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A reforma psiquitrica brasileira e a poltica de sade mental

A humanidade convive com a loucura h sculos e, antes de se tornar um tema essencialmente mdico, o louco habitou o imaginrio popular de diversas formas. De motivo de chacota e escrnio a possudo pelo demnio, at marginalizado por no se enquadrar nos preceitos morais vigentes, o louco um enigma que ameaa os saberes constitudos sobre o homem.

Na Renascena, a segregao dos loucos se dava pelo seu banimento dos muros das cidades europias e o seu confinamento era um confinamento errante: eram condenados a andar de cidade em cidade ou colocados em navios que, na inquietude do mar, vagavam sem destino, chegando, ocasionalmente, a algum porto.

No entanto, desde a Idade Mdia, os loucos so confinados em grandes asilos e hospitais destinados a toda sorte de indesejveis invlidos, portadores de doenas venreas, mendigos e libertinos. Nessas instituies, os mais violentos eram acorrentados; a alguns era permitido sair para mendigar.

No sculo XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, prope uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os aos manicmios, destinados somente aos doentes mentais. Vrias experincias e tratamentos so desenvolvidos e difundidos pela Europa.

O tratamento nos manicmios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na reeducao dos alienados, no respeito s normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, a funo disciplinadora do mdico e do manicmio deve ser exercida com firmeza, porm com gentileza. Isso denota o carter essencialmente moral com o qual a loucura passa a ser revestida.

No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das idias originais do mtodo. Permanecem as idias corretivas do comportamento e dos hbitos dos doentes, porm como recursos de imposio da ordem e da disciplina institucional. No sculo XIX, o tratamento ao doente mental inclua medidas fsicas como duchas, banhos frios, chicotadas, mquinas giratrias e sangrias.

Aos poucos, com o avano das teorias organicistas, o que era considerado como doena moral passa a ser compreendido tambm como uma doena orgnica. No entanto, as tcnicas de tratamento empregadas pelos organicistas eram as mesmas empregadas pelos adeptos do tratamento moral, o que significa que, mesmo com uma outra compreenso sobre a loucura, decorrente de descobertas experimentais da neurofisiologia e da neuroanatomia, a submisso do louco permanece e adentra o sculo XX.

A partir da segunda metade do sculo XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crtica e transformao do saber, do tratamento e das instituies psiquitricas. Esse movimento inicia-se na Itlia, mas tem repercusses em todo o mundo e muito particularmente no Brasil.

Nesse sentido que se inicia o movimento da Luta Antimanicomial que nasce profundamente marcado pela idia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais.

Aliado a essa luta, nasce o movimento da Reforma Psiquitrica que, mais do que denunciar os manicmios como instituies de violncias, prope a construo de uma rede de servios e estratgias territoriais e comunitrias, profundamente solidrias, inclusivas e libertrias.

No Brasil, tal movimento inicia-se no final da dcada de 70 com a mobilizao dos profissionais da sade mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais. Esse movimento se inscreve no contexto de redemocratizao do pas e na mobilizao poltico-social que ocorre na poca.

Importantes acontecimentos como a interveno e o fechamento da Clnica Anchieta, em Santos/SP, e a reviso legislativa proposta pelo ento Deputado Paulo Delgado por meio do projeto de lei n 3.657, ambos ocorridos em 1989, impulsionam a Reforma Psiquitrica Brasileira.

Em 1990, o Brasil torna-se signatrio da Declarao de Caracas a qual prope a reestruturao da assistncia psiquitrica, e, em 2001, aprovada a Lei Federal 10.216 que dispe sobre a proteo e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em sade mental.

Dessa lei origina-se a Poltica de Sade Mental a qual, basicamente, visa garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em servios substitutivos aos hospitais psiquitricos, superando assim a lgica das internaes de longa permanncia que tratam o paciente isolando-o do convvio com a famlia e com a sociedade como um todo.

A Poltica de Sade Mental no Brasil promove a reduo programada de leitos psiquitricos de longa permanncia, incentivando que as internaes psiquitricas, quando necessrias, se dem no mbito dos hospitais gerais e que sejam de curta durao. Alm disso, essa poltica visa constituio de uma rede de dispositivos diferenciados que permitam a ateno ao portador de sofrimento mental no seu territrio, a desinstitucionalizao de pacientes de longa permanncia em hospitais psiquitricos e, ainda, aes que permitam a reabilitao psicossocial por meio da insero pelo trabalho, da cultura e do lazer.

A mostra fotogrfica que aqui se apresenta traz a fora documental das imagens, que, para alm das palavras, prova que a mudana do modelo de ateno aos portadores de transtornos mentais no apenas possvel e vivel, como, de fato, real e acontece.

Em parceria, a Coordenao Nacional de Sade Mental e o Programa de Humanizao no SUS, ambos do Ministrio da Sade, registraram o cotidiano de 24 casas localizadas em Barbacena/MG, nas quais residem pessoas egressas de longas internaes psiquitricas e que, por suas histrias e trajetrias de abandono nos manicmios, mais parecem personagens do impossvel.

Antes, destitudos da prpria identidade, privados de seus direitos mais bsicos de liberdade e sem a chance de possuir qualquer objeto pessoal (os poucos que possuam tinham que ser carregados junto ao prprio corpo), esses sobreviventes agora vivem. So personagens da cidade: transeuntes no cenrio urbano, vizinhos, trabalhadores e tambm turistas, estudantes e artistas. Compuseram e compem novas histrias no mundo.

Essa mostra fotogrfica de beneficirios do Programa de Volta para Casa e moradores de Servios Residenciais Teraputicos , acima de tudo, uma homenagem aos que transpuseram os muros dos hospitais, da sociedade e os seus prprios.Resumo: O conceito de loucura uma construo histrica. A populao que sofre de algum transtorno mental reconhecida como uma das mais excludas socialmente. Este trabalho faz um resgate histrico das polticas em sade mental no Brasil. Mostra o longo percurso da Reforma Psiquitrica e as mudanas na regulamentao e nas formas de atendimento ao portador de transtorno mental, que adotam atualmente os Centros de Ateno Psicossocial - CAPS como dispositivos estratgicos para a organizao da rede de ateno em sade mental o que possibilitou a organizao de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquitrico no pas, mas que ainda enfrentam grandes dificuldades em suas implementaes e atuaes. Palavras-Chave: CAPS; loucura; sade mental.

