuoso gozava da estima geral de todos os micaelenses, que muitoinstaram pela sua vinda para S. Miguel. Vrios documentos que publicamos no Apensoconfirmam esta assero e revelam a respeitosa considerao que lhe tributavam os seusconterrneos de todas as classes. A fama da sua prudncia e do seu saber, que, ficando natradio oral, foi recolhida um sculo depois por Monte Alverne e Cordeiro, condiz com algunsdocumentos que no-lo mostram consultado, escutado e venerado pelas autoridadeseclesisticas e pelos homens da governana, que em casos melindrosos se socorriam do seuconselho e da sua experincia.

    Assim, vemos a confiana que ao prelado inspiravam os seus juzos de consumado telogo,

    quando em 1585 o Bispo D. Manoel de Gouveia ordena que o Dr. Frutuoso, com o ouvidor Dr.Bernardo Leite de Sequeira, faam um novo sumrio da vida e virtudes da VenervelMargarida de Chaves (de quem Frutuoso fora director espiritual), para instruir o processo dasua pretendida beatificao, como conta Monte Alverne no captulo 38. das suas Crnicas(45).Pressentimos a preeminncia dos seus mritos quando, simples proco de uma vila, o vemosem destaque na trasladao dos ossos dessa Venervel, cerimnia que em 1587 revestiudesusada imponncia na Matriz de Ponta Delgada e para a qual Frutuoso foi especialmenteconvocado pelo chantre e vigrio geral do bispado, o Licd. Simo Fernandes de Cceres,pegando a uma vara do plio sob que iam as cinzas da Venervel, em companhia do Condedonatrio D. Rui Gonalves da Cmara, de D. Francisco, seu filho, do Juiz de Fora Dr. GilEanes da Silveira, do afamado Capito Alexandre e do Sargento-mor Antnio de Oliveira

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    (Monte Alverne, Crnicas, cap. 38. Documento n. 2 do Apenso). Nesta mesma ocasioadmiramos a sua humilde modstia, quando ao descrever esta cerimnia no captulo 95. doLivro 4. das Saudades da Terra, nomeia as cinco altas personagens que com ele pegaram svaras do plio, e esconde-se na sexta sob a designao annima de um sacerdote.

    Calcula-se o valor do seu esprito metdico e a sua prtica em assuntos do foro eclesistico,quando o encontramos em 1587 visitador, pelo Bispo D. Manoel de Gouveia, do mosteiro deSanto Andr de Ponta Delgada, e que para a aceitao e cumprimento das bulas pontifcias da

    sua criao, na comisso feita a 8 de Maio desse ano ao vigrio geral Licd. Cceres, o Dr.Frutuoso escolhido pelo prelado para acompanhar o dito Cceres na execuo das bulas eem tudo o mais que fosse necessrio prover (Documento n. 5 do Apenso). Ainda nas coisasdeste convento, conhecemos o seu mrito e probidade, quando o encontramos interferindo naeleio dos cargos da comunidade, presidida pelo vigrio-geral em 17 de Junho de 1587, eprocedendo visitao e verificao de contas que, por ordem do Bispo, Frutuoso fez nesseano ao sndico ou feitor do mosteiro, Baltazar Gonalves (Documentos n. 6, 7 e 8 do Apenso).Numa reviso de contas tomadas no mesmo ano ao dito Baltazar Gonalves pelo Licd.Cceres, temos ocasio de apreciar a ponderao das suas decises, quando vemos quequele se recomenda que nas coisas graves e que ho mister maduro conselho quando se no possa recorrer consulta do prelado diocesano, se tome o parecer do Dr.Gaspar Frutuoso e o do ouvidor eclesistico, (Documento n. 9 do Apenso).

