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João Lemos Se e como poderá uma obra de arte ser bela Acerca das condições de possibilidade da noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant Hermeneutica Kantiana

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João Lemos

Se e como poderá uma obra de arte

ser belaAcerca das condições de possibilidade da

noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant

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João Lemos

Se e como poderá uma obra de arte

ser belaAcerca das condições de possibilidade da

noção de bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant

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Agradecimentos

Devemos iniciar este texto com uma palavra de agradecimento à Sr.ª

Professora Doutora Nuria Sánchez Madrid. Foi ela quem – lado-a-lado

com o Sr. Professor Roberto R. Aramayo, a quem também agradecemos –

possibilitou a sua publicação.

Trata-se da tese de doutoramento que apresentámos à Faculdade de

Letras da Universidade do Porto e que a Sr.ª Professora Doutora Maria

Filomena Molder e o Sr. Professor Doutor Diogo Pires Aurélio tiveram a

amabilidade de avaliar. A ambos agradecemos as valiosas apreciações.

Para a sua realização teve especial importância o financiamento

concedido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob a forma de

uma bolsa de doutoramento. O Instituto de Filosofia da Universidade do

Porto disponibilizou todas as outras condições para que a investigação

se desenrolasse.

Endereçamos um agradecimento especial à Sr.ª Professora Doutora

Maria Eugénia Morais Vilela, que orientou a maior parte da investigação

e da escrita deste trabalho. Enquanto coordenadora do grupo de

investigação Estética, Política e Artes, a Sr.ª Professora Eugénia Vilela

igualmente promoveu um diálogo cuja influência sobre os conteúdos aqui

disponibilizados não pode ser subvalorizada.

Agradecemos também ao Sr. Professor Doutor Adélio da Costa Melo,

responsável pela orientação inicial. Foi com a ajuda do Sr. Professor

Adélio Melo que as nossas questões começaram a tomar forma.

O Sr. Professor Doutor Paulo Jorge Delgado Pereira Tunhas fez muito

mais do que aquilo que era exigível ou expectável. Foi o responsável pela

orientação final desta tese – com entusiasmo e dedicação. Destina-se ao

Sr. Professor Paulo Tunhas o nosso último agradecimento.

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Índice

NOTA INTRODUTÓRIA ....................................................................... 5

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 8

CAPÍTULO I: JUÍZO DE GOSTO ....................................................... 22

1. Juízo estético reflexivo .................................................................. 22

1.1 Juízo estético ........................................................................... 22

1.2. Juízo estético dos sentidos ...................................................... 26

1.3. Princípio da faculdade do juízo .............................................. 30

1.4. A beleza apraz no simples julgamento .................................... 39

1.5. Princípio da conformidade a fins formal da natureza .............. 45

1.6. Ideia do supra-sensível como conceito de um fundamento do princípio da conformidade a fins formal da natureza ................ 58

2. Juízo estético universalmente válido a priori ................................ 60

2.1. Enquadramento ....................................................................... 60

2.2. Supra-sensível como fundamento da validade universal a priori do juízo de gosto .............................................................. 65

2.3. O que significa um juízo de gosto ser universalmente válido a priori? .............................................................................. 67

2.4. Necessidade e sensus communis ............................................. 71

2.5. Necessidade subjectiva, necessidade e validade exemplares, voz universal ................................................................................. 77

2.6. Justificação do sentido comum ............................................... 78

2.7. Um princípio........................................................................... 80

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ÍNDICE

2.8. Juízo erróneo .......................................................................... 82

CAPÍTULO II: ARTE ........................................................................... 89

1. Juízo através do qual se declara artístico um objecto ..................... 89

1.1. Obra de arte ............................................................................ 89

1.2. Representação de uma conformidade a fins objectiva interna............................................................................................ 92

1.3. Possibilidade de falar-se de bela arte ..................................... 96

2. Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte .................. 98

2.1. Impossibilidade de falar-se de bela arte ................................. 98

2.2. Perfeições ............................................................................. 100

2.3. Beleza aderente e juízo de gosto aplicado ............................. 102

2.4. Juízo estético logicamente condicionado .............................. 104

2.5. Beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado ...... 106

2.6. Não pode falar-se de bela arte .............................................. 108

CAPÍTULO III: BELA ARTE ............................................................ 115

1. Belas obras de arte ....................................................................... 115

1.1. Obras de arte livremente declaradas belas ............................ 115

1.2. A noção de bela arte segundo os §44-§46 da Crítica da

Faculdade do Juízo ..................................................................... 118

2. Génio, ideia estética, expressão de ideias estéticas e referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza ....................... 123

2.1. Génio .................................................................................... 123

2.2. Ideia estética ......................................................................... 128

2.3. Expressão de ideias estéticas ................................................ 139

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ÍNDICE

2.4. Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza ....................................................................................... 153

3. Forma .......................................................................................... 159

3.1. Conformidade a fins da forma .............................................. 159

3.2. Figura ................................................................................... 163

3.3. Jogo ...................................................................................... 166

3.4. Da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura ao “Terceiro momento do juízo de gosto” da Crítica da

Faculdade do Juízo ..................................................................... 172

3.5. Vários Elementos.................................................................. 179

3.6. Forma e expressão ................................................................ 182

3.7. Importância da forma no sentimento do sublime .................. 187

4. Beleza aderente como beleza ....................................................... 194

4.1. Beleza da arte como beleza aderente .................................... 194

4.2. Beleza da arte como beleza livre .......................................... 210

4.3. Gostos ................................................................................... 218

CAPÍTULO IV: PARA A PRODUÇÃO DE BELA ARTE ............... 232

1. Educação do génio ....................................................................... 232

2. Cultivo, exercitamento e correcção do gosto ............................... 244

CONCLUSÃO .................................................................................... 264

BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 274

ANEXOS ............................................................................................ 283

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Nota Introdutória

A obra que motiva esta tese de doutoramento é a Kritik der Urteilskraft, de Immanuel Kant, originalmente escrita em Alemão. A nossa tese é escrita em Português e dirigida a leitores do Português. Por esta razão, sempre que citamos passagens da Kritik der Urteilskraft, utilizamos uma tradução portuguesa; por aquela outra, é recorrente transcrevermos o texto original quando fazemos uma citação. Numa tese em que as citações aparecem com grande frequência, cremos ser esta a metodologia mais adequada para que o leitor acompanhe, em continuidade, o raciocínio que aí é desenhado.

Igualmente considerando a possibilidade de acompanhamento, em continuidade, do raciocínio desenhado nesta tese, devemos assinalar que, em cada citação, optamos por transcrever do original apenas as partes especialmente relevantes para o assunto que estamos a abordar no

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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momento em que a citação é feita. Nuns casos, essa opção resulta na transcrição da totalidade da passagem; noutros, não. É nossa opinião que tal contribui para que a leitura não seja perturbada por transcrições. Importa também indicar que não deixamos de proceder a reorganizações gramaticais sempre que fazê-lo se afigura relevante.

A edição da Kritik der Urteilskraft que utilizamos para transcrever as palavras de Kant, em Língua Alemã, é a da Preußische Akademie der Wissenschaften. No que diz respeito à ortografia, citamos o texto dessa edição adaptando-o à escrita actual, posterior à Rechschreibreform de 1996 – desde logo, escrevemos “Urteilskraft”, não “Urtheilskraft”.

A tradução a que recorremos para citar a Kritik der Urteilskraft em Português é a realizada por António Marques e Valério Rohden e editada em 1998 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Mantemo-la exactamente como está publicada, incluindo aquilo de que discordamos e aquilo que consideramos serem gralhas. Sempre que nos parece pertinente alterar ou simplesmente comentar a tradução de uma palavra ou passagem, acrescentamos uma nota de rodapé.

No que concerne à primeira Einleitung à Kritik der Urteilskraft, utilizamos a tradução realizada por Rubens Rodrigues Torres Filho. Quando a citamos, mantemos as opções do tradutor – por exemplo, a tradução de “Urteilskraft” por “Juízo”. No entanto, em nenhum outro caso submetemos a nossa escrita a essas opções – usamos a expressão “faculdade do juízo”, por exemplo.

Passagens de comentadores da obra de Kant ou passagens de outros filósofos são por nós citadas em Português. Nos casos em que utilizamos traduções portuguesas dos textos desses autores, limitamo-nos a transcrever os excertos tal como estão escritos nessas traduções; naqueles em que apenas lemos os textos na língua estrangeira em que originalmente são escritos ou noutra língua estrangeira, traduzimo-los, sob nossa responsabilidade, para Português.

Sempre que citamos um comentário no qual é citada uma passagem da Kritik der Urteilskraft, a passagem do texto de Kant é por nós transcrita segundo a tradução portuguesa supramencionada. Fazêmo-lo para

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NOTA INTRODUTÓRIA

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proporcionar ao leitor da nossa tese uma mais rápida localização da passagem citada no comentário.

Ainda no que diz respeito a comentadores da obra de Kant ou a outros filósofos, é de assinalar que referimos, na Bibliografia, escritos que ao longo do nosso texto não são mencionados. Consideramos que uma tese de doutoramento pode ser um meio para partilhar referências bibliográficas relativas ao assunto por ela abordado.

Finalmente, uma nota relativa à maneira como citamos diferentes títulos presentes na Crítica da Faculdade do Juízo. A terceira Crítica mereceu pelo menos um prólogo, duas introduções, duas partes, duas secções, duas divisões, dois livros, vários apêndices, várias observações – com diferentes estatutos entre si na hierarquia dos títulos presentes na obra, tal como acontece com os apêndices – e quatro momentos – cada um com a sua explicação. De forma a evitarmos eventuais mal-entendidos na leitura do nosso texto decorrentes de um grafismo variado, optamos por citar os referidos títulos do modo que se apresenta no anexo “1. Títulos”.

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Introdução

A questão central que conduz esta investigação é a de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant.1 Por outras palavras: pretendemos saber se e sob que condições será legítimo usar-se a expressão bela arte no âmbito da terceira Crítica. A partir da resposta a essa questão, responderemos igualmente à

1 Não problematizaremos, na nossa tese, propostas de distinção entre Kraft e Vermögen ou, mais especificamente, entre Urteilskraft e Vermögen zu urteilen. Note-se, a este propósito, que, no §35, Kant identifica essas duas expressões, nomeadamente ao afirmar que «[a] condição subjectiva de todos os juízos é a própria faculdade de julgar ou a faculdade do juízo ([d]ie subjektive Bedingung aller Urteile ist das Vermögen zu urteilen selbst, oder die Urteilskraft)» (Kant, 1998: 188). Seguimos a opção dos responsáveis pela tradução portuguesa por nós usada para fazer citações – traduzir “Kritik der Urteilskraft” por “Crítica da Faculdade do Juízo”. Tal opção não terá qualquer influência sobre a questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte.

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INTRODUÇÃO

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questão de saber o que será necessário para a produção de bela arte, isto é, para a produção de belas obras de arte.

Embora de um modo intermitente, e numas vezes mais explicitamente do que noutras, a noção de bela arte (schöne Kunst) é uma noção que atravessa toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” da Crítica da

Faculdade do Juízo.2 Assim, no §14, Kant menciona explicitamente «belas-artes (schöne Künste)» (Kant, 1998: 115); no §16, cita objectos artísticos como sendo belos (cf. Kant, 1998: 120-121); no parágrafo seguinte (§17) acerca do ideal da beleza, o nosso autor escreve uma nota sobre aquele que ele virá a dizer tratar-se do talento para a produção de objectos belos, a saber, o génio (cf. Kant, 1998: 268); mais à frente, na “Observação geral sobre a primeira secção da analítica”, usando «parques, decoração de aposentos, toda a espécie de utensílios de bom gosto, etc» como exemplos, tal, de resto, como «o gosto inglês por jardins» ou «o gosto barroco por móveis», Kant sublinha uma actividade que, como posteriormente veremos, é indispensável à bela arte, a saber, o «jogo livre das faculdades de representação» (Kant, 1998: 134); no §32, a propósito da primeira peculiaridade do juízo de gosto, Kant, embora sem utilizar a palavra génio, procede a uma primeira explicação daquilo pelo qual, como mostraremos, esse talento precisa de ser acompanhado para que se produzam obras de arte belas (cf. Kant, 1998: 183-185); dez parágrafos depois, no §42, ele utiliza as expressões «belo da arte (Schöne der Kunst)»

2 Na tradução portuguesa por nós usada para fazer citações, a expressão “schöne Kunst” é traduzida não apenas por “bela arte”, mas também por “arte bela”. Não sabemos o que terá motivado essa opção. Não vemos nela qualquer problema, porém. Aliás, na medida em que pelo menos não contribui para a assunção da possibilidade de falar-se de bela arte enquanto algo independente do que seja a beleza e do que seja a arte – bela arte que, nesse caso, estaria materializada nas obras das chamadas belas-

artes, das schöne Künste, das fine arts, mesmo que essa designação nada tivesse a ver com o que seja a beleza ou a arte – a expressão “arte bela” poderá ajudar a ver a relevância da questão de saber se a arte pode ser bela, se a beleza pode ser artística. Devemos ressalvar, no entanto, que a emergência dessa pergunta em nada depende de uma tradução de “schöne Kunst” por “arte bela”. Por essa razão – e porque, de facto, Kant escreve unicamente “schöne Kunst” – tenderemos a usar a expressão “bela arte” para traduzi-la.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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(Kant, 1998: 201), «beleza da arte (Kunstschönheit)» (Kant, 1998: 202) e «bela arte (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 204); e, nos §44-§53, procede a uma descrição directa da bela arte e de tudo o que esta envolve, como é indiciado pelos títulos dos parágrafos respectivos (cf. Kant, 1998: 208-237); na primeira observação ao §57, Kant refere o «padrão de medida àquela conformidade a fins estética porém incondicionada na arte bela (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 252); no parágrafo que se segue (§58) o nosso autor aborda o «princípio do idealismo da conformidade a fins» na «arte bela (schöne Kunst)» (Kant, 1998: 259); finalmente, no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant dá-nos indicações quer sobre a «maneira», quer sobre a «propedêutica» à «bela arte (schöne Kunst)» (cf. Kant, 1998: 264-266). Antes de tudo isso, no Prólogo à primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant faz referência «ao belo e ao sublime da natureza ou da arte (das Schöne und

Erhabne der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 48); na Primeira Introdução, cita a «beleza artística (Kunstschönheit)» (Kant, 1995: 91); e, na Introdução, menciona o prazer no belo associando-o quer à natureza, quer à arte.3

O facto de a noção de bela arte atravessar a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” poderia ser encarado como razão suficiente para não se inquirir acerca da sua legitimidade. Em nosso entender, porém, parece haver, no interior da terceira Crítica, um conflito entre, por um lado, as exigências que um juízo – que se pretende de gosto – tem de satisfazer

3 Primeiro, Kant fala de um prazer cujo fundamento «se encontra na condição universal, ainda que subjectiva, dos juízos reflexivos, nomeadamente na concordância conforme a fins de um objecto (seja produto da natureza ou da arte (er sei Product der Natur oder der Kunst)) com a relação das faculdades de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo o conhecimento empírico (da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76); seguidamente, assinala a «receptividade de um prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas (da natureza, assim como da arte (der Natur sowohl als der Kunst))» (Kant, 1998: 77); entretanto, na secção IX, o nosso autor indica que «o juízo estético» que ocasiona o «conceito da faculdade do juízo de uma conformidade a fins da natureza» refere-se a objectos «da natureza ou da arte (der Natur oder der Kunst)» (Kant, 1998: 83).

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INTRODUÇÃO

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para que, através dele, um objecto – natural ou não – seja declarado belo e, por outro lado, as exigências que um juízo – que também se pretende de gosto – tem de satisfazer para que, através dele, uma obra de arte (Kunstwerk) seja declarada bela (schön). Esse conflito faz com que a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela através daquilo que Kant define como juízo de gosto (Geschmacksurteil) seja por nós questionada. Estão em causa o significado e a legitimidade da noção de bela arte. Na nossa indagação, tornaremos explícito o referido conflito e verificaremos se e como poderá uma obra de arte ser considerada bela – por outras palavras: se e como poderá falar-se de bela arte.

No “Capítulo I: Juízo de Gosto”, elencaremos os critérios através dos quais algo é declarado belo, as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare belo um objecto, as características do juízo de gosto. Em primeiro lugar, caracterizá-lo-emos como um juízo estético reflexivo (ästhetisches Reflexionsurteil). Fá-lo-emos na primeira secção, “Juízo estético reflexivo”. Seguidamente, na secção “Juízo estético universalmente válido a priori”, apresentaremos a argumentação de Kant no sentido de caracterizá-lo como um juízo estético universalmente válido a priori (allgemeingültig a priori).

Ao caracterizá-lo como um juízo estético reflexivo, necessariamente o distinguimos de duas espécies de juízos que de modo breve também caracterizaremos: o juízo acerca do agradável (das Angenehme), juízo estético não reflexivo, juízo estético dos sentidos, e o juízo acerca do bom (das Gute), que nem sequer é um juízo estético. Na caracterização do juízo de gosto como juízo estético reflexivo, daremos destaque ao princípio próprio da faculdade do juízo, a saber, o princípio da conformidade a fins da natureza para as nossas faculdades de conhecimento (Prinzip der

Zweckmäßigkeit der Natur für unser Erkenntnisvermögen)4:

4 António Marques e Valério Rohden traduzem o termo “Zweckmäßigkeit” por “conformidade a fins”; Rubens Rodrigues Torres Filho tradu-lo por “finalidade”. A desvantagem da primeira opção prende-se com a composição da palavra “conformidade”, que a liga necessariamente à palavra “forma”, sendo que, no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, nem toda a conformidade a fins se

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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explicitaremos como a ele se chega, como a faculdade do juízo dá esse princípio a si própria, e descrevê-lo-emos como uma pressuposição necessária da faculdade do juízo, mostrando igualmente que ele serve de princípio para a reflexão (Reflexion), não para a determinação. Salientaremos que o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil), não se funda em conceitos (Begriffe). Sublinharemos a afirmação da independência do juízo de gosto relativamente ao conceito de perfeição (Vollkommenheit). No seguimento desse sublinhado, faremos emergir a noção de conformidade a fins sem fim (Zweckmäßigkeit ohne

Zweck) e registaremos a possibilidade e as condições de observação de uma conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento (formalen Zweckmäßigkeit der Natur für unser

Erkenntnisvermögen). Uma tal conformidade a fins é ajuizada por intermédio do gosto (faculdade de juízo estética) através do sentimento de prazer no movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação de um objecto. Se, por ocasião da representação de um objecto, aquele que ajuíza sentir um prazer num movimento simultaneamente livre e harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si, então ele declarará belo esse objecto. Por último, assinalaremos que, de acordo com Kant, a representação de uma conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de conhecimento não pode ocorrer sem uma referência ao conceito racional transcendental do supra-sensível (der transzendentale Vernunftbegriff von

relaciona com a forma. A opção por “finalidade”, por seu turno, tem a desvantagem de o significante não ter qualquer relação com a palavra “forma”, sendo que, igualmente no âmbito da terceira Crítica, a noção de forma é de importância capital. Por essa razão, e por uma questão de uniformidade, considerando que a tradução que utilizamos do texto de Kant (a Kritik der Urteilskraft, com a excepção da primeira Einleitung) é a efectuada por Marques e Rohden, optaremos por aplicar o termo “conformidade a fins” para nos referirmos a Zweckmäßigkeit. Mais difícil é a tradução de “Zweckmäßigkeit” para Língua Inglesa. Nem “purposiveness” nem “finality” são expressões inteiramente satisfatórias – a primeira, porque não carrega qualquer referência à forma (form); a segunda, por não envolver referências seja à forma, seja a fins (ends, purposes).

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INTRODUÇÃO

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dem Übersinnlichen). O juízo de gosto (o juízo através do qual se declara belo um objecto) envolve necessariamente uma referência à ideia do supra-sensível.

Em última análise, é na referência ao supra-sensível que Kant considera fazer assentar a validade universal a priori do juízo de gosto. Por essa razão, depois de enquadrarmos a tentativa encetada por Kant para providenciar uma dedução transcendental do juízo de gosto, prosseguiremos a secção “Juízo estético universalmente válido a

priori” com a afirmação dessa referência e da validade do juízo estético reflexivo. Seguidamente, descreveremos o tipo de necessidade que está em causa nesse tipo de juízo estético. Nesse contexto, apelaremos à noção de sentido comum (Gemeinsinn / sensus communis), enquanto aquilo sobre cuja pressuposição o juízo de gosto assenta a sua necessidade. Uma tal necessidade é subjectiva mas, segundo Kant, a

priori. Explicitá-la, envolverá uma menção das noções de necessidade

exemplar (exemplarische Notwendigkeit), validade exemplar (exemplarische Gültigkeit) e voz universal (allgemeine Stimme), assim como uma justificação do sentido comum como ideia necessária. Finalmente, em jeito de esclarecimento, defenderemos, em primeiro lugar, que a recorrência de Kant à conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento, ao conceito do supra-sensível, ao sentido comum e à voz universal, tal resulta não na afirmação de uma multiplicidade de princípios sobre os quais assentaria o juízo estético reflexivo, enquanto juízo universalmente válido a priori, mas numa rede de elementos para tentar legitimar a validade universal a priori do juízo de gosto; em segundo lugar, reforçando que proferir um juízo desse tipo é proferir um juízo baseado no princípio do gosto, igualmente defenderemos que um engano da parte daquele que ajuíza não coloca em causa a pretensão do juízo de gosto à validade citada.

No “Capítulo II: Arte”, descreveremos, numa primeira secção, o juízo através do qual se declara artístico um objecto e, numa segunda secção, o juízo através do qual se declara belo um objecto artístico.

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Assim, na secção “Juízo através do qual se declara artístico um objecto”, enunciaremos os critérios através dos quais algo é declarado uma obra de arte, os requisitos indispensáveis à declaração de uma coisa como artística (künstlich). Fazê-lo corresponde a apresentar as considerações proferidas por Kant acerca da arte (Kunst), especialmente a partir do §43. Nesse contexto, assinalaremos o carácter mecânico, coercivo e escolástico da arte e destacaremos a relação desta com conceitos daquilo que o objecto deva ser, intenções e regras.5 Por conseguinte, igualmente destacaremos a relação do juízo através do qual se declara artístico um objecto com a representação de uma conformidade a fins objectiva interna (innere

objektive Zweckmäßigkeit), isto é, com a representação de uma perfeição. Finalmente, não deixaremos de propor que, considerando unicamente a descrição que Kant dá de arte – e, a partir dessa, aquilo que um juízo tem de cumprir para através dele se declarar artístico um objecto – o facto de um objecto ser uma obra de arte não impede que ele seja declarado belo.

No entanto, Kant não se limita a descrever a arte; o nosso autor igualmente elenca condições para que a arte seja bela. A secção “Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte” partirá precisamente da enunciação de um critério que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare bela uma obra de arte. Confrontado com aquilo que teremos exposto no “Capítulo I: Juízo de Gosto”, esse critério será por nós apresentado como causa da indagação que motiva este estudo, a saber, se e como poderá falar-se de bela arte. Na segunda secção do “Capítulo II: Arte”, clarificaremos o conflito em jogo – o conflito entre as condições que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto, isto é, um juízo através do qual se declara belo um objecto, e os requisitos que um juízo tem de preencher para que através dele se declare bela uma obra de arte. A partir dessa clarificação, a questão que nos move pode adquirir diferentes vestes: Será o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte um juízo de gosto? Será possível declarar-se bela uma

5 Tal envolverá também uma primeira referência explícita às considerações de Kant acerca da bela arte.

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INTRODUÇÃO

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obra de arte através de um juízo de gosto? Poderá ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto? Poderá uma obra de arte ser bela? Depois de explicitadas e analisadas, as distinções estabelecidas por Kant entre perfeição qualitativa (qualitative Vollkommenheit) e perfeição

quantitativa (quantitative Vollkommenheit), no §15, e entre beleza livre (freie Schönheit / pulchritudo vaga) e beleza aderente (anhängende

Schönheit / pulchritudo adhaerens), ou, equivalentemente, entre puro

juízo de gosto (reines Geschmacksurteil) e juízo de gosto aplicado (angewandtes Geschmacksurteil), no §16, serão tidas como irrelevantes para a sustentação de uma resposta afirmativa à questão de saber se poderá falar-se de bela arte. Igualmente tida como irrelevante para responder afirmativamente a essa questão será a introdução das noções de beleza fixada (fixierte Schönheit) e juízo de gosto em parte

intelectualizado (zum Teil intellektuierten Geschmacksurteils), no §17, e de juízo estético logicamente condicionado (logisch-bedingtes

ästhetiches Urteil), no §48. A própria legitimidade de algumas das noções mencionadas será questionada. Como consequência dessa explicitação e análise, estará colocada em causa, de modo reforçado, a legitimidade da noção de bela arte.

O “Capítulo III: Bela Arte” é o capítulo especificamente dirigido à legitimação da noção de bela arte. Na sua primeira secção, “Belas obras de arte”, apresentaremos três razões fornecidas pela Crítica da Faculdade

do Juízo para, apesar do que é concluído no capítulo anterior, continuarmos a pensar a possibilidade de falar-se de bela arte e as condições dessa possibilidade. Se as duas primeiras razões a apresentar poderão ser vistas como insuficientes, sem prejuízo da sua consistência interna, o mesmo não se passará com a terceira: essa razão torna incontornável uma investigação renovada acerca das condições de possibilidade de falar-se de bela arte, sob pena de o texto de Kant carregar uma contradição: obras de arte podem e não podem ser declaradas belas.6

6 Se se preferir: obras de arte podem e não podem ser livremente declaradas belas, objectos artísticos podem e não podem ser declarados belos através de puros juízos de

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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A nova investigação basear-se-á na definição que Kant dá de bela arte como arte do génio (Kunst des Genies), a partir do §46. Se compreendermos o que está em causa na arte do génio, compreenderemos o significado que o nosso autor atribui à noção de bela arte.7 Assim, iniciaremos a segunda secção, “Génio, ideia estética, expressão de ideias estéticas e referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza”, com uma descrição introdutória da noção de génio (Genie). Tal será feito na subsecção “Génio”. Na segunda subsecção, “Ideia estética”, explicitaremos e legitimaremos a noção de ideia estética (ästhetische

Idee). Para a sua legitimação, será indispensável uma referência ao alargamento das capacidades da faculdade da imaginação enquanto faculdade produtiva (produktives Vermögen) efectuado na terceira Crítica. Além disso, abordaremos a relação das ideias estéticas com conceitos. Essa abordagem será necessária para que se compreenda que, do ponto de vista de Kant, o exercício da faculdade da imaginação é, no contexto da arte do génio, um exercício livre. Ora, tendo em conta que um exercício livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza é uma conditio sine qua non para o proferimento de um juízo de gosto, mostrar que, no contexto da arte do génio, a faculdade da imaginação se exerce livremente revela-se uma etapa indispensável na legitimação da noção de bela arte. Constituindo uma condição necessária, o exercício livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza não constitui, no entanto, uma condição suficiente para o proferimento de um juízo de gosto – e, por conseguinte, para a declaração de uma obra de arte como bela, para a beleza da arte. Considerando esse facto, passaremos, na subsecção

gosto, pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela, pode e não pode falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto. 7 Nos parágrafos imediatamente anteriores, §44 e §45, Kant apresenta definições explícitas de bela arte. O problema é que, consideradas antes da explicitação do significado de bela arte como arte do génio, tais definições são simplesmente contraditórias com aquilo que teremos concluído no segundo capítulo da nossa tese.

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INTRODUÇÃO

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“Expressão de ideias estéticas”, a uma primeira enunciação daquilo que faz com que, no contexto da arte do génio, as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se disponham num movimento não apenas livre, mas também harmónico entre si. Será crucial explicitar a noção de espírito (Geist). Aquilo que o espírito dá ao génio afigurar-se-á, nesse âmbito, como a razão que faltava para a definição de bela arte como arte do génio (Kunst des Genies). Finalmente, na subsecção “Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza”, mostraremos como o juízo através do qual se declara belo um produto do homem – concretamente, uma obra de arte – é referido ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Tal implicará um retorno à importância do supra-sensível na declaração de algo como belo. Desta feita, porém, o objecto em causa será o objecto artístico. Nesse retorno, daremos destaque à noção de técnica (Technik), às expressões como (als) e como se/que (als ob) e à diferença entre ser (sein) e parecer (scheinen / aussehen).

A possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias

estéticas (Ausdruck ästhetischer Ideen), referida no início do §51, não apenas contribui para sustentar uma resposta afirmativa à questão de saber se pode falar-se de bela arte – e, por conseguinte, para a legitimação da noção de bela arte – mas, além disso, acarreta uma consequência relativa à importância que Kant dá à forma no concernente ao juízo de gosto: vários são os elementos a colaborar para o movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz de um objecto belo. Considerando o estatuto da forma na beleza dos objectos, dedicaremos a essa noção uma secção própria no âmbito da legitimação da noção de bela arte: “Forma”, terceira secção do “Capítulo III: Bela Arte”. Começaremos por assinalar que, segundo Kant, o comprazimento no belo está ligado à conformidade a fins da forma do objecto para as nossas faculdades de conhecimento. Seguidamente, explicitaremos o que o nosso autor entende por forma (Form) e aproveitaremos para chamar a atenção para as condições de

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possibilidade de a matéria (Materie), que atrai, que é agradável, contribuir para a beleza – ou mesmo ser bela. Reiteraremos, porém, que, de acordo com Kant, o que no proferimento de um juízo de gosto se considera é a forma do objecto. Claramente identificada a posição do nosso autor, procuraremos a sua origem, problematizaremos a sua necessidade e reafirmaremos a ligação da disposição subjectivamente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, por ocasião da representação que ele faz de um objecto belo, com vários elementos além da forma, entre eles as ideias estéticas. Não deixaremos, no entanto, de apresentar uma interpretação de forma que poderá conciliar uma posição formalista, sugerida em múltiplas passagens da Crítica da Faculdade do

Juízo, com a denominação da beleza como expressão de ideias estéticas, cuja possibilidade é, como já notámos, afirmada no início do §51. Por último, uma referência ao sentimento do sublime (das Erhabene). Enquanto a “Analítica do belo” emerge da possibilidade de representação de uma conformidade a fins subjectiva a partir da forma de um objecto, a necessidade da “Analítica do sublime” reside na possibilidade de ocorrência de um sentimento de prazer universalmente válido numa forma que, sob um certo ponto de vista, não é conforme a fins, aparecendo mesmo como contrária a fins. A origem dos dois livros da “Analítica da faculdade de juízo estética” é, desta perspectiva, diametralmente oposta. É essa oposição que os torna necessários. Na parte final da secção “Forma”, mostraremos que a problematização da importância da forma no juízo de gosto não coloca em causa a importância da forma – ou da ausência dela – para a ocorrência do sentimento do sublime.

Está feita a introdução às três primeiras secções do “Capítulo III: Bela Arte”. Em algumas partes dessas secções, falaremos da beleza da arte como se não fosse a possibilidade de uma tal beleza aquilo que está em causa na nossa tese. Referir-nos-emos à bela arte suspendendo o excerto a partir do qual pode alegar-se que a beleza da arte só pode ser uma beleza aderente. Mencioná-la-emos como se um outro excerto não colocasse em causa a legitimidade da colocação da beleza aderente no âmbito da beleza. Falaremos de bela arte como se fosse legítimo falar

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de bela arte antes de ser mostrado que a arte pode ser bela, que uma obra de arte pode ser declarada bela, que pode ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto. A relevância dessas três secções revelar-se-á numa quarta, denominada “Beleza aderente como beleza”. Concretamente, revelar-se-á indispensável termos indicado que o exercício da faculdade da imaginação pode ser um exercício livre mesmo que haja consideração de conceitos da parte daquele que ajuíza. A partir de uma reflexão acerca das várias possibilidades de interpretação do termo representação (Vorstellung), começaremos por apontar em relação a que conceito pode, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, ser tida em conta uma perfeição. Igualmente indicaremos que num juízo no qual é considerada uma conformidade a fins objectiva interna a faculdade da imaginação pode exercer-se livremente e que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não deixa de ser fundado na observação de uma conformidade a fins subjectiva por ocasião da representação do objecto artístico. Seguidamente, mediante uma proposta de interpretação da distinção estabelecida por Kant entre beleza livre e beleza aderente, que nessa altura recuperaremos, caber-nos-á defender que e como a última pode ser uma beleza. Também aí serão consideradas as condições do exercício livre da faculdade da imaginação. Ora, por intermédio da legitimação da beleza aderente como espécie de beleza – e, por conseguinte, do juízo de gosto aplicado como juízo de gosto – será legitimada a noção de bela arte, enquanto arte condicionadamente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados. Poderá falar-se de bela arte.8 É essa possibilidade que justificaremos na subsecção “Beleza da arte como beleza aderente”. Não obstante a referida subsecção eliminar algumas das dificuldades com que nos confrontamos, nem todas são eliminadas por ela. Se recordarmos a razão principal que apresentamos, na secção “Belas obras de arte”, para justificar a necessidade de continuarmos a

8 Tal legitimação não será efectuada sem uma consequência para o texto de Kant no concernente aos requisitos que um juízo tem de satisfazer para ser um juízo de gosto.

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pensar se e como poderá falar-se de bela arte, compreenderemos que a beleza da arte não pode reduzir-se ao âmbito da beleza aderente. É indispensável legitimar a noção de bela arte não – ou não apenas – como arte condicionadamente declarada bela, como arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados, mas – ou mas também – como arte livremente declarada bela, como arte declarada bela através de puros juízos de gosto. É isso que faremos na subsecção “Beleza da arte como beleza livre”. A partir de uma divisão de uma das interpretações possíveis do termo representação e de uma segunda releitura da distinção estabelecida por Kant entre beleza livre e beleza aderente, sustentaremos a possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte através de um puro juízo de gosto. Assim, defenderemos que objectos artísticos podem ser condicionadamente declarados belos (declarados belos através de juízos de gosto aplicados) e podem ser livremente declarados belos (declarados belos através de puros juízos de gosto). Afirmaremos, então, que a beleza da arte pode ser uma beleza livre, que a bela arte pode ser uma arte livremente declarada bela, uma arte declarada bela através de puros juízos de gosto, que pode falar-se de bela

arte enquanto tal. O que estará em causa será a ligação do conceito daquilo que o objecto deva ser ao gosto. Nesse contexto, terá de ser problematizado o significado da noção de gosto (Geschmack) na Crítica

da Faculdade do Juízo. Fá-lo-emos na subsecção “Gostos”. Efectuada essa problematização e reiterada a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto, ficará respondida a questão central que motivou a nossa investigação.

Legitimada a noção de bela arte, será nossa intenção responder à questão de saber o que é necessário para a produção de uma tal arte. Responder-lhe-emos no “Capítulo IV: Para a Produção de Bela Arte”. A necessidade de respondermos a essa questão prende-se com o facto de, na Crítica da Faculdade do Juízo, especialmente nos parágrafos directamente concernentes à bela arte (§44-§53) haver indícios aparentemente contraditórios quanto ao ou aos talentos requeridos para a produção de belas obras de arte. O carácter educável do génio e o carácter

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cultivável, exercitável e corrigível do gosto constituirão a chave para a resposta que proporemos.

Começaremos por mencionar as passagens que indiciam contradição. Iniciaremos a sua resolução apelando a diferenças entre homens que têm em comum entre si o facto de serem génios – isto é, de serem dotados de um talento denominado génio. Seguidamente, explicitando o processo de sucessão entre homens dotados de um tal talento, mostraremos que a sua posse não é condição suficiente para a produção de objectos artísticos belos e salientaremos a importância do gosto no contexto da bela arte. Faremos isso na secção “Educação do génio”.

Na secção “Cultivo, exercitamento e correcção do gosto”, mostraremos que nem apenas o génio, nem sequer o génio e o gosto, constituem condição suficiente para a produção de belas obras de arte. Nesse sentido, elaboraremos uma reflexão acerca da possibilidade e das condições de desenvolvimento quer do gosto, quer da faculdade do juízo, salientando a importância das habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas nesse contexto.9 A produção de objectos artísticos belos revelar-se-á estreitamente ligada a esse desenvolvimento. Ficará respondida a questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte.

9 Será relevante, nessa altura, fazer uma chamada de atenção para a independência da validade quer do juízo de gosto, quer do sentimento do sublime, relativamente ao desenvolvimento da faculdade do juízo.

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Capítulo I: Juízo de Gosto

1. JUÍZO ESTÉTICO REFLEXIVO

1.1 Juízo estético

A questão principal a que a nossa investigação pretende responder é a de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Para tal, teremos de considerar os requisitos a cumprir para que um objecto seja declarado belo, assim como aqueles que são indispensáveis para que uma coisa seja declarada artística. Começaremos pelos primeiros. Tal implica descrever detalhadamente o juízo através do qual se declara belo um objecto, o juízo de gosto, juízo estético reflexivo.

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JUÍZO DE GOSTO

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A faculdade de julgamento do belo é o gosto (Geschmack).10 Os juízos provenientes do gosto são juízos estéticos.11 O juízo de gosto (Geschmacksurteil) é um juízo estético (Ästhetischesurteil). É pela afirmação segundo a qual o juízo de gosto é estético que iniciaremos a enunciação das exigências que um juízo tem de satisfazer para que, através dele, se declare que um objecto é belo. É esse o título do primeiro parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (cf. Kant, 1998: 89).

Nesse mesmo parágrafo (§1) depois de afirmar que o juízo de gosto é estético, Kant assinala, complementarmente, que estético (ästhetisch) é «aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo (dasjenige, dessen Bestimmungsgrund nicht anders als subjektiv sein

kann)» (Kant, 1998: 89). Um recuo até à Introdução ajuda-nos a

10 Logo na primeira nota da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, Kant diz que «[a] definição do gosto ([d]ie Definition des Geschmacks), posta aqui como fundamento, é de que ele é a faculdade de julgamento do belo (er sei das Vermögen

der Beurteilung des Schönen)» (Kant, 1998: 267). Num comentário a essa nota, António Marques e Valério Rohden anunciam a tradução de “Urteil” e “Beurteilung” por “juízo” e “julgamento”, respectivamente. Quando se trata de citações, manteremos essa distinção. Dela depende, no entender de Donald W. Crawford e de Paul Guyer, a inteligibilidade da Crítica da Faculdade do Juízo (cf. Crawford, 1974: 71 e Guyer, 1997: 98). Apesar disso, ela não é usada de uma maneira absolutamente coerente ao longo do texto de Kant. A este propósito, Guyer reconhece, primeiro, que «embora haja grande evidência para atribuir esta distinção a Kant, ele não lhe manifesta o seu comprometimento adoptando uma terminologia consistente para a sua expressão» e, a seguir, que o nosso autor «não sugere que está a introduzir uma distinção em terminologia técnica (…) nem usa esta terminologia em todos os lugares onde poderia» (Guyer, 1997: 98). Talvez seja o mesmo reconhecimento aquilo que leva Marques e Rohden a fazerem equivaler “urteilen” a “julgar”, não a “ajuizar”, quando, na sua tradução do §35, identificam “das Vermögen zu urteilen selbst” com “a própria faculdade de julgar” (cf. Kant, 1998: 188). Também nós não deixaremos, em alguns casos, nos quais se trata da nossa letra, de usar indistintamente os verbos “ajuizar” e “julgar” e de referir a faculdade de julgamento do belo como “a faculdade através da qual se ajuíza o belo”. Esta opção resultará apenas numa maior uniformidade terminológica do nosso texto, não tendo qualquer influência sobre a resposta à questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte. 11 No início do §17, Kant nota que «todo o juízo proveniente desta fonte [isto é, do gosto] é estético (ästhetisch)» (Kant, 1998: 122).

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compreender o que significa subjectivo (subjektiv). Na secção VII, no contexto da referência à noção de natureza estética (ästhetische

Beschaffenheit), depois de indicar que essa natureza é «[a]quilo que na representação de um objecto é meramente subjectivo, isto é aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objecto ([w]as an der

Vorstellung eines Objekts bloß subjektiv ist, d. i. ihre Beziehung auf das

Subjekt, nicht auf den Gegenstand ausmacht)» (Kant, 1998: 73), Kant acrescenta que «aquele elemento subjectivo numa representação que não

pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou desprazer, ligados àquela representação ([d]asjenige Subjektive an einer

Vorstellung, was gar kein Erkenntnisstück werden kann, ist die mit ihr

verbundene Lust oder Unlust)» (Kant, 1998: 74). O fundamento de determinação do juízo estético – por conseguinte do juízo de gosto – tem de ser, então, o prazer ou desprazer que se liga à representação do objecto percepcionado.12

O juízo de gosto não é, porém, a única espécie de juízo estético. Também o juízo acerca do agradável (das Angenehme) é um juízo estético.13 Nem no juízo de gosto, nem no juízo acerca do agradável, o fundamento de determinação é a sensação enquanto sensação objectiva (objektive Empfindung). Também no caso do juízo acerca do agradável o fundamento de determinação é o sentimento de prazer ou desprazer que se

12 Esta posição é afirmada desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade

do Juízo. Aí, assinala Kant que «há somente uma única assim chamada sensação (Empfindung) que jamais pode tornar-se conceito de um objecto, e esta é o sentimento de prazer e desprazer» (Kant, 1995: 60). O sentimento de prazer é, como continua o nosso autor, uma sensação «meramente subjetiva (bloß subjektiv), enquanto toda demais sensação pode ser usada para conhecimento» (Kant, 1995: 60-61). O juízo estético é «aquele cujo fundamento-de-determinação está em uma sensação que esteja imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer (dasjenige, dessen Bestimmungsgrund in einer Empfindung liegt, die mit dem Gefühle der Lust und

Unlust unmittelbar verbunden ist)» (Kant, 1995: 61). 13 Para uma discussão detalhada acerca das afinidades e diferenças entre o agradável e o objecto do juízo de gosto sugere-se a leitura do texto de David Berger, Kant’s

Aesthetic Theory – The Beautiful and Agreeable (cf. Berger, 2009).

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liga à representação do objecto percepcionado.14 Sob este ponto de vista, há uma comunidade de ambas as espécies de juízo quanto ao respectivo

14 A este propósito é de fazer duas notas. Em primeiro lugar, importa notar que é preciso evitar aquilo que, no §3, Kant assinala como sendo «uma confusão bem usual (…) relativamente ao duplo significado que a palavra sensação (Empfindung) pode ter» (Kant, 1998: 92), a saber, a confusão entre «a representação de uma coisa (pelos sentidos, como uma receptividade pertencente à faculdade do conhecimento)», em que «a representação é referida ao objecto (auf das Objekt)», podendo servir para o conhecimento, caso, por exemplo, da «cor verde dos prados», que, portanto, «pertence à sensação objectiva (objektive Empfindung), como percepção de um objecto dos sentidos», e, por outro lado, algo «totalmente diverso», em que «a representação é referida (…) meramente ao sujeito (auf das Subjekt), e não serve para nenhum conhecimento, tão pouco para aquele pelo qual o próprio sujeito se conhece» (Kant, 1998: 93). Assim, ainda no mesmo parágrafo, Kant chama «aquilo que sempre tem que permanecer simplesmente subjectivo, e que absolutamente não pode constituir nenhuma representação de um objecto (das, was jederzeit bloß subjektiv bleiben muss

und schlechterdings keine Vorstellung eines Gegenstandes ausmachen kann), pelo nome aliás usual de sentimento (Gefühl)» (Kant, 1998: 93). Trata-se daquilo no qual, como afirma o nosso autor, logo no §1 da Crítica da Faculdade do Juízo, «o sujeito se sente a si próprio do modo como ele é afectado pela sensação» (Kant, 1998: 90). Em segundo lugar é importante notar que a confusão supracitada não equivale a uma eventual confusão entre o agradável (das Angenehme) e o belo (das Schöne). A distinção entre sensação (Empfindung) (sensação objectiva (objektive Empfindung)) e sentimento (Gefühl) (sensação subjectiva (subjektive Empfindung)), e a associação, errada, do juízo estético acerca do agradável com a primeira, poderia levar a que se recusasse o facto de qualquer das duas espécies de juízo ser uma subespécie dos juízos estéticos – e, assim, a distinguir uma da outra erradamente. Tal como o juízo de gosto, também o juízo através do qual se decide se algo é agradável é, como vemos no §8, um juízo estético «sobre um objecto simplesmente com respeito à relação da sua representação com o sentimento de prazer e desprazer (über einen Gegenstand bloß in Ansehung des Verhältnisses seiner Vorstellung zum Gefühl der Lust und Unlust)» (Kant, 1998: 102). É certo que, no §3, depois de referir que «[a]gradável é o que apraz

aos sentidos na sensação» (Kant, 1998: 92), Kant acrescenta que «[n]a definição acima, entendemos (…) pela palavra sensação uma representação objectiva dos sentidos» (Kant, 1998: 93). No entanto, com isso prevê-se apenas que a representação da coisa pelos sentidos, a percepção do objecto dos sentidos, a sensação objectiva, a sensação sensorial, provoque uma outra sensação, subjectiva, o sentimento, que é um prazer do sujeito e que, por o ser, leva a que ele considere agradável o objecto. Por essa razão, pode Kant afirmar, como efectivamente afirma, no mesmo parágrafo, que o agrado da cor verde dos prados «pertence à sensação subjectiva (zur subjektiven Empfindung), pela qual nenhum objecto é representado: isto é, ao sentimento (zum

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fundamento de determinação: quer a agradabilidade, quer a beleza, se fundamentam no sentimento de prazer do sujeito por ocasião da representação do objecto.15

1.2. Juízo estético dos sentidos

Se aquilo que é comum ao juízo acerca do agradável e ao juízo acerca do belo (o juízo de gosto) é o facto de ambos serem juízos estéticos, então, dizer que o segundo é um juízo estético – e, nesse seguimento, simplesmente caracterizar esta espécie de juízo, o juízo estético – não se afigura suficiente para dar conta daquilo que torna único o juízo de gosto. Revela-se indispensável enunciar as diferenças entre os dois tipos de juízos estéticos.16

Gefühl) pelo qual o objecto é considerado como objecto do comprazimento (o qual não é nenhum conhecimento do mesmo)» (Kant, 1998: 93-94). 15 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant salvaguarda que «[p]ela denominação de um juízo estético sobre um objeto, está indicado desde logo (…) que uma representação dada é referida, por certo, a um objeto, mas, no juízo, não é entendida a determinação do objeto, mas sim a do sujeito e de seu sentimento» (Kant, 1995: 59). Quer no juízo de gosto, quer no juízo acerca do agradável, é entendida não a determinação do objecto, mas, sim, a do sujeito e do seu sentimento. 16 Só enunciando as diferenças entre o juízo acerca do agradável e o juízo de gosto pode Kant impedir a redução da beleza e do objecto belo, respectivamente, à agradabilidade e ao objecto agradável. É essa redução que ele considera ser efectuada por Burke e pelos empiristas. No entender de Kant, a exposição dos juízos estéticos elaborada por Burke e por «muitos homens perspicazes» é «fisiológica» (Kant, 1998: 176-177). Trata-se de uma exposição do belo «meramente empírica» (Kant, 1998: 177) e que envolve apenas o «reconhecimento de leis empíricas das mudanças do ânimo» (Kant, 1998: 178). No contexto daquilo a que Kant chama o «empirismo da crítica do gosto», o gosto «sempre julga segundo fundamentos de determinação empíricos, que são dados a posteriori pelos sentidos» (Kant, 1998: 254-255). Ora, Kant pretende mostrar que o gosto julga «a partir de um fundamento a priori» (Kant, 1998: 255), sendo que, para tal, ele considera necessário elaborar uma «exposição transcendental dos juízos estéticos» (Kant, 1998: 176). A propósito da emergência dessa necessidade, de resto, podemos afirmar que ela evidencia um distanciamento do nosso autor em relação à posição por si mesmo defendida na Crítica da Razão Pura e por ocasião da qual ele censura o uso que Baumgarten faz do termo estética. De acordo com o que está escrito na primeira Crítica, as «regras ou critérios» do julgamento do belo «são apenas empíricos quanto às suas fontes principais e nunca podem servir para

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JUÍZO DE GOSTO

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Não obstante ser um juízo estético, o juízo acerca do agradável faz parte daquela espécie de juízo que Kant designa por juízo estético dos

sentidos (ästhetisches Sinnesurteil) (cf. Kant, 1995: 60, 61, 63 e 66 e Kant, 1998: 244). Um juízo dessa espécie, embora não seja um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil), igualmente não é um juízo reflexivo (Reflexionsurteil) (cf. Kant, 1995: 66). Apesar de num juízo estético dos sentidos também haver referência da representação ao sentimento de prazer e desprazer, essa referência não é feita mediante a faculdade do juízo e o seu princípio.17 O juízo estético dos sentidos apenas se ocupa «com a proporção das representações ao sentido interno (mit dem Verhältnis der Vorstellungen zum innern Sinne), na medida em que este é sentimento» (Kant, 1995: 63), nada mais

leis determinadas a priori, pelas quais se devesse guiar o gosto dos juízos» (Kant, 2001: 62), sendo essa a razão para que deva reservar-se para a doutrina da estética transcendental o termo mencionado ou simplesmente prescindir dele. No entanto, se, como Kant pretende, a terceira Crítica mostrar que o juízo de gosto – subespécie do juízo estético – se fundamenta num princípio a priori, então o uso do termo estética deixará de limitar-se à doutrina da estética transcendental. São alterações como esta que servem de ocasião para Maria Filomena Molder chamar a atenção para o «modo admirável como Kant desenvolve novas interpretações e implicações no que respeita a conceitos que forjaram o nó central da primeira Crítica e se constituíram imediatamente como autêntica herança, por exemplo, o conceito de estética enquanto estética transcendental» (Molder, 2007: 377). Como continua a intérprete, «[é] de lembrar, aliás, que em toda a Crítica da Faculdade de Julgar o termo “estética”, e não é de mais sublinhá-lo, determinado como transcendental (a expressão é “a estética transcendental da faculdade de julgar”) seja utilizado uma única vez, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, e que estético apareça sempre como qualificação» (Molder, 2007: 377-378). O fim da redução do termo estética à doutrina da estética transcendental não significa, porém, que Kant passe a estar de acordo com Baumgarten, para quem a beleza é «a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal» (Baumgarten, 1988: 11). No entender de Kant, a beleza não é uma perfeição – o juízo de gosto não é um juízo de conhecimento. Assim, como, na Primeira Introdução, ele explicitamente reitera: «não pode haver uma estética do sentimento como ciência» (Kant, 1995: 58). 17 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «um juízo-de-sentidos estético (…) refere uma representação dada (mas não por intermédio do Juízo e de seu princípio (nicht vermittelst der Urteilskraft und ihrem Prinzip)) ao sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61).

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contendo «do que a proporção da representação ao sentimento (sem mediação de um princípio-de-conhecimento) (das Verhältnis der

Vorstellung zum Gefühl (ohne Vermittelung eines

Erkenntnisprinzips))» (Kant, 1995: 66). Não é pressuposta, nesta espécie de juízo, qualquer «comparação da representação com as faculdades-de-conhecimento que atuam unificadas no Juízo» (Kant, 1995: 61). O que há num juízo estético dos sentidos – por conseguinte, num juízo acerca do agradável – é uma vinculação imediata da sensação produzida pela intuição empírica do objecto com o sentimento de prazer e desprazer.18 Não obstante ser um juízo estético, o juízo acerca do agradável é, então, um juízo estético material (materiales ästhetisches Urteil), um juízo empírico (empirisches

Urteil), um juízo dos sentidos (Sinnenurteil).19

18 Continuando a recorrer à Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, devemos salientar que, no caso do juízo estético dos sentidos, «o predicado exprime a referência de uma representação imediatamente ao sentimento de prazer, e não à faculdade-de-conhecimento (nicht aufs Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1995: 60). Esta espécie de juízo estético «absolutamente não se refere à faculdade-de-conhecimento (sich gar nicht aufs Erkenntnisvermögen bezieht), mas imediatamente, através do sentido, ao sentimento de prazer» (Kant, 1995: 61). No juízo estético dos sentidos, a «sensação que [está] imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer» é «aquela sensação que é imediatamente produzida pela intuição empírica do objecto (welche von der empirischen Anschauung des Gegenstandes unmittelbar

hervorgebracht wird)» (Kant, 1995: 61), sendo esta a razão pela qual um tal juízo pertence «ao campo meramente empírico (bloß empirisches Fach)» (Kant, 1995: 66). Mas a singularidade do juízo estético dos sentidos não é assinalada apenas na Primeira Introdução; ela é sublinhada ao longo de toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” – vejam-se, por exemplo, o §4, no qual Kant afirma que o agradável «assenta inteiramente na sensação (beruht ganz auf der Empfindung)» (Kant, 1998: 94), o §8, onde o nosso autor denomina o gosto do juízo estético sobre o agradável «gosto dos sentidos (Sinnen-Geschmack)» (Kant, 1998: 102), a investigação que ocupa o §9, na qual Kant caracteriza o prazer do agradável como «simples agrado na sensação sensorial (bloße Annehmlichkeit in der Sinnenempfindung)» (Kant, 1998: 105), ou, finalmente, o §39, onde o nosso autor lhe chama «prazer do gozo (Lust des Genusses)» (Kant, 1998: 193). 19 Kant indica-o no início do §14: «Juízos estéticos podem, assim como os teóricos (lógicos), ser divididos em empíricos e puros (empirische und reine). Os primeiros são os que afirmam agrado ou desagrado (Annehmlichkeit oder Unannehmlichkeit),

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No caso de aquilo a considerar como fundamento determinante do juízo estético ser o que meramente atrai, então esse juízo estético será não um juízo de gosto, mas um juízo estético acerca do agradável.20 Assentando inteiramente na sensação, o agradável carrega um desejo (Begierde) relativamente ao objecto. O sujeito não se limita a sentir prazer; o objecto deleita-o (vergnügt ihn). Através das impressões dos sentidos passa a haver um interesse (Interesse) no objecto, um comprazimento na sua existência (ein Wohlgefallen an dem Dasein), um prazer na sua existência (eine Lust an der Existenz).21 O agradável

os segundos os que afirmam beleza de um objecto ou do modo de representação do mesmo (Schönheit von einem Gegenstande, oder von der Vorstellungsart desselben); aqueles são juízos dos sentidos (juízos estéticos materiais) (Sinnenurteile (materiale ästhetische Urteile)), estes (como formais (als formale)) unicamente autênticos juízos de gosto (allein eigentliche Geschmacksurteile)» (Kant, 1998: 113). Nesta passagem, além de descrever o juízo acerca do agradável, Kant isola o juízo através do qual se declara belo um objecto (o juízo estético puro, o juízo estético formal) como único tipo de juízo de gosto autêntico. 20 São várias as passagens em que Kant salienta os efeitos sofridos pelo juízo estético no caso de se fundar esse juízo naquilo que meramente atrai. Citemos algumas dessas passagens: «um juízo de gosto é puro somente na medida em que nenhum comprazimento meramente empírico (kein bloß empirisches Wohlgefallen) é misturado (beigemischt wird) ao fundamento de determinação do mesmo. Isto porém ocorre todas as vezes em que atractivo (Reiz) ou comoção (Rührung) tem uma participação (einen Anteil haben) no juízo pelo qual algo deve ser declarado belo» (Kant, 1998: 113-114); «eles [isto é, os atractivos] prejudicam efectivamente (tun

wirklich dem Geschmacksurteile Abbruch) o juízo de gosto, se chamam a atenção sobre si como fundamentos do julgamento da beleza» (Kant, 1998: 115); «se o próprio ornamento (Zierrat) não consiste na forma bela, e se ele é como a moldura dourada, adequado simplesmente para recomendar, pelo seu atractivo (durch seinen Reiz), o quadro ao aplauso (Beifall), então chama-se adorno (Schmuck) e rompe com a autêntica beleza (tut der echten Schönheit Abbruch)» (Kant, 1998: 116). 21 Citemos a definição que, no §2, Kant dá de interesse: «Chama-se interesse ao comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto (Interesse

wird das Wohlgefallen gennant, was wir mit der Vorstellung der Existenz eines Gegenstandes verbinden)» (Kant, 1998: 91). Ter um interesse em algo significa obter prazer a partir da existência dessa coisa. Quando há interesse, há uma referência à faculdade da apetição (eine Beziehung auf das Begehrungsvermögen): quer-se (que exista) o objecto a partir (da existência) do qual se obtém prazer. Ora, o título do §3 assinala precisamente que «[o] comprazimento no agradável é ligado a interesse

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gera inclinação.22 Pois bem, se aquele que ajuíza está sujeito à inclinação, se ele sofre a influência de um interesse empírico, nesse caso, o seu juízo não será um juízo livre – como Kant afirma, no §5, os objectos da inclinação (die Gegenstände der Neigung)

não nos deixam nenhuma liberdade (lassen uns keine Freiheit) para fazer de qualquer coisa um objecto de prazer para nós mesmos. Todo o interesse pressupõe necessidade ou a produz (setzt Bedürfnis voraus,

oder bringt eines hervor); e, enquanto fundamento determinante da aprovação, ele já não deixa o juízo sobre o objecto ser livre (lässt es das

Urteil über den Gegenstand nicht mehr frei sein) (Kant, 1998: 97-98).

Envolvendo um comprazimento na existência do objecto, envolvendo um interesse empírico na coisa, o juízo acerca do agradável torna o sujeito passivo e, assim, compromete a sua liberdade e imparcialidade.

1.3. Princípio da faculdade do juízo

Diferentemente do juízo acerca do agradável, o juízo de gosto é um juízo estético reflexivo (ein ästhetisches Reflexionsurteil).23 Um juízo reflexivo é um juízo no qual se ajuíza segundo o princípio da faculdade do juízo, isto é, segundo o princípio da faculdade do juízo enquanto faculdade de conhecimento superior (Prinzip der Urteilskraft, als obern

Erkenntnisvermögens). Embora o princípio em causa seja, como veremos, ([d]as Wohlgefallen am Angenehmen ist mit Interesse verbunden)» (Kant, 1998: 92); e dois parágrafos a seguir, no §5, Kant justifica a sua afirmação ao referir que no caso do agradável, assim, de resto, como no caso do bom (das Gute), «[n]ão simplesmente o objecto apraz, mas também a sua existência ([n]icht bloß der Gegenstand, sondern auch die Existenz desselben gefällt)» (Kant, 1998: 96-97). 22 Kant chama a atenção para o facto de que «do agradável não se diz apenas: ele apraz (es gefällt), mas: ele deleita (es vergnügt). Não é uma simples aprovação (ein bloßer Beifall) que lhe dedico, mas através dele é gerada inclinação (Neigung)» (Kant, 1998: 94). Há, como o nosso autor refere, desta feita no §5, «um comprazimento patologicamente condicionado (por estímulos) (ein pathologisch-bedingtes (durch Anreize, stimulos) Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 96). 23 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que «os juízos-de-reflexão estéticos (die ästhetischen Reflexionsurteile)» futuramente serão desmembrados «sob o nome de juízos de gosto (Geschmacksurteile)» (Kant, 1995: 77).

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«um princípio simplesmente subjectivo (einem bloß subjektiven Grunde)» (Kant, 1998: 77), ele é, igualmente, «um princípio transcendental da

faculdade do juízo (ein transzendentales Prinzip der Urteilskraft)» (Kant, 1998: 64), um «princípio transcendental (transzendentaler Grundsatz)» colocado «como princípio inteiramente a priori (zum Grunde völlig a priori)» pela faculdade do juízo (Kant, 1998: 79).

A apresentação do princípio da faculdade do juízo é feita por Kant na Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo.24 Como sabemos, pela Crítica da Razão Pura, e como o nosso autor sublinha, na terceira Crítica, «a natureza em geral (como objecto dos sentidos) não pode ser pensada» sem «as leis universais» (Kant, 1998: 66).25 Essas leis universais «assentam em categorias, aplicadas às condições formais de toda a nossa intuição possível, na medida em que esta é de igual modo dada a priori»

24 Será sem demasiadas preocupações concernentes à importância desse princípio para o sistema kantiano que reproduziremos como a ele Kant chega. Comungamos da tese de Eva Schaper, segundo a qual «[m]esmo que Kant igualmente tivesse outros e maiores fins sistemáticos em mente quando escreveu a terceira Crítica, eles podem ser guardados na retaguarda e a sua inteligibilidade deixada indecidida enquanto assuntos pertinentes para a estética estiverem a ser considerados» (Schaper, 2007: 368). Para um estudo acerca da influência que a descoberta do princípio da faculdade do juízo poderá ter sobre o sistema da filosofia crítico-transcendental de Kant, sugere-se a leitura do texto de Marques, Organismo e Sistema em Kant – ensaio sobre o sistema crítico kantiano (cf. Marques, 1987), assim como “A Terceira Crítica como Culminação da Filosofia Transcendental Kantiana”, que o mesmo autor escreve para prefaciar a tradução da Kritik der Urteilskraft que ele próprio e Rohden realizaram (cf. Marques, 1998), e o artigo “Do Estético ao Teleológico: a colecção de objectos naturais”, de Maria Filomena Molder, no qual é sugerida «uma alteração no próprio projecto transcendental» (Molder, 1981: 228). O artigo “La Crítica del Juicio a sólo dos años de la Crítica de la Razón Práctica”, de José Gómez Caffarena, aborda o mesmo assunto mas a partir de uma incidência especial na história da terceira Crítica (cf. Caffarena, 1992). 25 Se quisermos recorrer directamente à Crítica da Razão Pura, recordaremos que «[p]or natureza (em sentido empírico), entendemos o encadeamento dos fenómenos, quanto à sua existência, segundo regras necessárias, isto é, segundo leis» e que «[h]á pois certas leis e, precisamente, leis a priori, que, antes de mais, tornam possível uma natureza» (Kant, 2001: 236). De resto, ainda na primeira Crítica, Kant afirmará, mais simplesmente, que se dá «o nome de natureza» ao «encadeamento de fenómenos que se determinam necessariamente uns aos outros por leis universais» (Kant, 2001: 411).