O conceito de loucura uma construo histrica, antes do sculo XIX no havia o conceito de doena mental nem uma diviso entre razo e loucura. O trajeto histrico do Renascimento at a atualidade tem o sentido da progressiva separao e excluso da loucura do seio das experincias sociais (FERNANDES e MOURA, 2009).

A populao que sofre de algum transtorno mental reconhecida como uma das mais excludas socialmente. Essas pessoas apresentam redes sociais menores do que a mdia das outras pessoas. Para Fernandes e Moura (2009) a segregao no apenas fisicamente, permeia o corpo social numa espcie de barreira invisvel que impede a quebra de velhos paradigmas.

Vrios estudos demonstram que a pessoa que sofre de transtorno mental severo e persistente, quando inserido em redes fortes de troca e suporte apresentam maior probabilidade de xitos positivos no tratamento (MANGUIA e MURAMOTO, 2007).

Este trabalho faz um resgate histrico das polticas em sade mental no Brasil, mostra as mudanas na regulamentao e nas formas de atendimento, que trazem novas possibilidades de atendimento da loucura, priorizando o atendimento psicossocial em meio comunitrio, tirando o privilegio dos manicmios e hospitais psiquitricos como nicas formas de tratamento. So enfatizadas tambm as dificuldades enfrentadas na consolidao dessas polticas e as novas formas de cuidado ofertados ao portador de transtorno mental.

A rede de ateno sade mental brasileira parte integrante do Sistema nico de Sade (SUS), rede organizada de aes e servios pblicos de sade, institudo no Brasil pelas Leis Federais 8080/1990 e 8142/90. Leis, Portarias e Resolues do Ministrio da Sade priorizam o atendimento ao portador de transtorno mental em sistema comunitrio.

Nos anos 70 d-se incio do processo de Reforma Psiquitrica no Brasil, um processo contemporneo ao movimento sanitrio, em favor da mudana dos modelos de ateno e gesto nas prticas de sade, defesa da sade coletiva, equidade na oferta dos servios, e protagonismo dos trabalhadores e usurios dos servios de sade nos processos de gesto e produo de tecnologias de cuidado (BRASIL, 2005).

O ano de 1978 marca o incio efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquitricos no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental (MTSM), formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitrio, associaes de familiares, sindicalistas, membros de associaes de profissionais e pessoas com longo histrico de internaes psiquitricas, surge neste ano. sobretudo este Movimento que passa a protagonizar e a construir a partir deste perodo a denncia da violncia dos manicmios, da mercantilizao da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistncia e a construir coletivamente uma crtica ao chamado saber psiquitrico e ao modelo hospitalocntrico na assistncia s pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005).

Em maro de 1986 foi inaugurado o primeiro CAPS do Brasil, na cidade de So Paulo: Centro de Ateno Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cergueira, conhecido como CAPS da Rua Itapeva (BRASIL, 2004). Em 1987 aconteceu em Bauru, SP o II Congresso Nacional do MTSM que adotou o lema Por uma sociedade sem manicmios. Neste mesmo ano, realizada a I Conferncia Nacional de Sade Mental no Rio de Janeiro (BRASIL, 2005).

Em 1989 a Secretaria Municipal de Sade de Santos (SP) deu incio h um processo de interveno em um hospital psiquitrico, a Casa de Sade Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes. esta interveno, com repercusso nacional, que demonstrou a possibilidade de construo de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquitrico. Neste perodo no municpio de Santos so implantados Ncleos de Ateno Psicossocial (NAPS) que funcionavam 24 horas; so criadas cooperativas; residncias para os egressos do hospital e associaes (BRASIL, 2005).

A regulamentao da ateno psicossocial em sade mental no Brasil

No ano de 1989, d entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que prope a regulamentao dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extino progressiva dos manicmios no pas.

A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vrios estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituio progressiva dos leitos psiquitricos por uma rede integrada de ateno sade mental. A partir deste perodo a poltica do Ministrio da Sade para a sade mental comea a ganhar contornos mais definidos (BRASIL, 2005).

Na dcada de 90 realizada a II Conferncia Nacional de Sade Mental e passam a entrar em vigor no pas as primeiras normas federais regulamentando a implantao de servios de ateno diria, fundadas nas experincias dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalizao e classificao dos hospitais psiquitricos (BRASIL, 2005).

Os NAPS/CAPS foram criados oficialmente a partir da Portaria GM 224/92 que regulamentou o funcionamento de todos os servios de sade mental em acordo com as diretrizes de descentralizao e hierarquizao das Leis Orgnicas do Sistema nico de Sade. Essa Portaria define os NAPS/CAPS como unidades de sade locais/regionalizadas que contam com uma populao adscrita definida pelo nvel local e que oferecem atendimento de cuidados intermedirios entre o regime ambulatorial e a internao hospitalar; podem constituir-se tambm em porta de entrada da rede de servios para as aes relativas sade mental e atendem tambm a pacientes referenciados de outros servios de sade, dos servios de urgncia psiquitrica ou egressos de internao hospitalar.

A Portaria GM 224/92 probe a existncia de espaos restritivos e exige que seja resguardada a inviolabilidade da correspondncia dos pacientes internados e feito o registro adequado dos procedimentos diagnsticos e teraputicos efetuados nos pacientes.

As novas normatizaes do Ministrio da Sade de 1992, embora regulamentassem os novos servios de ateno diria, no instituam uma linha especfica de financiamento para os CAPS e NAPS; e as normas para fiscalizao e classificao dos hospitais psiquitricos no previam mecanismos sistemticos para a reduo de leitos. O processo de reduo de leitos em hospitais psiquitricos e de desinstitucionalizao de pessoas com longo histrico de internao ganha impulso em 2002 com uma srie de normatizaes do Ministrio da Sade, que instituem mecanismos para a reduo de leitos psiquitricos a partir dos macro-hospitais (BRASIL, 2005).

A Portaria/GM n 106 de 11 de fevereiro de 2000 institui os Servios Residenciais Teraputicos definidos como moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internaes psiquitricas de longa permanncia, que no possuam suporte social e laos familiares e, que viabilizem sua insero social.