    Manifesta-se a autoridade do seu voto, com que a Cmara da Ribeira Grande se quisescudar, quando em sesso de 19 de Abril de 1578 convocou as pessoas da governana davila (entre elas seu irmo Frutuoso Dias) para deliberarem sobre o partido mdico a criar para oDr. Gaspar Gonalves (o amigo e condiscpulo de Frutuoso, atrs referido), e sobre outrasnecessidades pblicas, cujo provimento era urgente impetrar de El-rei (Documento n. 4 doApenso);note-se que o assento ou acta desta sesso d a entender que a assistncia do Dr.Frutuoso foi especialmente solicitada, decerto para valorizar superiormente a justia dos apelosda Cmara.

    Para as notcias biogrficas de Cordeiro e Monte Alverne remetemos o leitor no que respeitas suas virtudes sacerdotais, ao zelo com que cumpria a sua misso de pastor de almas e correlativa influncia que teve na moralizao dos costumes dos seus fregueses, que, como dizMonte Alverne em vez de Frutuoso chamavam-no Dr. Gaspar Virtuoso (Documento n. 1do Apenso).

    O documento n. 10 do Apenso, mostra a rigidez da sua ortodoxia de padre catlico e arispidez que punha na observncia da doutrina e na pureza da f, mandando um seuparoquiano a Lisboa confessar na Inquisio os seus erros de judaizante.

    A iseno e independncia do seu carcter, qualidades, ento, muito perigosas demanifestar contra os poderosos, esto patentes na significativa resposta que uma vez deu aocapito-donatrio D. Manoel da Cmara e a seu filho D. Rodrigo, primeiro Conde de VilaFranca; Monte Alverne conta que, tendo-se oposto Frutuoso do plpito sada de trigo paraLisboa, pela muita falta que dele havia na ilha, aquelas altas personagens o ameaaram comas ordens do Cardeal (46), ao que Frutuoso respondeu que para cardeais, para donatrios epara condes tambm havia inferno, (Documento n. l do Apenso).

    Para o fim da vida, entre 1586 e 1590, com mais de 64 anos de idade, que Frutuoso seaplica ao aperfeioamento e redaco da sua obra, as Saudades da Terra(47).

    O plano estaria preconcebido de h muito e certamente em esquemas e apontamentos;mas este o perodo de mais intenso trabalho, sobretudo no que respeita ilha de S. Miguel,

    cuja descrio e histria ocupam os 113 captulos do Livro 4.. No final do captulo 13. desseLivro, explicitamente diz nesta era de 1587; mas mister admitir que a composio dostrs livros anteriores lhe ocupou pelo menos o ano de 1586. Contudo, o Livro 3., de SantaMaria, foi comeado em 1582 ou antes, porque no captulo 8., referindo-se a uma vinha em S.Loureno que pertenceu a Belchior Homem, diz cuja agora e sabe-se que o ditoBelchior morreu em 1582 (48); porm em 1589 era este mesmo Livro acrescentado, porque nelese contm o captulo 21. que narra a entrada dos corsrios ingleses, sucedida em 1589 ( 49).No fim do captulo 49. do Livro 4. h uma referncia no pretrito enchente das Furnas de 7de Outubro de 1588; se no foi acrescentada posteriormente, somos forados a concluir que acomposio dos 36 captulos que medeiam entre o 13. e o 49., lhe absorveu o trabalho de umano ou mais. certo que nesse mesmo ano de 1588, escrevia ele o captulo 52., onde diz

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    da por diante at este ano de 1588 e logo no captulo imediato, h uma relao da valiaanual do trigo em S. Miguel, desde 1513 at 1589, ano que deve ter sido aditado depois deescrito o captulo em 1588; tambm deve ter sido acrescentada a referncia ao preo do vinhoda Madeira no captulo 56. do mesmo Livro, em que diz ter subido at 80 reis como valeuno ano de 1589; isto porque no captulo 58. seguinte, torna a indicar como presente o anode 1588, dizendo at esta era de 1588.

    Em 1590 ainda escrevia ou retocava este Livro 4., como se depreende do captulo 96.,

    quando diz que o donatrio D. Rui Gonalves da Cmara nesta era de 1590 de 57 anos e j pinta de branco ; mais adiante, falando da filha D. Juliana, repete nesta era de1590. Tambm no captulo 111., referindo-se guerra de Malta, diz que foi sucedida h 25 anos desta era de 1590.