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e são «algo de necessário (…) para a natureza em geral (como objecto de experiência possível)» (Kant, 1998: 66).26 Assim, continuará Kant, «o entendimento possui a priori leis universais da natureza, sem as quais esta não seria de modo nenhum objecto de uma experiência» (Kant, 1998: 68).27 Sabemos, além disso, que as «leis transcendentais universais dadas pelo entendimento (…) só dizem respeito à possibilidade de uma natureza em geral (como objecto dos sentidos)» (Kant, 1998: 60).28 Pois bem, na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant chama a atenção para o facto de que

existem tantas formas múltiplas da natureza, como se fossem outras tantas modificações dos conceitos da natureza universais e transcendentais que serão deixados indeterminados por aquelas leis (…) que para tal multiplicidade têm que existir leis (Gesetze) (Kant, 1998: 60).29

26 Note-se, recorrendo, de novo, às palavras da Crítica da Razão Pura, que o entendimento realiza «a unidade da apercepção a priori apenas mediante as categorias» (Kant, 2001: 145) e que a natureza «como objecto do conhecimento numa experiência, com tudo o que pode conter, é apenas possível na unidade da apercepção» (Kant, 2001: 169). 27 O nosso autor reforça-o mais à frente: «é só através dessas leis que obtemos um conceito daquilo que é o conhecimento das coisas (da natureza) e que elas pertencem necessariamente à natureza como objecto do nosso conhecimento» (Kant, 1998: 71). 28 Desde logo na primeira Crítica, Kant ressalva que «a capacidade do entendimento puro de prescrever leis a priori aos fenómenos, mediante simples categorias, não chega para prescrever mais leis do que aquelas em que assenta a natureza em geral, considerada como conformidade dos fenómenos às leis no espaço e no tempo. Leis particulares, porque se referem a fenómenos empiricamente determinados, não podem derivar-se integralmente das categorias, embora no seu conjunto lhes estejam todas sujeitas» (Kant, 2001: 168). 29 As palavras citadas são da secção IV da Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo. O nosso autor repete a argumentação, com mais detalhe, na secção V: «naturezas especificamente diferentes, para além daquilo que em comum as torna pertencentes à natureza em geral, podem ainda ser causa de infinitas maneiras», sendo que «cada uma dessas maneiras tem que possuir (segundo o conceito de uma causa em geral) a sua regra, que é lei, e por conseguinte acarreta consigo necessidade, ainda que nós, de acordo com a constituição e os limites das nossas faculdades de conhecimento, de modo nenhum descortinamos esta necessidade»; ora, tal implica «pensar na natureza uma possibilidade de uma multiplicidade sem fim de leis empíricas, em relação às suas leis simplesmente empíricas, leis que no entanto são contingentes para a nossa

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Essas leis, «enquanto empíricas, podem ser contingentes, segundo a nossa perspiciência intelectual» (Kant, 1998: 60-61), mas

se merecem o nome de leis (Gesetze) (como também é exigido pelo conceito de uma natureza), têm que ser consideradas necessárias (als

notwendig) e provenientes de um princípio da unidade do múltiplo (Prinzip der Einheit des Mannigfaltigen), ainda que desconhecido (wenn

gleich uns unbekannten) (Kant, 1998: 61).30

Para fundamentar «a unidade de todos os princípios empíricos sob outros igualmente empíricos, mas superiores e por isso fundamentar a possibilidade da subordinação sistemática dos mesmos entre si», a faculdade do juízo «precisa de um princípio que ela não pode retirar da experiência (eines Prinzips, welches sie nicht von der Erfahrung entlehnen

kann)» (Kant, 1998: 62).31 Ora, segundo Kant, o princípio em causa

perspiciência (não podem ser conhecidas a priori)» (Kant, 1998: 66). Assim, além de possuir a priori leis universais da natureza, o entendimento «necessita também de uma certa ordem da natureza nas regras particulares da mesma, as quais para ele só empiricamente podem ser conhecidas e que em relação às suas são contingentes» (Kant, 1998: 68). Essas regras particulares, «sem as quais não haveria qualquer progressão da analogia universal de uma experiência possível em geral para a analogia particular, tem o entendimento que pensá-las como leis (isto é como necessárias), porque doutro modo não constituiriam qualquer ordem da natureza, ainda que ele não conheça a sua necessidade ou jamais a pudesse descortinar» (Kant, 1998: 68). 30 Novamente, as palavras citadas são da secção IV da Introdução. Na secção V, Kant refere que «uma tal unidade tem que ser necessariamente pressuposta e admitida, pois de outro modo não existiria qualquer articulação completa de conhecimentos empíricos para um todo da experiência, na medida em que na verdade as leis da natureza universais sugerem uma tal articulação entre as coisas segundo o seu género, como coisas da natureza em geral, mas não de forma específica, como seres da natureza particulares» (Kant, 1998: 67). Assim, como continua o nosso autor, «a faculdade do juízo terá que admitir a priori como princípio que aquilo que é contingente para a perspiciência humana nas leis da natureza particulares (empíricas), contém mesmo assim para nós uma unidade legítima, não para ser sondada, mas pensável na ligação do seu múltiplo para uma experiência em si possível» (Kant, 1998: 67). 31 Assinale-se, neste contexto, que «só a faculdade de juízo reflexiva (nur die reflektierende Urteilskraft) pode dar a si mesma um tal princípio como lei e não retirá-lo de outro lugar (porque então seria faculdade de juízo determinante (bestimmende

Urteilskraft))» (Kant, 1998: 62). Logo no início da secção IV, Kant afirma que «[a]

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não pode ser senão este: assim como as leis universais têm o seu fundamento no nosso entendimento, que as prescreve à natureza (ainda que somente segundo o conceito universal dela como natureza) assim têm as leis empíricas particulares, a respeito daquilo que nelas é deixado indeterminado por aquelas leis, que ser consideradas segundo uma tal unidade, como se (als ob) igualmente um entendimento (ainda que não o nosso) as tivesse dado em favor da nossa faculdade de conhecimento (zum Behuf unserer Erkenntnisvermögen), para tornar possível um sistema de experiência segundo leis da natureza particulares (Kant, 1998: 63).32

faculdade de juízo determinante, sob leis transcendentais universais dadas pelo entendimento, somente subsume; a lei é-lhe indicada a priori ([d]ie bestimmende Urteilskraft unter allgemeinen transzendentalen Gesetzen, die der Verstand gibt, ist

nur subsumierend; das Gesetz ist ihr a priori vorgezeichnet) e por isso não sente necessidade de pensar uma lei para si mesma, de modo a poder subordinar o particular na natureza ao universal» (Kant, 1998: 60). A faculdade de juízo determinante «nada mais faz do que subsumir em leis dadas (hat nichts zu tun, als unter gegebenen Gesetzen zu subsumieren)» (Kant, 1998: 66). Só a faculdade de juízo reflexiva «tem a obrigação de elevar-se do particular na natureza ao universal (von dem Besondern

in der Natur zum Allgemeinen aufzusteigen die Obliegenheit hat)» (Kant, 1998: 61-62), por isso só ela «sente necessidade de pensar uma lei para si mesma (hat nötig, für

sich selbst auf ein Gesetz zu denken)» (Kant, 1998: 60) e só ela a «pode dar a si mesma (kann sich nur selbst geben)» (Kant, 1998: 62). 32 Considerando que «a unidade» – reforça o nosso autor, na secção V – «é representada como conformidade a fins dos objectos (aqui da natureza), a faculdade do juízo, que no que diz respeito às coisas sob leis empíricas possíveis (ainda por descobrir) é simplesmente reflexiva, tem que pensar a natureza relativamente àquelas leis, segundo um princípio da conformidade a fins para a nossa faculdade do juízo (nach einem Prinzip der Zweckmäßigkeit für unser Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 67). É de ressalvar, entretanto, que, na passagem citada, Kant escreve “Erkenntnisvermögen”, não “Urteilskraft”. A faculdade do juízo tem de pensar a natureza segundo um princípio da conformidade a fins para a nossa faculdade de conhecimento. Trata-se do «princípio da conformidade a fins da natureza (na multiplicidade das suas leis empíricas) (Prinzip der Zweckmäßigkeit der Natur (in der

Mannigfaltigkeit ihrer empirischen Gesetze))» (Kant, 1998: 64), como Kant lhe tinha chamado no início da referida secção. Ainda na secção V, o nosso autor descreve-o como «o princípio da conformidade a fins [da natureza] para a nossa faculdade de conhecimento (Prinzip der Zweckmäßigkeit für unser Erkenntnisvermögen), isto é para a adequação ao nosso entendimento humano na sua necessária actividade, que consiste em encontrar o universal para o particular, que a percepção lhe oferece e por sua vez em encontrar a conexão na unidade do princípio para aquilo que é diverso (na

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O princípio em causa é, de acordo com o nosso autor, «um princípio a

priori (ein Prinzip a priori)» para «investigar as chamadas leis empíricas» (Kant, 1998: 68). Trata-se da pressuposição (Voraussetzung) de uma «concordância da natureza com a nossa faculdade de conhecimento (Zusammenstimmung der Natur zu unserem Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 69). Sem pressupormos essa concordância, «não teríamos», afirma Kant, «qualquer ordem da natureza segundo leis empíricas e por conseguinte nenhum fio condutor para uma experiência e uma investigação das mesmas que funcione com elas segundo toda a sua multiplicidade» (Kant, 1998: 69).33

verdade, o universal para cada espécie)» (Kant, 1998: 70). Na secção VI, Kant designa-o por «princípio da adequação da natureza à nossa faculdade de conhecimento (Prinzip der Angemessenheit der Natur zu unserem Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 73). Na Primeira Introdução, ele é referido como o conceito da «natureza como arte, em outras palavras, o da técnica da natureza quanto a suas leis particulares» (Kant, 1995: 39). 33 Nota ele, imediatamente antes, que «[e]sta concordância da natureza com a nossa faculdade de conhecimento é pressuposta a priori pela faculdade do juízo em favor da sua reflexão sobre a mesma, segundo as suas leis empíricas, na medida em que o entendimento a reconhece ao mesmo tempo como contingente e a faculdade do juízo simplesmente a atribui à natureza como conformidade a fins transcendental (em relação à faculdade de conhecimento do sujeito) (transzendentale Zweckmäßigkeit (in

Beziehung auf das Erkenntnisvermögen des Subjekts))» (Kant, 1998: 69). As palavras citadas são da secção V. Quer ainda na secção V, na sua parte final, quer na secção VI, Kant reforça esta tese: diz ele, primeiro, que «só na medida em que [o princípio da conformidade a fins da natureza para a nossa faculdade de conhecimento] exista, nos é possível progredir, utilizando o nosso entendimento na experiência, e adquirir conhecimento» (Kant, 1998: 70); acrescenta, já na secção VI, que «[a] concebida concordância da natureza na multiplicidade das suas leis particulares com a nossa necessidade de encontrar para ela a universalidade dos princípios, tem que ser ajuizada, segundo toda a nossa de perspiciência como contingente, mas igualmente como imprescindível para as nossas necessidades intelectuais (als zufällig, gleichwohl

aber doch für unser Verstandesbedürfnis als unentbehrlich), por conseguinte como conformidade a fins, pela qual a natureza concorda com a nossa intenção, mas somente enquanto orientada para o conhecimento» (Kant, 1998: 70). Ainda nessa secção, Kant, fornece a sua explicação: «tanto quanto nos é possível descortinar, é contingente o facto da ordem da natureza segundo as suas leis particulares, com toda a, pelo menos possível, multiplicidade e heterogeneidade que ultrapassa a nossa faculdade de apreensão, ser no entanto adequada a esta faculdade»; de acordo com o

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É de salientar, entretanto, ser para reflectir, não para determinar, que o princípio da conformidade a fins da natureza para a nossa faculdade de conhecimento serve de fundamento. Como indica Kant, «é somente à faculdade de juízo reflexiva que esta ideia serve de princípio, mas para reflectir, não para determinar (es ist nur die reflektierende Urteilskraft,

der diese Idee zum Prinzip dient, zum Reflektieren, nicht zum

Bestimmen)» (Kant, 1998: 63). Quando se trata de determinar, a faculdade do juízo limita-se a subsumir o particular em leis que vai buscar ao entendimento. Ora, na Crítica da Faculdade do Juízo, «o poder de julgar», como nota Maria Filomena Molder, «destaca-se, separa-se, do entendimento» (Molder, 2007: 375), e leva a «uma epochê provisória da realização efectiva das nossas operações intelectuais, conceptuais, construtivas» (Molder, 2007: 378), isto é, «emudece a operação própria do entendimento, a operação de transformação daquilo que aparece em objecto» (Molder, 2007: 385). Aquilo que a descoberta do princípio da

nosso autor, «[a] descoberta de uma tal ordem é uma actividade do entendimento, o qual é conduzido com a intenção de um fim necessário do mesmo, isto é a intenção de introduzir nela a unidade dos princípios»; assim, como ele conclui, o princípio em questão «tem então que ser atribuído à natureza pela faculdade do juízo, porque aqui o entendimento não lhe pode prescrever qualquer lei (die Urteilskraft der Natur

beilegen muss, weil der Verstand ihr hierüber kein Gesetz vorschreiben kann)» (Kant, 1998: 71). Na parte final da secção VI, Kant afirma que «proceder segundo o princípio da adequação da natureza à nossa faculdade de conhecimento, tão longe quanto for possível, sem (pois que não se trata de uma faculdade de juízo determinante, que nos dê esta regra) descobrir se em qualquer lugar existem ou não limites» é «um imperativo da nossa faculdade do juízo (ein Geheiß unserer Urteilskraft)» (Kant, 1998: 73). Ele já o tinha assinalado na secção V: «este conceito transcendental de uma conformidade a fins da natureza (…) representa somente a única forma, segundo a qual nós temos que proceder na reflexão sobre os objectos da natureza com o objectivo de uma experiência completamente consistente ([d]ieser transzendentale Begriff einer

Zweckmäßigkeit der Natur vorstellt nur die einzige Art, wie wir in der Reflexion über

die Gegenstände der Natur in Absicht auf eine durchgängig zusammenhängende Erfahrung verfahren müssen), por conseguinte é um princípio subjectivo (máxima) da faculdade do juízo (ein subjektives Prinzip (Maxime) der Urteilskraft)» (Kant, 1998: 67). Trata-se, então, de um princípio a priori que tem de colocar-se «como fundamento de toda a reflexão (aller Reflexion zum Grunde legen)» sobre as leis particulares da natureza (Kant, 1998: 68).

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faculdade do juízo proporciona, assim, é um alargamento das possibilidades de ajuizar os objectos. Nas palavras de António Marques, «[e]sta revisão da faculdade do juízo tem como consequência óbvia uma maior liberdade na avaliação dos objectos» (Marques, 1998: 11). Ela liberta os juízos de um confinamento «a uma espécie de subsunção automática dos casos particulares nos nossos conceitos mais gerais», evita que procedamos «a uma absorção imediata dos particulares nos conceitos que de antemão possuímos» (Marques, 1998: 11), permite fugir a uma «perspectiva categorial» que «se desinteressa pela particularidade do particular» (Marques, 1998: 18), fugir «a um automatismo no juízo» (Marques, 1998: 10), e preencher «um sujeito transcendental demasiado formalista ou esquemático», que nas duas primeiras Críticas está «ainda muito afastado da dinâmica da vida sensível e afectiva» (Marques, 1998: 11).

No juízo estético reflexivo (ästhetisches Reflexionsurteil), a faculdade do juízo é referida imediatamente ao sentimento de prazer, mas a referência imediata da faculdade do juízo ao sentimento de prazer ocorre segundo um princípio a priori (cf. Kant, 1998: 48). Acerca do juízo estético reflexivo, podemos assinalar, por conseguinte, que ele «se refere à faculdade-de-conhecimento (bezieht er sich aufs Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1995: 61). É precisamente essa referência aquilo que faz dele um juízo reflexivo. É com «mediação de um princípio-de-conhecimento (Vermittlung eines Erkenntnisprinzips)» que o juízo estético reflexivo contém «a proporção da representação ao sentimento (das Verhältnis der

Vorstellung zum Gefühl)» (Kant, 1995: 66).34 O juízo estético acerca da

34 Explicaremos mais à frente como se processa essa mediação, essa referência. Por ora, apenas nos importa notar que tal não significa que o juízo de gosto (juízo estético reflexivo) seja um juízo de conhecimento (Erkenntnisurteil). Ele é um juízo estético. A maneira como o sujeito é afectado, portanto o sentimento de prazer ou desprazer, mesmo que podendo resultar de um conhecimento, não é um conhecimento. O juízo de gosto – e, mais geralmente, o juízo estético – não é, então, um juízo de conhecimento. Tal é indicado ao longo de toda a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” da Crítica da Faculdade do Juízo, numas vezes mais explicitamente, noutras, menos. Veja-se, nesse sentido, desde logo o §1, onde Kant escreve que «[o]

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beleza é, como vimos, um juízo estético formal, um juízo estético puro, o único tipo de juízo de gosto autêntico. Essa autenticidade assenta na referência do juízo ao princípio da faculdade do juízo enquanto faculdade de conhecimento superior.35

juízo de gosto não é (…) nenhum juízo de conhecimento (kein Erkenntnisurteil), por conseguinte não é lógico e sim estético», pois pelo sentimento de prazer e desprazer, que é o fundamento de determinação do juízo estético e, portanto, do juízo de gosto, «não é designado absolutamente nada no objecto (gar nichts im Objekte bezeichnet

wird)» (Kant, 1998: 89). Observem-se também o §15, no qual é sugerido que um juízo de gosto não é um juízo de conhecimento e explicitamente afirmado que «um juízo estético é único em sua espécie e não fornece absolutamente conhecimento algum (e tão pouco um confuso) do objecto (schlechterdings keine Erkenntnis (auch nicht eine verworrene) vom Objekt gebe)» (Kant, 1998: 119), os §18 e §32, nos quais Kant reforça, respectivamente, que «um juízo estético não é nenhum juízo objectivo e de conhecimento (kein objektives und Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998: 128) e que «o juízo de gosto (…) não é em caso algum um conhecimento (überall nicht Erkenntnis), mas somente um juízo estético» (Kant, 1998: 183), a observação ao §38, na qual é sublinhado que «o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (kein

Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998: 192), e, finalmente, o §58, onde Kant repete que «um juízo de gosto [não] é um juízo de conhecimento (kein Erkenntnisurteil)» (Kant, 1998: 255). Uma anterior consideração de Kant a este propósito é tecida no Prólogo à primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo, quando o nosso autor assinala que os juízos «que se chamam estéticos e dizem respeito ao belo e ao sublime da natureza ou da arte (…) por si só em nada [contribuem] para o conhecimento das coisas (für

sich allein zur Erkenntnis der Dinge gar nichts beitragen)» (Kant, 1998: 48). Essa tese está em absoluta concordância com algo que Kant afirma na Primeira Introdução, a saber, que «[u]m juízo estético, em universal, pode (…) ser explicado como aquele juízo cujo predicado jamais pode ser conhecimento (conceito de um objeto) – embora possa conter as condições subjetivas para um conhecimento em geral (dasjenige Urteil

dessen Prädikat niemals Erkenntnis (Begriff von einem Objekte) sein kann (ob es gleich die subjektive Bedingungen zu einem Erkenntnis überhaupt enthalten mag))» (Kant, 1995: 60) e que denominar «estético um juízo, porque não refere a representação de um objeto a conceitos e, portanto, não refere o juízo ao conhecimento (das Urteil nicht auf die Erkenntnis bezieht) (…) não deixa temer nenhum mal-entendido; pois, para o juízo lógico, as intuições, embora sejam sensíveis (estéticas), têm de ser previamente elevadas a conceitos, para servir ao conhecimento do objeto, o que, no juízo estético, não é o caso» (Kant, 1995: 86). 35 A partir desta propriedade do juízo de gosto, Kant chega a esboçar uma exclusão do juízo acerca do agradável do âmbito do juízo estético. Diz ele que «por estéticos, são entendidos somente os juízos-de-reflexão, os únicos que se referem a um princípio do Juízo, como faculdade-de-conhecimento superior (welche sich allein auf ein

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1.4. A beleza apraz no simples julgamento

Ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant refere que o belo meramente apraz, isto é, apraz por si próprio no simples julgamento.36 Se belo é aquilo que meramente apraz, se belo é aquilo que apraz imediatamente por si próprio no simples julgamento37, então esse comprazimento tem de depender apenas da reflexão sobre a representação do objecto.38 No caso do juízo de gosto, o ânimo contempla serena e

Prinzip der Urteilskraft, als obern Erkenntnisvermögens beziehen), enquanto os juízos-de-sentidos estéticos só se ocupam imediatamente com a proporção das representações ao sentido interno, na medida em que este é sentimento» (Kant, 1995: 63). Ainda assim, manteremos que há duas espécies de juízo estético – o juízo estético dos sentidos, a saber, o juízo acerca do agradável; e o juízo estético reflexivo, o juízo de gosto, o juízo através do qual se declara belo um objecto. Ao fazê-lo, estamos a respeitar a já citada passagem inaugural do §14, de acordo com a qual podem dividir-se os juízos estéticos em juízos estéticos puros, formais, e juízos estéticos empíricos, materiais (cf. Kant, 1998: 113). 36 No §5, a propósito da comparação entre os três modos especificamente diversos de comprazimento, Kant diz que «belo [significa para alguém] aquilo que meramente lhe apraz (was ihm bloß gefällt)» (Kant, 1998: 97); na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso autor define o belo como «o que apraz no simples julgamento (was in der bloßen Beurteilung gefällt)» (Kant, 1998: 165); no §45, já no âmbito das suas considerações acerca da bela arte, ele afirma que «belo é aquilo que apraz no simples julgamento (was in der bloßen Beurteilung gefällt)» (Kant, 1998: 210). 37 No §23, ao enunciar os factos em que há concordância entre o belo e o sublime, Kant refere que «ambos aprazem por si próprios (beides für sich selbst gefällt)» (Kant, 1998: 137). 38 No §59, ao observar a diferença entre o belo e o moralmente bom (das Sittlich-Gute), Kant afirma precisamente que «[o] belo apraz imediatamente ([d]as Schöne

gefällt unmittelbar)» e «somente na intuição reflexiva (nur in der reflektierenden

Anschauung)» (Kant, 1998: 263). Esta afirmação vai ao encontro de algo que já tinha sido assinalado nos §2, §4, §23, §39 e §41, a saber, respectivamente, que «se a questão é saber se algo é belo» (Kant, 1998: 91), então o que importa é como ajuizamos a coisa «na simples contemplação (intuição ou reflexão) (in der bloßen Betrachtung (Anschauung oder Reflexion)» (Kant, 1998: 91), que «[o] comprazimento no belo tem que depender da reflexão sobre um objecto (Reflexion über einen Gegenstand)» (Kant, 1998: 94), que o belo pressupõe «um juízo de reflexão (ein Reflexionsurteil)» (Kant, 1998: 137), que o prazer no belo é «um prazer da simples reflexão (eine Lust

der bloßen Reflexion)» (Kant, 1998: 194) e que o comprazimento no belo é «o

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tranquilamente o objecto.39 Pois bem, dizer que o juízo de gosto é simplesmente contemplativo é o mesmo que dizer que um tal juízo é indiferente em relação à existência do objecto.40 Ao ajuizarmos se um objecto é belo, não temos, então, qualquer consideração pela sua existência; o que importa é o que acontece com a sua representação em nós – nomeadamente por relação ao sentimento de prazer e desprazer.41 Não há qualquer interesse no fundamento do juízo de gosto, não há

comprazimento da simples reflexão sobre um objecto (Wohlgefallen der bloßen

Reflexion über einen Gegenstand)» (Kant, 1998: 199). 39 Devemos citar, neste contexto, breves passagens dos §5, §12, §24 e §27, a saber, respectivamente: «o juízo de gosto é meramente contemplativo (bloß kontemplativ)» (Kant, 1998: 97); «o prazer no juízo estético (…) é simplesmente contemplativo (bloß kontemplativ)» (Kant, 1998: 112); «o gosto no belo pressupõe e mantém o ânimo em serena contemplação (in ruhiger Kontemplation)» (Kant, 1998: 141); e «no seu juízo estético sobre o belo [o ânimo] está em tranquila contemplação (in ruhiger kontemplation)» (Kant, 1998: 154). 40 Kant di-lo efectivamente no §5: «o juízo de gosto é meramente contemplativo, isto é, um juízo que, indiferente em relação à existência de um objecto, só considera a sua natureza em comparação com o sentimento de prazer e desprazer (indifferent in

Ansehung des Daseins eines Gegenstandes, nur seine Beschaffenheit mit dem Gefühl der Lust und Unlust zusammenhält)» (Kant, 1998: 97). 41 Afirma Kant, no §2: «Quer-se saber somente se esta simples representação do objecto em mim é acompanhada de comprazimento (ob die bloße Vorstellung des Gegenstandes in mir mit Wohlgefallen begleitet sei), por indiferente que sempre eu possa ser com respeito à existência do objecto desta representação. Vê-se facilmente que se trata do que faço dessa representação em mim mesmo (was ich aus dieser Vorstellung in mir selbst mache), não daquilo em que dependo da existência do objecto, para dizer que ele é belo e para provar que tenho gosto. (…) Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz» (Kant, 1998: 92). No mesmo parágrafo, mas ainda antes, Kant refere que «se a questão é saber se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa» (Kant, 1998: 91). Mais à frente, no §5, ele insiste em afirmar que o juízo de gosto é «indiferente em relação à existência de um objecto» (Kant, 1998: 97). Destas afirmações não deve concluir-se que os objectos do juízo de gosto são coisas inexistentes, que nenhum objecto empírico pode ser belo ou, como faz Robert L. Zimmerman, atribuir a Kant a asserção de que «na experiência estética a mente é presenteada com conteúdos do mundo numénico» (Zimmerman, 1967: 386).

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qualquer interesse no comprazimento que determina esse juízo.42 O comprazimento no belo é um comprazimento desinteressado.43 É com favor que declaramos belo um objecto.44

42 Desde logo, no título do §2, é destacada a independência do juízo de gosto em relação a interesses: «O comprazimento que determina o juízo de gosto é

independente de todo o interesse (Das Wohlgefallen, welches das Geschmacksurteil bestimmt, ist ohne alles Interesse)» (Kant, 1998: 91). 43 Na explicação do belo inferida do “Primeiro momento do juízo de gosto, segundo a qualidade” e, logo a seguir, no §6, caracteriza-se o objecto belo como o objecto de um comprazimento «independente de todo o interesse (ohne alles

Interesse)» (Kant, 1998: 99); no §24, descrevendo o comprazimento envolvido nos juízos «da faculdade de juízo estético-reflexiva (ästhetischen reflektierenden Urteilskraft)», Kant indica que esse comprazimento «tem que ser (…) segundo a qualidade sem interesse (ohne Interesse)» (Kant, 1998: 140); na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso autor afirma que o belo «tem de comprazer sem nenhum interesse (ohne alles

Interesse gefallen müsse)» (Kant, 1998: 165); no §41, Kant, referindo, a propósito do interesse empírico pelo belo, um eventual comprazimento na existência de um objecto belo, não deixa de assinalar que previamente esse objecto «aprouve por si sem consideração de qualquer interesse ( für sich und ohne Rücksicht auf irgend ein Interesse gefallen hat)» (Kant, 1998: 199); no §59, finalmente, distinguindo o belo do moralmente bom, ele reforça que o primeiro «apraz independentemente de todo o interesse (gefällt ohne alles Interesse)» (Kant, 1998: 263). 44 No §5, é indicado que o comprazimento no belo se refere a favor e é explicitamente afirmado que «favor é o único comprazimento livre (Gunst ist

das einzige freie Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 97). Na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, numa referência à “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, é assinalado que nesta «foi dito que consideraríamos a bela natureza com favor (mit Gunst), na medida em que tivéssemos um comprazimento totalmente livre (desinteressado) (ein ganz freies (uninteressirtes) Wohlgefallen) na sua forma» (Kant, 1998: 422). No artigo “El Sentimiento como Fondo de la Vida y del Arte”, Félix Duque fala de uma anterioridade ontológica do sentimento enquanto sentido interior, enquanto receptividade – enquanto inwendiger Sinn, portanto, enquanto Empfänglichkeit, não como recepção, não como sensibilidade, externa ou interna – e associa-a à noção de favor (Gunst) (cf. Duque, 1992: 83-84). Mais à frente no seu artigo, entretanto, o comentador conclui que precisamente «a reflexão pura, o sentimento da beleza» é «o sentimento por antonomásia» (Duque, 1992: 87) e que a beleza e o juízo de gosto são «os baixos fundos de toda a experiência possível, cognoscitiva ou prática» (Duque, 1992: 98).

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Colocar um interesse no fundamento do juízo de gosto seria viciá-

lo, torná-lo faccioso, parcial.45 O juízo de gosto tem de ser um juízo

livre. Como é referido no título do §13, «[o] juízo de gosto puro é

independente de atractivo e comoção ([d]as reine Geschmacksurteil ist

von Reiz und Rührung unabhängig)» (Kant, 1998: 112).46 No

fundamento do juízo de gosto não pode estar um interesse, seja esse

um interesse dos sentidos, seja, de resto, um interesse da razão.

Pertinentemente, Maria Filomena Molder indica que o juízo de gosto é

«tido como um juízo livre, isto é, liberto de qualquer constrangimento

quer seja patológico quer seja conceptual» (Molder, 2007: 375).47

Regressando às palavras de Kant, devemos ver a “Observação geral

sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, na qual ele define o

belo como «o que apraz no simples julgamento (logo, não mediante a

sensação do sentido segundo um conceito do entendimento (nicht

45 Veja-se o que está escrito no §2: «aquele juízo sobre a beleza, ao qual se mescla o

mínimo interesse é muito faccioso (sehr parteilich) e não é nenhum juízo de gosto

puro» (Kant, 1998: 92). A razão do proferimento desta afirmação aparece repetida no início do §13, onde Kant afirma que «[t]odo o interesse vicia (verdirbt) o juízo de

gosto e tira-lhe a imparcialidade (nimmt ihm seine Unparteilichkeit)» (Kant, 1998: 112). 46 Envolvendo os mesmos termos, nuns casos, envolvendo outros, noutros casos, essa

tese é repetida em várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo. Cite-se, por exemplo, o fim do §13, onde Kant afirma que «atractivo e comoção (Reiz und

Rührung) não têm nenhuma influência (keinen Einfluß)» sobre o puro juízo de gosto

(Kant, 1998: 113), o fim do §14, onde ele sublinha que a comoção (Rührung) é uma sensação que «não pertence absolutamente (gehört gar nicht) à beleza» (Kant, 1998:

116) e que «um juízo de gosto puro não possui nem atractivo nem comoção (weder Reiz noch Rührung) como princípio determinante (zum Bestimmungsgrunde), numa

palavra, nenhuma sensação enquanto matéria do juízo estético (keine Empfindung, als

Materie des ästhetischen Urteils)» (Kant, 1998: 117), e o §28, no qual o nosso autor assinala que «não pode absolutamente julgar (…) sobre o belo quem é tomado de

inclinação e apetite (welcher durch Neigung und Appetit eingenommen ist)» (Kant,

1998: 157). 47 As palavras de Paulo Tunhas seguem no mesmo sentido – o juízo através do qual

se declara belo um objecto é, no entender do intérprete, «o único a testemunhar uma inteira liberdade, devido ao facto de que não se encontra submetido nem à necessidade

de uma inclinação, como o juízo relativo ao agradável, nem à coerção do dever, como

o juízo concernente ao bem» (Tunhas, 2011: 76).

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vermittelst der Empfindung des Sinnes nach einem Begriffe des

Verstandes))» (Kant, 1998: 165), o §45, no qual o nosso autor afirma

que «belo é aquilo que apraz no simples julgamento (não na sensação

sensorial nem mediante um conceito (nicht in der Sinnenempfindung,

noch durch einen Begriff))» (Kant, 1998: 210), e, ainda antes, o §23,

onde Kant nota que o comprazimento na beleza «não se prende a uma

sensação como a sensação do agradável, nem a um conceito

determinado como o comprazimento no bem (nicht an einer

Empfindung wie die des Angenehmen, noch an einem bestimmten

Begriffe wie das Wohlgefallen am Guten)» (Kant, 1998: 137).48

Efectivamente, o prazer no bom (das Gute) funda-se em conceitos.

Observe-se o início do §4: «Bom é o que apraz mediante a razão pelo

simples conceito» (Kant, 1998: 94). No bom «está contido o conceito de

um fim, portanto a relação da razão ao (pelo menos possível) querer,

consequentemente um comprazimento na existência de um objecto ou de

uma acção, isto é, um interesse qualquer» (Kant, 1998: 94). De resto, «o

absolutamente e em todos os sentidos bom, a saber o bom moral (…)

comporta o máximo interesse» (Kant, 1998: 96). Mas um juízo de gosto

que se fundasse em conceitos não seria um juízo de gosto.49 O

comprazimento no belo, e, portanto, o juízo de gosto, não tem um conceito

como fundamento de determinação. Kant é assertivo a este respeito: o

juízo de gosto «não se funda absolutamente sobre conceitos (gründet sich

48 A sensação de prazer no belo é, no entanto, «referida a conceitos, se bem que sem determinar quais (auf Begriffe, obzwar unbestimmt welche, bezogen wird)»

(Kant, 1998: 137). Sempre que mencionamos a independência do juízo de gosto

– da beleza, portanto – em relação a conceitos, estamos a referir-nos, então, a conceitos determinados. Ao tomarmos essa opção, concordamos com o próprio

Kant – quando menciona a independência da beleza relativamente a conceitos, ele

refere-se a conceitos determinados. 49 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant defende que os

juízos reflexivos estéticos «de nenhum modo podem ser fundados sobre conceitos (durchaus nicht auf Begriffe gegründet) e, portanto, derivados de nenhum

princípio determinado (von keinem bestimmten Prinzip abgeleitet), porque senão

seriam lógicos» (Kant, 1995: 77).

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gar nicht auf Begriffe)» (Kant, 1998: 183). Esta posição é, aliás, inúmeras vezes afirmada ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo.50

No §15, o nosso autor salienta que o fundamento de determinação do juízo de gosto «não pode ser nenhum conceito, por conseguinte tão pouco o de um fim determinado (kein Begriff, mithin auch nicht der eines

bestimmten Zwecks sein kann)» (Kant, 1998: 118). Se assim é, um juízo deste tipo não pode basear-se na conformidade do objecto a um tal fim, isto é, na conformidade objectiva da coisa a fins, seja, essa conformidade a fins objectiva, uma conformidade a fins objectiva externa, seja interna, pela simples razão de que o juízo de gosto é um juízo estético e, como tal, um juízo cuja referência da representação do objecto é dirigida apenas ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer.51 No juízo de gosto, a

50 Numas vezes, isso acontece explicitamente; noutras, implicitamente. Kant ostenta a sua posição no §4, ao referir que, para encontrar a beleza num objecto, não é necessário saber «que tipo de coisa o objecto deva ser, isto é, ter um conceito do mesmo (einen Begriff von dem Gegenstand)» (Kant, 1998: 94), e mesmo nos exemplos que dá de objectos belos, ao assinalar que «[f]lores, desenhos livres, linhas entrelaçadas sem intenção sob o nome de folhagem, não significam nada, não dependem de nenhum conceito determinado (hängen von keinem bestimmten Begriffe ab) e contudo aprazem» (Kant, 1998: 94); fá-lo também no §5, ao indicar que, no juízo de gosto, a contemplação «é tão pouco dirigida a conceitos (ist auch nicht auf

Begriffe gerichtet)» (Kant, 1998: 97), no §16, ao salientar que o prazer no belo «não pressupõe nenhum conceito (keinen Begriff voraussetzt)» (Kant, 1998: 121), na “Analítica do sublime”, concretamente no §28, ao identificar o juízo estético como um juízo «sem conceito (ohne Begriff)» (Kant, 1998: 157), e no §35, ao dizer explicitamente que o juízo de gosto «não subsume absolutamente num conceito (gar

nicht unter einen Begriff subsumiert)» e «não é determinável por conceitos (nicht durch Begriffe bestimmbar ist)» (Kant, 1998: 188). 51 Kant identifica a conformidade a fins externa com a utilidade e a conformidade a fins interna com a perfeição: «A conformidade a fins objectiva (objektive Zweckmäßigkeit) é ou externa (äußere), isto é a utilidade (die Nützlichkeit), ou interna (innere), isto é a perfeição do objecto (die Vollkommenheit des Gegenstandes)» (Kant, 1998: 117). A conformidade a fins objectiva «é a referência do objecto a um fim determinado (die Beziehung des Gegenstandes auf einen bestimmten Zweck)» (Kant, 1998: 117). Essa definição é reforçada quando Kant afirma que «para nos representarmos uma conformidade a fins objectiva numa coisa, o conceito do que esta

coisa deva ser precedê-la-á (der Begriff von diesem, was es für ein Ding sein solle,

voran gehen)» (Kant, 1998: 118). Acontece que, como é salientado no início do §11,

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conformidade a fins não é, então, representada como objectiva, sendo que, no concernente à independência do juízo de gosto relativamente à perfeição, a assertividade de Kant está bem patente no próprio título do §15: «O juízo de gosto é totalmente independente do conceito de perfeição (Das Geschmacksurteil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117).52

1.5. Princípio da conformidade a fins formal da natureza

Nem toda a conformidade a fins tem de ser, no entanto, representada como objectiva. No §10, acerca da conformidade a fins em geral (von der

Zweckmäßigkeit überhaupt), Kant sustenta que é possível representar-se uma conformidade a fins «sem fim (ohne Zweck)» (Kant, 1998: 109). Segundo o nosso autor, um objecto pode ser conforme a fins

ainda que a sua possibilidade não pressuponha necessariamente a possibilidade da representação de um fim, simplesmente porque a sua possibilidade somente pode ser explicada ou concebida por nós na medida em que admitimos no fundamento da mesma uma causalidade segundo fins, isto é uma vontade, que a tivesse ordenado desse modo

o juízo de gosto nem sequer pode fundamentar-se num «fim subjectivo (subjektiver

Zweck)» (Kant, 1998: 110), pois «[t]odo o fim, se é considerado como fundamento do comprazimento, traz sempre consigo um interesse como fundamento de determinação do juízo sobre o objecto do prazer» (Kant, 1998: 110). Note-se, no entanto, que tal não é o mesmo que recusar que o juízo de gosto «se baseia sobre fundamentos subjectivos (auf subjektiven Gründen beruht)» (Kant, 1998: 118). A primeira afirmação ligaria a determinação do juízo de gosto a uma finalidade determinada; a segunda não o faz. 52 Observa-se neste título um distanciamento do nosso autor em relação a uma abordagem racionalista da crítica do gosto. No entender de Kant, a abordagem em causa, alicerçada em Descartes, mas plasmada em Leibniz ou Wolff, entre outros, encara o juízo de gosto como sendo «propriamente um oculto juízo da razão sobre a descoberta perfeição de uma coisa e a referência do múltiplo nele a um fim», juízo esse que «por conseguinte somente é denominado estético em virtude da confusão que é inerente a esta nossa reflexão, embora no fundo ele seja teleológico» (Kant, 1998: 254). Uma tal abordagem anula à partida a possível especificidade do juízo de gosto ou da beleza. A beleza é, nesse âmbito, uma perfeição. O juízo de gosto é, nesse contexto, um juízo de conhecimento – conhecimento confuso, não distinto, mas, ainda assim, conhecimento.

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segundo a representação de uma certa regra (wenn gleich ihre

Möglichkeit die Vorstellung eines Zwecks nicht notwendig

voraussetzt, bloß darum, weil ihre Möglichkeit von uns nur erklärt

und begriffen werden kann, sofern wir eine Kausalität nack Zwecken,

d. i. einen Willen, der sie nach der Vorstellung einer gewissen Regel

so angeordnet hätte, zum Grunde derselben annehmen) (Kant, 1998: 109)53,

ainda, então, que não ponhamos «as causas [da sua] forma numa vontade, e contudo somente podemos tornar compreensível para nós a explicação da sua possibilidade enquanto a deduzimos de uma vontade» (Kant, 1998: 109-110). Pois bem, considerando que «não temos sempre necessidade de descortinar pela razão (segundo a sua possibilidade) aquilo que observamos», como continua Kant, «podemos pelo menos observar uma conformidade a fins segundo a forma – mesmo que não lhe ponhamos no fundamento um fim (como matéria do nexus finalis) (eine Zweckmäßigkeit

der Form – nach, auch ohne dass wir ihr einen Zweck (als die Materie des

nexus finalis) zum Grunde legen)» (Kant, 1998: 110). É na representação de uma conformidade a fins sem fim, meramente formal, que o juízo de gosto se baseia.

Os fundamentos da representação de uma tal conformidade a fins levam-nos de volta à Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, nomeadamente à secção VIII. Afirma Kant, nessa secção, que a parte da crítica da faculdade do juízo «que contém a faculdade do juízo estética (welcher die ästhetische Urteilskraft enthält)», e «apenas (allein)» ela, «contém um princípio que a faculdade do juízo coloca como princípio inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza (ein Prinzip enthält, welches die Urteilskraft völlig a priori ihrer

Reflexion über die Natur zum Grunde legt)» (Kant, 1998: 79). Esse princípio é «o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa capacidade de conhecimento (das Prinzip, das einer formalen Zweckmäßigkeit der

53 A segunda ocorrência da palavra “possibilidade” na tradução para Português constitui um erro e deve ser simplesmente eliminada.

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Natur nach ihren besonderen (empirischen) Gesetzen für unser

Erkenntnisvermögen), conformidade sem a qual o entendimento não se orientaria naquelas», é «o princípio transcendental que consiste em representar uma conformidade a fins da natureza, na relação subjectiva às nossas faculdades de conhecimento, na forma de uma coisa, enquanto princípio do julgamento da mesma ([d]er transzendentale

Grundsatz, sich eine Zweckmäßigkeit der Natur in subjektiver

Beziehung auf unser Erkenntnissvermögen an der Form eines Dinges

als ein Prinzip der Beurteilung derselben vorzustellen)» (Kant, 1998: 79). Kant também lhe chama «conceito de uma conformidade a fins subjectiva da natureza, nas suas formas segundo leis empíricas (Begriff

von einer subjektiven Zweckmäßigkeit der Natur in ihren Formen nach

empirischen Gesetzen)» (Kant, 1998: 78) ou, mais simplesmente, «princípio da conformidade a fins formal da natureza (Prinzip der formalen Zweckmäßigkeit der Natur)» (Kant, 1998: 64). O nosso autor não refere apenas, então, o princípio da conformidade a fins da natureza para as nossas faculdades de conhecimento; ele refere o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Aquilo que importa saber, por conseguinte, é por que é que ou em que medida a referida conformidade fins da natureza é formal e por que é que ou em que medida unicamente a parte da crítica da faculdade do juízo que contém a faculdade de juízo estética contém esse princípio.

Para o sabermos, devemos recorrer ao início da secção VIII. Afirma Kant, aí, que

[n]um objecto dado numa experiência, a conformidade a fins pode ser representada, quer a partir de um princípio simplesmente subjectivo, como concordância da sua forma com as faculdades de conhecimento na apreensão (apprehensio) do mesmo, antes de qualquer conceito, para unir a intuição com conceitos a favor de um conhecimento em geral (aus

einem bloß subjektiven Grunde, als Übereinstimmung seiner Form, in

der Auffassung (apprehensio) desselben vor allem Begriffe, mit den

Erkenntnisvermögen, um die Anschauung mit Begriffen zu einem

Erkenntnis überhaupt zu vereinigen), quer a partir de um princípio

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objectivo, enquanto concordância da sua forma com a possibilidade da própria coisa, segundo um conceito desse objecto que antecede e contém o fundamento desta forma (aus einem objektiven, als Übereinstimmung

seiner Form mit der Möglichkeit des Dinges selbst, nach einem Begriffe

von ihm, der vorhergeht und den Grund dieser Form enthält) (Kant, 1998: 77-78).

Relativamente à representação da segunda espécie de conformidade a fins, o nosso autor dirá que essa representação «relaciona a forma do objecto, não com as faculdades de conhecimento do sujeito na apreensão do mesmo, mas sim com um conhecimento determinado do objecto sob um conceito dado (auf ein bestimmtes Erkenntnis des Gegenstandes unter

einem gegebenen Begriffe)» e «nada tem a ver com um sentimento do prazer nas coisas, mas sim com o entendimento no julgamento das mesmas (hat nichts mit einem Gefühle der Lust an den Dingen, sondern mit dem

Verstande in Beurteilung derselben zu tun)» (Kant, 1998: 78).54 No que diz respeito à possibilidade de representar a conformidade a fins da primeira espécie, esta já tinha sido afirmada por Kant na secção VII:

Se o prazer estiver ligado à simples apreensão (apprehensio) da forma de um objecto da intuição, sem relação da mesma com um conceito destinado a um certo conhecimento, nesse caso a representação não se liga ao objecto, mas sim apenas ao sujeito (wird die Vorstellung dadurch

nicht auf das Objekt, sondern lediglich auf das Subjekt bezogen); e o prazer não pode mais do que exprimir a adequação desse objecto às faculdades de conhecimento que estão em jogo na faculdade de juízo reflexiva (die Angemessenheit desselben zu den Erkenntnisvermögen,

die in der reflektierenden Urteilskraft im Spiel sind) e por isso, na medida em que elas aí se encontram, exprimem simplesmente uma

54 É isso que acontece quando o conceito de um objecto é dado: «nesse caso a actividade da faculdade do juízo, no seu uso com vista ao conhecimento, consiste na apresentação (exhibitio) (Darstellung (exhibitio)), isto é no facto de colocar ao lado do conceito uma intuição correspondente, quer no caso disto acontecer através da nossa própria faculdade da imaginação, como na arte, quando realizamos um conceito de um objecto antecipadamente concebido que é para nós fim (wie in der Kunst, wenn

wir einen vorhergefassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns Zweck ist, realisieren), quer mediante a natureza na técnica da mesma (como acontece nos corpos organizados), quando lhe atribuímos o nosso conceito do fim para o julgamento dos seus produtos» (Kant, 1998: 78).

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subjectiva e formal conformidade a fins do objecto (eine subjektive

formale Zweckmäßigkeit des Objekts) (Kant, 1998: 74).

Mesmo sendo o movimento da faculdade da imaginação e do entendimento entre si um movimento livre, ele é um movimento harmónico, concordante, consonante. As faculdades de conhecimento movimentam-se harmonicamente.55 Um tal movimento constitui a

55 Aquilo que fica por explicar devidamente é como esse movimento se inicia, como se colocam as faculdades de conhecimento em jogo. Ainda na secção VII da Introdução, Kant assinala que «aquela apreensão das formas na faculdade da imaginação nunca pode suceder, sem que a faculdade de juízo reflexiva, também sem intenção, pelo menos a possa comparar (vergliche) com a sua faculdade de relacionar intuições com conceitos» (Kant, 1998: 74-75). Tal tinha sido já anunciado pelo nosso autor na Primeira Introdução. Dizia ele, aí, que «imaginação e entendimento são considerados na proporção em que têm de estar no Juízo em geral em relação um ao outro, comparada (verglichen) com a proporção em que efetivamente estão» (Kant, 1995: 56). Ambas as passagens dão a entender que a reflexão ocorre sem intenção e compara a representação da apreensão que está a suceder com a disposição das faculdades de conhecimento quando se trata de determinar. Além disso, elas estão de acordo com a definição de reflectir dada na Primeira Introdução: «comparar e manter-juntas dadas representações, seja com outras, seja com sua faculdade-de-conhecimento, em referência a um conceito tornado possível através disso (gegebene

Vorstellungen entweder mit andern, oder mit seinem Erkenntnisvermögen, in Beziehung auf einen dadurch möglichen Begriff, zu vergleichen und zusammen zu halten)» (Kant, 1995: 47). Entretanto, de novo na Introdução, Kant afirma que «se nesta comparação (in

dieser Vergleichung) a faculdade da imaginação (como faculdade das intuições a priori) é sem intenção posta de acordo com o entendimento (como faculdade dos conceitos) mediante uma dada representação e, desse modo, se desperta um sentimento de prazer, nesse caso o objecto tem que então ser considerado como conforme a fins para a faculdade de juízo reflexiva (als zweckmäßig für die reflektierende Urteilskraft)» (Kant, 1998: 75). Kant não refere que a comparação constata o acordo entre as faculdades de conhecimento; ele indica que as faculdades de conhecimento se dispõem harmonicamente na comparação – isto é, na reflexão. A questão que se coloca, neste contexto, é a de saber como podem as faculdades de conhecimento dispor-se harmonicamente a partir de uma apreensão sem conceito. Mais exactamente, perguntar-se-á como pode sugerir-se uma apreensão sem conceito se a Crítica da Razão Pura nos informa que «toda a síntese, pela qual se torna possível a própria percepção, está submetida às categorias; e como a experiência é um conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da experiência e têm pois também validade a priori em relação a todos os objectos da experiência» (Kant, 2001: 163-164). A este respeito – e em face da ausência de uma explicação dada pelo próprio Kant – as propostas são variadas. Admitindo o carácter controverso da sua proposta, Guyer, por exemplo, sugere que na teoria kantiana

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«consonância proporcionada, que exigimos para todo o conhecimento (die

proportionierte Stimmung, die wir zu allem Erkenntnisse fordern)» (Kant, 1998: 108), correspondendo, portanto, à «condição subjetiva, meramente sensível, do uso objetivo do Juízo (die subjektive bloß empfindbare

Bedingung des objektiven Gebrauchs der Urteilskraft)» (Kant, 1995: 60), à «condição subjectiva do conhecer (subjektive Bedingung des

Erkennens)» (Kant, 1998: 130), à «condição formal subjectiva de um juízo em geral (subjektive formale Bedingung eines Urteils überhaupt)» (Kant,

da síntese se estabeleça uma distinção entre elementos psicológicos e elementos epistemológicos. Segundo o intérprete, teríamos, assim, «uma teoria da síntese como processos mentais através dos quais estados mentais de conhecimento são produzidos, e uma teoria das categorias como regras através das quais a verificação das exigências do conhecimento pode ser feita» (Guyer, 1997: 86). A partir dessa distinção, Guyer considera que «[o] emprego das categorias, e dos conceitos empíricos que se aplicam a intuições empíricas reais, seria então não uma condição necessária para a ocorrência do processo psicológico de síntese, mas apenas uma condição para a verificação das exigências de conhecimento real dos membros do diverso de um indivíduo e da sua posição na história mental desse indivíduo ou na unidade objectiva da apercepção» (Guyer, 1997: 86). Aceitando-a, «a unificação de um diverso sem um conceito, pela imaginação, poderia ser pensada como um estado no qual os concomitantes psicológicos do conhecimento se obtêm na ausência de uma exigência real de conhecimento; e esta interpretação estabeleceria uma separação entre a ocorrência de estados psicológicos ordinariamente associados à unificação de diversos e a sujeição absoluta da última às categorias» (Guyer, 1997: 87). Ainda assim, Guyer mantém que o principal problema do poder explicativo do «modelo de resposta estética» é que «é difícil ver como a possibilidade da harmonia das faculdades é compatível com a tese da primeira Crítica de que a síntese é sempre sujeita a conceitos» (Guyer, 1997: 304-305). José Gil confronta-se com a mesma dificuldade. No sentido de ultrapassá-la, aquilo que ele propõe é uma descrição do processo de formação do juízo de gosto não «de baixo para cima», isto é, «a partir de um começo que seria a apreensão, para se elevar, degrau a degrau – intuição pura, apreensão, reflexão, jogo das faculdades, estado de espírito, prazer estético, juízo de gosto – até à descoberta de uma finalidade mais vasta que aponta para o supra-sensível», mas, diferentemente, «de cima para baixo» (Gil, 2006: 313-314). Neste contexto, não só «[a] apreensão estética não exclui a apreensão cognitiva», como «acompanha-a necessariamente, se bem de dela difira irredutivelmente» (Gil, 2006: 308). De acordo com Gil, ela «decorre da desmontagem da percepção e da apreensão cognitiva» (Gil, 2006: 312). Ora, completando esta proposta, Gil defende que «a regularidade de uma imaginação livre» se deve à permanência de «um laço com a unidade do conceito» (Gil, 2006: 312).

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1998: 188).56 A conformidade a fins da natureza é formal, então, porque e na medida em que a disposição harmónica das faculdades da imaginação 56 Na Primeira Introdução, Kant cita uma «proporção» na qual «imaginação e entendimento (…) têm de estar no Juízo em geral em relação um ao outro» (Kant, 1995: 56) e refere «a concordância daquelas duas faculdades entre si» como sendo «uma proporção de ambas as faculdades-de-conhecimento, que constitui a condição subjetiva, meramente sensível, do uso objetivo do Juízo» (Kant, 1995: 60). Acabámos de mencioná-la. Mais explicitamente, numas vezes, menos noutras, ele reforça-o ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo. Fá-lo desde logo na Introdução, onde cita a «unidade da faculdade de imaginação com o entendimento» como sendo «a conformidade a leis no uso empírico da faculdade do juízo em geral» (Kant, 1998: 75). Precisamente nessa passagem, Kant assinala ser unicamente com essa conformidade a leis «que a representação do objecto na reflexão concorda» (Kant, 1998: 75). Entretanto, o reforço da tese segundo a qual o acordo entre as faculdades de conhecimento constitui a condição formal do uso objectivo da faculdade do juízo prolonga-se quando Kant menciona, ainda na Introdução, a «relação das faculdades de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo o conhecimento empírico (da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76), no §9, como vimos, a «consonância proporcionada, que exigimos para todo o conhecimento» (Kant, 1998: 108), no §21, a «disposição das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral, e na verdade aquela proporção que se presta a uma representação (pela qual um objecto nos é dado), para fazer dela um conhecimento» como sendo a assinalada «condição subjectiva do conhecer» sem a qual «o conhecimento como efeito não poderia surgir» (Kant, 1998: 130), no §35, como igualmente vimos, a «condição formal subjectiva de um juízo em geral», e diz que «[u]tilizada com respeito a uma representação pela qual um objecto é dado, [a faculdade do juízo] requer a concordância de duas faculdades de representação, a saber da faculdade da imaginação (para a intuição e a composição do múltiplo na mesma) e do entendimento (para o conceito como representação da unidade desta compreensão)» (Kant, 1998: 188), numa nota ao §38, a «relação das faculdades de conhecimento (…) postas em actividade com vista a um conhecimento em geral» como sendo «a condição formal da faculdade do juízo» (Kant, 1998: 268), e, finalmente, no §39, a «apreensão comum de um objecto pela faculdade da imaginação enquanto faculdade da intuição, em relação com o entendimento como faculdade dos conceitos» como «um procedimento da faculdade do juízo, o qual esta tem de exercer (…) com vista à experiência mais comum (…) para perceber um conceito objectivo empírico» (Kant, 1998: 194) e a «proporção destas faculdades de conhecimento (…) exigida para o são e comum entendimento que se pode pressupor em qualquer», acrescentando, aliás, que essa proporção também «é requerida para o gosto» (Kant, 1998: 195). Se o fundamento de determinação do juízo de gosto é o prazer sentido por ocasião do alcance, livre, dessa proporção, então admitir-se-á, com António Marques, que «do ponto de vista da motivação e até da estrutura do juízo o objectivo cognitivo

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e do entendimento entre si é alcançada livremente por ocasião da representação do objecto.57 deixa de ser o mais relevante» e que «[o] conceito de jogo passa a estar na primeira linha, sublinhando certamente a presença do anímico, do inventivo e até do inesperado que caracteriza afinal a experiência estética» (Marques, 1998: 22). Mais do que isso, Kant levar-nos-á «muito mais longe do que esperávamos», como nota Maria Filomena Molder, indo «até ao ponto de considerar que nesse jogo se engendra qualquer forma de conhecimento, pois na proporção entre as faculdades, que configura a sua relação como jogo livre, surpreendemos a matriz de qualquer movimento compreensivo» (Molder, 2007: 373-374). A este propósito, é igualmente de observar a posição de Olivier Chédin (cf. Chédin, 1982). 57 Sem prejuízo do que acabámos de afirmar, importa notar que Kant não esgota a explicação da representação de uma conformidade a fins formal da natureza no aspecto que salientámos. O nosso autor faz assentar a possibilidade de uma representação formal da conformidade a fins na forma do objecto. No que diz respeito à Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, isso é evidente não apenas nas passagens que citámos da secção VII, mas em toda essa secção e, de resto, na secção seguinte – aí, Kant sugere que a conformidade a fins da natureza é formal porque e na medida em que é representada «nas suas formas (in ihren Formen)», isto é, «na forma da coisa (in der Form des Dinges)» (Kant, 1998: 78), «na forma de uma coisa (an der

Form eines Dinges)» (Kant, 1998: 79). O nosso autor já o tinha feito na Primeira Introdução e voltará a fazê-lo ao longo de toda a Crítica da Faculdade do Juízo. A própria “Analítica do sublime” é, de certo modo, elaborada por relação à importância que, na sua explicitação da noção de beleza, Kant atribui à noção de forma (Form). Desde logo no parágrafo inaugural do segundo livro da “Analítica da faculdade de juízo estética” (§23) o nosso autor indica-o: diz ele, primeiro, que «o sublime, contrariamente [ao belo] pode também ser encontrado num objecto sem forma (formlosen), na medida em que seja representada nele uma ilimitação ou por ocasião desta e pensada além disso na sua totalidade» (Kant, 1998: 137); acrescenta, depois, que o objecto «pode quanto à forma (Form) aparecer contrário a fins para a nossa faculdade de juízo, inadequado à nossa faculdade de apresentação e por assim dizer violento para a faculdade da imaginação, mas apesar disso e só por isso é julgado ser tanto mais sublime» (Kant, 1998: 138). É esta diferença, em relação ao belo, que leva a que, tal como é anunciado na Introdução, «o juízo estético [esteja] ligado ao belo, não simplesmente como juízo de gosto, mas também ao sublime» e, portanto, a que «aquela crítica da faculdade de juízo estética [tenha] que se decompor em duas partes principais conformes àqueles», ou seja, na “Analítica do belo” e na “Analítica do sublime” (Kant, 1998: 77). No que concerne à “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, destacamos como paradigmática a seguinte passagem: «Temos boas razões para aceitar, segundo princípios transcendentais, uma conformidade a fins subjectiva da natureza nas suas leis particulares, relativamente à sua compreensão para a faculdade do juízo humana e à possibilidade da conexão das experiências

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Centremo-nos, agora, nas referências de Kant ao sentimento de prazer. Mediante essas referências, poderemos responder à questão de saber por que é que ou em que medida apenas a parte da crítica da faculdade do juízo à qual pertence a faculdade de juízo estética «contém um princípio que a faculdade do juízo coloca como princípio inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza», nomeadamente «o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa capacidade de conhecimento» (Kant, 1998: 79). No §9, Kant informa-nos de que quando se trata de uma relação objectiva entre as faculdades de conhecimento, essa relação é pensada: «uma relação objectiva (ein objektives Verhältnis) somente pode ser pensada (gedacht)» (Kant, 1998: 108). Não é outro o caso do juízo lógico, no qual a consciência da relação entre as faculdades da imaginação e do entendimento é adquirida «intelectualmente (intellektuell)», precisamente por aquilo que o nosso autor diz ser a «consciência da nossa actividade intencional com que pomos aquelas em jogo (das Bewusstsein unserer

absichtlichen Tätigkeit, womit wir jene ins Spiel setzen)» (Kant, 1998: 107). Trata-se, aí, de uma consciência «intelectual (como no esquematismo objectivo da faculdade do juízo, do qual a crítica trata)» (Kant, 1998: 107). O caso que nos interessa, porém, é o da relação meramente subjectiva entre as faculdades de conhecimento. Acabámos de assinalar que a disposição harmónica das faculdades da imaginação e do entendimento entre si por ocasião da representação do objecto é alcançada livremente. Como Kant ressalva, ainda no §9, uma «unidade subjectiva da relação (subjektive Einheit des Verhältnisses)» entre as faculdades de

particulares num sistema dessa mesma natureza; é assim que entre os seus muitos produtos podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas que lhe são adequadas, como se afinal estivessem dispostas para a nossa faculdade do juízo. Tais formas, através da sua multiplicidade e unidade, servem para simultaneamente fortalecer e entreter as faculdades do ânimo (que estão em jogo por ocasião do uso desta faculdade) e às quais por isso atribuimos o nome de formas belas (schöne Formen)» (Kant, 1998: 273). Considerando que, como indicámos, Kant faz assentar a possibilidade de uma representação formal da conformidade a fins na forma do objecto, daremos o relevo devido à noção de forma em secção própria.

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conhecimento «somente pode fazer-se cognoscível (kenntlich)

através da sensação (durch Empfindung)» (Kant, 1998: 108). O

sujeito adquire consciência dela «por sensação do efeito que consiste

no jogo facilitado de ambas as faculdades do ânimo (da imaginação e

do entendimento) vivificadas pela concordância recíproca» (Kant,

1998: 108). Quando livre, a relação harmónica das faculdades de

conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto é

«sentida no efeito sobre o ânimo (in der Wirkung auf das Gemüt

empfunden werden)» (Kant, 1998: 108).58 Kant anuncia-o desde logo

na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo – afirma ele,

aí, que «a finalidade subjetiva é (…) sentida, em seu efeito (in ihrer

Wirkung empfunden)» (Kant, 1995: 61). Entretanto, no mesmo texto,

o nosso autor acrescenta que «como uma condição meramente

subjetiva de um juízo não dá lugar a nenhum conceito determinado

do fundamento-de-determinação do mesmo, este só pode ser dado no

sentimento de prazer (im Gefühle der Lust)» (Kant, 1995: 61). A

conformidade a fins, formal, é sentida, então, como sentimento de

prazer.59 Trata-se, por conseguinte, de uma «representação estética

da conformidade a fins da natureza (ästhetische Vorstellung der

Zweckmäßigkeit der Natur)» (Kant, 1998: 73).

58 Fica, assim, respondida a «questão menor» do §9 (Kant, 1998: 107), a questão de

saber «de que modo nos tornamos conscientes de uma concordância subjectiva recíproca das faculdades de conhecimento entre si no juízo de gosto» (Kant, 1998:

107). Esse modo é estético. Essa consciência é adquirida «[e]steticamente pelo simples sentido interno e sensação (ästhetisch durch den bloßen innern Sinn und

Empfindung)» (Kant, 1998: 107). O sentimento do movimento simultaneamente livre

e harmónico entre as faculdades de conhecimento por ocasião da representação do objecto é um sentimento sentido através do sentido interno. 59 Note-se que a sensação que está «imediatamente vinculada com o sentimento de

prazer e desprazer» é «aquela sensação (…) que o jogo harmonioso das duas faculdades-de-conhecimento do Juízo, imaginação e entendimento, efetua no sujeito,

na medida em que, na representação dada, a faculdade-de-apreensão de uma e a faculdade-de-exposição do outro são mutuamente favoráveis uma à outra, proporção

esta que, em tal caso, efetua por essa mera forma uma sensação (eine Empfindung)»

(Kant, 1995: 61).

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Pois bem, «a faculdade de ajuizar a conformidade a fins formal (também chamada subjectiva) (die formale Zweckmäßigkeit (sonst auch

subjektive gennant)), mediante o sentimento do prazer ou desprazer (durch

das Gefühl der Lust oder Unlust)» é a «faculdade do juízo estética (ästhetisch)» (Kant, 1998: 79).60 Essa faculdade é o gosto. A «conformidade a fins formal (simplesmente subjectiva)» é ajuizada por nós «mediante o gosto (esteticamente, pelo sentimento do prazer) (durch

Geschmack (ästhetisch, vermittelst des Gefühls der Lust)» (Kant, 1998: 78-79).61 Assim, apenas o gosto (a faculdade de juízo estética) pode conter o princípio «que a faculdade do juízo coloca como princípio inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza», a saber, «o princípio de uma conformidade a fins formal da natureza segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa capacidade de conhecimento» (Kant, 1998: 79).62

Jamais a parte da crítica da faculdade do juízo à qual pertence a faculdade de juízo teleológica poderia conter um tal princípio, isto é, um princípio que a faculdade do juízo colocasse como inteiramente a priori na sua reflexão sobre a natureza. Tal é assim porque a faculdade de juízo teleológica ajuíza «uma conformidade a fins real (objectiva) (einer realen

(objektiven) Zweckmäßigkeit)» e fá-lo «mediante o entendimento e a razão

60 Ela «decide, não através da concordância com conceitos, mas sim através do sentimento (durch das Gefühl)» (Kant, 1998: 80). 61 É por isso que o juízo de gosto (o juízo reflexivo estético) é um juízo estético. Veja-se o que Kant afirma no §15: «[o] juízo chama-se estético (ästhetisch) também precisamente porque o seu fundamento de determinação não é nenhum conceito, mas sim o sentimento (do sentido interno) (das Gefühl (des innern Sinnes)) daquela unanimidade no jogo das faculdades do ânimo, na medida em que ela pode ser somente sentida» (Kant, 1998: 119). Recordemos as palavras da Primeira Introdução: «um juízo estético é aquele cujo fundamento-de-determinação está em uma sensação que esteja imediatamente vinculada com o sentimento de prazer e desprazer (in einer

Empfindung, die mit dem Gefühle der Lust und Unlust unmittelbar verbunden ist)» (Kant, 1995: 61). 62 Neste contexto é de citar Tunhas. Segundo o comentador, a faculdade «que determina a autonomia da faculdade de julgar» é «a faculdade de julgar estética» (Tunhas, 2011: 70), a beleza é «o grau zero da filosofia» e a propedêutica à filosofia é «uma crítica da beleza, ou, mais exactamente, das condições de possibilidade dos juízos acerca da beleza» (Tunhas, 2011: 71).

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(durch Verstand und Vernunft)» (Kant, 1998: 78-79). É «logicamente, segundo conceitos (logisch, nach Begriffen)» que a faculdade de juízo teleológica ajuíza «a conformidade a fins real (objectiva) da natureza» (Kant, 1998: 79). De acordo com Kant,

pelo facto de não poder ser dado a priori absolutamente nenhum princípio, nem mesmo a possibilidade deste, a partir do conceito de uma natureza, como objecto da experiência, tanto no universal como no particular, decorre daí que terá que haver fins objectivos da natureza, isto é coisas que somente são possíveis como fins da natureza (als

Naturzwecke) (Kant, 1998: 79).

No entanto, tal como o nosso autor ressalva logo a seguir,

só a faculdade do juízo, sem conter em si para isso a priori um princípio (ohne ein Prinzip dazu a priori in sich zu enthalten), contém em certos casos (em certos produtos) a regra para fazer uso do conceito dos fins, em favor da razão, depois que aquele princípio transcendental já preparou o entendimento para este aplicar à natureza o conceito de um fim (pelo menos segundo a forma) (Kant, 1998: 79).63

Assim, a faculdade de juízo teleológica

não é uma faculdade particular, mas sim somente a faculdade de juízo reflexiva em geral na medida em que ela procede, como sempre acontece no conhecimento teórico, segundo conceitos, mas atendendo a certos objectos da natureza segundo princípios particulares, isto é os de uma faculdade de juízo simplesmente reflexiva e não determinante dos objectos (Kant, 1998: 80).64

63 Vejamos, de resto, o que Kant afirma mais à frente: «a faculdade do juízo usada teleologicamente indica de forma precisa as condições sob as quais algo (por exemplo um corpo organizado) deve ser ajuizado segundo a ideia de um fim da natureza; no entanto ela não pode aduzir qualquer princípio a partir do conceito da natureza como objecto da experiência que autorize atribuir àquela a priori uma referência a fins e que leve a admitir, ainda que de forma indeterminada, esses fins a partir da experiência efectiva desses produtos» (Kant, 1998: 80). O nosso autor justifica-o indicando que «muitas experiências particulares têm que ser examinadas e consideradas sob a unidade do seu princípio, para poder conhecer de forma somente empírica, num certo objecto, uma conformidade a fins objectiva» (Kant, 1998: 80). 64 É precisamente «[p]or isso, e segundo a sua aplicação» que ela «pertence à parte teórica da filosofia», embora «por causa dos princípios particulares que não são

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Regressemos ao juízo estético reflexivo (o juízo de gosto). É por ser fundado sobre o princípio próprio da faculdade do juízo que, acerca do juízo de gosto, pode afirmar-se que ele pertence «à faculdade-de-conhecimento superior, e aliás ao Juízo (zum obern Erkenntnisvermögen

und zwar zur Urteilskraft), sob cujas condições subjetivas e no entanto também universais é subsumida a representação do objeto» e que, mesmo sendo um juízo estético, «é sempre um juízo-de-reflexão (immer ein

Reflexionsurteil ist)» (Kant, 1995: 61). Como, no juízo de gosto, «a reflexão sobre uma representação dada precede o sentimento de prazer (die Reflexion über eine gegebene Vorstellung vor dem Gefühle der Lust

vorhergeht)», a conformidade a fins subjectiva «é pensada, antes de ser sentida (gedacht, ehe sie empfunden wird)» (Kant, 1995: 61). O juízo de gosto assenta num sentimento de prazer, mas esse sentimento é despertado porque, por ocasião da representação do objecto, as faculdades da imaginação e do entendimento se dispõem livre mas harmonicamente entre si. Assim, embora não haja uma subsunção das intuições da faculdade da imaginação em conceitos do entendimento, o objecto é representado como conforme a fins para um conhecimento em geral.65 Por essa razão, através de um juízo simultaneamente estético e reflexivo, nós consideramo-lo belo. O juízo de gosto baseia-se no «conceito de uma conformidade a fins subjectiva da natureza, nas suas formas segundo leis empíricas» (Kant, 1998: 78). Embora esse conceito

determinantes – tal como tem que acontecer numa doutrina», ela tenha de «constituir uma parte particular da crítica» (Kant, 1998: 80). 65 Já vimos que a relação de harmonia livre entre as faculdades da imaginação e do entendimento advém à consciência daquele que ajuíza por intermédio de um sentimento de prazer. No entanto, o comprazimento só é sentido porque a relação livremente alcançada – a saber, a harmonia das faculdades de conhecimento entre si, que, enquanto não resultante da submissão das intuições em conceitos, no caso do juízo de gosto, é estabelecida de um modo extraordinário, sendo, portanto, inesperada, surpreendente – constitui a condição subjectiva do conhecimento. Aquele que ajuíza sente um comprazimento porque o objecto que representa independentemente de conceitos serve de ocasião para o cumprimento do objectivo geral do conhecimento: a unificação do diverso.

