SCHEFFLER, Ismael. Diferentes camadas de recepção em A ... · cidade está presente no livro A...
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SCHEFFLER, Ismael. Diferentes camadas de recepção em A Breve Dança de Romeu e
Julieta. In.: CARREIRA, André (Org.) Teatralidade e cidade. (Cadernos do
Urdimento. n. 1, 2011/1.) Florianópolis: UDESC, 2011. p. 17-38.
Diferentes camadas de recepção em A Breve Dança de Romeu e Julieta
Ismael Scheffler 1
Introdução
O espetáculo A Breve Dança de Romeu e Julieta foi criado e apresentado no
primeiro semestre de 2009. Paralelo a sua realização, estive freqüentando a disciplina
dirigida pelo professor Dr. André Carreira sobre o tema da cidade e do teatro de rua,
discussões e leituras que subsidiaram o processo prático do espetáculo. Embora a
proposta não consistisse em aplicar os conceitos vistos em aula, a oportuna coincidência
possibilitou um campo fecundo de reflexão e prática. Como requisito de conclusão da
disciplina, diante da proposta da redigir um artigo sobre o tema, pensei ser interessante
o exercício de novamente "coincidir" estudo e prática cênica e me dediquei a um novo
exercício que é o de sistematizar conceitos. Assim, a proposta deste artigo consistiu em
tomar como base o espetáculo por mim dirigido, considerando alguns aspectos de seu
processo de criação no que tange a influência do espaço urbano, tomando-o como pano
de fundo para a abordagem de temas pertinentes. Tanto a realização do espetáculo em
paralelo com as aulas, quanto o exercício posterior de redigir este artigo, se apresentam
como dinâmicas de grande enriquecimento pessoal por sua complementaridade.
Acredito também que o artigo colabore com o tema, na medida em que procura
demonstrar e exemplificar um processo artístico, material igualmente escasso em se
tratando de teatro de rua.
O espetáculo A Breve Dança de Romeu e Julieta2 foi apresentado em Curitiba
pelo TUT (grupo de Teatro da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus
1 Professor de teatro na Universidade Tecnológica do Paraná – Curitiba (UTFPR). Graduado em direção
teatral pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Mestre em Teatro pela UDESC e doutorando em Teatro
no PPGT-UDESC. 2 FICHA TÉCNICA: Elenco: Luan Carlos Pereira Machado, Luana Lavado Ferreira, Levi Brandão,
Bruna Sumie Kawasaki, Louise Caroline Marinho Araújo, Rodrigo Dana Bozza, Leticia Stecanella de
Oliveira, Renata Noronha de Cóssio, Monique Rau, Patricia Cavalcanti de Albuquerque Saldanha, Thays
Milani Ososky, Thiago Marcinko Pauliv, Diego Monteiro Von Ancken, Lucas Daniel, Simone Nhiemetz
Born, Agnan Silveira de Oliveira. Direção: Ismael Scheffler; Assistente de direção: Diego Monteiro Von
Ancken; Adaptação: o grupo; Seleção musical e figurinos: Ismael Scheffler; Maquiagem: Ismael
Schefller e Luan Machado; Cenografia: Ismael Schefller e Kelly Carolini da Silva.
2
Curitiba). Este espetáculo, uma adaptação cênica da peça de William Shakespeare, foi
apresentado entre os dias 25 a 28 de junho na Praça Eufrásio Correia, região central da
cidade. Esta praça foi escolhida como local da ação, por duas razões principais: ser um
espaço público da cidade próximo ao campus curitibano da UTFPR e pela beleza de sua
constituição.
O ano de realização do espetáculo foi também o ano de comemoração do
centenário da Instituição. Daí a proposta de, simbolicamente, inserir a produção
universitária na comunidade. A Praça Eufrásio Correia está localizada há uma quadra da
sede do campus, fato que permitiria com que a UTFPR servisse como base logística do
evento facilitando a administração de questões estruturais3. As comemorações dos 100
anos da Instituição também influenciaram na definição do texto a ser trabalhado pelo
grupo. Romeu e Julieta foi escolhida por ser considerada como uma das peças mais
conhecidas e populares da dramaturgia ocidental e também, desde a criação do grupo
em 1972, seria a primeira vez que este grupo trabalharia com um texto de Shakespeare.
Portanto, A Breve Dança de Romeu e Julieta encontra em sua gênese de criação
cênica, dois elementos igualmente importantes: o texto shakespereano e a configuração
da Praça Eufrásio Correia.
Este artigo procurará refletir, a partir desta encenação, alguns aspectos que
podem ser considerados sobre a temática teatro de rua, especialmente no que concerne
aos aspectos da dramaturgia do espaço. Na primeira parte, realiza um exercício de
leitura do espaço utilizado, a Praça Eufrásio Correia em Curitiba, estabelecendo
conexões com conceitos de Giulio Argan, Kevin Lynch, Henry Lefebvre, Victor Turner
e André Carreira. Na segunda parte, são apresentados alguns conceitos sobre o teatro de
rua tomando elementos do espetáculo A Breve Dança de Romeu e Julieta, realizando
algumas considerações sobre o processo de criação, a influência e a presença do espaço
da praça na obra.
Lendo o espaço – o caso da Praça Eufrásio Correia
A Praça Eufrásio Correia foi criada no final do século XIX, a partir da
construção da Estação Ferroviária, inaugurada em 1885, a porta de entrada à cidade. A
praça, patrimônio estadual desde 1985, mantém registros históricos impressos em si e
em seu entorno, com características de seu projeto: o design de seus canteiros e
3 Preparação dos atores, guarda de materiais.
3
caminhos, árvores grandes e antigas (algumas declaradas imunes ao corte por decreto
municipal) e um dos chafarizes de maior valor histórico da cidade, feito de ferro
fundido em estilo art nouveau vindo da França nos primeiros anos do século XX. A
combinação destes elementos somados ao entorno que mantém algumas fachadas de
prédios antigos, faz com que a praça seja dotada de elementos que a distingue de outros
espaços urbanos desta cidade em constante crescimento. Seu aspecto morfológico, seus
elementos constituintes e a conservação arquitetônica e de jardinagem foram
considerados na identificação de uma carga dramatúrgica latente.
