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5/11/2018 ScanDoc0015-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/scan-doc0015 1/23 Estamos habituados a falar de comunidade como sinô- nimo de sociedade, ou de outros agrupamentos humanos. É . comum, por exemplo, ouvirmos a expressão "comunidade in- ternacional" para designar o conjunto das nações existentes no mundo. Também se utiliza a expressão para fazer referência à população de uma cidade, de um bairro ou de uma rua. Para os sociólogos, contudo, a palavra comunidade não designa a mesma coisa que sociedade. Na verdade, como vere- mos neste capítulo, muitos cientistas sociais consideram comu- nidades apenas determinados agrupamentos humanos de base territorial limitada e nos quais predominam relações pessoais de parentesco ou de vizinhança.

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Estam os habituados a falar de com unidade com o sinô-nim o de sociedade, ou de outros agrupam entos hum anos. É .

com um , por exem plo, ouvirm os a expressão "com unidade in-tern ac io na l" p ara d esig na r o c on ju nto d as n aç ões ex isten tes n om un do . T am bém se u tiliza a e xp re ssã o p ara fa ze r referê ncia àpopulação de um a cidade, de um bairro ou de um a rua.

P ara os soció logo s, contudo , a palavra com un ida de nãodesign a a m esm a coisa qu e sociedade. N a verda de, com o vere-mo s n es te c ap ítu lo , m u ito s c ie ntis ta s so cia is c on sid er am c omu -

nidades apenas d eterm in ados agru pam en tos hum ano s de b aseterr ito ria l l imi tada e n os q ua is p re dom in am r ela çõ es p es so aisd e p are nte sco o u d e vizin ha nç a.

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CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

Observe e responda:

1. Que tipo de grupo social é representado neste quadro de Bruegel? Em sua opinião, é um

grupo urbano ou um grupo rural? Moderno ou tradicional?

2. Que atividades está desenvolvendo o grupo aqui representado? Corno você percebeu isso?

3. Existem atividades semelhantes atualmente no Brasil? Quais são elas?

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1 I Viver em comunidade

Se pudesse escolher, onde você gostaria de vi-

ver: em uma aldeia de índios, em uma comunidade

de pescadores à beira-mar, em uma vila distante

encravada nas montanhas, ou em uma grande ci-

dade, como Porto Alegre, São Paulo, Paris, Nova

York, Buenos Aires, Fortaleza, Rio de Janeiro?

A vida nas grandes cidades tem, sem dúvida,

muitas vantagens. Mas, de vez em quando, muitos

de seus habitantes se cansam do ritmo vertigi-

noso que as caracteriza, da poluição, do excessode trabalho, da falta de tempo para pensar em si

mesmos, da violência urbana, do trânsito caótico,

da solidão, da ausência de solidariedade entre as

pessoas, etc. Em momentos como esses, algumas

dessas pessoas sonham com a volta ao campo, a

uma vida simples e calma, marcada pela afetivida-

de e por relações de solidariedade entre os habi-

tantes da comunidade.

CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

Durante os anos 1960, setores da juventude

nos Estados Unidos se recusavam a viver na so-

ciedade industrial capitalista. Insatisfeitos com

o consumismo desenfreado e a vida nas grandes

cidades, muitos desses jovens - conhecidos como

hippies (veja o capítulo 10) - se transferiram para

o campo, onde fundaram comunidades baseadas

no princípio "paz e amor". Havia nessa opção uma

espécie de nostalgia das antigas rcomunidades

camponesas, que eram representadas na imagina-ção dos jovens hippies como a solução ideal para

os problemas vividos na sociedade industrial.

A maior parte dessas comunidades teve vida

breve e muitos dos jovens hippies que abandonaram

as cidades acabaram se reintegrando à sociedade

industrial capitalista. Entretanto, a experiência

mostra bem algumas das diferenças que separam

os conceitos de sociedade e de comunidade.

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CAP ÍTULO 5 O rg an iza ção so cial e c idadania

~ . ... -

Segundo diversos estudiosos, só sepode falar de comunidade quando se estádiante de grupos sociais ligados por laçosafetivos - e não por vínculos impessoais,como ocorre nas grandes cidades. Ora, issosó é possível em espaços de pequenas di-mensões, nos quais as relações de paren-

tesco, amizade e vizinhança predominamsobre todas as outras. Nesses casos, a pro-ximidade física entre as pessoas que a vidaem pequenas comunidades proporcionapermite a formação de vínculos signifi-cativos entre elas, caracterizados por ummaior sentimento de solidariedade do queos que se verificam nas grandes cidades.

C om o id en tificar um acomunidade?

Independentemente das variações entre elas,as comunidades têm algumas características emcomum que servem para identificá-las corno umtipo específico de organização social:• nitide z - são os limites territoriais da comuni-

dade, ou seja, onde ela começa e onde terminado ponto de vista espacial-geográfico;

• pequenez - a comunidade é urna unidade de

pequenas dimensões, limitando-se quase sem-pre a urna aldeia ou conjunto de aldeias;

• homogeneidade - as atividades desenvolvidaspor pessoas de mesmo sexo e faixa de idade,assim corno suas expectativas, são muito pare-cidas entre si; o modo de vida de urna geraçãoé semelhante ao da precedente;

• relações pessoa is (conta tos prim ários) - emurna comunidade, as pessoas se relacionam pormeio de vínculos pessoais, diretos e geralmentede caráter afetivo ou emocional. Predominam,portanto, os contatos primários sobre os se-cundários (veja o capítulo 3).

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Assim, os limites territoriais e o cará-ter primário dos contatos sociais são doisaspectos a serem levados em conta pelo so-ciólogo para identificar, descrever e analisaruma comunidade.

Vamos pensar?

1. A partir desse conceito sociológico decomunidade, pense em exemplos decomunidades no Brasil atual.

2. Vocêvive ou já viveu em algumambiente que se possa caracterizarcorno comunidade?

Um novo tipo de "comunidade"?Recentemente, os meios de comunicação pas-

saram a utilizar o conceito de comunidade de for-ma distanciada de seu siqnificado original. Cornovimos nos capítulos anteriores, assiste-se hojenas grandes cidades de todo o mundo à formaçãode tribos urbanas, corno os pun ks, os surfistas, osrappers, as gangues de periferia. São microgruposgeralmente ligados por interesses momentâneos.

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Ao lado deles surgem também grupos forma-

dos pelo contato virtual proporcionado por redesde computadores como a internet. A esses gru-

CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

pos tem-se aplicado - de uma forma talvez pou-

co apropriada - a expressão c om u nid ad es v ir tu ais(veja o boxe a seguir).

COMUNIDADES DE MENTIRA NO ORKUT

L.ra C roft, quem diria, casou-se com Sid V icious, o

v oca lis ta d a b an da punk S ex P is to ls, e tev e cin co

filhos. S id morreu, mas não em 1979, e sim dia desses.

C laro, tudo fake. A pà lavra de origem inglesa, que

significa falso, é usada com o nom e da m ais nova brin-

c ad eir a d o site de relacionamentos Orkut. criar falsos

peifis que ganham vida própria, casam -se e fazem tudo

o que a im agina~ ão deixar. A heroína dos games e o

punk estão entre os m ilhares de peifis que latam com u-

nidades com m ais de 200 mil participantes.

O m ovim ento ganhou força há um ano, quando o

site i ns ta lou d ispo si ti vo que permit e v er if ic ar quem b isbi -

lh oto u o p eifil a lh eio . M u ito s cria ram id en tid ad es fa lsa s

p ar a c on tin ua r e sP ia nd o. A criatividade foi tão grande

q ue , em c omun id ad es c omo Eu Tenho um Perfil Fake,s ur gi ram c on cu rs os p ar a s ab er q uem e ra mai s c ria ti vo .

D igite a palavra fake no sistema de buscas do

Orkut e aparecerão pelo m enos m il com unidades, en-

tre a s q ua is Balada Fake, Praia Fake e Shopping

West Fake, p on to s d e e nc on tr o d es se s p ei fis . " É como

se fo ss e um Second Life p obr e, on de n ing uém comp ra

nada, só faz am izades e vive histórias engraçadas",

brinca a operadora de telem arketing Patrícia B orqes,

de 27 anos, de R ibeirão P reto, interior do E stado, dona

de dois peifis fam osos: Iara C roft e F ractal. 'Todo dia

tenho um m onte de am igos para adicionar".