    V-se, pois, que at sua morte no ano imediato de 1591, Frutuoso trabalhou com afinconas Saudades da Terra. As Saudades do Cuque ficaram incompletas e seguem as da Terra,diz o Dr. Ernesto do Canto, que compulsou o manuscrito original, serem de factura anterior,porque a sua caligrafia primorosa, mida e compacta, indica terem sido escritas com mo firmee quando o autor gozava de boa vista (50).

    Gaspar Frutuoso deve ter percorrido, se no todas, algumas ilhas dos Aores; h nasSaudades da Terra descries de stios, pormenores e particularidades que somanifestamente filhas da observao directa. Como exemplo tpico, veja-se no captulo 8. doLivro 3. a descrio da furna do ilhu de S. Loureno em Santa Maria, que s de visupode ter

    sido redigida.Quando realizou Frutuoso as viagens de estudo e preparao para o seu trabalho histrico

    e descritivo? Nada o indica com preciso; mas talvez nos meses de Julho, Agosto e Setembrode 1573, em que esteve ausente da sua parquia, como certifica o Padre Manuel Tavares notermo de casamento que lavrou em 22 de Junho desse ano (Documento n. 20 do Apenso), norespectivo Livro 1., onde s em 7 de Outubro seguinte reaparece a letra e assinatura deFrutuoso, ininterruptamente at 23 de Outubro de 1580; talvez depois desta data, que quando ele cessa o servio do registo dos termos de casamentos, no havendo mais nenhumpor ele escrito; todavia, nos livros de batismos alguns termos aparecem com a sua letra eassinatura nesse ano e nos seguintes at morte. Em 1580, dois, a 6 de Abril e 23 de Outubro.Em 1581 apenas um a 12 de Janeiro, e s em 15 de Agosto de 1582 aparece outro seu. DeSetembro de 1583 a Novembro de 1584 h termos que mostram a sua permanncia na RibeiraGrande em quase todos os meses. De 1585 a 1589, perodo em que, como j vimos, estevemais absorvido com o trabalho das Saudades da Terra, s h um termo em cada um dos anosde 85, 86 e 87, dois no de 88, e trs no de 89. Em 1590 h seis termos por ele registados emMaro, Abril e Junho, e em 1591, ano em que faleceu, cinco, em Fevereiro e Maro.

    Por este breve exame vemos que h um perodo de 19 meses, de 12 de Janeiro de 1581 a15 de Agosto de 1582, em que se pode presumir uma ausncia de Frutuoso fora da RibeiraGrande, determinada talvez pela necessidade de percorrer com demora algumas ilhas dosAores, em busca de elementos para a sua obra, se que com 60 anos de idade e achacadode clicas, como diz Cordeiro, se arriscou a empreender a incmoda viagem das ilhas nasembarcaes da poca.

    Acrescentaremos ainda que a descrio desta ilha de S. Miguel to pormenorizada, osrelevos do terreno, o recorte das costas, as ravinas, as grotas e a paisagem tominuciosamente pintadas, que no pode haver dvida que a percorreu toda, anotandovagarosamente a sua mida topografia e a sua curiosa toponmia.

    Em 1 de Maio de 1585 foi passado um alvar rgio de acrescentamento da cngrua do Dr.Frutuoso, com mais cinco mil ris anuais (51), alm dos dez mil ris e quatro moios de trigo queprimitivamente lhe foram fixados pelo alvar de 19 de Junho de 1565 (52). Esta cngrua era ade pregador, porque pela de vigrio vencia ele 32.400 ris e dois moios de trigo em cada ano(53). Pelo cargo de vigrio, Frutuoso venceu esta importncia at morrer, como se v da visitado Bispo D. Manoel de Gouveia Matriz da Ribeira Grande em 1591, comeada dias antes dofalecimento do Dr. Frutuoso em 24 de Agosto desse ano (Documento n. 11 do Apenso). Noarrazoado do Bispo se demonstra a exiguidade da cngrua, atendendo aos encargos quepesavam sobre o Dr. Frutuoso, visto que, tendo todos os outros vigrios do bispado 30.000 risde ordenado, apenas com as obrigaes da missa aos domingos e dias santificados, aadministrao dos sacramentos e ensino da doutrina ao povo, a este da Ribeira Grande

