Saussure e Benveniste

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Saussure e Benveniste: signo linguístico, referência e linguagem poética Renata Trindade Severo Submetido em 02 de maio de 2012. Aceito para publicação em 09 de junho de 2012. Publicado em 30 de junho de 2012. Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 44, junho de 2012. p. 239-258 POLÍTICA DE DIREITO AUTORAL Autores que publicam nesta revista concordam com os seguintes termos: (a) Os autores mantêm os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Creative Commons Attribution License , permitindo o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria do trabalho e publicação inicial nesta revista. (b) Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial nesta revista. (c) Os autores têm permissão e são estimulados a publicar e distribuir seu trabalho online (ex.: em repositórios institucionais ou na sua página pessoal) a qualquer ponto antes ou durante o processo editorial, já que isso pode gerar alterações produtivas, bem como aumentar o impacto e a citação do trabalho publicado. (d) Os autores estão conscientes de que a revista não se responsabiliza pela solicitação ou pelo pagamento de direitos autorais referentes às imagens incorporadas ao artigo. A obtenção de autorização para a publicação de imagens, de autoria do próprio autor do artigo ou de terceiros, é de responsabilidade do autor. Por esta razão, para todos os artigos que contenham imagens, o autor deve ter uma autorização do uso da imagem, sem qualquer ônus financeiro para os Cadernos do IL. POLÍTICA DE ACESSO LIVRE Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona sua democratização. http://seer.ufrgs.br/cadernosdoil/index Sábado, 30 de junho de 2012 23:59:59

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Linguística

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  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, referncia e

    linguagem potica

    Renata Trindade Severo

    Submetido em 02 de maio de 2012.

    Aceito para publicao em 09 de junho de 2012.

    Publicado em 30 de junho de 2012.

    Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 44, junho de 2012. p. 239-258

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    SAUSSURE E BENVENISTE: SIGNO LINGUSTICO,

    REFERNCIA E LINGUAGEM POTICA

    Renata Trindade Severo*

    RESUMO: O conceito de signo lingustico desde a crtica de 1939 maneira como foi postulado pelo

    Saussure do Curso de Lingustica Geral (CLG) constitui um ponto alto no pensamento de mile

    Benveniste e j foi abordado por grandes leitores tanto de Saussure quanto do linguista francs, como

    Claudine Normand e Simon Bouquet. Os manuscritos recentemente publicados em que o criador da

    Teoria da Enunciao analisa a potica de Baudelaire trazem novo flego a essa discusso que j dura

    mais de sete dcadas. Esse ensaio procura percorrer o pensamento benvenisteano e mostrar a evoluo

    do conceito de signo lingustico em sua obra relacionando-a ao pensamento saussureano no CLG e nos

    Escritos de Lingustica Geral.

    PALAVRAS-CHAVE: signo lingustico; enunciao; linguagem potica; referncia.

    Tudo em Benveniste est apenas comeando Roland Barthes

    1. INTRODUO

    A nica desculpa aceitvel para se utilizar como epgrafe uma citao a que

    tantos j recorreram o fato de que, mais de 40 anos aps o ltimo texto de mile

    Benveniste ter sido publicado1, o comentrio de Barthes se faz, novamente, atualssimo.

    Com a recente transcrio e edio de textos inditos de Benveniste sobre Baudelaire2,

    tem-se a acesso a reflexes do linguista da enunciao sobre a linguagem potica. Ao

    contrrio de seu mestre, Ferdinand de Saussure, que raramente publicou, Benveniste

    produziu dezenas de artigos sobre estudos de lngua e de linguagem dentre os quais um conjunto seleto presente nos dois volumes de Problemas de Lingstica Geral

    3

    constitui a Lingustica da Enunciao (FLORES e TEIXEIRA, 2004). Os manuscritos

    em questo no so uma rara chance de se ter acesso voz do linguista francs, mas

    uma preciosa oportunidade de se tomar conhecimento de suas palavras acerca da

    linguagem potica. A obra consiste em notas que deveriam dar origem a um artigo,

    nunca concludo, sobre a potica de Baudelaire a ser publicado no nmero 12 da revista

    Langages, intitulado Linguistique et Littrature, em 19684. O interesse de Benveniste pela linguagem potica no novidade para seus

    leitores desde os anos 60:

    * Professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, doutoranda pela Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul: [email protected] 1 O Aparelho formal da enunciao foi publicado em 1970.

    2 Baudelaire, organizado por Chlo Laplantine, foi publicado em maio de 2011.

    3 Problemas de Lingstica geral I e II, doravante tratados simplesmente por PLG I e PLG II,

    respectivamente. 4 Nessa edio, publicaram autores como Barthes (org.), Jakobson, Genette, Todorov e Bakhtin tratando

    de temas relacionados linguagem e literatura.

  • 240 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    G.D. O senhor pronunciou a palavra poema. A linguagem potica tem interesse para a lingustica?

    E.B. Imensamente. Mas este trabalho apenas comeou. No se pode dizer que o objeto de estudo, o mtodo a ser empregado

    j estejam claramente

    definidos. H tentativas interessantes, mas que mostram a dificuldade de se

    abandonarem categorias utilizadas para a anlise da linguagem ordinria.

    (BENVENISTE, 2006, p. 37).

    Os parmetros para tal estudo, segundo o linguista, deveriam ainda ser criados.

    Benveniste no se mostrava satisfeito com a abordagem lingustica literatura tal como

    ela se desenvolvia nos anos 60. Se, por um lado, pudesse considerar interessante o que

    vinha sendo feito, como se pode perceber em seu comentrio a respeito de uma anlise

    do poema de Baudelaire Les chats, feita por Jakobson e Lvi-Strauss e publicada em LHomme, em 1962:

    Une approche consiste partir de la pice de vers comme dun donne, de la dcrire, de la dmonter comme un objet. Cest lanalyse telle quon la trouve applique aux Chats dans le bel article de Lvi-Strauss et Jakobson.

    5

    (BENVENISTE, 2011, (14, fo 2 / f

    o 81)).

    Por outro lado, Benveniste tinha seu prprio projeto:

    Une autre approche sera dun type tout autre. On sefforcera datteindre la structure profonde de son univers potique dans le choix rvlateur des

    images et dans leur articulation. (BENVENISTE, 2011, (14, fo 2 / f

    o 81)).

    Percebe-se a a semente de uma nova maneira de analisar o texto potico, que

    ser sutilmente desenvolvida nas notas de Baudelaire. Tal sutileza parece incomodar

    Benveniste, que est ciente da necessidade de uma mudana mais radical:

    Nous tentons cette conversion du point de vue et cette / cration dun nouveau/ modle, convaincu la fois de sa ncessit et de son/ insuffisance

    prsente : notre tentative semblera radicale. Nous sommes / sr quun jour on lui reprochera de ne pas lavoir t assez. (BENVENISTE, 2011, (14, fo 1 / fo 80)).

    Essa outra abordagem do texto potico, que procuraria no universo de cada

    poeta, na sua lngua, as ferramentas para analisar esse discurso particular, desenvolver

    reflexes lingusticas que, obviamente, extrapolaro a linguagem potica. Da mesma

    forma que Benveniste afirmara, em A forma e o sentido na linguagem, que tudo que se pode esclarecer no estudo da linguagem ordinria ser de proveito, diretamente ou

    no, para a compreenso da linguagem potica tambm (BENVENISTE, 2006, p. 221), aquilo que se apreende no estudo da linguagem potica tambm pode ser aproveitado,

    diretamente ou no, no estudo da linguagem ordinria; nesse novo cenrio, chega-se, inclusive, a um ponto em que a linha que separa potico e ordinrio, sempre tnue, tem

    sua localizao repensada.

    5 As citaes de Baudelaire obedecero aos critrios estipulados na obra: o primeiro nmero refere-se ao

    pacote que contm o grupo de notas, o segundo nmero corresponde ordem dessa nota no pacote e o

    ltimo nmero corresponde posio dessa nota na ordem geral.

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 241

    referncia e linguagem potica

    A leitura das notas de Baudelaire prope questionamentos interessantes dentro

    da Lingustica da Enunciao, por exemplo: como ficam, nessa nova perspectiva,

    conceitos importantes como enunciao, referncia, agenciamento e sintagmatizao?

