Saul Newman Servidao Voluntaria Revisitada

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 verve 23 A servidão voluntária revisitada... a servidão voluntária revisitada: a política radical e o problema da auto-dominação saul newman Introdução Nesse artigo, irei explorar a genealogia de um discurso político contra-soberano que parte da questão “por que obedecemos?”. Esta questão, inicialmente colocada pelo lósofo Etienne de La Boétie em suas investigações acer- ca da tirania e da nossa servidão voluntária a ela, parte da posição oposta à problemática da soberania demarcada por Bodin e Hobbes. Além disso, permanece um proble- ma central e ainda não resolvido no pensamento político que trabalha necessariamente dentro do horizonte ético da emancipação do poder político. Acredito que para en- frentar o problema da servidão voluntária seja necessário explorar novas formas de subjetividade, ética e práticas políticas pelas quais nossos vínculos subjetivos ao poder sejam interrogados; e investigo essas possibilidades pela tradição revolucionária do anarquismo, e por um compro- misso com a teoria psicanalítica. Minha argumentação Saul Newman é professor no Departamento de Política do Goldsmiths College, da Universidade de Londres. verve, 20: 23-48, 2011

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    A servido voluntria revisitada...

    a servido voluntria revisitada: a poltica radical e o problema da

    auto-dominao

    saul newman

    IntroduoNesse artigo, irei explorar a genealogia de um discurso

    poltico contra-soberano que parte da questo por que obedecemos?. Esta questo, inicialmente colocada pelo filsofo Etienne de La Botie em suas investigaes acer-ca da tirania e da nossa servido voluntria a ela, parte da posio oposta problemtica da soberania demarcada por Bodin e Hobbes. Alm disso, permanece um proble-ma central e ainda no resolvido no pensamento poltico que trabalha necessariamente dentro do horizonte tico da emancipao do poder poltico. Acredito que para en-frentar o problema da servido voluntria seja necessrio explorar novas formas de subjetividade, tica e prticas polticas pelas quais nossos vnculos subjetivos ao poder sejam interrogados; e investigo essas possibilidades pela tradio revolucionria do anarquismo, e por um compro-misso com a teoria psicanaltica. Minha argumentao

    Saul Newman professor no Departamento de Poltica do Goldsmiths College, da Universidade de Londres.

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    aqui que no podemos enfrentar o problema da servido voluntria sem uma crtica da idealizao e identificao, e aqui volto-me a pensadores como Max Stirner, Gustav Landauer e Michel Foucault, que desenvolveram, de ma-neiras diferentes, uma micropoltica e uma tica da liber-dade que visa desfazer os vnculos entre o sujeito e o poder.

    A Impotncia do PoderA questo colocada por Etienne de La Botie em mea-

    dos do sculo XVI no Discurso da Servido Voluntria, ou O Contra Um segue atual e pode, ainda, ser considerada como uma questo poltica fundamental: No momento, gosta-ria apenas que me fizessem compreender como possvel que tantos homens, tantas cidades, tantas naes, s vezes suportem tudo de um Tirano s, que tem apenas o poderio que lhe do, que no tem o poder de prejudic-los seno enquanto aceitam suport-lo, e que no poderia fazer-lhes mal algum se no preferissem, a contradiz-lo, suportar tudo dele. 1

    La Botie observa o vnculo subjetivo que nos amarra ao poder, que nos domina, encanta e seduz, cega e hip-notiza. A lio fundamental que o poder no depende da coero, mas, na realidade, se apia no nosso poder. o nosso consentimento ativo ao poder que constitui, ao mesmo tempo, esse poder. Portanto, para La Botie, para resistir ao tirano basta que o ignoremos, que deixemos de apoi-lo e percebamos que pelo encantamento ilusrio que o poder se articula para lanar sobre ns uma ilu-so da qual participamos sua fraqueza e vulnerabilida-de. Por isso, a servido uma condio produzida por ns ela inteiramente voluntria; e basta o desejo de no

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    mais ser subjugado, a vontade de ser livre, para que nos liberemos desta condio.

    O problema da servido voluntria exatamente oposto quele levantado por Hobbes um sculo depois. Se para La Botie no natural que sejamos sujeitados ao poder abso-luto, para Hobbes no natural que vivamos em qualquer outra condio; para Hobbes, a anarquia do estado de natu-reza precisamente uma situao no natural e intolervel. Deste modo, a problemtica da auto-dominao de La Bo-tie inverte toda uma tradio da teoria poltica baseada na legitimao da soberania uma tradio que ainda est muito presente nos dias de hoje. La Botie parte de uma posio oposta, que a da primazia da liberdade, auto-de-terminao e vnculos naturais de famlia e companheiris-mo, como opostos aos vnculos artificiais e no-naturais de dominao poltica. A liberdade [liberty] algo que deve ser protegido no tanto daqueles que impem suas vonta-des sobre ns, mas da nossa prpria tentao de renunciar a ela, de sermos deslumbrados pela autoridade, de trocarmos nossa liberdade por riquezas, cargos, favores, e assim por diante. Por isso, o que deve ser explicado a ligao pato-lgica ao poder que afasta o desejo natural pela liberdade [liberty] e os enlaces livres que existem entre as pessoas.