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    impendiam mais as obrigaes das missas dos Fiis de Deus e das missas do Infante D.Henrique, aos sbados; pelo que o Bispo visitador opina que se eleve para 40.000 ris oordenado anual de vigrio ao Dr. Frutuoso, e mais 4.000 ris pela capela dos Fiis de Deus e3.000 ris pela do Infante. Nesta altura do relato da visita esto riscadas de modo a nopoderem ler-se umas linhas que respeitavam a Frutuoso, como diz uma nota margem, quereza assim: Riscaram-se estas nove regras porque antes de se publicar este livro faleceu oDr. Gaspar Frutuoso. Seria censura do Bispo ao abandono a que parece Frutuoso ter

    votado, nos ltimos anos, o servio do registo paroquial?Se fosse qualquer nota de louvor ou recomendao que no envolvesse censura ou

    repreenso, no haveria necessidade de a riscar, de maneira to perfeita, que impossvell-la.

    Por este documento tambm se v que a vila da Ribeira Grande era a mais populosa dobispado e portanto a de maior trabalho para o vigrio, pois tinha 465 fogos e 2.658 almas deconfisso, s na freguesia Matriz, j separada da de Ribeira Seca, criada por 1576 (54).

    Viveu pois Frutuoso com o modesto ordenado anual de 47.400 ris em dinheiro e seismoios de trigo, computados em 19.800 ris, segundo a avaliao do Bispo no termo da visitade que tratamos. Com to parcos proventos conseguiu juntar uma importante livraria de maisde 400 volumes (55), certamente iniciada em estudante, enriquecida depois em Braganaquando dispunha de maiores recursos, mas continuada aqui, como indicam algumaspassagens das Saudades da Terra;assim, por exemplo: no captulo 68. do Livro 4., rectifica

    uma referncia feita por Damio de Gois na Crnica de El-rei D. Manuel, cap. 3. da 3.parte, impressa pela primeira vez em 1567, portanto j depois da vinda de Frutuoso para S.Miguel em 1565, donde no consta ter voltado ao continente. Esta 3. parte da Crnica,te-la-ia adquirido pelo preo fabuloso que, ento, custavam os livros de primorosa edio comoera esse. O referi-la na sua obra mostra que estava em dia com as mais recentes novidadesliterrias do seu tempo, em cuja aquisio despenderia grande parte dos seus vencimentos,que outra riqueza no tinha, porque dos inmeros documentos dos sculos XVI e XVII vistos eextractados pelo Dr. Ernesto do Canto (escrituras, testamentos, processos orfanolgicos ecveis) em cadernos que se guardam na Biblioteca Pblica de Ponta Delgada, e de muitosoutros por ns manuseados, no consta ter Frutuoso possudo nenhum prdio urbano ourstico. Destes proventos ainda esmolava com desusada prodigalidade os pobres da suafreguesia, como acentuam os bigrafos em frisantes exemplos.

    Morreu de 69 para 70 anos de idade, com 37 de presbtero e 26 de vigrio da RibeiraGrande, em 24 de Agosto de 1591, tendo dito missa na sua igreja ainda nesse dia, comoafirmam Monte Alverne e Cordeiro, e tambm nos d a perceber o respectivo termo de bito(Documento n. 16 do Apenso), em que se declara no ter feito testamento por NossoSenhor o chamar de pressa e no ter tempo; parece que o seu estado adoentado, de qued notcia Cordeiro, o no impedia de andar de p e cumprir os deveres de proco. A morte,contudo, no foi repentina, porque recebeu os sacramentos.