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não seja de modo nenhum um conceito do objecto (kein Begriff vom

Objekt ist), mas sim somente um principio da faculdade do juízo (ein

Prinzip der Urteilskraft) para arranjarmos conceitos nesta multiplicidade desmedida (para nos podermos orientar nela), nós consideramos todavia a natureza como que numa relação às nossas faculdades de conhecimento segundo a analogia de um fim (gleichsam eine Rücksicht auf unser

Erkenntnisvermögen nach der Analogie eines Zwecks); e assim nos é possível considerar a beleza da natureza (die Naturschönheit) como apresentação do conceito da conformidade a fins formal (simplesmente subjectiva) (als Darstellung des Begriffs der formalen (bloß subjektiven)

Zweckmäßigkeit) (Kant, 1998: 78).

Uma tal conformidade a fins, formal, é, como já vimos, ajuizada «mediante o gosto (esteticamente, pelo sentimento do prazer)» (Kant, 1998: 79). Pode afirmar-se, por conseguinte, que o gosto (a faculdade de juízo estética) é «uma faculdade particular de ajuizar as coisas segundo uma regra (nach einer Regel), mas não segundo conceitos (nicht nach

Begriffen)» (Kant, 1998: 80).

1.6. Ideia do supra-sensível como conceito de um fundamento do

princípio da conformidade a fins formal da natureza

Como já tivemos oportunidade de notar, a não referência a conceitos no proferimento de um juízo de gosto é meramente a não referência a conceitos determinados. O juízo de gosto não pode ter um conceito como fundamento de determinação. Kant salienta-o ao longo da Crítica da

Faculdade do Juízo. No entanto, o nosso autor não deixa de acrescentar que na beleza há uma referência a conceitos. Veja-se, por exemplo, desde logo o §4, no qual ele assinala que «[o] comprazimento no belo tem que depender da reflexão sobre um objecto, que conduz a um conceito qualquer (sem determinar qual) (zu irgend einem Begriffe (unbestimmt

welchem) führt)» (Kant, 1998: 94), ou o primeiro parágrafo da “Analítica do sublime” (§23), no qual nota que a sensação de prazer no belo, tal como, de resto, a sensação de prazer no sublime, «não se prende a uma sensação como a sensação do agradável, nem a um conceito determinado como o comprazimento no bem, e contudo é referida a conceitos, se bem

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que sem determinar quais (auf Begriffe, obzwar unbestimmt welche,

bezogen wird)» (Kant, 1998: 137). Esta chamada de atenção ganha

especial relevância no §57 – ao tentar resolver a antinomia do gosto, Kant

admite que «[a] algum conceito o juízo de gosto tem que se referir (auf

irgend einen Begriff muss sich das Geschmacksurteil beziehen), pois de

contrário ele não poderia absolutamente reivindicar validade necessária

para qualquer um» (Kant, 1998: 246). Tal como o nosso autor tem o

cuidado de acrescentar logo a seguir, porém, isso não significa que o juízo

de gosto seja «demonstrável a partir de um conceito» (Kant, 1998: 246).

O juízo de gosto não pode ter qualquer conceito determinado no seu

fundamento – e só através de um conceito determinado é que seria possível

demonstrar algo.

Pois bem, no entender de Kant, o único conceito sobre o qual o

juízo de gosto poderá fundar-se é o «conceito racional transcendental

do supra-sensível (der transzendentale Vernunftbegriff von dem

Übersinnlichen), que jaz no fundamento de toda [a intuição sensível]»

(Kant, 1998: 246), «o simples conceito racional puro do supra-

sensível (der bloße reine Vernunftbegriff von dem Übersinnlichen)

que se situa no fundamento do objecto (e também do sujeito que julga)

enquanto objecto dos sentidos, por conseguinte enquanto fenómeno»

(Kant, 1998: 247), «a ideia indeterminável do supra-sensível (die

unbestimmte Idee des Übersinnlichen) em nós» (Kant, 1998: 248).66

66 Na primeira observação que se segue ao §57, Kant refere-se a este conceito como

sendo «o conceito racional de substracto supra-sensível de todos os fenómenos em geral» (Kant, 1998: 251); na segunda, o conceito de «um substracto inteligível (algo

supra-sensível, do qual o conceito é somente ideia e que não admite nenhum autêntico

conhecimento)» (Kant, 1998: 252), isto é, o conceito de um «substracto inteligível da natureza fora de nós e em nós (…) enquanto coisa em si mesma» (Kant, 1998: 253);

no §78, já, portanto, na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, Kant refere-o

como o conceito do «supra-sensível», conceito «que temos que pôr na base da natureza como fenómeno» (Kant, 1998: 338); ainda na segunda parte da Crítica da

Faculdade do Juízo, no §81, finalmente, o nosso autor refere-o como tratando-se do conceito do «substracto supra-sensível da natureza, àcerca do qual nada podemos

positivamente determinar, a não ser que é o ser em si do qual apenas conhecemos o

fenómeno» (Kant, 1998: 350).

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É a esse conceito que o comprazimento no belo conduz, é a esse

conceito que o juízo de gosto se refere. À questão de saber se esta

tese entra em contradição com aquela segundo a qual o princípio do

gosto é o princípio da conformidade a fins formal da natureza,

responder-se à negativamente – este princípio é «uma Idéia da

natureza, cuja legalidade, sem uma relação da mesma a um substrato

supra-sensível, não pode ser entendida (eine Idee der Natur, deren

Gesetzmäßigkeit ohne ein Verhältnis derselben zu einem

übersinnlichen Substrat nicht verstanden werden kann )» (Kant, 1995:

85). Em última análise, então, o juízo de gosto funda-se sobre aquilo

para o qual o princípio da conformidade a fins formal da natureza

remete, a saber, a ideia do supra-sensível.67

2. JUÍZO ESTÉTICO UNIVERSALMENTE VÁLIDO A PRIORI

2.1. Enquadramento

Na secção anterior, caracterizámos o juízo de gosto como juízo estético

reflexivo. Ao fazê-lo, elencámos um requisito que abrange todas as

exigências a satisfazer pelo juízo através do qual se declara belo um

objecto, a saber, basear-se apenas na observação de uma conformidade a

fins formal da representação do objecto para as nossas faculdades de

conhecimento, observação que depende de uma referência ao conceito

racional transcendental do supra-sensível. De facto, ao anunciar-se que o

juízo de gosto assenta unicamente no princípio dado pela faculdade do

juízo a si mesma (o princípio da conformidade a fins formal da natureza

para as nossas faculdades de conhecimento) anuncia-se ao mesmo tempo

67 Note-se, finalizando esta secção, que, no §57, Kant estabelece uma identificação precisamente entre a ideia do supra-sensível e o conceito «de um fundamento em

geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a faculdade do juízo (einem Begriffe eines Grundes überhaupt von der subjectiven Zweckmäßigkeit der Natur

für die Urteilskraft)» (Kant, 1998: 247). É sobre esse conceito que o juízo de gosto

se funda.

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que um tal juízo não se funda naquilo que atrai, nem se funda em fins, em conceitos determinados.

A independência de um juízo relativamente a atractivos ou conceitos não esgota, no entanto, a sua caracterização enquanto juízo de gosto. Para ser um juízo de gosto, um juízo tem de ser, no entender de Kant, universalmente válido a priori. Assim, para caracterizarmos plenamente o juízo de gosto, para caracterizarmos por completo o juízo através do qual se declara belo um objecto – algo indispensável à elaboração de uma resposta suficientemente justificada à questão de saber se é legítimo falar-se de bela arte, questão que desde o início nos propusemos tratar – é necessário mostrar em que termos o nosso autor considera o juízo de gosto um juízo estético dotado de validade universal a priori (Allgemeingültigkeit a priori).68 Tendo em vista a satisfação dessa necessidade, a nossa próxima tarefa é a de explicitar a tentativa de legitimação do juízo de gosto como juízo estético universalmente válido a priori elaborada na Crítica da Faculdade do Juízo.

Antes de procedermos a uma tal explicitação, devemos enquadrar a referida tentativa, notando que a sua pertinência se prende com o carácter insuficiente das propostas estéticas quer do empirismo, quer do racionalismo. De facto, as propostas apresentadas pelos empiristas são entendidas por Kant como insuficientes para sustentar devidamente a validade universal a priori do juízo de gosto: se aquilo que serve de fundamento de determinação ao juízo de gosto for o prazer dos sentidos, o comprazimento do gozo, então um tal juízo jamais pode ser universalmente válido a priori. Mesmo que haja unanimidade entre todos aqueles que ajuízam, essa unanimidade é uma unanimidade meramente

68 Embora, no §9, Kant fale várias vezes de «comunicabilidade universal (allgemeine Mitteilbarkeit)» (Kant, 1998: 105, 106 e 108), não há, ao longo do seu texto, qualquer indício de que comunicabilidade não seja sinónimo de validade. Precisamente no §9, aliás, Kant contrasta a comunicabilidade universal com a validade privada (cf. Kant, 1998: 105), o que nos faz pensar que a relação entre comunicabilidade e validade é, efectivamente, uma relação de sinonímia.

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contingente.69 Quanto às propostas apresentadas pelos racionalistas, não obstante poderem garantir que o juízo de gosto é um juízo universalmente válido a priori, de maneira nenhuma garantem a especificidade desse juízo: no contexto do racionalismo, o juízo de gosto é, como tivemos oportunidade de assinalar, um juízo de conhecimento, assim como a beleza é uma perfeição.

Em segundo lugar, é relevante salvaguardar que a tentativa de legitimação do juízo de gosto como juízo estético universalmente válido a priori elaborada na Crítica da Faculdade do Juízo pode ser uma tentativa múltipla. Entre os comentadores da terceira Crítica, vários são aqueles que consideram serem diversas as tentativas encetadas por Kant para fornecer uma dedução transcendental do juízo de gosto.70 Além disso, também no que diz respeito à localização da argumentação de Kant existe uma variedade de pareceres. Donald D. Crawford, por exemplo, fala de um argumento principal, estendido e contínuo cujo desenvolvimento lógico é passível de ser dividido em cinco estádios (cf. Crawford, 1974: 66-69). No entender do comentador, apesar de mostrarem «como um prazer pode ser baseado naquilo que é universalmente comunicável e, portanto, ser ele mesmo universalmente comunicável», os primeiros quatro estádios «não mostram que a mera comunicabilidade universal de um sentimento de

69 Ressalve-se, a este propósito, que Hume não deixa de sugerir um «estado são do órgão» que pode ser suposto providenciar-nos um verdadeiro padrão de medida de um gosto e sentimento» e «uma ideia da beleza perfeita» (Hume, 1997: #12). No entanto, essa sugestão não é derivada do seu empirismo. Por essa razão, Paul Guyer coloca Hume a par de Hutcheson, Burke e Home e indica que qualquer das soluções para o problema do gosto apresentadas por esses autores assenta no apelo «a uma concepção metafísica da humanidade como uma espécie única, com certas propriedades essenciais, normais ou ideais, e incluindo um acordo básico no gosto entre estas propriedades» (Guyer, 1997: 4). Ora, plasmando uma metafísica transcendente, uma concepção desse tipo não poderá ser bem recebida pelo autor da Crítica da Razão

Pura. 70 Outros intérpretes há que questionam a necessidade de a Crítica da Faculdade do

Juízo envolver uma dedução transcendental. Rolf-Peter Horstmann é um deles (cf. Horstmann, 1989).

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prazer pode ser imputada a todos, digamos assim, como um dever» , sendo que, por essa razão, «[c]ompletar a dedução requer uma transição do âmbito estético para o âmbito da moralidade» e, por conseguinte, um quinto estádio (Crawford, 1974: 68).71

71 Crawford é partidário da tese segundo a qual a dedução transcendental do juízo de gosto depende de algo que será transversal à Crítica da Faculdade do Juízo, a saber, a ligação entre o gosto e a moralidade, a conexão entre o estético e o ético, a analogia entre o juízo estético e o juízo moral. Essa tese é partilhada por R. K. Elliott, entre outros, e assenta particularmente na afirmação de Kant, no §59, de acordo com a qual «o belo é o símbolo do moralmente bom; e também somente sob este aspecto (uma referência que é natural a qualquer um e que também se exige de qualquer outro como dever) ele apraz com uma pretensão ao assentimento de todo o outro (das Schöne ist das Symbol des Sittlich-Guten; und auch nur in dieser Rücksicht (einer Beziehung,

die jedermann natürlich ist, und die auch jedermann andern als Pflicht zumutet) gefällt es mit einem Anspruche auf jedes andern Bestimmung)» (Kant, 1998: 262). Elliott entende esta passagem como significando que «somente através da conexão analógica entre o belo e o bom é que o juízo de gosto tem algum direito a exigir universalidade e necessidade» (Elliott, 1968: 255). Crawford, por sua vez, indica que «[a] assunção kantiana é claramente que a sensibilidade moral é o mesmo que, ou pelo menos implica, uma sensibilidade para a base da moralidade» e que «[a]ssim, para completar a dedução, Kant tem de argumentar ou assumir que a sensibilidade moral implica uma sensibilidade para aquilo que simboliza a base da moralidade» (Crawford, 1974: 149). Uma tal conclusão pode ser contestada. O seu problema mais imediato prende-se com a ilegitimidade da exigência de sensibilidade a um mero símbolo da moralidade. Apesar de podermos exigir a qualquer outro o cumprimento da lei moral, não temos o direito de dele exigir sensibilidade para algo que meramente simboliza a moralidade. Como nota Guyer, «a sensibilidade a um símbolo da moralidade não é ela mesma um estado requerido para a performance moral, e assim não é algo que pode ser exigido como parte de uma exigência para a acção moral» (Guyer, 1997: 339). Concordamos, então, com as palavras que Guyer profere mais à frente na sua obra: «Se uma representação simbólica de algo fosse a única representação possível, e o conhecimento dessa matéria fosse justificadamente exigido de todos, então talvez a sensibilidade ao seu símbolo pudesse também ser universalmente exigida. Mas supor que isto é assim no caso da simbolização da moralidade da beleza entraria em conflito com uma das mais fundamentais teses da filosofia moral de Kant, a tese de que todos são imediatamente conscientes da sua obrigação sob a lei moral. Na medida em que Kant mantém que esta consciência é equivalente à consciência da sua liberdade, ele está então comprometido com a visão de que todo o ser humano é imediatamente consciente do facto da sua liberdade; no mínimo, Kant está certamente comprometido com a visão de que qualquer um pode tornar-se consciente da sua liberdade simplesmente por reflexão acerca da sua

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Independentemente da necessidade que a dedução transcendental do juízo de gosto eventualmente possa envolver de que se transite do âmbito estético para o âmbito da moralidade, a posição de acordo com a qual essa dedução constitui um argumento com as propriedades que Crawford lhe atribui não é uma posição fácil de sustentar. Guyer refere «três lugares diferentes e amplamente separados» nos quais Kant tenta justificar a validade universal a priori do juízo de gosto (Guyer, 1997: 233). Do ponto de vista do comentador, há «duas tentativas principais de Kant para fornecer uma tal dedução» e uma «tentativa final mas infeliz» (Guyer, 1997: 11).72 Ora, ainda segundo Guyer, em nenhuma dessas tentativas é feita qualquer referência explícita a qualquer das outras (cf. Guyer, 1997: 233 e 246), sendo que «os §36 e §37 preparam o caminho para o §38 como se a questão da validade intersubjectiva estivesse ainda completamente aberta,

obrigação sob a lei moral. Mas então nenhuma representação meramente indirecta ou simbólica do imperativo categórico ou do facto da liberdade pode efectivamente ser requerida para cumprimento das exigências da moralidade. Argumentar o contrário seria minar uma parte básica da filosofia moral de Kant» (Guyer, 1997: 342). Note-se que essa parte básica da filosofia moral de Kant não acaba com a segunda Crítica – é de observar, a propósito, o que Kant afirma a fechar a Crítica da Faculdade do Juízo: «É possível pensar que seres racionais se vissem rodeados por uma tal natureza que não mostrasse qualquer traço claro de organização, mas somente efeitos de um simples mecanismo da matéria bruta e de tal modo que, por ocasião da mudança de algumas formas e relações finais simplesmente contingentes, não pareça existir algum fundamento para inferir um autor do mundo inteligente. Não haveria nesse caso qualquer oportunidade para uma teologia física e mesmo assim a razão – que não recebe neste caso qualquer orientação através de conceitos da natureza – encontraria, na liberdade e nas ideias morais que nela se fundam, um fundamento prático suficiente para postular o conceito de ser originário a si adequado, isto é, de uma divindade, e a natureza (mesmo da nossa própria existência) como um fim terminal, adequado àquele e às suas leis e, na verdade, em consideração ao mandamento inevitável da razão prática» (Kant, 1998: 413). 72 Ao longo do seu estudo, ele indica que as tentativas principais efectuadas por Kant se localizam no §21, a primeira, e nos §38, intitulado “Dedução dos juízos de gosto”, e §39, a segunda, sendo que, entre elas, no §30, está o título “Dedução dos juízos estéticos puros”; quanto à tentativa final, essa é efectuada sob o título “Resolução da

antinomia do gosto”, na “Dialéctica da faculdade de juízo estética”.

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mesmo depois do §21» (Guyer, 1997: 247) e, além disso, «os §38 e §39 não fazem menção à questão aberta do §22, ou mesmo à distinção entre princípios regulativos e constitutivos» (Guyer, 1997: 281). Obviamente, estes factores tornam particularmente difícil a defesa da tese de acordo com a qual na Crítica da Faculdade do Juízo há um argumento único para justificar que o juízo de gosto é um juízo estético universalmente válido a priori.

Independentemente da diversidade e da localização da argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo de gosto, facto é que ele recorre a vários elementos para tentar sustentar uma tal validade. Tendo como objectivo mostrar em que termos o nosso autor considera o juízo de gosto um juízo estético universalmente válido a priori, reconstruiremos a sua argumentação através de um percurso pelos diferentes elementos por ele mencionados, e assim a explicitaremos. Começaremos precisamente pelo elemento com o qual terminámos a secção anterior: o conceito racional transcendental do supra-sensível.

2.2. Supra-sensível como fundamento da validade universal a priori

do juízo de gosto

No §59, depois de assinalar que aquilo que «o gosto tem em mira» é «o inteligível (das Intelligibele)» (Kant, 1998: 262) Kant acrescenta que a faculdade do gosto se refere ao «supra-sensível (das

Übersinnliche)» (Kant, 1998: 263). Acerca do supra-sensível, o nosso autor assinala que ele «não é natureza e tão pouco liberdade», que «contudo está conectado com o fundamento desta», e que, nele, «a faculdade teórica está ligada, em vista da unidade, com a faculdade prática de um modo comum e desconhecido» (Kant, 1998: 263). Com estas afirmações, Kant retoma a posição adoptada no §57, segundo a qual é no supra-sensível que se procura «o ponto de convergência de todas as nossas faculdades a priori (der Vereinigungspunkt aller

unserer Vermögen a priori)» (Kant, 1998: 249). Pois bem, na medida em que o conceito racional transcendental do supra-sensível «não se

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pode absolutamente determinar por intuição», sendo «em si indeterminável (an sich unbestimmbar)», portanto tendo em conta que ele é «inapropriado para o conhecimento (zum Erkenntnis

untauglich)», que através dele «não se pode conhecer nada», que «a partir [dele] nada pode ser conhecido e provado acerca do objecto», por conseguinte visto que «não permite apresentar nenhuma prova para o juízo de gosto (kein Beweis für das Geschmacksurteil führen lässt)» (Kant, 1998: 247)73, é sobre esse conceito que, em última análise, Kant tenta fundamentar a «referência ampliada (erweiterte

Beziehung)» do juízo de gosto «à representação do objecto (ao mesmo tempo também do sujeito), sobre a qual fundamos uma extensão desta espécie de juízos como necessária para qualquer um (der Vorstellung

des Objekts (zugleich auch des Subjekts), worauf wir eine

Ausdehnung dieser Art Urteile als notwendig für jedermann

gründen)» (Kant, 1998: 247). Colocando-o como princípio subjectivo do gosto, Kant atribui ao juízo de gosto «validade para qualquer um (em cada um na verdade como juízo singular que acompanha imediatamente a intuição) (Gültigkeit für jedermann (bei jedem zwar

als einzelnes, die Anschauung unmittelbar begleitendes Urteil)», precisamente «porque o seu princípio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substracto supra-sensível da humanidade (Begriffe von demjenigen, was als das

übersinnliche Substrat der Menschheit angesehen werden kann )» (Kant, 1998: 247), isto é, no «conceito, conquanto indeterminado (nomeadamente do substracto supra-sensível dos fenómenos) (obzwar unbestimmten Begriffe (nämlich vom übersinnlichen

Substrat der Erscheinungen))» (Kant, 1998: 248).

73 Na observação que se segue ao §57, Kant informa que um tal conceito «é já, quanto à espécie, um conceito indemonstrável e uma ideia da razão» (Kant, 1998: 251), pois «não pode em si ser dado na experiência absolutamente nada que lhe corresponda quanto à qualidade» (Kant, 1998: 251). Entretanto, na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, no §78, o nosso autor indica que desse conceito «não podemos realizar o menor conceito definido positivamente numa intenção teórica» (Kant, 1998: 338).

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A propósito da tentativa de Kant de fazer assentar a validade universal a priori do juízo de gosto na ideia do supra-sensível, Guyer acusa o nosso autor de, tal como os seus predecessores, não evitar recorrer a uma unanimidade metafísica no que concerne ao gosto (cf. Guyer, 1997: 10), de transgredir os limites que ele próprio, Kant, estabeleceu para a metafísica (cf. Guyer, 1997: 247), de ir além das fronteiras da sua própria epistemologia (cf. Guyer, 1997: 311).74 Não discutiremos a legitimidade do recurso de Kant a essa ideia. Limitamo-nos, por agora, a assinalá-la. Mais à frente, explicitaremos a sua situação na argumentação de Kant. Em resposta a Elliott (cf. Elliott, 1968), Guyer refere que a “Dialéctica da faculdade de juízo estética” não é, claramente, «a primeira tentativa de Kant para “enfrentar o problema céptico”, mas pode ter sido pretendida como uma resposta última» (Guyer, 1997: 299). Devemos concentrar-nos, por ora, nas outras tentativas encetadas por Kant para justificar a validade universal a priori do juízo de gosto – melhor: devemos concentrar-nos nos outros elementos a que a argumentação de Kant recorre no sentido de assegurar que o juízo de gosto é um juízo estético universalmente válido a priori.

2.3. O que significa um juízo de gosto ser universalmente válido a priori?

Ainda antes de enunciarmos esses elementos, porém, será conveniente compreender o que é a validade universal a priori que, segundo Kant, caracteriza o juízo de gosto. Desde logo deve ser notado que, no §31, imediatamente antes da explicitação das duas peculiaridades do juízo de gosto, Kant assinala que essa subespécie de juízo estético é universalmente válido a priori. Não restem dúvidas quanto à posição de Kant: de acordo

74 Assim, segundo o comentador, a tentativa de Kant é uma «tentativa final mas infeliz» (Guyer, 1997: 11) que consiste numa «adenda completamente ilegítima à dedução» (Guyer, 1997: 247) e que, como tal, poderá constituir uma das principais «infelicidades expositivas da Crítica da Faculdade do Juízo» (Guyer, 1997: 277). Guyer afirma-o admitindo ser o próprio Kant quem, logo no §58, «coloca algumas restrições ao voo do §57 na metafísica» (Guyer, 1997: 309).

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com as palavras do nosso autor, o juízo de gosto é dotado de «validade universal a priori (Allgemeingültigkeit a priori)» (Kant, 1998: 182). Nos juízos de gosto – sendo, tais juízos, juízos estéticos – aquele que ajuíza refere representações empíricas singulares dadas meramente ao seu sentimento de prazer ou desprazer, e portanto não aplica a essas representações qualquer conceito determinado do objecto. Nessa medida, estamos obrigados a afirmar que os juízos de gosto são juízos singulares. 75 Apesar disso, Kant atribui aos juízos de gosto uma validade universal a priori, como acabámos de verificar. Segundo o nosso autor, de facto, aquele que profere um juízo de gosto reivindica de todos os outros a aprovação, reclama deles, sejam eles quem forem, sem excepção, o assentimento ao seu juízo, singular, presume em qualquer um deles a adesão a esse juízo, imputa-lhes, atribui-lhes, o mesmo comprazimento, como se este fosse um predicado do conhecimento do objecto, exige-lhes o seu acordo. 76

O juízo de gosto não é, então, de acordo com Kant, um juízo cuja validade se limita àquele que ajuíza – tal aproximá-lo-ia perigosamente

75 Kant afirma-o e explica-o no §8: «No que concerne à quantidade lógica, todos os juízos de gosto são, juízos singulares (einzelne Urteile). Pois, porque tenho de ater o objecto imediatamente ao meu sentimento de prazer, e contudo não através de conceitos, assim aqueles não podem ter a quantidade de um juízo objectiva e comummente válido» (Kant, 1998: 103). Entretanto essa tese é repetida nos §33 e §37, onde o nosso autor nota, respectivamente, que «o juízo de gosto é sempre proferido como um juízo singular (als ein einzelnes Urteil) sobre o objecto» (Kant, 1998: 186) e que «todos os juízos de gosto são juízos singulares (einzelne Urteile), pois eles ligam o seu predicado do comprazimento, não a um conceito, mas a uma representação empírica singular dada» (Kant, 1998: 191). 76 Esta tese é sublinhada, mais explicitamente, nuns casos, ou menos explicitamente, noutros, ao longo de toda a Crítica da Faculdade do Juízo, por exemplo quando está escrito, na Introdução, que o «sentimento de prazer (…) mediante o juízo de gosto deve ser exigido a cada um (jedermann zugemutet werden soll)» (Kant, 1998: 76), no §6, que «[o] belo é o que é representado sem conceitos como objecto de um comprazimento universal (eines allgemeinen Wohlgefallens)» e que «tem que se atribuir ao juízo de gosto (…) uma reivindicação de validade para qualquer um (ein Anspruch auf Gültigkeit für jedermann)» (Kant, 1998: 99), no já citado §7, que «se [alguém] toma algo por belo, então atribui a outros (mutet andern) precisamente o mesmo comprazimento» (Kant, 1998: 100) e «exige (fordert)» dos outros «o acordo unânime (Einstimmung)» (Kant, 1998: 101), no também citado §8, «que pelo juízo

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do juízo acerca do agradável. Se os queremos distinguir um do outro, de resto, não podemos limitar-nos a afirmar que a validade do juízo de gosto

de gosto (sobre o belo) imputa-se a qualquer um (dass man jedermann ansinne) o comprazimento no objecto», que «no juízo de gosto sobre a beleza» cada um «presume ao outro adesão (mutet dem andern Einstimmung zu) ao seu juízo de gosto», que o «gosto da reflexão (…) profere pretensos juízos comummente válidos (públicos) (vorgebliche gemeingültige (publike))» (Kant, 1998: 102) e que «se então chamamos ao objecto, belo (…) reivindicamos a adesão de qualquer um (man macht Anspruch auf den Beitritt von jedermann)» (Kant, 1998: 104), na explicação do belo inferida do “Segundo momento do juízo de gosto, a saber segundo a sua quantidade”, que «[b]elo é o que apraz universalmente (allgemein gefällt) sem conceito» (Kant, 1998: 108), na “Analítica do sublime”, que, tal como os juízos acerca do sublime, os juízos acerca do belo «se anunciam como universalmente válidos com respeito a cada sujeito (sich für allgemeingültig in Ansehung jedes Subjekts ankündigende)» (Kant, 1998: 137), que, tal como o comprazimento no sublime, o comprazimento no belo «tem que ser, segundo a quantidade, de modo universalmente válido (allgemeingültig)» (Kant, 1998: 140) e que «os juízos: o homem é belo, e: ele é grande, não se restringem meramente ao sujeito que julga, mas reivindicam (…) o assentimento de qualquer um (verlangen jedermanns Beistimmung)» (Kant, 1998: 142), no citado §31, que «o juízo de gosto postula de qualquer um (jedermann ansinnt)» a «aprovação (Beifall)» (Kant, 1998: 182), no §33, que o juízo de gosto «estende a sua pretensão a todos os sujeitos (alle Subjekte in Anspruch nimmt)» (Kant, 1998: 186), ou, finalmente, no §58, que o juízo de gosto «exige a priori validade para qualquer um (a priori Gültigkeit für jedermann fordert)» (Kant, 1998: 260). Entretanto, a propósito destas passagens, é de salientar algo respeitante à sua tradução. Na tradução portuguesa por nós utilizada, os verbos “muten” e “verlangen” são traduzidos por “atribuir” e “reivindicar”, respectivamente. O verbo “zumuten”, por sua vez, é traduzido por “presumir”, numa passagem, e “exigir”, noutra. Esta última tradução gera uma coincidência – ao longo da tradução que fazem do texto de Kant, António Marques e Valério Rohden traduzem o verbo “fordern” por “exigir”, como deve ser feito. Nenhuma dessas opções é problemática. De facto, “zumuten” e “fordern” poderiam igualmente ser traduzidos por “reclamar”, por exemplo. O mesmo não acontece com a tradução de “ansinnen” por “postular”. Embora essa tradução seja legítima, importa notar que, no §8, Kant usa especificamente o verbo “postulieren”, bem traduzido por “postular”. Fá-lo em duas passagens: «no juízo de gosto nada é postulado (nichts postuliert wird)» e «[o] próprio juízo não postula o acordo unânime de qualquer um (postuliert nicht jedermanns Einstimmung)» (Kant, 1998: 104). O facto de nestas passagens Kant usar especificamente o verbo “postulieren”, assim como o facto de pelo menos a segunda ser uma negação, tais factos são por nós considerados razões suficientes para que se deva restringir a “postulieren” a tradução por “postular”. É de notar, de resto, que, no mesmo parágrafo,

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é extensível a todos os sujeitos ou que se trata simplesmente da «validade universal de um juízo singular (allgemeine Gültigkeit eines einzelnen Urteils)» (Kant, 1998: 181). Não obstante no juízo acerca do agradável, como afirma Kant, no §7, «cada um [se resignar] com o facto de que o seu juízo, que ele funda sobre um sentimento privado e mediante o qual diz de um objecto que este lhe apraz, limita-se também simplesmente à sua pessoa» (Kant, 1998: 100), pois, como continua o nosso autor, já no parágrafo seguinte, o «gosto dos sentidos (…) profere meramente juízos privados» (Kant, 1998: 102), é importante lembrar que um juízo acerca do agradável pode ser comum a todos os homens, isto é, que todos os homens podem estar de acordo em relação a algo ser agradável. Aquilo que há a salientar, assim, é que, embora «efectiva e frequentemente se encontre uma unanimidade muito ampla também nestes juízos [acerca do agradável]» (Kant, 1998: 102), essa unanimidade é fruto não de regras universais, mas, nuns casos, de regras gerais e empíricas ou, noutras situações, do acaso, não sendo, então, um requisito essencial do juízo através do qual se declara algo como agradável.77 Essa é, no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, uma diferença específica entre o juízo

imediatamente a seguir às duas passagens por nós citadas, Marques e Rohden voltam a traduzir “ansinnen” por “imputar” (cf. Kant, 1998: 105). Finalmente, devemos aproveitar esta nota para referir o principal problema da tese de Crawford, segundo a qual completar a dedução transcendental do juízo de gosto supõe a asserção de que a sensibilidade para o que simboliza a base da moralidade é necessária à sensibilidade moral. Mesmo que se justificasse que, enquanto indispensável à sensibilidade moral, a sensibilidade para o que simboliza a base da moralidade é exigida de todos, tal apenas reforçaria o valor da experiência da beleza – não serviria de suporte à afirmação do juízo de gosto como juízo estético universalmente válido a priori. Daí a crítica de Jeffrey Maitland, para quem uma tal tese não distingue «o problema de justificar a possibilidade de juízos estéticos e o problema de justificar a importância da experiência estética» (Maitland, 1976: 347). Os argumentos alicerçados no estatuto simbólico do belo não justificam, assim, a imputação de acordo no gosto. 77 Remetendo para a parte final da “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, diremos que uma tal unanimidade plasma meramente uma «concordância acidental» (Kant, 1998: 178); remetendo para a segunda observação que se segue ao §57, diremos que ela reside nas situações nas quais «os sujeitos casualmente estejam uniformemente organizados» (Kant, 1998: 254).

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acerca do agradável e o juízo através do qual se declara algo como belo. A reivindicação de universalidade é um requisito essencial somente do juízo acerca da beleza.78

2.4. Necessidade e sensus communis

O comprazimento inerente ao juízo através do qual declaramos belo um objecto é, então, segundo Kant, um comprazimento necessário.79 No

78 Vejam-se, nesse sentido, o §8, onde Kant afirma que «esta reivindicação de universalidade pertence tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo belo, que sem aí pensar aquela universalidade, ninguém teria ideia de usar essa expressão (dieser Anspruch auf Allgemeingültigkeit so wesentlich zu einem Urteil gehöre, wodurch wir etwas für schön erklären, daß, ohne dieselbe dabei zu denken, es niemand in die Gedanken kommen würde, diesen Ausdruck zu gebrauchen), mas tudo o que apraz sem conceito seria computado como agradável» (Kant, 1998: 102), o §32, onde ele assinala que «[o] juízo de gosto determina o seu objecto com respeito ao comprazimento (como beleza) com uma pretensão do assentimento de qualquer um, como se fosse objectivo (bestimmt seinen Gegenstand in Ansehung des Wohlgefallens (als Schönheit) mit einem Anspruche auf jedermanns Bestimmung, als ob es objektiv wäre)» e que «[d]izer “esta flor é bela” significa apenas o mesmo que dizer dela a sua própria pretensão ao comprazimento de qualquer um (ihren eigenen Anspruch auf jedermanns Wohlgefallen ihr nur nachfragen)» (Kant, 1998: 182), e o §33, no qual nota que «unicamente aquilo pelo qual considero uma tulipa singular bela, isto é, pelo que considero o meu comprazimento nela válido universalmente, é um juízo de gosto (dasjenige, wodurch ich eine einzelne gegebene Tulpe schön, d. i. mein Wohlgefallen an derselben allgemeingültig, finde, ist allein das Geschmacksurteil)» (Kant, 1998: 186). 79 São várias as passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que o sublinham. No §9, Kant nota que «se denominamos algo belo, imputamos o prazer que sentimos a todo o outro como necessário (muten wir jedem andern als notwendig zu) no juízo de gosto» (Kant, 1998: 107); no primeiro parágrafo do “Quarto momento do juízo de gosto segundo a modalidade do comprazimento no objecto”, §18, assinala que «[d]o belo (…) se pensa que ele tenha uma referência necessária ao comprazimento (eine notwendige Beziehung auf das Wohlgefallen)» (Kant, 1998: 128); mais à frente, na explicação do belo que infere do momento citado, Kant conclui que «[b]elo é o que é conhecido sem conceito como objecto de um comprazimento necessário (notwendigen Wohlgefallens)» (Kant, 1998: 132); no §24, já, portanto, na “Analítica do sublime”, o nosso autor afirma que o comprazimento no sublime é, segundo a modalidade, como o comprazimento no belo, ou seja, tem de representar a

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entender do nosso autor, o juízo de gosto afirma uma necessidade.80 O facto de que o juízo de gosto seja não um juízo lógico, mas, sim, um juízo estético, fundado, portanto, no sentimento de prazer que se liga à representação do objecto percepcionado, faz com que a necessidade que afirma não possa ser, porém, uma necessidade objectiva.81 É importante

conformidade a fins subjectiva «como necessária (als notwendig)» (Kant, 1998: 140); no §36, Kant diz que o juízo de gosto é «um juízo formal de reflexão, que imputa [o comprazimento que acompanha a representação do objecto] como necessário (als notwendig) a qualquer um» (Kant, 1998: 190); no parágrafo imediatamente a seguir (§37) identifica a declaração de um objecto como belo com a imputação do comprazimento «em qualquer um como necessário (als notwendig)» (Kant, 1998: 191); finalmente, no §57 o nosso autor refere que «no juízo de gosto está sem dúvida contida uma referência ampliada à representação do objecto (ao mesmo tempo também do sujeito), sobre a qual fundamos uma extensão desta espécie de juízos como necessária (als notwendig) para qualquer um» (Kant, 1998: 247). 80 É isso que é reforçado nos §31 e §35 (cf. Kant, 1998: 182 e 188), por exemplo; mas, desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant repetidamente indica que os juízos reflexivos estéticos «têm pretensão à necessidade (machen auf Notwendigkeit Anspruch)» (Kant, 1995: 77). 81 De acordo com o §18, «ela não é uma necessidade objectiva teórica (eine

theoretische objektive Notwendigkeit) na qual pode ser conhecido a priori que qualquer um sentirá este comprazimento no objecto que denomino belo», pois, «[v]isto que um juízo estético não é nenhum juízo objectivo e de conhecimento», então a necessidade que lhe é inerente «não pode ser deduzida de conceitos determinados e não é pois apodíctica (apodiktisch)» (Kant, 1998: 128); não é, além disso, e de acordo com o que está escrito no mesmo parágrafo, «uma necessidade prática (praktisch), na qual através de conceitos de uma vontade racional pura, a qual serve de regra a entes que agem livremente, este comprazimento é a consequência necessária de uma lei objectiva e não significa senão que simplesmente (sem intenção ulterior) se deve agir de um certo modo» (Kant, 1998: 128). Finalmente, tendo em conta não tanto «que a experiência dificilmente conseguiria documentos suficientemente numerosos» para inferir a necessidade que o juízo de gosto afirma, mas, acima de tudo, que «nenhum conceito de necessidade pode fundamentar-se sobre juízos empíricos», então «[m]uito menos pode ela ser inferida da universalidade da experiência (de uma unanimidade universal dos juízos sobre a beleza de um certo objecto)» (Kant, 1998: 128). De resto, na Primeira Introdução, Kant chama «disparate manifesto» à afirmação segundo a qual um juízo «deve valer universalmente porque efetivamente, como a observação prova, ele vale universalmente, e vice-versa, que, de que cada qual julga de certa maneira, se segue que ele deve também julgar assim» (Kant, 1995: 77).

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notar que «[o] gosto reivindica simplesmente autonomia ([d]er

Geschmack macht bloß auf Autonomie Anspruch)» (Kant, 1998: 183). Se a aprovação de qualquer um, imputada pelo juízo de gosto, pudesse ser imposta mediante argumentos a priori ou se cada um se deixasse convencer através de argumentos empíricos, então, em qualquer desses casos, um tal juízo seria não um juízo autónomo, mas um juízo determinado por elementos estranhos a ele, o que denotaria uma heteronomia com a qual a faculdade de juízo estética perderia a sua capacidade legisladora.82

Ainda assim, um juízo que afirma necessidade tem de referir-se a um princípio a priori.83 Não obstante as restrições assinaladas, nada impede que esse princípio seja subjectivo, que a necessidade inerente ao juízo de gosto assente num princípio subjectivo: apesar de o fundamento no qual uma necessidade tem de basear-se ser obrigatoriamente um princípio a

priori, pois um conceito de necessidade não pode assentar em juízos empíricos, um tal princípio não tem de ser um princípio objectivo. Kant propõe-no no §20, nomeadamente ao assinalar que os juízos de gosto «têm que possuir um princípio subjectivo (ein subjektives Prinzip), o qual determine, somente através de sentimento e não de conceitos, e contudo de modo universalmente válido, o que apraz ou desapraz» (Kant, 1998: 129).84 Ora, precisamente no mesmo parágrafo (§20) Kant afirma que

82 Por o gosto reivindicar simplesmente autonomia, e, portanto, por o seu juízo, isto é, o juízo através do qual se declara belo um objecto, um juízo estético, ser um juízo autónomo, por isso é que «[n]ão há» (Kant, 1998: 208), como é dito no §44, «nem pode haver» (Kant, 1998: 264), como é acrescentado no §60, «uma ciência do belo» (Kant, 1998: 208 e 264). Se houvesse ou pudesse haver uma ciência do belo, então «deveria (…) ser decidido nela cientificamente, isto é por argumentos, se algo deve ser tido por belo ou não; portanto se o juízo sobre a beleza pertencesse à ciência, ele não seria nenhum juízo de gosto» (Kant, 1998: 208). 83 Tal como Kant assinala na Primeira Introdução, «a referência a um princípio a priori pode e deve ter lugar, sempre que o juízo tem pretensão a necessidade (die

Beziehung auf ein Prinzip a priori kann und muss immer noch statt finden, wo das Urteil auf Notwendigkeit Anspruch macht)» (Kant, 1995: 77). 84 Ele sublinha essa tese no §36, ao referir que o princípio a priori que tem de situar-se no fundamento de um juízo formal de reflexão que imputa o comprazimento que

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«[u]m tal princípio», subjectivo, «somente poderia ser considerado como um sentido comum (als ein Gemeinsinn)» (Kant, 1998: 129).

É no §40 que o nosso autor apresenta a mais detalhada e explícita descrição que na Crítica da Faculdade do Juízo podemos encontrar da noção de sentido comum (sensus communis). Assinala Kant:

[p]or sensus communis (…) tem que se entender a ideia de um sentido comunitário, isto é de uma faculdade de julgamento, que na sua reflexão considera em pensamento (a priori) o modo de representação de todo o outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim escapar à ilusão que – a partir de condições privadas subjectivas, as quais facilmente poderiam ser tomadas por objectivas – teria influência prejudicial sobre o juízo (die Idee eines gemeinschaftlichen Sinnes, d. i.

eines Beurteilungsvermögens verstehen, welches in seiner Reflexion auf

die Vorstellungsart jedes andern in Gedanken (a priori) Rücksicht

nimmt, und gleichsam an die gesammte Menschenverunft sein Urteil zu

halten und dadurch der Illusion zu entgehen, die aus subjektiven

Privatbedingungen, welche leicht für objektiv gehalten werden könnten,

auf das Urteil nachteiligen Einfluß haben würde) (Kant, 1998: 196).

Ao ajuizar através dessa faculdade, aquele que ajuíza abstrai o seu juízo de tudo aquilo que atrai ou comove e funda esse juízo unicamente no que é comum a todos os homens, a saber, o nível formal da representação do objecto.85 Trata-se, aqui, da adopção de «um ponto de vista universal (ein

acompanha a representação do objecto como necessário a qualquer sujeito «pode ser um princípio simplesmente subjectivo (bloß subjektives) (na suposição de que um princípio objectivo devesse ser impossível em tal espécie de juízos)» (Kant, 1998: 190). Imediatamente antes da “Dedução dos juízos estéticos puros”, o nosso autor afirmava que no caso de um juízo de gosto ter de «valer necessariamente como plural, se a gente o reconhece como algo que, ao mesmo tempo, pode reclamar que qualquer um deva dar-lhe a sua adesão, então no seu fundamento tem que situar-se algum princípio a priori (seja ele objectivo ou subjectivo (subjektives))» (Kant, 1998: 178). 85 É «na medida em que simplesmente abstraímos das limitações que acidentalmente aderem ao nosso próprio julgamento: o que é por sua vez produzido pelo facto que na medida do possível se elimina aquilo que no estado da representação é matéria, isto é sensação», é assim que se presta atenção «pura e simplesmente às peculiaridades formais da sua representação ou do seu estado de representação (die formalen

Eigentümlichkeiten seiner Vorstellung oder seines Vorstellungszustandes)» (Kant, 1998: 196).

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allgemeiner Standpunkt)» (Kant, 1998: 198) que faz com que o sujeito pense «no lugar de todo o outro ([a]n der Stelle jedes andern)» (Kant, 1998: 196) e assim cumpra a máxima «da faculdade do juízo» (Kant, 1998: 198), a saber, a «segunda máxima da maneira de pensar (Denkungsart)» (Kant, 1998: 197), a «maneira de pensar alargada (erweitert)» (Kant, 1998: 196-197).

No caso de, ao fazê-lo, o sujeito adquirir consciência de que as faculdades da imaginação e do entendimento se exercitam reciprocamente num jogo subjectivamente conforme a fins, nesse caso ele reivindicará de todos os outros a aprovação, reclamará deles, forem eles quem forem, sem excepção, o assentimento ao seu juízo, singular, presumirá em qualquer um deles a adesão a esse juízo, imputar-lhes-á, atribuir-lhes-á, o mesmo comprazimento, como se esse fosse um predicado do conhecimento do objecto, exigir-lhes-á o seu acordo. Tal acontecerá porque a disposição consonante entre as faculdades do juízo, mais livremente alcançada, como acontece no juízo de gosto, ou menos, é universalmente comunicável.86

86 No §21, Kant defende que o conhecimento é universalmente comunicável: «[c]onhecimentos e juízos, juntamente com a convicção que os acompanha, têm que poder comunicar-se universalmente (müssen allgemein mitteilen lassen); pois de contrário eles não alcançariam nenhuma concordância com o objecto: eles seriam em suma um jogo simplesmente subjectivo das faculdades de representação, precisamente como o cepticismo o reclama» (Kant, 1998: 129-130). O conhecimento tem como condição indispensável a sua comunicabilidade universal. Sabemos, além disso, que, de acordo com Kant, o que se requer para um conhecimento em geral é uma relação de unanimidade entre as faculdades da imaginação e do entendimento por ocasião da representação de um objecto. Essa tese é, como já notámos, reforçada pelo nosso autor ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo, concretamente na Primeira Introdução, na Introdução, no §9, no §21, que agora citamos, e nos §35, §38, §39 e §58. Pois bem, se o conhecimento é universalmente comunicável e se para se conhecer é condição subjectiva a referida relação das faculdades de conhecimento entre si, então essa relação é algo que, segundo Kant, pode ser pressuposto em qualquer pessoa. Se «conhecimentos devem poder comunicar-se», então, defende o nosso autor, «também o estado do ânimo, isto é a disposição das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral, e na verdade aquela proporção que se presta a uma representação (pela qual um objecto nos é dado), para fazer dela um conhecimento, tem que poder comunicar-se universalmente (muss sich auch der

Gemütszustand, d. i. die Stimmung der Erkenntniskräfte zu einer Erkenntnis

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É sobre a pressuposição de um sentido comum, então, que, de acordo com Kant, o juízo de gosto faz assentar a sua necessidade. Essa necessidade, baseada num princípio subjectivo, e sendo, por conseguinte, uma necessidade subjectiva, não objectiva, é, ainda assim, uma necessidade a priori, precisamente porque assente num sentido comum.87 Esse sentido comum, considerando o que se escreve no §40, é o gosto.88

überhaupt, und zwar diejenige Proportion, welche sich für eine Vorstellung (wodurch

uns ein Gegenstand gegeben wird) gebührt, und daraus Erkenntnis zu machen, allgemein mitteilen lassen); porque sem esta condição subjectiva do conhecer o conhecimento como efeito não poderia surgir» (Kant, 1998: 130). Importa notar, finalmente, que, embora, por questões metodológicas, tenhamos seguido o raciocínio plasmado no §21, a posição exposta na passagem transcrita tinha sido já assumida por Kant, no §9, enquanto aí era sugerido que se o conhecimento determinado, baseado na mencionada relação subjectiva como condição subjectiva, é universalmente comunicável, então «esta relação subjectiva própria do conhecimento em geral tem de valer também para todos e consequentemente ser universalmente comunicável (díeses zum Erkenntnis überhaupt schickliche subjektive Verhältnis eben so wohl für

jedermann gelten und folglich allgemein mitteilbar sein müsse)» (Kant, 1998: 106-107). Essa posição é reforçada quer ainda no mesmo parágrafo, no qual Kant refere que, por ser exigida «para todo o conhecimento», a «consonância proporcionada» é por nós considerada «válida para qualquer um que está destinado a julgar através do entendimento e sentidos coligados (para todo homem) (für jedermann, der durch

Verstand und Sinne in Verbindung zu urteilen bestimmt ist (für jeden Menschen),

gültig)» (Kant, 1998: 108), quer no §38, quando o nosso autor assinala que é «requerido para o conhecimento possível em geral» que a «condição subjectiva» possa ser pressuposta «em todos os homens (in allen Menschen)» (Kant, 1998: 192). 87 Esta nossa afirmação está plasmada nos próprios títulos dos §19, §20 e §22, respectivamente: «A necessidade subjectiva que atribuímos ao juízo de gosto é

condicionada (bedingt)» (Kant, 1998: 128), «A condição (Die Bedingung) da necessidade que um juízo de gosto pretende é a ideia de um sentido comum» (Kant, 1998: 129) e «A necessidade do assentimento universal que é pensada num juízo de

gosto, é uma necessidade subjectiva, que sob a pressuposição de um sentido comum é representada como objectiva (eine subjektive Notwendigkeit, die unter der Voraussetzung eines Gemeinsinns als objektiv vorgestellt wird)» (Kant, 1998: 130). 88 Veja-se o título do parágrafo: «Do gosto como uma espécie de sensus communis (Vom Geschmacke als einer Art von sensus communis)» (Kant, 1998: 195). Numa nota a esse parágrafo, Kant afirma mesmo que se pode «designar o gosto como sensus communis aestheticus (durch sensus communis aestheticus)» (Kant, 1998: 269). Lembremos que o gosto é a «faculdade do juízo estética», como é assinalado na Introdução, e que através dos juízos de gosto se ajuíza «a conformidade a fins formal

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JUÍZO DE GOSTO

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2.5. Necessidade subjectiva, necessidade e validade exemplares, voz

universal

É importante ressalvar, no entanto, que, tal como é afirmado no §8, «[o] próprio juízo de gosto não postula o acordo unânime de qualquer um (postuliert nicht jedermanns Einstimmung) (pois isto só pode fazê-lo um juízo lógico-universal, porque ele pode alegar razões)» (Kant, 1998: 104-105).89 No §22, Kant reforça essa tese – fá-lo ao salvaguardar que o gosto, enquanto sentido comum, «não diz que qualquer um irá concordar com o nosso juízo (sagt nicht, dass jedermann mit unserm Urteile

übereinstimmen werde)» (Kant, 1998: 131). Aquilo que o sentido comum diz, nas palavras do nosso autor, é que qualquer um «deve concordar (zusammenstimmen solle)» com o referido juízo (Kant, 1998: 131).90 Ora, embora seja certo que, ainda no §22, Kant caracteriza o dever (das Sollen)

(também chamada subjectiva), mediante o sentimento do prazer ou desprazer» (Kant, 1998: 79). Por outras palavras: ajuizar através do gosto significa ajuizar através de um sentido comum que tem em conta unicamente o sentimento de prazer na observação da conformidade a fins do movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que se faz do objecto. De resto, considerando que o sentimento de uma tal disposição das faculdades da imaginação e do entendimento entre si é, como seguidamente veremos, universalmente comunicável, Kant acrescentará, também no §40, que «[p]oder-se-ia até definir o gosto pela faculdade de julgamento daquilo que torna o nosso sentimento, numa representação dada, universalmente comunicável, sem mediação de um conceito (durch das Beurteilungsvermögen desjenigen, was unser Gefühl an einer gegebenen Vorstellung ohne Vermittelung eines Begriffs allgemein mitteilbar macht)» e que «o gosto é a faculdade de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos que são ligados a uma representação dada (sem mediação de um conceito) (das Vermögen, die

Mitteilbarkeit der Gefühle, welche mit gegebener Vortsellung (ohne Vermittelung

eines Begriffs) verbunden sind, a priori zu beurteilen)» (Kant, 1998: 198). 89 Esta é uma das passagens do §8 nas quais Kant usa especificamente o verbo “postulieren”, traduzido, correctamente, por “postular”. 90 Desde logo na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que os juízos reflexivos estéticos «[t]êm pretensão a necessidade, e não dizem que cada qual julga assim – com isto seriam um problema de explicação para a psicologia empírica – mas que se deve julgar assim (sagen nicht, dass jedermann so urteile –

dadurch sie eine Aufgabe zur Erklärung für die empirische Psychologie sein würden

– sondern dass man so urteilen solle)» (Kant, 1995: 77).

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como «a necessidade objectiva da confluência do sentimento de qualquer um com o sentimento particular de cada um (die objektive Notwendigkeit

des Zusammenfließens des Gefühls von jedermann mit jedes seinem

besondern)» (Kant, 1998: 131), já assinalámos que a necessidade inerente ao juízo de gosto é uma necessidade subjectiva. Assim sendo, num juízo de gosto, o dever – usando as palavras do §19 – «é portanto expresso só condicionadamente (nur bedingt ausgesprochen)» (Kant, 1998: 128).

Uma outra noção que Kant utiliza para caracterizar a necessidade subjectiva inerente ao juízo de gosto é a noção de necessidade exemplar (exemplarische Notwendigkeit). Essa necessidade, de acordo com o que o nosso autor escreve no §18, é «uma necessidade do assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal que não se pode indicar (eine Notwendigkeit der Bestimmung aller zu einem

Urteil, was als Beispiel einer allgemeinen Regel, die man nicht angeben

kann, angesehen wird)» (Kant, 1998: 128). Ora, precisamente por constituir um exemplo é que o juízo de gosto tem aquilo a que alguns parágrafos depois, no §22, Kant chama «validade exemplar (exemplarische Gültigkeit)» (Kant, 1998: 131). Cada juízo que com ele concorda é, neste contexto, uma instância da referida regra universal que não se pode indicar. Usando as palavras do §8, diremos que o acordo é «um caso da regra (einen Fall der Regel)» (Kant, 1998: 105). É no mesmo §8, de resto, que Kant salvaguarda que a única coisa que o juízo de gosto «postula (postuliert)» é uma «voz universal (allgemeine Stimme) com vista ao comprazimento sem mediação dos conceitos; por conseguinte a possibilidade de um juízo estético, que ao mesmo tempo possa ser considerado como válido para qualquer um» (Kant, 1998: 104).91

2.6. Justificação do sentido comum

Pois bem, embora a citada voz universal seja, como é afirmado ainda no §8, «somente uma ideia (nur eine Idee)» (Kant, 1998: 105), embora o

91 Esta é a primeira das passagens do §8 nas quais Kant usa especificamente o verbo “postulieren”.

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sensus communis, seja, como mais à frente, no §22, se escreve, «uma simples norma ideal (eine bloße idealische Norm)», este pode ser, de acordo com Kant, «admitido como subjectivo-universal (uma ideia necessária para qualquer um) (für subjektiv-allgemein (eine jedermann

notwendige Idee) angenommen)» (Kant, 1998: 131). Pode sê-lo na medida em que se esteja autorizado a admiti-lo como condição indispensável à validade universal do conhecimento. No §21, tal como tivemos oportunidade de assinalar, Kant defende que, se o conhecimento é universalmente comunicável, então a disposição das faculdades da imaginação e do entendimento entre si para um conhecimento em geral também o é. Ora, ainda nesse parágrafo, o nosso autor acrescenta, primeiro, que a referida disposição das faculdades de conhecimento é algo cujo sentimento também é universalmente comunicável e, logo a seguir, que, pressupondo a comunicabilidade universal de um sentimento um sentido comum, então um tal sentido pode ser admitido como condição sine qua non da comunicabilidade universal do conhecimento:

visto que esta própria disposição [das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral] tem que poder comunicar-se universalmente e, por conseguinte também o sentimento da mesma (numa representação dada), mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupõe um sentido comum: assim este poderá ser admitido com razão (die allgemeine Mitteilbarkeit eines Gefühls setzt einen Gemeinsinn

voraus: so wird dieser mit Grunde angenommen werden können), e na verdade sem neste caso se apoiar em observações psicológicas, mas como a condição necessária da comunicabilidade universal do nosso conhecimento, a qual é pressuposta em toda a lógica e em todo o princípio dos conhecimentos que não seja céptico (Kant, 1998: 130).

A tentativa de justificação do sentido comum está, assim, efectuada. Com ela é dado, no entender de Kant, um passo indispensável para a dedução transcendental do juízo estético reflexivo.

De resto, apesar de o comprazimento no belo (o prazer sentido por ocasião do proferimento de um juízo de gosto) ser um prazer cuja necessidade é subjectiva, essa sua necessidade é, no entanto, segundo Kant, uma necessidade a priori que assenta numa condição universal. O

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juízo através do qual se declara belo um objecto, a saber, o juízo de gosto, é, então, de acordo com o nosso autor, um juízo dotado de validade universal a priori, não obstante essa validade universal não ser uma universalidade lógica. Embora esta posição seja explicitada no §31, concretamente quando Kant identifica universalidade subjectiva (subjektive Allgemeinheit) com «o assentimento de qualquer um (jedermanns Beistimmung)» (Kant, 1998: 181) e refere que a validade universal a priori do juízo de gosto não é «uma universalidade lógica segundo conceitos mas a universalidade de um juízo singular (die

Allgemeinheit eines einzelnen Urteils)» (Kant, 1998: 182), a sua possibilidade assenta logo no §6, onde se assinala que a reivindicação que tem de ligar-se ao juízo de gosto é «uma reivindicação de universalidade subjectiva (ein Anspruch auf subjektive Allgemeinheit)» (Kant, 1998: 100), e no §8, em cujo título o nosso autor afirma que «[a] universalidade

do comprazimento é representada num juízo de gosto somente como

subjectiva ([d]ie Allgemeinheit des Wohlgefallens wird in einem Geschmacksurteile nur als subjektiv vorgestellt)» (Kant, 1998: 101).92

2.7. Um princípio

Regressemos, agora, ao princípio do gosto. Importa fazer um esclarecimento concernente à relação entre o sentido comum e o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de 92 Igualmente no §8, Kant acrescenta as expressões validade comum (Gemeingültigkeit) e universalidade estética (ästhetische Allgemeinheit) para designar essa universalidade subjectiva e distingui-la da universalidade lógica: de acordo com Kant, o juízo de gosto é dotado de uma «validade comum, a qual designa a validade não da referência de uma representação à faculdade de conhecimento, mas ao sentimento de prazer e desprazer para cada sujeito» (Kant, 1998: 103); a sua universalidade é uma «universalidade estética», que «não conecta o predicado da beleza ao conceito do objecto, considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto estende o mesmo sobre a esfera inteira dos que julgam» (Kant, 1998: 103); aquilo que ele traz consigo é não uma «quantidade objectiva do juízo, mas somente uma subjectiva (nur eine subjektive)» (Kant, 1998: 103), ou seja, «uma quantidade estética da universalidade, isto é, da validade para qualquer um (eine ästhetische Quantität der

Allgemeinheit, d. i. der Gültigkeit für jedermann)» (Kant, 1998: 104).

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conhecimento. Na passagem para a “Dedução dos juízos estéticos puros”, Kant afirma que «sem que [o gosto] mesmo tenha princípios a priori, ser-lhe-ia impossível dirigir os juízos de outros e, com pelo menos alguma aparência de direito, apresentar pretensões de aprovação ou rejeição a respeito deles (ohne dass derselbe Prinzipien a priori habe, könnte er

unmöglich die Urteile anderer richten und über sie auch nur mit einigem

Scheine des Rechts Billigungs – oder Verwerfungsaussprüche fällen)» e que «[a] pretensão de um juízo estético à validade universal para todo o sujeito carece, como um juízo que tem de apoiar-se sobre algum princípio a priori, de uma dedução (isto é, de uma legitimação da sua presunção) ([d]er Anspruch eines ästhetischen Urteils auf allgemeine Gültigkeit für

jedes Subjekt bedarf als ein Urteil, welches sich auf irgend ein Prinzip a priori fußen muss, einer Deduktion (d. i. Legitimation seiner Anmaßung)» (Kant, 1998: 179). Assumir que a condição na qual a reivindicação de universalidade do juízo de gosto (universalidade estética, subjectiva, validade comum) assenta é a pressuposição de um sentido comum, tal não resulta na afirmação de uma multiplicidade de princípios para o juízo de gosto. O princípio a priori do gosto – e, portanto, do juízo de gosto – é o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Segundo Kant, a legalidade desse princípio só pode ser entendida por relação ao conceito racional transcendental do supra-sensível: a ideia do supra-sensível é o fundamento da referida conformidade.93 Ora, através da introdução do gosto como sentido

93 É como condição do entendimento da legalidade do princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento que se situa a ideia do supra-sensível na argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo de gosto. Indicará Guyer, neste contexto, que Kant parece supor que a conformidade a fins na qual consiste o movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si, estabelecida para nós pela nossa própria natureza, só pode ser explicada «se transcendermos os limites do mundo empírico e as faculdades necessárias para compreendê-lo e, em vez disso, invocarmos alusões à realidade numénica» (Guyer, 1997: 304). À questão de saber se uma tal explicação é necessária e, portanto, à questão de saber se a recorrência à ideia do supra-sensível é indispensável, ou, sequer, útil, a essa questão podemos abster-nos de responder

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comum, Kant procura licenciar a ligação de um sentimento de prazer (o comprazimento da reflexão, não o comprazimento dos sentidos) ao mencionado princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. É assim que ele tenta legitimar a «reivindicação de universalidade» que diz pertencer «tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo belo» (Kant, 1998: 102); é assim que ele tenta sustentar «a validade universal de um juízo singular» (Kant, 1998: 181); é assim que ele tenta justificar, enfim, a «validade universal a

priori» do juízo de gosto (Kant, 1998: 182). Proferir um juízo de gosto é proferir um juízo estético (baseado num sentimento de prazer) que assenta na representação de uma conformidade a fins formal do objecto para as faculdades de conhecimento do sujeito. Essa representação, no entender de Kant, não pode ocorrer sem referência ao conceito racional transcendental do supra-sensível e depende de que aquele que ajuíza ajuíze através de um sentido comum (o gosto) mediante o qual ele considera apenas o sentimento de prazer ligado a um movimento simultaneamente livre e harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto.94

2.8. Juízo erróneo

Um segundo esclarecimento prende-se com o proferimento de juízos erróneos. De acordo com o §22 da Crítica da Faculdade do Juízo, que aquele que ajuíza esteja «seguro de ter feito a subsunção correcta (sicher

richtig subsumiert zu haben)» (Kant, 1998: 131) é condição necessária para que ele exija assentimento universal. Essa condição é, entretanto, mais duas vezes citada por Kant, a saber, na observação que faz ao parágrafo intitulado «[d]edução dos juízos de gosto (Deduktion der Geschmacksurteile)» (Kant, 1998: 191), observação na qual afirma que

enquanto o nosso objectivo for o de meramente explicitar como tenta Kant assegurar que o juízo de gosto é um juízo estético universalmente válido a priori. 94 Para uma compreensão esquemática deste processo, remetemos o leitor para o anexo “2. Articulação”.

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essa dedução «é tão fácil» (Kant, 1998: 192) pelo facto de o juízo de gosto afirmar

somente que estamos autorizados a pressupor universalmente em cada homem as mesmas condições subjectivas da faculdade do juízo que encontramos em nós, e ainda, que sob estas condições subsumimos correctamente o objecto dado (wir unter diesen Bedingungen das

gegebene Objekt richtig subsumiert haben) (Kant, 1998: 192),

e, logo a seguir, no §39, onde o nosso autor acrescenta que

aquele que julga com gosto (contanto que ele não se engane nesta consciência e não tome a matéria pela forma, o atractivo pela beleza (wenn er nur in diesem Bewusstsein nicht irrt und nicht die Materie für

die Form, Reiz für Schönheit nimmt)) pode postular em todo o outro a conformidade a fins subjectiva, isto é o seu comprazimento no objecto, e admitir o seu sentimento como universalmente comunicável e na verdade sem mediação dos conceitos (Kant, 1998: 195).95

A questão que emerge, neste contexto, é a de saber se aquele que ajuíza pode estar certo de fazer a subsunção correcta, de subsumir correctamente o objecto dado, de ajuizar com gosto – poderá ele ter a certeza de que ajuíza através do gosto, de que profere um juízo de gosto, de que o seu juízo é alicerçado num comprazimento desinteressado?