    Como propor tais conceitos dentro do quadro dessa potica benvenisteana? A partir da

    mudana de ponto de vista proposta, como ficaro conceitos como semitico e

    semntico? Esses so apenas alguns dos mais bvios questionamentos que podem surgir

    a partir da leitura das notas de Baudelaire.

    Outra questo capaz de provocar o leitor diz respeito maneira como se constri

    o conceito de signo nas notas de Baudelaire. Ao contrastar o que mais frequentemente

    chama de mots potiques com o signo lingustico, Benveniste traa uma barreira cuja

    ultrapassagem seria vetada s palavras poticas. O conceito de signo lingustico que pode ser delineado a partir das oposies propostas pelo linguista em Baudelaire no

    exatamente o mesmo construdo em, por exemplo, Natureza do signo lingustico ou A forma e o sentido na linguagem, textos cujas datas de publicao so anteriores s notas

    6.

    Dentro da construo do conceito de signo lingustico que pode ser empreendida

    a partir do que Benveniste diz sobre signo e palavras poticas em Baudelaire, o papel da referncia particularmente interessante por trazer discusso um conceito cuja

    definio oscila dentro dos textos benvenisteanos7. Desde 1939, Benveniste postulou

    que a referncia fundamental para a definio de signo lingustico. Em Natureza do signo lingustico (BENVENISTE, 2005, p. 53-59), Benveniste critica a arbitrariedade do signo postulada no CLG e o faz, tambm, trazendo ao debate o conceito de

    referncia. Acredito que tal discusso sobre o arbitrrio do signo e a referncia , j retomada por Bouquet e Normand, dentre outros, merece ser revisitada luz do que

    trazem as notas de Baudelaire.

    Assim, procurarei nesse artigo acompanhar o desenvolvimento da concepo de

    signo em um percurso que parte do conceito expresso no CLG e da crtica

    benvenisteana a esse conceito, retorna a Saussure atravs dos Escritos e, finalmente,

    explora as notas de Baudelaire a fim de investigar como as reflexes atribudas a

    Saussure e a Benveniste se afastam e se cruzam virtualmente, isto , sem se terem encontrado em um plano real. O principal objetivo aqui pensar a noo de signo apresentada em Baudelaire no que tange excluso da palavra potica como signo

    lingustico.

    O artigo est dividido em trs partes e cada uma composta de algumas etapas.

    A primeira parte dedicada discusso proposta por Benveniste no texto de 1939. Em

    um primeiro momento, apresentarei o arbitrrio do signo lingustico tal como o

    encontramos no primeiro captulo do Curso de Lingstica Geral (doravante apenas

    CLG); a seguir, colocarei em relevo os principais pontos da crtica de Benveniste a essa

    6 Natureza do signo lingustico de 1939 e A forma e o sentido na linguagem foi publicado pela

    primeira vez em 1966, enquanto que as notas para Baudelaire so situadas no ano de 1967, embora apenas

    uma pequena parte delas esteja datada. 7 A definio de referncia no Dicionrio de Lingustica da Enunciao traz o seguinte conceito:

    significao singular e irrepetvel cuja interpretao realiza-se a cada instncia de discurso contendo um locutor. Tal citao, apesar de ter como referncia a pgina 278 do PLG II, visivelmente do texto O aparelho formal da enunciao, provavelmente da pgina 84. Como leitura recomendada para esse verbete, o dicionrio aponta O aparelho formal da enunciao e A forma e o sentido na linguagem, ambos do PLG II e dois textos do PLG I: A natureza dos pronomes e Da subjetividade na linguagem.

  • 242 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    concepo e, ento, convocarei reflexes de Claudine Normand (2004/ 2009) sobre essa

    crtica para, finalmente, refletir sobre o que est em jogo nela.

    A segunda parte do artigo traz novos elementos a essa discusso. Com Bouquet

    (1997), mostro que o conceito de arbitrrio do signo lingustico pensado por Saussure

    e presente nos Escritos de Lingstica Geral (doravante apenas Escritos) no o mesmo apresentado no CLG e, consequentemente, criticado por Benveniste. Ainda na

    segunda parte, incluo nessa discusso trechos dos Escritos que tratam de significao

    por entender que a significao a chave para que se discutam as noes de signo que

    sero apresentadas aqui.

    A terceira parte do texto apresentar o conceito de signo lingustico que se pode

    inferir em Baudelaire e sua relao com o conceito de arbitrrio e a ideia de referncia.

    Procurarei, ao final deste texto, pensar a oposio proposta por Benveniste nas

    notas de Baudelaire entre signo e palavra potica.

    2. O SIGNO LINGUSTICO: O CLG E A CRTICA DE BENVENISTE

    Em natureza do signo lingustico (1939), Benveniste critica a noo de signo apresentada no CLG (1916). O foco dessa crtica a arbitrariedade atribuda relao

    entre significante e significado. Para Benveniste, o problema instaurado quando

    Saussure traz discusso um terceiro elemento, a coisa. Enquanto o signo lingustico

    definido como a associao de um significante a um significado, trata-se de uma

    realidade lingustica da qual o mundo objetivo no faz parte. No entanto, quando

    Saussure fala da diferena entre b--f e o-k-s (SAUSSURE, 2004, p. 82), traz ao debate

    a realidade substancial, a coisa, qual no havia sido reservado espao algum dentro do conceito de signo. Para Benveniste como veremos , muito claro que a arbitrariedade do signo se restringe relao entre signo e realidade e no se estende

    relao entre significante e significado.

    A seguir, apresentarei brevemente o conceito de arbitrrio do signo postulado no

    CLG, a crtica de Benveniste a esse conceito e as reflexes de Normand (2009) sobre

    essa crtica.

    2.1. O arbitrrio do signo no CLG

    A apresentao que segue est restrita ao contedo do primeiro captulo da

    primeira parte do CLG denominado Natureza do signo lingustico (SAUSSURE, 2004, p. 79 84). Nele, apresentado o conceito de signo lingustico, suas faces e seus princpios. As asseres desse captulo ecoam em todo o CLG e tm peso fundamental

    nas teorias atribudas a Saussure, embora os conceitos de signo e de arbitrrio no se

    resumam a ele. A crtica que Benveniste faz ao arbitrrio dentro do CLG concentra-se

    no que apresentado nesse captulo.

    A primeira afirmao com que nos deparamos a de que a lngua no uma

    nomenclatura, isto , ela no uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas (SAUSSURE, 2004, p. 79). Isso decorre do fato de que o signo lingustico une no uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acstica, que so ambos psquicos e esto unidos em nosso crebro, por um vnculo de associao, o signo lingustico , pois, uma entidade psquica de duas faces (SAUSSURE, 2004, p.

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 243

    referncia e linguagem potica

    80). Tais afirmaes excluem a relao entre termo e coisa, dando ao signo saussureano

    um carter que o difere do signo filosfico, que possuiria um terceiro polo, o mundo

    objetivo (GADET, 1996, p. 33)8.

    A fim de resolver o que classificado como uma importante questo de

    terminologia, os termos signo, significante e significado so propostos. O primeiro

    englobaria o todo composto pelos outros dois, que designariam a imagem acstica e o

    conceito, respectivamente. Assim, o conceito de signo expresso no CLG atravs da

    famosa frmula: entendemos por signo o total resultante da associao de um significante com um significado (SAUSSURE, 2004, p. 81), que estabelece uma realidade lingustica independente do mundo objetivo e que enfatiza uma terminologia

    tripartida para o conceito de signo lingustico.

    A esse signo dizem respeito dois princpios: o carter arbitrrio e o carter

    linear. A arbitrariedade atribuda ao lao que une o significante ao significado (SAUSSURE, 2004, p. 81) e, seguindo-se um raciocnio lgico que ser contestado por Benveniste , chega-se famosa expresso: o signo lingustico arbitrrio (SAUSSURE, 2004, p. 81). Para explicar o arbitrrio, dois exemplos de naturezas

    diferentes so apresentados: a idia de mar no est ligada por relao alguma interior sequncia de sons m-a-r que lhe serve de significante (SAUSSURE, 2004, p. 81); e, a semente da discrdia, o exemplo em que se basear a crtica benvenisteana: como prova, temos as diferenas entre as lnguas e a prpria existncia de lnguas diferentes: o

    significado da palavra boeuf (boi) tem por significante b--f de um lado da fronteira franco-germnica, e o-k-s (Ochs) do outro (SAUSSURE, 2004, p. 82).