    No entanto, as explicaes de La Botie para a servido voluntria no so inteiramente adequadas ou convincen-tes: ele a atribui a algo como uma degenerao, pela qual os homens livres se tornam afeminados ou covardes, o que permite que outro os domine. Contudo, acredito que ele levante uma das questes fundamentais para a poltica e especialmente para a poltica radical a saber, por que as pessoas de alguma maneira desejam sua prpria domina-o? Essa questo inaugura uma teoria poltica contra-so-

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    berana, uma linha de investigao libertria que tomada por muitos pensadores. Wilhelm Reich, por exemplo, em sua anlise freudiano-marxista da psicologia de massas do fascismo, apontou para um desejo de dominao e de auto-ridade que no poderia ser adequadamente explicado pela categoria marxista de falsa conscincia ideolgica.2 Pierre Clastres, o antroplogo da liberdade [liberty], notou o valor de La Botie ao mostrar a possibilidade da dominao no ser algo inevitvel; que a servido voluntria resultado de um infortnio histrico (ou pr-histrico), uma certa queda original, um lapso da condio primitiva de liberdade e sem Estado para uma sociedade dividida entre dominantes e dominados. Aqui, o homem ocupa a posio de inominvel (nem homem, nem animal): to alienado da sua liberdade natural que escolhe livremente, deseja, a servido um de-sejo que era completamente desconhecido nas sociedades primitivas.3 Acompanhando as consideraes de Clastres, Gilles Deleuze e Flix Guattari investigaram a emergncia do Estado e o modo pelo qual ela no depende tanto, ou no inteiramente, da dominao violenta e da captura, mas da auto-dominao do sujeito no nvel do seu desejo uma represso que em si mesma desejada. O Estado age conduzindo o desejo dos sujeitos por meio de estruturas de pensamento autoritrias e hierrquicas e modos de indivi-duao.4

    Alm disso, o situciacionista Raoul Vanegeim mostrou, em uma anlise que se assemelha muito de La Botie, que a nossa obedincia comprada e sustentada por pe-quenas compensaes, um pouco de poder como paga-mento pela humilhao da nossa prpria dominao: Os escravos no querem ser escravos por muito tempo se no so compensados por sua submisso com um fragmen-

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    to de poder: toda submisso implica no direito de uma quantia de poder, e no h poder que no enseje um grau de submisso. por isso que alguns aceitam to facilmen-te serem governados.5

    Outra Poltica...?O problema da auto-dominao nos mostra que a cone-

    xo entre poltica e subjetivao deve ser minuciosamente investigada. Criar novas formas de poltica que a tarefa terica fundamental nos dias de hoje exige novas formas de subjetividade, novos modos de subjetivao. Alm disso, enfrentar a servido voluntria implicar novas estratgias polticas e certamente uma maneira diferente de entender a prpria poltica. Com razo, La Botie reconhece o po-tencial para dominao em qualquer democracia: o lder democrtico, eleito pelo povo, se intoxica com seu prprio poder e oscila cada vez mais em direo tirania. De fato, podemos analisar a prpria democracia moderna como um exemplo de servido voluntria em nvel de massa. No tanto porque participamos de uma iluso pela qual somos enganados pelas elites para pensar que ns temos voz ativa nas tomadas de decises. Ao contrrio, a prpria democra-cia estimulou um massivo contentamento com a impotn-cia e o amor geral submisso.

    Como alternativa, La Botie afirma a ideia de uma re-pblica livre. No entanto, indica que o inverso da servi-do voluntria no seja a repblica livre, mas uma forma completamente diferente de poltica. As repblicas livres tm sua prpria forma de dominao, no apenas em suas leis, mas nas regras das classes ricas e proprietrias sobre as pobres. Ao contrrio, quando consideramos formas al-

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    ternativas de poltica, quando pensamos em meios para ordenar e maximizar possibilidades de no dominao, penso que devemos considerar a poltica do anarquismo que uma poltica da anti-poltica, uma poltica que busca a abolio das estruturas de poder poltico e da au-toridade centralizada no Estado.

    O anarquismo, a filosofia poltica radical mais hertica, tem h muito tempo uma existncia marginalizada. Isso se deve, em parte, sua natureza heterodoxa, pelo fato de no poder ser englobado em um nico sistema de ideias ou estrutura de pensamento, mas, ao contrrio, refere-se a um conjunto diverso de ideias, a abordagens filosficas, prticas revolucionrias e movimentos e identidades histricas. No entanto, o pensamento anarquista deve ser reconsiderado dentre todas as tradies radicais, pois o mais sensvel aos perigos do poder poltico, ao potencial de autoritarismo e dominao contido em qualquer programa poltico ou insti-tuio. Nesse sentido, particularmente atento aos vnculos pelos quais as pessoas esto ligadas ao poder. por isso que, diferente dos marxista-leninistas, os anarquistas sustentam que o Estado deve ser abolido nos primeiros estgios da re-voluo: se, por um lado, o poder do Estado for apreendido por uma vanguarda e exercido sob a ditadura do pro-letariado para revolucionar a sociedade, ele, em vez de definhar, vai expandir em escala e em poder, engendrando novas contradies de classes e antagonismos. Em outras palavras, pensar que o Estado seja algo como um meca-nismo neutro que poderia ser usado como ferramenta de libertao caso a classe correta o controlasse seria, de acordo com os anarquistas clssicos do sculo XIX envolvidos como estavam em grandes debates com Marx , uma pura fantasia que ignoraria a emaranhada lgica da dominao

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    de Estado e as tentaes e sedues do poder poltico. Foi por isso que o anarquista russo Piotr Kropotkin insistiu para que o Estado seja examinado como uma estrutura de poder especfica que no pode ser reduzida aos interesses de uma classe particular. E em sua prpria essncia dominador: E h aqueles que, como ns, vem no Estado no apenas na sua forma efetiva e em todas as formas de dominao que ele possa assumir, mas em sua prpria es-sncia, um obstculo para a revoluo social.6 Alm disso, o poder do Estado se perpetua pelo vnculo subjetivo que ele forma com aqueles que pretendem control-lo, pela influncia corrupta que exerce sobre eles. Nas palavras de outro anarquista, Mikhail Bakunin, ns obviamente so-mos socialistas e revolucionrios sinceros e ainda assim, se estivssemos dotados de poder [...] no estaramos onde estamos agora. 7