Conforme destaca Giulio Carlo ARGAN, “a cidade resulta composta pelo
entrelaçamento de temporalidades diversas” (2005, p. 83), possuindo uma pluralidade e
diversidade de durações existenciais, o que significa um acúmulo e concentração
culturais. Sendo resultado de um processo, a cidade, embora possa ser projetada, é
considerada por ARGAN como “um produto artístico ela mesma” (2005, p. 73), como
fruto de grande diversidade de técnicas, procedimentos e atuadores.
A Praça Eufrásio Correia é um bom exemplo de como as cidades coabitam entre
o passado e o presente, pois apesar de bastante preservada em seu projeto original, se vê
permeada por elementos da urbanização do século XX e XXI.
A praça ocupou um dos pontos mais importantes de Curitiba, e foi conhecida
como Praça da Estação Ferroviária. Era passagem obrigatória, a porta de entrada, pois
estava à frente da Estação Ferroviária por onde chegavam imigrantes, viajantes,
comerciantes e autoridades nacionais e internacionais. Até meados dos anos 20, o
acesso mais utilizado para Curitiba era por trem, pois outras alternativas eram muito
precárias (BENVENUTTI, 2004, p. 140).
Foi um importante ponto de encontro da cidade no final do século XIX e início
do XX. Seu entorno foi sendo composto pelo comércio, por importantes hotéis que
abrigavam as pessoas chegadas na estação de trem e a região ocupada por indústrias
(erva-mate, o principal produto de exportação do Paraná na época, cerveja, sabão,
fósforos e moinhos). No Largo da Estação, foi construído, nesta mesma época, o Palácio
do Congresso (hoje Palácio Rio Branco) como sede da Assembléia Provincial
(atualmente sede da Câmara Municipal de Curitiba), aumentando a importância da praça
(ESPIRAIS, 2006, p. 178).
4
Como enfatizava Abreu4, a impressão de cidade moderna deveria saltar aos olhos desde
o momento em que o estrangeiro chegasse à capital. Assim, a cidade recebia seus
viajantes oferecendo uma bela praça ornamentada com árvores, flores, bancos, postes de
iluminação elétrica e um chafariz francês. Ao seu redor, hotéis chiques, como o Roma e
Tassi, ofereciam hospedagem confortável e higiênica. A fonte era outra alegoria
burguesa e tema principal de muitas fotos, mostrando que Curitiba também tinha sua
fonte monumental! (BENVENUTTI, 2004, p. 108-109)
Em seu estudo, Alexandre Benvenutti aponta os ideais de modernização de
Curitiba no início do século passado, e destaca a importância que a Praça Eufrásio
Correia desempenhou na construção do conceito de uma nova cidade, a cidade ideal, em
um sentido análogo a que ARGAN (2005, p. 74) se refere, da cidade ser representativa
ou visualizadora de determinados conceitos ou de valores.
Foto 1 – Vista parcial da Praça Eufrásio Correia. Calçada central e fonte em estilo art nouveau. Foto: Ismael Scheffler.
Com o desenvolvimento do transporte rodoviário por meio da abertura da
rodovia Régis Bittencourt, na década de 1960, a estação ferroviária de Curitiba teve
diminuído seu papel levando a um enfraquecimento da região da praça. A inauguração
da Estação Rodoferroviária (1972) há algumas quadras de distância, levou a um
deslocamento dos usos da região e a diminuição da presença da Praça Eufrásio Correia
na cidade (ESPIRAIS, 2006, p. 178). Por vários anos a praça permaneceu em uma
região central obsoleta, resistindo ainda por sua localização ao lado da Câmara de
Vereadores. Em 1997, com a criação de um shopping center nas instalações da antiga
4 Cândido Ferreira de Abreu, engenheiro e prefeito de Curitiba em 1892-1894 e em 1913-1916.
5
estação de trens e a instalação de uma estação de ônibus de grande circulação com o
nome da praça, ela passou a ter nova visibilidade.
A partir do centro da Praça Eufrásio Correia, observando seu derredor, é
possível perceber além de uma intensa carga histórica nas fachadas da arquitetura,
elementos do contemporâneo (trânsito e veículos com seu intenso ruído, placas e
construções recentes como o gigantesco prédio do shopping) além da estação de ônibus
e o fluxo dos coletivos bi-articulados tipicamente curitibanos, mantendo continuamente
à lembrança, a localização de onde se está. Estes elementos “aleatórios” que compõem o
ambiente não absorvem, contudo, as características da praça preservadas através do
tempo. Isto é, na medida em que o sujeito adentra a pequena praça, ela envolve este
sujeito com suas características antigas. O espaço provoca sensações e evocações, um
mergulho num tempo passado, distante mas presente, que convive com o ritmo
acelerado da cidade e ao fluxo funcionalista das ruas que ladeiam a praça.
Um estudo de grande referência utilizado por inúmeros pensadores sobre a
cidade está presente no livro A Imagem da Cidade, de Kevin Lynch. A partir de
pesquisas realizadas, Lynch identifica nos usuários da cidade os processos de leitura e
percepção desta e aponta cinco tipos de elemento neste sentido: vias, limites, bairros,
pontos nodais e marcos. Partindo das propostas de Lynch, as praças podem ser
consideradas como pontos nodais.