    A seguir, a problematizao do termo smbolo, que foi substitudo por signo, traz

    discusso a ligao referencial entre termo e objeto tratada aqui como um rudimento de vnculo natural entre o significante e o significado (SAUSSURE, 2004, p. 82) prpria do smbolo e que impede que esse seja totalmente arbitrrio. O prprio termo arbitrrio merece uma elucidao nesse captulo: no deve dar a idia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (...); queremos dizer que o significante

    imotivado, isto , arbitrrio em relao ao significado, com o qual no tem nenhum

    lao natural de realidade (SAUSSURE, 2004, p. 83). Quanto linearidade, ela diz respeito ao significante enquanto imagem acstica,

    cuja extenso dispe apenas da linha do tempo (SAUSSURE, 2004, p. 84). No entanto, essa propriedade se estende representao escrita, que tambm deve obedecer

    a uma ordem linear.

    Tem-se at aqui, de maneira muito sucinta, a concepo de signo lingustico e do

    arbitrrio inerente a ele apresentados no CLG. Tal concepo encerra diversos

    problemas que sero abordados no decorrer desse artigo, iniciando-se pela crtica de

    Benveniste, publicada no primeiro volume de seu Problemas de Lingustica Geral.

    2.2. A crtica de Benveniste ao arbitrrio do signo no CLG

    O texto mais antigo dos PLG9 aborda a questo da arbitrariedade do signo

    lingustico no CLG para esclarecer uma contradio detectada por Benveniste no texto

    atribudo a Saussure.

    8 justamente quanto a esse postulado inicial que Benveniste detecta uma contradio na explicao

    atravs dos exemplos s-o-e-r e o-k-s.

  • 244 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    Benveniste, primeiramente, chama a ateno do leitor para a importncia da

    noo de arbitrrio na lingustica da poca: Toda afirmao sobre a essncia da linguagem ou sobre as modalidades do discurso comea por enunciar o carter arbitrrio

    do signo lingustico (BENVENISTE, 2005, p. 53). To grande importncia atribuda ao arbitrrio justifica a necessidade de que se procure ao menos compreender em que sentido Saussure o tomou e a natureza das provas que o manifestam (BENVENISTE, 2005, p. 53).

    Partindo do princpio, com o qual concorda, de que o signo bipartido, isto ,

    que composto por um significante e um significado, Benveniste procura averiguar a

    coerncia da afirmao da arbitrariedade do signo. Segundo ele, o conceito inicial de

    signo exclui o mundo objetivo de seu escopo. Quando, para explicar o arbitrrio, um

    exemplo como b--f /o-k-s apresentado, esse terceiro elemento, a coisa, a realidade,

    intromete-se na definio de signo: Quando fala da diferena entre b--f e o-k-s, [Saussure] refere-se, contra a vontade, ao fato de que esses dois termos se aplicam

    mesma realidade (BENVENISTE, 2005, p. 54). A contradio instala-se aqui como resultado da ignorncia do fato de que a lngua forma e no substncia: somente se se pensa no animal boi que se tem base para julgar arbitrria a relao entre boi de um lado, oks do outro, com uma mesma realidade (BENVENISTE, 2005, p. 54). Da Benveniste afirmar, mais alm nesse texto, que o arbitrrio s existe aqui em relao com o fenmeno ou o objeto material e no intervm na constituio prpria do signo (BENVENISTE, 2005, p. 57).

    Para o linguista francs, o verdadeiro problema outro: entre o significante e o significado, o lao no arbitrrio, necessrio (BENVENISTE, 2005, p. 55). Uma vez que o significante e o significado de cada signo evocam-se mutuamente em qualquer circunstncia (ibid., p. 55), eles so, pois, na realidade as duas faces de uma mesma noo e se compem juntos como o incorporante e o incorporado (BENVENISTE, 2005, p. 56). Assim, chega-se ao enunciado consagrado: o que arbitrrio que um signo, mas no outro, se aplica a determinado elemento da realidade,

    mas no a outro (BENVENISTE, 2005, p. 56). Para finalizar sua argumentao, Benveniste recupera a noo de valor no CLG,

    em cuja definio tambm encontra incoerncia em relao ao arbitrrio. Benveniste

    localiza no texto do CLG a contradio afirmar que a escolha que chama determinado corte acstico para determinada ideia perfeitamente arbitrria (BENVENISTE, 2005, p. 58) relacionar no significante e significado, mas

    significante e objeto real e os meios para refut-la: ao dizer que de fato, os valores permanecem inteiramente relativos (BENVENISTE, 2005, p. 58), o texto do CLG no determina em relao a que se estabelece tal relatividade; segundo Benveniste, ser

    relativo, isto , ter valor, um elemento do signo, dizermos que os valores so relativos significa que so relativos uns aos outros, para ele, a relatividade dos valores a maior prova de que dependem estreitamente uns dos outros na sincronia de

    um sistema sempre ameaado, sempre restaurado (BENVENISTE, 2005, p. 59), portanto

    o signo, elemento primordial do sistema lingstico, encerra um significante e

    um significado cuja ligao deve ser reconhecida como necessria, sendo

    esses dois componentes consubstanciais um ao outro. O carter absoluto do

    9 Natureza do signo lingustico foi publicado originalmente em 1939, em Copenhague, cronologicamente,

    o prximo texto do PLG I de 1946.

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 245

    referncia e linguagem potica

    signo lingustico assim entendido comanda, por sua vez, a necessidade

    dialtica dos valores em constante oposio, e forma o princpio estrutural da

    lngua. (BENVENISTE, 2005, p. 59).

    Procurei mostrar, nessa subseo, o teor da crtica de Benveniste ao arbitrrio do

    signo expresso no CLG. Para um comentrio inicial sobre esse texto, recorrerei a seguir

    a uma grande leitora tanto de Saussure quanto de Benveniste atravs de um texto em

    que a linguista francesa fala desses dois mestres.

    2.3. Claudine Normand: a contingncia

    Em um texto de 2004 intitulado Saussure-Benveniste, Claudine Normand prope imediatamente a seguinte problemtica: da relao entre esses dois nomes, aqui justapostos na ordem neutra da cronologia, h sem dvida algo a dizer, mas como? (NORMAND, 2009, p. 197).

    A maneira escolhida pela linguista francesa foi falar em encontros: Benveniste

    teria encontrado Saussure. Nesse texto, em que fala de encontro de inteligncias, de

    vidas igualmente dedicadas pesquisa e em posicionamentos cientficos semelhantes,

    Normand no deixa de mencionar diferenas biogrficas entre os dois mestres. Quase ao

    final do texto, a linguista chega a uma questo delicada: parte das diferenas

    biogrficas sobre as quais no se conhece nenhum comentrio de Benveniste uma discordncia importante observada: a questo do arbitrrio do signo. A crtica feita em 1939 e nunca modificada, conservada na compilao de 1966 mesmo que todos os

    outros trabalhos publicados sejam, no mnimo 7 anos mais recentes aponta para um rompimento que significa, segundo Normand, uma diminuio do alcance do princpio

    saussureano, que seria, assim, reduzido a uma tomada de posio tradicional sobre a origem da linguagem (NORMAND, 2009, p. 201).

    Normand considera que o que incomoda Benveniste a contingncia. Segundo

    essa interpretao, para Benveniste, afirmar que a relao entre significante e

    significado arbitrria estabelecer entre eles uma relao contingente, desviando-se,

    assim, do problema real. Ao rebater essa relao contingente, o linguista recorre, para

    exemplificao, ao contraste entre a representao de luto na Europa, pela cor preta, e

    na China, pela cor branca. Para o linguista, se considerssemos a noo de luto

    arbitrria porque em culturas diferentes ela representada por cores diferentes,

    estaramos estabelecendo entre significante e significado uma relao que tanto poderia

    ocorrer quanto no. A relao entre significante e significado, segundo o linguista

    francs, no pode ser contingente, mas necessria.

    Para Normand, esse um ponto em que Benveniste se afasta de Saussure sem

    avisar:

    Nunca abandonar a lngua, em sua matria significante, suas estruturas

    comuns, seu aparelho semitico, mas conciliar esse gesto saussureano com a singularidade subjetiva, a comunicao sempre situada, o acontecimento evanescente, que todo enunciado, analisar o semntico; essa era a proposta de Benveniste. (NORMAND, 2009, p. 202).