    As ltimas disposies devem ter sido verbais e por elas recomendaria a entrega da sualivraria e dos seus manuscritos aos padres do Colgio dos Jesutas de Ponta Delgada, ondeat sua extino em 1760 se guardou o original das Saudades da Terra.

    O Bispo D. Manoel de Gouveia, estando ento em visita na Ribeira Grande, como j vimos,mandou que o Dr. Frutuoso fosse sepultado na capela-mor da sua igreja, acima dos primeirosdegraus, quase defronte do altar-mor, com uma lpide em que se gravou o seguinte epitfio: -Aqui jaz o Dr. Gaspar Fructuoso que foi Vigrio e Pregador desta Igreja vere Varo Apostolicoinsigne em letras e virtudes (56).

    Ao seu enterramento compareceu o auto da Misericrdia de Ponta Delgada, de que erairmo, como est anotado no Livro da Receita e Despesa de 1591-1592 do arquivo damesma Misericrdia, (que contm uma relao dos defunctos que neste ano enterrou oauto), pela forma seguinte: a 24 de Agosto de 1591 o Doutor Gaspar Fructuoso irmo daCasa. No livro 1. da Irmandade da Misericrdia est o seu nome inscrito duas vezes, ambascom a designao de doutor, a fls. 16 verso e 17 verso, sem indcio da data da admisso.Tambm era irmo da confraria de S. Pedro da Ribeira Grande e de outras irmandades quesufragaram a sua alma com muitos ofcios e missas, como refere o termo de bito.

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XXIV

    Em 3 de Setembro de 1866 fez-se a exumao das cinzas do Dr. Gaspar Frutuoso, quedepois de recolhidas da sua sepultura numa urna de madeira, foram trasladadas para ocemitrio da vila da Ribeira Grande, precedendo deliberao camarria conforme o documenton. 12 do Apenso. Sobre o local em que repousam esses restos, erigiu-se um pequenomausolu, em que est escrito o seguinte: Aqui jazem as cinzas do Revd. GasparFructuoso, historiador das ilhas dos Aores e doutor graduado em philosophia e theologia pelaUniversidade de Salamanca, o qual nasceu na cidade de Ponta Delgada em 1522 e faleceu

    nesta Villa em 24 de Agosto de 1591. Tendo recusado o bispado de Angra que em seu favorquizera resignar o ex.mo Bispo D. Manoel de Almada, preferiu mitra a vigararia da Matrizdesta Villa, que serviu por 40 anos. A Camara Municipal deste concelho a expensas domunicpio e coadjuvada pelos donativos de alguns michaelenses, mandou erigir estemonumento memoria de varo to insigne em letras e em virtudes, 1867 .

    Como se viu do que atrs ficou exposto, este epitfio contm algumas inexactidesbiogrficas. Os nomes dos subscritores que auxiliaram a Cmara da Ribeira Grande naaquisio do mausolu constam de pg. VII da edio dos primeiros 36 captulos do Livro 4.das Saudades da Terra, feita em Ponta Delgada no ano de 1876 por F. M. Supico e J. P.Cardoso. A oferecem os editores vrias razes para prova de que as cinzas exumadas daMatriz para o cemitrio da Ribeira Grande so realmente as do Dr. Gaspar Frutuoso. Noentanto, suscitam-se dvidas vista da seguinte nota contida no tomo 4. das VariedadesAorianas de Jos de Torres, a pg. 180 a 181, verso ( 57): De um exemplar da HistriaInsulana do Padre Antnio Cordeiro, que pertenceu ao Revd. Vigrio da Faj de Baixo, o Dr.