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a propósito da acção moral, Kant indica que

não se pode (…) provar com exactidão a partir de nenhum exemplo que a vontade seja aqui determinada unicamente pela lei sem qualquer outro móbil para além dela, ainda que o pareça, pois é sempre possível que o temor do opróbio, talvez mesmo uma obscura premonição de outros perigos, tenham sobre a vontade uma secreta influência (Kant, 2003: 89).96

95 Tendo em conta a argumentação por nós anteriormente apresentada, consideramos que, também nesta passagem, “ansinnen” seria melhor traduzido por “imputar” – e não por “postular”, como é o caso. 96 A questão em causa é a de saber «[c]omo provar através da experiência a não realidade de uma causa, se a experiência nada nos ensina para além do facto de que somos incapazes de apreender essa mesma causa?» (Kant, 2003: 89). Antecipando essa questão, Kant, na mesma obra, assinala que «é perfeitamente impossível

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Aplicando esta tese ao juízo de gosto, afirmaremos, com Guyer, que «nenhuma falha para mostrar evidência de um interesse após uma procura de qualquer particular extensão pode provar que nenhum interesse causou o prazer da pessoa» (Guyer, 1997: 182).97 Esta impossibilidade constitui uma limitação inerente aos juízos causais: «[o] facto de que uma procura finita possa estabelecer conclusivamente a presença de uma causa possível, mas não a sua ausência, é um problema para o juízo causal em geral» (Guyer, 1997: 183). Por isso é que qualquer juízo causal tem aquilo a que Guyer chama uma «corrigibilidade intrínseca» (Guyer, 1997: 182).

determinar a partir da experiência, com absoluta certeza, um só caso em que a máxima de uma acção, de resto conforme ao dever, tenha tido como único motivo os princípios morais e a representação do mesmo dever. Pois na verdade acontece, por vezes, mesmo depois do mais escrupuloso exame de consciência, não encontrarmos absolutamente nada que, para além do princípio moral do dever, tenha tido poder suficiente para nos levar a praticar uma qualquer boa acção, ou submetermo-nos a um qualquer grande sacrifício; mas nada nos permite inferir dessas circunstâncias com certeza absoluta que não tenha realmente sido um secreto impulso do amor-próprio, embora oculto sob a simples aparência daquela ideia, a verdadeira causa determinante, da vontade; o facto é que nos é extremamente agradável atribuirmo-nos, mesmo que sem fundamento, um princípio de determinação mais nobre; mas na realidade, nunca poderemos, por mais rigoroso que seja o exame a que nos submetamos, penetrar completamente até aos móbiles secretos; ora, quando se trata de valor moral, o essencial não reside nas acções em si mesmas, mas nos seus princípios interiores, que não se vêem» (Kant, 2003: 75). Anos depois, no texto Sobre a Expressão Corrente:

Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, o nosso autor reafirma a sua tese: «Concedo de bom grado que nenhum homem pode tornar-se consciente com toda a certeza de ter cumprido o seu dever de um modo inteiramente desinteressado, pois isso cabe à experiência interna, e para esta consciência do seu estado de alma seria preciso ter uma representação perfeitamente clara de todas as representações marginais e de todas as considerações associadas ao conceito de dever mediante a iamginação, o hábito e a inclinação, representação essa que em nenhum caso se pode exigir; a inexistência de algo (por conseguinte, também de uma vantagem secretamente pensada) não pode em geral ser também objecto da experiência» (Kant, 2004: 68). 97 Concluir que um comprazimento é desinteressado depende «da consciência da presença ou ausência de outros factos ou estados de mente associados a isso» (Guyer, 1997: 180). Acontece que «[s]e a procura por um interesse é uma procura na rede dos próprios pensamentos e associações de alguém, é sempre possível que ele não tenha procurado suficientemente longe ou na direcção certa» (Guyer, 1997: 182).

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Ora, o juízo relativo à causa do sentimento de prazer é, também ele, um juízo causal: trata-se de um juízo empírico relativo à causa do sentimento de prazer daquele que ajuíza.98 Note-se que o carácter desinteressado de um comprazimento «não pode ser manifestado por um sentimento especial e característico» e que «[a] consciência de desinteresse «não é apercebimento de qualquer sentimento fenomenologicamente único» (Guyer, 1997: 180). O juízo através do qual se afirma que o comprazimento que se sente é um comprazimento desinteressado constitui «um juízo indirecto que liga um prazer sentido à harmonia das faculdades em virtude da ausência de evidência para certos outros juízos acerca da causa ou efeito desse prazer», sendo que, como tal, ele não pode fornecer «evidência conclusiva» (Guyer, 1997: 181). Trata-se, então, de «um juízo falível» (Guyer, 1997: xix). Por essa razão, o juízo de gosto, ainda de acordo com Guyer, «retém sempre um elemento de incerteza» (Guyer, 1997: 143) e «tem de ser sempre menos do que completamente certo» (Guyer, 1997: 248). Aquele que ajuíza não pode estar completamente certo de que o prazer que sente por ocasião da representação que faz do objecto é derivado de uma harmonia livre das suas faculdades de conhecimento – o movimento das suas faculdades de conhecimento entre si pode não ser um movimento livre, embora sendo harmónico, e aquele que ajuíza pode não saber disso.

Será, porém, que a impossibilidade de aquele que ajuíza estar certo quanto ao carácter desinteressado do seu comprazimento coloca em causa a pretensão do juízo de gosto à validade universal a priori? Será que um eventual engano coloca em causa essa pretensão? Na supracitada observação que se segue ao §38, depois de defender que o juízo de gosto 98 Trata-se – usando novamente as palavras de Guyer – de um «juízo empírico acerca do seu próprio estado mental», de uma «hipótese acerca de um troço da sua própria história mental, onde há sempre espaço para erro e motivação escondida» (Guyer, 1997: 134), trata-se de «um juízo acerca de uma ligação causal particular na minha própria história mental» (Guyer, 1997: 147), trata-se de um juízo caracterizado por «hipóteses e conjecturas acerca de conexões causais na história mental da pessoa» (Guyer, 1997: 182), trata-se de um juízo empírico acerca da própria história mental de alguém» (Guyer, 1997: 292).

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afirma que sob as condições subjectivas universais da faculdade do juízo há uma subsunção correcta do objecto dado, Kant acrescenta que

conquanto este último ponto contenha dificuldades inevitáveis, que não são inerentes à faculdade de juízo lógica (porque nesta se subsume em conceitos, enquanto na faculdade de juízo estética se subsume numa relação – que meramente pode ser sentida – da faculdade da imaginação e do entendimento reciprocamente concordantes entre si na forma representada do objecto, em cujo caso a subsunção facilmente pode enganar), porém com isso não se retira nada da legitimidade da pretensão da faculdade do juízo de contar com um assentimento universal, pretensão que somente decorre de julgar de um modo válido a correcção do princípio a partir de fundamentos subjectivos para qualquer um (so

wird dadurch doch der Rechtmäßigkeit des Anspruchs der Urteilskraft,

auf allgemeine Beistimmung zu rechnen, nichts benommen, welcher nur

darauf hinausläuft, die Richtigkeit des Prinzips aus subjektiven Gründen

für jedermann gültig zu urteilen) (Kant, 1998: 192-193).

A razão é apresentada pelo nosso autor imediatamente a seguir:

no que concerne à dificuldade e à dúvida quanto à correcção da subsunção naquele princípio, ela torna tão pouco duvidosa a legitimidade da pretensão a esta validade de um juízo estético em geral, por conseguinte o próprio princípio, quanto a igualmente errónea (embora não tão frequente e fácil) subsunção da faculdade de juízo lógica no seu princípio pode tornar duvidoso este princípio, que é objectivo (was die

Schwierigkeit und den Zweifel wegen der Richtigkeit der Subsumtion

unter jenes Prinzip betrifft, so macht sie die Rechtmäßigkeit des

Anspruchs auf diese Gültigkeit eines ästhetischen Urteils überhaupt,

mithin das Prinzip selber so wenig zweifelhaft, als die eben sowohl

(obgleich nicht so oft und leicht) fehlerhafte Subsumtion der logischen

Urteilskraft unter ihr Prinzip das letztere, welches objektiv ist,

zweifelhaft machen kann) (Kant, 1998: 193).

Proferir um juízo de gosto pressupõe fazer a subsunção correcta; se a subsunção é errada, aquele que ajuíza não está a proferir um juízo de gosto, isto é, não está a ajuizar através da faculdade de juízo estética e do seu princípio. Nesse caso, a razão da discórdia residirá no proferimento de juízos de espécies diferentes – um, de gosto; outro, não. Trata-se apenas da «aplicação incorrecta a um caso particular da autorização que uma lei nos dá (die unrichtige Anwendung der Befugnis, die ein Gesetz uns gibt,

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auf einen besondern Fall)», sendo que «com isso a autorização em geral não é suprimida (wodurch die Befugnis überhaupt nicht aufgehoben

wird)» (Kant, 1998: 268). Não existirá, neste contexto, aquilo a que, no §8, Kant chama «juízo de gosto erróneo (irriges Geschmacksurteil)» (Kant, 1998: 105). Um juízo de gosto erróneo não é um juízo de gosto; é um juízo que assenta em algo que não o sentimento de prazer na harmonia livre das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação de um objecto.99 Tal não significa que aquele que ajuíza esteja ou sequer possa estar certo de que o juízo de gosto que profere é efectivamente um juízo de gosto – significa apenas que esse juízo é um juízo de gosto, independentemente de se estar ou não estar certo de que o é, de poder-se ou não se poder estar certo de que o é. Não é colocada em causa, assim, através da introdução da possibilidade de ajuizar-se erradamente, a argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo de gosto. Se aquele que ajuíza profere um juízo de gosto, então, segundo Kant, ele reivindica de todos os outros a aprovação, reclama deles, sejam eles quem forem, sem excepção, o assentimento ao seu juízo, singular, presume em qualquer um deles a adesão a esse juízo, imputa-lhes, atribui-lhes, o mesmo comprazimento, como se este fosse um predicado do conhecimento do objecto, exige-lhes o seu acordo.

***

Consideramos ter tornado claro, ao longo desta segunda secção, em que medida o juízo de gosto é, no entender de Kant, um juízo dotado de validade universal a priori. Fizemo-lo conscientes da complexidade da argumentação da Crítica da Faculdade do Juízo, mas evitando

99 De resto, apesar de usar a expressão juízo de gosto erróneo e de indicar que aquele que ajuíza profere juízos de gosto erróneos, Kant não deixa de referir «aquele que crê proferir um juízo de gosto (der, welcher ein Geschmacksurteil zu fällen glaubt)», e não aquele que efectivamente profere um juízo de gosto (Kant, 1998: 105).

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desenvolver os problemas dessa argumentação.100 A mesma opção metodológica foi tomada na primeira secção. Nem os problemas relacionados com a caracterização do juízo de gosto como juízo estético reflexivo, nem aqueles que concernem especificamente à argumentação de Kant a favor da validade universal a priori do juízo de gosto constituem o objecto principal da nossa investigação. Pretendemos saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte – se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do

Juízo. Para responder de maneira suficientemente sustentada a essa questão era indispensável elencar detalhada, justificada e articuladamente as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare belo um objecto. É isso que consideramos ter feito ao longo do primeiro capítulo da nossa tese.

100 Talvez o principal problema da argumentação de Kant em prol da validade universal a priori do juízo de gosto se prenda com a suposição de que a relação livre e harmónica das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza ocorre sob as mesmas condições em todos aqueles que ajuízam. Essa ocorrência é contingente. Aliás, como alerta Guyer, é precisamente por ser contingente que «a ocorrência desta harmonia ocasiona um prazer que não é sentido em todos os casos de conhecimento» (Guyer, 1997: 288). Assim, «se há um problema para a dedução de Kant do juízo estético, é que uma similaridade geral das faculdades de conhecimento humanas não parece implicar que nós temos todos de responder da mesma maneira a objectos particulares» (Guyer, 1997: 305). É essa implicação, contudo, que uma dedução transcendental do juízo de gosto exige.

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Capítulo II: Arte

1. JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA ARTÍSTICO UM OBJECTO

1.1. Obra de arte

Elencados os critérios através dos quais algo é declarado belo, enunciadas as exigências que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare que um objecto é belo, as características essenciais do juízo de gosto, é tempo de elencarmos os critérios através dos quais algo é declarado uma obra de arte, de enunciarmos os requisitos indispensáveis à declaração de uma coisa como artística, as características essenciais do juízo através do qual se declara artístico um objecto.

Na primeira alínea do primeiro parágrafo acerca da arte (Kunst) em geral (§43) Kant salienta que, sendo pensado por uma causa que actua

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sob uma específica ponderação da razão, um objecto artístico (um produto artístico) é não um efeito (Wirkung), mas uma obra (Werk) (cf. Kant, 1998: 206).101 No seguimento é, aliás, sugerida uma tripla caracterização de um tal produto: um produto artístico é o resultado de um exercício da liberdade, assim da razão do homem, portanto de um ser humano (cf. Kant, 1998: 206-207). De resto, Kant conclui a mesma alínea afirmando que «se (…) se denomina algo absolutamente uma obra de arte (ein Kunstwerk), para distingui-la de um efeito da natureza (eine

Naturwirkung), então entende-se sempre por isso uma obra dos homens (ein Werk der Menschen)» (Kant, 1998: 207)102. Os produtos artísticos são, por definição, obras dos homens, consequências do exercício da sua razão e do seu arbítrio.103 Na alínea seguinte (2)), embora constatemos reforçado o estatuto da arte como obra dos homens, observamo-la enquanto distinta da ciência (Wissenschaft): a arte é uma habilidade (Geschicklichkeit), exige uma técnica (Technik), efectivá-la requer um poder de execução que não seja imediatamente derivado de um saber (cf. Kant, 1998: 207). Finalmente, na terceira alínea (3)), e estendendo os seus comentários ao parágrafo seguinte (§44), Kant divide a arte em

101 O nosso autor escreve também os termos latinos correspondentes, respectivamente effectus e opus. 102 Uma eventual distinção entre artístico (künstlich) e artificial (künstlich) prender-se-á unicamente com o carácter não casual das obras de arte. Todos os objectos artísticos são objectos artificiais – não naturais, portanto – mas nem todos os objectos artificiais são objectos artísticos: entre os objectos artificiais, uns há que são obras de arte; outros, produtos do acaso. Ainda assim, devemos salientar que os termos por nós referidos partem de uma única e mesma palavra: künstlich. 103 Não só no §43, mas também no §90, já na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, concretamente numa nota às inferências segundo a analogia, Kant recusa qualquer identificação da arte com aquilo que ele designa por «instinto artístico (Kunstinstinkt)» (Kant, 1998: 372) ou «faculdade artística animal (tierischen

Kunstvermögen)» (Kant, 1998: 425), vedando o acesso dos animais ao terreno da primeira. Isso não significa, contudo, que ele os considere máquinas – de acordo com o nosso autor, os animais estão, aliás, «unidos ao homem (enquanto seres vivos) segundo o género», pois «também agem segundo representações» (Kant, 1998: 426); o que, no entanto, não se pode concluir é que os animais têm uma razão igual à dos homens ou sequer uma razão (cf. Kant, 1998: 425-426).

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várias ramificações, a saber, arte livre (Freiekunst), arte remunerada (Lohnkunst) ou ofício (Handwerk), arte mecânica (mechanische Kunst) e arte estética (ästhetische Kunst) (cf. Kant: 1998: 207-209).104 A arte estética é «ou arte agradável ou bela arte (angenehme oder schöne

Kunst)» (Kant, 1998: 209). Ainda no §43, na sua parte final, Kant afirma que

em todas as artes livres se requer (…) algo coercivo ou, como se diz, um mecanismo (in allen freien Künsten etwas Zwangsmäßiges, oder, wie

man es nennt, ein Mechamismus), sem o qual o espírito, que na arte tem de ser livre e o qual unicamente vivifica a obra, não teria absolutamente nenhum corpo e volatilizar-se-ia integralmente (por exemplo na poesia a correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica) (Kant, 1998: 208);

e no §47, o nosso autor refere que «não há nenhuma arte bela na qual algo mecânico, que pode ser captado e seguido segundo regras, e portanto algo escolástico, não constitua a condição essencial da arte (gibt es keine schöne Kunst, in welcher nicht etwas Mechanisches,

welches nach Regeln gefasst und befolgt werden kann, und also etwas

Schulgerechtes die wesentliche Bedingung der Kunst ausmachte)» (Kant, 1998: 215). A razão da necessidade desta componente mecânica e escolástica da arte – e, de acordo com a última passagem, da bela arte – é sublinhada em vários excertos da Crítica da Faculdade do Juízo: assim, na Introdução, Kant assinala que «na arte (…) realizamos um conceito de um objecto antecipadamente concebido que é para nós fim (wir einen vorhergefassten Begriff von einem Gegenstande, der für uns

Zweck ist, realisieren)» (Kant, 1998: 78); no §47, indica que um objecto só é artístico se algo for «pensado como fim (als Zweck

gedacht)» (Kant, 1998: 215); e, finalmente, no §48, reforça que «a arte sempre pressupõe um fim na causa (e na sua causalidade) (Kunst setzt

immer einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraus)»

104 Salvaguarde-se, entretanto, a possibilidade de eventuais cruzamentos entre algumas das referidas ramificações: a arte mecânica, por exemplo, pode simultaneamente ser um ofício (arte remunerada).

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(Kant, 1998: 216).105 Pois bem, a actualização de um fim pressupõe determinadas regras. Como defende Kant, no §46, «para pôr um fim em acção são requeridas determinadas regras, das quais não se pode dispensar-se ([u]m einen Zweck ins Werk zu richten, dazu werden

bestimmte Regeln erfordert, von denen man sich nicht frei sprechen

darf)» (Kant, 1998: 215).106 Assim sendo, devemos afirmar, como o nosso autor afirma, no §46, que «cada arte pressupõe regras, através de cuja fundamentação pela primeira vez um produto, se ele deve chamar-se artístico, é representado como possível (jede Kunst setzt Regeln

voraus, durch deren Grundlegung allererst ein Produkt, wenn es

künstlich heißen soll, als möglich vorgestellt wird)» e que «sem uma regra precedente um produto jamais se pode chamar arte (ohne

vorhergehende Regel in Produkt niemals Kunst heißen kann)» (Kant, 1998: 211). 1.2. Representação de uma conformidade a fins objectiva interna

Importa compreender o que é um fim. Citemos três passagens nas quais, de uma maneira explícita, Kant apresenta a noção de fim (Zweck): uma, da Introdução, é aquela na qual o nosso autor afirma que «o conceito de um objecto, na medida em que ele ao mesmo tempo contém o fundamento da efectividade deste objecto, se chama fim (der Begriff von einem Objekt,

sofern er zugleich den Grund der Wirklichkeit dieses Objekts enthält, heißt

der Zweck)» (Kant, 1998: 63); a segunda, do §10, é a passagem em que, no contexto da reintrodução e abordagem da noção de conformidade a fins (Zweckmäßigkeit), Kant diz que «fim é o objecto de um conceito, na medida em que este for considerado como a causa daquele (o fundamento

105 Na primeira alínea do §43, não obstante não usar a palavra fim (Zweck), Kant sugere que no caso de uma obra de arte o efeito é «pensado pela causa» (Kant, 1998: 207). 106 Se quisermos citar a parte final do §45, diremos que essas são as «regras segundo as quais unicamente o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser» (Kant, 1998: 211).

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real de sua possibilidade) (Zweck ist der Gegenstand eines Begriffs, sofern

dieser als die Ursache von jenem (der reale Grund seiner Möglichkeit)

angesehen wird)», concluindo que «[o]nde pois não é porventura pensado

simplesmente o conhecimento de um objecto mas o próprio objecto (a

forma ou existência do mesmo) como efeito, enquanto possível somente

mediante um conceito do último, aí se pensa um fim ([w]o also nicht etwa

bloß die Erkenntnis von einem Gegenstande, sondern der Gegenstand

selbst (die Form oder Existenz desselben) als Wirkung, nur als durch

einen Begriff von der letztern möglich gedacht wird, da denkt man sich

einen Zweck)» (Kant, 1998: 109); finalmente, numa terceira passagem, no

§15, Kant escreve que «fim em geral é aquilo cujo conceito pode ser

considerado como fundamento da possibilidade do próprio objecto (Zweck

überhaupt dasjenige ist, dessen Begriff als der Grund der Möglichkeit des

Gegenstandes selbst angesehen werden kann)» (Kant, 1998: 117-118).

Em qualquer das três passagens citadas a noção de fim é apresentada em

estreita ligação com a noção de conceito (Begriff).107 O produto artístico

constitui-se, neste contexto, como efeito de um conceito do objecto, isto

é, como efectivação, enquanto objecto, do conceito que orientou a sua

107 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma, respectivamente, que fins são «representações que têm de ser, elas mesmas,

consideradas como condições da causalidade de seus objetos (como efeitos)»

(Kant, 1995: 69) e que «somente em produtos da arte podemos tomar consciência da causalidade da razão em relação a objetos que por isso se

chamam finais ou fins e, quanto a eles, denominar técnica à razão é adequado à experiência da causalidade da nossa própria faculdade» (Kant, 1995: 72); na

“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, o nosso autor dirá que «chamamos

fim o produto de uma causa, cujo fundamento de determinação é simplesmente a representação do respectivo efeito» (Kant, 1998: 332) e que «o efeito

representado, cuja representação é ao mesmo tempo o fundamento de

determinação da causa inteligente actuante, chama-se fim» (Kant, 1998: 354). Embora nestas passagens não seja usado o termo conceito, é evidente o acordo

de qualquer uma delas com as três anteriormente transcritas. Ressalvemos, no entanto, que não deve ser lida nas nossas palavras qualquer identificação entre

as noções de conceito e de fim. Aliás, nem sequer pode ser afirmado que um

conceito é sempre pensado como um fim.

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criação. Há, na criação artística, um nexus finalis, uma conexão das causas ideais.108

Consideremos, complementarmente, algo que Kant escreve numa nota à explicação do belo deduzida do “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”. A propósito de «coisas nas quais se vê uma forma (Form) conforme a fins, sem reconhecer nelas um fim», isto é, de objectos que «em sua figura (Gestalt) [denunciam] claramente uma conformidade a fins, para a qual não se conhece o fim», o nosso autor assinala que «o facto de que se os considera uma obra de arte é já suficiente para ter que admitir que a gente refere a sua figura a alguma intenção qualquer e a um fim determinado (dass man

sie für ein Kunstwerk ansieht, ist schon genug, um gestehen zu müssen,

dass man ihre Figur auf irgend eine Absicht und einen bestimmten Zweck

bezieht)» (Kant, 1998: 268). Se assim é, temos de concluir não apenas que o artista refere a figura do seu objecto à intenção que orientou a sua construção, isto é, à «determinada intenção de produzir algo (bestimmte

Absicht etwas hervorzubringen)» que, no §45, Kant sublinhará que «a arte tem sempre (hat Kunst jederzeit)» (Kant, 1998: 210), mas também que a própria declaração desse objecto como artístico pressupõe a referência da sua figura ao conceito de um fim – ao ajuizarmos um objecto como obra de arte, somos obrigados a considerar um fim determinado, somos

108 Vejamos o que significa conexão das causas ideais (die Idealenursachenverknüpfung). Trata-se de «uma ligação causal segundo um conceito da razão (de fins), ligação que, se a considerarmos como uma série, conteria tanto no sentido descendente, como no ascendente uma forma de dependência, na qual a coisa, que uma vez foi assinalada como efeito, passa então no sentido ascendente a merecer o nome de uma causa daquela coisa de que ela fora o efeito» (Kant, 1998: 289-290). Apesar de Kant só referir uma tal conexão já na “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, pelo menos utilizando exactamente essa expressão, ele refere-a sugerindo tratar-se de uma conexão que facilmente se encontra no domínio da arte. Observe-se, a propósito, o exemplo do objecto casa: «a casa (…) na verdade é a causa dos rendimentos que são recebidos pelo respectivo aluguer, porém também inversamente foi a representação deste possível rendimento a causa da construção da casa» (Kant, 1998: 290). É neste âmbito que nos parece relevante assinalar a noção de conexão das causas ideais.

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obrigados a considerar o conceito daquilo que esse objecto deve ser, e a referir a sua forma a esse conceito.109

Referir a forma de um objecto ao conceito que fundamenta a possibilidade desse objecto, ou, melhor, constatar a concordância dessa forma com o conceito que fundamenta o próprio objecto e a sua forma, tal significa constatar a conformidade a fins objectiva do objecto.110 A perfeição é um tipo de conformidade a fins objectiva, a saber, uma conformidade a fins objectiva interna.111 Ora, se, como Kant afirma, na Introdução, a representação de uma conformidade a fins dessa espécie – isto é, objectiva: representada, portanto, com base num princípio objectivo – ao relacionar a forma do objecto «com um conhecimento determinado do objecto sob um conceito dado, nada tem a ver com o sentimento de prazer nas coisas, mas sim com o entendimento no julgamento das mesmas (hat nichts mit einem Gefühle der Lust an den Dingen, sondern mit dem

Verstande in Beurteilung derselben zu tun)» (Kant, 1998: 78), então a representação de uma perfeição, sendo ela um tipo de conformidade a fins objectiva, igualmente tem a ver não com o sentimento de prazer nos objectos, mas com o entendimento no julgamento dos mesmos.112 Logo,

109 Facilmente se observa, nas nossas palavras, um uso indistinto dos termos forma, eleito por António Marques e Valério Rohden para traduzir Form, e figura, eleito pelos mesmos tradutores para abarcar os termos Gestalt e Figur. A possibilidade de ser o próprio Kant a permitir-nos tal uso poderá ser atestada na secção “Forma”, nomeadamente através da recorrência a passagens dos §14 (cf. Kant, 1998: 116), §16 (cf. Kant, 1998: 120-121), §30 (cf. Kant, 1998: 179-180) e §48 (cf. Kant, 1998: 216-217). Por ora, não precisamos de citar essas passagens. Em si mesma, a supramencionada nota à explicação do belo deduzida do “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada” envolve um uso indistinto dos termos Form, Gestalt e Figur. 110 De acordo com o §15, como já vimos, a conformidade a fins objectiva «é a referência do objecto a um fim determinado (die Beziehung des Gegenstandes auf

einen bestimmten Zweck)» (Kant, 1998: 117). 111 É igualmente no §15, como também já vimos, que Kant identifica a conformidade a fins objectiva interna com a perfeição, assim como identifica a conformidade a fins objectiva externa com a utilidade (cf. Kant, 1998: 117). 112 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, lê-se, no mesmo sentido, que «perfeição, como mera completude da pluralidade na medida em que constitui

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quando ajuizamos a conformidade de um objecto em relação ao conceito do fim que é o fundamento da sua possibilidade, embora possamos estar a ajuizar esse objecto enquanto obra de arte, não estamos a ajuizá-lo quanto à beleza.113

1.3. Possibilidade de falar-se de bela arte

Por si só ou conjuntamente, nenhum dos requisitos que enunciámos enquanto indispensáveis à declaração de um objecto como artístico impede que um objecto artístico possa ser declarado belo. Vimos que, por definição, na causa de uma obra de arte, como condição da sua possibilidade, como fundamento da sua efectividade, da sua realização, está um fim (um conceito daquilo que o objecto deve ser, o efeito representado). Além disso, a própria declaração do objecto como artístico pressupõe a referência da sua figura a esse conceito de fim. No entanto, nenhum desses requisitos impede que o mesmo objecto possa ser declarado belo. Se tivermos em conta algo que está escrito no §16, assumiremos ser possível proferir um juízo de gosto a respeito de um objecto no fundamento do qual esteja uma finalidade interna determinada.

uma unidade, é um conceito ontológico, que é o mesmo que o da totalidade de um composto (por coordenação do diverso em um agregado ou, ao mesmo tempo, pela subordinação do mesmo como fundamentos e conseqüências em uma série), e não tem o mínimo que ver com o sentimento de prazer e desprazer (mit dem Gefühle der Lust

oder Unlust nicht das mindeste zu tun hat)» (Kant, 1995: 64). 113 Como assinala Kant, no §15, não obstante a perfeição estar, por comparação com a utilidade, isto é, com a conformidade a fins externa objectiva, mais próxima da beleza, só é tomada como idêntica a esta última «se ela for pensada confusamente (wenn sie verworren gedacht wird)» (Kant, 1998: 117). Entretanto, no §58, o nosso autor sublinhará a diferença entre a beleza e a perfeição: «visto que, considerados em si, nem um juízo de gosto é um juízo de conhecimento, nem a beleza é uma qualidade do objecto, assim o racionalismo do princípio de gosto jamais pode ser posto no facto de que nesse juízo a conformidade a fins seja pensada como objectiva, isto é que o juízo tenha a ver teoricamente, por conseguinte também logicamente (se bem que somente num julgamento confuso), com a perfeição do objecto (die Zweckmäßigkeit in diesem Urteile als objektiv gedacht werde, d. i. dass das Urteil theoretisch, mithin

auch logisch (wenn gleich nur in einer verworrenen Beurteilung) auf die

Vollkommenheit des Objekts)» (Kant, 1998: 255).

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Assim, na parte final desse parágrafo, Kant afirma que «[u]m juízo de gosto seria puro com respeito a um objecto com fim interno determinado somente se aquele que julga não tivesse nenhum conceito desse fim ou se abstraísse dele em seu juízo ([e]in Geschmacksurteil würde in Ansehung

eines Gegenstandes von bestimmtem innern Zwecke nur alsdann rein sein,

wenn der Urteilende entweder von diesem Zwecke keinen Begriff hätte,

oder in seinem Urteile davon abstrahierte)» (Kant, 1998: 122). O mesmo é dizer que um tal objecto pode ser declarado belo. Podemos declará-lo como tal se ignorarmos a finalidade interna determinada que está no seu fundamento ou se no nosso juízo abstrairmos dela.

Considerando aquilo que expusemos até agora, podemos concluir que a declaração de um objecto como belo nada tem a ver com a representação de uma conformidade a fins objectiva, seja essa interna ou externa. Artístico ou natural, o objecto será declarado belo se, por ocasião da sua representação, aquele que ajuíza sentir uma harmonia livre das suas faculdades de conhecimento entre si, por conseguinte, se ele observar uma conformidade a fins sem fim, uma conformidade a fins subjectiva, uma conformidade a fins formal.

No que diz respeito aos objectos da natureza, mais do que ignorarmos qual o fim interno determinado a que a sua criação poderá ter estado submetida, não temos conhecimento de que essa criação tenha estado submetida a um conceito de um fim. Assim, no caso do «belo na figura humana», de acordo com a “Observação geral sobre a exposição dos juízo reflexivos estéticos”,

não temos que recorrer a conceitos de fins, como fundamentos determinantes do juízo e em vista dos quais todos os seus membros existem, nem deixar a concordância com esses conceitos influir sobre o nosso (então não mais puro) juízo estético (Kant, 1998: 169).

Mesmo que, aliás, concebêssemos um eventual fim interno determinado que teria regido a criação de um objecto da natureza, essa possibilidade não impediria que sobre um tal objecto proferíssemos um puro juízo de gosto e que livremente pudéssemos declará-lo belo. Para que como tal pudéssemos ajuizá-lo, teríamos de abstrair de qualquer conformidade a fins objectiva, isto

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é, de qualquer concordância entre o objecto e um conceito daquilo que ele deva ser. Kant dá um exemplo desta possibilidade no §16. Afirma ele:

Flores são belezas naturais livres. Que espécie de coisa uma flor deva ser, dificilmente o saberá alguém além do botânico; e mesmo este, que no caso conhece o órgão de fecundação da planta, se julga a este respeito através do gosto, não toma em consideração este fim da natureza. Logo, nenhuma perfeição de qualquer espécie, nenhuma conformidade a fins interna, à qual se refira a composição do múltiplo, é posta no fundamento deste juízo (Es wird also keine Vollkommenheit von irgend einer Art,

keine innere Zweckmäßigkeit, auf welche sich die Zusammensetzung des

Mannigfaltigem beziehe, diesem Urteile zum Grunde gelegt) (Kant, 1998: 120).

Para ajuizar se uma flor é bela, o botânico tem apenas de abstrair de qualquer fim a que a sua criação eventualmente tenha estado submetida, tendo, por conseguinte, de ignorar qualquer conformidade a fins objectiva interna da flor a esse conceito de fim. Retomando as nossas considerações acerca das obras de arte, resta-nos salientar, então, duas teses: o juízo através do qual se declara belo um objecto e o juízo através do qual se declara artístico um objecto não obedecem aos mesmos critérios; os critérios a que cada uma dessas espécies de juízos obedece não tornam incompatível a declaração de um objecto artístico como belo. Tendo em conta o que temos vindo a explicitar, devemos responder afirmativamente à questão de saber se poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto, se poderá uma obra de arte ser declarada bela, e, por conseguinte, à questão de saber se é legítimo falar-se de bela arte.

2. JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA BELA UMA OBRA DE ARTE

2.1. Impossibilidade de falar-se de bela arte

Sem prejuízo do que temos vindo a explicitar, devemos admitir que tal não é tudo o que Kant assinala acerca da beleza, da arte ou da beleza da arte. No §48, o nosso autor profere a seguinte afirmação:

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Se (…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser, porque a arte sempre pressupõe um fim na causa (e na sua causalidade); e visto que a consonância do múltiplo numa coisa com vista a uma determinação interna da mesma enquanto fim é a perfeição da coisa, assim no julgamento da beleza da arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa (Wenn (…) der Gegenstand für ein Produkt der Kunst gegeben ist und

als solches für schön erklärt werden soll: so muss, weil Kunst immer

einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraussetzt, zuerst

ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding sein soll;

und da die Zusammenstimmung des Mannigfaltigen in einem Dinge zu

einer innern Bestimmung desselben als Zweck die Volkommenheit des

Dinges ist, so wird in der Beurteilung der Kunstschönheit zugleich die

Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht werden müssen) (Kant, 1998: 216).

De acordo com esta passagem, ajuizar um objecto artístico como belo supõe a representação de uma conformidade a fins objectiva interna desse objecto, representação que, como sabemos, assenta na constatação de que o objecto exibe adequadamente o conceito de fim que o causou, isto é, na constatação de que o objecto apresenta para esse conceito uma intuição que lhe corresponde. Aquele que ajuíza acerca da beleza de um objecto artístico tem de ter em conta, no seu juízo, a finalidade interna determinada que está na causa desse objecto, não podendo, portanto, abstrair do conceito dessa finalidade.

A questão à qual desde o início da nossa investigação nos propusemos responder é a de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte, isto é, se e como poderá uma obra de arte ser declarada bela. Contrariamente aos requisitos indispensáveis à declaração de um objecto como artístico, a exigência que agora apresentamos parece impedir que possa declarar-se bela uma obra de arte, pois, como vimos, o juízo através do qual se declara belo um objecto é o juízo de gosto, juízo que, segundo o título do §15, «é totalmente independente do conceito de

perfeição (ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117). A possibilidade de proferimento de um juízo de gosto com respeito a um objecto com fim interno determinado

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parece, então, não se confirmar. Colocando lado-a-lado as condições indispensáveis ao julgamento de um objecto como belo e a exigência segundo a qual ao ajuizar se uma obra de arte é bela aquele que ajuíza tem de considerar a conformidade a fins objectiva interna da coisa, parecemos obrigados a concluir que uma obra de arte não pode ser declarada bela.114 Aquilo que faz aparecer como inaceitável a conclusão contrária (uma obra de arte poder ser declarada bela) é a incompatibilidade entre, por um lado, a total independência do juízo de gosto em relação ao conceito de perfeição, isto é, à conformidade a fins objectiva interna da coisa e, por conseguinte, ao conceito daquilo que o objecto deva ser, e, por outro lado, a dependência – por mínima que possa ser – do julgamento da beleza da arte em relação a esse mesmo conceito de perfeição. Se o juízo através do qual se declara belo um objecto é o juízo de gosto, como inicialmente notámos, se o juízo de gosto é absolutamente independente do conceito de perfeição, como entretanto acrescentámos, e se no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte tem de ser tida em conta a perfeição do objecto, como no-lo indica o §48, então parece não poder ajuizar-se acerca da eventual beleza de uma obra de arte – por outras palavras: uma obra de arte não pode ser declarada bela, não é legítimo falar-se de bela arte.115

2.2. Perfeições

Regressemos ao §15. Nesse parágrafo, Kant estabelece uma distinção entre dois tipos de perfeição, a saber, perfeição qualitativa (qualitative

114 Sublinhe-se a inexistência de qualquer incompatibilidade entre as condições indispensáveis à declaração de um objecto como belo e os requisitos a preencher para se declarar um objecto como artístico. Nem sequer há uma incompatibilidade entre as mencionadas condições e a necessidade de na declaração de um objecto como artístico se referir o objecto em causa à finalidade determinada que orientou a sua criação, isto é, ao conceito precedente daquilo que o objecto deva ser. 115 Se «[o] juízo de gosto é totalmente independente do conceito de perfeição» (Kant, 1998: 117), então, visto que «no julgamento da beleza da arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa» (Kant, 1998: 216), a bela arte ou não é exactamente bela ou não é exactamente artística.

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Vollkommenheit) e perfeição quantitativa (quantitative Vollkommenheit) (cf. Kant, 1998: 118). A perfeição quantitativa é definida como «a completude de cada coisa em sua espécie, e simples conceito de quantidade (da totalidade) (die Vollständigkeit eines jeden Dinges in

seiner Art, ein bloßer Größenbegriff (der Allheit) )» (Kant, 1998: 118). No juízo acerca deste tipo de perfeição «já é antecipadamente pensado como determinado o que a coisa deva ser» (Kant, 1998: 118). Apenas se pergunta se está no objecto «todo o requerido para isso» (Kant, 1998: 118). Representar uma perfeição qualitativa significa, por sua vez, representar numa coisa «a concordância do múltiplo (die

Zusammenstimmung des Mannigfaltigen)» com «o conceito do que

esta coisa deva ser (der Begriff von diesem, was es für ein Ding sein solle)» (Kant, 1998: 118). Um tal conceito precede o objecto e «fornece nele a regra da ligação do mesmo» (Kant, 1998: 118). Assim, enquanto num juízo acerca da perfeição quantitativa de um objecto, aquele que ajuíza quer unicamente saber o grau de conformidade do objecto em relação àquilo que um objecto da sua espécie requer, num juízo acerca da perfeição qualitativa, desse ou de outro objecto, aquele que ajuíza avalia a conformidade do objecto à intenção que precede a sua criação e de acordo com a qual o objecto é avaliado como perfeito ou imperfeito. Na passagem supramencionada do §48, a perfeição qualitativa parece ser aquela a necessariamente ter em conta no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte. No entanto, segundo o título do §15, há uma total independência do juízo de gosto em relação ao conceito de perfeição . Logo, um juízo no qual tem de ser tida em conta a perfeição, qualitativa ou quantitativa, não é um juízo de gosto. A distinção entre perfeição qualitativa e perfeição quantitativa revela-se irrelevante, então, no que concerne à questão de saber se o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto. Considerando o que até agora expusemos, vemo-nos obrigados a concluir que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não é um juízo de

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gosto e, por conseguinte, que uma obra de arte não pode ser declarada bela, que não é legítimo falar-se de bela arte.

2.3. Beleza aderente e juízo de gosto aplicado

No §16, sem que algo o fizesse prever, Kant estabelece uma divisão que, sob um certo ponto de vista, autorizaria que se falasse de bela arte. Trata-se da divisão da beleza em beleza livre (freie Schönheit) e beleza simplesmente

aderente (bloß anhängende Schönheit) (cf. Kant, 1998: 120).116 Ainda no início desse parágrafo, logo a seguir a nomear essas duas espécies de beleza, o nosso autor assinala que a segunda, sendo «aderente a um conceito (beleza condicionada) (einem Begriffe anhängend (bedingte Schönheit))», e, portanto, «atribuída a objectos que se encontram sob o conceito de um fim particular (Objekten, die unter dem Begriffe eines besondern Zwecks stehen,

beigelegt)» (Kant, 1998: 120), pressupõe um conceito daquilo que o objecto deva ser (setzt einen Begriff von dem voraus, was der Gegenstand sein soll) e a perfeição do objecto segundo esse conceito (die Vollkommenheit des

Gegenstandes nach demselben) (cf. Kant, 1998: 120). Pois bem, se no julgamento da beleza de tais objectos – nomeadamente igrejas, palácios, arsenais ou casas de campo, exemplos dados por Kant e que não são exemplos de objectos da natureza – de maneira a declará-los belos, têm de ser tidos em conta os conceitos de fins que determinam aquilo que os respectivos objectos devam ser e, além disso, a perfeição de cada um desses objectos segundo os respectivos conceitos de fins, então, se assim é, uma obra de arte pode, sem hesitação, ser considerada bela. É a própria noção de beleza aderente, note-se, precisamente enquanto cumprindo, por definição, o que no §48 é apresentado como um requisito indispensável ao julgamento da beleza da arte – a saber, que seja tida em conta ao mesmo tempo a perfeição do objecto – aquilo autoriza que se fale de bela arte. Se as condições para que se considere belo um objecto artístico – nomeadamente a condição acrescentada no §48 – não entram em conflito com as exigências

116 Kant escreve igualmente os termos latinos correspondentes, a saber, pulchritudo

vaga e pulchritudo adhaerens.

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que um juízo tem de cumprir para que se declare que algo é belo – o que nos é permitido concluir se admitirmos que a beleza pode ser aderente, ou, melhor, que a beleza aderente é, de direito, uma espécie de beleza – então é permitido falar-se de bela arte.

O problema não é, no entanto, de tão fácil solução. Será legítima a introdução de uma espécie de beleza cujos critérios entram em conflito com os critérios da própria beleza? Admitir a beleza aderente como uma espécie de beleza obrigaria a admitir que o juízo através do qual se declara belo um objecto não é necessariamente o juízo de gosto, pois o juízo de gosto é totalmente independente do conceito de perfeição.117 Kant não admite que o juízo através do qual se declara belo um objecto não é necessariamente o juízo de gosto. No entanto, ele estabelece uma distinção entre juízos de gosto que é análoga à distinção entre beleza livre e beleza aderente, a saber, a distinção entre puro juízo de gosto (reines

Geschmacksurteil) e juízo de gosto aplicado (angewandtes

Geschmacksurteil). Assim, na parte final do §16, sugerindo a possibilidade de dois indivíduos discordarem acerca da beleza de um objecto, o nosso autor afirma que

[a]través desta distinção pode-se dissipar muita dissenção dos juízos de gosto sobre a beleza, enquanto se lhes mostra que um considera a beleza livre, o outro a beleza aderente, o primeiro profere um juízo de gosto puro, o segundo um juízo de gosto aplicado (der erstere ein reines, der

zweite ein angewandtes Geschmacksurteil fälle) (Kant, 1998: 122).

A questão que emerge é a de saber se a noção de juízo de gosto aplicado é, ela mesma, legítima, ou, melhor, a questão de saber se é legítimo admitir uma espécie de juízo de gosto cujos critérios entram em conflito com os critérios do próprio juízo de gosto enquanto juízo estético. Nada do que até agora expusemos sustenta uma tal admissão. Um juízo de gosto é um juízo estético, portanto um juízo cujo fundamento de determinação é o sentimento de prazer ou desprazer que se liga à representação do objecto. O juízo de

117 Repetimo-lo: «O juízo de gosto é totalmente independente do conceito de

perfeição» (Kant, 1998: 117).

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gosto não é, então, um juízo de conhecimento. Kant associa esta subespécie de juízo estético (o juízo estético reflexivo, o juízo de gosto) à beleza livre. O juízo de gosto aplicado, diferentemente, é associado por Kant à beleza aderente. Já dissemos que no julgamento da beleza aderente têm de ser tidos em conta o conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito, portanto a conformidade a fins objectiva interna da coisa. Nesse caso, a representação do objecto é referida a um conceito de fim; não apenas ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. É isso que, segundo Kant, ocorre nos juízos que ele coloca no âmbito dos juízos de gosto impuros, juízos que o nosso autor não deixa de considerar de gosto, embora sem que apresente uma justificação para tal. Vejam-se, nesse sentido, desde logo o título do §16, no qual é afirmado que «[o] juízo

de gosto, pelo qual um objecto é declarado belo sob a condição de um

conceito determinado, não é puro ([d]as Geschmacksurteil, wodurch ein Gegenstand unter der Bedingung eines bestimmten Begriffs für schön erklärt wird, ist nicht rein)» (Kant, 1998: 120), e a passagem, do mesmo parágrafo, segundo a qual um juízo de gosto que se torne dependente de um conceito de perfeição e por esse se torne limitado «deixa de ser um juízo de gosto livre e puro (ist nicht mehr ein freies und reines Geschmacksurteil)» (Kant, 1998: 121). Acontece que um juízo que não seja livre não pode ser um juízo de gosto. Ele é um juízo interessado e, portanto, viciado, faccioso e parcial, algo que o juízo de gosto não pode ser. O prazer que se sente por ocasião do proferimento de um juízo de gosto é sem interesse, é um comprazimento desinteressado, é um comprazimento totalmente livre. A noção de juízo de gosto aplicado não pode, então, ser admitida. O chamado juízo de gosto aplicado não é um juízo de gosto. Por conseguinte, não pode declarar-se belo um objecto através do chamado juízo de gosto aplicado. Assim, a resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte é uma resposta negativa: não pode falar-se de bela arte.

2.4. Juízo estético logicamente condicionado

Centremo-nos agora noutra passagem do §48. Ao distinguir beleza da

natureza (Naturschönheit) e beleza da arte (Kunstschönheit), utilizando

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os casos do ser humano e do cavalo, já utilizados no §16 (cf. Kant, 1998: 121), Kant diz o seguinte:

Na verdade, no julgamento principalmente dos objectos animados da natureza, por exemplo do homem ou de um cavalo, é habitualmente tomada também em consideração a conformidade a fins objectiva para julgar sobre a beleza dos mesmos; porém então o juízo também deixa de ser puramente estético, isto é um simples juízo de gosto (ist das Urteil

nicht mehr rein-ästhetisch, d. i. bloßes Geschmacksurteil) (Kant, 1998: 216).

Num tal juízo, «[a] natureza não é mais ajuizada como ela aparece enquanto arte, mas na medida em que ela é efectivamente arte (embora sobre-humana) ([d]ie Natur wird nicht mehr beurteilt, wie sie als Kunst

erscheint, sondern sofern sie wirklich (obzwar übermenschliche) Kunst

ist)» (Kant, 1998: 216). Trata-se de um juízo no qual um «juízo teleológico serve ao juízo estético como fundamento e condição que este tem que tomar em consideração (das teleologische Urteil dient dem ästhetischen

zur Grundlage und Bedingung, worauf díeses Rücksicht nehmen muss)» (Kant, 1998: 216). Kant exemplifica-o com a frase «esta é uma mulher bonita», na qual «não se pensa senão isto: a natureza representa belamente na sua figura os fins na estatura feminina (die Natur stellt in ihrer Gestalt

die Zwecke im weiblichen Baue schön vor)» (Kant, 1998: 216). É o próprio Kant a admitir que, em casos como este, «tem que se estender a vista para além da simples forma até um conceito (man muss noch über die bloße

Form auf einen Begriff hinaussehen)» (Kant, 1998: 216). Ora, no entender do nosso autor, o juízo em causa é «um juízo estético logicamente condicionado (ein logisch-bedingtes ästhetiches Urteil)» (Kant, 1998: 217). Acontece que, como vimos no primeiro capítulo da nossa tese, o juízo estético é sem conceito. Assim, o chamado juízo estético logicamente condicionado não é, nem pode ser, um juízo estético – trata-se de um juízo acerca da perfeição. Nessa medida, ele não pode ser considerado um juízo de gosto. O proferimento de um juízo de gosto não envolve o conhecimento do tipo de coisa que o objecto deva ser, um conceito desse objecto. Ora, tal como não pode declarar-se belo um

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objecto através do chamado juízo de gosto aplicado, também não pode declarar-se belo um objecto através do chamado juízo estético logicamente condicionado. A introdução da noção de juízo estético

logicamente condicionado (logisch-bedingtes ästhetiches Urteil) não permite que se responda afirmativamente à questão de saber se uma obra de arte pode ser declarada bela. Por conseguinte, a resposta a essa questão continua a ser uma resposta negativa: uma obra de arte não pode ser declarada bela – não é legítimo falar-se de bela arte. 2.5. Beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado

Não deixa de ser relevante salientar, por outro lado, os exemplos que, no §16, Kant dá de objectos que são do âmbito da beleza aderente. Aí, o nosso autor fornece exemplos não apenas de objectos artísticos, mas também de objectos naturais, cuja beleza é aderente, nomeadamente seres humanos e cavalos:

a beleza de um ser humano (e dentro desta espécie a de um homem ou uma mulher ou uma criança), a beleza de um cavalo, de um edifício (como igreja, palácio, arsenal ou casa de campo) pressupõe um conceito do fim que determina o que a coisa deve ser, por conseguinte um conceito da sua perfeição, e é portanto beleza simplesmente aderente (setzt einen Begriff von Zwecke voraus, welcher bestimmt, was das Ding

sein soll, mithin einen Begriff seiner Vollkommenheit, und ist also bloß

adhärirende Schönheit) (Kant, 1998: 121).

A inclusão de objectos naturais no âmbito da beleza aderente – e, portanto, dos juízos de gosto aplicados ou dos juízos estéticos logicamente condicionados – não pode ser compreendida sem a introdução da noção de ideal da beleza (Ideale der Schönheit). Kant explicita-a no §17. De acordo com o que está escrito nesse parágrafo, ideal (Ideal) significa «a representação de um ente individual como adequado a uma ideia (die

Vorstellung eines einzelnen als einer Idee adäquaten Wesens)», isto é, como adequado a «um conceito da razão» (Kant, 1998: 123). Embora «certamente repousando sobre a ideia indeterminada da razão de um máximo», o ideal da beleza «não pode no entanto ser representado mediante conceitos (doch kann nicht durch Begriffe vorgestellt werden)»

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(Kant, 1998: 123).118 Ele repousa «sobre a apresentação», ele «somente [pode ser representado] por apresentação individual» (Kant, 1998: 123). Ora, como «a faculdade de apresentação, porém, é a imaginação», o ideal da beleza «será simplesmente um ideal da faculdade da imaginação» (Kant, 1998: 123). Assim, «se não estamos imediatamente na posse dele, contudo aspiramos produzi-lo em nós», ou seja, «o modelo mais elevado, o original do gosto», isto é, o ideal da beleza, «é uma simples ideia que cada um tem de produzir em si próprio» (Kant, 1998: 123).

É de notar, entretanto, que, segundo Kant, somente o «homem é (…) capaz de um ideal da beleza» (Kant, 1998: 124). Somente o homem porque somente este «tem o fim da sua existência em si próprio» e «pode determinar ele próprio os seus fins pela razão» ou «compará-los aos fins essenciais e universais e pode então ajuizar também esteticamente a concordância com esses fins» (Kant, 1998: 124). Por essa razão,

a beleza, para a qual deve ser procurado um ideal, não tem que ser nenhuma beleza vaga, mas uma beleza fixada por um conceito de conformidade a fins objectiva, consequentemente não tem que pertencer a nenhum objecto de um juízo de gosto totalmente puro, mas ao de um juízo de gosto em parte intelectualizado (die Schönheit, zu welcher ein

Ideal gesucht werden soll, keine vage, sondern durch einen Begriff von

objektiver Zweckmäßigkeit fixierte Schönheit sein, folglich keinem

Objekte eines ganz reinen, sondern dem eines zum Teil intellektuierten

Geschmacksurteils angehören müsse) (Kant, 1998: 124),

isto é, «seja em que espécie de fundamentos do julgamento um ideal deve ocorrer, aí tem que se encontrar alguma ideia da razão segundo conceitos determinados, que determina a priori o fim sobre o qual a possibilidade interna do objecto repousa (muss irgend eine Idee der Vernunft nach

bestimmten Begriffen zum Grunde liegen, die a priori den Zweck bestimmt,

worauf die innere Möglichkeit des Gegenstandes beruht)» (Kant, 1998: 124). No entanto, precisamente pelas mesmas razões, «[u]m ideal de flores belas, de um mobiliário belo, de um belo panorama não pode ser pensado» e

118 Logo depois de assinalar isso mesmo, Kant afirma que o referido ideal «não repousa sobre conceitos (nicht auf Begriffen beruht)» (Kant, 1998: 123).

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tão pouco se pode representar o ideal de uma beleza aderente a fins determinados, por exemplo de uma bela residência, de uma bela árvore, de um belo jardim, etc.; presumivelmente porque os fins não são suficientemente determinados e fixados pelo seu conceito, consequentemente a conformidade a fins é quase tão livre como na beleza vaga (Kant, 1998: 124).

Assim, «pelas razões já apresentadas», como nota Kant, «o ideal (…) se pode esperar unicamente na figura humana» (Kant, 1998: 127).

Pois bem, de acordo com as palavras do nosso autor, na figura humana «o ideal consiste na expressão do moral, sem o qual o objecto não aprazeria universalmente e além disso positivamente (não apenas negativamente numa apresentação academicamente correcta)» (Kant, 1998: 127). Assim, «a ideia da razão (…) faz dos fins da humanidade, na medida em que não podem ser representados sensivelmente, o princípio do julgamento da sua figura, através da qual aqueles se revelam como sem efeito no fenómeno» (Kant, 1998: 124-125). Isto significa, no entanto, que «o julgamento segundo um tal padrão de medida jamais pode ser puramente estético e o julgamento segundo um ideal da beleza não é nenhum simples juízo de gosto (die Beurteilung nach einem solchen

Maßstabe niemals rein ästhetisch sein könne, und die Beurteilung nach

einem Ideale der Schönheit kein bloßes Urteil des Geschmacks sei)» (Kant, 1998: 127). Acontece que, tal como Kant afirma numa fase ainda inicial do §17, é segundo esse ideal que aquele que ajuíza «tem que ajuizar tudo o que é objecto do gosto, o que é exemplo do julgamento pelo gosto e mesmo o gosto de qualquer um (er alles, was Objekt des Geschmacks,

was Beispiel der Beurteilung durch Geschmack sei, und selbst den

Geschmacks von jedermann beurteilen muss)» (Kant, 1998: 123). Logo, aquele que ajuíza segundo esse ideal não profere um juízo de gosto puro – por outras palavras: aquele que ajuíza segundo o ideal do gosto não ajuíza através de um juízo de gosto.

2.6. Não pode falar-se de bela arte

Tanto no caso do chamado juízo de gosto aplicado, como no do chamado juízo estético logicamente condicionado ou do juízo de gosto

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em parte intelectualizado, então, há uma dependência do juízo em relação a um conceito de fim. Esses juízos não são juízos livres; são juízos condicionados pelo referido conceito – são os juízos condicionados através dos quais se declara que um objecto é belo, são os juízos através dos quais se declara condicionadamente que um objecto é belo, são os juízos através dos quais se declara que um objecto é condicionadamente belo. Os chamados juízo de gosto aplicado, juízo estético logicamente condicionado ou juízo de gosto em parte intelectualizado não são, nem podem ser, juízos de gosto – não é, nem pode ser, através de um juízo de gosto aplicado, de um juízo estético logicamente condicionado ou de um juízo de gosto em parte intelectualizado que se declara belo um objecto.

Temos vindo a mostrar que não se pode admitir que o juízo de gosto aplicado, o juízo estético logicamente condicionado ou o juízo de gosto em parte intelectualizado sejam juízos de gosto – de acordo com a descrição que Kant dá de juízo de gosto, por um lado, e de juízo de gosto aplicado, de juízo estético logicamente condicionado ou de juízo de gosto em parte intelectualizado, por outro – ou a beleza aderente ou fixada uma espécie de beleza – igualmente considerando a descrição que o nosso autor dá de beleza, por um lado, e de beleza aderente ou fixada, por outro. Mostrámos, por conseguinte, que a divisão entre beleza livre e beleza aderente ou fixada não serve para sustentar uma resposta afirmativa à questão de saber se pode falar-se de bela arte, isto é, à questão de saber se um objecto artístico pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, se um objecto artístico pode ser declarado belo. Pois bem, considerando que, quando quer ajuizar-se acerca da beleza de uma obra de arte, surge um conflito entre a independência do juízo de gosto e da beleza relativamente ao conceito de perfeição e a dependência do julgamento da beleza da arte em relação a esse conceito, somos obrigados a manter a conclusão a que tínhamos chegado antes de referirmos a divisão feita por Kant no §16. Repetiremos, assim, que uma obra de arte não pode ser ajuizada através de um juízo de gosto, que uma obra de arte não pode ser declarada bela,

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que não é legítimo falar-se de bela arte.119 Considerando que os critérios da chamada beleza aderente ou fixada entram em contradição com os critérios da beleza, considerando que as propriedades do chamado juízo de gosto aplicado, ou do chamado juízo estético logicamente condicionado, ou do chamado juízo de gosto em parte intelectualizado, são insuficientes para que possa responder-se afirmativamente à questão de saber se é legítimo falar-se de bela arte, isto é, à questão de saber se é legitimo falar-se de objectos artísticos belos, de saber se uma obra de arte pode ser ajuizada através de um juízo de gosto, de saber se uma obra de arte pode ser declarada bela, então, somos obrigados a manter aquilo que dissemos no início desta secção, ainda antes, portanto, da introdução das noções de beleza

aderente, beleza fixada, juízo de gosto aplicado, juízo estético

logicamente condicionado e juízo de gosto em parte intelectualizado, a saber, que não pode ajuizar-se acerca da eventual beleza de uma obra de arte através de um juízo de gosto – por outras palavras: que uma obra de arte não pode ser declarada bela, que não é legítimo falar-se de bela arte.

Afirmar o contrário teria como consequências admitir uma espécie de beleza (a beleza aderente ou fixada) cujos critérios entram em contradição com os critérios da beleza, admitir uma espécie de juízo de gosto (o juízo de gosto aplicado, o juízo estético logicamente condicionado ou o juízo de gosto em parte intelectualizado) cujas

119 Esta é a maneira mais simples de responder à questão. Se, porém, quisermos responder-lhe utilizando as distinções estabelecidas por Kant entre, respectivamente, beleza livre e beleza aderente ou fixada e puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado, juízo estético logicamente condicionado ou juízo de gosto em parte intelectualizado, nesse caso diremos o seguinte: se por bela arte se entende uma arte cuja beleza é declarada livremente, isto é, através de um puro juízo de gosto, então, não pode falar-se de bela arte. Só condicionadamente, portanto através de um juízo de gosto aplicado, de um juízo estético logicamente condicionado ou de um juízo de gosto em parte intelectualizado, poderia declarar-se belo um objecto artístico – nesse caso a obra de arte seria condicionadamente bela. Tal, porém, significaria confundir o juízo de gosto com um juízo acerca da perfeição.

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propriedades entram em contradição com as propriedades do juízo de gosto, confundir uma espécie de beleza com uma conformidade a fins objectiva e confundir uma espécie de juízo de gosto com um juízo acerca da perfeição. Isso não significaria abdicar da especificidade da faculdade de juízo enquanto faculdade superior. Tendo em conta o que vimos até agora, significaria, no entanto, uma limitação da sua aplicação enquanto tal unicamente a objectos da natureza – e, mesmo entre os objectos da natureza, talvez apenas a alguns – e, portanto, uma limitação da beleza (beleza livre) e do juízo de gosto (puro juízo de gosto) a alguns objectos naturais. Poder-se-ia ajuizar como belo um dado objecto da natureza se, nesse juízo, se ignorasse ou abstraísse de qualquer conformidade a fins objectiva, isto é, de qualquer concordância entre o objecto e um conceito daquilo que ele deva ser. O mesmo não poderia fazer-se relativamente a um objecto artístico, pois, por definição, na causa de um objecto artístico é pressuposto um fim e, além disso, no juízo através do qual esse objecto é declarado belo tem de considerar-se a sua conformidade ao referido fim.

***

Vários comentadores da Crítica da Faculdade do Juízo reconhecem a dificuldade causada pela passagem, do §48, de acordo com a qual «se (…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser» e «no julgamento da beleza da arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa» (Kant, 1998: 216). Paul Guyer, por exemplo, admite que, a ser assumida, sem mais, esta passagem «implicaria que apenas a beleza natural, e não a artística, poderia ser um adequado objecto de gosto» (Guyer, 1997: 214); Salim Kemal propõe que um objecto não pode ser simultaneamente considerado belo e artístico (cf. Kemal, 1986: 36);

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Henry E. Allison considera-a um «problema central», na medida em que «o requisito segundo o qual a avaliação da beleza artística pressupõe um conceito do tipo de coisa que a obra é suposta ser (…) parece, segundo os critérios do §16, tornar aderente toda a beleza artística (ou pelo menos os juízos a ela concernentes)» (Allison, 2001: 296). A propósito da distinção entre beleza artística e juízos a ela concernentes, é de referir a visão de Donald W. Crawford acerca do assunto. Crawford assume que a distinção entre beleza livre e beleza aderente é uma distinção concernente não aos objectos, mas àquilo que se considera no juízo acerca dos objectos (cf. Crawford, 1974: 114-116). A partir dessa assunção, ele sugere ser sempre possível «abstrair de qualquer conceito de um propósito que determine a forma daquilo que estamos a considerar» (Crawford, 1974: 116). No entanto, várias são as passagens do texto de Kant a indicar que nem sempre é possível proceder a uma tal abstracção. Uma dessas passagens é precisamente a passagem, do §48, que temos vindo a apresentar como causa do problema que nos propusemos abordar. Logo, a perspectiva apresentada por Crawford não contribui especialmente para a resolução desse problema. Embora remetendo para o §45, também a perspectiva de Fiona Hughes assenta na possibilidade de abstracção. No entender da intérprete, o simples facto de a bela arte ter de ser vista como se fosse natural e, por conseguinte, a necessidade de se abstrair de quaisquer fins envolvidos na produção de uma bela obra de arte, tal torna «desnecessária» a conclusão de acordo com a qual «a beleza artística não pode qualificar-se para o gosto, mas unicamente para a beleza aderente» (Hughes, 2010: 121). Hughes parece esquecer o que é afirmado no §48. Precisamente porque no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte tem de ser considerado um conceito daquilo que o objecto deva ser, nesse juízo não pode abstrair-se desse conceito.120 H. W. Cassirer não ignora essa exigência. No entanto,

120 Ainda assim, não deixa de ser de destacar a separação que, na passagem supracitada, Hughes estabelece entre gosto, por um lado, e beleza aderente, por outro.

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apesar de considerá-la «surpreendente», pois a Crítica da Faculdade

do Juízo sempre nos informou «que os nossos juízos acerca da beleza de modo nenhum pressupõem um conceito definido do objecto (fim) e que a beleza é uma qualidade que é fundamentalmente diferente da perfeição», Cassirer considera o problema por ela levantado «fácil de resolver» (Cassirer, 1970: 277). O comentador não o resolve, porém. Ele limita-se a afirmar que «em comparação com os nossos juízos sobre objectos naturais belos, os nossos juízos acerca de produtos de arte belos pressupõem a Ideia de um fim» e que «isso não altera o facto de que mesmo no caso dos produtos artísticos belos o fim envolvido não é um fim objectivo definido e de que o conceito não é um conceito definido», acrescentando, logo a seguir, que «[o] princípio que subjaz todos os nossos juízos acerca da beleza é o princípio da conformidade a fins subjectiva, ou conformidade a fins sem fim» (Cassirer, 1970: 277). Uma possível explicação para a perspectiva de Cassirer assentará na sua opção por não abordar, entre outros, os §15-§17, inserindo-os no grupo dos parágrafos que não estão imediatamente ligados às questões principais da terceira Crítica (cf. Cassirer, 1970: vii). Particularmente centrada no §16, Eva Schaper, chamando a atenção para um uso opaco e ambivalente da noção de representação, contribui sobremaneira para a elaboração de uma resposta consistente à questão de saber se pode falar-se de bela arte. Ainda assim, ela não parece colocar essa questão. Schaper parece simplesmente aceitar que pode falar-se de beleza artística.121 Schaper está mais interessada em contrariar a visão segundo a qual «a arte não-representativa, no sentido moderno de arte abstracta, providencia o paradigma para os puros juízos de gosto» e segundo a qual «a arte que retrata ou descreve é, simplesmente por essa razão, material meramente para avaliações

121 Numa abordagem que faz do §42, a comentadora refere mesmo que «o puro juízo de gosto (…) é agora explicitamente estendido para incluir a resposta à beleza na arte» (Schaper, 2007: 388); mais à frente, ela acrescenta que a beleza dos produtos do génio «pode ser ajuizada como puramente formal em puros juízos de gosto» (Schaper, 2007: 392).

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estéticas impuras», por outras palavras, em contrariar a perspectiva de acordo com a qual há uma «primazia da arte não-representativa sobre a arte representativa» (Schaper, 2003: 117).122 Finalmente, Hans-Georg Gadamer afirma que «o conceito de gosto perde o seu significado se o fenómeno da arte passar para primeiro plano» (Gadamer, 2006: 49).

122 Para tal, a intérprete aborda a questão de saber se «os fundamentos para a distinção entre duas espécies de beleza são os mesmos para a natureza e para a arte» (Schaper, 2003: 102), isto é, «se Kant pretende dar as mesmas razões ou aplicar os mesmos critérios para a atribuição da beleza pura a objectos naturais e a objectos feitos pelo homem» (Schaper, 2003: 105). Mas ela não estabelece qualquer relação entre a sua abordagem e o que é escrito no §48 da Crítica da Faculdade do Juízo.

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Capítulo III: Bela Arte

1. BELAS OBRAS DE ARTE

1.1. Obras de arte livremente declaradas belas

A questão que conduz a nossa investigação é a de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Queremos averiguar se e sob que condições será legítimo usar-se a expressão bela arte no âmbito da terceira Crítica de Kant. Poderá uma obra de arte ser ajuizada através de um juízo de gosto? Poderá um objecto artístico ser declarado belo? Os argumentos que apresentámos contra a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela, os argumentos que apresentámos contra a possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto, por outras palavras, os argumentos que

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apresentámos a favor da impossibilidade de falar-se de bela arte, tais argumentos não devem levar-nos a ignorar três factos do texto de Kant.