A Portaria 106 prope as Residncias Teraputicas como uma modalidade assistencial substitutiva da internao psiquitrica prolongada, sendo que a cada transferncia de paciente do Hospital Especializado para o Servio de Residncia Teraputica ser reduzido ou descredenciado do SUS, igual n. de leitos naquele hospital.

somente no ano de 2001 que a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216) sancionada no pas. A aprovao, no entanto, de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificaes importantes no texto normativo.

A Lei Federal 10.216 dispe sobre a proteo e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em sade mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em servios de base comunitria, mas no institui mecanismos claros para a progressiva extino dos manicmios.

Ao final do ano de 2001, em Braslia, convocada logo aps a promulgao da lei 10.216 a III Conferncia Nacional de Sade Mental, dispositivo fundamental de participao e de controle social.

A promulgao da lei 10.216 impe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquitrica no Brasil. no contexto da promulgao da lei 10.216 e da realizao da III Conferncia Nacional de Sade Mental, que a poltica de sade mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquitrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentao e visibilidade. Linhas especficas de financiamento so criadas pelo Ministrio da Sade para os servios abertos e substitutivos ao hospital psiquitrico e novos mecanismos so criados para a fiscalizao, gesto e reduo programada de leitos psiquitricos no pas (BRASIL, 2005).

No Relatrio Final da III Conferncia inequvoco o consenso em torno das propostas da Reforma Psiquitrica, e so pactuados os princpios, diretrizes e estratgias para a mudana da ateno em sade mental no Brasil. Desta forma, esse evento consolida a Reforma Psiquitrica como poltica de governo, confere aos CAPS o valor estratgico para a mudana do modelo de assistncia, defende a construo de uma poltica de sade mental para os usurios de lcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avano da Reforma Psiquitrica no pas.

A Portaria/GM 336 de 19 de fevereiro de 2002 estabeleceu as modalidades dos Centros de Ateno Psicossocial como CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD E CAPSi, definindo-os por ordem crescente de porte/complexidade e abrangncia populacional.

A Portaria/GM n 251 de 31 de janeiro de 2002 estabelece diretrizes e normas para a assistncia hospitalar em psiquiatria, reclassifica os hospitais psiquitricos, define e estrutura a porta de entrada para as internaes psiquitricas na rede do SUS. Estabelece ainda que os hospitais psiquitricos integrantes do SUS devero ser avaliados por meio do PNASH Programa Nacional de Avaliao do Sistema Hospitalar/Psiquiatria.

A Lei N 10.708 de 31 de Julho de 2003 institui o auxlio-reabilitao psicossocial para assistncia, acompanhamento e integrao social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquitricas. O auxlio parte integrante de um programa de ressocializao de pacientes internados em hospitais ou unidades psiquitricas, denominado "De Volta Para Casa", sob coordenao do Ministrio da Sade.

A Portaria n 52, de 20 de janeiro de 2004 institui o Programa Anual de Reestruturao da Assistncia Psiquitrica Hospitalar no SUS 2004. Prope que o processo de mudana do modelo assistencial deve ser conduzido de modo a garantir uma transio segura, onde a reduo dos leitos hospitalares possa ser planificada e acompanhada da construo concomitante de alternativas de ateno no modelo comunitrio.

O Programa Nacional de Avaliao do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria); o Programa Anual de Reestruturao da Assistncia Hospitalar Psiquitrica no SUS (PRH); a instituio do Programa de Volta para Casa e a expanso de servios como os Centros de Ateno Psicossocial e as Residncias Teraputicas, permitiram a reduo de leitos psiquitricos no pas e o fechamento de vrios hospitais psiquitricos.

Em 2004 foi realizado em So Paulo o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Ateno Psicossocial, reunindo dois mil trabalhadores e usurios de CAPS (BRASIL, 2005). Em fevereiro de 2005 a Portaria n 245 destina incentivo financeiro para implantao de Centros de Ateno Psicossocial e a Portaria n 246 destina incentivo financeiro para implantao de Servios Residenciais Teraputicos.

A Portaria n 1.876 de 14 de Agosto de 2006 instituiu Diretrizes Nacionais para Preveno do Suicdio, a serem implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competncias das trs esferas de gesto. E a Lei 11343 de 23 de agosto de 2006 institui o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para preveno do uso indevido, ateno e reinsero social de usurios e dependentes de drogas; estabelece normas para represso produo no autorizada e ao trfico ilcito de drogas; define crimes e d outras providncias.

O papel estratgico dos CAPS na ateno a sade mental no Brasil

Os Centros de Ateno Psicossocial dentro da atual poltica de sade mental do Ministrio da Sade so considerados dispositivos estratgicos para a organizao da rede de ateno em sade mental. Com a criao desses centros, possibilita-se a organizao de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquitrico no pas.

Esses dispositivos foram criados para organizar a rede municipal de ateno a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes (BRASIL, 2007). Os CAPS so servios de sade municipais, abertos, comunitrios que oferecem atendimento dirio. Eles devem ser territorializados, devem estar circunscritos no espao de convvio social (famlia, escola, trabalho, igreja, etc.) daqueles usurios que os frequentam. Deve ser um servio que resgate as potencialidades dos recursos comunitrios sua volta, pois todos estes recursos devem ser includos nos cuidados em sade mental. A reinsero social pode se estruturar a partir do CAPS, mas sempre em direo comunidade.

Seu objetivo oferecer atendimento populao, realizar o acompanhamento clnico e a reinsero social dos usurios pelo acesso ao trabalho, lazer, exerccio dos direitos civis e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios.

O CAPS, assumindo um papel estratgico na organizao da rede comunitria de cuidados, faro o direcionamento local das polticas e programas de Sade Mental desenvolvendo projetos teraputicos e comunitrios, dispensando medicamentos e acompanhando usurios que moram em residncias teraputicas, assessorando e sendo retaguarda para os Agentes Comunitrios de Sade (ACS) e para a Estratgia Sade da Famlia (ESF) no cuidado familiar (BRASIL, 2004).

As prticas realizadas nos CAPS se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos desses servios, muitas vezes, ultrapassam a prpria estrutura fsica, em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas aes, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua histria, sua cultura e sua vida quotidiana (BRASIL, 2004).

Todo o trabalho desenvolvido no CAPS dever ser realizado em um meio teraputico, isto , tanto as sesses individuais ou grupais como a convivncia no servio tm finalidade teraputica. Isso obtido atravs da construo permanente de um ambiente facilitador, estruturado e acolhedor, abrangendo vrias modalidades de tratamento. Ao iniciar o acompanhamento no CAPS se traa um projeto teraputico com o usurio e, em geral, o profissional que o acolheu no servio passar a ser uma referncia para ele (Terapeuta de Referncia - TR) (BRASIL, 2004).