Patrícia é raridade no m undo fake do Orkut,

onde a m aioria é adolescente. H á, inclusive, um a com u-

nidade própria para quem tem m ais de 25 a no s e b rin ca

d e v iv er p er so na ge ns n o site. "A L ara anda m eio desati-

vada. E la s e e nch eu d efilh os e a s ua v ida a ca bo u fica nd o

muito c ha ta ", re cla ma a op era do ra.

Explique-se: é possível casar num a comunidade

chamada Agência Matrimonial Fake e adotar f ilhos ,

todos fakes. Par a v iv er o p er so na gem d ir eit in ho , é p re cis o

cr iar os reben tos , que passam o dia fazendo b irra, es tr ipu liaso u m an dan do r ec ado s m alcr ia do s pa ra as m ãe s fakes.

"D e repente você fala eu te am o para um a pessoa

que nunca viu na vida porque não é você, é o seu [ake",

diz a estudante Jéssica Sim ões de Toledo,· de 15 anos,

que m ora em P erdizes, zona oeste de S ão P aulo. Jéssica

criou a Pedreira, com foto da cantora mexicana M ia,

d a b an da Rebelde.

Um a ú nica celebridade pode ter várias réplicas

fake, ca da q ua l bOm uma v id a d ife re nte . H á c omunid a-

de s só para fakes do Rebelde ou dos atores do High

school musical, produção da D isney de grande su-

cesso entre adolescentes. Por outro lado, há grupos de

p esso as cu ja o cu pa çã o é p erse gu ir fakes desse gênero.

A lguns são assassinados virtualm ente. P elas regras da

brincadeira, um a vez m orto, só é possível retornar ao

mundo fake com o utr o p eifil. r . .]F alsidade é garantia de am izade fácil no Orkut,

segundo a estudante K atia R ibeiro, de 17 anos [ .. .] .

"O problem a é que vicia. P asso o dia no com putador. rr

Exis tem diversas comunidades fake. há moté is fake,

sorveterias fake e cinemas fake. A Balada Fake é , atual-

men te , a mai or c omun id ad e, c om 256 mil participantes.

Adaptado de: DURAN, Sérgio. O mundo paralelo de quem

tem perfil falso no Orkut. O E sta do d e S . P au lo , 1 9.8 .07 .

J ov en s in terag em p or m eio d e co mp uta do res e m

la n h ou se de C u ritib a, P aran á, e m n ove mb ro d e 2 00 4.

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CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

Nessas novas "comunidades" ocorre a inver-

são do processo de formação dos laços de afinida-de social. Nas relações sociais tradicionais, quan-

do conhecemos uma pessoa pela primeira vez, o

encontro se dá, fisicamente, no "mundo real". A

partir desse contato inicial, e à medida que vamos

aprofundando o conhecimento, trocamos informa-

ções, identificamos pontos de vista comuns, cria-

mos laços de afinidade.

Nas comunidades virtuais, cuja comunicação

é eletrônica, ocorre um processo inverso. As pri-

meiras interações são realizadas a partir de inte-

resses comuns, previamente determinados. O en-contro pessoal poderá se realizar no futuro, mas

ele não é fundamental para o funcionamento da

interatividade. Isso se torna evidente nos grupos

de conversação da internet, quando pessoas en-

tram em contato para discutir futebol, filosofia,

música e outros temas, sem nunca se terem visto

ou pretenderem se encontrar.

As tribos eletrônicas, que se formam no ci-

berespaço, são expoentes da era tecnológica, que

está promovendo a união entre a informática eas novas formas de sociabilidade pós-modernas. A

cibercultura é um fenômeno recente, em expan-

são contínua, e, como tal, sem regras ou limites

ainda definidos, funcionando basicamente a partir

de uma comunicação espontânea, sem que se sai-

ba quem é e onde está o outro. A presença física

deixa de ser, assim, uma das precondições para a

realização do contato.

A com unidade em crise

Com o avanço da industrialização e da urba-nização, as comunidades tradicionais foram per-

dendo seu poder de integração. À medida que isso

--2 I Viver em sociedade

Como vimos, os sociólogos costumam fazer

distinção entre sociedade e comunidade. Em sen-

tido amplo, a expressão sociedade refere-se à tota-lidade das relações sociais entre os seres humanos.

Assim, pode-se falar genericamente em "socieda-

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acontecia, elas ainda se mantinham unidas, mais

por uma necessidade imposta socialmente - quan-do não por coerção - do que por aquilo que seus

integrantes tinham em comum. Muitos compor-

tamentos foram mantidos, ainda que perdessem

suas funções.

É o que acontece com a família, que para mui-

tos está em franca decadência. Trata-se, até certo

ponto, de um equívoco. É verdade que um número

substancial de casamentos tem terminado em di-

vórcio, principalmente nos centros urbanos. Mas a

instituição familiar passou por crises também em

épocas anteriores.Temos exemplos disso em obras de literatura

do século XIX, que retratam famílias internamen-

te desfeitas, mas que permaneciam unidas para

manter a aparência imposta pela sociedade, ape-

nas para representar um papel social. Apegar-se àfamília era uma necessidade vital; ser repudiado

por ela, uma catástrofe.

Atualmente, a ligação familiar é, de forma

crescente, uma associação voluntária, afetiva e de

respeito mútuo, sobre a qual pesa cada vez menosa imposição social. Antes, um dos sustentáculos

da família burguesa era a submissão da mulher ao

marido, que não raras vezes mantinha uma aman-

te. Hoje, como resultado dos movimentos femi-

nistas e da conquista de direitos pelas mulheres,

a base de sustentação da família passou a ser a

igualdade dos cônjuges perante a lei.

Entretanto, a mobilidade geográfica e ocupa-

cional tende a retirar as pessoas do lugar e da

classe social a que pertencem, ou da cultura em

que nasceram, da qual faziam parte seus pais, ir-mãos e outros familiares. Atua, assim, no sentido

de desagregar a unidade familiar.

des" indígenas ou camponesas. A rigor, porém, do

ponto de vista sociológico, sociedade seria uma

associação humana caracterizada por relações ba-

seadas em convenções, em vinculos impessoais e

não em laços afetivos.

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CAP ÍTULO5 O rg an iza ção s ocial e c id ad an ia

Segundo o sociólogo alemão Ferdinand Tõn-

nies (1855-1936), enquanto a comunidade está

ligada internamente por uma vontade coletiva na-

tural, na sociedade predomina a vontade racional,

deliberada, proposital.

O s co nc eito s d e com un id ad ee d e socied ad e

Para Ferdinand Tõnn ie s . a comunidade

(Gemeinschajt, em alemão) é definida pelo ato de

"viver junto, de modo íntimo, privado e exclusi-

vo", como na família, nos grupos de parentesco,

na vizinhança e na aldeia camponesa. Já socie-

dade (Gesellschajt) é caracterizada por ele como

"vida pública", como uma associação na qual se

ingressa consciente e deliberadamente.

Nas comunidades, os indivíduos estão envol-vidos como pessoas completas, que podem satisfa-

zer todos os seus objetivos na vida em grupo. Nas

sociedades, os indivíduos também se encontram

envolvidos entre si; mas a busca da realização de

certos fins comuns é específica e parcial.

Uma comunidade é unida por um acordo de

sentimentos ou emoções entre pessoas, ao passo

que a sociedade é unida por um acordo racional de

interesses, ou seja, por regras e convenções racio-

nalmente estabelecidas.

Téinnies elaborou seu conceito de comunidade

a partir da observação das sociedades camponesas

europeias pré-modernas. Essas sociedades comu-

nitárias estavam unidas por uma densa rede de

relações pessoais baseadas em laços de parentesco

e no contato social direto. As normas de convi-

vência não eram escritas e, por meio delas, os in-

divíduos estavam ligados numa teia de completainterdependência, que envolvia todos os aspectos

da vida social: a família, o trabalho, a religião, as

atividades de lazer, etc.

Assim, a comunidade é um tipo de agrupa-

mento humano no qual se observa um elevado

grau de intimidade e coesão entre seus membros.

Nela predominam os contatos sociais primários e

a família tem um papel especial.