Em primeiro lugar, há que assinalar que a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” da Crítica da Faculdade de Juízo vive entre a limitação de uma obra de arte ser declarada bela através de um juízo de gosto aplicado, de um juízo estético logicamente condicionado ou de um juízo de gosto em parte intelectualizado e a possibilidade de essa mesma obra ser declarada bela através de um (puro) juízo de gosto, entre a mera aptidão das obras de arte para a beleza simplesmente aderente ou fixada e a sua eventual aptidão para a beleza (livre), entre a possibilidade e a impossibilidade de obras de arte serem (livremente) declaradas belas, entre a legitimidade e a ilegitimidade de falar-se de bela arte enquanto arte que é (livremente) declarada bela. Em segundo lugar devemos salientar um facto claro: Kant ocupa uma parte significativa do seu texto a falar de bela arte.123 Por si só, estes dois factos não seriam, no entanto, suficientes para que acrescentássemos o que quer que seja ao que dissemos no segundo capítulo da nossa tese – o primeiro porque, embora legítimo, é mais um ponto de vista acerca do texto de Kant do que propriamente um facto; o segundo porque, embora seja um facto claro, poderá significar que, quando fala de bela arte, Kant está a falar tão-somente de uma arte condicionadamente bela, isto é, de obras de arte que só condicionadamente, não livremente, portanto através dos chamados juízos de gosto aplicados, dos chamados juízos estéticos logicamente condicionados ou dos chamados juízos de gosto em parte intelectualizados, não de puros juízos de gosto, são declaradas belas.124 Se efectivamente for esse o caso, então o facto de Kant ocupar uma parte significativa do seu texto a falar de bela arte não contribui minimamente

123 Não elencaremos as ocorrências da expressão bela arte na Crítica da Faculdade do Juízo. Algumas dessas ocorrências foram enunciadas na introdução a esta tese. Citemos apenas o título do §44: «Da bela arte (Von der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 208). 124 Ora, nós temos vindo a sustentar que tais juízos não são juízos de gosto, que a beleza livre não é uma beleza.

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para que se afirme a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela através de um (puro) juízo de gosto, a aptidão das obras de arte para a beleza (livre), a possibilidade de as obras de arte serem (livremente) declaradas belas, a legitimidade de falar-se de bela arte enquanto arte que é (livremente) declarada bela. Se esse for efectivamente o caso, então um objecto artístico não pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, uma obra de arte não pode ser declarada bela, não é legítimo falar-se de bela arte.

Esse poderá não ser o caso, no entanto. Henry E. Allison, por exemplo, considera que «[m]esmo quando passa para a natureza da produção artística e sua relação com o génio (…) Kant continua a orientar-se em direcção ao juízo de gosto» (Allison, 2001: 271). Nesse sentido, em Kant’s

Theory of Taste, o comentador assinala que «a preocupação básica» de Kant «poderá ser descrita como contribuir para a possibilidade de um puro juízo de gosto relativo à bela arte» (Allison, 2001: 271).125 Ainda que a interpretação de Allison possa ser incorrecta e que, ao falar de bela arte, Kant possa remeter apenas para uma arte condicionadamente bela, facto é que Kant menciona objectos artísticos como sendo livremente declarados belos. Fá-lo no §16, ao afirmar, explicitamente, que «os desenhos à la

grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede (die

Zeichnungen à la grecque, das Laubwerk zu Einfassungen oder auf

Papiertapeten)», objectos artísticos, «são belezas livres (sind freie

Schönheiten)» (Kant, 1998: 120). Fá-lo, igualmente, no seguimento dessa afirmação, ao referir «o que na música se denomina fantasias (sem tema),

125 Entretanto, as considerações de Allison a este propósito reaparecem mais à frente na sua obra: do seu ponto de vista, «é precisamente o problema de justificar a possibilidade da produção de uma bela obra de arte» aquilo «que leva Kant de um foco exclusivo na questão do gosto (ou de uma “recepção estética”) a uma preocupação com a produção artística (ou de uma “criação estética”)» (Allison, 2001: 279). Por essa razão, no entender do intérprete, «só à luz desse problema é que podemos compreender a função sistemática da discussão de Kant acerca da bela arte no interior da Crítica da Faculdade do Juízo» (Allison, 2001: 279). Note-se, de resto, que os parágrafos da terceira Crítica directamente concernentes à bela arte se situam na chamada “Dedução dos juízos estéticos puros”.

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e até toda a música sem texto (das, was man in der Musik Phantasieen

(ohne Thema) nennt, ja die ganze Musik ohne Text)», também, esses, objectos artísticos, como exemplos de objectos que «se pode contar como da mesma espécie (man kann das zu derselben Art zählen)» (Kant, 1998: 120). Nestes excertos, do §16, de facto, Kant apresenta exemplos de objectos artísticos que são livremente declarados belos, exemplos de objectos artísticos que são declarados belos através de puros juízos de gosto. É este o terceiro e mais decisivo facto que devemos salientar do texto de Kant. De maneira nenhuma podemos ignorá-lo. A sua aceitação tem como consequência a aceitação de que uma obra de arte pode ser (livremente) declarada bela, a aceitação de que uma obra de arte pode ser declarada bela através de um (puro) juízo de gosto. De outra maneira: a sua aceitação tem como consequência a aceitação de que um objecto artístico pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, de que uma obra de arte pode ser declarada bela, de que é legítimo falar-se de bela arte. Paul Guyer reconhece o seu carácter decisivo. Em Kant and the Claims of

Taste, ele assinala que os próprios exemplos dados por Kant «tornam claro que pelo menos algumas obras de arte podem ser consideradas belezas livres» (Guyer, 1997: 222). Resta-nos descobrir como podem obras de arte ser consideradas belezas livres.

1.2. A noção de bela arte segundo os §44-§46 da Crítica da Faculdade

do Juízo

Embora um tal facto seja de destacar, devemos admitir que no parágrafo a partir do qual ele emerge (§16) nada parece ser dito no sentido da sustentação da possibilidade de um objecto artístico ser livremente declarado belo, e, portanto, no sentido da sustentação da possibilidade de falar-se de bela arte. Pelo contrário, esse é precisamente o parágrafo no qual surgem as noções de beleza aderente e de juízo de gosto aplicado, como já tivemos oportunidade de notar, noções cuja relevância ou mesmo legitimidade temos vindo a recusar. Nos parágrafos anteriores e nos parágrafos que imediatamente se lhe seguem também nada se encontra no sentido da referida sustentação. Efectivamente, só a partir do §44 parecem

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poder ser encontradas informações que sustentem explicitamente a possibilidade de falar-se de bela arte.126

Uma visão direccionada do §44 permite-nos observar não só que, sendo arte estética, a bela arte, por definição, «tem por intenção imediata o sentimento de prazer (hat sie das Gefühl der Lust zur unmittelbaren

Absicht)», como também que o seu fim é não «que o prazer acompanhe as representações enquanto simples sensações (dass die Lust die

Vorstellungen als bloße Empfindungen begleite)», caso da arte agradável, cujo padrão de medida é a sensação sensorial, mas que «o prazer as acompanhe enquanto modos de conhecimento (dass sie dieselben als

Erkenntnisarten begleite)» (Kant, 1998: 209). Para uma obra de arte ser bela, o comprazimento que o sujeito sente por ocasião da sua representação tem de estar ligado a uma disposição reciprocamente harmónica das faculdades da imaginação e do entendimento enquanto condição do conhecimento.127 Entretanto, Kant afirma que a bela arte «é um modo de representação que é por si própria conforme a fins (…) sem fim (ist eine Vorstellungsart, die für sich selbst zweckmäßig ist und (…) ohne Zweck)» (Kant, 1998: 209) e que o seu padrão de medida é «a faculdade de juízo reflexiva (die reflektierende Urteilskraft)» (Kant, 1998: 210).

Será, porém, legítimo falar-se de uma arte cujo padrão de medida é a faculdade de juízo reflexiva? Poderá falar-se de uma arte cuja beleza assenta numa conformidade a fins que é, no entanto, sem fim? Estaremos autorizados a falar de bela arte? É importante recordar que, de acordo com o §48, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte «tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser

126 Não defendemos, com esta afirmação, que, a partir do §44, Kant tem como objectivo a sustentação da possibilidade de falar-se de bela arte. 127 Assim, de acordo com o que Guyer propõe, «uma obra de bela arte é um objecto intencionalmente produzido pela capacidade humana com o objectivo de produzir prazer nos elementos do seu público ocupando as suas faculdades de conhecimento superiores e induzindo um jogo harmónico entre a sua imaginação e o seu entendimento» (Guyer, 1997: 355).

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(muss zuerst ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding

sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht

werden müssen)» (Kant, 1998: 216). Se consideramos essa informação, não devemos deixar ficar a nossa indagação pelo §44, pois o que é afirmado nesse parágrafo não anula nem sequer diminui, por si só, as dificuldades causadas por aquele outro.128

Como título do §45, Kant escreve: «Bela arte é uma arte enquanto ao

mesmo tempo parece ser natureza (Schöne Kunst ist eine Kunst, sofern sie zugleich Natur zu sein scheint)» (Kant, 1998: 210). No caso da beleza da natureza, como já vimos, a representação da conformidade a fins do objecto não envolve um conceito daquilo que esse objecto deva ser. Parecer ser natureza (Natur zu sein scheinen), de acordo com o que nos é dado a entender no §45, significa que a conformidade a fins do produto parece livre, parece não intencional, parece não submetida às «regras segundo as quais unicamente o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser (Regeln, nach denen allein das Produkt das werden kann, was es sein

soll)» (Kant, 1998: 211).129 Assim, no caso da bela arte, esconde-se «a forma escolástica (die Schulform)» e qualquer «vestígio de que a regra tenha pairado diante do artista e tenha algemado as faculdades do ânimo (Spur, dass die Regel dem Künstler vor Augen geschwebt und seinen

Gemütskräften Fesseln angelegt habe)» (Kant, 1998: 211).

128 Neste estádio da nossa investigação, continuamos obrigados a afirmar que não pode declarar-se belo um objecto artístico, que um objecto artístico não pode ser ajuizado através de um juízo de gosto. No entanto, devemos notar desde já que, analisados por relação com os conteúdos de outros parágrafos da Crítica da Faculdade do Juízo, os conteúdos do §44 revelar-se-ão importantes na compreensão das condições de possibilidade de falar-se de bela arte. O mesmo pode ser assinalado relativamente aos conteúdos do §45. 129 Segundo Allison, isso quer dizer que o objecto tem de «comprazer de uma certa maneira, nomeadamente, no simples julgamento ou reflexão independentemente de um conceito», de uma maneira «que preserve a liberdade da imaginação», por outras palavras, que o objecto tem de «ocasionar uma harmonia das faculdades em jogo livre» (Allison, 2001: 276).

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Aquilo que se impõe saber, porém, é se uma tal condição para que a arte seja bela tem, por si só, alguma utilidade para sustentar a hipótese de uma resposta afirmativa à questão acerca da legitimidade da noção de bela

arte. Ao longo do §45, Kant salienta que a beleza da arte depende não apenas de essa arte parecer ser natureza, mas também da consciência de que se trata de arte, de que é arte.130 Se assim é, então nós sabemos que a conformidade a fins do objecto é efectivamente intencional e, de acordo com o §48, que somos obrigados a tê-la em conta no julgamento da beleza do objecto (cf. Kant, 1998: 216). Nesse caso, o movimento das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto será um movimento conforme a fins, mas que, não sendo um movimento livre, não será conforme a fins sem fim. Nem o juízo será um juízo de gosto, nem o objecto poderá ser declarado belo. Assim, na ausência de mais explicações, não pode aceitar-se a afirmação de Kant, de acordo com a qual «quer se trate da beleza da natureza ou da arte, podemos dizer de um modo geral: belo é aquilo que apraz no simples julgamento (não na sensação sensorial nem mediante um conceito) (wir können allgemein

sagen, es mag die Natur- oder die Kunstschönheit betreffen: schön ist das, was in der bloßen Beurteilung (nicht in der Sinnenempfindung, noch durch

einen Begriff) gefällt)» (Kant, 1998: 210). No caso da arte, aquilo a que se chama beleza não parece poder aprazer no simples julgamento. Logo, a isso não pode chamar-se beleza. Não pode declarar-se bela uma obra de arte. A resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte é, então, uma resposta negativa: não pode falar-se de bela arte.

130 Kant repete-o, insistentemente, no mesmo parágrafo: afirma, primeiro, que «[f]ace a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é arte e não natureza ([a]n einem Produkte der schönen Kunst muss man sich bewusst werden, dass es

Kunst sei und nicht Natur)» (Kant, 1998: 210); reitera, depois, que «a arte somente pode ser denominada bela se temos consciência de que ela é arte e que ela apesar disso nos parece ser natureza (die Kunst kann nur schön genannt werden, wenn wir uns

bewusst sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als Natur aussieht)» (Kant, 1998: 210); sublinha, finalmente, que «a bela arte tem que passar por natureza, conquanto na verdade tenhamos consciência dela como arte (schöne Kunst muss als Natur anzusehen sein, ob man sich ihrer zwar als Kunst bewusst ist)» (Kant, 1998: 211).

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No §46, Kant apresenta uma outra condição no sentido da possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto, isto é, no sentido da possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela: essa condição é a de que o juízo usado para declará-la como tal não seja «deduzido de qualquer regra que tenha um conceito como fundamento determinante (von irgend einer Regel abgeleitet werde, die einen Begriff zum Bestimmungsgrunde habe)», portanto que ele não tenha «no fundamento um conceito da maneira como [o produto] é possível (einen

Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege)» (Kant, 1998: 211)131. Nesta fase da nossa investigação, não é difícil compreender que, tal como os excertos que citámos dos §44 e §45, também esta passagem, do §46, parece não se coadunar com o enunciado de acordo com o qual no julgamento da beleza da arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). Assim sendo, poderíamos nada mais dizer além de que não é possível declarar-se belo um objecto artístico, não é possível ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto, não é legítimo falar-se de bela arte. Devemos salientar, no entanto, que o contexto em que ela está inserida é o da introdução, na Crítica da

Faculdade de Juízo, de uma noção cuja explicitação nos levará a repensar precisamente a posição adoptada por Kant no §48.132 Trata-se da noção de génio (Genie), talento para a bela arte. Em nosso entender, a introdução dessa noção, assim como o alargamento das capacidades da faculdade da imaginação enquanto faculdade de conhecimento produtiva (produktives

Erkenntnisvermögen), a recorrência à noção de ideia estética (ästhetische

Idee) como representação inexponível da faculdade da imaginação 131 No entender de S. Körner, esta passagem indica que a perspectiva segundo a qual «não há quaisquer padrões de medida ou critérios conceptuais da beleza quer na arte quer na natureza é absolutamente incompatível com o espírito e mesmo com a letra da filosofia do gosto kantiana» (Körner, 1984: 194) 132 Não anunciamos com esta frase qualquer recusa do que Kant afirma no §48. Limitamo-nos a indicar que, mais à frente, retomaremos as afirmações de Kant nesse parágrafo. De resto, voltaremos igualmente àquilo que o nosso autor escreve nos §15-§16.

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(inexponible Vorstellung der Einbildungskraft) e a denominação da beleza como expressão de ideias estéticas (Ausdruck ästhetischer Ideen), todos esses factores contribuirão para a elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à questão de saber se e como poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto, se e como poderá uma obra de arte ser declarada bela, se e como poderá a beleza da arte ser uma beleza, e, portanto, à questão de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte.

2. GÉNIO, IDEIA ESTÉTICA, EXPRESSÃO DE IDEIAS ESTÉTICAS E REFERÊNCIA DO JUÍZO ATRAVÉS DO QUAL SE DECLARA BELA UMA OBRA DE ARTE AO PRINCÍPIO DA CONFORMIDADE A FINS FORMAL DA NATUREZA

2.1. Génio

Começámos por indicar, no capítulo inaugural da nossa tese, que o juízo através do qual se declara belo um objecto é o juízo de gosto. Ainda na primeira parte desse capítulo, transcrevemos o título do §15: «O juízo de

gosto é totalmente independente do conceito de perfeição (Das Geschmacksurtheil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117). A questão de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte – questão que guia esta nossa investigação – foi suscitada quando se adicionou, às afirmações supracitadas, a tese, do §48, segundo a qual no julgamento da beleza da arte «tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser (muss zuerst ein Begriff von dem zum Grunde gelegt

werden, was das Ding sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges

in Anschlag gebracht werden müssen)» (Kant, 1998: 216). Suspendámo-la provisoriamente. Centremo-nos no primeiro parágrafo directamente concernente à noção de génio (Genie). O §46 afigura-se indispensável para a elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à

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questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte. Fá-lo desde logo por intermédio da frase que o intitula. Ei-la: «Bela arte é arte do génio (Schöne Kunst ist Kunst des Genies)» (Kant, 1998: 211).133 Se, no entender de Kant, bela arte é arte do génio, então, compreender o que é o génio anuncia-se incontornável para compreender a concepção kantiana de bela arte.

No início do §46, Kant assinala que o génio é uma «faculdade produtiva (produktives Vermögen)» (Kant, 1998: 211). Recordemos algo que salientámos no primeiro capítulo da nossa tese: o juízo através do qual se declara belo um objecto não se funda em conceitos. O belo não pode ser determinado mediante conceitos. Se assim é, a regra da bela arte não pode fundar-se num conceito. Ela não pode ser uma regra determinada. Ora, na primeira conclusão que apresenta acerca da noção de génio, precisamente no §46, Kant descreve-o como «um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada (ein Talent sei, dasjenige, wozu sich keine bestimmte Regel geben

hervorzubringen lässt)» (Kant, 1998: 212). O génio é um talento para a produção da beleza, um talento para criar obras de arte belas, um talento, portanto, para a bela arte. Embora apenas gramaticalmente, vemo-lo antecipado no já citado título do §46 (cf. Kant, 1998: 211).134

Ainda no início do §46, Kant assinala que «o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza (das Talent als

angebornes produktives Vermögen des Künstlers selbst zur Natur

gehört)» e que «[g]énio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela

133 Se quisermos ser exactos, diremos que a primeira referência que na “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” é feita à noção de génio ocorre numa nota do §17, acerca do ideal da beleza. Aí, o nosso autor menciona aquilo «que se denomina génio (Genie)» para dizer que, nisso que como tal é designado, «a natureza parece afastar-se das relações normais das faculdades do ânimo em benefício de uma faculdade só» (Kant, 1998: 268). Daremos o devido destaque a essa referência no último capítulo da nossa dissertação. 134 As razões não meramente gramaticais para que a bela arte seja a arte do génio – assim como as consequências que podemos extrair dessa afirmação, e mesmo as condições para o seu proferimento – serão abordadas mais à frente.

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qual a natureza dá a regra à arte ([g]enie ist die angeborne Gemütsanlage

(ingenium), durch welche die Natur der Kunst die Regel gibt)» (Kant, 1998: 211). Algo deve desde já ser ressalvado: estas duas afirmações não significam que os produtos do génio sejam efeitos da natureza, objectos naturais. Kant salvaguarda-o no parágrafo anterior, ao referir, como já notámos, que «[f]ace a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é arte e não natureza ([a]n einem Produkte der

schönen Kunst muss man sich bewusst werden, dass es Kunst sei und nicht

Natur)» (Kant, 1998: 210). No caso das obras de arte do génio, aquilo que dá a regra é a natureza do sujeito: no §46, o nosso autor indica que «a natureza do sujeito (e pela disposição da faculdade do mesmo) tem que dar a regra à arte (muss die Natur im Subjekte (und durch die Stimmung

der Vermögen desselben) der Kunst die Regel geben)» (Kant, 1998: 211-212); no parágrafo seguinte (§47) ele acrescenta que «[a]s ideias do artista provocam ideias semelhantes no aprendiz, se a natureza o proveu com uma proporção semelhante de faculdades do ânimo ([d]ie Ideen des Künstlers

erregen ähnliche Ideen seines Lehrings, wenn ihn die Natur mit einer

ähnlichen Proportion der Gemütskräfte versehen hat)» (Kant, 1998: 214).135 É no concernente a essa proporção que aquele que é dotado de génio é um preferido pela natureza.136 135 Ainda nos §46 e §47, Kant nota, respectivamente, que é «como natureza (als Natur)» que o génio «fornece a regra (die Regel gebe)» (Kant, 1998: 212) e que «o dom natural tem de dar a regra à arte (enquanto bela arte) (die Naturgabe der Kunst (als schönen Kunst) die Regel geben muss)» (Kant, 1998: 214). Na medida em que essas indicações nada ostentam no que diz respeito a uma proporção especial das faculdades do ânimo, elas não são por nós consideradas tão relevantes quanto as outras que citámos. Mesmo assim, elas ajudam a compreender que aquele que é dotado de génio dá a regra à bela arte através da sua natureza, genial. 136 No §47, Kant adjectiva de «preferidos pela natureza (Günstlinge der Natur) relativamente ao seu talento para a arte bela» (Kant, 1998: 213) os homens dotados de génio, isto é, «[a]queles que merecem a honra de chamar-se génios» (Kant, 1998: 214). Mais à frente, no olhar retrospectivo que lança sobre a explicação desse talento, afirma que «o génio é um favorito da natureza, que somente se pode considerar como aparição rara (ein Günstling der Natur ist, dergleichen man nur als seltene

Erscheinung anzusehen hat)» (Kant, 1998: 224). A proporção das faculdades provida aos génios é, então, algo raro. Ela não corresponde à proporção «requerida para o

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Embora aquele que é dotado de génio tenha consciência de que possui um dom natural, ele não tem, no entanto, qualquer noção de como surge nele a disposição das faculdades que lhe permite criar obras de arte belas ou de como se encontra nele, pelo menos nos termos em que se encontra, aquilo através do qual ele realiza essas obras.137 Não tendo ele qualquer explicação para isso, não pode ensinar a outros como podem eles chegar a essa disposição do ânimo e, portanto, não pode prescrever-lhes, metodicamente, o modo como poderão produzir belas obras de arte.138 gosto (zum Geschmack erfordert wird)», referida por Kant no §39, e que «também é exigida para o são e comum entendimento que se pode pressupor em qualquer (auch

zum gemeinen und gesunden Verstande erforderlich ist, den man bei jedermann voraussetzen darf)» (Kant, 1998: 195). De resto, no §17, Kant afirma que «se nenhuma das disposições do ânimo é saliente sobre aquela proporção que é requerida para constituir simplesmente um homem livre de defeitos, nada se pode esperar daquilo que se denomina génio (wenn keine von den Gemütsanlagen über diejenige

Proportion hervorstechend ist, die erfordert wird, bloß einen fehlerfreien Menschen auszumachen, nichts von dem, was man Genie nennt, erwartet werden darf)» (Kant, 1998: 267-268). Entretanto, o nosso autor reforça essa tese no §49, nomeadamente ao assinalar que a reunião das faculdades da imaginação e do entendimento constitui o génio somente «em certas relações (in gewissem Verhältnisse)» (Kant, 1998: 222). 137 Veja-se a terceira conclusão acerca do génio que é apresentada no §46, a saber, que «o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos (der Urheber eines Produkts, welches er seinem

Genie verdankt, selbst nicht weiß, wie sich in ihm die Ideen dazu herbei finden, auch

es nicht in seiner Gewalt hat, dergleichen nach Belieben oder planmäßig auszudenken und anderen in solchen Vorschriften mitzutheilen, die sie in Stand setzen,

gleichmäßige Produkte hervorzubringen)» (Kant, 1998: 212). De resto, terá sido essa a razão, no entender de Kant, por que «presumivelmente a palavra génio foi derivada de genius, o espírito peculiar, protector e guia, dado conjuntamente a um homem por ocasião do nascimento, e de cuja inspiração aquelas ideias originais procedem (von dessen Eingebung jene originale Ideen herrührten)» (Kant, 1998: 212). Essas ideias originais são as ideias estéticas, às quais daremos o devido destaque na subsecção seguinte. 138 A esse propósito, é de citar não apenas o início da conclusão mencionada na nota anterior, a saber, «o génio (…) ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto (es, wie es sein Produkt zu Stande bringe,

selbst nicht beschreiben, oder wissenschaftlich anzeigen könne)» (Kant, 1998: 212), mas também a referência que, no parágrafo seguinte, Kant faz a dois génios, ou,

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Pelas mesmas razões – repitamo-lo, mas de um outro ponto de vista – não é possível aprender a criar objectos assim.139 A originalidade (die

Originalität) do génio, assim como o facto de aquele que o possui não saber como surge nele a disposição das faculdades que lhe permite criar obras de arte belas ou como se encontra nele, nos termos em que se encontra, aquilo através do qual ele realiza tais obras, esses dois aspectos não implicam, porém, que as obras de génio não possam servir de produtos exemplares (exemplarisch) e, aliás, de padrão de medida (Richtmaße) ou regra de julgamento (Regel der Beurteilung) para aqueles que as acolhem (cf. Kant, 1998: 212). Analisaremos essa possibilidade em momento oportuno. Manter-nos-emos, por ora, no âmbito da originalidade daquele que é dotado de génio. Feita uma introdução do génio enquanto talento para a bela arte, daremos destaque a dois outros factores que, no fim da secção anterior, mencionámos como relevantes para a construção de uma resposta adequada à questão de saber se e como poderá falar-se de bela

melhor, a dois homens com génio: «nenhum Homero ou Wieland pode indicar como as suas ideias imaginosas, e contudo ao mesmo tempo cheias de pensamento, surgem e se reunem na sua cabeça, porque ele mesmo não o sabe e portanto também não o pode ensinar a nenhum outro (kein Homer oder Wieland anzeigen kann, wie sich seine

phantasiereichen und doch zugleich gedankenvollen Ideen in seinem Kopfe hervor

und zusammen finden, darum weil er es selbst nicht weiß und es also auch keinen andern lehren kann)» (Kant, 1998: 213). Notemos, de resto, que a regra da bela arte «não pode ser surpreendida numa fórmula e servir como preceito; pois de contrário o juízo sobre o belo seria determinável segundo conceitos (kann in keiner Formel abgefasst zur Vorschrift dienen; denn sonst würde das Urteil über das Schöne nach

Begriffen bestimmbar sein)» (Kant, 1998: 214), que o génio «é um talento para a arte, não para a ciência, a qual tem que ser precedida por regras claramente conhecidas que têm que determinar o seu procedimento (ein Talent zur Kunst sei, nicht zur

Wissenschaft, in welcher deutlich gekannte Regeln vorangehen und das Verfahren in derselben bestimmen müssen)» (Kant, 1998: 223) e que a bela arte (arte do génio) não é «um produto do entendimento e da ciência (ein Produkt des Verstandes und der

Wissenschaft)» (Kant, 1998: 260). 139 Por exemplo, «não se pode aprender a escrever com engenho, por mais minuciosos que possam ser todos os preceitos da arte poética e por mais excelentes que possam ser os meus modelos (man kann nicht geistreich dichten lernen, so ausführlich auch

alle Vorschriften für die Dichtkunst und so vortrefflich auch die Muster derselben sein

mögen)» (Kant, 1998: 213).

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arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. São eles o alargamento das capacidades da faculdade da imaginação enquanto faculdade de

conhecimento produtiva e a recorrência à noção de ideia estética como representação inexponível da faculdade da imaginação.

2.2. Ideia estética

Na primeira observação que se segue ao §57, Kant refere que «podemos explicar o génio também pela faculdade de ideias estéticas, com o que é ao mesmo tempo indicada a razão pela qual, em produtos do génio, a natureza (do sujeito) e não um fim reflectido dá a regra à arte (à produção do belo) ([m]an kann diesem zufolge Genie auch durch das Vermögen

ästhetischer Ideen erklären: wodurch zugleich der Grund angezeigt wird,

warum in Produkten des Genies die Natur (des Subjekts), nicht ein

überlegter Zweck der Kunst (der Hervorbringung des Schönen) die Regel

gibt)» (Kant, 1998: 251-252). Não nos preocupemos em mostrar desde já o estatuto de uma tal explicação do génio como, ela própria, explicação para que a criação de belas obras de arte seja regrada pela natureza do sujeito. Por ora, registemos apenas que o génio pode ser explicado pela faculdade de ideias estéticas.

As principais referências à noção de ideia estética são feitas por Kant no §49 e na mencionada primeira observação que se segue ao §57.140 Qualquer dessas referências nos indica que as ideias estéticas não são

140 Tal como acontece no que concerne à noção de génio, também a primeira ocorrência da noção de ideia estética na “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” se dá no §17, acerca do ideal da beleza. Aí, porém, estava em causa «a ideia normal estética (die ästhetische Normalidee)» (Kant, 1998: 124). A ideia normal estética é «uma intuição singular (da faculdade da imaginação), que representa o padrão de medida do [julgamento de uma coisa] como de uma coisa pertencente a uma espécie» (Kant, 1998: 124), é «a regra», é «somente a forma, que constitui a condição imprescindível de toda a beleza, por conseguinte simplesmente a correcção na exposição da espécie» (Kant, 1998: 126). Como tal, ela «não pode conter nada especificamente característico; pois de contrário não seria ideia normal para a espécie» (Kant, 1998: 126). Não é a esse tipo de ideia estética que o nosso autor faz referência no §49 e na primeira observação que se segue ao §57.

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intuições como quaisquer outras – as ideias estéticas são representações inexponíveis da faculdade da imaginação.141 É precisamente por o serem que tais ideias não podem tornar-se conhecimento. As ideias da razão não podem tornar-se conhecimento porque os seus conceitos – ou melhor, elas próprias: ideias da razão, conceitos da razão – são conceitos transcendentes, conceitos a que nenhuma intuição pode corresponder adequadamente, e, portanto, conceitos de realidade objectiva não provável (indemonstrável) no âmbito do conhecimento teórico, conceitos indemonstráveis da razão (cf. Kant, 1998: 249-250). A impossibilidade de as ideias estéticas se tornarem conhecimento prende-se, diferentemente, com o facto de essas intuições internas da faculdade da imaginação não serem adequadamente alcançáveis através de conceitos do entendimento, isto é, com o facto de nenhum conceito do entendimento ser ou poder ser-lhes inteiramente adequado.142 A ideia estética dá muito que pensar – dá 141 Kant utiliza mais do que uma vez a mesma denominação. Veja-se a primeira observação que se segue à resolução da antinomia do gosto, observação na qual o nosso autor diz crer «que se pode denominar a ideia estética uma representação inexponível da faculdade da imaginação (eine inexponible Vorstellung der

Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 250) e acrescenta que «visto que conduzir a conceitos uma representação da faculdade da imaginação equivale a expô-los, assim a ideia pode denominar-se uma representação inexponível da mesma (em seu jogo livre) (eine inexponible Vorstellung derselben (in ihrem freien Spiele))» (Kant, 1998: 251). 142 A inadequabilidade essencial entre as ideias estéticas e os conceitos do entendimento também é repetidamente referida por Kant. Atente-se, nesse sentido, ao que ele afirma no §49, a saber, que «[t]ais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se ideias (…) principalmente, porque nenhum conceito lhes pode ser plenamente adequado enquanto intuições internas (ihnen als innern Anschauungen kein Begriff völlig adäquat sein kann)» (Kant, 1998: 219-220), e, igualmente, à primeira observação que se segue ao §57, na qual Kant assinala que «[u]ma ideia

estética não pode tornar-se um conhecimento porque ela é uma intuição (da faculdade da imaginação), para a qual jamais pode encontrar-se adequadamente um conceito (eine Anschauung (der Einbildungskraft) ist, der niemals ein Begriff adäquat

gefunden werden kann)» (Kant, 1998: 249-250) e que «numa ideia estética o entendimento jamais alcança através dos seus conceitos a inteira intuição interna da faculdade da imaginação, que ela liga a uma representação dada (erreicht bei einer ästhetischen Idee der Verstand durch seine Begriffe nie die ganze innere Anschauung

der Einbildungskraft, welche sie mit einer gegenenen Vorstellung verbindet)» (Kant, 1998: 251).

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tanto que pensar que, como é referido no §49, «nenhuma linguagem [a] alcança inteiramente nem [a] pode tornar compreensível (keine Sprache

völlig erreicht und verständlich machen kann)» (Kant, 1998: 219), dá tanto que pensar que «jamais deixa compreender-se num conceito determinado (sich niemals in einem bestimmten Begriff zusammenfassen

lässt)» (Kant, 1998: 220). Não obstante o génio poder ser explicado pela faculdade de ideias

estéticas, a faculdade responsável pela produção de tais ideias é, ressalve-se, a faculdade da imaginação.143 A faculdade da imaginação produ-las «enquanto faculdade de conhecimento produtiva (als produktives

Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 219). Na bela arte, em vez de proceder-se a uma apresentação lógica de um conceito, o que se faz, de acordo com as palavras do §49, é ligar à «representação da faculdade da imaginação associada a um conceito dado (eine einem gegebenen Begriffe

beigesellte Vorstellung der Einbildungskraft)» uma «multiplicidade de representações parciais no uso livre das mesmas (eine Mannigfaltigkeit

der Teilvorstellungen in dem freien Gebrauche derselben)», naquilo que constitui um insuflar de «espírito à linguagem enquanto simples letra (Geist mit der Sprache, als bloßem Buchstaben)» (Kant, 1998: 222). Um tal procedimento depende da recorrência aos atributos estéticos dos objectos.144 É através da recorrência a esses atributos que a imaginação se

143 Como nota Lambert Zuidervaart, «[a] fonte mais precisa de ideias estéticas é não o génio, no entanto, mas a imaginação criativa» (Zuidervaart, 2003: 200). 144 Segundo Kant, os atributos estéticos (ästhetiche Attribute) são «[a]quelas formas que não constituem a apresentação de um dado conceito, ele mesmo, mas somente expressam, enquanto representações secundárias da faculdade da imaginação, as consequências conectadas com elas e o parentesco do conceito com outros (diejenigen Formen, welche nicht die Darstellung eines gegebenen Begriffs selber ausmachen,

sondern nur als Nebenvorstellungen der Einbildungskraft die damit verknüpften

Folgen und die Verwandtschaft desselben mit andern ausdrücken)» (Kant, 1998: 220). Exemplos de atributos estéticos dados por Kant são «a águia de Júpiter com o relâmpago nas garras» (Kant, 1998: 220) ou «o pavão da esplêndida rainha do céu» (Kant, 1998: 220-221). Os conceitos em causa são os «da sublimidade e majestade da criação» (Kant, 1998: 221). As ideias estéticas são Júpiter, o «poderoso rei do céu» (Kant, 1998: 220), e Juno, a «esplêndida rainha do céu» (Kant, 1998: 220-221).

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exerce como faculdade de conhecimento produtiva e se permite «alastrar-se por um grande número de representações afins, que permitem pensar mais do que se pode expressar num conceito determinado por palavras (sich über eine Menge von verwandten Vorstellungen zu verbreiten, die

mehr denken lassen, als man in einem durch Worte bestimmten Begriff

ausdrücken kann)» (Kant, 1998: 221). Ora, sendo essas representações que fornecem a ideia estética (cf. Kant, 1998: 221), assim, uma tal ideia «amplia esteticamente o próprio conceito de maneira ilimitada (den

Begriff selbst auf unbegränzte Art ästhetisch erweitert)» (Kant, 1998: 220), abre o ânimo à «perspectiva de um campo incalculável de representações afins (die Aussicht in ein unabsehliches Feld verwandter

Vorstellungen)» (Kant, 1998: 221) e «permite pensar [desse] conceito muita coisa inexprimível, cujo sentimento vivifica as faculdades de conhecimento (zu einem Begriffe viel Unnennbares hinzu denken lässt,

dessen Gefühl die Erkenntnisvermögen belebt)» (Kant, 1998: 222). A descrição que acabámos de dar da maneira como se procede na bela

arte, nomeadamente a explicitação do exercício produtivo da faculdade da imaginação, não pode ser aceite sem que regressemos à Crítica da Razão

Pura. Tendo em conta o modo como a faculdade da imaginação é descrita nesse texto, não podemos deixar de perguntar como pode ela exercer-se produtivamente no sentido que a Crítica da Faculdade do Juízo dá a esse exercício, isto é, como pode a faculdade da imaginação produzir ideias para um conceito dado que, no entanto, vão além desse conceito. Para responder a essa questão, é indispensável notar ser incorrecta a identificação do uso do predicado produtiva (productiv) na Crítica da

Razão Pura e na Crítica da Faculdade do Juízo. Na primeira Crítica, a faculdade da imaginação é tomada como produtiva – ou produtora – na medida em que a sua síntese é um exercício da espontaneidade, enquanto sintetiza a priori, e, portanto, enquanto a sua síntese serve de fundamento à possibilidade da experiência (cf. Kant, 2001: 152, 160 e 165). É como tal que, na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant a designa por «faculdade transcendental da imaginação (transzendentale Vermögen der

Einbildungskraft)» (Kant, 2001: 141). Há, nesse contexto, salvaguarde-se,

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uma dependência da faculdade da imaginação em relação ao entendimento: a sua síntese, síntese transcendental «que é um efeito do entendimento sobre a sensibilidade e que é a primeira aplicação do entendimento (e simultaneamente o fundamento de todas as restantes) a objectos da intuição possível para nós (welches eine Wirkung des

Verstandes auf die Sinnlichkeit und die erste Anwendung desselben

(zugleich der Grund aller übrigen) auf Gegenstände der uns möglichen

Anschauung ist)», está, como o nosso autor salienta, na segunda edição, «de conformidade com as categorias (den Kategorien gemäß)» (Kant, 2001: 152).

Acontece, porém, que, apesar de, no plano do conhecimento objectivo, a faculdade da imaginação estar submetida ao entendimento, o conhecimento objectivo não esgota todas as capacidades da nossa mente. Na Crítica da Faculdade do Juízo, a faculdade da imaginação é tida como produtiva não (tanto) enquanto poder de sintetizar a priori, mas enquanto capaz de produzir intuições não subsumíveis em conceitos do entendimento. Embora para um conhecimento objectivo as representações da faculdade da imaginação sejam subsumidas em conceitos do entendimento, nem tudo se limita ao conhecimento objectivo e, portanto, nem todas as representações dessa faculdade são subsumidas em conceitos do entendimento. A parte final do §49 é particularmente clara quanto a esse ponto: enquanto «no seu uso para o conhecimento a faculdade da imaginação está submetida à coerção do entendimento e à limitação de ser adequada ao conceito do mesmo (im

Gebrauch der Einbildungskraft zum Erkenntnisse die Einbildungskraft

unter dem Zwange des Verstandes und der Beschränkung unterworfen

ist, dem Begriffe desselben angemessen zu sein)», de um outro ponto de vista, concretamente «do ponto de vista estético (in ästhetischer

Absicht)», ela «é livre para fornecer, além daquela concordância com o conceito, ainda espontaneamente, uma matéria rica e não elaborada para o entendimento (frei ist, um noch über jene Einstimmung zum Begriffe,

doch ungesucht reichhaltigen unentwickelten Stoff für den Verstand zu

liefern)» (Kant, 1998: 222). Essa matéria rica e não elaborada é feita das

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ideias estéticas. Ora, é através de um tal material que a faculdade da imaginação, depois de tomar «emprestada da natureza a matéria (von der

Natur Stoff geliehen)», se exerce «enquanto faculdade de conhecimento produtiva (als produktives Erkenntnisvermögen)» e assim mostra ser «mesmo muito poderosa na criação como que de uma outra natureza a partir da matéria que a natureza efectiva lhe dá (nämlich sehr mächtig in

Schaffung gleichsam einer andern Natur aus dem Stoffe, den ihr die

wirkliche gibt)» (Kant, 1998: 219).145 Quanto ao entendimento, apesar de meramente através dos seus conceitos não poder abarcar uma tal matéria (as ideias estéticas) ele não deixa de empregá-la, embora «não tanto objectivamente para o conhecimento, mas mais subjectivamente para a vivificação das faculdades de conhecimento, indirectamente portanto também para conhecimentos (nicht sowohl objektiv zum Erkenntnisse, als

subjektiv zur Belebung der Erkenntniskräfte, indirekt also doch auch zu

Erkenntnissen)» (Kant, 1998: 222). Assim, mesmo sendo em vão que tenta, através dos seus conceitos determinados, compreender as intuições internas que a faculdade da imaginação fornece enquanto produtiva, o entendimento colabora para a vivificação do ânimo.146

145 Rudolf A. Makkreel caracteriza a faculdade da imaginação da primeira e terceira Críticas, respectivamente, como «faculdade de produzir e reproduzir representações (Vorstellungen)» e como «faculdade de criar apresentações (Darstellungen)» (Makkreel, 1994: 128). Note-se, no entanto, que a faculdade da imaginação não cria ex nihilo. Tal como assinala o intérprete, «[a] criação envolvida nas ideias estéticas não é uma Urbildung, ou formação original, mas uma espécie de Umbildung, ou processo remodelador. Mediante a criação de outra natureza pela imaginação, nós “remodelamos” a experiência de acordo com leis analógicas e os princípios superiores da razão. No processo de remodelação, a imaginação é libertada da lei da associação de maneira que a matéria que nos é dada pela natureza segundo essa lei “pode ser reelaborada por nós para algo diverso (…) que ultrapassa a natureza”» (Makkreel, 1994: 120). 146 Veja-se a descrição que Vítor Moura dá daquilo a que chama vaivém cognitivo entre as faculdades: «quando o entendimento conquista uma nova ordenação do material fornecido pela imaginação (e. g., tal como uma águia, a majestade estende o seu raio de acção sobre todo um território, não deixando lugar para nenhum competidor), a imaginação responde, fornecendo uma nova imagem (e. g., a soberania como águia vigilante pronta a atacar com o raio que traz nas suas garras) à qual o

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Importa, agora, perguntar o seguinte: envolverá, a referida vivificação, um exercício livre da faculdade da imaginação daquele que ajuíza? Estará essa faculdade em harmonia com o entendimento? Poderá o juízo, desse que ajuíza a obra de arte, ser um juízo de gosto? Abordar estas questões é indispensável para responder às perguntas que nos têm acompanhado desde o início da nossa investigação – Poderá falar-se de bela arte? A ser legítimo, sob que condições poderá isso ser feito?

Pensemos, em primeiro lugar, na liberdade da faculdade da imaginação. A questão central que se coloca – dada a caracterização que fizemos quer das ideias estéticas, quer do exercício da imaginação enquanto faculdade de conhecimento produtiva, isto é, enquanto produtora das referidas ideias – é a de saber se, no movimento das faculdades de conhecimento entre si, por ocasião da representação do objecto artístico genial, a faculdade da imaginação daquele que ajuíza está em liberdade. Para respondermos a essa questão, devemos manter entre parêntesis a tese, do §48, de acordo com a qual no julgamento da beleza de uma obra de arte têm de ser considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da referida obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). No caso de não o fazermos, seríamos obrigados a afirmar, nesta fase, que o exercício da faculdade da

entendimento é aplicado uma e outra vez» (Moura, 2006: 341). Ora, «quando o entendimento tenta encontrar um conceito determinado capaz de organizar o material proposto pela imaginação, falha e balança de novo em direcção à imagem» (Moura, 2006: 343-344). Tal acontece «[p]orque não existe nenhum conceito determinado ao qual o entendimento se possa agarrar» (Moura, 2006: 342). Sendo assim, o entendimento «regressa recorrentemente à imagem proposta pela imaginação e tenta pensar a imagem qua conceito, justapondo os atributos estéticos e os atributos lógicos de ambos os termos» (Moura, 2006: 342). Segundo Moura, esse «feedback constante e o vaivém cognitivo entre as faculdades constituem-se como a característica mais importante tanto da criação como da compreensão das ideias estéticas. Avaliado enquanto sensação, este vaivém é caracterizado como “agradável”. Considerado do ponto de vista gnoseológico, ele fortalece a consciência do nosso próprio poder de pensar e agir. Dá-nos uma “sensação de vida” que deriva do facto de o poder intrínseco de cada faculdade cognitiva estar a ser desenvolvido na sua máxima extensão, porque não condicionado pela empiria» (Moura, 2006: 341).

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imaginação não é um exercício livre – pois as intuições por ela produzidas contribuiriam para a representação de uma conformidade a fins objectiva interna – e, por conseguinte, que o juízo em causa não é um juízo de gosto.147 Considerando que só através de um juízo de gosto pode um objecto ser declarado belo, imediatamente se compreende a relevância da questão de saber se, em face de uma obra de arte de génio, a faculdade da imaginação se exerce livremente para a questão de saber se poderá falar-se de bela arte. Que, perante um tal objecto artístico, a faculdade da imaginação daquele que ajuíza se exerça em liberdade, essa é uma condição necessária para a declaração do referido objecto como belo e, por conseguinte, para a legitimação da noção de bela arte.

Afirmar que o juízo de gosto é um juízo livre corresponde a afirmar que ele não tem um conceito como fundamento de determinação.148 Se um juízo é fundado num conceito, então, nesse juízo, o exercício da faculdade da imaginação é submetido a esse conceito. Nesse caso, o que está em causa é uma conformidade a fins objectiva. As faculdades de conhecimento não estão num jogo livre. Ora, se o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza não consiste num jogo livre, então o seu juízo não pode ser um juízo de gosto. Consequentemente, o objecto por ocasião da representação do qual se ajuíza não pode ser declarado belo.

Regressemos ao §49 e à noção de ideia estética. Não obstante nenhum conceito do entendimento poder ser plenamente adequado a uma ideia

147 Se, para reiterar que num juízo de gosto a faculdade da imaginação tem de exercer-se livremente, quisermos abster-nos de elencar novamente as referências que fizemos à liberdade da faculdade da imaginação quando, no primeiro capítulo da nossa tese, descrevemos o juízo de gosto, podemos limitar-nos a mencionar o §9, no qual Kant usa quatro vezes a expressão jogo livre (freies Spiel) para referir-se ao movimento das faculdades da imaginação e do entendimento entre si por ocasião da representação de um objecto quando se trata de proferir um juízo de gosto (cf. Kant, 1998: 106). 148 Em nome do rigor, devemos recordar que, para um juízo estético – como é o caso do juízo de gosto – ser um juízo livre, ele também não pode ser um juízo estético dos sentidos, um juízo acerca da agradabilidade. Esta condição não tem, no entanto, qualquer relevância para o que agora nos interessa averiguar.

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estética, Kant sugere, no §49, que uma ideia estética pertence à apresentação de um conceito (cf. Kant, 1998: 220). Ainda nesse parágrafo, ele define-a como «uma representação da faculdade da imaginação associada a um conceito dado (eine einem gegebenen Begriffe beigesellte

Vorstellung der Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 222).149 Embora as ideias estéticas carreguem algo que objectivamente não corresponde a um tal conceito, na criação de uma bela obra de arte esse conceito não é suprimido. Ora, também no juízo através do qual essa obra de arte é declarada bela ele não pode ser suprimido. O conceito dado tem de ser reconhecido por aquele que ajuíza a obra de arte como bela. A possibilidade de o fornecimento de ideias estéticas promover um movimento harmónico recíproco das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza pressupõe o reconhecimento da associação entre essas ideias e o conceito dado e, por conseguinte, o reconhecimento desse mesmo conceito. Se aquele que ajuíza não reconhecer esse conceito, ele não pode declarar bela a obra de arte. Não pode declará-la como tal porque não sente um prazer ligado a uma disposição conforme a fins das suas faculdades de conhecimento entre si promovida pelo fornecimento de ideias estéticas – não sente esse prazer porque as faculdades de conhecimento simplesmente não se colocam nessa disposição.150

A obrigação de aquele que ajuíza reconhecer o conceito dado não equivale, porém, a uma submissão da faculdade da imaginação ao entendimento. Mediante o fornecimento de uma matéria rica, a faculdade da imaginação desafia o entendimento a algo para o qual ele não é suficiente. Entretanto, o entendimento igualmente provoca a faculdade da imaginação. Através dessa estimulação recíproca, as duas faculdades relacionam-se. Assim, apesar de iniciada num conceito dado, a relação das faculdades de conhecimento entre si vai além desse conceito, inicialmente

149 Já o tínhamos citado. 150 Veja-se o que afirma Paul Guyer a este propósito: «o prazer na resposta estética» assenta na maneira como a imaginação é induzida «a ir além de qualquer conceito determinado, mas ao mesmo tempo este prazer não pode sequer ser sentido a não ser que o conceito seja de facto reconhecido» (Guyer, 1997: 359).

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dado, ou de qualquer outro que o entendimento proponha à imaginação. Por esta razão, ela não pode ser representada como uma conformidade a fins objectiva, pois não consiste – nem pode consistir – na compreensão, por parte do entendimento daquilo que lhe é fornecido pela faculdade da imaginação.151 A vivificação recíproca das faculdades de conhecimento não envolve, nem pode envolver, então, uma relação de submissão das intuições internas da imaginação ao conceito determinado do objecto e, portanto, uma relação de submissão da faculdade da apresentação ao entendimento. Ao ser representada como conforme a fins, ela tem de ser representada como uma conformidade a fins meramente subjectiva.152

A questão à qual devemos responder, por conseguinte, é a de saber se, ao produzir representações associadas a um conceito dado, a faculdade da imaginação se exerce livremente. Coloquê-mo-la unicamente por relação ao juízo: não obstante ter de reconhecer o conceito inicialmente dado, poderá, aquele que ajuíza, proferir um juízo no qual as suas faculdades de conhecimento se movimentem em liberdade? Uma ideia estética é, por definição, uma intuição associada a um conceito dado. Quando se trata de sentir um prazer no movimento das faculdades de conhecimento entre si por ocasião do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, esse conceito não é suprimido. Apesar disso, quer na produção da obra de arte, quer no concernente ao movimento das faculdades de conhecimento daquele que a ajuíza como bela, o exercício da faculdade da imaginação é tido por Kant como sendo 151 Se a aferição da adequabilidade das ideias estéticas à apresentação do conceito consistisse na observação da sua contribuição para o conhecimento objectivo, então, tendo em conta que, no âmbito desse conhecimento, o entendimento apenas considera as intuições objectivamente correspondentes aos seus conceitos, e quaisquer outras são tidas como meramente inadequadas, as ideias estéticas seriam tidas como meramente inadequadas. A aplicação de um tal critério, porém, ou levaria a que se ignorasse que há uma vivificação recíproca das faculdades de conhecimento ou simplesmente impediria que se compreendesse a participação do entendimento na manutenção desse movimento entre as faculdades. 152 De resto, dessa vivificação do ânimo, enquanto subjectivamente conforme a fins, só pode tomar-se consciência esteticamente, através de um sentimento de prazer. Ora, é num tal sentimento que o juízo de gosto se funda.

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um exercício livre. Há várias passagens que o atestam: recordemos que, no §49, Kant assinala que o uso que se faz da multiplicidade de representações parciais que se ligam à ideia estética é um «uso livre (freier Gebrauch)» e que, quanto a fornecer ideias estéticas para um conceito dado, a faculdade da imaginação «é livre (ist frei)» (Kant, 1998: 222); no §53, logo no início da comparação que estabelece entre as belas-artes quanto ao valor estético de cada uma, Kant afirma que a poesia «alarga o ânimo pelo facto de pôr em liberdade a faculdade da imaginação (die Einbildungskraft in Freiheit setzt)» (Kant, 1998: 233); na primeira observação que se segue ao §57, o nosso autor indica, como já citámos, que a ideia estética é uma representação da faculdade da imaginação «em seu jogo livre (in ihrem freien Spiele)» (Kant, 1998: 251); finalmente, no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant refere que sem «a própria liberdade da faculdade da imaginação na sua conformidade a leis» (die Freiheit der

Einbildungskraft selbst in ihrer Gesetzmäßigkeit) não é possível «nenhuma bela arte (keine schöne Kunst), nem sequer um gosto próprio correcto que a ajuíze (nicht einmal ein richtiger sie beurteilender eigener

Geschmack)» (Kant, 1998: 265).153 Se a representação fornecida pela faculdade da imaginação for além daquilo que o conceito ao qual está associada – ou que qualquer outro conceito que o entendimento lhe forneça – for capaz de abranger, então a faculdade da imaginação é tida por Kant como exercendo-se livremente. Independentemente de aquele que ajuíza ter de reconhecer o conceito ao qual a ideia estética está associada – e ele, de facto, tem de reconhecer um tal conceito – o

153 Estas são as passagens nas quais a posição de Kant é mais evidente. Seja como for, ela é indiciada desde a introdução da noção de bela arte, no §44. De resto, o simples facto de Kant falar de uma arte que é bela constitui um indício de que, no juízo através do qual uma obra de arte é declarada bela, a faculdade da imaginação se exerce livremente. A razão pela qual não podemos usar esse facto para prová-lo é óbvia – aquilo que estamos a avaliar é precisamente a legitimidade de falar-se de bela arte, isto é, a possibilidade de uma obra de arte ser declarada bela, a possibilidade de ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto.

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exercício da faculdade da imaginação é um exercício livre.154 Assim, no que diz respeito à liberdade dessa faculdade, o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte pode ser um juízo de gosto. Ora, sendo a liberdade da faculdade da imaginação uma condição indispensável para a declaração de um objecto como belo, no concernente à satisfação dessa condição a obra de arte pode ser declarada bela. Por conseguinte, se mantivermos entre parêntesis a passagem, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara belo um objecto artístico têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição (a conformidade a fins objectiva interna) deste relativamente àquele (cf. Kant, 1998: 216), então poderemos responder afirmativamente à questão de saber se é possível ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo estético reflexivo, se uma obra de arte pode ser declarada bela, e, portanto, à questão que tem conduzido a nossa investigação, a de saber se é legítimo falar-se de bela arte.

2.3. Expressão de ideias estéticas

Principalmente mediante uma explicitação da noção de ideia estética, sustentámos, na subsecção anterior, que o exercício da faculdade da imaginação é, no contexto da bela arte, um exercício livre. Mostrámos que a faculdade da imaginação pode exercer-se livremente mesmo quando as representações por ela fornecidas são representações associadas a um conceito dado e o prazer sentido por ocasião do seu fornecimento pressupõe o reconhecimento desse conceito.155 No âmbito da bela arte, o exercício da faculdade da imaginação é livre precisamente porque tem ideias estéticas (representações inexponíveis) como matéria. Por ocasião

154 Guyer assinala que «a caracterização de Kant de ideias estéticas torna evidente que a nossa resposta a obras de arte que manifestam tais ideias é sempre ligada a conceitos mas nunca determinada ou esgotada por esses conceitos» (Guyer, 1997: 359). 155 Fizemo-lo mantendo entre parêntesis a tese, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216).

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do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, é promovido um movimento livre das faculdades de conhecimento entre si.

Devemos verificar, agora, se e como o exercício referido está em harmonia com o entendimento, isto é, se e como, ao exercer-se livremente, a faculdade da imaginação se exerce harmonicamente com o exercício do entendimento. Uma obra de arte só pode ser declarada bela se o movimento das faculdades de conhecimento entre si for representado como conforme a fins; e esse movimento só pode ser representado como conforme a fins se for um movimento harmónico. Logo, só se o movimento das faculdades de conhecimento entre si for harmónico pode a obra de arte ser declarada bela, isto é, ser uma bela obra de arte – e só se uma obra de arte puder ser declarada bela, puder ser uma bela obra de arte, pode falar-se de bela arte. A questão de saber se, em face de uma obra de arte genial, o exercício livre da faculdade da imaginação daquele que ajuíza é um exercício que está em harmonia com o exercício do entendimento, esta questão é, então, indispensável para a elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à questão de saber se um objecto artístico pode ser ajuizado através de um juízo de gosto, isto é, se um objecto artístico pode ser declarado belo. Quando soubermos a resposta a essa questão, afirmativa ou negativa, estaremos em melhores condições de responder à questão que nos tem acompanhado desde o início deste trabalho – a de saber se é legítimo falar-se de bela arte.

Em pleno contexto das suas considerações acerca da bela arte, na parte final do §49, Kant afirma o seguinte:

o génio consiste na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e nenhuma diligência pode aprender, de encontrar ideias para um conceito dado e por outro lado de encontrar para elas a expressão pela qual a disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (besteht das Genie eigentlich in dem glücklichen Verhältnisse, welches

keine Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem

gegebenen Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den

Ausdruck zu treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive

Gemütstimmung, als Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt

werden kann) (Kant, 1998: 223).

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O nosso autor associa à comunicabilidade de uma disposição subjectiva do ânimo, enquanto acompanhamento de um conceito, a expressão de ideias estéticas. Aquele que é dotado de génio não apenas fornece ideias estéticas, através da capacidade produtiva da sua imaginação, mas igualmente dá a essas ideias uma expressão mediante a qual, enquanto acompanhamento de um conceito, o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que ele faz do objecto, um movimento universalmente comunicável, ou seja, um movimento reciprocamente concordante, um movimento harmónico. O fornecimento de ideias estéticas não é, então, suficiente para colocar o ânimo daquele que ajuíza numa disposição harmónica. Por conseguinte, a mera produção de representações inexponíveis da faculdade da imaginação não é suficiente para que ele declare belo o objecto em causa, para que a obra de arte seja bela, pois uma livre disposição anímica não é suficiente para a beleza – além de livre, a disposição das faculdades do ânimo tem de ser concordante, consonante, harmónica. A produção de ideias estéticas, sem mais, é insuficiente para a beleza. Requer-se igualmente que a essas representações (as ideias estéticas) se dê uma certa expressão. É (também) a expressão, uma certa expressão, e não (meramente) a produção de ideias estéticas, aquilo que gera, naquele que ajuíza, o movimento conforme a fins das suas faculdades de conhecimento entre si para o conhecimento em geral por ocasião da representação que ele faz do objecto. Tal é reforçado, de resto, numa passagem posterior, a saber, aquela com que Kant inaugura o §51, na qual é afirmada a possibilidade de denominação da beleza precisamente como «expressão de ideias estéticas (den Ausdruck ästhetischer Ideen)» (Kant, 1998: 226). O nosso autor afirma a possibilidade de denominar-se a beleza não como produção de ideias estéticas, mas, precisamente, como expressão de ideias estéticas.

É importante assinalar, desde já, que, no concernente à liberdade da faculdade da imaginação, também no caso da expressão de ideias estéticas, como no caso do seu fornecimento, o exercício dessa faculdade é tido por Kant como livre. Esta tese pode ser atestada na terceira conclusão

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apresentada pelo nosso autor por ocasião do olhar retrospectivo que ele lança sobre a explicação da noção de génio. Afirma Kant, aí, que o génio

se mostra não tanto na realização do fim proposto na exibição de um conceito determinado, mas muito mais na exposição ou expressão de ideias estéticas, que contêm uma rica matéria para aquele fim, por conseguinte ele representa a faculdade da imaginação na sua liberdade relativamente a toda a instrução de regras e no entanto como conforme a fins para a exibição do conceito dado (es sich nicht sowohl in der

Ausführung des vorgesetzten Zwecks in Darstellung eines bestimmten

Begriffs, als vielmehr im Vortrage, oder dem Ausdrucke ästhetischer Ideen, welche zu jener Absicht reichen Stoff enthalten, zeige, mithin die

Einbildungskraft in ihrer Freiheit von aller Anleitung der Regeln

dennoch als zweckmäßig zur Darstellung des gegebenen Begriffs

vorstellig mache) (Kant, 1998: 223-224).

Esta passagem torna evidente a posição de Kant: mesmo quando envolve expressão de ideias estéticas, e não apenas a produção, o fornecimento dessas ideias, a faculdade da imaginação exerce-se livremente. Além disso, na medida em que menciona a representação da faculdade da imaginação como conforme a fins, ela torna também evidente a posição do nosso autor quanto à harmonia das faculdades de conhecimento entre si.156 É a essa harmonia, a essa concordância, que agora pretendemos dedicar a nossa atenção.

Tendo uma tal pretensão em conta, devemos regressar à parte final do §49. Imediatamente a seguir ao excerto por nós citado no início desta subsecção, Kant indica que o talento através do qual se encontra a expressão de ideias estéticas adequada à beleza é o espírito: «[o] último talento é propriamente aquilo que se denomina espírito ([d]as letztere

Talent ist eigentlich dasjenige, was man Geist nennt)» (Kant, 1998: 223). No início do mesmo parágrafo, a propósito da noção de espírito, o nosso autor declara o seguinte:

156 De resto, na quarta conclusão que apresenta por ocasião do olhar retrospectivo que lança sobre a explicação da noção de génio, Kant refere uma «concordância livre da faculdade da imaginação com a legalidade do entendimento (freien Übereinstimmung

der Einbildungskraft zur Gesetzlichkeit des Verstandes)» (Kant, 1998: 224).

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JUÍZO DE GOSTO

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Espírito, num sentido estético significa o princípio vivificante no ânimo. Aquilo porém pelo qual este princípio vivifica a alma, o material que ele utiliza para isso, é o que conformemente a fins, põe em movimento as faculdades do ânimo, isto é um jogo que se mantém por si próprio e fortalece ainda as faculdades para o mesmo (Geist in ästhetischer Bedeutung heißt das belebende Prinzip im Gemüte. Dasjenige aber, wodurch díeses Prinzip die Seele belebt, der Stoff, den es dazu anwendet, ist das, was die Gemütskräfte zweckmäßig in Schwung versetzt, d. i. in ein solches Spiel, welches sich von selbst erhält und selbst die Kräfte dazu stärkt) (Kant, 1998: 218-219).

As ideias estéticas activam as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, dão movimento ao ânimo. Através do espírito, dá-se a essas ideias uma expressão mediante a qual o mencionado movimento é tornado conforme a fins. Por intermédio do espírito, aquele que é dotado de génio apresenta as ideias estéticas, associadas a um conceito dado, de uma maneira que coloca as faculdades do ânimo daquele que ajuíza, por ocasião da representação que ele faz do objecto, numa disposição conforme a fins para o conhecimento em geral. O espírito não produz ideias estéticas; ele apresenta-as: o espírito «não é nada mais que a faculdade da apresentação de ideias estéticas (sei nichts anders, als das Vermögen der Darstellung ästhetischer Ideen)» (Kant, 1998: 219). Apresentar (darstellen) não pode ser identificado com fornecer (liefern) ou produzir (hervorbringen): a faculdade que fornece ideias estéticas é, como já vimos, a faculdade da imaginação enquanto faculdade de conhecimento produtiva; a faculdade responsável pela maneira como essas ideias são apresentadas – por outras palavras: o talento responsável pela expressão das ideias estéticas adequada à beleza – é, diferentemente, o espírito.

Recordemos que as ideias estéticas não podem tornar-se conhecimento:

por uma ideia estética entendo (…) aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito que pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, representação que consequentemente nenhuma linguagem

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alcança inteiramente nem pode tornar compreensível (unter einer ästhetischen Idee (…) verstehe ich diejenige Vorstellung der Einbildungskraft, die viel zu denken veranlasst, ohne daß ihr doch irgend ein bestimmter Gedanke, d. i. Begriff, adäquat sein kann, die folglich keine Sprache völlig erreicht und verständlich machen kann) (Kant, 1998: 219).