Os pontos nodais são pontos, lugares estratégicos de uma cidade através dos quais o
observador pode entrar, são os focos intensivos para os quais ou a partir dos quais ele se
locomove. Podem ser basicamente junções, locais de interrupção do transporte, um cruzamento ou uma convergência de vias, momentos de passagem de uma estrutura a
outra. (LYNCH, 2006, p. 52-53).
Por serem conexões, exige das pessoas a tomada de decisões pois as junções
oferecem opções que exigem do observador uma atenção maior em seu trajeto. São
pontos importantes que orientam, de transição, que favorecem a visibilidade e
orientação, tendo funções importantes de organização da cidade. Estes pontos, portanto,
embora dotados de características físicas destacadas, estão relacionados à cultura de seu
uso e percepção dentro da cidade.
Neste sentido, pode-se perceber como a Praça Eufrásio Correia teve, ao longo de
sua existência, destaque e impacto na percepção da cidade em níveis diferentes. Em sua
criação, ela estabelecia uma referência entre a estação de trens, a região industrial e o
centro urbano, concentrando comércio e zona hoteleira, tendo um entrono ativo. O
interesse, já apontado, de que a praça deveria impactar na chegada dos viajantes,
6
conectando Curitiba ao seu exterior, demonstra a força expressiva que se pretendia com
ela como um centro de conexão. Por ser conexão de vias importantes, entradas e saídas,
possuía um impacto referencial que foi se perdendo na medida em que o que ela
conectava e aglutinava, se enfraqueceu.
É interessante também destacar que esta praça sempre esteve associada à
Estação Ferroviária, formando com ela ainda considerando Lynch, uma “concentração
temática”. Seu impacto sempre teve relação com este outro ponto nodal, motivo de sua
criação em 1895 e de sua revitalização em 1992, quando o terminal desativado passou a
ser o Shopping Estação5. Por fim, ainda tomando Lynch como apoio de leitura deste
elemento urbano, é preciso considerar o uso das vias que cercam a praça. Com as
restrições de fluxo das avenidas e ruas (mãos-dupla tornando-se únicas, vias exclusivas
para circulação de coletivos) a movimentação do trânsito – e dos cidadãos – diminuiu.
A diminuição do fluxo e do uso faz com que sua referência como ponto também siga na
mesma redução. Com a expansão da cidade, a praça também foi deixando de ser um
ponto de orientação de direções, sendo absorvida e se tornando mais introvertida.
A pesquisa de Lynch, que é focada no caráter visual das cidades e seus
elementos constitutivos, destaca o exercício efetivo do cidadão na decodificação, leitura
e orientação da cidade. O autor demonstra que as regiões e elementos urbanos não são
considerados qualitativamente iguais, mas inscritos na memória e carregados de
sentidos diversos. Ao descrever a cidade, o cidadão revela discursos, como se a cidade
falasse. Esta carga dramática pode ser absorvida pelo teatro de rua aumentando os níveis
de interação com o público. O teatro é inevitavelmente lido com estes mesmos olhos
quando se insere na estrutura urbana.
Henry Lefebvre também considera sobre a questão da leitura da cidade. Este
autor afirma que não simplesmente coincidem edifícios com as instituições que os
abrigam (ex.: templos e religião, palácios e governo), mas salienta que os edifícios
“representam a eficácia e a „presença‟ social dessas instituições” (LEFEBVRE, 2001, p.
60) e imprimem uma projeção destas instituições na cidade. Lefebvre reconhece a
existência de uma “escrita” urbana e da potência que as cidades possuem em emitir e
receber mensagens. Ele tece algumas considerações sobre uma semiologia da cidade e
promove uma reflexão sobre a utilização deste aporte teórico como forma de ler a
cidade, levantando algumas admoestações nesta aplicação (LEFEBVRE, 2001, p. 63-
5 Este referencial é tão notório que os cartazes do espetáculo referenciavam a localização da praça com o
dizer: “em frente ao Shopping Estação”.
7
66). Para este autor, a escrita da cidade corresponde a “aquilo que se inscreve e se
prescreve em seus muros, na disposição dos lugares e no seu encadeamento, em suma, o
emprego do tempo na cidade pelos habitantes dessa cidade”. (LEFEBVRE, 2001, p. 64)
e isto corresponde à morfologia material e à morfologia social que, como ele destaca,
são inseparáveis.
Ao se considerar a expansão de crescimento da cidade de Curitiba nos últimos
anos, é preciso observar a grande quantidade de migrantes que a cidade tem recebido
anualmente. Se em 1970 a cidade possuía uma população de 609.026 habitantes, em
1990, a população chegou a 1.315.035 e em 2007, a 1.797.408. (POPULAÇÃO, 2009).
Isto significa que a vida das pessoas neste contexto urbano é influenciada por uma
memória da vida curitibana recente. Sendo assim, as “lembranças” e experiências de
grande parte da população não estão marcadas pelos anos áureos e gloriosos da praça.
Observando-se a vida da praça, seu uso e o fluxo humano atualmente, percebe-
se: a praça serve como caminho de travessia para um número pequeno de pessoas; a
praça reúne alguns desocupados que passam freqüentemente várias horas por dia
alcoolizados ou drogados, realizando pequeno tráfico de drogas; a praça recebe um
pequeno número de trabalhadores que descansam nos bancos no horário de almoço ou
pessoas em circulação que descansam; um insignificativo número de turistas ou
moradores visitam rapidamente o local, especialmente o chafariz; diariamente a praça é
mantida por funcionários da prefeitura e recebe rondas freqüentes de policiais; a praça é
local de trabalho diário para hippies que comercializam bijuterias em uma de suas
calçadas externas próximo às estações de ônibus; na praça se concentram adolescentes
da periferia em grande número aos domingos à tarde. A praça não apresenta em si
fluxos intensos nem promove reunião ou encontro da população geral. As dinâmicas
relacionais freqüentes ocorrem por segmentos humanos que se colocam à margem da
sociedade capitalista-produtiva provenientes de estratos sociais de baixa renda. Este
perfil gera então para significativa parte da população, um sentimento de que ao se
adentrar na Praça Eufrásio Correia é necessário estar atento pelo risco eminente de
exposição a certa marginalidade.