A sociedade, em contrapartida, é formada

por um conjunto de leis e regulamentos racional-

mente elaborados. É o que ocorre, por exemplo,nas grandes sociedades urbanas industriais. Ali,

as relações sociais tendem a ser formalizadas e

impessoais; os indivíduos não mais dependem

diretamente uns dos outros para seu sustento e

estão muito menos comprometidos moralmenteentre si.

Portanto, a expressão sociedade designa agru-

pamentos humanos que se caracterizam pelo pre-

domínio de contatos sociais secundários e impes-

soais, próprios da sociedade industrial, em que há

uma complexa divisão do trabalho e o Estado é

sustentado por forte aparato burocrático.

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CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

A sociedade m oderna

Ao nos referirmos às comunidades campone-

sas que serviram de fonte de observação para Fer-

dinand Tõnníes. utilizamos a expressão sociedade

comunitária. Em oposição a ela, alguns sociólogos

utilizam o conceito de s oc ie d ad e s oc ie tá ria para

designar as sociedades modernas. Outros, contu-

do, preferem manter as designações tradicionais

de comunidade e sociedade.

As grandes metrópoles contemporâneas são

uma expressão da sociedade societária. Esta se ca-

racteriza pela acentuada divisão do trabalho e pela

proliferação de papéis sociais. Nela os indivíduosprecisam enquadrar-se numa complexa estrutu-

ra social, na qual ocupam determinado status e

desempenham papéis diferentes, frequentemente

sem ligação entre si (sobre os conceitos de papéis

sociais e status, veja o capítulo 6).

As relações sociais nas sociedades societárias

tendem a ser transitórias, superficiais e impessoais.

Os indivíduos associam-se uns aos outros com base

em propósitos limitados. São relações essencialmen-

te instrumentais, como a existente entre patrão e

empregado, estabelecida por meio de um contra-

to de trabalho. A vida perde a coesão unitária que

mantinha estável a antiga comunidade. O trabalho

fica distanciado da família e do lazer. A religião

tende a confinar-se a determinadas ocasiões e lu-

gares, em vez de fazer parte do convívio cotidiano

das pessoas. Nessa estrutura social, a família deixa

de ser o centro de união do grupo.

Na sociedade societária, os interesses comuns

muitas vezes entram em conflito, e perde-se em

grande parte a força da tradição. A relativa uni-

formidade de pensamento da comunidade é subs-

tituída por uma enorme variedade de interesses

e ideias divergentes. São relativamente poucas as

crenças, os valores e padrões de comportamento

universalmente aceitos.

Osmores (costumes; veja o Dicionário Básico deSociologia, no fim do volume) são enfraquecidos e

a lei formal emerge para regular o comportamento

e governar o intercâmbio social. No lugar da firme

coesão social, característica da sociedade comunitá-

ria, na sociedade societária a integração é frouxa e o

grau de consenso tende a diminuir. Isso pode provo-

car uma frequência maior de situações de conflito.

Entretanto, o predomínio da tradição e o res-

peito aos costumes característicos das sociedades

comunitárias não implicam necessariamente uma

qualidade de vida melhor e mais feliz. No boxe

a seguir você lerá um relato que relativiza a vi-

são idílica que muitas pessoas têm da comunidade

camponesa.

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CAP ÍTULO 5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

UMA ALDEIA NADA IDÍLICA

E m muitos casos, o apego à tradição que

. caracteriza as comunidades camponesas

pode se voltar contra ela própria, erguendo-

-se como obstáculo às mudanças. O texto a

seguir relata uma situação nada idílica ocor-

rida em uma aldeia camponesa do Paquistão

- país de maioria muçulmana.

A paquistanesa M ukhtar M ai apertou seu

exemplar do C orão contra o peito quando ouviu, na

presença de m ais de 100 h om en s, a sen ten ça q ue o con-

selho de sua aldeia acabara de lh e im po r: um estupro

coletivo. Integrante de um a casta inferior, M ukhtar

fora até lá apenas para pedir clemência para o irmão

mais jov em . E ra e le o réu no julg am en to. E sta va p re ste s

a se r condenado à m orte po r ter se en vo lvido com uma

m ulh er de um clã sup erio r.

Mukhtar, e ntã o c om 28 anos, f oi imed ia tamen te

arrastada por quatro hom ens arm ados. I nd ife re nte s a

~g~e~~~~~~~ra~~~~

estáb ulo va zio e , n o ch ão d e te rra b atida , violenta ram-na, um após o outro. "Não se i qu anto te mpo du rou essa

tortura infam e, um a hora ou um a noite. J am ais esque-

c er ei o r os to d ess es a nim ais ", c on ta a p aq uis ta ne sa.

O im pressionante relato de M ukhtar, colhido

p ela jo rn alis ta fr an ce sa Ma rie- Thérese C uny, está em

Desonrada (tradução de C lóvis M arques, E ditora

Best S e ll er ), q ue aC Ç lb ade ser la nç ad o n o B ra sil. M ais

do que o desfecho de um a querela tribal, o livro narra

com o M ukhtar transformou sua tragédia pessoal em

um a causa: a defesa dos direitos das m ulheres em seu

país. E, com isso, tornou-se um símbolo da luta das

m ulh er es n o m un do is lâ mic o.

N os três d ias seg uin tes ao estup ro, M u kh tar p er-

m ane ceu tra nc ad a em seu q ua rto. N ão co nsegu ia co mer

nem falar. "A té hoje eu sinto a dor, mas aprendi a miti-

g ar e ss e s o fr im en to ", d is se a Veja. "O que me con fo rta

é que abri uma escola para meninas. Q uando vejo as

alunas estudando e brincando, eu m e sinto honrada, é

isso que atenua a minha dor". [. .. ]

M ukhtar não desafiou apenas o poder local em

Mee rwa la , um v ila re jo d e a gr ic ulto re s d is ta nte 600 qu i-l ôm e tr os d a c ap ita l d o Paquistão, I slamabad , o nd e qua se

A uto ra d o livro Desonrada, a p a qu i st a n es aM ukhtar M ai é en trevis tad a ao d e sem barcar noae ro po rto C ha rL es d e G auL Le ,em P aris , F ran ça , e mjan eiro d e 2006.

n ão h á co mércio e qu e só recen temen tepas sou a t er energi a

e lé tr ic a. E la in ic io u um mov im en to q ue c on te sta a c on di-

ç ão femin in a em s eu p aís e q ue stio na h áb ito s a nc es tr ais

com o a jirga, c on se lh o tr ib al q ue a c ondenou ao e stu pr o.

Embora o C orão, o livro sagrado dos muçul-

m an os, e nsin e qu e, a os olh os de A lá, h om ens e m ulh eres

são iguais, em algum as culturas o fundam entalism od istorce u essa visão . E p rod uziu situ açõ es q ue c ho ca m

o O ciden te, c om o m en ina s pro ibid as de freq uen tar a es-

co la e m ulheres im ped ida s d e trab alh ar o u co nd en ad as

a p enas d e ape dr ejam en to.

Adaptado de: SOARES, Ronaldo.O resgate da honra. Veja, 3.10.07.

Vamos pensar?

1. o texto mostra que o apego a certas

tradições pode ser um obstáculo àsmudanças e justificar até violações

aos direitos humanos. Em sua

opinião, esse fenômeno também

ocorre no Brasil?

2. É possível encontrar um ponto de

equilíbrio entre a expansão dos

direitos humanos, o desejo de

progresso, o avanço tecnológico, por

um lado, e já o respeito a valores

tradicionais, como a família e a

religião?

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CAPÍTULO 5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

Sob O im p acto d a gLob aL iza çã o

A distinção entre comunidade (ou sociedadecomunitária) e sociedade societária proporciona

instrumentos para a interpretação da sociedade

contemporânea, assim como para estabelecer uma

projeção de suas tendências.

Com o avanço da industrialização, as socieda-

des comunitárias tenderam a se transformar mais

ou menos rapidamente em sociedades societárias.

Com a globalização, esse processo, iniciado com a

Revolução Industrial do século XVIII, ganhou uma

intensidade jamais sonhada anteriormente.