    Benveniste afirma, ainda, que, com relao a uma mesma realidade

    (significante), todas as denominaes (significado) so igualmente possveis. O que fica

  • 246 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    implcito aqui, mas muito claro em outros textos, que a relao necessria entre

    significante e significado responsvel por uma produo de significao especfica, o

    que vai de encontro a uma relao contingente. Benveniste retorna ao prprio CLG para

    ratificar sua afirmao: o pensamento apenas uma massa amorfa, indistinta, que s

    passa a ter forma atravs do signo significante e significado juntos.

    2.4. Primeira pausa para pensar

    At aqui, observamos o conceito de signo lingustico proposto pelo CLG:

    composto por um significante e um significado cuja unio se d por um lao arbitrrio;

    seguimos Benveniste em sua brilhante argumentao contra a afirmao de que essa

    relao seja arbitrria:

    Arbitrria, sim, mas somente sob o olhar impassvel de Sirius ou para aquele

    que se limita a comprovar, de fora, a ligao estabelecida entre uma realidade

    objetiva e um comportamento humano e se condena, assim, a no ver a

    seno contingncia. (BENVENISTE, 2005, p. 55).

    A contingncia que era, segundo Normand, o que realmente incomodava o linguista francs impossibilitaria a significao, na opinio de Benveniste. Para ele, significante e significado so impressos juntos em nosso esprito, um convoca o outro

    como incorporante e incorporado. Provavelmente

    10, Benveniste tenha tomado conhecimento dos manuscritos de

    Saussure que j estavam disponveis, mas o fato que nunca mudou sua crtica; para

    Normand, isso ocorreu pois preciso manter a razo; Bouquet tem outra opinio tanto sobre os propsitos de Benveniste quanto sobre sua crtica em si. Vejamo-la.

    3. O SIGNO LINGUSTICO NOS ESCRITOS DE LINGSTICA GERAL

    Hoje se reconhece que os textos do Curso de Lingstica Geral no so a nica,

    nem a mais fiel, maneira de se chegar ao pensamento de Ferdinand de Saussure. O livro,

    editado postumamente por dois admiradores que nunca assistiram s aulas do mestre

    genebrino, constituiu, no entanto, por muitos anos, a nica representao do que se

    reconhece como uma lingustica saussureana. Em 1939, quando Benveniste escreveu

    Natureza do signo lingustico, essa era a realidade. Dcadas mais tarde, Rudolf Engler publicaria textos manuscritos por Saussure e notas dos alunos que frequentaram o curso

    (Edio Engler 1968-1974). Em 1996, um pacote seria encontrado na estufa do hotel genebrino da famlia de Saussure (Bouquet/Engler, 2002) e novos manuscritos seriam colocados disposio dos leitores de Saussure.

    luz desses novos textos, possvel revisitarmos conceitos propostos no CLG e

    os elaborarmos de forma mais rica. Algumas vezes, mais do que um simples

    enriquecimento ser possvel ou, at, necessrio.

    10

    Em suas ltimas aulas no Collge de France (mile Benveniste, Dernires Leons), Benveniste faz

    referncia ao Les sources manuscrites du Cours de Linguistique gnral de F. de Saussure, de Godel

    (BENVENISTE, 2012, p. 72).

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 247

    referncia e linguagem potica

    O texto de Simon Bouquet de que me valerei aqui para um olhar diferenciado

    crtica de Benveniste a Saussure baseia-se na Edio Engler 1968-1974 para procurar

    mostrar que, ao criticar Saussure e procurar ultrapass-lo, Benveniste acaba

    ultrapassado por seu mestre. Minha inteno mostrar como o contedo dos escritos

    pode colaborar para o conceito de signo lingustico e seu arbitrrio. Minha concluso,

    no entanto, ser diferente da de Bouquet.

    3.1. Simon Bouquet: uma crtica baseada em um conceito falso

    Em 1997, Simon Bouquet publica, em nmero especial da revista Linx dedicado

    ao Colquio Benveniste vingt ans aprs, o texto Benveniste et la reprsentation du sens: de larbitraire du signe lobjet extra-linguistique, em que aborda a crtica de Benveniste ao arbitrrio do signo saussuriano em seu texto Natureza do signo lingustico (1939). Bouquet sustenta que a crtica benvenisteana se apoia sobre um fundo enganador (a trompe-lil), que o CLG. Para Bouquet, os textos originais, isto , aqueles que realmente refletem o pensamento saussureano, so os dos

    manuscritos (restritos aqui s edies Engler 1968-1974).

    Bouquet acredita que, apesar da forte analogia entre o CLG e os textos

    originais11, os pontos em que esses diferem, ou seja, os pontos que aparecem

    deformados no CLG (Bouquet, 1997, p. 107 - traduo livre), sejam suficientes para constituir o carter enganador desse texto.

    O artigo de Bouquet est dividido em trs partes: a introduo; um item

    intitulado Les textes saussuriens originaus et les questions de larbitraire et de la realite extra-linguistic, em que, como o ttulo indica, Bouquet apresenta o conceito de

    arbitrrio presente nos textos originais de Saussure e sua relao com a realidade

    extralingustica; e um terceiro item, que se chama Critique de la critique de Benveniste,

    em que Bouquet procura mostrar como, ao invs de ultrapassar Saussure, Benveniste

    ultrapassado por ele, segundo o ponto de visto do autor do artigo.

    No segundo item de seu artigo, Bouquet procura mostrar o que considera as

    verdadeiras ideias de Saussure sobre o signo lingustico. Ele inicia abordando o

    problema em relao utilizao do termo signo, utilizado por Saussure em duas

    acepes: de um lado como designando a entidade global composta por um conceito e uma imagem acstica, de outro como designando a imagem acstica apenas (Bouquet, 1997, p. 109). Tal dubiedade, segundo Bouquet, permitiu que os editores do CLG

    confundissem frequentemente signo e significante, pois, no CLG, havia uma tripartio

    terminolgica mais rgida do que nos escritos: nesse ltimo, o termo signo era

    frequentemente empregado por significante12

    .

    Citando um estudo de Engler (Engler, 1962 apud Bouquet, 1997), Bouquet

    menciona as 16 passagens sobre arbitrrio presentes no CLG e chega a trs

    constataes: em tais passagens, a maioria das vezes em que signo empregado, na

    verdade Saussure referia-se a significante trata-se, portanto, de arbitrrio do significante e no do signo; no restante das vezes, o arbitrrio apresentado no reflete o

    11

    Manterei aqui a forma como Bouquet se refere aos textos das edies Engler antes para manter

    fidelidade a sua escrita do que por concordar com seu posicionamento. 12

    Ver Bouquet (1997) para uma explicao mais detalhada sobre a utilizao dos termos signo/

    significado/ significante no CLG e nos Escritos.

  • 248 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    pensamento saussureano, o que leva Bouquet a perguntar-se se o arbitrrio no CLG no

    seria um conceito fantasma criado por seus editores; finalmente, a passagem dos textos originais em que Saussure d noo de arbitrrio uma extenso maior do que aquela de um arbitrrio do significante (Bouquet, 1997, p. 111) ignorada por Bally e Sechehaye.

    A partir dessas trs constataes, Bouquet acredita ter apresentado bases para

    afirmar que o arbitrrio criticado por Benveniste , na verdade, relativo ao significante e

    no ao signo. Em outras palavras, o conceito de que trata o CLG diz respeito relao

    entre significante e significado at que a conveno social os tenho colocado juntos.

    Bouquet destaca duas propriedades do arbitrrio, a primeira justamente essa que acabo de mencionar:

    La premire proprit darbitraire, on la vu, est larbitraire du signifiant au regard du signifie. Cette proprit est celle qui veut quil ny ait dans une langue donne, entre une forme conceptuelle donne et la forme

    phonologique donne qui la reprsente, aucun lien de ncessite autre que

    celui cre par la convention de ladite langue. (Bouquet, 1997, p. 112).

    A segunda propriedade, muito mais interessante, diz respeito ao que Bouquet

    chama de arbitrrio do valor13.

    Ici, larbitraire nest une double contingence lintrieur du systme dune langue : celle de tout signifiant par rapport aux autres signifiants, celle de tout

    signifi par rapport aux autres signifis. (Bouquet, 1997, p. 112).