Cada usurio de CAPS deve ter um projeto teraputico individual. Caracterizado como um conjunto de atendimentos que respeite a sua particularidade, que personalize o atendimento de cada pessoa na unidade e fora dela e proponha atividades durante a permanncia diria no servio, segundo suas necessidades, potencialidades e limitaes.

A depender do projeto teraputico do usurio do servio, o CAPS poder oferecer, conforme as determinaes da Portaria GM 336/02: atendimento Intensivo; atendimento Semi-Intensivo e atendimento No-Intensivo.

O processo de construo dos servios de ateno psicossocial tem revelado outras realidades: as teorias e os modelos prontos de atendimento vo se tornando insuficientes frente s demandas das relaes dirias com o sofrimento e a singularidade desse tipo de ateno. preciso criar, observar, escutar, estar atento complexidade da vida das pessoas, que maior que a doena ou o transtorno. Para tanto, necessrio que, ao definir atividades, como estratgias teraputicas nos CAPS, se repensem os conceitos, as prticas e as relaes que podem promover sade entre as pessoas: tcnicos, usurios, familiares e comunidade. Todos precisam estar envolvidos nessa estratgia, questionando e avaliando permanentemente os rumos da clnica e do servio (BRASIL, 2004).

Quando uma pessoa atendida em um CAPS, ela tem acesso a vrios recursos teraputicos: atendimento individual; atendimento em grupo; atendimento para a famlia; atividades comunitrias; Assemblias ou Reunies de Organizao do Servio.

Dessa forma, o CAPS pode articular cuidado clnico e programas de reabilitao psicossocial. Os projetos teraputicos devem incluir a construo de trabalhos de insero social, respeitando as possibilidades individuais e os princpios de cidadania que minimizem o estigma e promovam o protagonismo de cada usurio frente sua vida. Todas as aes e atividades realizadas no CAPS devem se estruturar de forma a promover as melhores oportunidades de trocas afetivas, simblicas, materiais, capazes de favorecer vnculos e interao humana (BRASIL, 2004).

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) por meio do Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas Pblicas (CREPOP) em relatrio sobre a atuao dos psiclogos nos Centros de Ateno Psicossocial fala sobre as principais dificuldades enfrentadas no trabalho nos CAPS.

Dentre os principais problemas apontados pela pesquisa esto: a ausncia de polticas locais (estaduais e municipais) e de investimentos nos CAPS e nos equipamentos de sade mental; dificuldades na articulao com o Ministrio da Sade; em algumas regies os municpios ainda esto com muitas dificuldades em implantar e administrar os Centros; a falta de recursos; a permanncia de um modelo de ateno centrado na figura do mdico; resistncia por parte de alguns psiquiatras, que se posicionam como contrrios ao movimento da Reforma Psiquitrica por medo de perder espao; a dificuldade de realizar atividades extramuros.

Em todos os relatos da pesquisa a questo da desarticulao ou mesmo inexistncia de uma rede ampliada de ateno aos usurios dos CAPS foi apontada como uma das grandes dificuldades do trabalho neste contexto. Enfrenta-se a falta de integrao entre os servios existentes; dificuldades na atribuio das competncias e atribuies de cada unidade de sade; ausncia de uma rede articulada (uma estratgia utilizada para o encaminhamento o uso das relaes entre os profissionais das diferentes instituies). Para o CFP (2009) os relatos indicam que o CAPS referncia para outros servios, porm h muita dificuldade de que estes servios funcionem como referncia para os CAPS.

A ausncia de uma rede de servios de ateno a sade mental da criana foi apontada como uma das dificuldades do trabalho em CAPS infantil. Problemas tambm foram relatadas especificamente no atendimento a usurios de lcool e drogas, como por exemplo a falta de uma rede de suporte para internao dos casos que necessitam de internao para desintoxicao em hospital geral (CFP, 2009).

Em alguns CAPS falta estrutura fsica adequada, recursos materiais, recursos humanos. A falta de acessibilidade nos locais onde esto alguns CAPS, dificulta a locomoo de pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial. Alm disso, h locais que no so adequados para garantir a qualidade dos atendimentos (CFP, 2009).

A no adeso ao tratamento e s atividades oferecidas pelo servio aparece como um desafio que necessita ser superado. Existem ainda as dificuldades relativas aos familiares e sociedade. preciso orientar constantemente as famlias para que essas possam auxiliar na continuidade do tratamento. H ainda a questo do estigma associado aos transtornos mentais e aos preconceitos que circulam na sociedade relacionados aos portadores de problemas de sade. A cultura hospitalocntrica tambm muito forte e se torna um desafio para os profissionais que atuam em CAPS.

Segundo Prazeres e Miranda (2005) (apud Moura e Fernandes) os profissionais da sade presentes nos servios substitutivos ainda carregariam consigo os mesmos paradigmas das instituies psiquitricas. Esse fato, segundo os autores, se expressaria em parte atravs das dificuldades apresentadas em referenciar os usurios para o servio substitutivo demonstrando a possibilidade de um desejo de permanncia por parte do hospital psiquitrico na posio de poder historicamente construda.

Os principais obstculos verificados nessa passagem incluem de acordo com Jervis (2001, p. 266 apud Moura e Fernandes, 2009) dificuldades para superao do paternalismo, o recuperado tem dificuldades para encontrar emprego e geralmente h a volta para a mesma dinmica familiar e social que o levou ao manicmio. As novas polticas em sade mental devem objetivar bem mais que o fechamento dos manicmios. Devem buscar visualizar e romper com as barreiras impostas pela prpria sociedade.

O doente mental, entretanto, enquanto inserido socialmente perderia suas caractersticas incompreensveis maioria da populao na proporo em que sua prpria enfermidade fosse parte de um contexto onde seriam respeitadas sua existncia e suas razes (Moura e Fernandes, 2009).

Para Alverga e Dimenstein (2006, p. 4) preciso pensar na reforma psiquitrica como um movimento social mais amplo, processo de desinstitucionalizao do social onde preciso produzir um olhar que abandona o modo de ver prprio da razo, abrir uma via de acesso escuta qualificada da desrazo.