    Essa crtica inflexvel ao poder poltico, e convico de que a liberdade no pode ser concebida dentro da es-trutura do Estado, distingue o anarquismo das outras fi-losofias polticas. Ele contrasta com o liberalismo, que na realidade uma poltica da segurana, na qual o Estado se torna necessrio para proteger a liberdade individual da liberdade alheia: de fato, a atual securitizao do Es-tado por meio do estado de exceo permanente revela a verdadeira face do liberalismo. A esse respeito, difere-se tambm do socialismo, que v o Estado como fundamen-tal para tornar a sociedade mais igualitria e cujo decl-nio final pode ser testemunhado pelo triste destino dos partidos social-democratas de hoje com seu centralismo autoritrio, seu fetiche com a lei e a ordem e sua absoluta cumplicidade com o neoliberalismo global. Alm disso, o anarquismo deve ser distinguido do leninismo revolu-

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    cionrio, que hoje representa um modelo completamen-te ultrapassado de poltica radical. Ento, o que define o anarquismo sua recusa ao poder de Estado, mesmo o da estratgia revolucionaria de tomada do poder de Estado. Em vez disso, o foco do anarquismo est na auto-eman-cipao e na autonomia, algo que no pode ser alcanado por vias parlamentares democrticas ou por vanguardas revolucionrias, mas sim pelo desenvolvimento de pr-ticas alternativas e relaes baseadas na associao livre, liberdade equitativa e cooperao voluntria.

    pela sua alteridade ou exterioridade a qualquer mo-delo de poltica centrada no Estado que o anarquismo tem sido amplamente menosprezado na tradio poltica radical. Ainda assim, diria que atualmente nos encontra-mos em um momento politicamente anarquista. Com o ocaso do projeto socialista de Estado e do leninismo re-volucionrio, e com a democracia liberal resumindo-se a uma mera poltica de segurana, a poltica radical atual tende a se situar cada vez mais fora do Estado. O ativis-mo radical contemporneo parece refletir certas orien-taes anarquistas em sua nfase nas redes descentrali-zadas e na ao direta, ao invs de lideranas partidrias e representao poltica. H certo descomprometimento com o poder de Estado, um desejo de pensar e agir alm de suas estruturas, na direo a uma maior autonomia. Essas tendncias esto se tornando mais pronunciadas na atual crise econmica, algo que aponta para os prprios limites do capitalismo, e certamente para o fim do mo-delo econmico neoliberal. A resposta para as falhas do neoliberalismo mais interveno estatal. um absurdo falar no retorno do Estado regulador: na verdade, o Esta-do nunca se retirou do neoliberalismo e toda a ideologia

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    do libertarismo econmico ocultou um desdobramento muito mais intenso do poder de Estado no domnio da segurana e na regulao, disciplinarizao e vigilncia da vida social. Alm disso, est claro que o Estado no ir nos ajudar na atual situao; no h porque buscar por sua proteo. De fato, o que est emergindo algo como um afastamento do Estado; as futuras insurreies desa-fiaro a hegemonia do Estado, que nos governa cada vez mais pela lgica da exceo.

    Ademais, a relevncia do anarquismo tambm refle-tida em nvel terico. Muitas questes e preocupaes dos pensadores contemporneos continentais,8 por exemplo a ideia de formas de poltica no-estatais, no-partidrias e ps-classistas; o aparecimento de multides e assim por diante parecem evocar uma poltica anarquista. De fato, particularmente evidente na busca por um novo sujeito poltico: as multides de Michael Hardt e Antonio Negri, o povo para Ernesto Laclau, a excluda parte-da-no-par-te para Jacques Rancire, a figura do militante para Alain Badiou; tudo isso reflete uma tentativa de pensar novos modos de subjetividade que talvez sejam mais amplos e menos restritivos do que a categoria de proletariado tal como foi politicamente constituda pela vanguarda mar-xista-leninista. Uma abordagem similar subjetividade poltica foi colocada pelos anarquistas no sculo XIX, afirmando que a noo marxista de classe revolucionria era exclusivista e que buscaram incluir o campesinato e o lmpen-proletariado como identidades revolucionrias.9 No meu ponto de vista, o anarquismo a ponta solta no pensamento poltico contemporneo ocidental uma presena espectral que nunca foi verdadeiramente reco-nhecida. 10

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    O sujeito anarquistaO anarquismo uma poltica e tica na qual o poder

    continuamente interrogado em nome da liberdade [free-dom] humana, e na qual a existncia humana firmada na ausncia de autoridade. No entanto, isso levanta a questo se h um sujeito anarquista como tal. Aqui, gostaria de re-considerar o anarquismo a partir do problema da servido voluntria. Embora os anarquistas clssicos no fossem des-conhecedores da vontade de poder que reina no corao do ser humano que o motivo pelo qual eles eram to pers-picazes na abolio das estruturas de poder que incitariam tais desejos o problema da auto-dominao, o desejo pela sua prpria dominao, permaneceu insuficientemente teorizado no anarquismo. 11 Para os anarquistas dos scu-los XVIII e XIX como William Godwin, Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin , condi- cionados como estavam pelos discursos racionalistas do hu-manismo iluminista, o ser humano deseja naturalmente a liberdade [freedom]; por isso, a revoluo contra o poder do Estado fez parte da narrativa racional da emancipao humana. Os constrangimentos externos e artificiais do po-der de Estado seriam descartados para que as propriedades morais e racionais fundamentais do homem pudessem ser expressas e para que a sociedade pudesse ficar em harmo-nia consigo mesma. H uma certa oposio maniquesta pressuposta no pensamento anarquista clssico, entre a so-ciedade humana governada pelas leis naturais, e o poder poltico e as leis feitas pelo homem, expressas no Estado, que so artificiais, irracionais e impedem o livre desenvolvi-mento das foras sociais. H, alm disso, uma sociabilidade inata ao homem uma tendncia natural, como analisou Kropotkin, em direo ajuda mtua e cooperao que

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    foi distorcida pelo Estado, mas que se caso fosse livre para se desenvolver produziria uma harmonia social na qual o Estado se tornaria desnecessrio.12