    Manuel de Andrade Albuquerque Bettencourt, morto em 1848, e que depois dele de meu tio oRevd. Padre M. Jos Joaquim Borges, trasladei as seguintes notas marginais escritas a tinta,hoje quasi ininteligveis, e que foram porventura feitas no ano de 1787: L. 2., cap. 2., 22.; sobre o Dr. Gaspar Frutuoso: - Faleceu em 24 de Agosto de 1591 de 69 para 70 anos.Tomou posse da Igreja em 15 de Agosto de 1565; consta de um seu livro 1. de casados, fol.28. Serviu de vigrio 26 anos e 9 dias. A sepultura logo acima do arco da capela-mor daparte do Evangelho, defronte da primeira cadeira do coro, que se viu o seu letreiro em 21 deJaneiro de 1788, quando quis assoalhar de novo a mesma capela, o vigrio Pereira de S. Emcorrespondncia desta sepultura, da parte da Epstola, est a campa do vigrio e pregador damesma igreja, o Licd. Francisco Afonso de Chaves e Melo, que faleceu em 1613, masmandando eu abrir as duas sepulturas, achei serem pedreiras e que as campas se tinhammudado e s conservavam os letreiros. De Janeiro, 22 de 1788. Pregador e vigrio, Nicolau deSousa Pereira S.

    Pelos dizeres desta nota parece que em 1788 j nenhuns restos mortais existiam sob alpide que com letreiro cobria a campa do Dr. Gaspar Frutuoso. No h razo para supormosfalsidade no que anotou o vigrio Pereira de S; mas pode ter havido uma ilao errnea,porquanto dizendo no ter encontrado restos mortais no stio preciso que a lpide cobria, noassevera contudo ter explorado o terreno em redor da sepultura. Isto porque pessoa fidedigna,que em 1866 assistiu exumao, assegurou-nos que as cinzas trasladadas para o cemitrioda Ribeira Grande, no estavam exactamente sob a pedra da campa, mas sim numaescavao lateral, parecendo que a lpide fora colocada tempos depois do encerramento doDr. Frutuoso, sem cobrir com exactido a cova ou escavao. Efectivamente, a colocao dalpide no deve ter sido imediata inumao do corpo, medeando entre uma e outra o temponecessrio para o trabalho de gravura do epitfio. Quando pronta, seria imprecisamente postano local aproximado da sepultura, sem esmeros de exactido. E de notar que as sepulturasno altar-mor no seriam muitas, porque o stio era reservado para pessoas de categoria,especialmente eclesisticos de distino; tanto assim que o vigrio Pereira de S, descobrindoo soalho da capela-mor, s d notcia de duas, a do vigrio Chaves e Melo e a do Dr. Gaspar

    Frutuoso.Estas consideraes, se no destroem por completo as dvidas suscitadas pela anotao

    do vigrio Pereira de S, fortalecem, contudo, a hiptese de serem realmente do primeirocronista insulano as cinzas que repousam sob o mausolu erigido sua memria.

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    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XXV

    III

    O HUMANISTA, O HISTORIADOR E O VALOR DA SUA OBRA

    Para estudarmos o alto esprito do homem eminente cuja biografia nos arriscamos aesboar, parece-nos conveniente traar um ligeiro quadro do meio em que nasceu e em queevoluram e se formaram as suas faculdades. o da vida das primeiras geraes micaelenses.

    A colonizao dos Aores, principiada em meados do sculo XV, teve diferentedesenvolvimento nas diversas ilhas, mas s se intensificou por 1470 a 1480 nas dos gruposoriental e central. Enquanto a ilha de Santa Maria, a primeira habitada, atraa a emigraocontinental, o povoamento da de S. Miguel correu resumido e vagaroso at ao tempo doterceiro donatrio Rui Gonalves da Cmara, primeiro do nome, que requerendo Infanta D.Beatriz (como tutora de seu filho, o duque de Vizeu, alto donatrio dos Aores), a confirmaoda compra da donataria de S. Miguel, que fizera a Joo Soares de Albergaria, se propepovo-la e aproveit-la, como declara a respectiva carta de 10 de Maro de 1474 (58); a diz aInfanta: que a dita ilha ds o comeo de sua povoao at o presente mui mal

    aproveitada e pouco povoada; e mais adiante acrescenta: - que havendo respeito disposio do dito Rui Gonalves que por todas as razes muito bem disposto para fazerpovoar a dita ilha, etc. confirma a compra e regula a sucesso da donataria. Mas notemos s este indcio: da leitura do Livro 4. das Saudades da Terra, v-se que efectivamentefoi este terceiro donatrio, o primeiro da famlia dos Cmaras, quem promoveu a colonizaoda ilha, operou a repartio das terras, impulsionou a sua cultura e o estabelecimento dosprimeiros centros de populao. O autor, no captulo 66. do mesmo Livro, expressamente dizque foi ele quem veio povoar esta ilha, que at ento era quase erma.