A reforma deve buscar, antes de tudo, uma emancipao pessoal, social e cultural, que permita o no-enclausuramento de tantas formas de existncia banidas do convvio social e que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo de forma a buscar o convvio livre e tolerante com a diferena.

Alverga e Dimenstein (2006) alertam que os primeiros passos para uma real reforma psiquitrica implicam um imprescindvel abandono do lugar de especialista ocupado por vrios dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso requer ateno especial para as pequenas amarras responsveis pela reproduo de valores, preconceitos, atrelados s idias de controle, fixidez, identidade, normatizao, subjugao.

O portador de transtorno mental apresenta formas anticonvencionais de fazer-estar no mundo, sendo parte de uma minoria. A declarao universal dos direitos humanos prev a ampla e irrestrita aplicao de seus princpios, entretanto, existe ainda a necessidade da implantao de leis que assegurem direitos universais aos ditos loucos.

Requer-se antes de tudo um abandono do lugar de especialista ocupado por vrios dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso exige ateno especial para as pequenas amarras responsveis pela reproduo de valores, preconceitos, atrelados s idias de controle, fixidez, identidade, normatizao, subjugao. E a real mudana de postura se faz necessria para evitar a simples transposio de atitudes profissionais ligadas ao modelo hospitalar para o modelo de ateno primria.

preciso entender o processo histrico que invalidou a loucura como manifestao subjetiva humana. Deve-se caminhar no sentido de compreender a mesma como uma forma de subjetividade vlida, onde o maior desafio da reforma suadespatologizao. O processo de mudana de papis se d de forma lenta e gradual, mas os movimentos para tantos j foram iniciados.

Consideraes finais

A Reforma Psiquitrica um processo poltico e social complexo, composto de atores, instituies e foras de diferentes origens, e que incide em territrios diversos. A Reforma avanou marcada por impasses, tenses, conflitos e desafios.

O perodo atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultneos: a construo de uma rede de ateno sade mental substitutiva ao modelo centrado na internao hospitalar, por um lado, e a fiscalizao e reduo progressiva e programada dos leitos psiquitricos existentes, por outro. neste perodo que a Reforma Psiquitrica se consolida como poltica oficial do governo federal (BRASIL, 2005).

Os NAPS/CAPS foram criados oficialmente pela Portaria GM 224/92. Atualmente os CAPS e outros tipos de servios substitutivos que tm surgido no pas so regulamentados pela Portaria n 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede do Sistema nico de Sade. O Ministrio da Sade trabalha desde 2003 com o Programa de Reestruturao da Assistncia Psiquitrica Hospitalar no Sistema nico de Sade (SUS), que prope vrias alternativas ao modelo de institucionalizao dos tratamentos de sade mental.

Os CAPS devem assumir seu papel estratgico na articulao e tecimento das redes de cuidado em sade mental tanto cumprindo suas funes na assistncia direta e na regulao da rede de servios de sade, trabalhando em conjunto com as equipes de Sade da Famlia e Agentes Comunitrios de Sade, quanto na promoo da vida comunitria e da autonomia dos usurios articulando os recursos existentes em outras redes. Na construo da rede de apoio deve-se articular todos os recursos afetivos, sanitrios, sociais, econmicos, culturais, religiosos e de lazer.

Apesar das dificuldades os CAPS esto conseguindo interromper os ciclos de mltiplas internaes. Pretendem reverter a tendncia autoritria das instituies de sade ao estimular o questionamento dos papis esteriotipados das equipes de sade e na construo do trabalho baseado em equipes multidisciplinares, sem hierarquia rgida.

Existe ainda um longo caminho a ser percorrido, mas os primeiros passos j esto sendo dados com a construo da nova poltica e dos novos servios em sade mental.Muito me preocupa a situao agonizante onde encontra-se hoje a sade mental, que o nvel de qualidade de vida cognitiva ou emocional. Sempre assisto em noticirios e vejo o descaso que encontra, porm no entendo o motivo para no haver uma assistncia merecida para esses usurios. Mas agora fica a pergunta: de quem cobrar e quem deve ser responsvel?

Ento, o incio a discusso seria mesmo uma soluo ou agravamento da situao. Atualmente foi encerrado o atendimento de internao hospitalar para os usurios, causando um grande transtorno as famlias que no tinham nenhuma condio de mant-los em suas casas devido aos custos com o fechamento dessa unidade hospitalar. Para que essas pessoas tenham um suporte, foram distribudos nos Caps (Centro de Acolhimento Psicossocial), dos quais passam o dia e retornam a suas casas a noite. Essa iniciativa, tambm deveria contar com o apoio do governo, porm o mesmo no disponibiliza as condies necessrias de sobrevivncia deles como, atendimento especial, equipe treinada, capacitada, remdios e alimentao adequada a famlia.

Fornecer essas condies, oferecer o essencial as famlias, para que possam ter uma vida digna, pois sendo uma poltica pblica seria para a sade da famlia. Manter essas pessoas nos Caps no vai diminuir a responsabilidade do Governo, j que o mesmo deveria desenvolver aes conjuntas, priorizando: casos de transtornos mentais severos e persistentes, uso abusivo de lcool e outras drogas, pacientes egressos de internaes psiquitricas, pacientes atendidos nos CAPS, tentativas de suicdio, vtimas de violncia domstica intra-domiciliar; e trabalhar o vnculo com as famlias, tomando-a como parceira no tratamento e buscar constituir redes de apoio e integrao.Sade mental um conceito vago que engloba desde transtornos como dislexia, autismo, sndrome de Down, demncia senil, depresso, que se manifestam de diferentes formas e com diferentes sintomas, at distrbios psicolgicos e de comportamento ansiedade e estresse, por exemplo diretamente relacionados com as condies de vida impostas pela sociedade atual.

Embora seja uma patologia to abrangente, longa a tradio de lidar mal com as pessoas que tm problemas mentais. Num passado no to remoto assim, quem nascia com uma doena psiquitrica ou a desenvolvesse durante a vida era trancafiado num quarto, isolado de toda a famlia, e os parentes procuravam evitar a aproximao de vizinhos e amigos, porque essas enfermidades eram motivo de vergonha.Os asilos criados com o intuito de prestar assistncia a esses doentes no conseguiram colocar em prtica a proposta de atendimento.Em So Paulo, o Juqueri foi uma organizao tpica dessa fase. Muitos portadores de doenas psiquitricas internados nessa instituio concebida para prestar-lhes atendimento especializado, ali permaneceram at morrer.