    Para Bouquet, o CLG opacifica a noo de arbitrrio por no abordar nem o

    arbitrrio do valor nem sua articulao com o arbitrrio do significante e d margem,

    assim, s inmeras discusses que surgiram de 1916 aos anos 1970.

    Quanto realidade extralingustica, Bouquet apresenta passagens dos textos

    originais que demonstram uma excluso ainda mais radical dessa realidade no conceito

    de signo. As duas irredutibilidades do signo propostas por Saussure determinam que o signo lingustico nunca pode ser reduzido nem esfera psicolgica nem realidade

    extralingustica. A mxima a lngua uma forma e no uma substncia aponta para o fato de que a realidade extralingustica no entra na lngua seno na forma dos conceitos

    elaborados no substrato psicolgico que, por sua, vez s se tornam significado depois de

    mise en forme linguistique (Bouquet, 1997, p. 114). Bouquet divide sua crtica crtica de Benveniste em trs partes: a contestao

    do exemplo b--f e o-k-s; a argumentao sobre arbitrrio e necessrio; a argumentao

    sobre o estatuto da realidade extralingustica. Procurei resumir cada uma dessas partes.

    Para Bouquet, o exemplo b--f e o-k-s serve perfeitamente ao que se queria

    demonstrar: a arbitrariedade do significante em relao ao significado antes de sua

    unio na lngua, isto , a tese convencionalista do arbitrrio. Para Bouquet, Benveniste

    critica um raciocnio relativo ao arbitrrio do significante valendo-se de argumentos que

    dizem respeito ao arbitrrio do valor.

    Quanto argumentao sobre arbitrrio e necessrio, Bouquet acredita que a

    distino entre arbitrrio do significante e arbitrrio do valor d conta de esclarecer o

    debate sobre arbitrariedade e necessidade. Para ele, no que diz respeito ao arbitrrio do

    13

    O prprio Bouquet refere Engler e Godel como os primeiros a perceberem esse aspecto do arbitrrio na

    obra saussureana.

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 249

    referncia e linguagem potica

    significante, o arbitrrio o corolrio de uma ligao biunvoca necessria entre o significante e o significado, ou seja, o prprio arbitrrio fundado sobre a necessidade de coexistncia das duas faces do signo. No que diz respeito ao arbitrrio do valor, a ligao de necessidade a que amarra juntos os diferentes termos considerados enquanto formas no seio do conjunto do sistema; a ligao arbitrria a que une uma forma lingustica significante ou significado substncia (fnica ou psicolgica) em que essa frmula se sustenta (todas as citaes desse pargrafo: Bouquet, 1997, p. 119).

    Finalmente, quanto argumentao sobre o estatuto da realidade

    extralingustica, para Bouquet, h uma grande distncia entre o que Saussure e o que

    Benveniste consideram substncia quando falam no arbitrrio. Segundo o autor, Saussure pensava na substncia psicolgica, nunca mencionada por Benveniste em sua

    crtica, enquanto que esse ltimo se referia a uma base exterior, a que Saussure sempre

    recusara considerar o linguista suo no considerava a relao entre signo lingustico e mundo. Dessa forma, Bouquet considera que Benveniste, longe de

    ultrapassar Saussure, retrocede a uma discusso da filosofia clssica.

    Bouquet finaliza seu texto sondando os motivos pelos quais Benveniste, apesar

    de conhecer as circunstncias de produo do CLG, atribui todas as palavras de seu

    texto a Saussure e trata esse livro como uma obra de Saussure. A resposta que ele

    mesmo trata de dar ainda que em forma de outro questionamento aponta para um pressentimento de Benveniste, que teria adivinhado em Saussure aquilo que os Escritos

    confirmam:

    une autre dimension de la pense saussurienne, celle dune philosophie de lesprit, une dimension quil pressentirait (elle se confirme dans les textes originaux), et par laquelle il serait effray, en cela quelle serait le reflet de ce qui apparat chez lui, pour reprendre les termes de Claudine Normand,

    comme son propre dsir contrari ? (Bouquet, 1997, p. 122).

    Concordo com Milner que, ao mencionar Natureza do signo lingustico, percebe nesse texto um desejo de Benveniste de ser para Saussure o que Marx havia sido para Hegel: aquele que contradiz e que contradizendo faz avanar (Milner, 2002, p. 128, traduo livre).

    3.2. O signo e o sentido figurado

    O texto de Bouquet traz luz algumas caractersticas do signo lingustico que

    podem ser encontradas nos manuscritos de Saussure e dos alunos que assistiram aos

    cursos do mestre genebrino. Bouquet se restringe edio Engler 1968-1974.

    Salientarei aqui outras propriedades do signo, apenas algumas dentre as que se tornam

    visveis a partir da leitura dos manuscritos encontrados em 1996 e que fazem parte dos

    Escritos de Lingstica Geral publicados no Brasil em 2002. At agora, tratou-se do carter arbitrrio do signo lingustico (seja o arbitrrio do

    significante ou do valor, como quer Bouquet). Para Benveniste, a questo do arbitrrio

    era to cara porque colocava em risco a questo primordial da significao. Se a

    qualquer significado correspondesse qualquer significante, de forma contingente, a

    significao estaria dispersa; isso equivaleria a uma negao do semitico: sem uma

    base compartilhada social de onde partir, sobre o que se construiria o sentido no

  • 250 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    semntico? Concordo parcialmente com Bouquet quando ele afirma que Benveniste

    criticava o arbitrrio do significante com argumentos do arbitrrio de valor. O que

    Benveniste fez, me parece, foi uma afirmao daquilo que Bouquet denomina arbitrrio

    de valor: significado e significante uma vez unidos pela lngua s podem andar juntos e o que os determina a diferena que os une/separa de todos os outros

    significados e significantes, quer como signos globais, quer como partes desse todo.

    possvel encontrar nos Escritos afirmaes que fortalecem o conceito do

    arbitrrio de valor quer seja como Bouquet o v quer seja como Benveniste o formulou sem atribuir esse nome. Tome-se, por exemplo, o captulo intitulado pelos

    editores Sobre a essncia dupla da linguagem (ACERVO BPU 1996. Saussure, 2002, p. 19 a 80.). J no prefcio, encontramos a seguinte afirmao: errado (e impraticvel) opor a forma e o sentido. O que certo, em troca, opor a figura vocal, de

    um lado, e a forma-sentido de outro (Saussure, 2002, p. 21). Ora: forma-sentido! No se fala aqui em significante e significado unidos de forma necessria e convocados

    conjuntamente? Na pgina seguinte, encontramos a afirmao de que a lingustica no

    estuda as ideias ou as formas, mas exclusivamente, o ponto de juno dos dois domnios e, em seguida, nosso ponto de vista constante ser dizer que, no apenas a significao, mas tambm o signo, um puro fato de conscincia (ambas citaes provm de Saussure, 2001, p. 22.). Tal fato de conscincia, frequentemente reiterado nos Escritos, resultado da unio de forma e sentido. Essa forma-sentido, o signo

    lingustico, existe na conscincia dos falantes ou naquilo que Benveniste constituir

    como o semitico: o universo dos signos compartilhado pelos falantes.

    Sentido aqui o mesmo que valor, o sentido em forma-sentido determinado pela diferena: No h o menor limite definvel entre o que as formas valem em virtude de sua diferena recproca e material, e aquilo que elas valem em virtude do sentido que

    ns atribumos a essas diferenas (Saussure, 2002, p. 30). Assim, muitas pginas frente, chegaremos a uma afirmao que , ao mesmo tempo, muito importante para o

    conceito de signo lingustico e muito interessante quando pensamos em linguagem

    potica ou literria: No h diferena entre o sentido prprio e o sentido figurado das palavras

    (ou: as palavras no tm mais sentido figurado do que sentido prprio)

    porque seu sentido eminentemente negativo. (Saussure, 2002, p. 67).

    O que Saussure afirma aqui que aquilo que chamado de sentido figurado faz

    parte do sentido de determinado signo como todos os outros sentidos, considerados

    prprios, que por ele so invocados; uma vez que todo signo eminentemente negativo, o sentido em cada forma-sentido constitudo por todos os sentidos que no

    esto vinculados a outros signos. O sentido global dos signos s se d pela negatividade:

    no h um sentido prprio e outro figurado para cada signo, mas um sentido evocado por tal signo porque ele ocupa um lugar que nenhum outro signo efetivamente

    ocupa.