Além disso, elas tentam apresentar o inefável (das Unnennbare). É de assinalar, neste contexto, que as ideias estéticas substituem a apresentação lógica para ideias da razão. De facto, Kant afirma, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, que «[t]omadas literalmente e consideradas logicamente, as ideias não podem ser apresentadas ([b]uchstäblich genommen und logisch betrachtet, können Ideen nicht dargestellt werden)» e que não podemos «realizar objectivamente (objektiv zu Stande bringen)» a apresentação de algo supra-sensível (Kant, 1998: 166). A explicação dessa impossibilidade é dada poucas palavras depois, quando o nosso autor lembra que há uma «inadequação objectiva da faculdade da imaginação na sua máxima ampliação em relação à razão (enquanto faculdade das ideias) (objektive Unangemessenheit der Einbildungskraft in ihrer größten Erweiterung für die Vernunft (als Vermögen der Ideen))» (Kant, 1998: 168). Não podemos deixar de notar, no entanto, que a inadequação da faculdade da imaginação relativamente à razão é unicamente objectiva, que a realização da apresentação de algo supra-sensível só objectivamente é impossível e que as ideias da razão só não podem ser apresentadas quando tomadas literalmente e consideradas logicamente. É também por as ideias estéticas tentarem apresentar conceitos da razão que Kant as designa por ideias:

Tais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se ideias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima dos limites da experiência e assim procuram aproximar-se de uma apresentação dos conceitos da razão (das ideias intelectuais) (Man kann dergleichen Vorstellungen der Einbildungskraft Ideen nennen: eines Teils darum, weil sie zu etwas über die Erfahrungsgrenze hinaus Liegendem wenigstens streben und so einer Darstellung der

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Vernunftbegriffe (der intellectuellen Ideen) nahe zu kommen suchen) (Kant, 1998: 219). 157

157 Conceitos da razão de «entes invisíveis, o reino dos bem-aventurados, o reino do inferno, a eternidade, a criação, etc», os «nossos conceitos da sublimidade e majestade da criação», a «ideia racional de intenção cosmopolita» (Kant, 1998: 221) – eis alguns exemplos de ideias da razão que a bela arte, enquanto expressão de ideias estéticas, pode tentar apresentar. Brigitte Sassen faz assentar o carácter estranho da concepção kantiana de ideia estética na unificação, pela terceira Crítica, de duas noções outrora afastadas, a saber, a noção de ideia e a noção de estético. Na «teoria de conhecimento de Kant», afirma Sassen, «uma ideia é um conceito da razão. Exemplos de tais conceitos são os conceitos de Deus, liberdade ou imortalidade. Como conceitos supra-sensíveis, eles não podem ser intuídos ou conhecidos, e dado que conceitos sem intuições são vazios, eles podem ter no máximo uma função reguladora. No entanto, na medida em que “estético” tem a ver com a maneira na qual nós intuímos, a conjunção peculiar de estético e ideia sugere que as ideias estéticas fornecem a contraparte intuitiva e o conteúdo das ideias intelectuais. Ao chamar “estéticas” tais ideias, Kant torna bastante claro que o que quer que sejam mais, elas constituem um diverso intuído. Como tal, podem fazer sensíveis ideias supra-sensíveis e fornecer material intuitivo para ideias abstractas que similarmente não podem ser compreendidas por um conceito» (Sassen, 2003: 173). A propósito da sensibilização das ideias da razão, Moura indica que a ideia estética «funciona como interface entre a ideia racional e a imagética da imaginação (e. g., a ideia imaginativa da águia como encarnação da encarnação de Júpiter das ideias de sublimidade e majestade)» (Moura, 2006: 342), serve de «mediação entre o material imaginativo e uma ideia racional» (Moura, 2006: 343). No contexto da arte do génio, a apresentação das ideias da razão é, utilizando as palavras de Gilles Deleuze, uma apresentação «positiva, mas secundária» e feita «por criação de outra natureza» (Deleuze, 2000: 64). Igualmente devemos notar, entretanto, que uma tal apresentação envolve necessariamente a concessão de deformidades. Na sequência do olhar retrospectivo que lança sobre a explicação dada por ele próprio acerca do génio, Kant refere algo que «enquanto deformidade o génio somente teve que conceder, porque não podia eliminá-la sem enfraquecer a ideia (was das Genie als Missgestalt nur hat zulassen müssen, weil es sich, ohne die Idee zu schwächen, nicht wohl wegschaffen ließ)» e acrescenta que esse «desvio da regra comum (Abweichung von der gemeinen Regel)» permanece «em si sempre um erro que se tem que procurar extirpar (immer an sich ein Fehler, den man wegzuschaffen suchen muss)» (Kant, 1998: 224). Quando se trata da apresentação de ideias da razão pela via artística, quando se trata de torná-las sensíveis numa obra de arte, o erro é inevitável. Um mesmo tipo de inevitabilidade é esboçado por Longino, no seu tratado sobre o sublime. Podemos abordá-lo por intermédio de Jean-François Lyotard. No texto “Représentation, présentation, imprésentable”, compilado em L’inhumain – Causeries sur le temps, Lyotard afirma que «[q]uando procuramos apresentar que existe algo que

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Ora, aquilo que o génio faz, mediante o espírito, é apresentar de uma maneira adequada a uma disposição anímica universalmente

não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação» (Lyotard, 1997: 129). Ao esforçar-se para apresentar que há qualquer coisa que não pode ser apresentada, a imaginação, faculdade da apresentação, martiriza a apresentação. Em “Le sublime et l’avant-garde”, igualmente incluído em L’inhumain – Causeries sur le temps, Lyotard acrescenta que «[u]ma falha no ofício é (…) venial, se for o preço de uma “verdadeira grandeza”» e que «[a] grandeza do discurso é verdadeira, quando testemunha da incomensurabilidade do pensamento com o mundo real» (Lyotard, 1997: 100). Lyotard escreve essas palavras precisamente por referência ao Peri Hypsous, de Longino. Concluímos, a partir delas, que o martírio acima sugerido não diminui a sublimidade da apresentação – ele engrandece-a. De facto, no entender de Longino, a grandeza, mesmo correndo o risco de ser defeituosa, é preferível à vulgaridade da sã e imaculada correcção. Justificando o carácter defeituoso dos grandes discursos precisamente no facto de remeterem para algo superior, o que não acontece com os discursos menores, ele assinala, primeiro, que, sendo «quase impossível que os engenhos humildes e medíocres não sejam pela maior parte sem defeito e que deixem de discorrer com mais segurança; porque não se elevam jamais a coisas sumas, nem ainda se arriscam a entrar nelas», o sublime é «de si mesmo perigoso pela sua elevação e grandeza» (Longino, 1984: 122), e, depois, que enquanto «[a] isenção de defeitos impede a crise», aquilo que é «grande e maravilhoso excita de mais a admiração» (Longino, 1984: 128). Ora, é exactamente a remissão dos grandes discursos para algo superior aquilo que leva Longino a concluir que «cada um daqueles Escritores com uma só sublimidade e perfeição resgatam todos os seus erros; e, sobretudo, [que] se alguém colhesse todas as faltas de Homero, Demóstenes, Platão e de quantos há célebres e da mesma grandeza, e as comparasse com as belezas que a cada passo se acham nesses mesmos Heróis, acharia não fazerem a menor parte, ou, para melhor dizer, a mínima de suas obras» (Longino, 1984: 128), ou, ainda antes, que «as dolosas subtilezas da Retórica se ofuscam, se são cercadas por todas as partes da copiosa torrente da sublimidade» (Longino, 1984: 96). Quando se trata de apresentar ideias da razão num objecto artístico, aquele que é dotado de génio concede deformidades, comete erros, a apresentação é martirizada, o artista falha, a obra é defeituosa, envolve faltas. O dolo é, ainda assim, um mal menor. As deformidades e os erros que as obras de arte geniais carregam consigo podem ser sintomas que remetem para a impossibilidade de a faculdade da apresentação satisfazer a exigência da razão, indícios do estado em que o ânimo entra quando a imaginação força maximamente os seus limites, figuras que sugerem que ela está a tentar eliminar as suas barreiras e tornar-se ilimitada. Não desenvolveremos esta interpretação das deformidades e dos erros que as obras de arte de génio necessariamente envolvem quando se trata de apresentarem ideias da razão, interpretação que, de resto, poderia conduzir-nos a pensar eventuais

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comunicável algo que não pode tornar-se conhecimento – é, nas palavras de Kant, «expressar o inefável, no estado do ânimo por ocasião de uma certa representação, e torná-lo universalmente comunicável – quer a expressão consista na linguagem, na pintura ou na arte plástica (das Unnennbare in dem Gemütszustande bei einer gewissen Vorstellung auszudrücken und allgemein mitteilbar zu machen, der Ausdruck mag nun in Sprache, oder Malerei, oder Plastik bestehen)» (Kant, 1998: 223). Pode afirmar-se, por conseguinte, que o espírito expressa ideias estéticas e ideias da razão – ao expressar ideias estéticas, associadas a ideias da razão, ele expressa ideias da razão. O espírito expressa ideias da razão através de uma expressão de ideias estéticas que faz com que a disposição livre das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que ele faz do objecto artístico, uma disposição reciprocamente harmónica.158 É através do espírito, então, que se dá ao material fornecido pela faculdade produtiva da imaginação,

ligações entre o belo e o sublime, não contempladas de modo explícito pela Crítica da Faculdade do Juízo, mas, ainda assim, sugeridas – sublinhe-se, por exemplo, que «a apresentação do sublime (…) pertence à bela arte (die Darstellung des Erhabenen gehört zur schönen Kunst)» (Kant, 1998: 232). A nossa tese é movida pela questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da terceira Crítica de Kant. É a essa questão que nos propomos responder satisfatoriamente. Nesta fase, importa continuar a explicitar a noção de bela arte, enquanto arte do génio, e clarificar quer a denominação da beleza artística como expressão de ideias estéticas, quer a importância do espírito nessa expressão. 158 De resto, se, no âmbito da bela arte, aquilo que o espírito expressa, através da expressão de ideias estéticas, são ideias da razão, então, nesse mesmo âmbito, pode falar-se não de uma concordância objectiva entre ideia estética e conceito dado, pois este é uma ideia da razão, mas de uma concordância das faculdades de conhecimento entre si no seu jogo livre. Afirmar o contrário significaria colocar em causa não apenas a definição de ideia estética como «representação inexponível da faculdade da imaginação (inexponible Vorstellung der Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 250), mas igualmente a definição de ideia da razão como «conceito ao qual nenhuma intuição (representação da faculdade da imaginação) pode ser adequada (Begriff, dem keine Anschauung (Vorstellung der Einbildungskraft) adäquat sein kann)» (Kant, 1998: 219), como «conceito» que «não pode ser apresentado adequadamente (nicht adäquat dargestellt werden kann)» (Kant, 1998: 220), como «conceito indemonstrável da razão (indemonstrabeln Begriff der Vernunft)» (Kant, 1998: 250).

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nomeadamente às ideias estéticas, a expressão pela qual as faculdades de conhecimento, enquanto acompanhamento de um conceito, são colocadas numa disposição conforme a fins para o conhecimento em geral. Para tal, o espírito apreende «o jogo fugaz da faculdade da imaginação (das schnell vorübergehende Spiel der Einbildungskraft)», isto é, o fornecimento de representações inexponíveis por parte dessa faculdade em seu jogo livre, e reúne-o «num conceito que permite comunicar-se sem coerção de regras (in einen Begriff, der sich ohne Zwang der Regeln mitteilen lässt)» (Kant, 1998: 223). Salvaguarde-se, a esse propósito, que reunir (vereinigen) não é o mesmo que compreender (zusammenfassen). A compreensão pressuporia a descoberta de um conceito determinado ao qual pudessem ser submetidas as ideias estéticas. Acontece que «não se pode encontrar para [a ideia estética] nenhuma expressão que denote um conceito determinado (für sie kann kein Ausdruck, der einem bestimmten Begriff bezeichnet, gefunden werden)» (Kant, 1998: 222). As ideias estéticas não são adequadamente alcançáveis pelo entendimento, através dos seus conceitos. Assim, o conceito no qual o espírito reúne o jogo da faculdade da imaginação não é – nem pode ser – um conceito determinado. Só pode tratar-se de um conceito indeterminado. Trata-se do conceito da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento, sob a forma de uma obra de arte genial, enquanto, por intermédio de um tal objecto, aquele que é dotado de génio, fornecendo ideias estéticas para um conceito dado, através da capacidade produtiva da sua imaginação, e apresentando essas ideias de uma maneira adequada à beleza, mediante o seu espírito, gera nas faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, por ocasião da representação que ele faz do objecto, um movimento simultaneamente livre e harmónico, isto é, um movimento formalmente, subjectivamente, esteticamente conforme a fins, um movimento conforme a fins sem fim.

Consideramos estar sinalizado e descrito aquilo que é necessário para que o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que ele faz de um objecto artístico genial, não apenas um movimento livre, mas também um movimento harmónico. Cumprida essa tarefa, e mantendo entre parêntesis a tese, do §48, de

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acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216), estamos em condições de afirmar que é possível ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto, que uma obra de arte pode ser declarada bela, que é legítimo falar-se de bela arte. O talento necessário para que o movimento das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que ele faz de uma obra de arte de génio, um movimento conforme a fins, embora sem fim, é o espírito – é-o precisamente enquanto talento por intermédio do qual o génio encontra, para as representações inexponíveis que a sua faculdade da imaginação produz, uma maneira de apresentá-las, uma expressão, mediante a qual «a disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros» (Kant, 1998: 223). O espírito é, assim, a faculdade através da qual o génio cumpre um dos aspectos essenciais do seu carácter, a saber, a exemplaridade.

Desde logo nos primeiros parágrafos centrados na noção de génio (§46 e §47) Kant assinala que a «originalidade (Originalität)» é a «primeira propriedade (erste Eigenschaft)» (Kant, 1998: 212) e, por conseguinte, um «aspecto essencial do carácter do génio (wesentliches

Stück vom Charakter das Genies)» (Kant, 1998: 215). Aquele que é dotado de génio é original se, através da capacidade produtiva da sua faculdade da imaginação, fornecer ideias estéticas para um conceito dado. Ser original não é, no entanto, o único aspecto essencial da genialidade (cf. Kant, 1998: 215). Perante a possibilidade de uma «extravagância original (originalen Unsinn)», o nosso autor ressalva que os produtos do génio «têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares (Muster, d. i. exemplarisch)» e, portanto, «têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento (Richtmaße oder

Regel der Beurteilung)» (Kant, 1998: 212)159. A originalidade do génio

159 Já o tínhamos indiciado na subsecção “Génio”. Kant fá-lo precisamente no parágrafo no qual introduz a noção de génio (§46).

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tem de ser, então, exemplar – no §49, Kant define mesmo o génio como «a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento (die musterhafte Originalität

der Naturgabe eines Subjekts im freien Gebrauche seiner

Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 224). Pois bem, mediante a introdução da noção de espírito, o nosso autor dá ao génio o instrumento em falta para que os seus objectos artísticos sejam exemplares.160 Cada um dos elementos da feliz relação na qual o génio consiste corresponde, então, a um dos aspectos essenciais do carácter do génio: a capacidade de fornecer ideias estéticas para um conceito dado, através da faculdade produtiva da imaginação, corresponde à originalidade; a capacidade de apresentar essas ideias de uma maneira adequada à beleza, por intermédio do espírito, corresponde à exemplaridade. Carecendo de espírito, o génio produziria extravagâncias originais. Ele seria original, mas a sua originalidade seria extravagante. As ideias estéticas seriam apresentadas de uma maneira inadequada à beleza. Se assim fosse, o génio não daria a regra à bela arte. Ele seria um talento para a produção, mas não aquilo que o nosso autor diz que ele é, a saber, «um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada» (Kant, 1998: 212).

A não introdução da noção de espírito colocaria imediatamente em causa o título do §46: «Bela arte é arte do génio (Schöne Kunst ist Kunst des Genies)» (Kant, 1998: 211). Se o génio não fosse dotado de espírito, a bela arte não seria a arte do génio. Dotado de espírito, porém, o génio produz necessariamente belas obras de arte.

160 Makkreel explica a necessidade da introdução do espírito na proporção das faculdades de conhecimento inerente ao génio: «Não há garantia de que as proporções especiais das faculdades mentais características do génio possam ser relacionadas com a proporção normal necessária para o conhecimento intersubjectivo. Assim, a originalidade do génio na produção de ideias estéticas tem de ser conciliada com um poder para comunicá-las. Para tal, o génio requer um talento especial a que Kant chama “espírito”» (Makkreel, 1994: 122). Nesse sentido, «o espírito é o “talento” para dar expressão concreta às ideias estéticas de maneira a que a vida da mente possa ser partilhada» (Makkreel, 1994: 122).

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Torna-se possível, por conseguinte, a partir da introdução da noção de espírito na Crítica da Faculdade do Juízo, adoptar a tese segundo a qual uma obra de arte de génio é um objecto que, através de um juízo de gosto, não pode ser declarado senão como belo.161 Já vimos que o espírito é o talento mediante o qual se expressa o inefável e se o torna universalmente comunicável através de uma disposição subjectiva do ânimo por ocasião de uma certa representação (cf. Kant, 1998: 223). Afirmá-lo, equivale a afirmar que o espírito torna universalmente comunicável o sentimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto artístico. Devemos recordar, agora, que a faculdade por intermédio da qual se ajuíza quer aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento referido, quer a comunicabilidade desse sentimento, é o gosto. Na parte final do §40, como tivemos oportunidade de citar no primeiro capítulo da nossa dissertação, Kant começa por assinalar que «[p]oder-se-ia até definir o gosto pela faculdade de julgamento daquilo que torna o nosso sentimento, numa representação dada, universalmente comunicável, sem mediação de um conceito (durch das Beurteilungsvermögen desjenigen,

was unser Gefühl an einer gegebenen Vorstellung ohne Vermittelung

eines Begriffs allgemein mitteilbar macht)» (Kant, 1998: 198). Entretanto, ele acrescenta, como também vimos, que «o gosto é a faculdade de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos que são ligados a uma representação dada (sem mediação de um conceito) (das Vermögen, die

Mitteilbarkeit der Gefühle, welche mit gegebener Vortsellung (ohne

Vermittelung eines Begriffs) verbunden sind, a priori zu beurteilen)» (Kant, 1998: 198). Assim, quando se trata de uma obra de arte de génio, ajuíza-se como belo, através do gosto, não apenas algo que só por 161 Referindo-se à arte do génio, à bela arte, Fernando Gil afirma que «a obra de arte autêntica só pode ser um bom exemplo» (Gil, 1998: 276) e que relativamente à sua beleza «a exigência de adesão é imperiosa» (Gil, 1998: 277). No entanto, naquilo que pode ser entendido como uma salvaguarda, imediatamente a seguir a indicar que «o gosto pode ser exemplar», Gil assinala que «o génio é-o em princípio sempre» (Gil, 1998: 273). A razão pela qual podemos dizer que só em princípio é que o génio é sempre exemplar será apresentada no último capítulo da nossa dissertação, precisamente por relação ao que nesta fase estamos a alegar.

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intermédio de um juízo de gosto pode ser ajuizado como belo, mas aquilo que por intermédio de um juízo de gosto só pode ser ajuizado como belo. Compreende-se, dada a explicação que acabámos de dar, a afirmação de Kant, de acordo com a qual «belas-artes necessariamente têm que ser consideradas como artes do génio (schöne Künste notwendig als Künste

des Genies betrachtet werden müssen)» (Kant, 1998: 211) e «para a própria arte, isto é para a produção de [objectos belos], requer-se génio (zur schönen Kunst selbst, d. i. der Hervorbringung solcher Gegenstände, wird Genie erfordert)» (Kant, 1998: 215)162. O gosto ajuíza a beleza; o espírito é o talento através do qual o inefável é expressado de uma maneira adequada à beleza; se, numa obra de arte de génio, por ocasião do fornecimento e de uma certa expressão de ideias estéticas para um conceito dado, esse conceito é apresentado de uma maneira adequada à beleza, então aquele que ajuíza através do gosto tem de declarar bela a mencionada obra de arte. Pode repetir-se, por conseguinte, e convictamente, aquilo que está escrito no título do §46: «Bela arte é arte

do génio» (Kant, 1998: 211).163 162 Em bom rigor, no texto de Kant está escrito que o génio é requerido para a bela arte. Esta lacuna da tradução por nós utilizada não é, no entanto, origem de qualquer problema, pois a identificação da referida arte com a produção de objectos belos faz com que aquilo que está em causa seja necessariamente a bela arte, não toda a arte. Ora, por esta altura não temos qualquer dificuldade em reconhecer que não é para toda a arte que se requer génio. Mais importante é acrescentar que, dada a explicação supramencionada, também se compreendem as afirmações segundo as quais «se considera o génio como o talento para a arte bela (man das Genie als Talent zur

schönen Kunst betrachtet)» (Kant, 1998: 215) e a «possibilidade (Möglichkeit)» da beleza da arte «requer génio (Genie erfordert)» (Kant, 1998: 216). 163 Ainda assim, é nossa obrigação ressalvar que a convicção que sentimos está condicionada pela colocação entre parêntesis da tese, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da referida obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). Só depois de retomarmos a passagem mencionada é que estaremos em condições de apresentar uma resposta suficientemente justificada à questão de saber se e como poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto, se e como poderá uma obra de arte ser declarada bela, se e como será legítimo falar-se de bela arte. Ainda não é este o momento no qual retomaremos essa passagem.

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2.4. Referência do juízo através do qual se declara bela uma obra de

arte ao princípio da conformidade a fins formal da natureza

A questão que move a nossa investigação é a de saber se e como poderá falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Temos vindo a indicar que responder a essa questão pressupõe responder às questões de saber se e como poderá um objecto artístico ser declarado belo, se e como poderá ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto, se e como poderá o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ser um juízo de gosto. Para que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte seja um juízo de gosto, ele tem de referir-se ao princípio do gosto, a saber, o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento.

Acabámos de ver, na subsecção anterior, que, através do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, pela faculdade produtiva da imaginação, e da descoberta de uma certa expressão para essas ideias, pelo espírito, o génio produz um objecto por ocasião da representação do qual as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se dispõem harmonicamente enquanto acompanhamento de um conceito. Dadas as características das ideias estéticas, somos obrigados a afirmar que essa disposição harmónica das faculdades da imaginação e do entendimento entre si por ocasião da representação do objecto não plasma uma concordância objectiva. A conformidade a fins do objecto é representada como uma conformidade a fins subjectiva. Não há uma submissão da faculdade da imaginação à legalidade do entendimento. A faculdade da imaginação exerce-se livremente.

Para que o objecto por ocasião da representação do qual as nossas faculdades de conhecimento se dispõem livre e harmonicamente entre si seja declarado belo, é necessário que no juízo por intermédio do qual o objecto é declarado como tal haja uma referência ao princípio do gosto, isto é, ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. O prazer que o sujeito sente por ocasião da sua representação tem de estar ligado a esse princípio. No

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entanto, no caso da arte, o objecto em causa é um objecto artístico, uma obra de arte, não um objecto da natureza. A questão que se coloca, por conseguinte, é a de saber se e como num juízo acerca da beleza de um objecto artístico (o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte) o prazer é referido ao princípio de uma conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza.

A resposta a essa questão é dada por Kant na parte final da primeira observação que se segue ao §57. O nosso autor começa por afirmar algo que citámos por ocasião de uma primeira menção que fizemos da noção de génio, a saber: «podemos explicar o génio também pela faculdade de ideias estéticas ([m]an kann diesem zufolge Genie auch durch das

Vermögen ästhetischer Ideen erklären)» (Kant, 1998: 251). Imediatamente a seguir, Kant acrescenta que com essa explicação «é ao mesmo tempo indicada a razão pela qual, em produtos do génio, a natureza (do sujeito) e não um fim reflectido dá a regra à arte (à produção do belo) (zugleich der Grund angezeigt wird, warum in Produkten des Genies die

Natur (des Subjekts), nicht ein überlegter Zweck der Kunst (der

Hervorbringung des Schönen) die Regel gibt)» (Kant, 1998: 251-252). Estando consciente de uma disposição concordante das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto e sabendo que essa disposição é livre (não pode ter sido determinada por um conceito dado, não correspondendo, por conseguinte, a uma submissão da faculdade da imaginação ao entendimento, a um acordo objectivo entre a intuição e o conceito, e, consequentemente, não plasmando uma conformidade a fins objectiva) aquele que ajuíza concebe a possibilidade de ter sido a natureza a promover a mencionada concordância. Fá-lo recorrendo a um princípio que, sendo «subjectivo (subjektives)», é «contudo universalmente válido (doch allgemeingültiges)», a saber, o princípio segundo o qual «o fim último dado pelo inteligível à nossa natureza é tornar concordantes todas as nossas faculdades de conhecimento (alle unsere Erkenntnisvermögen zusammenstimmend zu

machen, der letzte durch das Intelligible unserer Natur gegebene Zweck

ist)» (Kant, 1998: 252). Ao fazê-lo, aquele que ajuíza estabelece como

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«fundamento (Grunde)» e «padrão de medida (Richtmaße)» da «conformidade a fins estética porém incondicionada na arte bela, que legitimamente deve reivindicar ter de aprazer a qualquer um (ästhetischen,

aber unbedingten Zweckmäßigkeit in der schönen Kunst, die jedermann

gefallen zu müssen rechtmäßigen Anspruch machen soll)» simplesmente «aquilo que no sujeito é simples natureza e não pode ser captado sob regras ou conceitos, isto é o substracto supra-sensível de todas as suas faculdades (o qual nenhum conceito do entendimento alcança) (das, was bloß Natur

in Subjekte ist, aber nicht unter Regeln oder Begriffe gefasst werden kann,

d. i. das übersinnliche Substrat aller seiner Vermögen (welches kein

Verstandesbegriff erreicht))» (Kant, 1998: 252). Devemos ressalvar, agora, que a referência ao princípio segundo o qual

a natureza tem como fim último a concordância das faculdades de conhecimento do sujeito não faz do juízo através do qual se declara bela uma obra de arte de génio um juízo estético logicamente condicionado. Esse princípio é dado pela faculdade do juízo a si mesma, enquanto reflexiva – como tal, ele é um princípio regulativo. Afirma-se apenas que é como se a natureza quisesse, acima de tudo, tornar concordantes todas as nossas faculdades de conhecimento. Na única menção que faz do juízo estético logicamente condicionado, no §48, Kant indica que, num tal juízo, a natureza é ajuizada «na medida em que ela é efectivamente arte (embora sobre-humana) (sofern sie wirklich (obzwar übermenschliche) Kunst ist)» (Kant, 1998: 216). Se quisermos continuar a usar as palavras do §48, diremos que, diferentemente, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte de génio, a natureza é «ajuizada como ela aparece enquanto arte (wie sie als Kunst erscheint)» (Kant, 1998: 216). Por outras palavras (as da “Analítica do sublime”) os fenómenos da natureza são «ajuizados como pertencentes não simplesmente à natureza no seu mecanismo sem fim, mas também à analogia com a arte (als zur Analogie mit der Kunst

gehörig)» (Kant, 1998: 139). No âmbito da reflexão (problematicamente) ajuizar a natureza por

analogia com a arte é legítimo: pode falar-se de uma técnica da natureza (Technik der Natur) – e não meramente de um mecanismo sem fim

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(zwecklosen Mechanismus). Kant refere essa legitimidade desde a Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, na qual anuncia que usará a noção de técnica não só no que concerne às prescrições da habilidade, mas também

onde objetos da natureza, às vezes, são julgados somente como se sua possibilidade se fundasse em arte, casos em que os juízos (…) não determinam nada da índole do objeto, nem do modo de produzi-lo, mas através deles a natureza mesmo é julgada meramente por analogia com uma arte, e aliás na referência subjetiva a nossa faculdade-de-conhecimento, e não na referência objetiva aos objetos (wo Gegenstände

der Natur bisweilen bloß nur so beurteilt werden, als ob ihre Möglichkeit

sich auf Kunst gründe, in welchen Fällen dir Urteile (…) nichts von der

Beschaffenheit des Objekts, noch der art, es hervorzubringen,

bestimmen, sondern wodurch die Natur selbst, aber bloß nach der

Analogie mit einer Kunst, und zwar in subjektiver Beziehung auf unser

Erkenntnisvermögen nicht in objektiver auf die Gegenstände beurteilt

wird) (Kant, 1995: 36).

Ajuizar a natureza por analogia com a arte significa ajuizá-la como arte, como se/que fosse arte. As expressões como (als) e como se/que (als ob), assim como a diferença entre ser (sein) e parecer (scheinen e aussehen), denotam um uso reflexivo da faculdade do juízo. Elas indicam que a faculdade do juízo está a exercer-se reflexivamente. Ao longo do seu texto, Kant recorre múltiplas vezes à diferença e às expressões mencionadas: na “Analítica do sublime”, ao distinguir o sublime do belo, o nosso autor nota que, no caso do último, o objecto, através da conformidade a fins da sua forma, «parece predeterminado para a nossa faculdade de juízo (für unsere Urteilskraft vorherbestimmt zu sein

scheint)» (Kant, 1998: 138); no §42, depois de referir «uma linguagem cifrada pela qual a natureza em suas belas formas nos fala figuradamente», isto é, «uma linguagem que a natureza nos dirige e que parece ter um sentido superior (eine Sprache, die die Natur zu uns führt,

und die einen höhern Sinn zu haben scheint)», Kant ressalva que essa é apenas a maneira como «interpretamos (…) a natureza, quer seja essa a sua intenção quer não» (Kant, 1998: 204-205); ainda no mesmo parágrafo, ao citar «a admiração da natureza», Kant indica que ela «se

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mostra em seus belos produtos como arte (sich an ihren schönen

Produkten als Kunst zeigt), não simplesmente por acaso, mas por assim dizer intencionalmente, segundo uma ordenação conforme a leis e como conformidade a fins sem fim» (Kant, 1998: 204); essa tese vem a ser reforçada no §45, onde o nosso autor assinala que «[a] natureza era bela se ela ao mesmo tempo parecia ser arte ([d]ie Natur war schön, wenn sie

zugleich als Kunst aussah)» (Kant, 1998: 210); no primeiro parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”, por sua vez, Kant afirma que, entre os produtos da natureza, «podemos esperar que sejam possíveis alguns contendo formas específicas [adequadas à faculdade do juízo humana] como se afinal estivessem dispostas para a nossa faculdade do juízo (als ob sie ganz eigentlich für unsere Urteilskraft

angelegt wären)» (Kant, 1998: 273).164 Ora, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte de

génio, a natureza é ajuizada por analogia com a arte – como se fosse arte. Ajuíza-se a natureza como se ela tivesse um fim, nomeadamente o de gerar uma concordância entre todas as faculdades de conhecimento do sujeito. Recorrendo a essa pressuposição, aquele que ajuíza refere a conformidade a fins estética – promovida pelo génio, através do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado, pela faculdade produtiva da imaginação, e de uma certa expressão dessas ideias, pelo espírito – ao princípio do gosto, a saber, ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. Por ocasião da representação de uma obra de arte do génio, ele afirma que é como se a natureza, na forma dessa obra de arte, estivesse disposta para as suas faculdades de conhecimento. O juízo através do qual se declara bela uma obra de arte do génio (o juízo acerca da beleza da arte) é, então, um juízo referido ao princípio do gosto, a

164 De resto, acerca dessas formas, ele acrescentará que «através da sua multiplicidade e unidade, servem para simultaneamente fortalecer e entreter as faculdades do ânimo (que estão em jogo por ocasião do uso desta faculdade)» e que, por isso, atribuir-lhes-emos «o nome de formas belas (schöne Formen)» (Kant, 1998: 273). Citámo-lo no primeiro capítulo deste estudo.

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saber, o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de conhecimento do sujeito, princípio cujo fundamento reside na ideia do supra-sensível.165

Entretanto, importa também ressalvar que nada do que dissemos transforma a obra de arte de génio num efeito, num objecto da natureza. Ela não deixa de ser uma obra de arte e, como tal, um produto do homem. Recordemos, neste contexto, o que é afirmado no §45, a saber, que «[f]ace a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é arte e não natureza ([a]n einem Produkte der schönen Kunst muss man

sich bewusst werden, dass es Kunst sei und nicht Natur)» (Kant, 1998: 210). Salvaguarda-se apenas que o fundamento para a conformidade a fins estética incondicionada que se observa por ocasião da sua representação envolve uma referência necessária à possibilidade de a natureza ser técnica, ter fins, uma referência à analogia da natureza com a causalidade segundo fins, isto é, com a arte. Assim, enquanto «[a] natureza era bela se ela ao mesmo tempo parecia ser arte», a arte é bela se «ao mesmo tempo parece ser natureza (sie zugleich Natur zu sein scheint)», se «temos consciência de que ela é arte (wir uns bewusst sind,

165 Note-se, de resto, ser o próprio Kant quem, ainda na Introdução, estende à arte o âmbito de aplicação do princípio de uma conformidade a fins formal da natureza. Em primeiro lugar, na secção VII, ele nota que o fundamento para o prazer na beleza «se encontra na condição universal, ainda que subjectiva, dos juízos reflexivos, nomeadamente na concordância conforme a fins de um objecto (seja produto da natureza ou da arte (er sei Produkt der Natur oder der Kunst)) com a relação das faculdades de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo o conhecimento empírico (da faculdade de imaginação e do entendimento)» (Kant, 1998: 76); ainda na mesma secção, ao afirmar que «[a] receptividade de um prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas» assinala «uma conformidade a fins dos objectos», Kant identifica essas coisas como sendo «da natureza, assim como da arte (der Natur

sowohl als der Kunst)» (Kant, 1998: 77); finalmente, na secção IX, ao indicar que «[o] conceito da faculdade do juízo de uma conformidade a fins da natureza pertence ainda aos conceitos desta, mas somente como princípio regulativo da faculdade de conhecimento» e que «o juízo estético» que ocasiona esse conceito é «um princípio constitutivo com respeito ao sentimento do prazer ou desprazer», o nosso autor adianta que esse juízo estético pode ser sobre objectos «da natureza ou da arte (der Natur oder

der Kunst)» (Kant, 1998: 83).

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sie sei Kunst)» (Kant, 1998: 210) e – podemos acrescentar, agora – se na bela arte, da qual temos consciência como arte, mas que parece natureza, a natureza parecer ser arte.

É igualmente de assinalar, finalmente, que a obra de arte de génio, levando aquele que ajuíza a ligar ao princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento o prazer que sente por ocasião da sua representação, concretiza a definição, proposta no §44, segundo a qual «a arte estética é, enquanto arte bela, uma arte que tem por padrão de medida a faculdade de juízo reflexiva (ist ästhetische Kunst als schöne Kunst eine solche, die die

reflektierende Urteilskraft zum Richtmaße hat)» (Kant, 1998: 210). O seu princípio é o da faculdade de juízo reflexiva, a saber, o referido princípio da conformidade a fins formal da natureza para as faculdades de conhecimento do sujeito, não obstante as belas obras de arte serem produtos do homem, não efeitos da natureza. Fica reconhecido, assim, o estatuto quer do §44, quer do §45, no âmbito da legitimação da noção de bela arte, estatuto que, na secção “Belas obras de arte”, não tínhamos chegado a justificar.

3. FORMA

3.1. Conformidade a fins da forma

A possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias

estéticas acarreta uma consequência relacionada com a importância da forma na beleza da arte. Ela serve de argumento a favor da tese segundo a qual são vários os elementos responsáveis pelo movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz de um objecto artístico. Ao fazê-lo, ela coloca em causa uma outra tese, que aparentemente se lhe opõe, segundo a qual há um único elemento responsável por esse movimento – a forma.

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A conformidade a fins estética a que temos vindo a fazer referência ao longo da nossa investigação é uma conformidade a fins formal.166 Tal deve significar que aquilo que se tem em conta num juízo de gosto é apenas a condição formal da faculdade do juízo, na medida em que ela é livremente alcançada.167 Entretanto, o facto de a beleza poder ser denominada expressão de ideias estéticas parece indicar que o movimento recíproco formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto pode ser suscitado por múltiplos elementos.168 Algo diferente, porém, é anunciado numa parte significativa da Crítica da Faculdade do Juízo. Analisá-lo afigura-se indispensável para prosseguirmos a nossa investigação acerca da legitimidade e das condições de legitimidade da noção de bela arte tendo como ponto assente a possibilidade de denominação da beleza como expressão de ideias estéticas.

166 Kant usa as expressões conformidade a fins (meramente) formal ((bloß) formale

Zweckmäßigkeit) (cf. Kant, 1998: 64, 74, 112 e 117) e (simples) forma da conformidade a fins ((bloße) Form der Zweckmäßigkeit) (cf. Kant, 1998: 110, 111, 112 e 187). 167 Sublinhe-se, nesse sentido, o segundo requisito que, numa nota do §38, Kant apresenta para que se tenha «direito a reivindicar um assentimento universal num juízo da faculdade de juízo estética, baseado simplesmente sobre fundamentos subjectivos», a saber, que no juízo se considere somente «a condição formal da faculdade do juízo (die formale Bedingung der Urteilskraft)» e que este não esteja «mesclado nem com conceitos do objecto nem com sensações enquanto razões determinantes» (Kant, 1998: 268). Essa condição formal é «a relação das faculdades de conhecimento aí postas em actividade com vista a um conhecimento em geral» (Kant, 1998: 268). Já o tínhamos sugerido, na secção “Juízo estético reflexivo”. Nessa secção, tivemos oportunidade de assinalar que, constituindo a «consonância proporcionada, que exigimos para todo o conhecimento» (Kant, 1998: 108), a relação mencionada corresponde à «condição subjetiva, meramente sensível, do uso objetivo do Juízo» (Kant, 1995: 60), à «condição subjectiva do conhecer» (Kant, 1998: 130), à «condição formal subjectiva de um juízo em geral (subjektive formale Bedingung eines Urteils überhaupt)» (Kant, 1998: 188). De resto, tivemos também oportunidade de chamar a atenção para as várias passagens nas quais o nosso autor, mais explicitamente, nuns casos, menos, noutros, faz referência a essa condição. 168 Importa recordar, neste contexto, que as ideias estéticas são representações da faculdade da imaginação associadas a conceitos dados (cf. Kant, 1998: 222).

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Segundo o nosso autor, no juízo de gosto, o prazer está «ligado à simples apreensão (apprehensio) da forma de um objecto da intuição (mit der bloßen Auffassung (apprehensio) der Form eines Gegenstandes

der Anschauung)» (Kant, 1998: 74).169 No juízo de gosto, o prazer relaciona-se com a forma do objecto, enquanto ela se mostra conforme a fins. Aquilo que é conforme a fins é a forma do objecto.170 Há uma «adequação desse produto (da sua forma) às nossas faculdades de conhecimento (Angemessenheit desselben (seiner Form) zu unseren

Erkenntnisvermögen)» (Kant, 1998: 80). Trata-se, portanto, de «uma conformidade a fins segundo a forma (eine Zweckmäßigkeit der Form)» (Kant, 1998: 110), isto é, da «conformidade a fins subjectiva (subjektive

Zweckmäßigkeit)» da «forma (Form)» do «objecto (Gegenstande)» (Kant, 1998: 191). É essa conformidade a fins que o juízo de gosto tem como fundamento de determinação, é essa conformidade a fins que ele

169 Kant reforça esta tese não apenas na Introdução, ao afirmar que «o fundamento do prazer é colocado simplesmente na forma do objecto (der Grund

der Lust bloß in der Form des Gegenstandes)» (Kant, 1998: 75), que aquele que ajuíza «sente prazer na simples reflexão sobre a forma de um objecto ( in der

bloßen Reflexion über die Form eines Gegenstandes Lust empfindet)» (Kant, 1998: 76) ou que a representação da conformidade a fins «assenta no prazer imediato na forma do objecto na simples reflexão sobre ela (auf der

unmittelbaren Lust an der Form des Gegenstandes in der bloßen Reflexion über

sie beruhe)» (Kant, 1998: 78), mas também na “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, nomeadamente nos §14, §30 e §38, ao indicar, respectivamente, que no juízo de gosto há um «comprazimento na forma (Wohlgefallen an der Form)» (Kant, 1998: 116), que o «comprazimento ou desagrado concerne à forma do

objecto (Wohlgefallen oder Missfallen an der Form des Objekts betrifft)» (Kant, 1998: 179) ou que «o comprazimento no objecto (das Wohlgefallen an dem Gegenstande)» está «ligado ao simples julgamento da sua forma (mit der bloßen

Beurteilung seiner Form verbunden)» (Kant, 1998: 191). No §15, o nosso autor faz referência a «uma satisfação para captar uma forma dada na faculdade da imaginação (eine Behaglichkeit eine gegebene Form in die Einbildungskraft

aufzufassen)» (Kant, 1998: 118). 170 Veja-se algo que, na Introdução, Kant afirma acerca do juízo de gosto, a saber, que nesta espécie de juízo «a forma do objecto é conforme a fins (die

Form des Objekts zweckmäßig ist)» (Kant, 1998: 77).

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expressa.171 É essa conformidade a fins que se situa no fundamento do juízo através do qual se declara belo um objecto.172 Por conseguinte, aquilo a que a beleza concerne é a forma do objecto.173 Assim pode explicar-se, de resto, que Kant fale, no §14, de uma «forma bela (schöne

Form)» (Kant, 1998: 115 e 116), no §41, de «belas formas (schöne

171 Considere-se o §13, no qual Kant diz que um puro juízo de gosto «tem como fundamento de determinação simplesmente a conformidade a fins da forma (bloß die Zweckmäßigkeit der Form zum Bestimmungsgrunde hat)» (Kant, 1998: 113), e o §31, onde o nosso autor refere que essa espécie de juízo «expressa a conformidade a fins subjectiva de uma representação empírica da forma de um objecto (die subjektive

Zweckmäßigkeit einer empirischen Vorstellung der Form eines Gegenstandes

ausdrückt)» (Kant, 1998: 181). Além disso, recorde-se a seguinte referência que, na secção VIII da Introdução, é feita ao princípio do gosto: este princípio «consiste em representar uma conformidade a fins da natureza, na relação subjectiva às nossas faculdades de conhecimento, na forma de uma coisa (an der Form eines Dinges)» (Kant, 1998: 79). Como tivemos oportunidade de notar, Kant também lhe chama «conceito de uma conformidade a fins subjectiva da natureza, nas suas formas (in ihren Formen) segundo leis empíricas» (Kant, 1998: 78). 172 Na “Analítica do sublime”, Kant sugere que no belo «o juízo estético dizia respeito à forma do objecto (das ästhetische Urteil die Form des Objekts betraf)» (Kant, 1998: 141). Igualmente no segundo livro da “Analítica da faculdade de juízo estética”, ao distinguir entre a sublimidade e beleza, o nosso autor afirma que naquela «não se [situa] no fundamento [do julgamento] nenhuma conformidade a fins da forma do objecto (como no belo) (hier keine Zweckmäßigkeit der Form des Gegenstandes (wie

beim Schönen) der Beurteilung zum Grunde liegt)» (Kant, 1998: 148). Em jeito de comentário lateral, devemos notar que, de facto, a ausência de forma ou de figura pode ser conveniente ao sentimento do sublime – como nota Kant, no §23: «a natureza (…) no seu caos ou na sua desordem e devastação mais selvagem e desregrada é que suscita as ideias do sublime, quando somente magnitude e poder se deixam ver» (Kant, 1998: 140). 173 Se, no §13, Kant afirma que a beleza «deveria concernir propriamente só à forma (eigentlich bloß die Form betreffen sollte)» (Kant, 1998: 113), no §16, o nosso autor diz explicitamente que a beleza livre «propriamente só concerne à forma (eigentlich nur die Form betrifft)» (Kant, 1998: 121). No mesmo parágrafo, Kant já tinha referido que a beleza é ajuizada «segundo a mera forma (der bloßen Form nach)» (Kant, 1998: 120); no §14, tinha assinalado que ela é «atribuída ao objecto em virtude da sua forma (die dem Gegenstande seiner Form wegen beigelegte Schönheit)» (Kant, 1998: 115). Entretanto, no primeiro parágrafo da “Analítica do sublime”, ele sublinhará que «[o] belo da natureza concerne à forma do objecto, que consiste na limitação ([d]as Schöne

der Natur betrifft die Form des Gegenstandes, die in der Begrenzung besteht)» (Kant, 1998: 137).

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Formen)» (Kant, 1998: 200), ou, no §42, de «formas belas da natureza (schönen Formen der Natur)» (Kant, 1998: 202).

3.2. Figura

Procuremos saber a que corresponde a noção forma (Form) na Crítica da

Faculdade do Juízo. Desde logo no §16, encontra-se uma passagem que satisfaz a nossa inquietação:

No julgamento de uma beleza livre (segundo a mera forma) o juízo de gosto é puro. Não é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva representar, mediante o que unicamente seria limitada a liberdade da faculdade da imaginação, que joga por assim dizer na observação da figura (In der Beurteilung einer freien Schönheit (der bloßen Form nach)

ist das Geschmacksurteil rein. Es ist kein Begriff von irgend einem

Zwecke, wozu das Mannigfaltige dem gegebenen Objekte dienen und

was dieses also vorstellen sole, vorausgesetzt, wodurch die Freiheit der

Einbildungskraft, die in Beobachtung der Gestalt gleichsam spielt, nur

eingeschränkt warden würde) (Kant, 1998: 120-121).

Forma corresponde a figura (Gestalt). De acordo com esta passagem, no juízo de gosto, o movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto é activado através da observação da figura.174 Esta tese vem a ser reforçada, no §30, quando o nosso autor afirma que no juízo através do qual se declara belo um objecto natural

a conformidade a fins tem então o seu fundamento no objecto e na sua figura, conquanto ela não indique a relação do mesmo a outros objectos segundo conceitos (para o juízo de conhecimento), mas concerne simplesmente em geral à apreensão desta forma, enquanto ela no ânimo

174 Considerando a posição que sustentámos na secção “Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte”, continuamos a usar indistintamente as expressões juízo de gosto puro (reines Geschmacksurteil) e juízo de gosto (Geschmacksurteil), assim como beleza (Schönheit) e beleza livre (freie Schönheit). Note-se, além disso, que mantemos entre parêntesis a afirmação, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito.

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se mostra conforme à faculdade, tanto dos conceitos como da apresentação dos mesmos (que é idêntica à faculdade de apreensão) (die

Zweckmäßigkeit hat alsdann doch im Objekte und seiner Gestalt ihren

Grund, wenn sie gleich nicht die Beziehung desselben auf andere

Gegenstände nach Begriffen (zum Erkenntnisurteile) anzeigt; sondern

bloß die Auffassung dieser Form, sofern sie dem Vermögen sowohl der

Begriffe, als dem Darstellung derselben (welches mit dem der

Auffassung eines und dasselbe ist) im Gemüt sich gemäß zeigt,

überhaupt betrifft) (Kant, 1998: 179-180).

Pois bem, tal como associa a beleza à forma, isto é, à figura do objecto, Kant associa a agradabilidade à matéria (Materie). Ora, como sabemos, a beleza é independente da agradabilidade – o juízo de gosto é independente da sensação através da qual declaramos agradável um objecto. Assim, de acordo com o nosso autor, aquilo que num juízo de gosto tem de ser considerado é a forma do objecto, não a matéria. Embora o sugira desde logo na Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, nomeadamente ao indicar que tem «de se ajuizar a forma do objecto (não o material da sua representação, como sensação) (Wessen Gegenstandes Form (nicht das

Materielle seiner Vorstellung, als Empfindung)) na simples reflexão sobre a mesma (sem ter a intenção de obter um conceito dele), como o fundamento de um prazer na representação de um tal objecto» (Kant, 1998: 75), é nos §13, §39 e §40 que Kant mais claramente identifica a matéria com a agradabilidade e, por conseguinte, a impede de servir de fundamento de determinação do juízo de gosto. As passagens em causa são as seguintes, respectivamente:

atractivos frequentemente são, não apenas contados como beleza (que todavia deveria concernir propriamente só à forma) como contribuição para o comprazimento estético universal, mas até são feitos passar em si mesmos por belezas, por conseguinte a matéria do comprazimento é feita passar pela forma; um equívoco que, como muitos outros – que entretanto sempre ainda tem algo verdadeiro por fundamento – deixa-se remover mediante cuidadosa determinação destes conceitos (werden

Reize doch öfter nicht allein zur Schönheit (die doch eigentlich bloß die

Form betreffen sollte) als Beitrag zum ästhetischen allgemeinen

Wohlgefallen gezählt, sondern sie werden wohl gar an sich selbst für

Schönheiten, mithin die Materie des Wohlgefallens für die Form

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ausgegeben: ein Missverstand, der sich so wie mancher andere, welcher

doch noch immer etwas Wahres zum Grunde hat, durch sorgfältige

Bestimmung dieser Begriffe heben lässt) (Kant, 1998: 113);

aquele que julga com gosto (contanto que ele não se engane nesta consciência e não tome a matéria pela forma, o atractivo pela beleza) pode postular em todo o outro a conformidade a fins subjectiva, isto é o seu comprazimento no objecto, e admitir o seu sentimento como universalmente comunicável e na verdade sem mediação dos conceitos (darf der mit Geschmack Urteilende (wenn er nur in diesem Bewusstsein

nicht irrt und nicht die Materie für die Form, Reiz für Schönheit nimmt)

die subjektive Zweckmäßigkeit, d. i. sein Wohlgefallen am Objekte,

jedem andern ansinnen und sein Gefühl als allgemein mitteilbar und

zwar ohne Vermittelung der Begriffe annehmen) (Kant, 1998: 195);

e

simplesmente abstraímos das limitações que acidentalmente aderem ao nosso próprio julgamento: o que é por sua vez produzido pelo facto que na medida do possível se elimina aquilo que no estado da representação é matéria, isto é sensação, e presta-se atenção pura e simplesmente às peculiaridades formais da sua representação ou do seu estado de representação (man bloß von den Beschränkungen, die unserer eigenen

Beurteilung zufälliger Weise anhängen,abstrahiert: welches wiederum

dadurch bewirkt wird, dass man das, was in dem Vorstellungszustande

Materie, d. i. Empfindung ist, so viel möglich weglässt und lediglich auf

die formalen Eigentümlichkeiten seiner Vorstellung oder seines

Vorstellungszustandes Acht hat) (Kant, 1998: 196).

De resto, é precisamente por causa da identificação da matéria com a agradabilidade que Kant exclui as cores – assim como os sons – do âmbito daquilo que num juízo de gosto é considerado. É no §14 que o nosso autor procede a essa exclusão.175

175 Vejam-se, nesse sentido, as seguintes passagens: «[u]ma simples cor, por exemplo a cor [verde] da relva, um simples som (à diferença do eco e do ruído), como porventura o de um violino, é em si declarado belo pela maioria das pessoas, se bem que ambos pareçam ter por fundamento simplesmente a matéria das representações, a saber pura e simplesmente a sensação e por isso mereceram ser chamados somente agradáveis ([e]ine bloße Farbe, z. B. die grüne eines Rasenplatzes, ein bloßer Ton

(zum Unterschiede vom Schalle und Geräusch), wie etwa der einer Violine, wird von

den Meisten an sich für schön erklärt; obzwar beide bloß die Materie der

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3.3. Jogo

Ainda no parágrafo no qual exclui as cores e os sons do âmbito do fundamento do juízo de gosto (§14) Kant associa a noção de forma não apenas à noção de figura, mas também à noção de jogo (Spiel). Afirma ele que «[t]oda a forma dos objectos dos sentidos (dos externos assim como mediatamente do interno) é ou figura ou jogo; no último caso, ou jogo das figuras (no espaço: a mímica e a dança); ou simples jogo das sensações (no tempo) ([a]lle Form der Gegenstände der Sinne (der äußern sowohl

als mittelbar auch der innern) ist entweder Gestalt, oder Spiel; im letztern

Falle entweder Spiel der Gestalten (im Raume die Mimik und der Tanz);

oder bloßes Spiel der Empfindungen (in der Zeit))» (Kant, 1998: 116). A forma de um objecto dos sentidos pode ser ou figura ou jogo. No caso de a forma ser figura, aquilo que importa no juízo de gosto é o desenho (Zeichnung); se a forma for jogo – seja jogo das figuras, seja jogo das sensações – o que importa na declaração do objecto como belo é a composição (Komposition): «o desenho na primeira e a composição no último constitui o verdadeiro objecto do juízo de gosto puro (die Zeichnung in der ersten und die Komposition in dem letzten machen den

eigentlichen Gegenstand der reinen Geschmacksurteil aus)» (Kant, 1998: 116). Nesse último caso, o juízo de gosto centra-se na maneira como as

Vorstellungen, nämlich lediglich Empfindung, zum Grunde zu haben scheinen und

darum nur engenehm genannt zu werden verdienten)» (Kant, 1998: 114); e «[a]s cores que iluminam o esboço pertencem ao atractivo; elas na verdade podem vivificar o objecto em si para a sensação, mas não o tornar digno de intuição e belo; elas até em grande parte são limitadas muito por aquilo que a forma bela requer, e mesmo lá onde o atractivo é admitido são enobrecidas unicamente por ela ([d]ie Farben, welche den

Abriss illuminieren, gehören zum Reiz; den Gegenstand an sich können sie zwar für die Empfindung belebt, aber nicht anschauungswürdig und schön machen; vielmehr

werden sie durch das, was die schöne Form erfordert, mehrentheils gar sehr

eingeschränkt und selbst da, wo der Reiz zugelassen wird, durch die erstere allein veredelt)» (Kant, 1998: 115). Entretanto, no §41, Kant voltará a identificar as cores com aquilo que meramente atrai: como primeiro exemplo de «atractivos (Reize)» ele dá «cores para se pintar (rocou entre os caraibenhos e cinabre entre os iroqueses) (Farben, um sich zu bemalen (Rocou bei den Karaiben und Zinnober bei den

Irokesen))» (Kant, 1998: 200).

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figuras jogam no espaço ou como as sensações jogam no tempo, isto é, na maneira como as figuras e as sensações estão compostas respectivamente no espaço e no tempo. É enquanto enformadas, enquanto formalmente organizadas, enquanto submetidas à forma, que as cores podem contribuir para a beleza. É assim que elas podem mesmo ser belas:

Se com Euler se admite que as cores sejam simultaneamente pulsações (pulsus) do éter sucessivas umas às outras, como sons do ar vibrado na ressonância e, o que é o mais nobre, que o ânimo perceba (do que absolutamente não duvido) não meramente pelo sentido o efeito disso sobre a vivificação do órgão, mas também pela reflexão o jogo regular das impressões (por conseguinte a forma na ligação de representações diversas): então cor e som não seriam simples sensações, mas já determinações formais da unidade de um múltiplo dos mesmos e neste caso poderiam ser também contados por si como belezas (würde Farbe

und Ton nicht bloße Empfindungen, sondern schon formale Bestimmung

der Einheit eines Mannigfaltigen derselben sein und alsdann auch für

sich zu Schönheiten gezählt werden können)» (Kant, 1998: 114-115).

Entretanto, Kant desenvolve a possibilidade de as cores serem belas através de uma associação entre pureza e forma:

o elemento puro de um modo simples de sensação significa que a uniformidade da mesma não é perturbada e interrompida por nenhum modo estranho de sensação e pertence meramente à forma; porque neste caso se abstrai da qualidade daquele modo de sensação (seja que cor ou som ele represente). Por isso todas as cores simples, na medida em que são puras, são consideradas belas ([d]as Reine einer einfachen

Empfindungsart bedeutet, dass die Gleichförmigkeit derselben durch

keine fremdartige Empfindung gestört und unterbrochen wird, und

gehört bloß zur Form: weil man dabei von der Qualität jener

Empfindungsart (ob und welche Farbe, oder ob und welchen Ton sie

vorstelle) abstrahieren kann. Daher werden alle einfache Farben, sofern

sie rein sind, für schön gehalten) (Kant, 1998: 115).

Assim,

as sensações da cor como as do som somente se consideram no direito de valer como belas na medida em que ambos são puras; o que é uma determinação que já concerne à forma e ao único dessas representações que com certeza pode comunicar-se universalmente (die Empfindungen

der Farbe sowohl als des Tons sich nur sofern für schön zu gelten

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berechtigt halten, als beide rein sind; welches eine Bestimmung ist, die

schon die Form betrifft, und auch das einzige, was sich von diesen

Vorstellungen mit Gewissheit allgemein mitteilen lässt) (Kant, 1998: 114).176

Quanto às cores mescladas, elas «não têm esta prerrogativa precisamente porque, já que não são simples, não possuímos nenhum padrão de medida para o julgamento sobre se devemos chamá-las puras ou impuras (haben diesen Vorzug nicht: eben darum weil, da sie nicht

einfach sind, man keinen Maßstab der Beurteilung hat, ob man sie rein

oder unrein nennen solle)» (Kant, 1998: 115). Sem prejuízo do que acabámos de assinalar, salvaguarde-se, ainda assim, que mesmo as cores puras só podem contribuir para a beleza enquanto podem contribuir para a forma:

o facto que a pureza das cores assim como a dos sons, mas também a multiplicidade dos mesmos e o seu contraste, pareçam contribuir para a beleza, não quer significar que é como se produzissem um acréscimo homogéneo ao comprazimento na forma, porque são por si agradáveis, mas somente porque elas tornam esta última mais exacta, determinada e completamente intuível, e além disso vivificam pelo seu atractivo as representações, enquanto despertam e mantêm a atenção sobre o próprio objecto (das die Reinigkeit der

Farben sowohl als der Töne, oder auch die Mannigfaltigkeit

derselben und ihre Abstechung zur Schönheit beizutragen scheint,

will nicht so viel sagen, dass sie darum, weil sie für sich angenehm

sind, gleichsam einen glaichartigen Zusatz zu dem Wohlgefallen an

der Form abgeben, sondern weil sie diese letztere nur genauer,

bestimmter und vollständiger anschaulich machen und überdem

durch ihren Reiz die Vorstellung beleben, indem sie die

Aufmerksamkeit auf den Gegenstand selbst erwecken und erhalten) (Kant, 1998: 116).

176 O mesmo se passa com «aquilo a que se chama ornamentos (parerga) (Zierraten (Parerga)) isto é, [com aquilo] que não pertence à inteira representação do objecto como parte integrante internamente, mas só externamente como acréscimo» (Kant, 1998: 116). É «somente pela sua forma (nur durch seine Form), como as molduras dos quadros, ou as vestes em estátuas, ou as arcadas em torno de edifícios sumptuosos» que um ornamento «aumenta o comprazimento do gosto (das

Wohlgefallen des Geschmacks vergrößert)» (Kant, 1998: 116).

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Por isso é que pode falar-se – como Kant efectivamente fala, no §41 – de «flores, conchas, penas de pássaros belamente coloridas (schönfarbige)» (Kant, 1998: 200). Outras haverá que são coloridas, mas não belamente, isto é, que não tornam a forma mais exacta, determinada e completamente intuível, que não despertam nem mantêm a atenção sobre o próprio objecto e que não vivificam pelo seu atractivo as representações.

Mais à frente, no §42, Kant retomará as teses defendidas no §14. No parágrafo acerca do interesse intelectual pelo belo, o nosso autor afirma que «[o]s atractivos ([d]ie Reize)» que «pertencem às modificações da luz (na coloração) ou às do som (em tons) (sind entweder zu den

Modifikationen des Lichts (in der Farbengebung) oder des Schalles (in

Tönen) gehörig)» são «tão frequentemente (…) encontrados como que amalgamados com a forma bela (so häufig mit der schönen Form

gleichsam zusammenschmelzend angetroffen)» (Kant, 1998: 205) porque aquelas

são as únicas sensações que não permitem simplesmente um sentimento sensorial, mas também reflexão sobre a forma destas modificações dos sentidos, e assim contêm com que uma linguagem que a natureza nos dirige e que parece ter um sentido superior (sind die einzigen

Empfindungen, welche nicht bloß Sinnengefühl, sondern auch Reflexion

über die Form dieser Modifikationen der Sinne verstatten und so

gleichsam eine Sprache, die die Natur zu uns führt, und die einen höhern

Sinn zu haben scheint, in sich enthalten) (Kant, 1998: 205).

O mesmo se passa no §51. Aí, Kant nota que o ouvido e a vista

com excepção da receptividade para sensações, na medida do que é requerido para obter por intermédio delas conceitos de objectos exteriores, são ainda capazes de uma sensação particular ligada a eles, sobre a qual não se pode decidir com certeza se ela tem por fundamento o sentido ou a reflexão (außer der Empfänglichkeit für Eindrücke, so viel

davon erforderlich ist, um von äußern Gegenständen vermittelst ihrer

Begriffe zu bekommen, noch einer besondern damit verbundenen

Empfindung fähig sind, von welcher man nicht recht ausmachen kann,

ob sie den Sinn, oder die Reflexion zum Grunde habe) (Kant, 1998: 230),

ou seja, que «não se pode dizer com certeza se uma cor ou um tom (som) são simplesmente agradáveis, ou se já é em si um jogo belo de sensações

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e se como tal traz consigo, no julgamento estético, um comprazimento na forma (man kann nicht mit Gewissheit sagen: ob eine Farbe oder ein Ton

(Klang) bloß angenehme Empfindungen, oder an sich schon ein schönes

Spiel von Empfindungen sei und als ein solches ein Wohlgefallen an der

Form in der ästhetischen Beurteilung bei sich führe)» (Kant, 1998: 231). Não obstante a afirmação da possibilidade de as cores contribuírem

para a beleza – ou, até, de serem, elas mesmas, belas, desde que enformadas – aquilo que num juízo de gosto se considera é, segundo o nosso autor, a forma do objecto, isto é, a sua figura ou o seu jogo, a composição deste ou o desenho daquela.177 Esses são os elementos essenciais quer para a beleza da natureza, quer para a beleza da arte, para as chamadas belas-artes (schöne Künste):

Na pintura, na escultura, enfim em todas as artes plásticas, na arquitectura, na jardinagem, na medida em que são belas-artes, o desenho é o essencial, no qual não é o que deleita na sensação, mas simplesmente o que apraz pela sua forma que constitui o fundamento de toda a disposição para o gosto (In der Malerei, Bildhauerkunst, ja allen

bildenden Künsten, in der Baukunst, Gartenkunst, sofern sie schöne

Kunste sind, ist die Zeichnung das Wesentliche, in welcher nicht, was in

der Empfindung vergnügt, sondern bloß was durch seine Form gefällt,

den Grund aller Anlage für den Geschmack ausmacht) (Kant, 1998: 115).

Também no caso das belas-artes pode ser «acrescido (hinzukommen)» à forma (à figura, ao jogo, ao desenho, à composição) o «atractivo das cores (Reiz der Farben)» ou, se nos referirmos em particular à arte do som (a música) o atractivo «de tons agradáveis do instrumento (angenehmer Töne

177 Veja-se, a este propósito, o que afirma Deleuze: «Acontece por vezes a Kant perguntar: uma cor, um som, podem ser ditos belos por si mesmos? Talvez o fossem se, em lugar de apreendermos materialmente o seu efeito qualitativo sobre os nossos sentidos, fôssemos capazes de reflectir pela nossa imaginação as vibrações de que eles se compõem. Mas a cor e o som são demasiado materiais e acham-se demasiado impregnados nos nossos sentidos para se reflectirem assim na imaginação: são adjuvantes, mais do que elementos da beleza. O essencial é o desenho, é a composição, os quais são precisamente manifestações da reflexão formal» (Deleuze, 2000: 54).

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des Instruments)» (Kant, 1998: 116).178 No entanto, aquilo em que o sujeito se fundamenta para declarar belo o objecto artístico é, segundo Kant, a forma desse objecto. O juízo de gosto é baseado, aí, não na «simples impressão dos sentidos (bloßen Sinneneindruck)», na sensação do «efeito (Wirkung)» dos «estremecimentos (Zitterungen)» provocados pelas «vibrações do ar (Luftbebungen)» nas «partes elásticas de nosso corpo (elastischen Teile unsers Körpers)», mas no apercebimento da «divisão do tempo (Zeiteinteilung)», isto é, no «matemático que na música e no seu julgamento se deixa expressar sobre a proporção dessas vibrações (Mathematische, welches sich über die Proportion dieser Schwingungen

in der Musik und ihre Beurteilung sagen lässt)», ou seja, na «composição (Komposition)», na «forma no jogo de muitas sensações (Form im Spiele

vieler Empfindungen)» (Kant, 1998: 231). Nesse caso a música pode ser definida «como o jogo belo das sensações (pelo ouvido) (das schöne Spiel

der Empfindungen (durch das Gehör))» (Kant, 1998: 231). Kant indica-o no §51. No §53, ele sublinha a separação – entre forma, por um lado, e agradabilidade, atractivo, matéria, por outro. Segundo o nosso autor,

no atractivo e no movimento do ânimo, que a música produz, a matemática não tem certamente a mínima participação; ela é somente a condição indispensável (conditio sine qua non) daquela proporção das impressões, tanto na sua ligação como na sua mudança, pela qual se torna possível compreendê-las e impedir que elas se destruam mutuamente, mas concordem com um movimento contínuo e uma vivificação do ânimo através de afectos consonantes com ele, e assim concordem numa agradável autofruição (am dem Reize und der Gemütsbewegung, welche

die Musik hervorbringt, hat die Mathematik sicherlich nicht den

mindesten Anteil; sondern sie ist nur die unumgängliche Bedingung

(conditio sine qua non) derjenigen Proportion der Eindrücke in ihrer

Verbindung sowohl als ihrem Wechsel, wodurch es möglich wird sie

zusammen zu fassen und zu verhindern, dass diese einander nicht

zerstören, sondern zu einer kontinuierlichen Bewegung und Belebung

178 Recordemos a salvaguarda que é feita na parte final do §13, segundo a qual «atractivo e comoção (Reiz und Rührung)» se deixam «ligar ao comprazimento no belo (mit dem Wohlgefallen am Schönen verbinden)» (Kant, 1998: 113).

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des Gemüts durch damit konsonierende Affekten und hiemit zu einem

behaglichen Selbstgenusse zusammenstimmen) (Kant, 1998: 235-236).

É para a beleza da música que a matemática tem importância – à «forma matemática, embora não representada por conceitos determinados, unicamente se prende o comprazimento que a simples reflexão (…) conecta com este jogo das mesmas como condição da sua beleza, válida para qualquer um (mathematischen Form, obgleich nicht durch

bestimmte Begriffe vorgestellt, hängt allein das Wohlgefallen, welches

die bloße Reflexion mit diesem Spiele derselben als für jedermann

gültige Bedingung seiner Schönheit verknüpft)» (Kant, 1998: 235); além disso «somente segundo tal forma o gosto pode arrogar-se um direito de pronunciar-se antecipadamente sobre o juízo de qualquer um (sie ist es allein, nach welcher der Geschmack sich ein Recht über das

Urteil von jedermann zum voraus auszusprechen anmaßen darf)» (Kant, 1998: 235).179

3.4. Da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura ao

“Terceiro momento do juízo de gosto” da Crítica da Faculdade do

Juízo

Nas passagens que temos vindo a citar dos §51 e §53 – assim como, mais residualmente, na “Analítica do sublime” e nos §39-§42 – são reforçadas as teses explicitadas por Kant ao longo do “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”, muito em particular no §14. Crawford considera ser esse o momento no qual «a

179 No entender de Kant, ainda assim, se «[a]juizada pela razão (durch Vernunft

beurteilt)», a arte do som «possui valor menor que qualquer outra das belas-artes (hat weniger Wert, als jede andere der schönen Künste)», pois, apesar de mover «o ânimo de modo mais variado e, embora só passageiramente, no entanto mais intimamente (das Gemüt mannigfaltiger und, obgleich bloß vorübergehend, doch inniglicher)», essa arte «é certamente mais gozo que cultura (o jogo de pensamento, que incidentemente é com isso suscitado, é simplesmente o efeito de uma associação por assim dizer mecânica) (ist freilich mehr Genuß als Kultur (das Gedankenspiel, was

nebenbei dadurch erregt wird, ist bloß die Wirkung einer gleichsam mechanischen

Assoziation))» (Kant, 1998: 234).