Atualmente, a Poltica Nacional de Sade Mental vigente no Brasil e instituda por lei federal defende o atendimento dessas pessoas fora dos hospitais e enfatiza a necessidade de sua reabilitao psicossocial. Para que isso seja realizado de forma eficaz, necessria a implantao de medidas de apoio no s ao paciente, mas tambm sua famlia.

HISTRICO

Drauzio Voc poderia traar um breve histrico do atendimento s pessoas com doenas mentais?

Valentim Gentil A primeira referncia a problemas mentais de que se tem notcia est na Bblia. No Livro dos Juzes do Velho Testamento, h a descrio de patologias psiquitricas muito semelhantes s doenas que diagnosticamos hoje. um problema bem antigo, portanto, inerente espcie humana, pois no encontramos doenas equivalentes em nenhuma outra espcie. Chimpanzs e gorilas podem apresentar alteraes de comportamento, fazer maldades, mas no tm doena mental. Esse atributo do homem deve ser consequncia do aperfeioamento do nosso sistema nervoso, do desenvolvimento acentuado do nosso crebro que, s vezes, se desorganiza.

Embora as doenas mentais fossem conhecidas desde a Antiguidade e haja na medicina greco-romana e do Oriente descries pormenorizadas do que era mania, do que era melancolia e existissem at hipteses de que a melancolia, por exemplo, era provocada por falta de melhor oxigenao do crebro, por acmulo de bile negra no sistema nervoso, os recursos teraputicos eficazes s surgiram no sculo XX.

Nos sculos XVII e XVIII, porm, parece que o aumento do nmero de portadores de doenas mentais comeou a tomar propores surpreendentes. Talvez antes disso, o fato de a populao estar distribuda de forma mais ou menos homognea pela cidade e pelo campo, dilusse a magnitude do problema. Em dado momento, entretanto, o processo de urbanizao fez com que portadores de doenas psiquitricas graves se concentrassem nas cidades. Sem dvida, muitos passaram a perturbar a ordem pblica, foram presos e, com certeza, eliminados por nossos antepassados menos lcidos e esclarecidos a respeito do assunto. No se pode esquecer de que, durante muito tempo, as doenas psiquitricas eram consideradas sinal de bruxaria, de influncia do demnio.

TENTATIVAS DE ATENDIMENTO

Drauzio Quando surgiram as primeiras tentativas de atendimento aos portadores de doena psiquitrica?

Valentim Gentil Por volta de 1750, na Inglaterra, foram criadas por irms de caridade as primeiras instituies dedicadas ao cuidado dos doentes psiquitricos. Uma delas, o Hospital Bethlen, em Londres, continua em atividade at hoje.

Essas tentativas humanitrias trouxeram muita esperana, mas no resolveram o problema da doena, porque simplesmente recolhiam as pessoas doentes para proteg-las dos maus-tratos. Uma pesquisa do professor americano Fuller-Torrey, publicada no livro A peste invisvel, deixa claro que, de 1750 a 1980, a incidncia de doena mental por mil habitantes aumentou nove vezes nos Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda e Canad. Esse aumento que no pode ser explicado s pela gentica, nem pela urbanizao, nem pelo estresse provocado pela vida nas grandes cidades, obrigou a populao a buscar solues. Assim surgiram os asilos que acabaram tornando-se um depsito de doentes que ficavam ali at morrer. Em So Paulo (SP), o Juqueri idealizado para abrigar 1.500 pacientes acabou acolhendo 16.000 pessoas, porque a sociedade recolhia ali os portadores de doena mental e perdia o interesse pelo problema.

Drauzio As pessoas despejadas no asilo viviam em condies muito precrias

Valentim Gentil Isso foi um desvirtuamento da proposta inicial. Um filme de 1926 do professor Pacheco e Souza realizado no Juqueri ou um filme de 1928 rodado no Hospital Psiquitrico So Pedro do Rio Grande do Sul mostram que a proposta inicial era humanitria. Eles pretendiam recolher os doentes, dar-lhes proteo, abrigo e cuidados gerais de sade, conter as crises e oferecer-lhes a oportunidade de conviver com outras pessoas, de trabalhar no campo ou encontrar alguma outra forma de ocupao.Foi ento que as ideias de Michel Foucault, filsofo francs do sculo XX, autor de Doena Mental e Psicologia , O nascimento da Clnica e Histria da Loucura na Idade Clssica, entre outras obras, tomaram fora. Ele dizia que essas iniciativas no passavam de um grande confinamento, o que provavelmente se aplicava Frana, mas no ao resto do mundo. A releitura de Foucault feita por vrios historiadores importantes da rea da Medicina mostra que sua interpretao no corresponde realidade.

Drauzio Mas as ideias de Foucault tiveram enorme repercusso

Valentim Gentil Influenciaram toda a intelectualidade do sculo XX e continuam influenciando at hoje. Muitas das polticas que ainda vigoram esto baseadas nos pressupostos de Foucault. Inclusive, no final da Primeira Guerra Mundial, a proposta era aplicar os conhecimentos da psiquiatria comunitria e desalojar os pacientes mais graves dos hospitais para tentar sua reinsero social, sem mesmo contar com recurso teraputico significativo at 1938, quando apareceu o eletrochoque.

Drauzio Como foi descoberto que o eletrochoque poderia ter valor teraputico?

Valentim Gentil A partir da observao de que era comum os portadores de quadros graves de psicose melhorarem quando tinham uma convulso epiltica, os italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini, fazendo estudos em animais, descobriram que era possvel provocar convulso com corrente eltrica de baixa amperagem, que no lesionasse o crebro. Considerando a hiptese da incompatibilidade entre psicose e epilepsia, eles testaram o eletrochoque em alguns pacientes para induzir uma convulso e milagrosamente conseguiram que algumas pessoas melhorassem das crises.

Drauzio Eletrochoque foi realmente o primeiro tratamento com eficcia comprovada para o tratamento de doenas psiquitricas?

Valentim Gentil Foi o primeiro de eficcia muito clara. A histria da Medicina registra vrias outras tentativas de tratamento, como virar a pessoa de cabea para baixo para aumentar a circulao cerebral, medicamentos, plantas, insulinoterapia, tcnicas psicolgicas, mas o que funcionava mesmo era o eletrochoque que, em poucos dias, podia fazer o doente voltar ao normal.