Algumas de suas manifestações são o cresci-mento explosivo das cidades, o declínio da impor-

tância da família, a internacionalização da econo-

mia, o surgimento de redes virtuais de comunicação

interligando computadores de todo o planeta, a

ampliação do poder da burocracia, o estímulo ao

individualismo e à competitividade, o enfraqueci-

mento das tradições e a diminuição do papel da

religião na vida cotidiana. (Uma das reações a essa

diminuição é o crescimento de certas Igrejas, como

as evangélicas, nas quais os crentes desenvolvemaspectos importantes de vida comunitária.)

Tais mudanças conduzem, de um lado, ao con-

flito, à instabilidade, à ansiedade e às tensões psi-

cológicas; de outro, à liberação dos sistemas de

controle e de coerção, e a novas oportunidades

para o desenvolvimento humano.

S olid ão e a uto iso Lamen tona g rande cidade

Embora as definições de Tõnn ie s sejam um

instrumento indispensável para a compreensão dosdois tipos de organização social, a Sociologia con-

temporânea atualizou os conceitos de comunidade

e sociedade, de acordo com as novas relações so-

ciais que vêm se estabelecendo entre os indivíduos.

Um exemplo de um novo tipo de vida, que se baseia

em relações sociais acentuadamente indiretas, são

os chamados singles (pessoas que preferem viver

sozinhas). Leia no boxe a seguir o depoimento da

escritora Cristina Porto sobre esse tipo de vida.

A tendência para o autoisolamento vem se veri-ficando principalmente nas grandes cidades: é cada

vez maior o número de pessoas que moram sozi-

86

nhas. Otabu de que estar só é sinal de abandono ou

de incompetência afetiva vem sendo superado poruma nova forma de olhar a questão. Hoje, morar so-

zinho é acima de tudo uma opção de vida, que tem

suas vantagens e desvantagens.

No Brasil, há cerca de 4 milhões de pessoas que

vivem sozinhas em seus domicílios. Trata-se de uma

tendência mundial. Nos Estados Unidos há 26 mi-

lhões de adultos que moram sozinhos por opção. Na

Alemanha são 13 milhões. Estima-se que eles serão

25% da população do país em dez anos. Na França,

o percentual de lares onde vive uma só pessoa au-

mentou 21,4% em oito anos, enquanto na Inglater-ra esse aumento foi de 37,5% em dez anos.

Um fenôm eno urbanoPor que tantas pessoas optam por uma vida

solitária? São várias as explicações, algumas demo-

gráficas, outras econômicas; há também as razões

particulares.

A primeira constatação é óbvia: as pessoas se

casam menos e com mais idade. Portanto, o nú-

mero de solteiros é cada vez maior no país. Ogru-po dos descasados também contribui para fazer

crescer o número dos que vivem sozinhos. Cerca

de 150 mil pessoas se divorciam anualmente no

Brasil. Como os casais tendem a ter menos filhos

do que antigamente, é comum que, na separação,

cada um arrume seu próprio canto. Além disso, o

aumento da expectativa de vida do brasileiro faz

com que o número de idosos também aumente.

Alguns sociólogos têm se dedicado a pesquisar

os singles. O sociólogo alemão Stefan Hradil, por

exemplo, afirma que eles são os "sismógrafos" do

nosso tempo: "Os singles colocam em relevo a rela-

ção extremamente instável entre o indivíduo e a

coletividade que é própria das sociedades contem-

porâneas em geral e da Alemanha, em particular".

De fato, os singles são mais numerosos nas gran-

des metrópoles do que no campo (onde os estímulos

para uma vida comunitária e solidária são mais for-

tes): um terço deles vive em cidades com mais de

1milhão de habitantes. Aomesmo tempo, sua forma-

ção educacional está acima da média: são geralmentebem-sucedidos na carreira profissional, ganham bem

e moram, de modo geral, em casas confortáveis.

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CAPÍTULO 5 O rg an iz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

A SOLIDÃO COMO OpçÃO

Mro s ozin ha d es de 1978 (. .. ). É d if íc il d iv id ir

as coisas, manter a beleza da relação C am o-

rosa) 1 :10 dia a dia. M orar com outro inteifere até

na nossa própria energia. Eu, por exemplo, gosto

de ouvir música baixinho, detesto muito barulho -

tem de ser tudo calmo, para não me atropelar. Gosto

de curtir meus pequenos rituais, como tomar o café

da manhã cedinho, de pijama, depois voltar para a

cam a e cochilar com o rádio ligado, à s veze s e sc uta n-

d o m ús ic a s er ta neja .S ão coisas que eu não poderia fazer tão à vontade

se m ora ss e c om a lg uém. É uma d elíc ia tam bém, q ua nd o

volto de viagem , saber que a coisa vai estar exatam ente

do jeito que deixei, sem alteração de cheiro, de astral, de

nada. S ó não gosto m esm o é d e providenciar serviços de

m anutenção - quando peço orçam ento para encanador,

e le tricista, pedre iro ,' ch ave iro , s em pr e ten ho a se nsa çã o

d e e sta r se nd o e ng an ad a e ex plo rad a.

U ma das grandes vantagens de morar sozinha

é o descompromisso - sair e voltar quando quiser, semter de avisar ninguém . A liberdade éfundam ental para

mim . Talvez por isso não me incomode a solidão. L i-

b 'e rd ad e e s ol id ão e stã o ju nt as. S e v oc ê q uis er e xe rc it ar

sua liberdade, você vai ser uma pessoa sozinha. M as

deve ser pior se sentir sozinha ao lado de outro. Isso eu

nunca senti. Procuro as pessoas quando sei que tenho

coisas boas para dar, quando posso dividir alegria.

D or e tristeza eu prefiro curtir sozinha.

PORTO, Cristina. Cultura Ncws, n. 48, 1996.

O nze d a m an hã , t ela d o p in to r e st ad u ni de ns eE dw ar d H o pp er (1 88 2-1 96 7). P ou co s a rt is ta sretrata ra m tã o bem qu an to e le a solid ão nasgrandes c id ad es d os E sta do s U n id os.

87

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CAPÍTULO 5 O rg an iz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

3 Qu e hera nç a d eixa rem o s?

Como será a sociedade no futuro? Em que

bases se apoiarão o consenso e a estabilidade na

sociedade pós-industrial, urbana e globalizada?

Será necessário, para resolver nossos problemas

econômicos e sociais, retomar os valores tradicio-

nais e os modos mais antigos de organização? Se-

rão as formas sociais alternativas (como a dos sin-

gles) apropriadas a uma sociedade complexa como

a nossa, com valores muitas vezes conflitantes,

como os da liberdade individual em contraste comos interesses coletivos e a preservação do meio am-

biente? Será possível conciliar, de alguma forma,

os diferentes, e muitas vezes antagônicos, estilos

de vida que se estabelecem no centro e nos bairros

das grandes metrópoles e em suas periferias?

Embora as metrópoles contribuam para o sur-

gimento de novos estilos de vida, as mudanças

parecem não ter afetado ainda significativamente

todos os habitantes dos grandes centros urbanos:

mesmo em cidades como Nova York e São Paulo po-

dem-se encontrar relações intensas de vizinhança,

nas quais os indivíduos estabelecem contatos so-

_ ciais diretos, com ações de solidariedade.

Isso se dá com frequência nos bairros pobres

da periferia, onde o código moral se baseia, em ge-

ral, na ajuda mútua. Em muitos dos bairros mais

pobres, mesmo numa sociedade societária, preser-

vam-se certos valores das antigas comunidades.

Nesses lugares, a vida gira em torno da família, do

local de moradia, das relações de vizinhança. Ovizi-

nho, muitas vezes, passa a ser quase um membro dafamília, um companheiro nas horas de dificuldade.

Entretanto, a velocidade com que estão se

dando as mudanças na sociedade societária traz

novos desafios às grandes metrópoles: um exem-

plo disso é o assustador aumento da criminalidade

e as dificuldades para combatê-la.

Nesse processo, embora continue forte em

alguns lugares da periferia, a solidariedade en-

tre as pessoas perde sua força nas grandes ci-

dades; antigas instituições sociais sofrem duros

golpes em sua credibilidade e legitimidade. Tudo

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favorece o comportamento individualista que se

manifesta inclusive no desenvolvimento de es-tratégias de autodefesa pessoal ou na tendência

a "fazer justiça pelas próprias mãos". Mesmo al-

gumas relações de vizinhança, nas quais persis-

tem manifestações de vida comunitária, poderão

não sobreviver ao individualismo crescente, que

tende a se universalizar.