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experiência subjectiva do apreciador é ligada às qualidades do objecto em apreciação» (Crawford, 1974: 96).180 Na mesma linha de pensamento, Guyer toma o terceiro momento como mostrando o esforço feito por Kant com vista a associar a propriedades particulares dos objectos – ou mesmo a tipos específicos de objectos – a disposição formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza:

[o] terceiro momento representa a tentativa de Kant para alcançar o objectivo tradicional da estética: o de especificar directamente certas propriedades ou mesmo tipos de objectos que autorizem os juízos de gosto, sem necessidade de reflexão adicional acerca da nossa resposta a esses aspectos ou tipos de objectos (Guyer, 1997: 185).

Aquilo que Kant tenta ao longo dos parágrafos relativos a esse momento é, segundo o comentador, «associar o conceito geral da forma da finalidade com um tipo de forma mais específico» (Guyer, 1997: 187). Ao fazê-lo, Kant, ainda de acordo com Guyer, «finalmente afirma uma doutrina do formalismo genuinamente restritiva» (Guyer, 1997: 201). De facto, ao identificar a forma com a figura ou com o jogo, com o desenho ou com a composição, Kant coloca como fundamento de determinação do juízo de gosto o movimento harmónico das faculdades de conhecimento entre si enquanto suscitado por um elemento específico do objecto – e não independentemente dos elementos que possam suscitar essa disposição anímica – nomeadamente pela figura ou pelo jogo, pelo desenho ou pela composição – e não pela expressão de ideias estéticas que a representação do objecto envolve. Interessa-nos saber não apenas por que razão Kant o faz, mas igualmente se a sua posição é uma consequência das exigências por si estabelecidas para que um juízo seja um juízo de gosto. Só assim poderemos saber se – e, eventualmente, sob que condições – será a forma do objecto o elemento responsável pelo movimento formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz desse mesmo objecto.

180 No entender do intérprete, é nesse momento do juízo de gosto que Kant «dá substância à sua teoria estética» (Crawford, 1974: 96).

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Façamos um percurso pelo primeiro parágrafo da “Estética transcendental” da Crítica da Razão Pura. Nesse parágrafo, Kant define sensação (Empfindung) e distingue intuição empírica de intuição pura: a sensação é «[o] efeito de um objecto sobre a capacidade representativa, na medida em que por ele somos afectados ([d]ie Wirkung eines Gegenstandes auf die Vorstellungsfähigkeit,

sofern wir von demselben afficiert werden)» (Kant, 2001: 61); quanto aos tipos de intuição, Kant chama empírica (empirisch) à «intuição que se relaciona com o objecto, por meio de sensação (Anschauung,

welche sich auf den Gegenstand durch Empfindung bezieht)» (Kant, 2001: 61), implicando esta definição que a sensação esteja contida na intuição, e chama «puras (no sentido transcendental) todas as representações em que nada se encontra que pertença à sensação (rein (im transzendentale Verstande) alle Vorstellungen in denen nichts,

was zur Empfindung gehört, angetroffen wird )» (Kant, 2001: 62).181 Além de estabelecer a distinção mencionada e de definir sensação, o nosso autor chama matéria (Materie) precisamente «ao que no fenómeno corresponde à sensação ([i]n der Erscheinung was der

Empfindung korrespondiert)»; quanto ao termo forma (Form), ele aplica-o «ao que, porém, possibilita que o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações (dasjenige aber, welches

macht, dass das Mannigfaltige der Erscheinung in gewissen

Verhältnissen geordnet werden kann)» (Kant, 2001: 62).182 Ora, sendo, a forma, aquilo a que concerne a unidade do diverso empírico, é a forma o elemento responsável pelo estabelecimento de um movimento reciprocamente harmónico das faculdades de

181 Tal não significa que entre a intuição pura e a representação sensorial não existe uma conexão. A intuição pura está relacionada com a percepção através da forma do fenómeno. 182 A própria distinção entre juízo empírico e juízo puro está dependente da divisão do fenómeno em matéria e forma – isto é, em constituintes materiais, dados pela sensação, e constituintes formais – pois o primeiro tipo de juízo depende de intuições empíricas e o segundo depende de intuições puras.

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conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto.183

Mantenhamo-nos no início da primeira parte da “Doutrina Transcendental dos Elementos”. Kant afirma que «se a matéria de todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação (ist uns zwar die Materie aller Erscheinung nur a posteriori gegeben, die Form derselben muss zu ihnen insgesamt im Gemüte a priori bereit liegen und daher abgesondert von aller Empfindung

können betrachtet werden)» (Kant, 2001: 62).184 Existe, então, a possibilidade de abstrair os aspectos formais da representação dos

183 Sem prejuízo das definições de forma e de matéria que aqui transcrevemos, devemos salvaguardar, com Crawford, que o uso dado por Kant à distinção entre essas duas noções é, na Crítica da Razão Pura, um «uso amplo» (Crawford, 1974: 97). Segundo Crawford, Kant aplica essa distinção (forma-matéria, ou, alternativamente, forma-conteúdo) a quatro níveis (cf. Crawford, 1974: 97-98). Assim, como o comentador ressalva, «o elemento material de uma aplicação da distinção pode ele mesmo num outro nível de aplicação ser analisado nos seus elementos formais e materiais. Por exemplo, ao nível de uma dada cognição ou experiência, o elemento formal consiste em categorias e conceitos e o elemento material consiste nas intuições (apercepções particulares) dadas através da faculdade da sensibilidade. Mas qualquer destas intuições pode ela mesma ser analisada nos seus componentes formais e materiais. Logo, o que pode ser dito ser o elemento formal ou material depende do nível de aplicação da distinção forma-conteúdo» (Crawford, 1974: 97). No entanto, Crawford não deixa de assinalar – e isso é o que mais nos interessa sublinhar – que, em qualquer das quatro aplicações da distinção referida, «a matéria ou conteúdo consiste em certos elementos e a forma é a maneira na qual, ou a estrutura em termos da qual, estes elementos são relacionados entre si» (Crawford, 1974: 98). A forma é mencionada como «ordenando a matéria, relacionando os elementos de uma maneira que lhes dá unidade» (Crawford, 1974: 98). 184 Na tradução que fazem da primeira Crítica, Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão fazem corresponder “Gemüte” a “espírito”; na tradução por nós citada da terceira Crítica, assim como ao longo da nossa tese, “espírito” corresponde única e exclusivamente a “Geist”. Importa não confundir o Geist da terceira Crítica, que apresentámos na subsecção “Expressão de ideias estéticas”, com o espírito da tradução que citamos da primeira Crítica – esse espírito tem o ânimo como termo correspondente na nossa tese.

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objectos dos seus aspectos materiais. O juízo puro a priori incide sobre essa «forma pura das intuições sensíveis em geral (reine Form

sinnlicher Anschauungen überhaupt)» que «deverá encontrar-se absolutamente a priori no espírito (im Gemüte a priori angetroffen

werden)» e «na qual todo o diverso dos fenómenos se intui em determinadas condições (worin alles Mannigfaltige der Erscheinungen

in gewissen Verhältnissen angeschauet wird)» (Kant, 2001: 62). Em terceiro lugar, importa notar que Kant nos informa acerca das

referidas condições: de acordo com o nosso autor, se apartarmos da intuição empírica «tudo o que pertence à sensação (…) se apurará que há duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a saber, o espaço e o tempo (alles, was zur Empfindung gehört (…) wird sich finden, dass, es zwei reine Formen sinnlicher Anschauung

als Prinzipien der Erkenntnis a priori gebe, nämlich Raum und Zeit)» (Kant, 2001: 63). A forma a priori de todos os fenómenos é, então, espaço e tempo. É por isso, aliás, que

quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensação, como seja impenetrabilidade, dureza, cor, etc., algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura (wenn ich

von der Vorstellung eines Körpers das, was der Verstand davon denkt,

als Substanz, Kraft, Teilbarkeit etc., imgleichen was davon zur

Empfindung gehört, als Undurchdringlichkeit, Härte, Farbe, etc.,

absondere, so bleibt wir aus dieser empirischen Anschauung noch etwas

übrig, nämlich Ausdehnung und Gestalt) (Kant, 2001: 62).

Segundo Kant, a extensão e a figura «pertencem à intuição pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como forma da sensibilidade (gehören zur

reinen Anschauung, die a priori, auch ohne einen wirklichen Gegenstand

der Sinne oder Empfindung, als eine bloße Form der Sinnlichkeit im

Gemüte stattfindet)» (Kant, 2001: 62). O objecto do juízo puro a priori é, por conseguinte, constituído pelos aspectos espaciais e temporais dos objectos: no que concerne ao sentido externo, a extensão e a figura; no que concerne ao sentido interno, o jogo.

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Percorrido nada mais do que o primeiro parágrafo da “Estética transcendental”, e não deixando escapar aquilo que é defendido por Kant no chamado terceiro momento do juízo de gosto, podemos concluir que Kant transfere para a Crítica da Faculdade do Juízo – ou, pelo menos, para o mencionado momento do juízo de gosto – quer a distinção forma-matéria, quer a teoria da percepção esboçada no início da primeira parte da “Doutrina Transcendental dos Elementos” da Crítica da Razão Pura. De facto, é a partir de uma tal transferência que se supõem a figura e o jogo como sendo os objectos únicos do juízo de gosto. É a partir dessa transferência que matéria e conceitos daquilo que o objecto deva ser são considerados como a ignorar num tal juízo. Assim, como assinala Guyer, o resultado da transferência para a terceira Crítica da teoria exposta na “Estética transcendental” é a suposição de que «um juízo de gosto material tem de ser ocasionado pela matéria do fenómeno e que um juízo de gosto formal só pode ser ocasionado pela forma da sensação» (Guyer, 1997: 201).

Uma tal transferência e uma tal suposição não são, no entanto, necessárias. No seu estudo acerca da base epistemológica do formalismo estético kantiano, Crawford chama a atenção para a importância que a modificação que Kant faz da distinção lockeana entre qualidades primárias e qualidades secundárias dos objectos tem sobre o estabelecimento desse formalismo.185 Modificada por Kant, a distinção mencionada torna-se uma distinção do âmbito fenoménico paralela à distinção entre forma e matéria. A estrutura resultante desse paralelismo consiste em duas colunas: de um lado, as qualidades primárias, entendidas como qualidades objectivas das coisas tal como nos aparecem, constituem a forma do fenómeno; do outro, as qualidades secundárias constituem a matéria do fenómeno. De facto, submetidas a uma tal estrutura, as sensações da cor ou do tom, enquanto qualidades atribuídas por cada um às coisas tal como nos aparecem, enquanto dependentes das variações

185 Cf. Crawford, 1974: 102-105, para observar detalhadamente a descrição que Crawford apresenta das referidas distinção e modificação.

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entre sujeitos e, portanto, enquanto jamais objectivas, não podem contribuir para o conhecimento nem ser objecto de um juízo dotado de validade universal a priori (o juízo de gosto).186 Acontece, porém, que, no contexto da primeira Crítica – nota Crawford – o espaço e o tempo são relevados não para falar-se de «relações espaciais e temporais determinadas», mas «como sendo objectos puros da intuição (e como as formas a priori que a intuição toma)» (Crawford, 1974: 110). Ora, como acrescenta o comentador, «na experiência de um objecto da beleza, como uma pintura, o que conta são as relações determinadas, não a relacionalidade espacial em geral» (Crawford, 1974: 110). De uma valorização do espaço e do tempo não tem de resultar, então, uma valorização de uma determinada organização espácio-temporal de um objecto, como é o seu desenho ou a sua composição, ou uma desvalorização dos seus elementos materiais.187

Pois bem, considerando que a valorização da forma não é necessariamente equivalente à valorização da figura ou do jogo e à desvalorização da cor ou do tom, devemos afirmar, com Crawford, que a aplicação da distinção forma-matéria, da Crítica da Razão Pura, à Crítica

da Faculdade do Juízo, nomeadamente à identificação daquilo que motiva o movimento recíproco formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que faz de um objecto, é uma «aplicação precipitada» (Crawford, 1974: 110). Kant não justifica satisfatoriamente a tese de acordo com a qual a forma 186 Crawford considera ser precisamente a atribuição de um estatuto epistemológico inferior às chamadas qualidades secundárias, por parte de Kant, aquilo que leva à exclusão dessas qualidades do âmbito do gosto (cf. Crawford, 1974: 110). 187 A este propósito, Crawford ressalva que «dizer que qualquer conjunto particular de relações espaciais ou temporais (isto é, um conjunto de relações determinadas) é objectivo de uma qualquer maneira que as cores, os tons, os paladares e os cheiros não são, é uma alegação adicional e mais forte» do que a simples alegação de que «espaço e tempo são as formas necessárias dos fenómenos» (Crawford, 1974: 105-106). Como continua o intérprete, «[a] posição geral de Kant é que qualquer fenómeno tem de ter algumas propriedades espaciais e temporais, não que qualquer fenómeno dado tem determinadas propriedades espaciais e temporais que podem ser verificadas a priori» (Crawford, 1974: 106).

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corresponde à figura ou ao jogo, ao desenho ou à composição do objecto; por conseguinte, ele não sustenta suficientemente a tese de acordo com a qual é mediante esses elementos que as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se movimentam entre si de uma maneira simultaneamente livre e harmónica por ocasião da representação que ele faz do objecto.

3.5. Vários Elementos

A possibilidade de representação de uma conformidade a fins baseada no movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si não depende de uma exclusão da matéria ou sequer está ligada a uma tal exclusão. O facto de o comprazimento implicado na beleza ter de envolver reflexão sobre o diverso apresentado pela faculdade da imaginação não torna necessário que as características desse diverso não possam ser sensações, como a cor ou o tom.188 Efectivamente, nada do que é afirmado por Kant acerca da beleza, nada da sua teoria do gosto – ou mesmo da sua teoria de conhecimento, como acabámos de ver – fundamenta devidamente a submissão do juízo de gosto aos constrangimentos formais previstos nos parágrafos relativos ao “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”. As restrições impostas nesse momento não são uma consequência daquilo que dissemos serem os requisitos que um juízo tem de satisfazer para que através dele se declare belo um objecto, nomeadamente, a possibilidade de o último ser representado como formalmente conforme a fins na medida em que a sua representação motiva um movimento recíproco simultaneamente livre e harmónico nas faculdades de conhecimento daquele que ajuíza. É nessa capacidade do objecto que reside a sua conformidade a fins formal: a representação do 188 Neste contexto, Guyer sugere mesmo que «precisamente o facto de que tais características dos objectos não são elementos puros a priori do seu fenómeno e assim não susceptíveis ao esquematismo dos conceitos a priori do entendimento faz com que seja mais provável que eles possam servir para a síntese sem conceitos sentida que funda a resposta estética» (Guyer, 1997: 205).

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objecto pode satisfazer um fim meramente formal, a saber, o do conhecimento em geral – por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz do objecto, as suas faculdades de conhecimento podem ser dispostas para o conhecimento em geral. Mas a ligação entre a beleza de uma coisa e a sua aptidão à representação de uma tal conformidade a fins não carrega consigo a dependência dessa aptidão relativamente a quaisquer propriedades da sua organização espácio-temporal ou ao facto de essa coisa ser de um certo tipo.189 Não há uma relação de causalidade entre a forma do objecto, enquanto sua organização espácio-temporal, e o movimento recíproco livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz desse objecto. Não é especialmente por causa do desenho ou da composição do objecto que podemos representá-lo como formalmente conforme a fins. Não menos do que a forma – a figura ou o jogo, o desenho ou a composição do objecto, que, numa parte significativa da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant coloca como fundamento do juízo de gosto – também a matéria da sensação – que Kant parece excluir do fundamento do referido juízo – pode contribuir para que, por ocasião da representação do objecto, as faculdades da imaginação e do entendimento daquele que ajuíza se disponham conformemente a fins para o conhecimento em geral. O fundamento de determinação do juízo de gosto é o movimento recíproco formalmente conforme a fins das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto; esse movimento pode ser motivado por vários elementos; o juízo de gosto não deixa de ser formal, isto é, um juízo fundado num comprazimento assente no movimento conforme a fins das faculdades de conhecimento entre si na medida em que esse

189 Como afirma Guyer, «[a]tribuir finalidade formal a um objecto é reivindicar que ele é adequado para ocasionar este estado [de jogo livre], mas não é reivindicar que ele o faz em virtude de quaisquer propriedades específicas» (Guyer, 1997: 195). Assim, «[o] conceito de mera forma da finalidade (…) não é idêntico a qualquer noção particular de forma estética, e ele mesmo não implica uma restrição do gosto aos tipos de propriedades que Kant dá como exemplos de forma estética» (Guyer, 1997: 195).

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movimento é alcançado livremente por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz do objecto.

A tese de acordo com a qual são vários – e não apenas a forma, enquanto figura ou jogo, desenho ou composição – os elementos que contribuem para que as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se disponham livre e harmonicamente entre si por ocasião da representação que ele faz do objecto, tal tese é reforçada, de resto, pela introdução da noção de ideia estética no texto de Kant – mais precisamente: ela é confirmada pela denominação da beleza como expressão de ideias

estéticas. Se a beleza é expressão de ideias estéticas, então é evidente que também as ideias estéticas, e a expressão de tais ideias, podem contribuir para a beleza de um objecto. A sua contribuição é, aliás, necessária, pois não apenas a beleza da arte, como também a beleza da natureza, é expressão de ideias estéticas (cf. Kant, 1998: 226). São vários, por conseguinte, os elementos em causa para que uma coisa seja declarada bela. Além da forma do objecto e da matéria da sensação, também as ideias estéticas, suscitadas na sua representação, assim como a expressão dessas ideias, contribuem para que, por ocasião da referida representação, as faculdades da imaginação e do entendimento daquele que ajuíza se disponham entre si conformemente a fins para o conhecimento em geral.

Centremo-nos unicamente no âmbito da arte. Mantenhamos entre parêntesis a afirmação, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216). Aquele que ajuíza um objecto artístico através do gosto considera o movimento harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que faz desse objecto. Um tal movimento pode ser suscitado por uma multiplicidade de elementos.190 Nenhum deles, nem mesmo um conceito, impede que o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza

190 Lembremos, uma vez mais, que as ideias estéticas são representações associadas a conceitos dados.

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seja um exercício livre. Independentemente de as ideias estéticas serem representações associadas a conceitos dados, devemos recordar que, no fornecimento de tais ideias, a faculdade da imaginação daquele que ajuíza exerce-se livremente. A beleza de uma obra de arte depende, então, da participação de vários elementos como causa de um sentimento de prazer que, no entanto, ou, melhor, por isso mesmo, não deixa de ser um sentimento de prazer num movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz do objecto em questão.191 Assim, tal como assinalámos no início desta secção, a tese de acordo com a qual a beleza pode ser denominada expressão de ideias estéticas tem como consequência a colocação em causa da tese, que aparentemente se lhe opõe, segundo a qual há um único elemento responsável pelo movimento livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz de um objecto artístico – a forma.

3.6. Forma e expressão

As duas teses são, no entanto, conciliáveis. Por ocasião da explicitação que fizemos da noção de ideia estética, dissemos que uma ideia estética era fornecida por atributos estéticos. De acordo com Allison, os atributos estéticos «constituem o que podemos chamar a “matéria” da ideia estética, mas igualmente essencial a uma ideia tal é a sua “forma”» (Allison: 2001: 283). Neste contexto, a forma da ideia estética é a organização dos atributos estéticos de maneira a constituírem não uma multiplicidade caótica de imagens, mas, precisamente, uma ideia estética. Ora, é por

191 É a atribuição de uma tal importância a diferentes elementos, de resto, aquilo que serve de base à censura que Guyer faz das «teorias reducionistas da bela arte, mais obviamente [daquelas] que colocariam a essência da arte apenas na forma perceptiva, mas também [daquelas] que restringiriam a essência da arte a qualquer outro factor singular» (Guyer, 1997: 353). No entender de Guyer, «a concepção de bela arte de Kant deve servir de inspiração àqueles que encontrariam o poder e o valor da arte precisamente na complexidade da resposta que ela pode provocar» (Guyer, 1997: 353).

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intermédio dessa forma que, segundo Allison, as ideias estéticas se tornam universalmente comunicáveis (cf. Allison, 2001: 284 e 288). A forma é, então, condição necessária da expressão bela de ideias estéticas (cf. Allison, 2001: 284 e 288). O mesmo é dizer que ela é condição necessária da beleza. Assim, Allison refere um sentido «largo, não restritivo» de forma, implicado pela concepção kantiana da harmonia livre das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz do objecto, pois «só uma tal ordem ou um tal arranjo do dado sensível (qua apreendido pela imaginação) poderia ser adequado à exibição de um conceito (embora nenhum conceito em particular)» (Allison, 2001: 288). Interpretado deste modo, o formalismo é compatível e mesmo indispensável à denominação da beleza como expressão de ideias estéticas.192 De resto, o sentido lato de formalismo é, de alguma maneira, embora não de uma maneira explícita, proposto por Guyer. Veja-se, a propósito, a afirmação segundo a qual

[n]a verdadeira teoria de Kant, a comprazedora liberdade da imaginação na sua resposta à arte, que é o que faz estética essa resposta, não requer a supressão de quaisquer conceitos, mas emerge precisamente da complexidade da interacção entre a forma de uma obra de arte e o conteúdo e espírito a que dá expressão (Guyer, 1997: 353).193

De acordo com esta perspectiva, aquilo que num objecto artístico dá expressão a um conteúdo é a forma desse objecto – forma que, neste caso,

192 Consequentemente, ele coloca em causa a posição de D. W. Gotshalk, de acordo com a qual Kant tem duas teorias: uma, formalista, acerca da beleza da natureza; outra, expressionista, acerca da beleza da arte. Recordemos as palavras de Gotshalk: «enquanto a forma é absolutamente essencial para a Arte Bela, ela não é suficiente e é de facto a necessidade menor no que concerne a satisfazer valor estético na arte» (Gotshalk, 1967: 259). Deleuze prefere referir uma «estética formal do gosto», isto é, a estética «da linha e da composição», e uma «meta-estética material», a «meta-estética das matérias, das cores e dos sons», concluindo que «o classicismo acabado e o romantismo nascente encontram um equilíbrio completo» precisamente na Crítica da Faculdade do Juízo (Deleuze, 2000: 64). 193 Obviamente, nesta passagem, de Guyer, “espírito” não corresponde ao Geist por nós explicitado na subsecção “Expressão de ideias estéticas”.

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deverá ser interpretada não no sentido estreito de figura ou jogo, de desenho ou composição, mas num sentido alargado.

Precisamente no contexto de uma interpretação alargada da noção de forma, importa destacar algumas passagens da Crítica da Faculdade do

Juízo nas quais transparece uma grande proximidade entre essa noção e a noção de expressão. No §47, por exemplo, Kant afirma que «[o] génio somente pode fornecer uma matéria rica para produtos da arte bela ([d]as

Genie kann nur reichen Stoff zu Produkten der schönen Kunst hergeben)» e que «a elaboração da mesma e a forma requerem um talento moldado pela escola, para fazer dele uso que possa ser justificado perante a faculdade do juízo (die Verarbeitung desselben und die Form erfordert ein

durch die Schule gebildetes Talent, um einen Gebrauch davon zu machen,

der vor der Urteilskraft bestehen kann)» (Kant, 1998: 215).194 A forma a que Kant faz referência é, no contexto da bela arte, «a forma da apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente (die Form der Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein

mitgeteilt wird)» (Kant, 1998: 217). Vemo-lo no §48. Entretanto, no §49, Kant descreve o génio – já o dissemos – como consistindo

na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e nenhuma diligência pode aprender, de encontrar ideias para um conceito dado e por outro lado de encontrar para elas a expressão pela qual a disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (in dem glücklichen Verhältnisse, welches

keine Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem

gegebenen Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den

Ausdruck zu treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive

Gemütstimmung, als Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt

werden kann) (Kant, 1998: 223).

Se colocarmos lado-a-lado as passagens que acabámos de transcrever dos §47 e §49, podemos associar as noções de forma e de expressão. Apresentadas (expressadas/enformadas) de uma certa maneira, as ideias

194 Não nos preocupemos, agora, com as consequências a retirar do facto de esse talento ser o gosto. Abordaremos esse assunto na última secção deste capítulo.

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estéticas – que constituem uma matéria rica – apresentam um conceito de uma maneira que promove um movimento harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto. Aquilo que possibilita a referida apresentação do conceito é a maneira como a matéria rica é expressada/enformada. Allison considera haver mesmo uma «reciprocidade entre forma e expressão» no texto de Kant (Allison, 2001: 289). Ele observa essa reciprocidade no §42 e, muito claramente, no §53, nas referências feitas por Kant à expressão de ideias estéticas no contexto da arte do som (música). Segundo Kant, o atractivo da arte do som repousa no facto, entre outros, de que

assim como a modulação é por assim dizer uma linguagem universal das sensações compreensível a cada homem, a arte do som exerce por si só esta linguagem no seu inteiro ênfase, a saber como linguagem dos afectos, e assim comunica universalmente segundo a lei da associação as ideias estéticas naturalmente ligadas a elas; mas que, pelo facto de aquelas ideias estéticas não serem nenhum conceito e pensamento determinado, a forma da composição destas sensações (harmonia e melodia) serve somente, como forma de uma linguagem, para, mediante uma disposição proporcionada das mesmas (a qual pode ser submetida matematicamente a certas regras, porque nos sons ela assenta sobre a relação do número das vibrações de ar, ao mesmo tempo, na medida em que os sons são ligados simultânea ou também sucessivamente), expressar a ideia estética de um todo interconectado de uma inominável profusão de pensamentos, em conformidade a um certo tema, que constitui na peça o afecto dominante (so wie die Modulation gleichsam

eine allgemeine jedem Menschen verständliche Sprache der

Empfindugen ist, die Tonkunst diese für sich allein in ihrem ganzen

Nachdrucke, nämlich als Sprache der Affekten, ausübt und so nach dem

Gesetze der Assoziation die damit natürlicher Weise verbundenen

ästhetischen Ideen allgemein mittheilt; das saber, weil jene ästhetischen

Ideen keine Begriffe und bestimmte Gedanken sind, die Form der

Zusammensetzung dieser Empfindungen (Harmonie und Melodie) nur

statt der Form einer Sprache dazu dient, vermittelst einer

proportionierten Stimmung derselben (welche, weil sie bei Tönen auf

dem Verhältnis der Zahl der Luftbebungen in derselben Zeit, sofern die

Töne zugleich oder auch nach einander verbunden werden, beruht,

mathematisch unter gewisse Regeln gebracht weden kann) die

ästhetische Idee eines zusammenhängen- den Ganzen einer

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unnennbaren Gedankenfülle einem gewissen Thema gemäß, welches den

in dem Stücke herrschenden Affekt ausmacht, auszudrücken) (Kant, 1998: 235).

Nesta passagem, Kant indica claramente que, na música, aquilo que expressa uma ideia estética é a forma como as sensações são compostas. Assim, no entender de Allison, «muito dificilmente Kant poderia ter sido tão claro no que concerne à correlação entre forma e expressão na música» (Allison, 2001: 289). Ora, somente através desta correlação pode a forma do objecto ter a importância que Kant lhe atribui na Crítica da Faculdade

do Juízo. Em jeito de conclusão, interessa-nos sublinhar, então, serem vários

os elementos que contribuem para que a disposição recíproca das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza seja, por ocasião da representação que ele faz do objecto, uma disposição formalmente conforme a fins. Se for outro o caso, se preferirmos defender que só um elemento contribui para essa disposição e que esse elemento é a forma, então deveremos interpretar a noção de forma não no sentido de figura ou jogo, de desenho ou composição, mas num sentido alargado. Não obstante essa opção ser legítima, ela conduz-nos a uma afirmação tautológica: o elemento que suscita, naquele que ajuíza, um movimento formalmente conforme a fins das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que ele faz do objecto é o elemento que suscita, naquele que ajuíza, um movimento formalmente conforme a fins das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que ele faz do objecto. A esse elemento poderemos chamar forma ou expressão. Em qualquer dos casos fica salvaguardada a correcção da denominação da beleza da arte como expressão de ideias

estéticas.195 A relevância da compreensão dessa denominação para

195 Kant igualmente considera possível que assim se denomine a beleza da natureza, como tivemos oportunidade de assinalar. No entanto, para responder à questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte, importa-nos mais imediatamente saber que a beleza da arte pode denominar-se, segundo o nosso autor, expressão de ideias

estéticas.

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responder à questão de saber se e sob que condições será legítimo falar-se de bela arte revelar-se-á plenamente no capítulo seguinte.

3.7. Importância da forma no sentimento do sublime

Antes de avançarmos, porém, será pertinente ressalvarmos que a problematização da importância da forma na beleza de um objecto, ou mesmo a reinterpretação que apresentámos da noção de forma, não coloca em causa a importância dada por Kant à forma – ou à ausência de forma – na ocorrência do sentimento do sublime (das Erhabene), igualmente não colocando em causa, por conseguinte, a necessidade da “Analítica do sublime”, isto é, a necessidade de pensar um sentimento de prazer universalmente válido numa forma que, sob um certo ponto de vista, não é conforme a fins, aparecendo mesmo como contrária a fins.196 Também no concernente ao sentimento do sublime, aquilo que está em causa é a forma da conformidade a fins, isto é, a relação das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que o sujeito faz do objecto.197 O eixo a partir do qual cada uma das Analíticas (a do belo e a do sublime) se desenha é um eixo comum, a saber, a observação de uma conformidade a fins sem fim por ocasião da representação do objecto em causa no juízo. Acontece que, enquanto no belo imediatamente se representa uma conformidade a fins sem fim, no caso do sentimento do sublime, a representação de uma tal conformidade é antecedida pela representação de uma inconformidade. É esta última peculiaridade que o torna específico.

Afirma Kant, ainda numa fase inicial da “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”: «Pode-se descrever o sublime da seguinte maneira: ele é um objecto (da natureza), cuja representação

196 Tanto no caso da confrontação com uma medida maximamente grande, como no caso da confrontação com um poder e uma força irresistíveis, parece não haver (e de facto, sob um certo ponto de vista, não há) uma conformidade a fins das coisas da natureza. 197 No caso do sublime, as faculdades em movimento são a faculdade da imaginação e a razão.

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determina o ânimo a imaginar o carácter inalcançável da natureza como

apresentação de ideias (es ist ein Gegenstand (der Natur), dessen Vorstellung das Gemüt bestimmt, sich die Unerreichbarkeit der Natur als Darstellung von Ideen zu denken)» (Kant, 1998: 166). Essa determinação sobre o ânimo é exercida na medida em que o «julgamento estético [do objecto] aplica até aos seus limites a faculdade da imaginação, seja à ampliação (matematicamente) ou ao seu poder sobre o ânimo (dinamicamente) (dessen ästhetische Beurteilung die Einbildungskraft bis

zu ihrer Grenze, es sei der Erweiterung (mathematisch), oder ihrer Macht

über das Gemüt (dynamisch), anspannt)» (Kant, 1998: 167). Quando um objecto é demasiado grande para que o compreendamos esteticamente, ou quando ele é demasiado forte para que possamos resistir-lhe enquanto entes da natureza, quando, portanto, somente magnitude ou poder se deixam ver e, por conseguinte, a faculdade da imaginação é matemática ou dinamicamente ampliada, nesses casos aquilo que obriga essa faculdade a manter o seu esforço em direcção à superação dos seus limites é a razão, ao impor-lhe que represente sensivelmente as suas ideias, racionais.198 Pois bem, embora um tal esforço seja vão, na medida em que entre a faculdade da imaginação e a razão há uma inadequação objectiva, é, no entanto, exactamente esse esforço – enquanto, ao ser sentido, apresenta sensivelmente a referida inadequação – que activa e chama ao ânimo as ideias da razão. Apesar de não haver uma sensificação das ideias da razão, o esforço do ânimo de tornar-lhes adequada a representação dos sentidos, esse esforço remete-nos para um plano supra-sensível, torna-nos conscientes da nossa ligação a um domínio prático, a um domínio

198 Kant afirma que «se ampliamos metemática ou dinamicamente a nossa faculdade empírica de representação para a intuição da natureza, então inevitavelmente se juntará a ela a razão como faculdade da independência da totalidade absoluta e produz o esforço do ânimo, se bem que vão, de lhes tornar adequada a representação dos sentidos (wenn wir unser empirisches Vorstellungsvermögen (mathematisch, oder

dynamisch) für die Anschauung der Natur erweitern: so tritt unausbleiblich die Vernunft hinzu, als Vermögen der Independenz der absoluten Totalität, und bringt

die, obzwar vergebliche, Bestrebung der Gemüts hervor, die Vorstellung der Sinne

dieser angemessen zu machen)» (Kant, 1998: 166).

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incondicionado. Por esse motivo, o objecto é ajuizado como subjectivamente conforme a fins.199 Perante objectos que desafiam a faculdade da imaginação a confrontar os seus limites, o sujeito, consciente do incondicionado, é obrigado «a pensar subjectivamente a própria natureza, na sua totalidade, como apresentação de algo supra-sensível (die

Natur selbst in ihrer Totalität, als Darstellung von etwas Übersinnlichem,

zu denken)», isto é, como apresentação da ideia do supra-sensível, e lembrado que apenas tem «a ver com uma natureza enquanto fenómeno, e que esta mesma ainda tem que ser considerada como simples apresentação de uma natureza em si (que a razão tem na ideia) (mit einer Natur als

Erscheinung zu tun haben, und diese selbst noch als bloße Darstellung

einer Natur an sich (welche die Vernunft in der Idee hat) müsse angesehen

werden)» (Kant, 1998: 166). Por isso o sublime parecer ser considerado «como apresentação de um conceito [indeterminado] da razão (die

Darstellung eines dergleichen Vernunftbegriffs)» (Kant, 1998: 138) e por isso poder falar-se de um «esforço da faculdade da imaginação em tratar a natureza como um esquema para as ideias (Anspannung der

Einbildungskraft, die Natur als ein Schema für die letztern zu behandeln)» (Kant, 1998: 162).

Há, então, também no caso do sublime, uma conformidade a fins das coisas da natureza: o objecto é ajuizado como conforme a fins enquanto a faculdade do juízo o considera «apto à exposição de uma sublimidade que pode ser encontrada no ânimo (zur Darstellung einer Erhabenheit tauglich

199 Na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, Kant refere precisamente uma «conformidade a fins subjectiva do nosso ânimo no uso da faculdade da imaginação para o seu destino supra-sensível (subjektiven Zweckmäßigkeit unseres Gemüt im Gebrauche der Einbildungskraft für dessen

übersinnliche Bestimmung)» (Kant, 1998: 166) e um «sentimento de um destino [do ânimo], que ultrapassa totalmente o domínio da faculdade da imaginação (quanto ao sentimento moral), com respeito ao qual a representação do objecto é ajuizada subjectivamente conforme a fins (Gefühle einer Bestimmung desselben, welche das Gebiet der ersteren gänzlich überschreitet (dem moralischen Gefühl), in Ansehung

dessen die Vorstellung des Gegenstandes als subjektiv-zweckmäßig beurteilt wird)» (Kant, 1998: 167).

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sei, die im Gemüte angetroffen werden kann)» (Kant, 1998: 139). O sensível é representado como conforme a fins enquanto é julgado como susceptível a um uso supra-sensível.200 Na medida em que provoca um jogo consonante201, embora mediante contraste, através de um conflito, de violência, entre a imaginação e a razão, ou seja, na medida em que provoca um acordo entre a faculdade da apresentação e a faculdade dos conceitos da razão, sem determinar estes, mas promovendo a faculdade a que concernem, o objecto é representado como subjectivamente conforme a fins, como conforme a fins sem fim, assim como o é o juízo que lhe diz respeito e a disposição das faculdades anímicas, a relação entre as faculdades de conhecimento.202 Ora, precisamente por isso é que o objecto apraz – por «a desconformidade a fins da faculdade da imaginação a ideias da razão e ao seu suscitar (die Unzweckmäßigkeit des Vermögens der

Einbildungskraft doch für Vernunftideen und deren Erweckung)» ser 200 Kant diz mesmo que «[o] sublime consiste simplesmente na relação em que o sensível, na representação da natureza, é ajuizado como apto a um possível uso supra-sensível do mesmo ([d]as Erhabene besteht bloß in der Relation, worin das Sinnliche in der Vorstellung der Natur für einen möglichen übersinnlichen Gebrauch desselben

als tauglich beurteilt wird)» (Kant, 1998: 165). 201 É certo que, enquanto comoção, o sentimento do sublime envolve «seriedade na ocupação da faculdade da imaginação (Ernst in der Beschäftigung der

Einbildungskraft)» (Kant, 1998: 138). Kant nota-o logo no §23. Não podemos esquecer, porém, que é igualmente o próprio Kant quem, mais à frente, no §27, e referindo-se ao juízo estético acerca do sublime, fala de um «jogo subjectivo das faculdades do ânimo (imaginação e razão) (subjektive Spiel der Gemütskräfte (Einbildungskraft und Vernunft))» e diz que esse jogo é representado «como harmónico (als harmonisch)» (Kant, 1998: 154). 202 Acerca da disposição das faculdades anímicas, veja-se o §27, no qual é dito que «faculdade da imaginação e razão produzem aqui, através do seu conflito, a conformidade a fins subjectiva das faculdades do ânimo (bringen Einbildungskraft und Vernunft hier durch ihren Widerstreit subjektive Zweckmäßigkeit der

Gemütskräfte hervor)» (Kant, 1998: 154-155); a propósito do juízo, note-se, no mesmo parágrafo, que «o próprio juízo estético torna-se subjectivamente conforme a fins para a razão como fonte das ideias, isto é de uma tal compreensão intelectual, para a qual toda a compreensão estética é pequena (wird das ästhetische Urteil selbst subjektiv-zweckmäßig für die Vernunft, als Quell der Ideen, d. i. einer solchen

intellektuellen Zusammenfassung, für die alle ästhetische klein ist)» (Kant, 1998: 156).

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«efectivamente representada como conforme a fins (als zweckmäßig

vorgestellt)» (Kant, 1998: 156). Kant é claro: «o sublime apraz (das Erhabene gefällt)» (Kant, 1998:

141). Mas ele precisa de avançar uma explicação, pois «como pode ser caracterizado com uma expressão de aprovação o que em si é apreendido como contrário a fins? (wie kann das mit einem Ausdrucke des Beifalls

bezeichnet werden, was an sich als zweckwidrig aufgefasst wird?)» (Kant, 1998: 139), «[q]uem quereria denominar sublimes também massas informes de cordilheiras amontoadas umas sobre outras em desordem selvagem, com as suas pirâmides de gelo, ou o sombrio mar furioso, etc.? ([w]er wollte auch ungestalte Gebirgsmassen, in wilder Unordnung über

einander getürmt, mit ihren Eispyramiden, oder die düstere tobende See

usw. erhaben nennen?)» (Kant, 1998: 152). Por outras palavras: como chamar sublime a algo cuja «contemplação é horrível (Anblick ist

gräßlich)» (cf. Kant, 1998: 139), a algo cujo «aspecto (Anblicke)» é «aterrorizante (abschrecken)» (cf. Kant, 1998: 194)? O que se passa é que

o conceito do sublime da natureza (…) em geral não denota nada que seja conforme a fins na própria natureza, mas somente no uso possível das suas intuições, para suscitar em nós próprios o sentimento de conformidade a fins totalmente independente da natureza (der Begriff

des Erhabenen (…) überhaupt nichts Zweckmäßiges in der Natur selbst,

sondern nur in dem möglichen Gebrauche ihrer Anschauungen, um eine

von der Natuz ganz unabhängige Zweckmäßigkeit in uns selbst fühlbar

zu machen, anzeige) (Kant, 1998: 140).

Esta tese, proposta no §23, é indispensável para a compreensão de todo o processo que leva ao sentimento do sublime. O que está em causa é o uso que se faz das representações dos objectos da natureza. É isso que está em causa quer ao nível do sublime matemático, onde absolutamente grande é «o uso que a faculdade do juízo naturalmente faz de certos objectos para o fim daquele (sentimento), com respeito ao qual todavia todo e qualquer outro uso é pequeno (der Gebrauch, den die Urteilskraft

von gewissen Gegenständen zum Behuf des letzteren (Gefühls)

natürlicher Weise macht, gegen ihn aber jeder andere Gebrauch klein

ist)» (Kant, 1998: 145), quer ao nível do sublime dinâmico, onde a força

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maior é não a das coisas da natureza, por mais poderosas que sejam, mas «a nossa força (que não é natureza) (unsere Kraft (die nicht Natur ist))» (Kant, 1998: 159). Trata-se da maneira de pensar adequada: o fundamento para o sublime tem de ser procurado «simplesmente em nós e na maneira de pensar que introduz sublimidade (bloß in uns und der

Denkungsart, die Erhabenheit hineinbringt)» (Kant, 1998: 140). Kant chega mesmo a dizer, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, que «o sublime sempre tem que se referir à maneira de pensar, isto é a máximas, para conseguir o domínio do intelectual e das ideias da razão sobre a sensibilidade (muss das

Erhabene jederzeit Beziehung auf die Denkungsart haben, d. i. auf

Maximen, dem Intellektuellen und den Vernunftideen über die

Sinnlichkeit Obermacht zu verschaffen)» (Kant, 1998: 173). Assim, o prazer do sentimento do sublime «só é possível mediante um

desprazer (nur vermittelst einer Unlust möglich ist)» (Kant, 1998: 156). Embora alcançado mediante um prévio desprazer203, o sentimento de que o nosso ânimo pode ultrapassar a sensibilidade, o sentimento de que no nosso ânimo há algo de superior à natureza, esse sentimento da nossa superioridade em relação à natureza204, é, então, um sentimento de prazer. Trata-se de um prazer indirecto, de um prazer que, para surgir, implica que no julgamento do objecto haja um movimento do ânimo.205 Esse

203 Há um desprazer na medida em que há um apercebimento de uma inadequação da imaginação à exigência da razão, dado que a primeira é incapaz de cumprir o que a última lhe exige. 204 Há um sentimento de superioridade em relação à natureza na medida em que há um despertar da nossa determinação supra-sensível. É, aliás, precisamente nessa medida que, quer o objecto, quer o juízo e a relação entre as faculdades, são considerados conformes a fins. 205 Em jeito de comentário lateral, devemos lembrar que, em A Philosophical Enquiry

into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful, Burke associa o sublime não a um prazer positivo, um prazer que simplesmente é, sem qualquer relação, mas a um «prazer relativo», um prazer que só existe por relação, particularmente por relação com as ideias de dor ou perigo (Burke, 2008: 34). Ora, a noção burkeana de deleite (Delight) expressa precisamente «a sensação que acompanha a remoção de dor ou perigo» (Burke, 2008: 34). Entretanto, Burke acabará por afirmar que o deleite é

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movimento é descrito, no §23, como «momentânea inibição das forças vitais e (…) efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas (augenblicklichen Hemmung der Lebenskräfte und (…) darauf

sogleich folgenden desto stärkern Ergießung derselben)» (Kant, 1998: 138), e comparado, mais à frente, no §27, «a um abalo, isto é a um repelir rapidamente variável e a um atrair do mesmo objecto (mit einer

Erschütterung, d. i. mit einem schnellwechselnden Abstoßen und

Anziehen eben desselben Objekts)» (Kant, 1998: 154). É esta alternância anímica entre repulsão e atracção pelo objecto, de resto, aquilo que leva Kant a ligar o prazer do sentimento do sublime à comoção, isto é, a uma «sensação em que o agrado é produzido somente através da inibição momentânea e subsequente efusão mais forte da força vital (Empfindung,

wo Annehmlichkeit nur vermittelst augenblicklicher Hemmung und

darauf erfolgender stärkerer Ergießung der Lebenskraft gewirkt wird)» (Kant, 1998: 116).

Aquilo que mais importa reter da descrição que acabámos de fazer do sentimento do sublime é o facto de a representação de uma conformidade a fins formal somente ser possível mediante a representação de uma desconformidade a fins da forma do objecto. Ora, se esta representação é, no contexto do sentimento do sublime, condição necessária daquela, então a forma – ou a ausência dela – é um elemento indispensável para a

«não um prazer, mas uma espécie de horror delicioso, uma espécie de tranquilidade tingida com terror» (Burke, 2008: 123). Embora a afecção seja «indubitavelmente positiva», a causa é «um tipo de Privação» (Burke, 2008: 33): é a dor ou perigo de nos vermos privados de algo de extrema importância (a luz, o som, as coisas, os outros, a saúde, a vida, etc). Note-se que, em seu entender, «o terror é em qualquer caso, de modo mais aberto ou latente, o princípio regulador do sublime» (Burke, 2008: 54), isto é, «o tronco comum de tudo o que é sublime» (Burke, 2008: 59). Sem prejuízo do que é afirmado neste comentário lateral, não cedamos, no entanto, a qualquer eventual tentação de aproximar demasiado as posições de Burke e de Kant: no entender deste, a permanência na «exposição meramente empírica do sublime» elaborada por Burke, que faz assentar o comprazimento no sublime inteiramente no facto de que ele deleita mediante comoção, impede a pretensão de que qualquer outro «dê seu assentimento ao juízo estético que nós proferimos» e o conhecimento de «como se deve julgar» (Kant, 1998: 177-178).

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ocorrência desse sentimento. Podemos afirmar, sendo assim, que nem a problematização da importância da forma na beleza de um objecto, nem a reinterpretação que apresentámos da noção de forma, nenhuma dessas opções retira à forma – ou à sua ausência – a importância que Kant lhe atribui para a ocorrência do sentimento do sublime. Devemos concluir, por conseguinte, que nenhuma delas coloca em causa a necessidade da “Analítica do sublime” na Crítica da Faculdade do Juízo. Feita esta incursão, em jeito de salvaguarda, pelo segundo livro da “Analítica da faculdade de juízo estética”, consideramo-nos em condições de regressar à questão que motiva a nossa investigação: saber se e como será legítimo falar-se de bela arte.

4. BELEZA ADERENTE COMO BELEZA

4.1. Beleza da arte como beleza aderente

Aquilo que move a nossa investigação é a questão de saber se e sob que condições poderá falar-se de bela arte no âmbito da Crítica da Faculdade

do Juízo. Poderá um objecto artístico ser declarado belo? Poderá um objecto artístico ser ajuizado através de um juízo de gosto? Poderá o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte ser um juízo de gosto? Eis algumas das ramificações da questão à qual temos vindo a tentar responder ao longo deste estudo.

Para elaborarmos uma resposta devidamente sustentada a essas questões, temos vindo a colocar entre parêntesis o excerto, do §48, segundo o qual

[s]e (…) o objecto é dado como um produto da arte e como tal deve ser declarado belo, então tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser, porque a arte sempre pressupõe um fim na causa (e na sua causalidade); e visto que a consonância do múltiplo numa coisa com vista a uma determinação interna da mesma enquanto fim é a perfeição da coisa, assim no julgamento da beleza da arte tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa ([w]enn (…) der Gegenstand für ein Produkt der Kunst gegeben ist und

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als solches für schön erklärt werden soll: so muss, weil Kunst immer

einen Zweck in der Ursache (und deren Kausalität) voraussetzt, zuerst

ein Begriff von dem zum Grunde gelegt werden, was das Ding sein soll;

und da die Zusammenstimmung des Mannigfaltigen in einem Dinge zu

einer innern Bestimmung desselben als Zweck die Volkommenheit des

Dinges ist, so wird in der Beurteilung der Kunstschönheit zugleich die

Volkommenheit des Dinges in Anschlag gebracht werden müssen) (Kant, 1998: 216).

Temo-lo feito com o objectivo, específico, de tornar clara a possibilidade de a faculdade da imaginação quer do criador de uma obra de arte, quer daquele que a ajuíza como bela, se exercer livremente mesmo que ele tenha de reconhecer o conceito dado a partir do qual se inicia esse exercício. Se retomarmos o excerto transcrito, ver-nos-emos obrigados a recusar a possibilidade de uma obra de arte ser ajuizada através de um juízo de gosto, de um objecto artístico ser declarado belo, de falar-se de bela arte.206 No entanto, na secção “Belas obras de arte”, tivemos oportunidade de mencionar vários factos que favorecem a aceitação dessa possibilidade. Devemos continuar a procurar saber sob que condições poderá ela ser aceite.

Imediatamente antes do excerto supracitado, Kant afirma o seguinte: «Um beleza da natureza é uma coisa bela; a beleza da arte é uma representação bela de uma coisa (Eine Naturschönheit ist ein schönes Ding; die Kunstschönheit ist eine schöne Vorstellung von einem Dinge)» (Kant, 1998: 216). Aceitemos ambas as passagens do §48 e adoptemos a identificação da beleza da arte como representação bela de uma coisa como novo ponto de partida para pensar o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte. Suspendamos, então, a total independência do juízo de gosto em relação à perfeição, imposta pelo título do §15 (cf. Kant, 1998: 117). No juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser

206 Se aquele que ajuíza tem de considerar a conformidade a fins objectiva interna da coisa, então a sua imaginação não se exerce livremente. O exercício livre dessa faculdade é, contudo, condição indispensável ao proferimento de um juízo de gosto. Um juízo no qual se considera necessariamente a perfeição não é um juízo totalmente independente do conceito de perfeição; logo, ele não é um juízo de gosto.

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considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito. Devemos procurar saber que conceito poderá ser esse.

Suponhamos que uma dada obra de arte deve representar belamente a ideia racional de intenção cosmopolita. Se para o cumprimento de tal fim se recorre à expressão de ideias estéticas, como tem de ser feito para que a representação seja bela, então aquele que ajuíza não pode observar uma conformidade a fins objectiva – por conseguinte, uma perfeição. Não pode fazê-lo porque as representações fornecidas pela faculdade da imaginação em seu jogo livre, a saber, as ideias estéticas, são representações inexponíveis da mesma faculdade. Sendo elas representações inexponíveis da faculdade da imaginação, nenhum conceito pode ser-lhes inteiramente adequado. Por conseguinte, no concernente à relação entre a ideia racional de intenção cosmopolita e a representação bela dessa mesma ideia, não pode ser observada uma conformidade a fins objectiva interna.207 O conceito daquilo que o objecto deva ser, enquanto fim que a bela obra de arte tem de satisfazer, não pode ser identificado com aquilo que pretende representar-se belamente.

Temos de colocar uma segunda hipótese quanto à finalidade a ser considerada no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte. Os exemplos que Kant fornece a propósito das possibilidades abertas pela bela arte, no §48, indiciam que por representação (Vorstellung) deverá entender-se descrição (Beschreibung). Desde logo, a explicação da preeminência da bela arte assenta «no facto que ela descreve belamente as coisas que na natureza seriam feias ou desaprazíveis (dass sie Dinge, die

in der Natur häßlich oder missfällig sein würden, schön beschreibt)» (Kant, 1998: 217). Assim, mesmo essas coisas «podem ser descritas muito belamente, até mesmo ser representadas em pinturas (können sehr schön

beschrieben, ja sogar im Gemälde vorgestellt werden)» (Kant, 1998: 217). 207 De resto, quando se trata de conceitos da razão, há uma segunda explicação para a impossibilidade de observar-se uma perfeição. Já a tínhamos referido: nenhuma intuição pode ser inteiramente adequada a um conceito da razão, pois, como vimos, um tal conceito é indemonstrável.

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No entanto, o sentido de descrição não esgota todos os sentidos que ao longo da Crítica da Faculdade do Juízo podem ser dados à noção de representação.

Um dos comentadores que chamam a atenção para o uso opaco e ambivalente que Kant faz de representação, na terceira Crítica, é Eva Schaper (cf. Schaper, 2003: 113 e 116). Segundo Schaper, não é sempre no mesmo sentido que os objectos são representativos (cf. Schaper, 2003: 115). Assim, a comentadora salienta serem vários os casos nos quais «a noção de representação não pode ter o sentido usual de “retrato” ou “descrição”» (Schaper, 2003: 107) e, portanto, considera necessário «divorciar “representação” de “descrição”» (Schaper, 2003: 110). No entanto, Schaper não remete a mencionada chamada de atenção para o §48. Por conseguinte, ela não aborda a questão de saber se pode falar-se de bela arte.

Allison também salienta que Kant usa representação «em sentidos muito diferentes, embora relacionados, sem parar para informar o leitor acerca desse facto» (Allison, 2001: 292). O comentador propõe que a noção de representação seja interpretada em três sentidos, consoante as passagens em causa. O primeiro sentido por ele mencionado é precisamente o sentido descritivo (cf. Allison, 2001: 294). Acabámos de citar duas passagens, do §48, que autorizam uma interpretação de representação nesse sentido (cf. Kant, 1998: 217). Além do sentido descritivo, Allison propõe a interpretação de representação em mais dois sentidos: no sentido exemplificativo ou como expressão de ideias estéticas (cf. Allison, 2001: 294). Ainda no §48, Kant identifica a representação

bela de um objecto com «a forma de apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente (die Form der Darstellung eines

Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt wird)» (Kant, 1998: 217). Essa forma é, segundo Kant, «o veículo da comunicação e uma maneira por assim dizer da exposição (das Vehikel der Mitteilung und eine

Manier gleichsam des Vortrages)» do conceito (Kant, 1998: 218). Se recordarmos aquilo que, na parte final do §49, o nosso autor afirma acerca do génio, a saber, que, através do espírito, ele encontra para ideias estéticas

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«a expressão pela qual a disposição subjectiva do ânimo (…) enquanto acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (den

Ausdruck, durch den die subjektive Gemütsstimmung, als Begleitung

eines Begriffs, anderen mitgeteilt werden kann)» (Kant, 1998: 223), podemos concluir que representar belamente é expressar ideias estéticas

belamente.208 Entre os sentidos propostos por Allison para representação, aquele que

agora mais nos interessa é, no entanto, o sentido exemplificativo. Nesse sentido, um objecto representar algo significa ser «um excelente exemplar de um tipo», exemplificar «a perfeição peculiar desse tipo», ser «bom

para» (Allison, 2001: 293). Desde logo no §16, encontra-se uma passagem na qual pode interpretar-se representar no sentido exemplificativo: no chamado puro juízo de gosto, de acordo as palavras de Kant, «[n]ão é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva representar ([e]s ist kein Begriff von irgend einem Zwecke, wozu das

Mannigfaltige dem gegebenen Objekte dienen und was díeses also

vorstellen solle, vorausgesetzt)» (Kant, 1998: 120-121). Representar um conceito de fim pode significar, neste contexto, exemplificar esse conceito. Ora, transportando o sentido exemplificativo de representação para a passagem, do §48, segundo a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito (cf. Kant, 1998: 216), Allison propõe que o conceito daquilo que

o objecto deva ser (Begriff, was der Gegenstand für ein Ding sein solle) seja identificado com «o tipo de obra que [o objecto] deve ser visto como sendo para o seu público» (Allison, 2001: 295). Assim, no contexto da bela arte, «o que é exemplificado, e por conseguinte representado, é

208 De resto, esta conclusão contribui para alicerçar a tese, considerada na secção “Forma”, segundo a qual há uma reciprocidade entre as noções de forma e de expressão. A forma das ideias estéticas adequada à beleza é a expressão de ideias estéticas adequada à beleza. Ambas são representações adequadas à beleza – representações belas.

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apenas a forma de arte ou género» (Allison, 2001: 296). Uma obra de arte representa (exemplifica) necessariamente um tipo, uma forma, um género de arte. No juízo através do qual ela é declarada bela, o conceito desse tipo e a conformidade objectiva interna da obra a esse conceito têm de ser considerados. No entender de Allison, «sem algum conhecimento desse tipo, que em muitos casos pode ser praticamente minimal, não pode começar a avaliar-se uma obra de arte, pois não se está consciente do que o artista está a tentar fazer» (Allison, 2001: 295).209

Pensemos, então, numa forma de arte – a poesia, por exemplo. Como arte que é, a poesia obedece a regras determinadas. No §43, Kant faz referência a algumas dessas regras: «a correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica (die Sprachrichtigkeit und

der Sprachreichtum, imgleichen die Prosodie und das Silbenmaß)» (Kant, 1998: 208). Só cumprindo essas regras é que a obra de arte pode ser uma representação poética de uma coisa. Assim, se o fim pressuposto na causa da obra de arte for que ela seja uma bela representação poética de uma coisa, então no juízo através do qual se declara bela essa obra de arte tem de ser tida em conta a perfeição da mesma segundo o conceito de poesia. Suponhamos, então, que o conceito daquilo que o objecto deva ser corresponde à forma de arte. Mantendo entre parêntesis a afirmação que intitula o §15, a primeira questão que se coloca é a de saber se quanto a ser uma poesia pode ser observada uma conformidade a fins objectiva

209 Embora não lhe chamando sentido exemplificativo, Schaper propõe claramente um tal sentido de representação. Sem deixar de referir que, em algumas passagens do texto de Kant, representar pode ser identificado com descrever ou retratar, e, portanto, que «[o] sentido estreito de “representação” como “descrever” ou “retratar” tem algum tipo de aplicação» (Schaper, 2003: 114), a comentadora acrescenta que «o significado central seria reservado para a exemplificação do que quer que seja que uma coisa pudesse ser considerada capaz de ser, isto é, a sua perfeição» (Schaper, 2003: 117). Assim, representar pode significar «encarnar [um] fim de maneira a que a sua possível perfeição, “o que o objecto deva ser”, brilhe através disso» (Schaper, 2003: 111). Neste contexto, Schaper fala de um «sentido alargado» de representação (Schaper, 2003: 115). No sentido alargado, os objectos representarem algo significa os objectos representarem «aquilo que eles podem ser vistos como sendo, nomeadamente retratos, narrativas e por aí em diante» (Schaper, 2003: 115).

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interna por ocasião da representação que aquele que ajuíza faz da obra de arte. A resposta a essa questão não envolve dificuldade: se o objecto cumprir as regras que um objecto tem de cumprir para ser uma poesia – se nele não houver falhas quanto à correcção e à riqueza da linguagem, se nele não houver erros respeitantes à prosódia e à métrica, se ele satisfizer essas e todas as outras condições indispensáveis à poesia – então ele é considerado perfeito. No concernente ao conceito daquilo que o objecto deva ser enquanto forma de arte – ele ser uma representação poética, por exemplo – pode ser tida em conta uma perfeição. Assim, no juízo através do qual se declara bela uma representação poética de uma coisa, têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da representação segundo esse conceito – têm de ser tidos em conta, respectivamente, o conceito de poesia e a conformidade objectiva da obra de arte a esse conceito. Além disso, para declarar bela a obra de arte, poética, aquele que ajuíza terá de sentir um comprazimento num movimento simultaneamente livre e harmónico das suas faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação que faz dessa mesma obra.

A segunda questão a colocar – ainda antes de regressarmos ao título do §15 – prende-se com a possibilidade ou impossibilidade de aquele que ajuíza observar uma conformidade a fins subjectiva mesmo quando tem de observar uma conformidade a fins objectiva interna. Mais concretamente, importa saber se a faculdade da imaginação daquele que ajuíza pode exercer-se livremente mesmo tendo ele em conta, necessariamente, um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito. Decidir acerca desta questão reveste-se de importância capital para a questão de saber se e como poderá falar-se de bela arte porque só um juízo no qual o exercício da faculdade da imaginação é livre pode ser um juízo de gosto. A liberdade da faculdade da imaginação é, como temos vindo a repetir, uma condição necessária para o proferimento de um juízo de gosto.

Acerca daquilo que se requer para que o exercício da faculdade da imaginação seja um exercício livre, tecemos algumas considerações por

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ocasião da descrição da maneira de proceder na arte do génio, concretamente por intermédio da explicitação que fizemos do fornecimento de ideias estéticas para um conceito dado e da expressão de tais ideias no contexto dessa arte. Salientámos, nessa altura, que o exercício da faculdade da imaginação quer do criador de uma obra de arte, quer daquele que a ajuíza como bela, é tido por Kant como sendo um exercício livre, independentemente de tanto na criação dessa obra, como no juízo através do qual ela é declarada bela, ter de reconhecer-se o conceito a que as ideias estéticas fornecidas estão associadas e ao qual a expressão de tais ideias, ela própria, dá expressão.210 No seguimento, pudemos assumir que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto. Fizemo-lo, porém, condicionalmente: sob a condição de colocarmos entre parêntesis o excerto, do §48, de acordo com o qual num tal juízo têm de ser considerados não apenas um conceito – concretamente, um conceito daquilo que o objecto deva ser, que, como entretanto vimos, pode corresponder a uma forma de arte – mas igualmente a perfeição da obra segundo esse conceito, isto é, a conformidade a fins objectiva interna do objecto artístico ao referido conceito (Kant, 1998: 216). Assim, o que agora nos interessa conhecer é a posição de Kant relativamente à liberdade da faculdade da imaginação quer do criador, quer, principalmente, daquele que ajuíza a obra de arte, quando – embora não apenas, certamente também – têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser, enquanto representação

210 Para o justificarmos, citámos várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que mostram ser essa a posição do nosso autor. A este propósito, Guyer nota que «a discussão detalhada da bela arte mostra que no caso paradigmático de uma obra de génio (por exemplo, a encarnação infinitamente sugestiva de uma ideia da razão inesgotável num poema ou símbolo visual) nós podemos ser conscientes da concepção que é encarnada numa obra de arte e dos conceitos que tipicamente constituem o seu conteúdo sem sacrificarmos a liberdade da imaginação, que é a fonte do nosso prazer na beleza» e «que a liberdade da imaginação tanto do artista como do público de uma obra assenta precisamente na maneira como a forma de uma obra de arte dá expressão a um conceito mas vai além do que quer que seja que pudesse ser deduzido de alguma regra providenciada por esse ou qualquer outro conceito» (Guyer, 1996: 149).

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através de uma certa forma de arte, e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito, enquanto satisfação das condições para ser uma representação através da forma de arte em causa.

Pois bem, também no concernente a esse caso, Kant considera que o exercício da faculdade da imaginação é um exercício livre. Depois de afirmar que a representação bela de uma coisa é «a forma de apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente» (Kant, 1998: 217), o nosso autor acrescenta que, relativamente a essa forma, «em certa medida ainda se permanece livre, embora ela de resto esteja comprometida com um determinado fim (man noch in gewissen Maße frei

bleibt, wenn er doch übrigens an einen bestimmten Zweck gebunden ist)» (Kant, 1998: 218). Tal como a ideia racional de intenção cosmopolita – ou outra ideia da razão – não esgota as ideias estéticas que a ela estão associadas, também a satisfação daquilo que se requer para que algo seja uma representação poética da mencionada ou de outra ideia racional – e, portanto, a observação de uma perfeição – não esgota a liberdade da faculdade da imaginação – e, por conseguinte, o tipo de conformidade a fins que pode observar-se a par da consideração dessa satisfação. Através de uma certa capacidade produtiva da sua imaginação, aquele que é dotado de génio fornece ideias estéticas para um conceito dado; por intermédio do seu espírito, ele dá a essas ideias uma expressão mediante a qual as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se movimentam livre e harmonicamente entre si por ocasião da representação que ele faz do objecto.211 Ora, é mediante a observação de um tal movimento, através de um sentimento de prazer, que aquele que ajuíza declara belo o objecto. Assim, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, embora tenham de ser considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito, igualmente é considerado aquilo que de incompreensível por conceitos a faculdade da

211 É assim que aquele que é dotado de génio torna universalmente comunicável o conceito dado, independentemente de a expressão consistir «na linguagem, na pintura ou na arte plástica (in Sprache, oder Malerei, oder Plastik)» (Kant, 1998: 223).

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imaginação livremente fornece e o que a expressão de um tal material promove nas faculdades de conhecimento daquele que ajuíza, a saber, uma disposição harmónica que, sendo livre, isto é, não determinada pelo conceito daquilo que o objecto deva ser, é representada como subjectivamente conforme a fins.