    Enquanto a ideia de uma sociedade sem Estado, sem soberania e sem leis for desejvel, e digo mais, for o hori-zonte final da poltica radical, e enquanto no houver d-vidas de que a autoridade poltica e legal um estorvo na vida social e na existncia humana em geral, o que tende a ficar obscuro na separao ontolgica entre sujeito e poder o problema da servido voluntria que indica a cum-plicidade mais problemtica entre o sujeito e o poder que o domina. Levando isso em considerao, para explicar a vontade pela auto-dominao e para desenvolver estrat-gias ticas e polticas para enfrent-la, seria preciso propor uma teoria anarquista da subjetividade, ou pelo menos uma teoria mais desenvolvida que a encontrada no pensamento anarquista clssico. Isso tambm implicaria em um movimento para alm das categorias essencialis-tas e racionalistas do anarquismo clssico, um movimen-to que em outro lugar chamei de ps-anarquismo.13 No quero dizer com isso que os anarquistas clssicos foram necessariamente ingnuos a respeito da natureza humana ou da poltica; ao contrrio, afirmo que o seu humanismo e racionalismo resultaram em algo como que um ponto-cego em torno da questo do desejo, cuja natureza escura, con-vulsionada e autodestrutiva seria posteriormente revelada pela psicanlise.

    Psicanlise e ligaes apaixonadas importante, ento, analisar a ligao subjetiva ao po-

    der no nvel da psique.14 Uma dependncia psicolgica do

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    poder, investigada por freudiano-marxistas como Marcuse e Reich,15 mostrou que as possibilidades de uma poltica emancipatria so, s vezes, comprometidas por desejos autoritrios ocultos; que h sempre um risco da emergn-cia de prticas autoritrias e hierrquicas e de instituies nas sociedades ps-revolucionrias. O lugar central do sujeito na poltica, e na filosofia no abandona-do aqui, mas ampliado. Projetos polticos radicais, por exemplo, tem que lutar contra as ambiguidades do desejo humano, contra comportamentos sociais irracionais, con-tra motivaes violentas e agressivas, e at mesmo contra desejos inconscientes de autoridade e dominao.

    No estou sugerindo que a psicanlise seja necessaria-mente, poltica ou socialmente, conservadora. Ao contrrio, sustento que seja central psicanlise um ethos libertrio pelo qual o sujeito busca obter maior autonomia, e pelo qual o sujeito estimulado, pelas regras da livre associa-o, a dizer a verdade do inconsciente.16 Insistir no lado negro da psique humana em sua dependncia do poder, sua identificao com figuras autoritrias, seus impulsos agressivos pode servir como um alerta a qualquer pro-jeto revolucionrio que busque transcender a autoridade poltica. Esta foi a mesma questo colocada por Jacques Lacan em resposta ao radicalismo do Maio de 68: a aspi-rao revolucionria tem apenas um efeito possvel de acabar como um discurso mestre. isso que a experin-cia provou. O que voc aspira como revolucionrio um mestre. Voc ter um.17 O que Lacan est sugerindo com este sinistro prognstico que poderia ser superfi-cialmente, embora, no meu ponto de vista, incorretamen-te, interpretado como politicamente conservador a conexo oculta, at mesmo a dependncia entre o sujeito

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    revolucionrio e a autoridade; e o modo pelo qual os mo-vimentos de resistncia e at de revoluo podem, de fato, sustentar a eficincia simblica do Estado, reafirmando ou reinventando a posio da autoridade.

    A psicanlise no retira, de maneira alguma, a pos-sibilidade da emancipao humana, de sociabilidade e cooperao voluntria: de fato, ela mostra as tendncias conflitantes no sujeito entre desejos agressivos de poder e dominao, e o desejo de liberdade [freedom] e coe-xistncia harmoniosa. Como afirma Judith Butler, alm disso, a psique como uma dimenso do sujeito que no redutvel ao discurso e ao poder, e que o excede algo que pode ser explicado no s pelas nossas ligaes apaixonadas pelo poder e (referindo-se a Foucault) a mo-dos de subjetivao e comportamentos regulatrios que o poder nos impe, mas tambm a nossa resistncia a eles.18

    Identificao do EgoUm dos insights da psicanlise, algo que foi revelado, por

    exemplo, no estudo de Freud sobre a psicodinmica de gru-pos, foi o papel da identificao na constituio de relaes hierrquicas e autoritrias. Na relao entre o membro de um grupo e a figura do lder, h um processo de identifica-o, semelhante ao amor, no qual o indivduo tanto idealiza quanto se identifica com o lder como um tipo ideal, ao ponto que o objeto de devoo chega a suplantar o ide-al de ego do indivduo.19 essa idealizao que constitui o vnculo subjetivo no apenas entre o indivduo e o lder do grupo, mas tambm com os outros membros do grupo. Ento, a idealizao se torna uma maneira de entender a submisso voluntria vontade de lderes autoritrios.

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    No entanto, ns tambm precisamos entender o lugar da idealizao na poltica no sentido mais amplo, e aqui que afirmaria que o pensamento do filsofo jovem hegeliano Max Stirner torna-se importante. A crtica de Stirner ao humanismo de Ludwig Feuerbach permite-nos confrontar o problema da auto-dominao. Stirner mostra que o pro-jeto feuerbachiano de substituir Deus pelo Homem de inverter o sujeito e o predicado para que o humano se torne a medida do divino ao invs do divino a do humano20 apenas reafirmou a autoridade e a hierarquia religiosa ao invs de afast-la. Portanto, a insurreio humanista de Feuerbach apenas teve xito em criar uma nova religio o Humanismo que Stirner associa a uma certa escravi-zao de si. O ego individual est agora dividido entre ele mesmo e uma forma idealizada de si agora consagrada na ideia de essncia humana um ideal que est ao mesmo tempo fora do indivduo, tornando-se uma moral abstrata e um espectro racional pelo qual ele mede a si mesmo e se su-bordina. Segundo Stirner: Homem, tens a cabea cheia de fantasmas [...] Imaginas coisas grandiosas e inventas todo um mundo de deuses tua disposio, um reino de espritos que te chama, um ideal que te acena.21