Com seu estímulo ao consumo e à competição

desenfreada, a economia capitalista, dinâmica e

tecnologicamente inovadora, colabora para refor-

çar a cultura do individualismo e o isolamento;

favorece a formação de uma sociedade egocêntri-ca, com uma frágil conexão entre seus membros,

na qual as pessoas buscam satisfazer apenas suas

ambições, necessidades e impulsos. Numa socie-

dade desse tipo, a satisfação individual é colocada

acima de qualquer obrigação comunitária.

Igualmente preocupante são as consequências

ecológicas desse afrouxamento dos laços de soli-

dariedade e da primazia atribuída ao consumo. Em

uma sociedade construída com base na competi-

ção sem limites e no individualismo exacerbado, aspessoas tendem a pensar apenas em si mesmas e

em seu bem-estar, pouco se importando com o que

pode acontecer no futuro com as relações sociais e

4 I D ire ito s hum an os e c id ad an ia

Algumas características da sociedade contem-

porânea, como vimos, atuam no sentido de desagre-

gar valores cultivados não só nas antigas comuni-dades, mas também na própria sociedade societária

até meados do século XX. Entre esses valores estão

a solidariedade, a vida familiar, a igualdade de opor-

tunidades, a participação política, etc.

Entretanto, no interior da própria sociedade

societária moderna existem forças que se opõem

fortemente a essas tendências desagregadoras.

Isso acontece porque as sociedades pós-industriais

são geralmente sociedades democráticas.

O regime democrático se caracteriza pela li-berdade, pelo respeito aos direitos humanos, pelo

"império da lei" (todos são iguais perante a lei,

CAPÍT ULO 5 O rg an iz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

o equilíbrio ecológico. Nesse caso, a pergunta que

devemos nos fazer é: que herança deixaremos paranossos filhos?

ninguém está acima dela), pela pluralidade de

partidos políticos, pelo voto livre e universal e

pela alternância no poder. Nessas condições, elefavorece a participação política e estimula a asso-

ciação de pessoas em torno de interesses comuns,

como sindicatos, organizações estudantis, asso-

ciações de bairro, movimentos reivindicatórios,

etc. Ambas as tendências, por sua vez, favorecem

o estreitamento dos laços entre os participantes, a

solidadariedade e a agregação de interesses.

Um dos fundamentos do regime democrático é

o conceito de cidadania. Segundo o sociólogo Her-

bert de Souza (Betinho), "cidadão é um indivíduoque tem consciência de seus direitos e deveres e

participa ativamente de todas as questões da so-

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CAP ÍTULO5 O rg an izaç ão s ocia l e cid ad an ia

• Ninguém será arbitrariamente p re so , d et id o o u exi -

lado.

• Todo ser humano que trabalha tem direito a uma

remuner aç ão ju st a.

• Todo ser h um ano tem direito à alimentação , vestuário ,

habitaç ão e cuidados médicos.

• T od a p es so a tem d ir ei to à vida, à l ib er dade e à segu-

r an ça p es so al.• Todo ser humano tem direito ao trabalho e à livre

escolha de emprego.

• T od a p es so a tem d ire ito à segura nça social.

• T oda pessoa tem direito a tom ar parte no governo de

seu pa ís .

• T od a p es so a tem d ir ei to a uma ordem socia l em q u e s eus

direi to s e l ibe rdad es p ossa m ser p lenamen te rea l izado s.

• T od o in div íd uo te m o d ir ei to d e s er r ec onhe ci do como

pessoa perante a lei.

• To do ser humano tem direito à instrução .

A DECLARAÇÃO UN IVERSAL DOSD IR EITO S HUMANO S

cidadania está diretamente vinculada aos

direitos humanos, uma longa e penosa

conquista da humanidade que teve seu reco-

nhecimento formal com a D ecla ra çã o Un iv er sa l

d os D i re it os Humanos, aprovada em 1948 pela

Organização das Nações Unidas (ONU). Na

época - marcada pela vitória das nações demo-

cráticas contra o nazismo e o fascismo durantea Segunda Guerra Mundial (1939-1945) =, ela

abria a perspectiva de um novo mundo, em que

haveria paz, liberdade e prosperidade: uma es-

perança que acabou não se realizando.

Leia a seguir os princípios da D eclaração

Univers al dos D ireitos H umano s e procure compa-

rá-Ios com a realidade da cidadania, tal como

ela vem sendo praticada no mundo em geral e

no Brasil, em particular:

• Todos os seres humanos nas cem livres e iguais em

d ig ni dade e d ir ei to s.SOUZA, Ari Herculano. O s d i re i to s humano s.

São Paulo, Editora do Brasil, 1989. p. 23-6.

ciedade. Tudo O que acontece no mundo, acontece

comigo. Então eu preciso participar das decisões

que interferem na minha vida. Um cidadão com

um sentimento ético forte e consciente da cida-

dania não deixa passar nada, não abre mão dessepoder de participação ( ... ).

A ideia de cidadania ativa é ser alguém que

cobra, propõe e pressiona o tempo todo. O cida-

dão precisa ter consciência de seu poder". (In:

SANTOSJR., Belisário et alii. Cidadania , verso e

reverso . São Paulo: Secretaria da Justiça e da Ci-

dadania, 1998. p. 11.)

A evolu ção d o con ce ito d e d dadan iaNo começo da Idade Moderna, o conceito de

cidadania estava associado ao burguês, não ao

90

conjunto da sociedade. A começar pela etimologia

da palavra, havia urna separação entre o homem

urbano e o homem rural, urna vez que o termo

cidadão referia-se somente aos habitantes da ci-

dade. A noção de cidadania, porém, é anterior àIdade Moderna e teve suas origens na Grécia e

Roma antigas.

A Grécia Antiga era composta por cidades-Es-

tado autônomas, póleis em grego. Emalgumas delas

vigorava a democracia direta, regime político no qual

os cidadãos, chamados de politai, participavam das

decisões do governo da cidade por meio de assem-

bleias. Entretanto, nem asmulheres, nem osescravos,

nem os estrangeiros eram considerados cidadãos.

Roma, por sua vez, foi em suas origens urna

cidade-Estado. Inicialmente, sua forma de gover-

no era a monarquia, mas em 509 a.C. foi deposto

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CAP ÍTULO5 Organ iz aç ão so cia l e c id ad an ia

OS D IREITOS DAS CRIANÇAS

Dois anos depois da Dec lara ção U niv er sa l d os

D ir eito s H umanos, em 1950 a Assembleia

Geral da ONU aprovou os D i re it os d as C r ia nç as.

O documento era uma tentativa de criar uma

rede de proteção às crianças na situação do pós-

Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando

muitas delas perderam seus pais.

1. Direito à i gualdade, s em d is ti nção de raça, relig ião

ou nacionalidade.

2. D ire ito a p ro te çã o e sp ec ia l p ara seu desenvol vimen -to f ís ic o, m en ta l e s ocia l.

3. D ireito a um nom e e a um a naciona lidade.

4. Direito à alimentação, moradia e ass is tr nc ia médi ca

adequada s para a criança e a m ãe.

5. D ire ito à educação e a cuidad os esp eciais para a

criança física ou mentalmente deficiente.

6. Direito ao amor e à compre ensão por parte dos pai s

e d a so cie dad e.

7. D ireito à ed uca ção gratuita e ao lazer.

8. D ireito a ser socorrida em p rim eiro lugar, em caso

de catástrofe.

9. D irei to de ser protegida contra o abandono e a ex -

ploração n o tr ab alho .

10. D irei to a crescer dentro de um espírito de solida-

riedade , com preensão, amizade e justiça entre os

po vos .

SOUZA, Ari Herculano. O s D ir ei to s H umanos .São Paulo: Editora do Brasil, 1989. p. 23-6.