ALTERNATIVAS DE TRATAMENTO

Drauzio Quando surgiram outras propostas de tratamento?

Valentim Gentil - Na dcada de 1930, pode-se dizer que havia basicamente duas alternativas de tratamento: o eletrochoque e as correntes comunitrias derivadas da psicanlise e da psicodinmica.

A Psiquiatria Social Comunitria procurou entender a questo sob o ponto de vista dos conflitos, tentando resolver as situaes familiares. Surgiram as teorias de que a doena mental era sociognica. Algumas delas culpavam as mes. Chamavam-nas de mes esquizofrenognicas. Imagine o absurdo que era a me, alm de ter um filho esquizofrnico, ser apontada como causadora da doena, uma vez que a assim chamada teoria do duplo vnculo ( doublebind) assegurava que o problema ocorria quando a pessoa era exposta a mensagens contraditrias e simultneas de aceitao e rejeio, comuns na relao entre pais e filhos.

Drauzio Segundo essa teoria, as pessoas com problemas psiquitricos seriam meras vtimas da sociedade e da famlia?

Valentim Gentil Da sociedade, da famlia e especialmente da me e do pai, o que foi uma distoro dos conhecimentos acumulados pela psicanlise, que tem fundamentos bastante slidos em vrias reas. A importncia das contribuies de Freud inquestionvel, mas o problema que de repente as pessoas se entusiasmaram demais e extrapolaram nas explicaes.

Drauzio O que foi o movimento de reforma psiquitrica?

Valentim Gentil Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu o movimento de reforma psiquitrica chamado Psiquiatria Democrtica. Na Itlia, seu defensor foi Franco Basaglia, um psiquiatra que ps em prtica uma proposta de atendimento no Hospital Psiquitrico de Gorizia, que consistia em diminuir o nmero de internaes nos manicmios e fazer a sociedade aceitar o convvio com os doentes mentais. Transferido para dirigir o hospital de Triestre, Basaglia repetiu a experincia que tinha dado certo em Gorizia e o movimento de desospitalizao foi considerado na Itlia, Inglaterra, Estados Unidos, Frana e vrios outros pases do mundo como modelo para o tratamento da doena mental.

SITUAO NO BRASIL

Drauzio No Brasil, os portadores de patologias psiquitricas eram internados nos hospitais. Depois, a orientao foi que ningum mais deveria ser afastado do convvio familiar e social. Como voc v essas posies to antagnicas no nosso pas?

Valentim Gentil Em primeiro lugar, como decorrentes de um mal-entendido. No foi o fechamento dos leitos dos hospitais que diminui a necessidade de internao. Foi o surgimento de teraputicas modernas a partir de 1950. Se nos detivermos na histria da psicofarmacologia, medicamentos como o ltio e os barbitricos, por exemplo, surgiram pouco antes da segunda metade do sculo XX. Os barbitricos foram usados para tratamento da epilepsia em 1930, 1940 e, no ps-guerra, apareceram os estimulantes que, infelizmente, no funcionavam bem para depresso.

Em 1952, com o lanamento dos antipsicticos (a clorpromazina foi o primeiro deles) que ajudam a reduzir as crises de agitao psicomotora em poucos dias, comearam a desativar os leitos nos hospitais. Na Itlia, fecharam cinquenta mil; nos Estados Unidos, cem mil.

Esperava-se que essa tendncia de reinsero social continuasse, mas os governos do mundo inteiro passaram a usar os recursos economizados com o fechamento dos leitos para outros fins que no a sade mental. No se investiu na preveno primria, nem se demonstrou que retirar as pessoas dos leitos hospitalares era um modo eficaz de humanizar o atendimento. Outro erro foi imaginar que a sociedade acolheria os doentes e que as famlias teriam condies de receb-los em casa e de seguir as orientaes dos profissionais de sade.

Alm disso, os medicamentos no chegaram como deveriam at hoje, no Brasil, a distribuio de ltio para prevenir recadas no regular e, se no voltamos para a estaca zero, estamos muito prximos da desassistncia macia aos pacientes.

Em todos os pases do mundo, grande o nmero de doentes graves nas prises, de doentes sem assistncia alguma em suas casas ou perambulando nas ruas. Uma tese defendida em Juiz de Fora (MG), por exemplo, mostra que das 83 pessoas avaliadas que moravam na rua h mais de um ano, 82 eram portadoras de algum distrbio psiquitrico.

Drauzio Todos, praticamente

Valentim Gentil Se aplicarmos a mesma proporo encontrada no trabalho de Juiz de Fora cidade de So Paulo que tem quase onze mil pessoas morando nas ruas h mais de um ano, parte dormindo em abrigos, parte dormindo na rua mesmo, chegaremos concluso de que, nessa cidade, existem mais de mil esquizofrnicos sem nenhum tipo de assistncia.

Imagine como se sentiria um ortopedista que tivesse mil pacientes com fraturas expostas nas ruas de So Paulo. Eu me sinto assim. No temos como atender essas pessoas, porque no existe mobilizao da sociedade nesse sentido, o Estado e o Municpio no tm condies de proporcionar-lhes acolhida, e o Sistema nico de Sade (SUS) no leva o problema em conta.

Fechamos 82% dos leitos psiquitricos, os seja, mais de 60 mil leitos, e o que construmos como alternativa foi muito pouco. O pior que a grave situao que enfrentamos atualmente ocorre num momento em que dispomos de tratamentos eficazes para controlar crises agudas em poucos dias.

Drauzio Como evolui o esquizofrnico sem tratamento?

Valentim Gentil - Ele deteriora e passa a necessitar de cuidados permanentes. Fica confuso e acaba nas ruas, jogando pedras nos carros e falando sozinho. Outro dia, na Avenida 9 de Julho, que corta o bairro dos Jardins de So Paulo, passei por um ser humano que comia terra no canteiro central. Obviamente estava confuso, desorientado. Se eu levar esse indivduo para um instituto de psiquiatria moderno como temos no Hospital das Clnicas, fizer o diagnstico, prescrever o tratamento e o encaminhar para seguimento hospitalar, estarei pondo em prtica a higienizao no sentido depreciativo do sculo XIX? No, estarei cumprindo meu dever de cuidar da sade da populao.