A Praça Eufrásio Correia desperta ambigüidades de prazer estético e receio
social, e reúne aspectos também ambíguos de refúgio espaço-temporal e de imposição
sonora e rítmica do trânsito de veículos ao redor. Torna-se margem do contexto urbano
comercial e funcionalista, possuindo além de sua função de “espaço não produtivo”,
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aspectos de “descontextualização” de uma estética contemporânea, servindo a
segmentos marginalizados pelo sistema, recebendo atribuições diversas de “ociosidade”.
Victor Turner, ao estudar ritos de passagem em sociedades primitivas, identifica
um feixe de fenômenos sociais que se repetem nas sociedades de todos os tempos e
lugares. Dois conceitos que podem subsidiar uma reflexão sobre o teatro de rua é o de
liminaridade e de communitas.
Van Gennep anteriormente apontou a existência de três fases em todos os ritos
de passagem: separação, margem (ou limen) e agregação (TURNER, 1974: 116).
Turner, por sua vez, relembra que em um rito, após a separação do indivíduo ou grupo
da estrutura social, ele adquire características ambíguas, assim como o espaço, estando
num limiar no qual os atributos são distintos tanto do passado quanto do futuro, da
estrutura da qual partiu e na qual será reinserido (a terceira fase, a agregação). Os
atributos da liminaridade - de fenômenos, locais ou de pessoas liminares - escapam das
classificações que normalmente organizam a lei, os costumes e as convenções
(TURNER, 1974, p. 118). Para Turner, estes fenômenos liminares estão situados dentro
e fora do tempo, dentro e fora da estrutura social, como se existissem dois “modelos” de
relacionamento humano: o primeiro, da sociedade como um sistema estruturado,
hierárquico, separando os homens com noções de mais ou menos (posições político-
jurídico-econômicas); o segundo, surge no período liminar, da sociedade como
comitatus não-estruturado, uma comunhão de indivíduos iguais. Turner emprega o
termo latino communitas, para não confundir com comunidade (área de vida em
comum), pois sua existência está relacionada à liminaridade. Assim, estrutura e
communitas são colocadas como duas formas distintas de relacionamento e organização
social dentro de contextos distintos de tempo e espaço, diferenciação e homogeneidade,
desigualdade e igualdade. Estes dois sistemas de posições sociais incorrem na atribuição
de status de forma diferenciada: “a communitas tem uma qualidade existencial, abrange
a totalidade do homem, em sua relação com outros homens inteiros. [...] a estrutura
consiste essencialmente num conjunto de classificações, [...] para ordenar a vida pública
de alguém.” (TURNER, 1974, p. 155).
A cidade evidentemente abriga sociedades estruturadas que não apenas
hierarquizam a população em grupos sociais, mas também os espaços ocupados por
estes cidadãos. Poderia-se afirmar que a Praça Eufrásio Correia possui potencialmente
características liminares pela forma de relação que os citadinos estabelecem em/com
aquele espaço. O perfil das pessoas que tem utilizado a praça é de representantes de
9
valores que se chocam com os princípios burgueses e produtivistas, pessoas
consideradas “inferiores” por não assumirem os aspectos normativos que têm guiado a
vida na urbes contemporânea. Estas pessoas (hippies, adolescentes de periferia,
desocupados) gestam modelos de vida urbana que desprezam as exigências das
obrigações sociais e são considerados, por isto, como marginais. Ao se colocarem à
margem da sociedade, vivem em uma temporalidade distinta da temporalidade que
estrutura a vida funcional e produtiva da cidade capitalista, comercial e industrial.
Turner destaca que a liminaridade e a communitas podem ser verificadas em
uma diversidade de fenômenos sociais nas diversas culturas e coloca a arte como um
destes fenômenos:
os profetas e os artistas tendem a ser pessoas liminares ou marginais, „fronteiriços‟ que se esforçam com veemente sinceridade por libertar-se dos clichês ligados às
incumbências da posição social e à representação de papéis, e entrar em relações vitais
com os outros homens, de fato ou na imaginação. (TURNER, 1974, p. 155).
De certa maneira, a Praça Eufrásio Correia e a realização do espetáculo A Breve
Dança de Romeu e Julieta aproximam universos liminares: ambos transitam, de
diferentes maneiras e profundidades, em círculos de certo descomprometimento mais
direto com o sistema e a cultura urbana. O TUT, sendo um grupo de teatro composto
por atores não profissionais e pertencente a uma instituição de ensino, habita um espaço
que não corresponde nem ao teatro comercial nem ao teatro oficial produzido por
agências promotoras de arte. Embora, naturalmente esteja inserido numa instituição
“oficial” (universidade pública), encontra-se à margem das estruturas determinantes do
teatro profissional. No teatro amador, os atores exercitam esta prática como uma
atividade paralela em suas vidas, que os conduz coletivamente a uma outra
temporalidade que não funcional-cotidiana, uma vivência da communitas (para utilizar o
termo de Turner).
A realização deste espetáculo possibilita vivências e encontros que interferem
em múltiplos habitantes da cidade e na sua relação com a vida em sociedade.