    No exemplo que Saussure utiliza para ilustrar tal afirmao, a palavra sol (Saussure, 2002, p. 67) se mostra insubstituvel por qualquer outra, porque nenhuma

    palavra possvel capaz de convocar, de evocar, todos os sentidos de sol que so necessrios produo de significao que se pretende. Da a negatividade da sinonmia

    e duas afirmaes que ratificam o que exponho aqui: cada uma dessas palavras s tem valor pela posio negativa que ela ocupa com relao s outras e Assim, s h, nessa palavra, o que no estava, antes, fora dela; e essa palavra pode conter e encerrar, em

    germe, tudo o que no est fora dela (ambas as citaes: Saussure, 2002, p. 69).

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 251

    referncia e linguagem potica

    Vimos aqui uma propriedade do arbitrrio que ainda no havia sido

    adequadamente ressaltada: o sentido, que parte de um signo, de uma forma-sentido,

    uma vez que se constitui por tudo que os outros sentidos no so, mais do que se

    espera de seu sentido prprio; a ideia mesma de sentido prprio uma falcia: essa palavra pode conter e encerrar, em germe, tudo o que no est fora dela, ou seja, um signo pode conter e encerrar tudo que os outros signos no contm ou encerram.

    A questo da referncia entra aqui como um fator determinante: a significao

    de um signo no est de forma alguma ligada ao mundo objetivo. Quando se fala em

    signos, no se fala em referncia ao real, coisa:

    Enfim, no h necessidade de dizer que a diferena dos termos, que faz o

    sistema de uma lngua, no corresponde em parte alguma, mesmo na lngua

    mais perfeita, s relaes verdadeiras entre as coisas; e que, por conseguinte,

    no h nenhuma razo para esperar que os termos se apliquem

    completamente, ou mesmo incompletamente, a objetos definidos, materiais

    ou no. (Saussure, 2002, p.70).

    3.3. Segunda pausa para pensar

    Benveniste, Normand e Bouquet afirmam que a ligao arbitrria que une pela

    primeira vez na lngua significado e significante no uma novidade trazida por Saussure, mas o lugar comum do convencionalismo. Segundo Bouquet, a novidade

    justamente o arbitrrio do valor aquilo que, com outras palavras e com outros objetivos, Benveniste tambm defendia: uma vez unidos na lngua, significado e

    significante possuem uma ligao necessria e so determinados por sua relao com

    todos os significados e significantes que fazem parte desse sistema de valores que a

    lngua.

    Nos Escritos, encontramos material para compreender melhor esse arbitrrio do

    signo lingustico que no apenas o arbitrrio do convencionalismo, mas que est

    radicalmente ligado noo de valor. Uma vez unidos pela lngua, significante e

    significado, a forma-sentido, so necessariamente ligados entre si e tanto forma e

    sentido quanto o signo global s se determinam negativamente. Nessa determinao, a

    significao que os constitui no pode ser cerceada. Nada a limita a no ser o que no

    est dentro desse signo, isto , o que est fora, o que pertence ao universo de outro signo. Tal limitao no se d em relao referncia, mas em relao ao sistema

    lingustico que se auto-regula: se um signo desaparece, automaticamente, os outros

    signos se rearranjam para dar conta dessa significao rf.

    4. SIGNO VS PALAVRA POTICA: O CONCEITO DE SIGNO LINGUSTICO

    E A QUESTO DA REFERNCIA EM BAUDELAIRE

    Parti de uma crtica de Benveniste ao arbitrrio do signo tal como esse conceito

    formulado no texto do Curso de Lingstica Geral para refletir sobre o arbitrrio e,

    consequentemente, sobre o signo lingustico que se constri no pensamento

    benvenisteano a partir de suas reflexes sobre o signo lingustico de Saussure. Durante o

    percurso, abordei desde o conceito de arbitrrio apresentado no CLG e da crtica de

    Benveniste at comentrios produzidos por grandes leitores desses dois mestres. A

  • 252 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    seguir, enfatizei algumas caractersticas do signo lingustico que podem ser estudadas a

    partir dos Escritos, nomeadamente: a negao de sentido figurado e a negatividade da sinonmia. Desde o incio do texto, deixei claro que esse trajeto de reflexo nos traria

    aos manuscritos, recentemente publicados, das notas de Benveniste para um artigo,

    eternamente indito, sobre a potica de Baudelaire.

    A partir desse momento, buscarei apresentar alguns traos da concepo de

    signo lingustico adjacente s notas de Baudelaire. Em prol da objetividade e por

    questes de espao, me restringirei ao pacote 22 das notas manuscritas14

    . Esse pacote

    contm textos de maior flego e desenvolvimento, que facilitam ao leitor compreender a

    reflexo que se desenvolvia naquele momento.

    Ressaltarei, principalmente, dois aspectos importantes: a relao signo/palavra

    potica e o papel da referncia na concepo de signo que Benveniste frequentemente

    ope palavra potica (mot potique em uma traduo livre, uma vez que essa obra

    ainda no se encontra publicada em portugus). Ao longo desse percurso, procurarei

    problematizar essa oposio luz tanto de excertos de textos do prprio Benveniste selecionados em diversos textos dos PLG publicados antes e aps a produo das notas

    de Baudelaire15

    quanto dos Escritos de Saussure.

    4.1. Signo lingustico

    O conceito de signo lingustico que se delineia em Baudelaire no exatamente

    o mesmo que se ver em outros textos de Benveniste. A referncia aqui aparece de

    forma marcante e decisiva para que o autor oponha o signo, que considera pertencente

    ao universo da linguagem ordinria, palavra, dita pertencente ao universo da

    linguagem potica. Essa diviso, radical em alguns momentos, oscila no decorrer das

    notas. Podem-se encontrar momentos em que palavras (mots) e signos (signes) esto to

    prximos que parecem constituir a mesma entidade, como em: Comment obtient-il cette dnotation dmotion? / Par agencements particuliers de mots, qui restent des / signes, mais valoriss neuf par des alliances nouvelles (BENVENISTE, 2011, (22, fo 2 /f

    o 254)). Nesse trecho, me parece, mais importante do que agenciamento e a ideia

    de sintagmatizao presente em alliances nouvelles 16 o que agenciado: palavras, que permanecem signos. O que pode significar essa relao? Que a palavra potica permanece signo porque no tem referncia? Provavelmente no, uma vez que, assim

    considerada, ela no deixaria de fazer parte do semitico, nunca sendo alada ao

    semntico.17

    A no ser que se trate de outro semntico: () la langue / potique et sa smantique propre (BENVENISTE, 2011, (22, fo 15 /fo 267)).

    14

    Trata-se, ao todo, de 23 pacotes que contm nmero variado de notas. 15

    Nesse artigo, no focalizarei o posicionamento cronolgico de Baudelaire no pensamento

    benvenisteano, mas o contraste entre a concepo de signo nessa obra em relao aos textos publicados

    no PLG. Para uma viso que aborda a evoluo histrica do pensamento de Benveniste tendo Baudelaire

    como um marco temporal, aguardar novo ensaio que privilegiar esse enfoque. 16

    Os conceitos de agenciamento e de sintagmatizao mostram-se de extrema relevncia nas notas de

    Baudelaire. Infelizmente, por questes de espao e para no fugir temtica desse artigo, no tratarei

    deles nesse momento. 17

    Explico: em A forma e o sentido na linguagem, Benveniste descreve os dois domnios do sentido e da forma: o semitico e o semntico. No primeiro, a unidade o signo; no ltimo, a palavra. Em

    Semiologia da lngua, ao delimitar semitico e semntico, logo aps atribuir-lhes suas unidades,

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 253

    referncia e linguagem potica

    Essa iluso a de que signo e palavra possam constituir uma unidade nica totalmente desfeita ao longo das notas do pacote. Em Baudelaire, uma questo crucial

    a relao com o real. Para Benveniste, a poesia no conhece limites em seu

    comportamento a respeito do mundo real. O poeta, que maneja o universo e se dirige a todos e a ningum, se permite qualquer poder:

    Appeler une femme reine des adores est / lexemple de ce que le pote peut se permettre, ds / lors qui ni reine ni adorer ne sont pris dans /le sens de

    lusage ordinaire . (BENVENISTE, 2011, (22, fo 3 e 4 /fo 255 e 256) (grifo meu)).