    Data portanto de 1474 ou 1475 o povoamento metdico de S. Miguel e a sua organizaocolonial, como sociedade jurdica e de privilgios municipais. Meio sculo depois, poucomenos, ao nascer Frutuoso em 1522, o incremento da populao era relativamente importante:havia seis vilas, Ponta Delgada, Vila Franca, Ribeira Grande, Nordeste, Lagoa e gua de Pau,com dezasseis freguesias (59); a populao de Vila Franca, ento capital da ilha, era tal, quesendo subvertida nesse ano de 1522, consta terem perecido na catstrofe quatro a cinco milpessoas, ainda que, mister observar, este nmero, como exagerado, foi posto em dvida porFrutuoso.

    Com o aumento dos habitantes desenvolvera-se a agricultura, estando j os terrenos quasetodos repartidos em dadasou sesmarias, e iniciara-se a vida cvica em torno dos municpios edas misericrdias. Mas, a par destes progressos materiais, temos todos os indcios de que acultura moral e mental desta sociedade embrionria estava atrasadssima, vivendo oshabitantes com a nica preocupao do arroteamento dos terrenos virgens, sem clerosuficiente para a educao do povo, sem escolas e sem conventos onde se ministrasseinstruo, com um comrcio rudimentar, ainda sem exportao intensiva e quase semnavegao, portanto com raras comunicaes com o continente europeu. A terra produziamuito; vivia-se na abundncia e no isolamento, uma vida farta e rotineira.

    O atraso, a ignorncia e penria de esprito, em que jaziam estas populaes, sotestemunhados pelo Bispo D. Agostinho Ribeiro, quando ainda vigrio do Corvo, pouco antesde 1521 (60). O desregramento e pouca moralizao do povo micaelense, filhos da fartura emque vivia, esto notados no captulo 69. do Livro 4. das Saudades da Terra, que precede anarrativa da catstrofe de Vila Franca, impressionante sucesso que foi tido como mandado deDeus para castigo da destemperana dos costumes. O abandono a que a corte portuguesa e ogoverno central votavam esta ilha e em geral todos os negcios dos Aores ficouabundantemente revelado em numerosos documentos recolhidos no Archivo dos Aores,versando conflitos entre autoridades, queixas dos povos e dos municpios contra as imprecisas jurisdies temporais e espirituais, e frequentes desordens e abusos de poder, para que seimploravam providncias que tarde ou nunca chegavam dos governantes.

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    SAUDADES DA TERRA Livro Primeiro

    Notcia Biogrfico do Dr. Gaspar Frutuoso XXVI

    Este estado de coisas encontra-se bem exemplificado em dois documentos publicados no1. volume do Archivo dos Aores(pg. 107 a 115), um de 1511 e o outro de 1515; apesar deescritos com quatro anos de intervalo, ambos se queixam das mesmas desordens, acusampelos mesmos factos as mesmas autoridades e referem-se aos mesmos conflitos.

    Para completarmos o quadro da vida de ento em S. Miguel e decerto nas demais ilhas dosAores, notaremos que, sendo a agricultura a nica ou quase nica ocupao de todos oshabitantes, a identidade de profisso formava de todos eles uma s classe; a vida era

    igualitria e de trabalho para todos, no havendo ainda castas ociosas e de luxo, nem aquelaacentuada distino de classes sociais, que s na segunda metade do sculo XVI principia aestabelecer-se com a formao das casas vinculares.