As inter-relações entre o teatro e a cidade – entre espaço cênico e espaço urbano –
podem desencadear ações e movimentos no campo da cultura, fundamentais para a
invenção de novas formas de sociabilidade, ao estabelecer uma via direta de
comunicação e de interação entre os diversos segmentos da sociedade. [...] A
manifestação artística formadora realizada no espaço livre público da cidade pode ser
um instrumento eficaz para o redimensionamento e a resignificação da paisagem urbana e, em última instancia, da própria cidade. (CARDOSO, 2008, p. 69)
10
Ainda outro aspecto que é interessante observar sobre o teatro de rua, diz
respeito ao que pode ser chamado de segregação espacial no âmbito urbano. Este
aspecto se refere tanto às dinâmicas dos espaços de circulação, habitação,
entretenimento, comércio e indústria, quanto às dinâmicas sociais em relação a espaços
abertos-públicos e fechados. Sobre isto André Carreira argumenta:
A hierarquização espacial que estabelece a cidade considera alguns espaços nobres e
outros marginais. Ao confirmar o espetáculo teatral nas salas, a cultura capitalista
determinou que o espetáculo aceitaria perder caráter de festa e ganharia o valor de
mercadoria. Tal mercadoria tem mais valor nos espaços fechados onde o pagamento de
entrada não somente gera lucro, mas também outorga hierarquia. Neste marco, a
manifestação teatral na rua ocupa, cada vez mais, um espaço de marginalidade. A
expressão desta marginalidade denuncia a cara segregacionista do sistema e portanto o
questiona, transgredindo assim as regras do uso espacial da cidade. (CARREIRA, 2007,
p. 36).
Ao optar pela realização do espetáculo A Breve Dança de Romeu e Julieta em
um espaço público da cidade como forma de celebração do centenário da instituição que
abriga o grupo, pode reconhecer-se uma ação política muito além do que uma proposta
de “ornamentação” ou “decoração” da programação oficial, mas de uma práxis social de
communitas, na qual se cria um espaço de festa, convivência e partilha de direitos à
cidade.
André Carreira ao desenvolver o conceito de dramaturgia do espaço, propõe que
se observe (leia) a estrutura e as falas da própria cidade: “é da observação das diferentes
superfícies da cidade, a saber, sua dimensão geográfica, sua dimensão edílica, seus
fluxos e contrafluxos, sua textura política, que podemos considerar a fala teatral que
emerge da sobreposição destes elementos” (CARREIRA, 2008, p. 60). Ele defende que
as regras da cidade funcionam como material dramático na medida em que constituem
um texto que pode ser tomado como pré-texto para a construção da cena. A cidade então
pode ser reinterpretada pelo discurso cênico que ao mesmo tempo toma as estruturas
físicas da cidade como suporte de sua construção espetacular. (CARREIRA, 2008, p.
74)
Carreira considera diferentes eixos para a leitura da cidade e identificação dos
potenciais dramatúrgicos dos espaços públicos: o histórico, o estético, o funcional, o
morfológico, o social e o político6. O eixo histórico tem relação com a memória e a
significação sendo, portanto, muito variável à população, mas possuindo camadas
comuns aos citadinos. Baseado em experiências, o valor histórico se faz presente
também na temporalidade inscrita na arquitetura, nos monumentos e na vegetação. O
6 Anotações feitas em aula na disciplina A cidade e o teatro, do PPGT - Doutorado, UDESC, em 2009.
11
eixo estético corresponde às marcas artísticas impressas na paisagem urbana, do design
realizado por arquitetos, escultores, urbanistas, paisagistas – profissionais ou não, como
o caso de pichações e grafites ilegais ou oficiais como mosaicos nas calçadas ou
fachadas prediais. O eixo funcional tem a ver com os usos e fluxos (dos pedestres, dos
veículos, assim como do “fluxo estacionário”), com as utilizações que são feitas dos
espaços urbanos. O aspecto morfológico da cidade diz respeito a aspectos da topografia
e dos níveis existentes, tanto naturais quanto artificiais, considerando-se não apenas o
plano, mas também os potenciais verticais, subterrâneos, as amplitudes, de iluminação e
climáticos. O eixo social corresponde àquele que considera as condições sociais e
econômicas dos estratos da sociedade no espaço público, percebendo características,
contradições ou aspectos contratantes. O eixo político tem relação com as operações
feitas nos âmbitos do poder público oficial e dos usuários, com os valores e atenção
dispensados e na organização dos poderes.
Para Carreira, é inevitável que o espectador do teatro de rua leia sem dicotomia o
espetáculo de rua e a cidade, pois “a silhueta urbana é propriedade do público e porta
um quadro de significação prévio à intervenção teatral” (CARREIRA, 2005, p. 30).
A Breve Dança de Romeu e Julieta: três manifestações performáticas e diferentes
camadas de recepção dos citadinos
Tradicionalmente o teatro é caracterizado por sua apresentação sobre um palco,
tablado ou desenho de uma linha que faz a fronteira entre o espaço da cena e o espaço
do público. No entanto, na história do teatro e na contemporaneidade, pode-se encontrar
manifestações teatrais e espetaculares que não se restringem a delineação de um espaço
restrito para a cena. Diversas manifestações teatrais ou cênicas (como os desfiles de
carnaval) possuem dinâmicas de permeação entre as instâncias da cena e do público,
assumindo uma espacialidade amorfa ou de amplitudes variadas.
A Breve Dança de Romeu e Julieta consistiu em um espetáculo com cerca de 40
minutos de duração que ocorreu no âmbito da Praça Eufrásio Correia. A encenação
concentrava a ação no pátio central da praça, em torno do chafariz, embora extrapolasse
este âmbito e alterasse morfologicamente, provocando o alargamento ou a compreensão
do espaço cênico pela ação dos atores.