    Para Stirner, a subordinao de si a esses ideais abstratos (ideias fixas) tem implicaes polticas. Em sua anlise, humanismo e racionalismo se tornam os princpios discur-sivos pelos quais o desejo do indivduo est vinculado ao Estado. Isso ocorre, por exemplo, pela identificao com os papis de cidadania definidos pelo Estado. Alm disso, para Stirner, em uma linha de pensamento que aproxima paralelos com La Botie, o prprio Estado uma abstrao ideolgica que s existe porque permitimos que ele exista, porque abdicamos do nosso poder sobre ns mesmos ao

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    que ele chama de princpio de domnio. Em outras pala-vras, a ideia de Estado, de soberania, que nos domina. O poder do Estado na realidade baseado no nosso poder, e s porque o indivduo no reconhece esse poder, porque ele se humilha diante de uma autoridade poltica externa, que o Estado continua a existir. Como Stirner corretamente su-ps, o Estado no pode funcionar apenas pela represso e coero; ao contrrio, o Estado depende da nossa permisso para sermos dominados. Stirner quer mostrar que os dis-positivos ideolgicos no esto preocupados apenas com questes econmicas ou polticas eles tambm se firmam em necessidades psicolgicas. A dominao do Estado, diz Stirner, depende da nossa vontade de deix-lo dominar: de que te servem as suas leis se ningum as segue? E as suas ordens, se ningum lhes obedece? [...] O Estado no imaginvel sem dominao [Herrschaft] e opresso [Kne-chtschaft] (sujeio); [...] Mas quem tem de contar com a ausncia de vontade em outros para subsistir apenas um produto imperfeito deles, tal como o senhor um produto imperfeito do escravo. Se acabasse a sujeio, a dominao teria os dias contados. 22

    Stirner foi impiedosa e implacavelmente criticado por Marx e Engels como So Max em A Ideologia Alem: eles o acusaram do pior tipo de idealismo, de ignorar a econo-mia e as relaes de classes que formam a base material do Estado, o que lhe permitiria deixar de existir por um sim-ples desejo. No entanto, o que falta nessa crtica valorizar a anlise de Stirner ao destacar o vnculo subjetivo da servi-do voluntria que sustenta o poder de Estado. No que ele afirme que o Estado no exista no senso material, mas que a sua existncia sustentada e suplementada por um vnculo psquico e uma dependncia desse poder, assim como o re-

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    conhecimento e a idealizao da sua autoridade. Qualquer crtica ao Estado que ignore essa dimenso da idealizao subjetiva est sujeita a perpetuar esse poder. O Estado deve primeiro ser superado como uma ideia para que depois pos-sa ser superado na realidade; ou, mais precisamente, esses so os dois lados do mesmo processo.

    A importncia da anlise de Stirner que se ajusta muito bem tradio anarquista, embora rompa com o essencialismo humanista de modo relevante23 consiste em explorar esta auto-sujeio voluntria que forma o ou-tro lado da poltica, a qual a poltica radical deve encontrar estratgias para combater. Para Stirner, o indivduo apenas pode se libertar da servido voluntria se ele abandonar to-das as identidades essenciais e se enxergar como um vazio radicalmente auto-criador: Quanto a mim, parto de um pressuposto, que sou eu proprietrio; mas este meu pres-suposto no aspira perfeio, como o homem que luta pela sua perfeio, mas serve-me simplesmente para dele desfrutar e para o consumir [...] Eu no me pressuponho, porque me ponho, ou crio, a cada momento. 24

    Enquanto a abordagem de Stirner direcionada ideia da auto-liberao individual de essncias, identidades fi-xas ele levanta a possibilidade de uma poltica coletiva a partir da noo de associao de egostas, embora, no meu ponto de vista, ela seja insuficientemente desenvolvida. A quebra com os vnculos da servido voluntria no pode ser uma simples iniciativa individual. De fato, como suge-re La Botie, ela sempre implica em uma poltica coletiva, em uma rejeio coletiva ao poder tirnico pelo povo. No estou dizendo que Stirner nos fornece uma teoria da ao poltica e tica completa ou vivel. No entanto, a importn-cia do pensamento de Stirner consiste na inveno de uma

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    micropoltica, na nfase na mirade de modos pelos quais somos atados ao poder no nvel da nossa subjetividade, e s maneiras pelas quais podemos nos libertar dele. aqui que devemos prestar muita ateno distino feita por ele entre Revoluo e insurreio: No se devem tomar como sinnimos Revoluo e insurreio. A primeira consiste numa transformao radical do estado das coisas, do esta-do de coisas (status) vigente, do Estado ou da sociedade; , assim, um ato poltico ou social. A segunda tem como con-sequncia inevitvel a transformao do estado das coisas, que no parte dela prpria, mas da insatisfao do homem consigo mesmo; no um levante concertado, mas uma re-belio do indivduo, um emergir sem pensar nos arranjos de fora que da possam brotar. A Revoluo objetiva novos ar-ranjos; a insurreio leva a que no nos deixemos ser arran-jados, organizando-nos antes ns prprios, e no deposita grandes esperanas nas instituies. No uma luta contra o status quo, uma vez que, desde que ela vingue, o status quo entra em colapso por si mesmo; apenas um meio ativo que permite ao eu emancipar-se da situao vigente. 25

    Podemos extrair da que a poltica radical no deve ser simplesmente voltada transformao radical das ins-tituies estabelecidas, como o Estado, mas tambm ao ataque relao muito mais problemtica pela qual o su-jeito encantado e dependente do poder. Desse modo, a insurreio contra a opresso externa, porm, mais fun-damentalmente, contra a represso auto-internalizada. Isso envolve, assim, uma transformao do sujeito, uma micropoltica e tica que visa o aumento da autonomia do indivduo em relao ao poder.