M en ino s d e rua e cã es dorm em em ca lçada no cen tro do Recife , em foto d e 1996. A pesar da v ig ên ci a doEstatuto da Criança e do Adolescente, a pro va do em 1990, m ilhares d e cr iança s a in da v ivem em condiçõess ub -h um a na s n o B ra sil.

seu último rei por uma elite de senadores que

estabeleceu a República. Sob esse regime, Roma

começou a se expandir, conquistando territóriosde outros povos até se transformar em um grande

império. Durante esse período, vigorou um siste-

ma de assembléias. das quais estavam excluídas

as mulheres e os escravos. Entretanto, embora to-

dos os romanos livres do sexo masculino fossemconsiderados cidadãos, o poder era de fato con-

trolado pelo Senado, composto por uma minoria

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CAPÍT ULO 5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

de grandes proprietários rurais. Em 27 a.C., com a

instauração do Império Romano, a República che-gou ao fim.

Com a queda do Império Romano do Ociden-

te, em 476, desapareceu o conceito de cidadania

na Europa. Na Idade Média, não havia cidadãos.

Havia apenas vassalos dos senhores feudais e sú-

ditos do rei.

No século XVIII, a Independência dos Estados

Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789) colo-

caram o conceito de cidadania em um lugar central

na vida política. A partir de então, ele amplíou-se e

aprofundou-se cada vez mais, até agregar todos osindivíduos das sociedades democráticas modernas.

Como termo político, cidadania significa exer-

cício de direitos, compromisso ativo, participação

política, responsabilidade. Significa participar da

vida na comunidade, na sociedade, no país. Sem

cidadania não pode haver aquele compromisso

responsável que garante o respeito aos direitos

humanos e democráticos e que, em última análise,

mantém unido o organismo político. Ela poderá

ser o agente mediador dos grandes conflitos que

afligem hoje a humanidade. Os graves problemas

políticos, raciais, étnicos, de desemprego e de ex-clusão social somente poderão ser superados com

o pleno exercício da cidadania.

Ig ua L da de e e qu id ad e"Cidadania" - afirma o jornalista e escritor

Gilberto Dimenstein - "é o direito de se ter uma

ideia e poder expressá-la. É poder votar em quem

quiser sem constrangimento. É processar um mé-

dico que cometa um erro. É devolver um produto

estragado e receber o dinheiro de volta. É o direi-

to de ser negro sem ser discriminado, de praticaruma religião sem ser perseguido.

Há detalhes que parecem insignificantes,

mas que revelam estágios de cidadania: respeitar

o sinal vermelho no trânsito, não jogar papel na

rua, não destruir telefones públicos. Por trás desse

comportamento está o respeito à coisa pública."

(DIMENSTEIN,Gilberto. C idadão de papel. 5. ed.

São Paulo: Ática, 1994. p. 20).

Na base do conceito de cidadania estão as no-

ções de liberdade e de igualdade. O princípio da

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igualdade de todos perante a lei é uma conquista

da Revolução Francesa (1789), com a qual - naperiodização dos historiadores - teve início a Era

Contemporânea. Esse princípio foi acompanhado

do reconhecimento dos direitos humanos e do

exercício dos direitos e deveres da cidadania.

Recentemente, alguns pensadores acrescenta-

ram o conceito de equidade aos fundamentos da

democracia. Embora no âmbito do Direito os dois

termos sejam tratados como sinônimos - equi-

dade igual a igualdade =, para a Sociologia e a

Ciência Política existem algumas diferenças entre

eles. A noção de igualdade estabelece que todossão iguais perante a lei. Entretanto, as sociedades

democráticas capitalistas são caracterizadas por

desigualdades sociais e econômicas que acabam

interferindo também na igualdade jurídica.

Por exemplo, no Brasil existe igualdade ju-

rídica garantida pela Constituição. Entretanto,

na prática a Justiça tende a favorecer as pessoas

mais ricas em prejuízo das mais pobres. Além dis-

so, o princípio da "igualdade de oportunidades"

também é negado desde o nascimento. Ao nasce-rem, as pessoas dos grupos de baixa renda têm

pela frente problemas que os filhos das famílias

abastadas não têm. Assim, seu desenvolvimento

CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

é retardado em relação a estes e, no momento em

que devem enfrentar a competição no mercadode trabalho, elas já partem de uma posição des-

vantajosa.

Da mesma forma, apenas algumas parcelas

da sociedade brasileira alcançaram os d ireito s d e

cidadania em sua plenitude, como os de usufruir

dos serviços públicos de água encanada e trata-

da, rede de esgotos, luz elétrica, boa educação,

salários dignos, assistência médica, emprego,

etc. (Sobre desigualdades sociais no Brasil, veja

o capítulo 13.)

Para corrigir essas distorções, cientistas sociaisvêm propondo políticas públicas destinadas a:

• promover a eqüidade. ou seja, a igualdade

entre desiguais, por meio de medidas correti-

vas no âmbito da educação, da saúde pública,

da moradia, do emprego, do meio ambiente

saudável e de outros benefícios sociais - uma

expressão disso são as cotas de emprego para

deficientes físicos em certas empresas, o que

poderia parecer um "privilégio", mas que na

verdade tende a estabelecer uma relação maisequilibrada entre portadores de deficiência

e pessoas em perfeitas condições físicas e

mentais;

- entendida como estatuto dos cidadãos em

pleno gozo de seus direitos e como participa-

ção política - é uma das forças que impedemou dificultam o esmagamento dos valores

democráticos nas sociedades pós-industriais.

Entretanto, a própria cidadania se vê hoje

ameaçada pelo crescimento das desigualda-

des sociais, especialmente nos países pobres

e emergentes.

A única forma de reverter essa ameaça

e preservar a cidadania consiste em ampliar a

área de participação política, estendendo-a a

setores cada vez mais amplos da população.

Dito de outra maneira: consiste em fortalecer

a sociedade civil.

ÉTICA E POLÍTICA

lém de promover a igualdade entre de-

siguais, a política da equidade deve pro-

piciar uma forma ética de lidar com a es ferapública (ou seja, o conjunto de órgãos p ú b l í -

COSI ligados ao Estado) e a esfera privada (que

envolve a vida particular das pessoas). A dis-

tinção entre público e privado é um dos va-

lores mais importantes da democracia. Para

preservá-Ia, os governantes devem tomar

medidas de interesse geral que beneficiem

a comunidade. Além de ilegal, é antiético e

ilegítimo legislar em causa própria, praticar

abuso de poder ou utilizar recursos públicos

para favorecer interesses particulares.

Como vimos, o exercício da cidadania

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CAPÍTULO 5 O rg an iza ção so cial e c id ad ania

• combater todas as formas de preconceito e dis-

criminação, seja por motivo de raça, sexo, re-ligião, cultura, condição econômica, aparência

ou condição física.

Assim, o conceito de equidade engloba o de

igualdade, mas vai além dele. Uma política voltada

para a equidade não se contenta com a igualdade

formal, jurídica, pois considera que as pessoas são

desiguais, seja por razões físicas e biológicas, seja

por razões sociais. Nessas circunstâncias, procura

restabelecer o equilíbrio por intermédio de medi-

das compensatórias que reduzam as desigualdades

existentes.

Pú blico e p rivad oE m toda sociedade democrática existem duas

esferas de vida que articulam as relações políticas

e sociais. Uma delas é a esfera pública, na qual se

localizam o Estado com seus três poderes (Execu-

tivo, Legislativo e Judiciário) e outras instituições

políticas. A outra é a esfera privada, lugar das ati-

vidades econômicas, dos interesses particulares,

das empresas, do mercado, da vida familiar, davida religiosa e das relações sociais.

Entre essas duas esferas estão a op in ião púb li cae a sociedade civil. Esta última é formada pelas or-

ganizações privadas sem fins lucrativos que se esta-

belecem fora do mercado de trabalho e do governo,mas que têm importante presença na vida política.

Exemplos de organizações que participam da

sociedade civil em nosso país são a Ordem dos Ad-

vogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de

Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos

do Brasil (CNBB), as diferentes Igrejas organiza-

das, os sindicatos, as Organizações Não Governa-

mentais (ONGs), a União Nacional dos Estudantes

(UNE), etc.

Atualmente, as Organizações Não Governa-

mentais compõem, no interior da sociedade civil,o núcleo do que se poderia chamar de terceira

esfera, situada entre o Estado (esfera pública) e

a sociedade (esfera privada). Essa terceira esfera

não pertence ao Estado, mas atua em áreas que

geralmente deveriam ser atendidas pelas autori-

dades constituídas.