Pode-se, ao tratar deste espetáculo, identificar três dinâmicas perfomáticas
distintas, baseando-se: no tipo e utilização do espaço, nas relações com os espectadores
e no conteúdo (narrativa).
12
A primeira manifestação performática corresponde ao trajeto desde o pátio da
UTFPR até o centro da praça (e a volta ao final), passando pelo meio do trânsito das
avenidas entre estes pontos7. Se relacionado ao espetáculo central, seria como um
prelúdio e um pósludio. A proposta da encenação na praça era de ser completamente
portátil e independente de uma equipe técnica de montadores de estruturas cenográficas.
À exceção da instalação do equipamento de som que circundava o pátio central da
praça, todos os dispositivos cênicos a serem usados durante a encenação chegavam com
os atores e igualmente eram desmontados e carregados por estes ao final.
Este cortejo que se infiltrava no fluxo do tráfego era feito por todos os atores
que, empurrando a carroça do Príncipe, interditavam cruzamentos, dialogavam com
pedestres e motoristas chamando para o espetáculo. Esta quebra de fluxo cotidiano
urbano impunha pela expressão lúdica uma nova ordem. Ao invadir a cidade e ditar um
outro ritmo ao trânsito e estabelecer interação com os passageiros dos veículos, os
artistas proporcionavam uma experiência rápida a um público efêmero. A ação
interventiva que cria circunstâncias tensionais, coloca-se em oposição à ordem pública
de circulação configurando-se por isto como uma ação (política) que se opõe às
hierarquias da eficiência, produtividade e funcionalidade da cidade – cria uma fissura
liminar, como visto acima. A ação simples de se incorporar e interromper o trânsito
possui determinados valores sociais que variam em termos de impacto em uma cultura.
Para uma cidade como Curitiba, que cultiva e coage a hábitos politicamente corretos -
não jogar lixo no chão e organizar-se espontaneamente em filas para o embarque no
transporte público - interromper o fluxo do trânsito exige que esta população se
posicione e rompa com o fluxo dos hábitos de sua cultura.
7 Avenida Silva Jardim, Avenida Marechal Deodoro e Avenida Sete de Setembro.
13
Foto 2 – Travessia no cruzamento da Avenida Sete de Setembro com a Avenida
Marechal Deodoro. Foto: Débora Kretzer.
A segunda manifestação corresponde ao espetáculo propriamente dito. Como
forma de recortar o espaço da cidade para um acontecimento extra-cotidiano, caixas de
som eram instaladas em torno da calçada central da praça cerca de 30 minutos antes da
chegada dos atores, tomando um segmento da cidade sonoramente e atraindo a atenção
para este local. O público que ia se reunindo ali podia avistar há cerca de uma quadra de
distância os atores se aproximando pela via pública. Como o circo que desfila pelas ruas
e monta sua tenda, os atores chegavam ao centro da praça e estabeleciam três
“edifícios”: duas barracas inspiradas em imagens de lonas circenses em pontos
separados do pátio central da praça entorno do chafariz (as casa dos Montéchios e dos
Capuletos) e um picadeiro, no outro lado, sobre um canteiro redondo de gramas com
uma grande árvore central (a igreja)8. As características da praça foram preservadas,
sendo que a presença e ocupação foi o que transformou de fato o espaço. A praça gerava
uma atmosfera ao acontecimento teatral e o acontecimento teatral gerava um atmosfera
para peça. A praça não apenas recebia uma cenografia, mas tornava-se cenografia
também, e estabelecia um discurso que excedia ser receptáculo para impor-se como
enunciador do espetáculo.
8 As barracas, além de configurarem como cenografia, tinham a função de servir de coxias aos atores que
não deveriam estar em cena, ocultando-os dos espectadores. O Frei permanecia durante toda a encenação
aos olhos do público ornamentando (e posteriormente desmontando) sua “igreja” com fitas na árvore e
plantando cata-ventos no gramado.
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Foto 3 – Vista parcial da praça. Ao fundo, a casa de Julieta perto do chafariz. No lado
direito, a igreja. A casa de Romeu esta oculta nesta foto atrás da árvore. Foto: Ismael
Scheffler.
A inserção de tendas e definição da igreja provocava uma convergência central
já prenunciada pela colocação do equipamento de som que cercava o pátio central. Este
campo tornava-se apreensível pelo olhar do espectador que podia permanecer num
mesmo ponto observando sem precisar perseguir a cena9.
A estrutura da praça, seus elementos arquitetônicos, mobiliário e vegetação,
embora fixos, passavam a ter uma nova organização em sua seleção e utilização na
medida em que os atores interagiam com estes elementos e a ação propusesse o
direcionamento do olhar10
.
A praça se tornava metáfora da praça ficcional de Verona com a instalação das
“residências”. O público do espetáculo se tornava partícipe da cena, como os cidadãos
de Verona que assistiam na praça o desenlace dos conflitos da fábula no espaço público
do drama. Esta situação é próxima ao que André CARREIRA expressa:
O cidadão que transita nestes espaços compõe um elemento do próprio espetáculo e ao
mesmo tempo representa seu público potencial. Isso redefine a lógica da construção
dramática tradicional na qual o público é foco do processo criador e, portanto, está fora
das margens do mesmo. (2008, p. 75)
O espetáculo partiu do texto shakespeareano e abriu mão dos diálogos,
traduzindo a história para a cena por meio do gesto, da coreografia e da plasticidade das
9 O público cercava este pátio central se colocando principalmente nas bordas, acompanhando a linha das
quatro caixas de som que cercavam o local. 10 Um exemplo é quando Romeu e Julieta soltavam um cacho de balões de gás que subiam, levando os
espectadores a realizar um olhar ascendente desde o chafariz ao topo dos grandes plátanos da praça.