    Parece-me impossvel no retornar aos Escritos de Saussure e negao da

    linguagem figurada quando leio no so tomados no sentido da linguagem ordinria. Para ns, que temos o privilgio de ler ambos os textos, ainda que em uma cronologia

    quase surreal o de Saussure foi escrito mais de 50 anos antes das notas de Benveniste, e ainda correndo o risco de sermos criticados por anacrnicos, muito difcil no contrastar o posicionamento diferente, at oposto, de ambos em relao a um

    tema muito semelhante: que sentidos so atribudos ao signo? Benveniste falava em

    linguagem potica e, ao faz-lo, afirmava que as palavras nesse discurso no possuem o

    mesmo sentido que na linguagem ordinria, ainda que permanecessem signo. Saussure, ao falar de signos e ao negar a sinonmia, trazia um exemplo da literatura

    (SAUSSURE, 2002, p. 68) e afirmava que o que se chama de sentido figurado, na

    verdade, no existe, uma vez que um signo tudo aquilo que os outros signos no so,

    portanto comporta em si toda a possibilidade de sentido que no est fora de si.

    Benveniste vai longe em sua separao entre linguagem potica e linguagem

    ordinria ou cotidiana: Le pote refuse mme / aux mots valeur smantique qui / les accrdite dans le langage quotidien (BENVENISTE, 2011, (22, fo 14 /fo 266)). irresistvel a tentao de nos perguntarmos como seria a reflexo benvenisteana a

    respeito do que Saussure disse sobre sentido figurado. Se, por um lado, Benveniste, ao

    separar de maneira to radical linguagem potica e linguagem ordinria Quand on dit () que le pote / emploie les mots du langage ordinaire, on succombe / une fallacie. Ce ne sont pas les mmes mots. (BENVENISTE, 2011, (22, fo 22 /fo 274)) fecha as portas para que se apliquem aqui quaisquer conceitos desenvolvidos no estudo

    dessa linguagem, por outro, ele prprio continua a aplic-los, ora negando-os ora

    simplesmente valendo-se deles.

    De qualquer forma, me parece que h algo no resolvido aqui: se o poeta nega s palavras o valor que lhes credita a linguagem cotidiana, o que o faz escolher, agenciar, certos signos em detrimento de outros? Para Benveniste, a resposta est em:

    les mots sont l comme un / objet un soi () ; ont les contemple / pour eux-mmes (BENVENISTE, 2011, (22, f

    o 52 /f

    o 304)). Para ele, em poesia, a matria lingustica

    (forma) e a significao (sentido) das palavras se identificam: Il faut que le son suggre / ou imite le sens, mais le sens pris comme / suggestion motive non comme signifie

    lexical. (BENVENISTE, 2011, (22, fo 4 /fo 256)):

    Cest bien le plus grande erreur en cette matire / que de parler du sens dun pome. Le / sens nest pas la mme valeur en posie / que dans le

    Benveniste coloca em pauta a referncia: o semntico toma necessariamente a seu encargo o conjunto dos referentes (BENVENISTE,2006, p.65).

  • 254 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    langage ordinaire. Il faut poser ceci au dpart mme de toute tude sur le

    langage potique : 1) la dichotomie forme : sens / a ici encore moins de sens

    que partout ailleurs. / 2) le sens en posie est intrieur a la forme . (BENVENISTE, 2011, (22, f

    o 4 /f

    o 256)).

    Na linguagem potica, portanto, forma e sentido so o mesmo, a sonoridade do

    significante evoca, insinua significados que no so necessariamente aqueles do

    universo semitico da linguagem ordinria. Ser? Se fosse a sonoridade apenas que

    invocasse o sentido, como ficaria a sintagmatizao? Que sentido se construiria a partir

    de palavras que no tivessem um significado, uma base semitica em que se apoiar? H

    uma contradio aparente: ora palavras, que permanecem signos ora palavras que so um objeto em si.

    Ao mesmo tempo em que no abandona conceitos como semitico e semntico,

    Benveniste traa uma ruptura profunda entre linguagem potica e linguagem ordinria:

    Nous liminons de la posie le concept de signe / que nous jugeons entirement inadquat, puisque nous / avons rejet la notion de rfrent et de dnotation. (BENVENISTE, 2011, (22, f

    o 25 /f

    o 277)) e mais adiante, na mesma nota: Le mot, de

    signe, / devient symbole. 18

    4.2. A questo da referncia

    Na primeira nota do pacote 22, Benveniste afirma que, enquanto na lngua

    ordinria, a denotao a referncia realidade do mundo, a lngua potica apenas imita a denotao, mas remete a uma realidade inteiramente fictcia, em outras palavras, que a linguagem potica no tem denotao

    19. Na nota seguinte, o linguista

    afirma que a realidade dada como o estado emocional do poeta que suscita o discurso

    potico. Referncia e denotao so conceitos prximos em Baudelaire, ambos

    relacionam-se ao exterior, que negado no discurso potico:

    En posie lobjet dont parle le pote nest / pas comme dans le langage ordinaire, extrieur au langage, et rfr par le langage :

    il est intrieur au langage et cre par le langage, par le choix et lalliance des mots.

    Nayant pas de rfrence, le langage potique nest jamais rptable, il ne / peut passer identique dans plusieurs / ni tre assume par plusieurs

    auteurs, il est tout entier dans ce pome, dans ce vers, /instance chaque fois

    unique. (BENVENISTE, 2011, (22, fo 8 e 9 /f

    o 260 e 261)).

    Ao leitor de Benveniste, no difcil relacionar tais afirmaes a outras que lhe

    so conhecidas. Seja de um texto de 1965: As lnguas no nos oferecem de fato seno construes diversas do real (BENVENISTE, 2006, p.70) ou de 1966: Se o sentido da frase a ideia que ela exprime, a referncia da frase o estado de coisas que a provoca, a situao de discurso ou de fato a que ela se reporta e que ns no podemos

    jamais prever ou fixar (BENVENISTE, 2006, p. 231). Que ns no podemos jamais

    18

    Uma frgil tentativa de insero de uma nova terminologia parece ter sido uma resposta possvel s

    contradies impostas pelo uso de signo e smbolo. A ideia de cone no lugar de smbolo ou de signo

    poderia ter sido uma maneira de procurar resolver essa questo. Infelizmente, no teremos oportunidade

    de abordar essa problemtica aqui. 19

    denotao aqui remete designao da lgica (ver BENVENISTE, 2006, p. 223).

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 255

    referncia e linguagem potica

    prever ou fixar: estamos aqui to distantes do irrepetvel da linguagem potica? O externo, o real, a coisa, a realidade objetiva: nada disso indito nas reflexes

    benvenisteanas. Qual o lugar que aquilo que est fora da lngua tem ocupado na

    reflexo benvenisteana nos textos dos PLG? Teramos a, certamente, tema para um

    longo e interessante estudo. Contentemo-nos aqui em voltar ao texto Natureza do signo lingustico, o que nos dizia Benveniste sobre a coisa nesse texto? Que ela no faz parte do signo. Que o signo arbitrrio em relao a ela, ao mundo. Onde entra o exterior,

    ento? No semntico, universo cuja unidade a palavra. atravs da referncia que o

    mundo objetivo entra no discurso? No exatamente. Em O aparelho formal da enunciao, ltimo texto publicado de Benveniste em vida, veremos que o mundo objetivo, como tal, no entra no discurso. O discurso subjetividade, pois tudo que se

    instaura na e pela lngua no universo do discurso o faz atravs do sujeito que [se]

    enuncia e que centro referencial de toda enunciao. No apenas tempo e espao so

    categorias cuja referncia s faz sentido a partir do eu, mas tudo que eu enuncia. O

    discurso, portanto o semntico, subjetivo. Assim, ainda que uma discusso

    cronolgica no seja o objetivo desse artigo, cabe-nos ao menos assinalar a

    possibilidade de no tomarmos tudo o que se afirma em Baudelaire como relativo

    linguagem potica strictu senso. Quando lemos que

    Le discours de la langue ordinaire trouve son / sens hors de lui-mme parce

    quil met en / relation deux partenaires et parce quil renvoie / au monde extrieur .