PROPOSTAS DE SOLUO

Drauzio Voc v alguma possibilidade de mudar essa situao?

Valentim Gentil - Est na hora de o Ministrio da Sade mudar a poltica em vigncia desde 1985, uma poltica equivocada, importada da Itlia, onde tambm acabou no dando certo, j que a lei aprovada em 1958 que mandava fechar os hospitais psiquitricos no foi obedecida. O hospital psiquitrico um equipamento mdico e h situaes em que a pessoa precisa de cuidados que s pode receber durante a internao. Podemos fechar os manicmios. Esses so desnecessrios, mas no podemos fechar os hospitais.

Drauzio No Brasil, grande parte dos leitos psiquitricos foi desativada

Valentim Gentil No Brasil, existiam 120 mil leitos psiquitricos. Atualmente, existem 43 mil, apesar de o nmero de habitantes ter pulado de 80 milhes para 180 milhes nas ltimas dcadas. Em troca dessa reduo de leitos, o que se construiu de alternativas? Foram institudos dois mil leitos psiquitricos em hospitais gerais h quinze anos, e mais nada.

Acontece que manter um leito custa muito caro e o que vai ser utilizado pela Psiquiatria o mesmo que se destina ao paciente de transplante de fgado. Por isso, o hospital no quer receber pessoas com depresso, pois essa doena pode ser tratada em clnicas especializadas. Obrig-los a agir de outra forma fazer com que um sistema que j no vai bem economicamente acabe falindo.

Drauzio Como reverter essa realidade?

Valentim Gentil - Nossas polticas tm de ser revistas. possvel estabelecer um sistema primrio de preveno. Assim como dizemos que fumar maconha faz mal, podemos orientar as mulheres grvidas para evitarem contato com pessoas gripadas porque a gripe, no primeiro trimestre da gravidez, pode aumentar o risco de doena mental grave na criana.

Da mesma forma, podemos alertar os indivduos com predisposio para problemas psiquitricos, especialmente aqueles que tiverem casos de doena mental na famlia, para que passem longe das drogas e tomem menos caf e menos coca-cola. Eles devem evitar, tambm, os remdios para emagrecer e os estimulantes, que podem desencadear ataques de pnico.

Alm disso, diagnstico precoce e introduo rpida do tratamento ajudam a reverter o quadro de doena mental antes que se agrave. Um exemplo a depresso ps-parto ou a depresso puerperal. Mulher que continua deprimida trs dias depois do parto, se no receber atendimento eficaz, corre o risco de desenvolver um quadro grave de psicose. Outro exemplo a agudizao dos quadros manacos. Se forem tratados nas primeiras 48, 72 horas, a crise poder ser controlada em duas ou trs semanas sem necessidade de internao hospitalar.

Como se v, estabelecer um sistema bsico de preveno o jeito de reduzir o nmero de leitos hospitalares. No entanto, eles so absolutamente necessrios, se a situao agravar-se porque o atendimento adequado no foi introduzido precocemente. Nesse caso, a pessoa pode ficar muito perturbada, confusa, correndo riscos ou pondo em risco quem est por perto.

Vamos voltar s pessoas que esto nas ruas. Podemos recolh-las para tratamento, mas, depois da alta, como lhes prestar assistncia? O velhinho sem famlia nem recursos pode morar num asilo. Mas, se for portador de doena mental, os asilos esto impedidos por lei de receb-los.

Drauzio Os asilos hospitalares foram fechados?

Valentim Gentil As pessoas fizeram esse desservio com boas intenes. No havia mais o conceito de hospital psiquitrico e asilo virou sinnimo de manicmio. No final, proibiram a criao de uma entidade de apoio e proteo como as idealizadas por nossos antepassados. No adianta oferecer residncia hospitalar teraputica, se o morador de rua ou a pessoa que dorme embaixo da ponte no tiver um lugar seguro para viver. Um lugar em que no seja obrigada a conviver com bandidos e malandros e no seja morta por grupos de extermnio, como mostram as notcias veiculadas na imprensa.

preciso que essa gente se sinta amparada, alimentada, no passe frio, tenha atendimento bsico de sade e as doenas de pele tratadas. Esses cuidados podem ser oferecidos fora dos hospitais, mas requerem a criao de instituies pelas quais a sociedade possa pagar. No adianta construir um condomnio supervisionado para colocar os moradores de rua. Se nem o Cingapura deu muito certo, como propor a mesma soluo para os doentes mentais?

Drauzio Como entregar para uma famlia com dificuldades econmicas extremas, em que todos precisam trabalhar, a responsabilidade de cuidar do portador de doena mental que pode criar problemas a cada minuto? Isso no seria uma maneira de o Estado lavar as mos e livrar-se do problema?

Valentim Gentil uma pena que os conceitos da Psiquiatria Social e Comunitria, que eram bem intencionados e dirigidos para a reinsero social e reabilitao dos portadores de doena mental, tenham servido para resolver problemas de incapacidade gerencial, administrativa e financeira.

Recentemente, os jornais noticiaram o caso de uma senhora me de cinco filhos. A filha que era arrimo de famlia morreu e ela precisou sair para trabalhar. Em casa, deixava um filho um pouco retardado, mas que no era agressivo, e duas filhas psicticas que, de vez em quando, agudizavam e criavam o maior transtorno. Isso obrigava a me a tranc-las dentro de casa. Os vizinhos do bairro pobre se incomodavam com a situao, reclamavam e chamavam a polcia. O pior que essa senhora foi indiciada por crcere privado das filhas, embora s agora essas moas doentes h 30 anos recebam a visita de uma equipe do sistema de sade.

Mesmo se considerarmos famlias constitudas, estruturadas, com boas condies financeiras, acesso aos melhores servios de sade, essas tambm tm problemas porque no existem hospitais psiquitricos modernos no Brasil.

INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HC

Drauzio O que representa o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicas de So Paulo nesse contexto?

Valentim Gentil O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicas a primeira instituio psiquitrica moderna que se constri na cidade de So Paulo depois de 50 anos. De repente, o mundo tomou conscincia de que precisvamos de equipamento de sade adequado para atender os portadores de doena mental, porque o caminho de suspender a hospitalizao sem recursos para dar continuidade ao tratamento estava levando falta de assistncia os portadores de doenas mentais, mesmo aqueles que gozavam de boas condies sociais e econmicas e de estrutura familiar organizada.