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imagens. A ação foi sublinhada continuamente por uma trilha musical organizada em
sete momentos-partes-músicas 11
.
Para o espetáculo, foi confeccionado um programa em que, entre outras
informações, incluía um roteiro com um resumo de cada parte. A proposta de fornecer
um roteiro resumido da história pretendia oferecer um instrumento para que o público
suprisse perdas sofridas da narrativa durante o espetáculo.
Quando se compara as condições de assistência do espectador em uma sala
fechada e um espaço urbano, identifica-se algumas diferenças nos condicionamentos da
atenção, tema desenvolvido por CARREIRA que afirma que “ao contrário da sala
teatral que permite a melhor e mais detalhada recepção do espetáculo, a rua é um espaço
que fomenta a dispersão – tanto do público como dos atores – por meio de ruídos e de
acontecimentos múltiplos” (2007, p. 45). Se na sala fechada o espectador passa por
diferentes etapas de preparação para receber o espetáculo12
, na rua esta dinâmica não se
iguala, pois as circunstâncias que o cercam são distintas. O espaço da rua, ainda que seja
preparado, ele é inóspito, como destaca Carreira, e se impõe sobre o espectador. Embora
nem sempre seja lembrado, a sala também se impõe sobre o espetáculo e sobre o
espectador, mas com outros elementos. Na cidade, os elementos são muito mais
aleatórios e interventores.
Na sala é possível um controle muito grande às condições de fruição: controle de
ruídos alheios ao espetáculo, direcionamento da atenção por meio de efeitos de
iluminação, diminuindo os focos de atração e condicionando o olhar, logo, a atenção.
Corporalmente na sala o espectador encontra condições de maior conforto ao sentar-se
em poltronas, ter boa visibilidade e audição, estar protegido das variações climáticas,
assim como protegido dos riscos da vida urbana. Na rua, o espectador é requisitado
constantemente por sons e movimentações da cidade, movendo seu foco de atenção. Ele
também precisa ajustar-se às variações sonoras e visuais, pois o ponto em que se
encontra pode não oferecer um melhor ângulo da cena, levando-o a movimentar-se, se
11 A peça foi adaptada em sete partes, correspondendo a sete músicas: 1) a chegada das duas famílias, o
primeiro confronto e a repressão do Príncipe aos conflitos; 2) Romeu, apaixonado por Rosalina é convidado por seus amigos a ir ao baile; 3) o baile e o encontro de Romeu e Julieta; 4) Romeu e Julieta
trocam juras de amor; 5) o casamento escondido; 6) as mortes de Teobaldo e Mercúcio e o banimento de
Romeu; 7) a imposição do casamento de Julieta com Páris, o falso veneno dado pelo Frei, a falsa morte, o
desencontro de informações e as mortes de Romeu e Julieta. 12A compra do ingresso, a passagem por diferentes ambientes (hall, corredor até encontrar seu assento), a
diminuição gradativa das luzes, os três sinais da campainha, o blecaute e a abertura das cortinas são
elementos usuais no teatro ocidental que preparam o espectador, condicionando sua atenção, acalmando
sua mente e emoções. Ao adentrar na platéia, o espectador se prepara psicologicamente para receber o
espetáculo.
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infiltrar na multidão. Ele precisa também se adaptar às interferências climáticas de
iluminação solar ou fontes luminosas da cidade, da chuva ou do vento, entre outros
fatores como outras pessoas ou animais que solicitam uma ação, o que leva o espectador
a ocupar-se com outras coisas que não o espetáculo - inclusive a ansiedade em relação
ao tempo, sua pressa (se ele tiver sido surpreendido pela apresentação em seu caminho
cotidiano). Assim, as regras de funcionamento destes dois modelos de espaço cênicos
são completamente distintas. Em A Breve Dança, o espectador precisava ainda manter
seu corpo ativo para dar passagem em vários momentos aos atores e à carroça.
Outro fator que igualmente poderia levar a perdas na narrativa do espetáculo, diz
respeito às opções de uso do espaço cênico. A proposta foi de utilizar todo espaço com
dinâmicas distintas de proximidade e distância física, exigindo uma adaptação de focos
e de direcionamentos do olhar. Como o espetáculo valia-se sempre de cenas múltiplas
aumentando a oferta de informações-estímulos ao espectador, o roteiro resumido das
ações oferecia importante instrumental de apoio para a leitura cênica.
Ainda outro aspecto que poderia levar a dificuldades de compreensão da
sucessão dos episódios corresponde à ausência do texto falado. A Praça Eufrásio
Correia foi, igualmente como o texto de Shakespeare, elemento determinante na
construção do espetáculo. Percebendo-se as dinâmicas sonoras do local (intensidade dos
ruídos do trânsito de veículos e da água do chafariz), constatou-se que o texto falado
enunciado pelos atores sem amplificadores eletrônicos, recairia em grande
comprometimento. As opções sonoras decorreram, portanto, do espaço cênico eleito.
Abriu-se mão do texto, substituindo-o por movimentos, formas e imagens, em
resoluções visuais, sublinhando-se musicalmente todo espetáculo. Buscando encobrir os
ruídos urbanos e envolvendo os sentidos do público, o espectador estaria não apenas
inserido no espaço cênico (fazendo parte dele), como também estaria imerso no clima
musical. A dramaturgia em A Breve Dança escorreu do texto literário e se inscreveu no
espaço, na praça, nos corpos (dos atores e dos demais presentes da praça), nos
elementos visuais e nas músicas.