    Aqui, podemos tambm recorrer ao anarquismo espiri-tual de Gustav Landauer, que afirmou que no pode haver

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    uma revoluo poltica e nenhuma possibilidade de so-cialismo sem que haja, ao mesmo tempo, uma transfor-mao na subjetividade das pessoas, uma certa renovao no esprito e na vontade de desenvolver novas relaes com os outros. As relaes existentes entre as pessoas ape-nas reproduzem e reafirmam a autoridade do Estado de fato, o prprio Estado uma certa relao, um certo modo de se comportar e de interagir, uma certa marca na nossa subjetividade e conscincia (e diria no nosso incons-ciente) e desse modo apenas pode ser transcendental por meio de uma transformao espiritual das relaes. Como diz Landauer, ns as destrumos [as relaes] ao estabe-lecemos novas relaes, ao agirmos diferente. 26

    Uma micro-poltica da liberdadeSuperar o problema da servido voluntria, que se mos-

    trou um obstculo para os projetos de poltica radical no passado, implica, portanto, esse tipo de questionamento ti-co de si, uma interrogao quanto ao envolvimento subje-tivo e cumplicidade com o poder. Isso se baseia na inven-o de estratgias micropolticas que visam o rompimento com poder de Estado, uma certa poltica de desidentificao na qual possvel libertar-se das identidades e papis sociais estabelecidos, desenvolvendo novas prticas, modos de exis-tncia e formas polticas que no mais sejam condiciona-das pela soberania do Estado. Isso significaria pensar sobre o que a liberdade para alm da ideologia da segurana (ao invs de simplesmente entender a liberdade como algo con-dicionado ou necessariamente limitado pela segurana). Pre-cisamos pensar, tambm, no que significa democracia para alm do Estado, o que significa poltica para alm do partido,

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    organizao econmica para alm do capitalismo, globaliza-o para alm das fronteiras e vida para alm da biopoltica.

    O foco aqui tem que ser, por exemplo, o questionamento crtico do desejo por segurana. Segurana, na sociedade contempornea, tornou-se uma forma de metafsica, um fundamentalismo, que no apenas o mpeto por trs de uma expanso e intensificao sem precedentes do poder de Estado, mas que, tambm, torna-se um tipo de condio para a vida: a vida deve estar segura das ameaas seja uma ameaa nossa proteo, segurana financeira, etc. mas isso significa que a prpria possibilidade existencial no apenas da liberdade humana, mas da prpria poltica est sendo negada. Podem a lei e os marcos institucio-nais liberais nos protegerem da segurana; podem opor-se ao movimento implacvel em direo securitizao da vida? Devemos nos lembrar que, como mostraram Gior-gio Agamben e outros, a biopoltica, a violncia soberana e a securitizao so apenas o outro lado da lei, e que no passa de uma iluso liberal imaginar que a lei possa limi-tar o poder. Devemos inventar uma nova relao com a lei e com as instituies, no mais como sujeitos obedientes, nem como sujeitos que simplesmente transgridem (que apenas o outro lado da obedincia em outras palavras, a transgresso, assim como a entendemos por Lacan, con-tinua a afirmar a lei27). Ao contrrio, devemos transcender esse binrio obedincia/transgresso. O anarquismo mais que transgresso; um aprender a viver para alm da lei e do Estado, por meio da inveno de novos espaos e de novas prticas de liberdade e autonomia que sero, por na-tureza, um tanto frgeis e experimentais.

    Assumir tais riscos exige disciplina, mas essa pode ser um tipo de disciplina tica que impomos a ns mesmos.

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    Precisamos ser disciplinados para nos tornar indisciplina-dos. A obedincia autoridade parece vir facilmente, at mesmo naturalmente, como observou La Botie; ento, a revolta contra a autoridade requer uma elaborao discipli-nada e paciente de novas prticas de liberdade. Isso algo que Foucault talvez estivesse buscando com sua noo de askesis, exerccios ticos que eram parte do cuidado de si, para ele inseparveis da prtica de liberdade. 28 O alvo de tais estratgias era, para Foucault, inventar modos de vida nos quais se menos governado ou no se governado de maneira alguma. De fato, a prtica da crtica em si, de acor-do com Foucault, visa no apenas questionar a reivindica-o do poder por legitimidade e verdade, porm, mais im-portante, questionar os diferentes modos pelos quais somos vinculados ao poder e aos regimes de governamentalidade atravs de certos desdobramentos da verdade pela insis-tncia do poder de que nos conformemos a certas verdades e normas. Desse modo, para Foucault: A crtica ser a arte da no-servido voluntria, ou da indocilidade reflexiva.29 Portanto, Foucault fala de um questionamento dos limites da nossa subjetividade que requer um trabalho paciente para dar forma impacincia da liberdade.30 Ento, talvez possamos enfrentar o problema da servido voluntria por meio de uma disciplina da indisciplina.

    Concluso: uma poltica da recusa A servido voluntria a recusa dominao do poder

    sobre ns no deve ser confundida com uma negao da poltica. Ao contrrio, deve ser entendida como a construo de uma forma alternativa de poltica, e como intensificao da ao poltica; podemos chamar isso de uma poltica de

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    afastamento do poder, uma poltica de no-dominao. No h nada de apoltico em tal poltica da recusa: ela no uma negao da poltica como tal, mas uma recusa das formas estabelecidas e prticas polticas imobilizadas no Estado, e o desejo de criar novas formas de poltica fora do Estado o desejo, em outras palavras, de uma poltica da autonomia. De fato, a noo de autonomia do poltico trazida por Carl Schmitt para afirmar a soberania do Estado a prerrogativa do Estado para definir a oposio amigo/inimigo 31 deve ser entendida, na minha leitura alternativa, como a sugesto de uma poltica da autonomia. O momento da poltica, pro-priamente, fora do Estado e busca engendrar novas relaes e modos de vida no-autoritrios.