    Le discours potique trouve son sens en lui-mme/ parce que le sens

    renvoie a la forme potique. (BENVENISTE, 2011, (22, fo 6 /f

    o 258)).

    temos que considerar a hiptese de que aquilo que se diz aqui sobre linguagem

    potica pode ter servido a Benveniste como uma etapa na reflexo que culminar no que

    se v em seus textos posteriores a 1967. Somos forados a nos questionarmos sobre a

    possibilidade de que a sui-referencialidade que se v nas reflexes benvenisteanas dos

    textos do PLG II esteja em relao direta com Le discours potique trouve son sens en lui-mme/ parce que le sens renvoie a la forme potique.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    Quase no centenrio da morte de Saussure, o signo lingustico ainda constitui um

    conceito sobre o qual possvel gerar polmica. Mais de 40 anos aps a publicao do

    nmero de Langage em que deveria ser veiculado o artigo sobre a potica de Baudelaire

    em que Benveniste trabalhava, o pensamento do linguista da enunciao ainda capaz

    de trazer uma nova luz a reflexes a respeito de temas sobre os quais tanto j foi dito

    como lngua, linguagem e linguagem potica.

    Mesmo assim, em Benveniste, tudo est sempre comeando. A lingustica da

    enunciao um campo que no termina nunca de se constituir, seja em interface com

    reas como a psicanlise, a sade ou o trabalho20

    ou retornando a um campo que sempre

    foi caro lingustica como a literatura, sempre possvel retornar aos textos

    benvenisteanos e procurar maneiras diferentes de elucidar velhas questes ou de

    procurar esclarecer questes que esto sempre surgindo entre os leitores de sua obra.

    20

    Ver Flores e Teixeira (2005).

  • 256 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    A edio de Baudelaire colabora tanto para trazer luz do dia textos inditos de

    Benveniste quanto para que retornemos aos seus textos j publicados com um novo

    olhar, com novos questionamentos e novas possibilidades de resposta.

    Uma nova problemtica, que procurei abordar ainda de maneira incipiente nesse

    ensaio, a questo proposta a partir de Baudelaire da relao da palavra potica com o

    conceito de signo. Nas notas de Baudelaire, principalmente nas notas contidas no pacote

    22, Benveniste traa uma separao total entre signo e palavra potica. Entretanto,

    frequentemente os critrios apontados para tal rompimento no suportam a crtica que

    pode ser construda com textos do prprio Benveniste, o que aponta para a fragilidade

    de tal posicionamento ou, antes, para a efemeridade do que se v nas notas. Tal

    fugacidade aponta para o carter de processo que as notas certamente tm: ainda que

    algumas apresentem um carter mais acabado, no estamos nunca frente a um texto

    pronto para divulgao pblica. O que teria impedido Benveniste de concluir seu artigo

    e de public-lo na Langage em 1968? Provavelmente nunca saberemos, mas podemos

    especular: talvez a reflexo iniciada nunca tenha sido finalizada? Talvez as ideias que

    comeam a se delinear nas notas s tenham sido totalmente desenvolvidas mais tarde?

    Nunca saberemos em que medida essas ideias elaboradas a partir da reflexo sobre

    linguagem potica influenciarem o que se v sobre enunciao em Semiologia da lngua ou em Aparelho formal da enunciao, por exemplo.

    Outro ponto sobre o qual apenas podemos especular a relao entre o que

    Saussure postula nos Escritos sobre a no existncia de um sentido figurado e o

    rompimento entre signo e palavra potica pregado por Benveniste. Se, por um lado,

    podemos nos valer do fato de Benveniste ser um discpulo continuador/ultrapassador

    das ideias saussureanas para pleitear a validade de relacionarmos o pensamento de um e

    de outro, por outro lado, nos vemos em uma posio, no mnimo, delicada ao contrastar

    manuscritos publicados quando ambos j no estavam mais vivos.

    Esse artigo no teve ambio alm de apresentar questes importantes que

    podem e devem ser colocadas a partir do acesso recente a textos que expressam o

    pensamento benvenisteano, amplas perspectivas se abrem...

    REFERNCIAS

    BENVENISTE, mile. Natureza do signo lingustico in Problemas de Lingstica

    Geral I. Campinas: Pontes, 2005. p. 53-59.

    _____. Estrutura das relaes de pessoa no verbo in Problemas de Lingstica Geral I.

    Campinas: Pontes, 2005. p. 247-259.

    _____. Esta linguagem que faz a histria in Problemas de Lingstica Geral II.

    Campinas: Pontes, 2006. p. 29-40.

    _____. Semiologia da lngua in Problemas de Lingstica Geral II. Campinas: Pontes,

    2006. p. 43-67.

    _____. O aparelho formal da enunciao in Problemas de Lingstica Geral II.

    Campinas: Pontes, 2006. p. 81-90.

    _____. A forma e o sentido na linguagem in Problemas de Lingstica Geral II.

    Campinas: Pontes, 2006. p. 220-242.

    _____. Baudelaire. Limoges: Lambert-Lucas, 2011.

    _____. Dernires Leons. Paris: Seuil/ Gallimard, 2012.

  • Saussure e Benveniste: signo lingustico, 257

    referncia e linguagem potica

    BOUQUET, Simon. Benveniste et la reprsentation du sens: de larbitraire du signe lobjet extra-linguistique in Benveniste vingt ans aprs. Linx, 1997. FLORES, Valdir. TEIXEIRA, Marlene. Introduo Lingstica da Enunciao. So

    Paulo: Contexto, 2005.

    FLORES, Valdir. BARBISAN, Leci. FINATTO, Maria J. B. TEIXEIRA, Marlene.

    Dicionrio de Lingstica da Enunciao. So Paulo: Contexto, 2009.

    GADET, Franoise. Le signe in Saussure: une science de la langue. 3a ed. Paris:

    Presses Universitaies de France, 1996. p. 3-48.

    LAPLANTINE, Chlo. La potique dmile Benveniste In: mile Benveniste: Pour vivre langage. Mont-de-Laval: LAtelier du Grand Ttras, 2009. MILNER, jean-Claude. Benveniste I in Le priple structural. Verdier/poche, 2008.

    NORMAND, Claudine. Saussure-Benveniste in Convite lingstica. So Paulo:

    Contexto, 2009. p.197-203.

    SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingstica geral. So Paulo: Cultrix, 2004.

    _____. Escritos de lingstica geral. So Paulo: Cultrix, 2002.

    Recebido em 19/04/2012

    Aceito em 20/06/2012

    Verso revisada recebida em 21/06/2012

    Publicado em 30/06/2012

  • 258 CADERNOS DO IL, n. 44, junho de 2012 EISSN:2236-6385

    SAUSSURE AND BENVENISTE: LINGUISTIC SIGN,

    REFERENCE AND POETIC LANGUAGE

    SAUSSURE ET BENVENISTE: SIGNE LINGUISTIQUE,

    RFRENCE ET LANGAGE POTIQUE

    ABSTRACT: The concept of linguistic sign since 1939s critic on the way it had been proposed by Saussure in Course in General Linguistics (CGL) is a major issue in mile Benveniste's work and has

    been approached by important scholars on Saussure and Benveniste such as Claudine Normand and

    Simon Bouquet. Recently published manuscripts in which Enunciation Theory creator analyzes

    Baudelaire's poetics bring new life to a debate that has been going on for more than seven decades. This

    paper aims at going through Benveniste's thinking and exposes the evolution of the concept of linguistic

    sign within his oeuvre relating it to Saussure's thinking through CGL and within Writings on General

    Linguistics.

    KEYWORDS: linguistic sign; enunciation; poetic language: reference.

    RSUM : Le concept de signe linguistique, depuis la critique de 1939 de la faon comme il a t

    postul par Saussure du Cours de linguistique gnrale (CLG), a constitu un point haut dans la pense

    d'mile Benveniste et il a dj t abord par de grands lecteurs de Saussure et du linguiste franais,

    linstar de Claudine Normand et Simon Bouquet. Les manuscrits rcemment publis dans lequel le crateur de la Thorie de l'nonciation analyse la potique de Baudelaire apporte une nouvelle vie

    cette discussion qui dure dj plus de sept dcennies. Cet article cherche parcourir la pense

    benvenistienne et montrer l'volution du concept de signe linguistique dans son uvre en la rapportant la pense saussurienne dans le CLG et dans les crits de linguistique gnrale.

    MOTS-CLS : signe linguistique ; nonciation ; langage potique ; rfrence.