De fato, as ONGsmobilizam e estimulam com-

portamentos solidários, dedicando-se a questões

como ecologia, paz e alfabetização, entre outras.

Dessa forma, elas desenvolvem ações de solidarie-dade que se contrapõem ao individualismo cres-

cente e à incapacidade do Estado de prestar servi-

ços essenciais à população.

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CAPÍTULO5 Organização social e cidadania

,..---.-_Livros sugeridos

• DIMENSTEIN,Gilberto. O ci da dã o de pa pe l. São Paulo: Ática, 2005.• OLIVEIRA,Manfredo Araújo de. Ética e so c iabil idade. São Paulo: Loyola, 2003.

• DALLARI,Dalmo de Abreu. O q ue sã o d ire itos da s p e ss oas. São Paulo: Abril CulturaljBrasiliense, 1984 (Coleção Primei-ros Passos).

• DUBAR,Claude. A s o ci al iz a ção: c o ns tr uç ão d a s i de n ti da d es sociais e profiss ionais . São Paulo: Martins Fontes, 2005 .

.----....•Filmes sugeridos• Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti , 1960. Família proveniente do campo, na Itália, se desintegra ao se mudarpara uma grande cidade.

• Tilai, de Idrissa Ouedraogo, 1990. Homem idoso se casa com a noiva do filho em aldeia africana, provocando um con-flito que leva o jovem a romper com as tradições da comunidade.

• A ár vo re d os ta manc os, de Ermanno Olmi, 1978. Família de comunidade camponesa na Itália enfrenta dificuldades paracolocar o filho na escola.

• A grande c ida de, de Carlos (Cacá) Diegues, 1965. Jovem do interior vai morar no Rio de Janeiro e fica dividido entre atradição rural e o desejo de modernidade.

• V ida cigana , de Emir Kusturica, 1989. Jovem cigano sai de sua comunidade, na ex-Iugoslávia, e emigra para a Itália,

onde não consegue se adaptar à vida urbana.

• R evolução, de Hugh Hudson, 1985. Agricultor e seu filho se envolvem na luta pela independência das colônias inglesas

da América do Norte.

• A n jo s r eb eldes, de Katja von Garnier, 2004. No começo do século XX, mulheres sufragistas lutam pelo direito de votopara as mulheres e são reprimidas pelo governo estadunidense.

• Eu me lembro, de Edgard Navarro, 2006. Homem é testemunha dos principais fatos da história do Brasil entre o suicídiode Getúlio (1954) e o assassinato de Vladimir Herzog no quartel do Segundo Exército (São Paulo), em 1975.

• M u d a, B r asi l, de Oswaldo Caldeira, 1985. Documentário sobre o período de transição entre a ditadura militar e o regimedemocrático no Brasil.

Para complementar o estudo do capítulo, assista a um ou mais dos filmes indicados e reflita

sobre as seguintes questões:

• Que relações podem ser estabelecidas entre o enredo do filme e os conceitos estudados neste capítulo?

• Há referências, no filme, à noção de comunidade? Quais são elas e como aparecem no filme?

• Há referências à contradição entre a tradição comunitária e a vida em sociedade? Sob que formas elas se manifestam

no filme?

• Há referências à questão da cidadania? Quais são elas e como aparecem no filme?

Questões propostas

1. Explique a importância dos limites territoriais para a análise sociológica de urna comunidade.

2. Cite as quatro principais características de urna comunidade.

3. Quais as principais diferenças entre as sociedades comunitárias e as sociedades societárias?

4.Em sua opinião, o que tem provocado o aumento do individualismo no mundo de hoje?

5. Com base no que leu, elabore seu próprio conceito de cidadania.

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CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

Cidadania: a separação entre o homem e o cidadãoEntre os sé culos Xl e XV , no período fin al da Idade M édia na Europ a, um grupo social começou a se

des taca r de forma esp ecia l. Era um grupo urbano , is to é , q ue v iv ia na s cidades, dedicado pr inc ipa lmente ao

comér cio. Por essa éPo ca , as cidades europeias eram chamadas de burgos e s eu s h ab it antes, de burgueses.

C om o crescim ento do comércio , os mercadore s se to rna ra m ca da ue z m ais ricos e a palavra burguês

passou a ser aplicada apenas a eles. S urgia assim a burguesia, cla sse so cial d in âm ic a e em pree nd ed ora , q ue

se tornaria m ais tarde um d os p ro ta go ni stas da Revolução Industrial, iniciada em m eados do século X VIII.

O texto que você vai le r ag ora a na lisa a lig ação entre a b urg ue sia e o mod er no c on cei to d e c id ad ão .

Como consequência das mudanças naeconomia e na sociedade, a atribuição de di-

reitos e deveres também sofreria alterações,

beneficiando algumas categorias mais do

que outras.

A partir de então, de maneira geral. o

homem do povo, colocado numa escala social

inferior, dificilmente participaria integral-

mente do processo produtivo.

A divisão técnica do trabalho, levada a

extremos com o desenvolvimento de novas

tecnologias industriais, iria tornar mais agu-

da a diferença entre os homens na divisãosocial.

Já que cada trabalhador participa ape-

nas de uma pequena fase do processo, fa-

zendo uso de esforço físico ou da habilidade

manual, enquanto a maior parte do seu ser é

inibida, alienada, por não ser necessária na

execução de tarefas específicas e repetitivas,

nada mais natural do que ele participe, pro-

porcionalmente, de uma parcela muito pe-quena da renda e de outros direitos referentes

a essa produção.

Só uma parcela da sociedade alcançou,

na prática, os direitos de cidadania em sua

plenitude, segundo a conceituação da cultura

burguesa. A igualdade de todos perante a lei

não elimina as desigualdades de muitos, em

relação à liberdade de expressão, ao direito

de votar e ser votado, aos direitos sociais, tais

como a educação, e aos direitos econômicos,

como os de produzir e vender.

A concepção teórica dos direitos huma-nos e de cidadania começou a ser elaborada

no século XVIII por uma corrente filosófica

denominada Iluminismo [sobre o Iluminismo,

consulte o Dicionário Básico de Sociologiano fim do volume] [ ...].

O significado original do conceito de

cidadania estava associado ao burguês, e não

a todo o povo. A começar pelo fato de que a

própria etimologia impôs uma separação en-

tre o homem urbano e o homem rural, uma

vez que a palavra cidadão referia-se somen-

te aos habitantes da cidade. Por uma perfeita

analogia, o novo termo veio substituir os ter-

mos burguê s e burgo.

Não foi uma analogia casual, mas inten-

cionalmente elaborada. Desde que a palavra

bu rgu ês deixou de serum termo neutro, adquirin-

do uma nítida conotação de classe social, como

designativo de um segmento da sociedade, sua

validade como designação genérica do ser hu-

mano idealizado pelo Iluminismo perdeu-se.Com a palavra cidadão, a burguesia

construiu um patrimônio ideológico que lhe

deu poder, e aos outros, a ilusão de serem

iguais. Na definição a seguir, a preeminên-

cia do urbano, do burguês sobre os demais,

aparece claramente: "Ser cidadão significa

ser sujeito de direitos e deveres. Cidadão é,

pois, aquele que está capacitado a participar

da vida da cidade, literalmente, e, extensiva-

mente, da vida da sociedade" (Dermeval Sa-

viani, educador).

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Os direitos de cidadania no BrasilNo caso brasileiro, o processo de avan-

ços e recuos, de progressos e retrocessos na

conquista e expansão dos direitos de cidada-

nia pode ser explicado em grande parte pela

permanência de estruturas econômicas e so-

ciais que datam do tempo colonial. Por não

terem sido totalmente abolidas nem renova-

das, servem de obstáculo ao desenvolvimen-

to de relações mais justas, mais livres e mais

igualitárias entre os grupos de indivíduos.Devido a essa herança histórica, esta-

belecem-se distinções, discriminações e pre-

conceitos, não só em relação às condições

materiais, mas também no plano cultural, por

diferenças de origem social, de raça, de cor,

de sexo e de idade.