    Uma srie de pensadores contemporneos, como Giorgio Agamben, Michael Hardt e Antonio Negri, pro-ps uma noo similar de recusa ou afastamento como modo de pensar a poltica radical hoje. De fato, o interesse recente na figura de Bartleby (do Bartleby, o escrivo, de Herman Melville) como paradigma de resistncia ao po-der, aponta para uma percepo dos limites dos modelos existentes de poltica radical e revolucionria, e, alm disso, um reconhecimento da necessidade de ultrapassar a sujei-o voluntria ao poder. O impassvel gesto de Bartleby de desafio autoridade acho melhor no pode ser analisado como um afastamento ativo da participao em prticas e atividades que reafirmam o poder, e sem a qual o poder entraria em colapso. Nas palavras de Hardt e Negri, Esses simples homens [Bartleby e Michael K, um per-sonagem de um romance de J. M. Coetzee] e sua recusa absoluta s podem apelar ao nosso dio autoridade. A recusa ao trabalho e autoridade, a recusa servido vo-luntria, o comeo da poltica libertadora. 32

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    Nesse artigo, coloquei o problema da servido volunt-ria diagnosticado h tempos por La Botie no cer-ne do pensamento poltico radical. A servido voluntria, cujos contornos foram lapidados pela teoria psicanaltica, pode ser entendida como um limite pelo qual o sujeito vinculado ao poder no nvel do seu desejo. Ao mesmo tempo, a ideia da servido voluntria tambm aponta para a prpria fragilidade e reticncia da dominao, e o caminho pelo qual, por meio da inveno de estratgias micropolticas e ticas de subjetivao uma poltica anrquica de no-servido voluntria pode-se afrouxar e desatar este lao e criar espaos alternativos de poltica para alm da sombra do soberano.

    Traduo do ingls por Anamaria Salles

    Notas1 Etienne de La Botie. La Servitude Volontaire, or the Anti-Dictato [Slaves by Choice]. Egham, Runnymede Books, 1988. [Em portugus: Etienne de La Botie. Discurso da servido voluntaria. Traduo de Laymert Garcia dos Santos. So Paulo, Brasiliense, 1982.]2 Wilhelm Reich. The Mass Psychology of Fascism. Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux, 1980. [Em portugus: Wilhelm Reich. Psicologia de massas do fascismo. Traduo de Maria da Graca M. Macedo. So Paulo, Martins Fon-tes, 1988.]3 Pierre Clastres. Freedom, Misfortune, the Unnameable in Archaeology of Violence. Traduo de Jeanine Herman. Nova Iorque, Semiotext(e), 1994, pp. 93-104. [Em portugus: Pierre Clastres. Liberdade, Mau encontro, In-ominvel in Arqueologia da violncia: pesquisas de antropologia poltica. Tra-duo de Paulo Neves. So Paulo, Cosac & Naify, 2004, pp.153-171.]4 Deleuze e Guatarri apontam para a maneira misteriosa pela qual somos atados ao poder de Estado, algo que o termo servido voluntria tanto ilu-mina quanto obscurece: Seguramente, o Estado no o lugar da liberdade,

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    nem o agente da servido forada ou da captura. Deveramos ento falar de uma servido voluntria?. Gilles Deleuze e Felix Guattari. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Traduo de Brian Massumi. Min-nesota, University of Minnesota Press, 2004, p.460. [Em portugus: Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mil plats capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Traduo de Peter Pl Pelbart e Janice Caiafa. So Paulo, Editora 34, 1997.]5 Raoul Vaneigem. The Revolution of Everyday Life. Traduo de Donald Nicholson-Smith. Londres, Rebel Press, 1994, p.132.6 Piotr Kropotkin. The State: Its Historic Role. Londres, Freedom Press, 1943. [Em portugus: Piotr Kropotkin. O Estado e seu papel histrico. Traduo de Alfredo Guerra. So Paulo, Nu-Sol/Imaginrio/SOMA, Centro Anarquis-ta Brancaleone, 2000.]7 Mikhail Bakunin. Political Philosophy: Scientific Anarchism. Londres, The Free Press, 1953, p. 249.8 A partir da segunda metade do sculo XX, difundiu-se entre os filsofos anglo-saxnicos a designao pensamento continental para fazer refern-cia produo dos pases da Europa continental (principalmente Frana, Alemanha e Itlia), em contraposio aos britnicos e estudunidenses (N.E.)9 Ver a noo de Bakunin de massa revolucionria oposta categoria marxis-ta de classe em Mikhail Bakunin. Marxism, Freedom and the State. Traduo de K. J. Kenafick. London, Freedom Press, 1984, p. 47.10 Para uma discusso acerca da relevncia do anarquismo clssico e da filoso- fia poltica radical contempornea, ver meu artigo: Saul Newman. Anarchism, Poststructuralism and the Future of Radical Politics Today in Substance. Issue 113, vol. 36, n. 2, 2007, pp. 3-19.11 Esse reconhecimento da vontade por poder no corao da subjetividade hu-mana no endossa a posio hobbesiana que afirma a necessidade de uma for-te soberania. Ao contrrio, torna o objetivo de fragmentar e abolir estruturas centralizadas de poder e autoridades mais necessrio. Certamente se, em outras palavras, a natureza humana est inclinada s tentaes do poder e da vontade por dominao, a ltima coisa que deveramos fazer confiar em um sobe-rano com poder absoluto sobre ns. Um ponto similar colocado por Paolo Virno (ver o ensaio Multitude and Evil), que sugere que se aceitarmos a afirmao realista de que temos como humanos uma capacidade para o mal, ento, ao invs disso justificar a autoridade de Estado centralizado, devera-mos ser ainda mais cautelosos acerca da concentrao de poder e violncia nas