    E muito embora as ascendncias de alguns dos primitivos colonos sejam fidalgas enobilirquicas, Frutuoso em diversas passagens da sua obra, mostra-os, a eles ou a seusfilhos, nos trabalhos rduos e plebeus da lavoura, rudes no trato, fragueiros, derrubandorvores, matando reses, conduzindo carros e carregando aos ombros pesadas cargas, semembargo de os podermos considerar como os aristocratas do primeiro quartel do sculo XVIpelos ttulos e distines que possuam, ou pelos cargos que desempenhavam, porque muitoseram cavaleiros de ordens militares, escudeiros, juzes, vereadores, etc.

    Eis o meio em que nasceu o nosso historiador Gaspar Frutuoso e onde parece ter vivido at sua ida para Salamanca em 1548, ou, talvez, pouco antes. Contudo, nesse decurso decerca de trinta anos que mais profundamente se modifica a vida micaelense. De 1520 a 1550 a

    mutao radical: alarga-se a cultura da terra, fundam-se as indstrias de transformao dosprodutos agrcolas, como a do acar e a do pastel, e a minria da pedra-hume, que j exigeminteligncia, engenho e tcnica; desenvolve-se o comrcio de exportao, sobretudo do trigo edo pastel, estreitando as relaes com Portugal e o estrangeiro, pela frequncia da navegao;aparece o trato mercantil com a vinda de muitos mercadores portugueses, ingleses, francesese flamengos; alguns cristos-novos, acossados pela perseguio do Santo Ofcio, refugiam-seaqui, trazendo capital com que fundam casas de negcio e alargam a circulao monetria;triplica o preo dos gneros, induzindo-se este aumento dos valores do moio de trigo entre1520 e 1550; comea a desenvolver-se a instruo com a abertura de aulas de gramtica elatim, com o estabelecimento dos primeiros conventos de franciscanos; multiplica-se o clerosecular que por dever do mnus paroquial obrigado a ensinar, pregar e moralizar o povo;saem para as Universidades alguns estudantes, entre eles Frutuoso; cresce a construourbana, tanto a civil como a religiosa e militar; progride a vida cvica e delimitam-se asjurisdies das diversas autoridades e tribunais; comea a organizar-se a defesa territorial com

    a criao das milcias e a fortificao das ilhas; melhora, enfim, a educao moral do povo eacentua-se o sentimento religioso.

    O leitor compenetrar-se- da exactido deste quadro, percorrendo com ateno asnarrativas das Saudades da Terra, mormente as do Livro 4., e a abundante documentaoentesourada pelo Dr. Ernesto do Canto nos doze primeiros volumes do Archivo dos Aores;estes dois elementos de imperecvel valor para a histria dos Aores (ainda por fazer, sequerpor esboar), mostram de uma forma indirecta, mas flagrante, que o perodo evolutivo quecoincide com os primeiros cinco lustres da existncia de Frutuoso representa para oshabitantes de S. Miguel, e em geral para os aorianos, uma poca de transio e deelaborao da sua actividade e da sua mentalidade, como reflexo esbatido do movimentointelectual da Renascena portuguesa, ento em plena florescncia.

    neste perodo de renascimento e fecunda actividade cientfica, artstica e literria daPennsula que Frutuoso sai do meio que acabamos de descrever, propcio a empreendimentos

    e estimulante das inteligncias como a sua, e entra como estudante em Salamanca, ambienteerudito, em cuja Universidade se operara uma funda reforma nos cursos das suas disciplinas,talvez uma revoluo nas ideias, nos programas e mtodos de ensino, com a remodelao doplano de estudos feita nos estatutos de 1538, e a regncia das cadeiras das suas faculdadespor uma pliade de homens ilustres que ali professaram na primeira metade do sculo XVI,trazendo Escola um esplendor que fez de Salamanca uma cidade puramente universitria,celebrada entre a intelectualidade do tempo com o nome de Atenas Espanhola.

    Ali acorriam sbios, artistas e personagens de distino de toda a Europa latina; ali iamescolher professores outras Universidades nacionais e estrangeiras, entre elas a de Coimbra,que tantos esforos empregou para alcanar como seu catedrtico o de prima de cnones de

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