O princípio legal de que todos são

iguais perante a lei não elimina as concretas

desigualdades sociais, pois a divisão da socie-

dade em classes se reproduz na vivência da

cidadania [sobre classes sociais, veja o capítu-lo 9]. Há cidadãos detentores de amplos pri-

vilégios e há os que são privados até dos mais

elementares recursos de subsistência.

Um exemplo concreto, vivo e sempre

atual da permanência de velhas estruturas de

poder é visto nas relações de trabalho da estru-

tura agrária, que são mais atrasadas do que as

do meio urbano. As desigualdades sociais for-

mam uma hierarquia, criando cidadãos de vá-

rias categorias. O trabalhador rural, em geral,é "inferior" ao trabalhador urbano em todos os

aspectos das condições de vida, inclusive nos

direitos trabalhistas e previdenciários.

Os valores da cidadania que hoje se

consideram desrespeitados e até mesmo amea-

çados possuem, em geral, raízes muito pro-

fundas na formação histórica da sociedade

brasileira. Estão nessa condição, especialmen-

te, as questões do índio, do negro, da mulher

e dos pobres em geral, dos trabalhadores sem

qualificação profissional. [ ...]

CAP ÍTULO5 O r ga niz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

O caso da população indígenaEmbora a Constituição contemple a po-

pulação indígena com um leque de direitos,

seu cumprimento, infelizmente, está muito

longe da realidade do poder público e da po-

pulação branca. Destacamos, para ilustrar, o

artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua

organização social, costumes, línguas, crenças

e tradições, e os direitos originários sobre as

terras que tradicionalmente ocupam, compe-

tindo à União demarcá-Ias, proteger e fazerrespeitar todos os seus bens".

O caso do índio começou com a chegada

dos colonizadores portugueses, que rompeu

com seus hábitos ancestrais de sobrevivência,

baseados na caça, na coleta e na pesca, e com

seus costumes e crenças religiosas. [... ]

O confronto entre o europeu domina-

dor e o índio perseguido transferiu-se do pla-

no físico para o terreno religioso e cultural. A

Igreja atuou na domesticação dos silvícolas,

combatendo suas crenças e costumes para ob-ter sua incorporação ao trabalho.

Fruto desse choque cultural entre a ci-

vilização indígena e a europeia, e como parte

dos mecanismos de dominação, ficou defini-

tivamente gravada a noção de que o índio é

"indolente", "imprestável", incapaz de se inte-

grar à cultura do branco. [...]

A população indígena atual é estimada

em cerca de 200 mil pessoas, espalhadas em

pequenas tribos por todo o território nacio-nal [segundo dados da Fundação Nacional do

Índio, Funai, em 2006 essa população havia

crescido para 450 mil indígenas]. A maioria

vive na região amazônica em graus diversos de

aculturação e desperta interesse e curiosidade

nacional e internacional, porque ainda conser-

va muitos traços de sua vida ancestral, às vezes

com grandes extensões de terras demarcadas.

Mesmo essas tribos são agredi das fisica-

mente - suas terras são invadidas; os rios, po-

luídos; e o ouro e outros metais, saqueados - e,

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CAP ÍTULO5 O rg an iz aç ão so cia l e c id ad an ia

principalmente, são envolvidas na produção eno tráfico de drogas e no contrabando nas fron-

teiras com outros países sul-americanos. [...]

Mais grave é a situação das pequenas co-

munidades que vivem nas regiões densamente

povoadas do Sul, Sudeste e em todo o litoral

brasileiro. Precariamente integradas com a

população branca e sem recursos naturais em

florestas, rios, terras, etc., essas pequenas co-

munidades, em geral, vivem marginalizadas e

numa miséria extrema.

Os negros e o preconceito

Os qui lombos marcaram a história e a

sociedade brasileira como a expressão mais

alta da resistência dos negros contra a escra-

vidão; foi a mais importante, sem dúvida, em-

bora não a única. [ ... ]

De muitas outras formas os escravos

africanos negros e mestiços resistiram ao cati-

veiro: rebeliões, fugas, assassinatos, suicídios.

Além disso, a participação de grande númerodeles em guerras, revoluções e movimentos

sociais de toda espécie sempre esteve rela-

cionada com a luta pela conquista de alguns

direitos humanos fundamentais.

Em tópicos anteriores, propusemos a

distinção entre os direitos fundamentais do

ser humano e os valores sociais da cidadania.

A população negra, até a abolição da escrava-

tura oficial [no Brasil, em 1888], era conside-

rada "mercadoria" e discutia-se seu direito a

existir como seres humanos.Desde então, a conquista de alguns di-

reitos de cidadania conforme os conceitos que

hoje defendemos tem-se caracterizado como

uma luta contra as diferentes formas de do-

minação e de exploração. Todas as diferenças

que separam os cidadãos foram usadas contra

a população "de cor": a discriminação decla-

rada, o preconceito velado, a marginalização

econômica e social.

Essas atitudes discriminatórias dimi-

nuem as condições de cidadania, produzindo

resultados concretos na forma de desempre-go, trabalhos mais penosos e degradantes,

salários mais baixos e menores oportunidades

de ascensão social.

Se expurgamos a questão do índio e a

do negro de todas as mistificações ideológi-

cas, de veleidades liberais e românticas e dos

sonhos dos ecologistas, o que teremos como

atitude fundamental da sociedade? A julgar

pela realidade das ações praticadas, destoan-

tes dos discursos e promessas, o que sobra é:

Uma política de confinamento dos Ín-dios, a pretexto de preservar seus hábitos,

seus costumes e sua cultura. Sem Ihes permitir

a possibilidade de integração na sociedade,

também não Ihes garante a sobrevivência nas

respectivas reservas.

Uma política oficial de democracia

racial, que condena o racismo e apregoa a

igualdade, mas submete os negros à discri-

minação "cordial", velada, negando-Ihes, por

exemplo, oportunidades iguais de formaçãoescolar, de ascensão profissional e, conse-

quentemente, de participação em níveis mais

altos de cidadania.

Os estigmas da pobreza

Com relação aos pobres em geral, de

qualquer raça, cor, sexo ou idade, existe um

consenso de que se implantou o apartheid so-

cial [apartheid significa separação; veja o capí-

tulo 3]. São milhões de criaturas sem as con-

dições mais elementares de vida.As propriedades agrárias, por exemplo,

estão intensamente concentradas: mais de

80% das terras, cerca de 400 milhões de hec-

tares, estão em mãos de apenas um milhão de

proprietários, aproximadamente [menos de

1% da população]. A pequena propriedade

não tem condições de sobreviver às instabi-

lidades das políticas agrícolas e às crises da

economia. Os trabalhadores rurais são cada

vez mais diaristas - boias-frias, sem nenhum

tipo de vínculo empregatício -, com empre-

~ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~ ~98

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http://slidepdf.com/reader/full/scan-doc0015 23/23

CAP ÍTULO5 O r ga niz aç ão s oc ia l e c id ad an ia

~ r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 'gos sazonais, temporários, no corte da cana--de-açúcar, na colheita de algodão, de café e

outros. [ ...]

Grandes contingentes migratórios de

trabalhadores flagelados pelas secas e pelo

subdesenvolvimento do Nordeste, ou de-

sempregados pela mecanização agrícola,

chegam às regiões metropolitanas em busca

de trabalho, mas, desinformados da situação

existente, se defrontam com multidões de

desempregados.

Com frequência, surgem denúncias detrabalho semiescravo em fazendas onde os

trabalhadores não recebem remuneração ou

tornam-se cativos em razão de suas dívidas

e são impedidos de deixar o local. Esses fa-

tos são mais comuns na Amazônia, embora

ocorram em outras regiões, inclusive na rica

região do estado de São Paulo, onde foram

registrados casos desse tipo.

Adaptado de: MARTINEZ, Paulo. D ireitos de cidadania.

São Paulo: Scipione, 1996. p. 14, 16-20,52-8.

1---__Pense e responda

1. No texto, o autor se refere, como obstáculo à expansão dos direitos de cidadania no

Brasil, à "permanência de estruturas econômicas e sociais que datam do tempo colonial".

Você concorda com a opinião dele? Que estruturas são essas?

2. Ainda segundo o autor, "o princípio legal de que todos são iguais perante a lei não

elimina as concretas desigualdades sociais". Em sua opinião, essas desigualdades afetam oexercício dos direitos de cidadania?

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