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    mos do Estado. Cf. Paolo Virno. Multitude: Between Innovation and Nega-tion. Nova Iorque, Semiotext(e), 2008.12 Cf. Piotr Kropotkin. Mutual Aid, A Factor of Evolution. Reino Unido, Dodo Press, 2007.13 Saul Newman. The Politics of Postanarchism. Edinburgh, Edinburgh Uni-versity Press, 2010. [Ver tambm: Saul Newman. A poltica do ps-anar-quismo in Revista Verve. vol. 9. So Paulo, Nu-Sol, 2006, pp. 30-50.]14 Isso prximo ao que Jason Glynos se refere como o problema da auto-trans- gresso (ver: Jason Glynos. Self-Transgressive Enjoyment as a Freedom Fetter in Political Studies, vol. 56, n. 3, 2008, pp. 679-704). O argumento aqui que a conceituao e a prtica de liberdade sejam muito confundidas pelas vrias formas de auto-transgresso, onde o sujeito se dedica a ativi-dades que limitam sua liberdade que o previne de atingir seu objeto de desejo, ou atingir um certo ideal que algum possa ter de si por causa da satisfao inconsciente (gozo) derivada de sua transgresso. Da, a limitao liberdade do sujeito no mais externa (como no paradigma da liberdade negativa), mas interna. Essa pode ser outra maneira de se pensar o problema da servido voluntria pelas lentes da psicanlise.15 Ver tambm o estudo de Theodor Adorno. The Authoritarian Personality. Nova Iorque, Wiley, 1964.16 De acordo com Mikkel Borch-Jacobsen, a teoria psicanaltica de grupos de Freud implica em algo como uma revolta ou insurreio contra o poder injus-tificvel da hipntica. Mikkel Borch-Jacobsen. The Freudian Subject. Transla-tion of Catherine Porter. Stanford, Stanford University Press, 1988, p. 148.17 Jacques Lacan. Analyticon in The Seminar of Jacques Lacan, Book XVII: The Other Side of Psychoanalysis. Jacques-Alain Miller (org.). Traduo de Russell Grigg. Nova Iorque/Londres, W.W. Norton & Co, 2007, p. 207.18 Judith Butler. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Stanford, Stanford University Press, 1997, p. 86.19 Sigmund Freud. Group Psychology and the Analysis of the Ego. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Volume XVIII (1920-1922): Beyond the Pleasure Principle, Group Psychology and Other works. Psychoanalytic Electronic Publishing, 1955. 20 Ludwig Feuerbach. The Essence of Christianity. Traduo de George El-iot. Nova Iorque/ Londres, Harper & Row, 1957. [Em portugus: Ludwig

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    Feuerbach. A essncia do crisitanismo. Traduo de Jos da Silva Brando Petrpolis. Vozes, 2009.]21 Max Stirner. The Ego and Its Own. David Leopold (Org.). Cambridge, Cam-bridge University Press, 1995, p. 43. [Em portugs: Max Stirner. O nico e sua propriedade. Traduo de Joo Barrento. So Paulo, Martins Fontes, 2009.]22 Idem, pp. 174-175.23 Ver minha leitura de Stirner como um anarquismo ps-estruturalista em Saul Newman. From Bakunin to Lacan: Anti-authoritarianism and the Dislo-cation of Power. MA, Lexington Books, 2001.24 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 150.25 Idem, pp. 279-80. Os itlicos so de Stirner.26 Martin Buber apud Landauer. Paths in Utopia. Nova Iorque, Syracuse University Press, 1996, p.47.27 Ver a discusso de Lacan sobre a dialtica da lei e transgresso em Jacques Lacan.Kant avec Sade. Critique , vol. 91, Setembro, 1962, pp. 291-313. 28 Cf. Michel Foucault. The History of Sexuality, Volume 3: The Care of the Self. Nova Iorque, Vintage, 1988. [Em portugus: Michel Foucault. Histria da se-xualidade 3 : o cuidado de si. Traduo de Maria Thereza da Costa Albuquerque. So Paulo, Graal, 2009.]29 Michel Foucault. What is Critique? in What is Enlightenment: Eigh-teenth Century Answers and Twentieth Century Questions. James Schmidt (Org.). Berkeley, University of California Press, 1996, p. 386.30 Michel Foucault. What is Enlightenment? in Essential Works of Michel Foucault 1954-1984: Volume 1, Ethics. Paul Rabinow (Org.). Traduo de Robert Hurley. Londres, Penguin Books, 2000, p. 319. [Em portugs: Michel Foucault. O que so as luzes? in Arqueologia das Cincias e Histria dos Sistemas de Pensamento. Ditos e escritos vol. II. Traduo de Elisa Monteiro.Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2005.]31 Carl Schmitt. The Concept of the Political. Traduo de George Schwab. Chicago, University of Chicago Press, 1996.32 Michael Hardt e Antonio Negri. Empire. Cambridge, Harvard University Press, 2000, p. 204. [Em portugus: Michael Hardt e Antonio Negri. Imp-rio. Traduo de Berilo Vargas. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2003.]

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    ResumoO artigo investiga o problema da servido voluntria e explora suas implicaes na atual teoria poltica radical, assumindo que o dese-jo pela prpria dominao mostrou-se um significativo obstculo para os projetos revolucionrios de libertao humana. O foco so os projetos micropoltico e tico que questionam o vnculo da subje- tividade com o poder e a autoridade projetos elaborados por pensadores to diversos quanto Max Stirner, Gustav Landauer e Michel Foucault. A questo da servido voluntria traz tona uma tradio de contra-soberania na poltica interessada no na legitimidade do poder poltico, mas nas possibilidades de novas prticas de liberdade.Palavras-chave: servido voluntria, subjetividade, teoria poltica radical.

    AbstractThis paper investigates the problem of voluntary servitude and explores its implications for radical political theory today, assum-ing that the desire for ones own domination has proved a major hindrance to revolutionary projects of human liberation. Central here are micropolitical and ethical projects of interrogating ones own subjective attachment to power and authority projects elaborated by thinkers as diverse as Max Stirner, Gustav Lan-dauer and Michel Foucault. The question of voluntary servitude brings to the surface a counter-sovereign tradition in politics in which the central concern is not the legitimacy of political power, but rather the possibilities for new practices of freedom. Keywords: voluntary servitude, subjectivity, radical political theory.Recebido para publicao em 15 de maro de 2011. Confirmado em 20 de maio de 2011.