Estas duas decisões (abolição do texto e uso de trilha musical) acabaram por
indicar o caminho do trabalho do ator, definir a adaptação e as linguagens
correlacionadas. A ausência do texto verbal requer do espectador o aguçamento de
outras formas de leitura do espetáculo, transferindo para outras formas de percepção,
principalmente o olhar. Como o olhar torna-se intensamente estimulado na rua, o roteiro
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resumido foi considerado importante para atender as expectativas de compreensão da
história apresentada.
A falta de comodidade e segurança que a rua impõe aos espectadores é também
a falta de comodidade e segurança que o espetáculo enfrenta em sua realização. Sem os
mesmos mecanismos de proteção da sala fechada (domesticação do público sentado em
fileiras, isolamento do espaço, afastamento de pessoas que não estejam interessadas e
colaborando com a manifestação teatral, proteção da violência ou da natureza), o
espetáculo e os atores se encontram intensamente expostos a riscos. Se por um lado a
música impunha ditatorialmente a duração das cenas da peça, os atores precisavam
administrar as interferências e as penetrações que pudessem surgir ao longo do
espetáculo para que seu ritmo não sofresse quebras.
As condições meteorológicas se configuraram como um dos maiores desafios
que A Breve Dança enfrentou. O clima chuvoso instável acompanhou todas as
apresentações, exigindo do público várias vezes a decisão de permanecer sob a chuva e
ver o final da história ou seguir seu caminho. Assim como a praça oferecia elementos
dramatúrgicos importantíssimos ao sentido da encenação proposta, os efeitos climáticas
compuseram também parte da dramaturgia, adensando a trágica história de amor com
um céu cinza carregado, chuva, vento, calçadas e árvores molhadas.
Foto 4 – Vista da região central da praça e os espectadores.
Uma terceira instância performática que está relacionada a A Breve Dança de
Romeu e Julieta, corresponde a uma interação que transbordava das duas manifestações
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anteriores. A carroça do Príncipe (que desfilou pelas avenidas até a praça e que trouxe
sobre si todos os elementos cenográficos montados na parte central da praça)
permaneceu como elemento cênico ao longo de todo espetáculo. A personagem do
Príncipe de Verona no texto de Shakespeare aparece em momentos pontuais intervindo
na dinâmica de lutas das duas famílias rivais e julgando as situações. Na busca por
responder a uma demanda de ordem prática (onde ficará o príncipe quando não estiver
em cena já que não existiam coxias “neutras” – ou é casa de Romeu ou de Julieta ou o
território da igreja), elaborou-se a proposta de deixá-lo permanentemente em cena. O
Príncipe foi colocado como o soberano tutor de seu reino que, quando não irrompia na
cena no centro da praça, permanecia circulando em seu carro real ornamentado,
percorrendo os caminhos mais distantes de toda a abrangência da praça. A onipresença
do Príncipe se impunha aos espectadores da peça que podiam observá-lo à distância, se
assim o desejassem, paralelo ao transcorrer de toda ação central, assim como perceber
sua gradual aproximação dos conflitos da trama. A carroça, empurrada por três atores
que desempenhavam apenas esta função, era conduzida sincronicamente até o centro da
praça de Verona, campo também do zelo real. O espectador estava assim
completamente envolvido, imerso no ambiente, o que modifica sua percepção e sua
relação com a ficção, com o outro e com a cidade - uma vivência de outro tipo do que a
experimentada na relação frontal.
Pode-se considerar esta “performance do Príncipe” como uma terceira
manifestação por ela desempenhar em paralelo uma outra dinâmica. No interstício do
espetáculo, ocorria uma interação com outro público além do que assistia a encenação:
os transeuntes das avenidas e calçadas externas circundantes. O Príncipe, tal qual um
soberano diante de seus súditos, acenava em desfile solene estabelecendo ações
paralelas a outros segmentos urbanos.
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Foto 5 – Carro do Príncipe circulando pela praça. Foto: Ronaldo Manzano Custódio.
Estas três manifestações cênicas proporcionavam diferentes experiências a
diferentes públicos, estabelecendo vínculos de distintas intensidades e durações:
existiram os espectadores do cortejo, os espectadores que assistiram a todo espetáculo,
os espectadores que assistiram parte do espetáculo (por chegarem depois do início ou
saírem antes do final), as pessoas em circulação pela cidade que perceberam a
movimentação distante (como os passageiros das estações-tubo de ônibus que tinham
uma vista, embora afastada, privilegiada) e os passantes que percebiam ou interagiam
com o Príncipe percebendo no centro da praça uma concentração e movimentação
principal.
André Carreira fala sobre os diferentes planos de atenção dos espectadores no
teatro de rua, destacando a flutuação que decorre do descompromisso que o espectador
transeunte muitas vezes possui com o espetáculo:
Na rua, as convenções sociais não são tão rígidas como as de uma sala de espetáculos, e
como o cidadão não paga entrada nem tem lugar fixo para assistir à representação de
rua, se sente, em todo momento, em liberdade de entrar ou sair do âmbito da
representação. Esta mobilidade cria diferentes planos de atenção dos espectadores.
Desde os que estabelecem uma relação mais comprometida e procuram estar o mais
próximo possível (ainda que nem sempre se comprometam a sentar no chão para assistir
a peça), até os que observam à distância em uma atitude que se equilibra entre a
curiosidade e a crítica. (CARREIRA, 2007, p. 47)
Estas camadas distintas de público possuem fruições e leituras distintas. Neste
tipo de espetáculo, as repercussões são imensuráveis. Não é possível quantificar o
número de pessoas que estabelecem algum tipo de relação com o evento artístico, muito
menos em que proporções ou profundidades ele interfere nos indivíduos. Além da
compreensão de um discurso dramático, está um acontecimento urbano.
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