Quer quando se impõe o reconhecimento de um conceito dado – um conceito da razão como a ideia racional de intenção cosmopolita, por exemplo – quer quando tem de considerar-se um conceito daquilo que o objecto deva ser enquanto forma de arte – poesia, por exemplo – e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito – no caso de uma obra poética, o cumprimento das regras que um objecto tem de cumprir para ser uma poesia – o exercício da faculdade da imaginação pode ser, do ponto de vista de Kant, um exercício livre. É isso que mostram não apenas o supracitado excerto, do §48, no qual Kant nota que, apesar de a forma de apresentação de um conceito mediante a qual este é tornado universalmente comunicável estar comprometida com um fim determinado, a liberdade permanece, mas também todas as referências àquelas belas-artes na definição das quais é pressuposto que a faculdade da imaginação se exerça livremente. Assim, no §51, Kant define poesia como «arte de executar um jogo livre da faculdade da imaginação como um ofício do entendimento (die Kunst, ein freies

Spiel der Einbildungskraft als ein Geschäft der Verstandes

auszuführen)» (Kant, 1998: 227), assinala, em nota de rodapé, que a jardinagem «tem como condição da sua composição (…) simplesmente o jogo livre da faculdade da imaginação na contemplação (zur

Bedingung ihrer Zusammenstellung hat, bloß das freie Spiel der

Einbildungskraft in der Beschauung)» (Kant, 1998: 269) e acrescenta que a pintura «está aí simplesmente para ser vista, para entreter a faculdade da imaginação no jogo livre com ideias e ocupar a faculdade do juízo estética sem um fim determinado (bloß zum Ansehen da ist,

um die Einbildungskraft im freien Spiele mit Ideen zu unterhalten und

ohne bestimmten Zweck die ästhetische Urteilskraft zu beschäftigen )» (Kant, 1998: 230). Entretanto, no §53, o nosso autor afirma que as artes

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figurativas «transpõem a faculdade da imaginação para um jogo livre e contudo ao mesmo tempo conforme ao entendimento (die

Einbildungskraft in ein freies und doch zugleich dem Verstande

angemessenes Spiel versetzen)» (Kant, 1998: 236). Não obstante todas essas indicações dadas pelo texto de Kant, a letra

do §16 obriga-nos a lembrar que um juízo de gosto no qual se pressupõe um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito é um juízo de gosto aplicado – ou, equivalentemente, uma beleza que pressuponha um tal conceito e a perfeição da coisa segundo o mesmo é uma beleza aderente. Ora, a letra do §15, nomeadamente o seu título, que temos vindo a colocar entre parêntesis, impede-nos de admitir o chamado juízo de gosto aplicado e a chamada beleza aderente nos âmbitos do juízo de gosto e da beleza, respectivamente. Ei-lo novamente: «O juízo de gosto é totalmente

independente do conceito de perfeição (Das Geschmacksurteil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117). Se assim for, não pode proferir-se um juízo de gosto acerca de uma obra de arte, uma obra de arte não pode ser declarada bela, não pode falar-se de bela arte. Pensar a possibilidade de falar-se de bela

arte impõe uma revisão dos conteúdos desses dois parágrafos. Por ocasião da primeira referência que fizemos à distinção entre beleza

livre e beleza aderente – e, equivalentemente, entre puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado – apresentámos uma justificação para a ilegitimidade de chamar-se beleza à chamada beleza aderente e de chamar-se juízo de gosto ao chamado juízo de gosto aplicado. Enquanto nada houver a acrescentar, essa justificação revela-se suficiente: os critérios do chamado juízo de gosto aplicado afiguram-se contraditórios com os critérios do juízo de gosto; os critérios da chamada beleza aderente afiguram-se contraditórios com os critérios da beleza.212 Apesar disso, em

212 De resto, como lembra Guyer, «a descrição de Kant de beleza dependente não está longe da explicação da beleza típica da estética racionalista e de pelo menos alguma estética empirista» (Guyer, 1997: 400).

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nenhum momento propusemos uma explicação para a opção de Kant por algo que aparenta ser uma contradição.213

Uma explicação plausível para tal opção prende-se com a questão de saber o que é necessário para que o exercício da faculdade da imaginação seja suficientemente livre para que aquele que ajuíza profira um juízo de gosto. É de conceber que Kant pense que, no chamado juízo de gosto aplicado, a liberdade da faculdade da imaginação é limitada – pela consideração do conceito daquilo que o objecto deva ser e da perfeição desse objecto segundo o mesmo conceito – mas não esgotada. A partir da introdução da noção de bela arte, várias são as passagens indicadoras de que essa é a posição de Kant. A mesma abundância não se constata no que antecede essa parte da Crítica da Faculdade do Juízo. Ainda assim, há pelo menos uma passagem que no-lo indicia. Ela pertence ao §16 – precisamente o parágrafo no qual Kant introduz as noções de beleza

aderente e juízo de gosto aplicado. Já a citámos. Acerca do juízo através do qual livremente se declara belo um objecto – o chamado puro juízo de gosto – Kant afirma que nesse juízo «[n]ão é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim, para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva representar, mediante o que unicamente seria limitada a liberdade da faculdade da imaginação (wodurch die Freiheit der

Einbildungskraft nur eingeschränkt werden würde)» (Kant, 1998: 121). Por contraste, no chamado juízo de gosto aplicado, é pressuposto um conceito de fim para o qual o múltiplo deva servir ao objecto dado e o qual este último deva representar. A liberdade da faculdade da imaginação é

213 Schaper identifica claramente o que está em causa. Ela afirma, primeiro, que «[o] que é surpreendente não é que, tendo distinguido dois tipos de beleza, Kant devesse estabelecer uma distinção entre dois tipos de juízo, mas que ele devesse estabelecer uma distinção entre dois tipos de juízo de gosto», e prossegue, logo a seguir, registando que «[a] ideia de que apreciações estéticas de um objecto sejam conectadas ou mesmo baseadas num conceito do seu fim ou propósito pareceriam uma contradição nos termos (cf. §15)» (Schaper, 2003: 104). Em The Genesis of Kant’s Critique of Judgment, John H. Zammito coloca explicitamente a questão: «O problema é, em que sentido é a “beleza aderente” (pulchritudo adhaerens) ainda beleza?» (Zammito, 1992: 126). Infelizmente, o intérprete não lhe dá resposta.

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limitada por esse conceito de fim. Tal, porém, não quer dizer que seja esgotada. A explicação proposta sugere que, podendo a faculdade da imaginação exercer-se livremente em alguma medida, pode o juízo não ser totalmente determinado pela consideração do conceito daquilo que o objecto deva ser e da perfeição desse objecto segundo o mesmo conceito, podendo, por essa razão, ser ainda um juízo estético e, não sendo um juízo estético dos sentidos, ser um juízo de gosto, apesar de condicionado, precisamente pela consideração do conceito daquilo que o objecto deva ser e da perfeição desse objecto segundo um tal conceito.

Esta explicação tem a vantagem imediata de legitimar as noções de juízo de gosto aplicado e de beleza aderente: o chamado juízo de gosto aplicado é um juízo de gosto e a chamada beleza aderente é uma beleza. No proferimento de um juízo de gosto aplicado – e, equivalentemente, na declaração condicionada de algo como belo, na declaração de algo como condicionadamente belo – presta-se «atenção ao fim do objecto (auf den

Zweck des Gegenstandes sieht)», considera-se o que se «tem no pensamento (in Gedanken hat)» (Kant, 1998: 122). Nada disso impede, contudo, que o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza seja um exercício livre. Trata-se da explicação sugerida por Guyer para a manutenção dos termos beleza e juízo de gosto quando estão em causa juízos nos quais é considerado um conceito daquilo que o objecto deva ser e a conformidade a fins interna do objecto a esse conceito. Guyer sublinha que Kant «não nega de todo que a beleza aderente seja um tipo de beleza» (Guyer, 1996: 155). Assim, no entender do intérprete, não obstante o conceito daquilo que o objecto deva ser impor «algum constrangimento na liberdade da imaginação com respeito ao fenómeno [do objecto]», ele «ainda deixa a essa faculdade uma tal latitude dentro deste constrangimento que o prazer pode ainda ser produzido pela sua livre harmonia com a exigência do entendimento por unidade» (Guyer, 1997: 219). Ora, se o comprazimento é sentido por ligação a um movimento recíproco livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz do objecto, então o juízo será um juízo estético e, não sendo um juízo acerca do agradável, será um

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juízo de gosto. Assim, numa parte posterior do seu texto, relacionando a distinção estabelecida por Kant, no §16, entre beleza livre e beleza

aderente, com a passagem, do §48, que motivou a nossa indagação, Guyer assinala o seguinte:

de maneira a avaliar adequadamente uma obra de arte, tem de reconhecer-se não meramente que essa obra é um produto da intenção geral de produzir prazer através do engajamento das faculdades de conhecimento, mas também que se pretendeu que essa obra fosse um objecto de algum tipo particular – embora, obviamente, o conceito desse tipo de objecto não possa ser visto como um que determina totalmente a forma do objecto particular, pois então não haveria espaço para resposta e juízo estéticos (Guyer, 1997: 356-357).214

Partindo da letra da Crítica da Faculdade do Juízo – concretamente da letra do §16, no qual se chama beleza à beleza aderente e juízo de gosto ao juízo de gosto aplicado – libertamo-nos das conclusões que apresentámos na secção “Juízo através do qual se declara bela uma obra de arte”. A partir de uma interpretação da noção de beleza aderente baseada numa consideração de uma razão plausível para que Kant tenha decidido manter o termo beleza – mesmo quando está em causa um juízo no qual é tido em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição desse objecto segundo esse conceito – afirma-se a possibilidade de uma obra de arte ser ajuizada através de um juízo aplicado mas legitimamente de gosto, afirma-se a possibilidade de uma obra de arte ser, condicionada mas legitimamente, declarada bela – afirma-se, por conseguinte, a legitimidade de falar-se de uma arte que é bela, isto é, de bela arte.

É certo que tais afirmações não podem ser proferidas sem uma consequência para o texto de Kant: a negação do título do §15 (cf. Kant,

214 Entretanto, o comentador prosseguirá afirmando que «os conceitos são manifestos mas nunca sentidos como constrangedores ou determinantes. Apesar da sugestão enganadora da discussão de Kant acerca da beleza livre e da beleza aderente (§16), então, a arte não tem de carecer de conteúdo para que produza uma resposta puramente estética, nem nós temos de abstrair desse conteúdo para desfrutar de uma tal resposta» (Guyer, 1997: 357-358).

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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1998: 117). Se aceitarmos a colocação no âmbito do juízo de gosto de um

juízo no qual são considerados um conceito daquilo que o objecto deva

ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito, então somos obrigados

a afirmar que o juízo de gosto não é (não tem de ser) totalmente

independente do conceito de perfeição. Ele poderá sê-lo, aparentemente,

no caso de tratar-se de um puro juízo de gosto, acerca da beleza de um

objecto natural; mas não o é necessariamente – se for um juízo de gosto

aplicado, se for o juízo condicionado através do qual se declara bela uma

obra de arte (o juízo através do qual condicionadamente se declara bela

uma obra de arte, o juízo através do qual se declara condicionadamente

bela uma obra de arte), então ele não é totalmente independente do

conceito de perfeição.

Tal, porém, não significa confundir a beleza com a perfeição, dissolver

a beleza na perfeição ou fazer corresponder a beleza a um conceito

confuso de perfeição (cf. Kant, 1998: 117 e 119).215 O juízo de gosto

aplicado – e, portanto, o juízo através do qual se declara bela uma obra de

arte – não é um juízo de conhecimento. Por isso é que ele pode ser um

juízo de gosto. Ele apenas pressupõe um juízo de conhecimento. Não

deixa, contudo, de ser um juízo estético. O juízo através do qual se declara

bela uma obra de arte é um juízo cujo «fundamento de determinação não

é nenhum conceito, mas sim o sentimento (do sentido interno) daquela

unanimidade no jogo das faculdades do ânimo, na medida em que ela pode

ser somente sentida (Bestimmungsgrund kein Begriff, sondern das Gefühl

(des innern Sinnes) jener Einhelligkeit im Spiele der Gemütskräfte ist,

sofern sie nur empfunden werden kann)» (Kant, 1998: 119). Nele é

considerado um conceito; mas o conceito não é o seu fundamento de

determinação.216 Nele é considerado um conceito daquilo que o objecto

215 Se quisermos remeter para o §57, afirmaremos que o juízo de gosto aplicado não se funda num «conceito intelectual confuso como o de perfeição (verworrener

Verstandesbegriff etwa von Vollkommenheit)» (Kant, 1998: 247). 216 Remetendo para o §46, confirmamos, agora, que o juízo através do qual se

declara belo um objecto artístico não é «deduzido de qualquer regra que tenha

um conceito como fundamento determinante, por conseguinte que ponha no

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deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito; mas nem o

referido conceito, nem a conformidade a fins objectiva interna da obra de

arte ao mesmo servem de fundamento de determinação do juízo. Se

remetermos para o §58, afirmaremos que o juízo através do qual se declara

bela uma obra de arte tem a ver «teoricamente, por conseguinte também

logicamente (…) com a perfeição do objecto (theoretisch, mithin auch

logisch auf die Vollkommenheit des Objekts)» (Kant, 1998: 255). No

entanto, aquilo que importa para a determinação desse juízo é «a

concordância da [representação do objecto] na faculdade da imaginação

com os princípios essenciais da faculdade do juízo em geral (die

Übereinstimmung seiner Vorstellung in der Einbildungskraft mit den

wesentlichen Prinzipien der Urteilskraft überhaupt)» (Kant, 1998: 255).

Tal é assim porque, como Kant nota, no mesmo parágrafo, «o

comprazimento mediante ideias estéticas não tem que depender do alcance

de fins determinados (enquanto arte mecanicamente intencional) (das

Wohlgefallen durch ästhetische Ideen nicht von der Erreichung

bestimmter Zwecke (als mechanisch absichtliche Kunst) abhängen

müsse)» (Kant, 1998: 259). Assim, não obstante estar necessariamente

contido, no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte, um

comprazimento interessado – a saber, um prazer na exibição de um

conceito daquilo que o objecto deva ser e, portanto, um prazer na

representação, lógica, de uma conformidade a fins objectiva – o prazer que

lhe serve de fundamento de determinação é um comprazimento sem

interesse, independente de qualquer interesse, desinteressado – o

comprazimento na representação, estética, de uma conformidade a fins

formal. Logo, embora o juízo através do qual se declara bela uma obra de

arte não seja um puro juízo de gosto, ele é um juízo estético e, portanto,

não sendo um juízo acerca do agradável, é um juízo de gosto, mesmo que

fundamento um conceito da maneira como ele é possível (von irgend einer Regel abgeleitet werde, die einen Begriff zum Bestimmungsgrunde habe,

mithin einen Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege)» (Kant,

1998: 211).

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aplicado.217 Estamos, então, em condições de responder afirmativamente à questão que move a nossa investigação – a questão de saber se e como pode falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo. Se o juízo de gosto aplicado é um juízo de gosto e o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto aplicado, então o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto. Uma obra de arte pode ser ajuizada através de um juízo de gosto se esse juízo for um juízo de gosto aplicado; uma obra de arte pode ser declarada bela se essa declaração for condicionada. No contexto da Crítica da

Faculdade do Juízo, é legítimo falar-se de bela arte – enquanto arte, condicionada mas legitimamente, declarada bela, enquanto arte declarada bela através de juízos aplicados mas legitimamente de gosto.

4.2. Beleza da arte como beleza livre

Legitimadas que estão as noções de juízo de gosto aplicado, enquanto espécie de juízo de gosto, e de beleza aderente, enquanto espécie de beleza, pode falar-se de bela arte.218 O juízo através do qual condicionadamente se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto aplicado – por conseguinte, um juízo de gosto. Ainda assim, não obstante, então, o sucesso alcançado na resolução da questão de saber se pode falar-se de bela arte, não podemos afirmar que todas as nossas dificuldades estão ultrapassadas. O principal facto a que recorremos para mostrar a relevância dessa questão consiste na referência de Kant a objectos artísticos como belezas livres. Importa recordar que, de acordo com o nosso autor, «os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede (die Zeichnungen à la grecque, das Laubwerk zu

Einfassungen oder auf Papiertapeten)», todos esses objectos «são belezas livres (sind freie Schönheiten)» (Kant, 1998: 120). Além desses, pode

217 Se tivermos em conta os critérios apresentados no início do §14, podemos afirmar que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um puro juízo estético e, por conseguinte, um autêntico juízo de gosto. 218 Pode falar-se de arte aderentemente bela, se preferirmos.

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igualmente ser contado como beleza livre «o que na música se denomina fantasias (sem tema), e até toda a música sem texto (was man in der Musik

Phantasieen (ohne Thema) nennt, ja die ganze Musik ohne Text)» (Kant, 1998: 120). Tal implica que esses objectos artísticos possam ser declarados belos através de puros juízos de gosto, não através de juízos de gosto aplicados.

A razão que Kant apresenta para que os objectos mencionados possam ser livremente declarados belos é a seguinte: eles «por si não significam nada: não representam nada, nenhum objecto sob um conceito determinado (bedeuten für sich nichts: sie stellen nichts vor, kein Objekt

unter einem bestimmten Begriffe)» (Kant, 1998: 120). Se representar for identificado com descrever, não há qualquer dificuldade em aceitar a tese segundo a qual esses objectos nada representam. Podemos conceber que os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede, o que na música se denomina fantasias e a música sem texto não descrevem o que quer que seja. A referida identificação não é, no entanto, suficiente para sustentar que esses objectos são belezas livres. Considerando a identificação da beleza da arte como representação bela

de uma coisa (Kant, 1998: 216), que adoptámos no início desta secção, somos obrigados a afirmar que também os objectos mencionados representam alguma coisa, não obstante eles nada descreverem.

Retomemos os sentidos de representação propostos por Allison: sentido descritivo, sentido exemplificativo e expressão de ideias estéticas. Qualquer objecto belo expressa ideias estéticas. Expressar ideias estéticas é condição da beleza, seja ela artística ou natural (cf. Kant, 1998: 226).219 Por conseguinte, os objectos mencionados representam algo – no sentido em que expressam ideias estéticas. Acontece que uma redução do carácter representativo da beleza da arte à expressão de ideias estéticas resultaria

219 Note-se, lateralmente, que, como salvaguarda Allison, «não há contradição entre a posição [de Kant] relativamente ao génio e a [sua] concepção de beleza natural como expressando ideias estéticas. Uma contradição emergiria unicamente se o génio fosse tido como sendo uma condição para a produção de ideias estéticas, mas Kant não está comprometido com qualquer tese desse tipo» (Allison, 2001: 286-287).

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numa indistinção entre uma tal beleza e a beleza da natureza.220 Devemos averiguar a hipótese de os objectos mencionados representarem no sentido de exemplificarem algo. Eles são, de facto, objectos de um certo tipo. Enquanto tal, cada um deles é um exemplo de um objecto desse tipo. Um desenho à la grecque é um exemplo do tipo “desenho à la grecque”. Nesse sentido, ele representa o seu tipo, exemplifica o seu tipo. Está confirmada a hipótese de os objectos mencionados representarem no sentido de exemplificarem algo. Assim, embora nada descrevam, eles expressam ideias estéticas e exemplificam.

O problema com que nos defrontamos (saber se e como os desenhos à

la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede, o que na música se denomina fantasias e a música sem texto podem ser belezas livres – mais geralmente, saber se e sob que condições poderá uma obra de arte ser livremente declarada bela, saber se e sob que condições poderá uma obra de arte ser declarada bela através de um puro juízo de gosto, saber se e como será legítimo falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto) não está, porém, resolvido. De acordo com o que temos vindo a defender, um juízo no qual tenham de ser considerados um conceito daquilo que o objecto deva ser – mesmo que esse conceito corresponda a um tipo de objecto, a uma forma de arte – e a perfeição do objecto segundo esse conceito – mesmo correspondendo essa perfeição à satisfação das condições para que um objecto seja um exemplar do tipo mencionado, da forma de arte referida – só pode ser um juízo de gosto aplicado, não um puro juízo de gosto. Só condicionadamente pode declarar-se belo o objecto em causa. A sua beleza só pode ser uma beleza aderente, não uma beleza livre. Ora, segundo o §16, um desenho à la

220 O próprio Allison o assinala: «na medida em que quer a beleza natural, quer a beleza artística, consiste na expressão de ideias estéticas, toda a beleza (incluindo a variedade natural) “representa” neste sentido. Consequentemente, ele não providencia um meio para compreender a distinção entre uma “coisa bela” e uma “representação

bela de uma coisa”, na qual supostamente é baseada toda a referência de Kant à bela arte» (Allison, 2001: 295).

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grecque, uma folhagem para molduras ou sobre papel de parede, uma fantasia musical ou uma música sem texto, qualquer destes objectos artísticos pode ser livremente declarado belo, isto é, pode ser declarado belo através de um puro juízo de gosto.

Perante esta dificuldade, poderia perguntar-se o que distingue objectos dos tipos mencionados das belas obras de arte dos tipos que Kant refere a partir da sua abordagem da noção de bela arte. Concretamente, perguntar-se-ia o que faz com que os primeiros sejam belezas livres e, as segundas, belezas aderentes. Esta pergunta seria, contudo, precipitada. Em bom rigor, Kant nunca afirma que a beleza da bela arte (a beleza da arte do génio) é – ou é necessariamente – uma beleza aderente. Pelo contrário, embora também nunca afirmando explicitamente que a beleza das belas-artes – ou de algumas dessas artes – é livre, ele indicia-o em várias passagens. Fá-lo por diversas vezes no §51. Em primeiro lugar, Kant afirma que, na escultura, «o objectivo principal é a simples expressão de ideias estéticas (ist der bloße Ausdruck ästhetischer Ideen die

Hauptabsicht)» (Kant, 1998: 228-229) e que «uma simples obra de

figuração (…) é feita apenas para ser olhada e deve aprazer por si própria (ein bloßes Bildwerk (…) lediglich zum Anschauen gemacht ist und für

sich selbst gefallen soll)» (Kant, 1998: 229)221. Seguidamente, o nosso autor nota que a jardinagem «não tem como condição da sua composição nenhum conceito do objecto e do seu fim (como talvez a arquitectura) (keinen Begriff von dem Gegenstande und seinem Zwecke (wie etwa die

Baukunst) zur Bedingung ihrer Zusammenstellung hat)», mas, sim, como já assinalámos, «simplesmente o jogo livre da faculdade da imaginação na contemplação (bloß das freie Spiel der Einbildungskraft in der

221 Kant afirma-o por oposição àquilo que afirma relativamente à arquitectura, bela-arte na qual «o principal é um certo uso do objecto artístico a cuja condição as ideias estéticas são limitadas (ist ein gewisser Gebrauch des künstlichen Gegenstandes die Hauptsache, worauf als Bedingung die ästhetischen Ideen eingeschränkt werden)» (Kant, 1998: 228). Segundo o nosso autor, «a conformidade do produto a um certo uso constitui o essencial de uma obra de construção (die Angemessenheit des Produkts

zu einem gewissen Gebrauche das Wesentliche eines Bauwerks ausmacht)» (Kant, 1998: 229).

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Beschauung)» (Kant, 1998: 269). Finalmente, Kant indica que a pintura «é dada somente para o olho (nur für das Auge gegeben)» (Kant, 1998: 229) ou, como também já vimos, que ela «está aí simplesmente para ser vista, para entreter a faculdade da imaginação no jogo livre com ideias e ocupar a faculdade do juízo estética sem um fim determinado (bloß zum

Ansehen da ist, um die Einbildungskraft im freien Spiele mit Ideen zu

unterhalten und ohne bestimmten Zweck die ästhetische Urteilskraft zu

beschäftigen)» (Kant, 1998: 230). Entretanto, no §53, o nosso autor volta a indiciar que a beleza das belas-artes é uma beleza livre – fá-lo ao identificar a pintura como «arte do desenho (Zeichnungskunst)» (Kant, 1998: 237). Além disso, pelo menos uma das belas-artes abordadas por Kant nos §51 e §53 corresponde a uma forma de arte mencionada no §16: a música.222 Dados estes indícios, assim como a passagem, do §16, segundo a qual objectos artísticos de certos tipos são belezas livres, a questão que se coloca é a de saber o que permite ou impede ajuizar como livremente belos, através, portanto, de puros juízos de gosto, objectos artísticos de certos tipos, e não objectos artísticos de outros tipos.

Para responder a essa questão, recorreremos novamente a Allison.223 No interior do sentido exemplificativo da noção de representação, Allison

222 Devemos admitir, porém, que, no §53, as referências feitas à música dão a entender que Kant está a abordar música com tema, não a música sem tema ou a música sem texto, mencionadas no §16. 223 A proposta de Schaper não é minimamente satisfatória. A comentadora limita-se a aceitar que «[m]esmo os papéis de parede têm uma função – a de cobrirem as nossas paredes prazenteiramente e apropriadamente» e que essa função «não tem lugar na nossa avaliação deles como livremente belos» (Schaper, 2003: 110), isto é, que «os padrões dos papéis de parede têm um propósito ou uma função como papéis de parede», mas «sem que esses fins sejam relevantes para a avaliação» (Schaper, 2003: 111). Nesse caso, segundo Schaper, «[a]valiar como livremente belo um objecto feito pelo homem seria, como é no caso dos objectos naturais, avaliá-lo sem consideração do conceito de um fim sob o qual ele pode ou pode não se encontrar, e consequentemente como nada representando» (Schaper, 2003: 111). No entanto, tal não pode ser aceite se considerarmos a passagem, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito. Ora, como já referimos, Schaper não relaciona a sua análise da distinção

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estabelece uma distinção entre propósitos e constrangimentos estéticos, por um lado, e propósitos e constrangimentos extra-estéticos, por outro (cf. Allison, 2001: 296). É precisamente à luz desta distinção que ele considera dever ser lida a distinção estabelecida por Kant entre beleza

livre e beleza aderente. O que está em causa na beleza aderente é, segundo Allison, um «propósito extra-estético que a obra [é] suposta servir», propósito que, ainda segundo o comentador, impõe «constrangimentos extra-estéticos quanto ao que é apropriado» (Allison, 2001: 296).

Observe-se a seguinte passagem, do §16:

Poder-se-ia colocar num edifício muita coisa de aprazível imediatamente na intuição, desde que não se tratasse de uma igreja: poder-se-ia embelezar uma figura com toda a sorte de floreados e com linhas leves porém regulares, assim como o fazem os neozelandezes com a sua tatuagem, desde que não se tratasse de um homem; e este poderia ter traços muito mais finos e uma fisionomia com um perfil mais aprazível e suave, desde que não devesse representar um homem ou mesmo um guerreiro (Man würde vieles unmittelbar in der Anschauung Gefallende

an einem Gebäude anbringen können, wenn es nur nicht eine Kirche sein

sollte; eine Gestalt mit allerlei Schnörkeln und leichten, doch

regelmäßigen Zügen, wie die Neuseeländer mit ihrem Tettowiren tun,

verschönern können, wenn es nur nicht ein Mensch wäre; und dieser

könnte viel seinere Züge und einen gefälligeren, sanftern Umriß der

Gesichtsbildung haben, wenn er nur nicht eine Mann, oder gar einen

kriegerischen vorstellen sollte) (Kant, 1998: 121).

Nesta passagem, representar pode ser interpretado no sentido exemplificativo. Se o que está em causa é representar um homem, ou um guerreiro, se o que está em causa é fornecer um exemplar do conceito homem, ou do conceito guerreiro, a figura, de acordo com as palavras de Kant, não pode ser embelezada com toda a sorte de floreados e com linhas leves e regulares, nem pode ter traços muito mais finos e uma fisionomia com um perfil mais aprazível e suave. Neste contexto, a representação bela de um homem ou de um guerreiro envolve necessariamente a consideração

entre beleza livre e beleza aderente – nem sequer o seu estudo acerca do uso feito por Kant da noção de representação – com o que está escrito no §48 da Crítica da

Faculdade do Juízo.

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de um conceito daquilo que um homem ou um guerreiro deva ser e a perfeição da representação segundo esse conceito. Os constrangimentos inerentes a essa consideração são, segundo Allison, constrangimentos extra-estéticos. Por essa razão, o juízo através do qual se declara belo o objecto artístico em causa é um juízo de gosto aplicado e a beleza desse objecto só pode ser uma beleza aderente. Diferentemente, a forma de arte, ainda de acordo com o que é afirmado pelo comentador, «impõe constrangimentos quanto ao que é apropriado; mas estes já não são extra-estéticos» (Allison, 2001: 296).

Pois bem, no entender de Allison, o que Kant pretende com a distinção entre beleza livre e beleza aderente, estabelecida no §16, é precisamente distinguir entre juízos estéticos que consideram constrangimentos estéticos e juízos estéticos que consideram constrangimentos extra-estéticos (cf. Allison, 2001: 298). Se lermos a distinção estabelecida por Kant à luz da distinção proposta por Allison, então colocaremos, de um lado, o juízo através do qual se declara belo um objecto, natural, independentemente de um conceito daquilo que esse objecto deva ser e, por conseguinte, da perfeição desse objecto – independentemente, portanto, de qualquer propósito ou constrangimento, estético ou extra-estético – e o juízo através do qual se declara belo um objecto, artístico, considerando um conceito daquilo que esse objecto deva ser e a perfeição desse objecto segundo um tal conceito – correspondendo esse conceito ao tipo de obra, isto é, ao propósito estético, e correspondendo a perfeição à satisfação de tudo aquilo a que esse tipo de obra obriga, isto é, à satisfação dos constrangimentos estéticos derivados do referido propósito estético – e, de outro lado, o juízo através do qual se declara belo um objecto tendo em conta um conceito daquilo que esse objecto deva ser e a perfeição desse objecto – neste caso, correspondendo o conceito daquilo que o objecto deva ser a um propósito extra-estético e correspondendo a perfeição à satisfação dos constrangimentos extra-estéticos derivados do referido propósito extra-estético. Mais simplesmente, dividiremos os juízos de gosto da seguinte maneira: do lado do puro juízo de gosto, os juízos de gosto que não consideram qualquer conceito daquilo que o objecto deva

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ser, que só podem referir-se a objectos naturais, e os que consideram um conceito daquilo que o objecto deva ser enquanto propósito estético, que só podem referir-se a obras de arte; do lado do juízo de gosto aplicado, os juízos que consideram um propósito não estético. A distinção entre puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado, ou, equivalentemente, a distinção entre beleza livre e beleza aderente, corresponderá a uma distinção entre, por um lado, juízos/belezas nos/nas quais não se considera um conceito daquilo que o objecto deva ser ou nos quais apenas se considera um conceito daquilo que esse objecto deva ser, enquanto propósito estético, e a sua perfeição, enquanto satisfação dos constrangimentos estéticos derivados do referido propósito estético; e, por outro lado, juízos/belezas nos/nas quais se considera um conceito daquilo que o objecto deva ser, enquanto propósito não estético, e a sua perfeição, enquanto satisfação dos constrangimentos não estéticos derivados do referido propósito não estético.

De acordo com a proposta interpretativa lançada por Allison, o conhecimento daquilo que uma obra de arte deva ser, um tal conhecimento, por si só, não torna aplicado o juízo através do qual se declara bela essa obra de arte. A necessidade de uma obra de arte satisfazer um propósito estético, precisamente para que seja declarada bela, não faz da sua beleza uma beleza aderente.224 Quando se trata de satisfazer aquilo a que a forma, o género, o tipo de obra obriga, o prazer ou desprazer sentidos por ocasião da representação do objecto é

224 Esta é a vertente mais ambiciosa da proposta em causa. Também importante é perceber que, no segundo sentido exemplificativo de representação, a saber, o que comporta apenas propósitos e constrangimentos estéticos, apenas as obras de arte representam algo: esse sentido «é aplicável a todas as obras de bela arte, mas não às belezas naturais» (Allison, 2001: 296). Tal é importante porque preserva a distinção entre beleza da natureza e beleza da arte. Recorde-se que, enquanto expressando ideias estéticas, qualquer objecto belo – natural ou artístico, portanto – é representativo. Ora, se entendermos representação como exemplificação de algo submetida a propósitos e constrangimentos meramente estéticos, «mesmo um desenho

à la grecque é representativo neste sentido (há algo que o artista tem de ser visto como tentando fazer), enquanto um belo pôr-do-sol não o é» (Allison, 2001: 296).

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dependente de um conceito daquilo que esse objecto deva ser e da conformidade objectiva interna do último ao referido conceito. Aquilo que está em causa neste contexto é a perfeição do objecto. A consideração dessa perfeição, porém, não só não coloca em causa o proferimento de um juízo de gosto e a declaração do objecto como belo, como nem sequer coloca em causa o proferimento de um puro juízo de gosto e a livre declaração do objecto como belo. Assim sendo, o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte pode ser um puro juízo de gosto, uma obra de arte pode ser ajuizada através de um puro juízo de gosto, uma obra de arte pode ser livremente declarada bela, pode falar-se de bela arte enquanto arte que é livremente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de um puro juízo de gosto. Algumas obras de arte são belezas livres.

4.3. Gostos

Sem prejuízo dos seus méritos, a proposta de Allison carece de uma explicação relativa aos critérios segundo os quais propósitos e constrangimentos podem ser divididos em estéticos e extra-estéticos. Devemos recordar, antes de mais, que, na Crítica da Faculdade do Juízo, estético (ästhetisch) é «aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo (dasjenige, dessen Bestimmungsgrund nicht anders

als subjektiv sein kann)» (Kant, 1998: 89). Por conseguinte, para algo ser designado estético tem de ter como fundamento de determinação o sentimento de prazer ou desprazer ligados à sua representação. O que são propósitos e constrangimentos estéticos? Por que é que o são? Por que é que tais propósitos e constrangimentos permitem que o juízo seja um puro juízo de gosto? A explicação supracitada é indispensável, pois, no interior da tese de Allison, é a partir da distinção entre propósitos e constrangimentos estéticos, por um lado, e propósitos e constrangimentos extra-estéticos, por outro, que o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte considera um conceito daquilo que essa obra de arte deva ser, tem em conta a perfeição do objecto e, ainda assim, pode não deixar de ser um puro juízo de gosto.

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Segundo Allison, os constrangimentos estéticos, associados a um tipo, um género ou uma forma de arte, «podem ser vistos como envolvendo as normas académicas ou os padrões de medida da correcção para essa forma» (Allison, 2001: 296). Um dos parágrafos da Crítica da Faculdade

do Juízo para o qual esta identificação pode remeter é o §17, concernente ao ideal da beleza. Concretamente, ela pode remeter para a noção de ideia

normal estética (ästhetische Normalidee). A ideia normal estética é, como tivemos oportunidade de assinalar, na subsecção “Ideia estética”, «uma intuição singular (da faculdade da imaginação), que representa o padrão de medida do [julgamento de uma coisa] como de uma coisa pertencente a uma espécie (eine einzelne Aufschauung (der Einbildungskraft), die das

Richtmaß seiner Beurteilung, als eines zu einer besonderen Tierspezies

gehörigen Dinges)» (Kant, 1998: 124). Ainda de acordo com as palavras de Kant, ela é «a regra [die Regel]», é «somente a forma, que constitui a condição imprescindível de toda a beleza, por conseguinte simplesmente a correcção na exposição da espécie (nur die Form, welche die

unnachlaßliche Bedingung aller Schönheit ausmacht, mithin bloß die

Richtigkeit in Darstellung der Gattung)» (Kant, 1998: 126). Como tal, a ideia normal estética «não pode conter nada especificamente característico; pois de contrário não seria ideia normal para a espécie (kann nichts Spezifisch-Charakteristisches enthalten; denn sonst wäre sie

nicht Normalidee für die Gattung)» (Kant, 1998: 126). Assim, tal como admite o nosso autor, «[a] sua apresentação tão pouco apraz pela beleza, mas simplesmente porque não contradiz nenhuma condição, sob a qual unicamente uma coisa desta espécie pode ser bela ([i]hre Darstellung

gefällt auch nicht durch Schönheit, sondern bloß weil sie keiner

Bedingung, unter welcher allein ein Ding dieser Gattung schön sein kann,

widerspricht)» (Kant, 1998: 126-127). Na ideia normal estética, «[a] apresentação é apenas academicamente correcta ([d]ie Darstellung ist

bloß schulgerecht)» (Kant, 1998: 127). Por contraste com a ideia da razão, podemos afirmar, então, que a ideia normal estética permite apenas um comprazimento negativo na correcção académica da apresentação (cf. Kant, 1998: 127). Poderá ser na ideia normal estética de cada tipo, género

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ou forma de arte, por conseguinte, que residem os constrangimentos estéticos impostos pelo propósito, estético, inerente a uma obra de arte que se pretende que seja de um tipo, género ou forma particular.

Ainda que também possam remeter para a noção de ideia normal

estética, os constrangimentos estéticos referidos por Allison remetem certamente para a componente mecânica, coerciva e escolástica inerente a qualquer arte – mesmo às artes livres e, portanto, à bela arte – à qual Kant faz referência explícita nos §43, §45, §47 e §49. Na secção “Juízo através do qual se declara artístico um objecto”, tivemos oportunidade de citar algumas das menções feitas por Kant a essa componente. Assim, no §43, criticando aqueles «mais recentes pedagogos (neuere Erzieher)» que «crêem promover da melhor maneira uma arte livre quando eliminam dela toda a coerção e a convertem de trabalho em simples jogo (eine freie Kunst

am besten zu befördern glauben, wenn sie allen Zwang von ihr

wegnehmen und sie aus Arbeit in bloßes Spiel verwandeln)» (Kant, 1998: 208), Kant lembra que

em todas as artes livres se requer todavia algo coercivo ou, como se diz, um mecanismo, sem o qual o espírito, que na obra tem de ser livre e o qual unicamente vivifica a obra, não teria absolutamente nenhum corpo e volatilizar-se-ia integralmente (in allen freien Künsten dennoch etwas

Zwangsmäßiges, oder, wie man es nennt, ein Mechanismus erforderlich

sei, ohne welchen der Geist, der in der Kunst frei sein muss und allein

das Werk belebt, gar keinen Körper haben und gänzlich verdunsten

würde) (Kant, 1998: 208).

No §45, o nosso autor menciona «a forma escolástica (die Schulform)» que uma bela obra de arte não pode deixar «que transpareça (durchblickt)» (Kant, 1998: 211). No §47, Kant reforça que «não há nenhuma arte bela na qual algo mecânico, que pode ser captado e seguido segundo regras, e portanto algo escolástico, não constitua a condição essencial da arte (gibt

es keine schöne Kunst, in welcher nicht etwas Mechanisches, welches

nach Regeln gefaßt und befolgt werden kann, und also etwas

Schulgerechtes die wesentliche Bedingung der Kunst ausmachte)» e aproveita para criticar aquelas «pessoas superficiais (seichte Köpfe)» que «crêem que não poderiam mostrar melhor que seriam génios florescentes

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do que quando renunciam à coerção escolar de todas as regras e acreditam que se desfile melhor sobre um cavalo desvairado do que sobre um cavalo treinado (glauben, dass sie nicht besser zeigen können, sie wären

aufblühende Genies, als wenn sie sich vom Schulzwange aller Regeln

losfagen, und glauben, man paradiere besser auf einem kollerichten

Pferde, als auf einem Schulpferde)» (Kant, 1998: 215).225 Finalmente, no §49, Kant nota que no produto de um génio há algo atribuível «ao possível aprendizado ou à escola (der möglichen Erlernung oder der Schule)» (Kant, 1998: 224).

Igualmente de assinalar, ainda a propósito da componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte, são os exemplos que o nosso autor fornece dos constrangimentos mecânicos, coercivos e escolásticos derivados dos diferentes tipos, géneros ou formas de arte a que se pretende que uma obra particular pertença. No caso da poesia, por exemplo, Kant cita, no §43, «a correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica (die Sprachrichtigkeit und der Sprachreichtum, imgleichen die

Prosodie und das Silbenmaß)» (Kant, 1998: 208); relativamente à «arte de falar bem (Wohlredenheit)» e à «arte do som (Tonkunst)», ele menciona,

225 Nesse contexto, o nosso autor acrescenta que aquele que «fala e decide como um génio até em assuntos da mais cuidadosa investigação da razão, então torna-se completamente ridículo (sogar in Sachen der sorgfältigsten Vernunftuntersuchung

wie ein Genie spricht und entscheidet, so ist es vollends lächerlich)» (Kant, 1998: 215). Quando assim é, diz Kant que «não se sabe bem se se deve rir mais do impostor que difunde tanto fumo em torno de si e em que não se pode ajuizar nada claramente, mas muito mais se imagina, ou se se deve rir mais do público, que candidamente imagina que a sua incapacidade de reconhecer e captar claramente a obra-prima da perspiciência provém de que verdades novas lhe são lançadas às mãos cheias e contra o que a minúcia (através de explicações pontuais e exame sistemático dos princípios) lhe parece ser somente obra de ignorante (man weiß nicht recht, ob man mehr über

den Gaukler, der um sich so viel Dunst verbreitet, wobei man nichts deutlich

beurteilen, aber desto mehr sich einbilden kann, oder mehr über das Publicum lachen soll, welches sich treuherzig einbildet, dass sein Unvermögen, das Meisterstück der

Einsicht deutlich erkennen und fassen zu können, daher komme, weil ihm neue Wahrheiten in ganzen Massen zugeworfen werden, wogegen ihm das Detail (durch

abgemessene Erklärungen und schulgerechte Prüfung der Grundsätze) nur

Stümperwerk zu sein scheint)» (Kant, 1998: 215).

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no §53, respectivamente as «regras de eufonia da língua ou da conveniência da expressão para ideias da razão (Regeln des Wohllauts der

Sprache, oder der Wohlanstäntigkeit des Ausdrucks für Ideen der

Vernunft)» (Kant, 1998: 234) e a «harmonia (Harmonie)», a «melodia (Melodie)» e a «forma matemática (mathematischen Form)» a elas ligada (Kant, 1998: 235); finalmente, no §54, Kant indica que o objecto da bela arte – seja ele do tipo, género ou forma que for – «requer uma certa seriedade na apresentação (ein gewissen Ernst in der Darstellung

erfordert)» (Kant, 1998: 243). O mais interessante a notar, porém, é a associação que Kant estabelece

entre os referidos constrangimentos – e, portanto, entre a componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte – e o gosto. Os critérios enunciados no início do §49 – a saber, a graciosidade e a elegância de uma poesia, a precisão e o ordenamento de uma história, a profundidade e o requinte de um discurso festivo, a dotação de entretenimento de uma conversação ou a boniteza, a comunicatividade e a correcção de uma mulher – são concernentes ao gosto. Acerca dos produtos que os satisfazem, Kant afirma que «no que concerne ao gosto não se [encontra] neles nada censurável (man an ihnen, was den Geschmack betrifft, nicht

zu tadeln findet)» (Kant, 1998: 218). Assim, se, na produção de uma obra de arte, apenas os mencionados constrangimentos forem satisfeitos, essa obra, embora possa ser «um produto pertencente à arte útil e mecânica ou até mesmo à ciência segundo determinadas regras que podem ser apreendidas e têm que ser rigorosamente seguidas (ein zur nützlichen und

mechanischen Kunst, oder gar zur Wissenschaft gehöriges Produkt nach

bestimmten Regeln sein, die gelernt werden können und genau befolgt

werden müssen)», como é salvaguardado pelo nosso autor, na parte final do §48, «nem por isso é uma obra de arte bela (ist darum eben nicht ein

Werk der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 218). O alicerce da mencionada associação reside numa tese que surge no

§47 e que tem a sua concretização no §48. Já citámos algumas das passagens que em seguida citaremos. No §47, Kant assinala o seguinte: «O génio pode somente fornecer uma matéria rica para produtos da arte

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bela; a elaboração da mesma e a forma requerem um talento moldado pela escola, para fazer dele uso que possa ser justificado perante a faculdade do juízo ([d]as Genie kann nur reichen Stoff zu Produkten der schönen

Kunst hergeben; die Verarbeitung desselben und die Form erfordert ein

durch die Schule gebildetes Talent, um einen Gebrauch davon zu machen,

der vor der Urteilskraft bestehen kann)» (Kant, 1998: 215). Que esse talento é o gosto, confirmamo-lo no parágrafo seguinte, como já mostrámos. Aí, depois de estabelecer uma distinção entre beleza da natureza e beleza da arte, chamando à beleza da arte «uma representação

bela de uma coisa (eine schöne Vorstellung von einem Dinge)» (Kant, 1998: 216), Kant afirma que a «representação bela de um objecto (schönen

Vorstellung eines Gegenstandes)» é apenas «a forma da apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente (die Form der

Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt

wird)», acrescentando, logo a seguir, que «para dar esta forma ao produto da bela arte requer-se simplesmente gosto ([d]iese Form dem Produkte der

schönen Kunst zu geben, dazu wird bloß Geschmack erfordert)» (Kant, 1998: 217). Entretanto, ainda no §48, o nosso autor ressalva que a forma citada «é somente o veículo da comunicação e uma maneira por assim dizer da exposição, com respeito à qual em certa medida ainda se permanece livre, embora ela de resto esteja comprometida com um determinado fim (ist nur das Vehikel der Mitteilung und eine Manier

gleichsam des Vortrages, in Ansehung dessen man noch in gewissen Maße

frei bleibt, wenn er doch übrigens an einen bestimmten Zweck gebunden

ist)» (Kant, 1998: 218). Por isso é que a forma encontrada pelo artista é tornada «adequada ao pensamento, sem todavia prejudicar a liberdade no jogo daquelas faculdades (dem Gedanken angemessen und doch der

Freiheit im Spiele derselben nicht nachteilig werden zu lassen)» (Kant, 1998: 218). Assim, a partir de uma distinção entre génio e gosto, surgida no §47 e concretizada no §48, «se pode perceber, numa obra que deve ser de arte bela, frequentemente um génio sem gosto, e numa outra um gosto sem génio (kann man an einem seinsollenden Werke der schönen Kunst

oftmals Genie ohne Geschmack, an einem andern Geschmack ohne Genie

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wahrnehmen)» (Kant, 1998: 218). A distinção enunciada é, de resto, reforçada no §50. Aí, ao mesmo tempo que coloca o génio do lado da riqueza de espírito enquanto liberdade da faculdade da imaginação para produzir disparates através do fornecimento de ideias estéticas originais, Kant liga o gosto à faculdade do juízo enquanto faculdade de ajustamento da liberdade, riqueza e originalidade da faculdade da imaginação à legalidade do entendimento (cf. Kant, 1998: 225-226).

Associar a componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte ao gosto é, necessariamente, associá-la à beleza. Assim, ainda no §50, Kant indica que «unicamente em relação ao gosto [uma arte] merece ser chamada uma bela arte (eine Kunst in Ansehung des zweiten allein eine

schöne Kunst genannt zu werden verdient)» e que o gosto «é, pelo menos, enquanto condição indispensável (conditio sine qua non), o mais importante que se tem de considerar no julgamento da arte como bela arte (ist wenigstens als unumgängliche Bedingung (conditio sine qua non) das Vornehmste, worauf man in Beurteilung der Kunst als schöne

Kunst zu sehen hat)» (Kant, 1998: 225). Tal é reforçado no §53. No contexto das suas referências à música, o nosso autor sugere ser a forma matemática o elemento ao qual «se prende o comprazimento que a simples reflexão – acerca de um tão grande número de sensações que se acompanham ou sucedem umas às outras – conecta com este jogo das mesmas como condição da sua beleza (hängt das Wohlgefallen, welches

die bloße Reflexion über eine solche Menge einander begleitender oder

folgender Empfindungen mit diesem Spiele derselben als Bedingung

seiner Schönheit verknüpft)» (Kant, 1998: 235).226 Entretanto, no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60) Kant sublinha que «em cada arte o científico, que se refere à verdade na apresentação de seu objecto, é com efeito a condição indispensável (conditio sine qua non) da bela arte (was das Wissenschaftliche in jeder

Kunst anlangt, welches auf Wahrheit in der Darstellung ihres Objekts

geht, so ist díeses zwar die unumgängliche Bedingung (conditio sine qua

226 A matemática será, neste contexto, a condição indispensável da beleza.

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non) der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 264). Todas estas passagens exprimem uma associação da componente mecânica, coerciva e escolástica da arte à beleza. De resto, elas são concordantes com a designação que Kant dá, no §48, da forma da apresentação de um

conceito, pela qual este é comunicado universalmente (Form der

Darstellung eines Begriffs, durch welche dieser allgemein mitgeteilt

wird), forma que dissemos requerer apenas gosto. Nas palavras de Kant, ela é a «forma da arte bela (Form der schönen Kunst)» (Kant, 1998: 218).

Tendo em conta a maneira como iniciámos a nossa tese, a saber, salientando que a faculdade através da qual se ajuíza o belo é o gosto e que os juízos provenientes do gosto são juízos estéticos, afirmaríamos, agora, que, estando associada ao gosto e à beleza, a componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte é geradora de constrangimentos meramente estéticos. Por serem concernentes ao gosto, à beleza, os constrangimentos derivados do tipo, género ou forma de obra de arte que uma obra de arte particular é suposto ser podem chamar-se estéticos. Uma tal afirmação pode ser proferida. No entanto, ela tem de envolver uma salvaguarda.

Considerando aquilo que mostrámos na secção “Juízo através do qual se declara artístico um objecto”, torna-se claro que, antes de associar a componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte ao gosto e à beleza – algo que faz a partir do §48 – Kant associa-a ao lado artístico da bela arte. No §43, Kant lembra que nas artes livres – e, portanto, na bela arte – todavia (dennoch) se requer uma componente coerciva, mecânica (cf. Kant, 1998: 208). De acordo com o §47, essa componente mecânica, escolástica, é condição essencial não da vertente bela da beleza da arte, não da beleza da bela arte, mas da sua vertente artística, da sua arte (Kunst) (cf. Kant, 1998: 215). É para designar-se artístico (künstlich), segundo as palavras do §46, e não para designar-se belo, que um objecto pressupõe regras (cf. Kant, 1998: 211). Assim, a questão que importa colocar é a de saber que gosto e que beleza são esses, associados por Kant ao lado artístico da bela arte, que gosto e que beleza são esses, apresentados pelo nosso autor como determinando toda uma componente mecânica, coerciva

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e escolástica, que gosto e que beleza são esses, ligados a regras determinadas, ao entendimento, à ciência.227

Não pode tratar-se do gosto (Geschmack) que a Crítica da Faculdade

do Juízo critica e que pode ser aprimorado e consolidado pela crítica.228 Esse gosto, aprimorável e consolidável, eventualmente aprimorado e consolidado com a terceira Crítica, é unicamente uma faculdade de juízo, estética; o seu juízo baseia-se não em regras determinadas, mas num sentimento de prazer no movimento recíproco simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento daquele que ajuíza por ocasião da representação que ele faz de um objecto, na medida em que esse movimento é formalmente conforme a fins. Também não pode tratar-se do gosto (Geschmack) de cada um, enquanto faculdade de juízo estética de um indivíduo, isto é, enquanto instância, num indivíduo, da faculdade de juízo criticada no texto de Kant. Se a faculdade de juízo de um

227 Zammito apercebe-se da dificuldade em causa. Em primeiro lugar, ele assinala o seguinte: «Espírito e vida, na ordem das coisas kantiana normal, deveriam condizer com forma. Mecanismo e “corpo” deveriam, na ordem das coisas kantiana normal, condizer com “matéria”. Mas mecanismo tem sido associado com gosto, e gosto com “forma”, enquanto génio tem sido associado com “matéria”. No entanto, “espírito” e “vida” claramente caem para o lado do génio» (Zammito, 1992: 144-145). Depois, afirma que «tomando o gosto isoladamente» apenas pode produzir-se «um produto “mecânico”, academicamente correcto, mas sem vida» (Zammito, 1992: 145). Entretanto, em nota de rodapé, Zammito acrescenta que «isso que tem apenas gosto, mas nenhum vestígio de génio, é, certamente, na medida em que se conforma a regras, “correcto” e, Kant parece mesmo sugerir, belo» (Zammito, 1992: 381). De facto, é isso que uma parte significativa da Crítica da Faculdade do Juízo nos leva a concluir. O problema é que, mais preocupado com a consistência da descrição kantiana do génio e do gosto, o intérprete não pensa qualquer consequência da associação da beleza ao carácter coercivo, mecânico e escolástico da arte. 228 Na Primeira Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, imediatamente antes de mencionar a «perspectiva surpreendente (auffallende Aussicht)» e «muito promissora, em um sistema completo de todos os poderes-da-mente (viel verheißende in ein vollständiges System aller Gemütskräfte)» que uma tal crítica «abre, ao preencher uma lacuna no sistema de nossas faculdades-de-conhecimento (eröffnet, dadurch, dass sie eine Lücke im System unserer Erkenntnisvermögen ausfüllt)», Kant refere-a como «usada para o aprimoramento ou consolidação do próprio gosto (zur Verbesserung

oder Befestigung des Geschmacks selbst gebraucht wird)» (Kant, 1995: 83).

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indivíduo for por ele exercida esteticamente, então o seu fundamento de determinação é o fundamento de determinação da faculdade de juízo estética, não, portanto, uma regra determinada. Por exclusão de partes, só pode tratar-se do gosto (Geschmack) referido na parte final do Prólogo à primeira edição da Crítica da Faculdade do Juízo. Afirma Kant, aí, que

a investigação da faculdade do gosto, enquanto faculdade de juízo estética, não é aqui empreendida para a formação e cultura do gosto (pois esta seguirá como até agora o seu caminho, mesmo sem todas aquelas perquisições), mas simplesmente com um propósito transcendental (die

Untersuchung des Geschmacksvermögens, als ästhetischer Urteilskraft,

hier nicht zur Bildung und Kultur des Geschmacks (denn diese wird auch

ohne alle solche Nachforschungen, wie bisher, so hernerhin, ihren Gang

nehmen), sondern bloß in transzendentaler Absicht angestellt wird) (Kant, 1998: 48).

Trata-se desse gosto (Geschmack) cuja formação e cultura é independente de uma crítica do gosto enquanto crítica da faculdade de juízo estética, independente, por conseguinte, daquilo que se faz na Crítica da Faculdade

do Juízo. Essa formação e cultura seguem um caminho próprio porque, independentemente da legitimação de uma faculdade de juízo estética, têm vindo a constituir um corpus. Um tal corpus tem como conteúdo objectos artísticos que satisfazem os constrangimentos gerados pela componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte, isto é, objectos que cumprem regras determinadas pela forma de arte que representam.229 Esses objectos artísticos são mencionados naquelas ciências históricas às quais também se chama, habitual mas equivocadamente, ciências belas (schöne

Wissenschaften). Compreendemo-lo através da explicação que, no §44, Kant dá dessa designação:

O que ocasionou a expressão habitual ciências belas não foi sem dúvida outra coisa que o ter-se observado bem correctamente que para a bela arte em sua inteira perfeição se requer muita ciência, como por exemplo o conhecimento de línguas antigas, conhecimento literário de autores que são considerados clássicos, história, conhecimento das antiguidades,

229 Já citámos algumas dessas regras: «por exemplo na poesia a correcção e a riqueza da linguagem, igualmente a prosódia e a métrica» (Kant, 1998: 208).

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etc., e por isso estas ciências históricas, pelo facto de constituírem a preparação necessária e a base para a bela arte, em parte também porque nesse conceito foi compreendido mesmo o conhecimento dos produtos da mesma (oratória e poesia), por um equívoco terminológico foram mesmo chamadas ciências belas (Was den gewöhnlichen Ausdruck

schöne Wissenschaften veranlaßt hat, ist ohne Zweifel nichts anders, als

dass man ganz richtig bemerkt hat, es werde zur schönen Kunst in ihrer

ganzen Vollkommenheit viel Wissenschaft, als z. B. Kenntnis alter

Sprachen, Belesenheit der Autoren, die für Klassiker gelten, Geschichte,

Kenntnis der Altertümer usw., erfordert, und deshalb diese historischen

Wissenschaften, weil sie zur schönen Kunst die notwendige Vorbereitung

und Grundlage ausmachen, zum Teil auch weil darunter selbst die

Kenntnis der Produkte der schönen Kunst (Beredsamkeit und

Dichtkunst) begriffen worden, durch eine Wortverwechselung selbst

schöne Wissenschaften genannt hat) (Kant, 1998: 208-209).

Independentemente do contra-senso (Unding) que a designação implica, as chamadas ciências belas contêm referências a produtos da bela arte, isto é, a obras de arte que cumprem regras ligadas à componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte.230 É nessas ciências históricas que são referidos os «modelos da bela arte (Muster der schönen Kunst)», acerca dos quais Kant diz serem «os únicos meios de orientação para conduzir a arte à posteridade (die einzigen Leitungsmittel, diese auf die

Nachkommenschaft zu bringen)» (Kant, 1998: 214). Numa nota a uma passagem do §17, Kant chamava-lhes «[m]odelos do gosto (Muster des

Geschmacks)» (Kant, 1998: 267). As habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas plasmam aquele corpus no qual o gosto tem vindo a constituir-se independentemente da legitimação de uma faculdade de juízo estética.

Assim, embora os constrangimentos gerados pela componente mecânica, coerciva e escolástica da bela arte sejam constrangimentos aos quais pode chamar-se estéticos, precisamente porque ligados ao gosto, essa designação baseia-se num uso indistinto da noção de gosto em sentidos diferentes. Para ser livremente declarada bela, isto é, para ser

230 É também enquanto tal que essas ciências são tão importantes para a bela arte como, na passagem citada, Kant afirma que elas são.

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declarada bela através de um puro juízo de gosto, uma obra de arte tem de satisfazer constrangimentos ligados ao gosto.231 Mas o gosto a que tais constrangimentos estão associados não corresponde ao gosto enquanto faculdade de juízo estética.

Ainda assim, devemos notar ser o próprio Kant quem usa indistintamente a palavra gosto. Esse facto, por si só, possibilita que a beleza de alguma arte seja uma beleza livre, uma beleza declarada através de puros juízos de gosto. Talvez seja essa a razão pela qual, na Crítica da

Faculdade do Juízo, nunca é colocada – pelo menos explicitamente – a questão de saber se pode falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela, isto é, enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto.232 No entanto, é pertinente ressalvar que aceitá-lo significa resolver através de uma coincidência meramente terminológica uma questão cuja dificuldade assenta nas exigências estabelecidas pelo gosto enquanto faculdade de juízo estética.

***

Consideramos ter respondido de maneira suficientemente fundamentada à questão de saber se e como pode falar-se de beleza artística no contexto da Crítica da Faculdade do Juízo, se e sob que condições é legítimo usar-se essa expressão no âmbito da terceira Crítica de Kant. Está legitimada a noção de bela arte.

Para o fazermos, fomos obrigados a partir da sua definição como arte

do génio, da explicitação da noção de ideia estética e da denominação da beleza como expressão de ideias estéticas. Essa opção permitiu-nos

231 Não constituindo uma condição suficiente para tal, essa condição é, ainda assim, uma condição necessária. 232 De resto, de modo explícito, Kant não coloca sequer a questão de saber se pode falar-se de bela arte enquanto arte condicionadamente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados.

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concluir que, de acordo com Kant, o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza pode ser não apenas um exercício harmónico com a actividade do entendimento, mas igualmente um exercício livre, mesmo quando no seu juízo ele é obrigado a reconhecer um conceito dado. Concluímos também que, de novo no entender de Kant, o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza pode ser um exercício livre mesmo se for tida em conta a perfeição do objecto artístico.

É precisamente essa possibilidade que autoriza que a beleza aderente seja beleza e que o juízo de gosto aplicado seja juízo de gosto. Assim sendo, é através dela que justificamos a possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto, a possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte, a possibilidade de falar-se de bela arte – a possibilidade de ajuizar-se um objecto artístico através de um juízo de gosto aplicado, a possibilidade de condicionadamente se declarar bela uma obra de arte, a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte condicionadamente declarada bela, a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados.

Não é ela, porém, que autoriza que a beleza da arte seja uma beleza livre. A possibilidade de livremente se declarar bela uma obra de arte, a possibilidade de declarar-se bela uma obra de arte através de um puro juízo de gosto, tal possibilidade depende de uma interpretação do termo representação num sentido exemplificativo ligado ao gosto, de uma nova releitura das distinções “beleza livre – beleza aderente” e “puro juízo de

gosto – juízo de gosto aplicado”, que as entenda como distinções entre belezas ou juízos de gosto nos quais apenas são considerados propósitos e constrangimentos do âmbito do gosto e belezas ou juízos de gosto nos quais são tidos em conta propósitos e constrangimentos que não pertencem a esse âmbito, e, finalmente, da aceitação da plurivocidade de sentido da noção de gosto.233

233 Para uma compreensão esquemática das condições de possibilidade de se declarar livremente bela uma obra de arte, remetemos o leitor para o anexo “3. Livre Declaração da Obra de Arte como Bela”.

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Legitimada a noção de bela arte, quer enquanto arte condicionadamente declarada bela, isto é, arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados, quer enquanto arte livremente declarada bela, isto é, arte declarada bela através de puros juízos de gosto, estamos em condições de tentar responder à questão de saber o que é necessário para a produção de belas obras de arte.

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Capítulo IV: Para a Produção de Bela Arte

1. EDUCAÇÃO DO GÉNIO

A questão que até aqui moveu a nossa investigação foi a de saber se e como pode falar-se de bela arte no contexto da Crítica da Faculdade do

Juízo. Respondida essa questão, apresentadas as condições sob as quais é legítimo falar-se de bela arte no âmbito da terceira Crítica de Kant, é nossa tarefa responder à questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte, o que é necessário para a produção de objectos artísticos belos.

Na subsecção “Expressão de ideias estéticas”, reproduzimos e justificámos a afirmação de Kant segundo a qual «[b]ela arte é arte do

génio ([s]chöne Kunst ist Kunst des Genies)» (Kant, 1998: 211). À

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questão de saber o que é necessário para a produção de obras de arte belas seria de prever que, legitimada a noção de bela arte, respondêssemos com uma única palavra: génio. Uma tal resposta seria precipitada. Há várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que nos impedem de dá-la. Devemos dedicar-lhes a nossa atenção.

Na parte final do §47, Kant assinala que «[o] génio pode somente fornecer uma matéria rica para produtos da arte bela ([d]as Genie kann

nur reichen Stoff zu Produkten der schönen Kunst hergeben)» (Kant, 1998: 215). Essa matéria rica é constituída por ideias estéticas, que aquele que é dotado de génio fornece através da capacidade produtiva da sua imaginação. Numa nota a uma passagem do §17 – também já lhe fizemos referência – o nosso autor indica que naquilo «que se denomina génio (…) a natureza parece afastar-se das relações normais das faculdades do ânimo em benefício de uma faculdade só (dem, was man Genie nennt (…) die

Natur von ihren gewöhnlichen Verhältnissen der Gemütskräfte zum

Vorteil einer einzigen abzugehen scheint)» (Kant, 1998: 268). A faculdade beneficiada é a imaginação, faculdade através do qual o génio fornece a mencionada matéria rica para obras de arte belas. Acontece que, como Kant vem a acrescentar, no §50, «toda a riqueza da [faculdade da imaginação] não produz, na sua liberdade sem leis, senão disparates (aller

Reichtum der ersteren bringt in ihrer gesetzlosen Freiheit nichts als

Unsinn hervor)» (Kant, 1998: 225). Se assim é, então, considerar o exercício do génio, por si só, suficiente para a produção de belas obras de arte tem como consequência identificar a bela arte com uma produção disparatada de matéria. Mas, visto que uma tal identificação não é, de todo, aceitável, o nosso autor conclui que «[s]e portanto no conflito de ambas as espécies de propriedades algo deve ser sacrificado num produto, então isto terá que ocorrer antes do lado do génio ([w]enn also im Widerstreite

beiderlei Eingeschaften an einem Produkte etwas aufgeopfert werden soll,

so müsste es eher auf der Seite des Genies geschehen)» (Kant, 1998: 226). O sacrifício não pode incidir sobre o gosto ou sobre a faculdade do juízo em geral, que ajusta a riqueza da faculdade da imaginação ao entendimento.

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De certa maneira, as passagens que acabámos de citar contrariam uma outra, já transcrita por nós, segundo a qual

o génio consiste na feliz relação, que nenhuma ciência pode ensinar e nenhuma diligência pode aprender, de encontrar ideias para um conceito dado e por outro lado de encontrar para elas a expressão pela qual a disposição subjectiva do ânimo daí resultante, enquanto acompanhamento de um conceito, pode ser comunicada a outros (besteht

das Genie eigentlich in dem glücklichen Verhältnisse, welches keine

Wissenschaft lehren und kein Fleiß erlernen kann, zu einem gegebenen

Begriffe Ideen aufzufinden und andrerseits zu diesen den Ausdruck zu

treffen, durch den die dadurch bewirkte subjektive Gemütstimmung, als

Begleitung eines Begriffs, anderen mitgeteilt werden kann) (Kant, 1998: 223).234

Nesta passagem, da parte final do §49, Kant sugere que o génio tem mais poderes do que aqueles que lhe são atribuídos ou aos quais é associado nas passagens que acima citámos. O génio não apenas encontra ideias estéticas, mas igualmente encontra para essas ideias uma expressão mediante a qual as faculdades de conhecimento daquele que ajuíza se dispõem conformemente a fins para o conhecimento em geral.235

Não só a noção de gosto é usada por Kant em sentidos diferentes e sem que haja qualquer explicação ou sequer aviso para tal uso, então, como vimos no capítulo anterior; igualmente o é a noção de génio. A partir da descrição do génio proposta no §49, conclui-se que para a bela arte é necessário apenas génio. Por intermédio do espírito, o génio apresenta as ideias estéticas de uma maneira adequada à beleza. Tal é concordante com a primeira consequência por nós observada, na subsecção “Expressão de ideias estéticas”, precisamente a partir da descrição da noção de espírito elaborada por Kant no §49. Dissemos nós, nessa altura, que uma obra de arte de génio é um objecto que através de um juízo de gosto não pode ser declarado se não como belo. No entanto, acabámos de citar algumas

234 Essa expressão – assinalámo-lo – é encontrada pelo espírito. 235 Daí assinalar Gilles Deleuze que «[o] acordo da imaginação e do entendimento, nas artes, só é vivificado pelo génio, e sem ele ficaria incomunicável» (Deleuze, 2000: 63).

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passagens da Crítica da Faculdade do Juízo que sugerem uma insuficiência do génio para a bela arte.236 Além disso, a descrição do génio proposta no §49 parece contraditória com algo afirmado por Kant no §48, a saber, que o gosto é a faculdade através da qual se dá a uma obra de arte «a forma da apresentação de um conceito, pela qual este é comunicado universalmente (die Form der Darstellung eines Begriffs, durch welche

dieser allgemein mitgeteilt wird)» (Kant, 1998: 217). De acordo com esta passagem, no contexto da bela arte, um conceito torna-se universalmente comunicável através do gosto; segundo aquela, do §49, é através do génio – nomeadamente, por intermédio do espírito – que tal acontece.237

Uma tentativa de ultrapassar os conflitos evidenciados pela confrontação das passagens por nós mencionadas consiste na tese de acordo com a qual, entre o §47 e o §49, Kant terá alterado a sua posição concernente às capacidades do génio. Essa tese privilegia a posição de Kant plasmada no §49, na medida em que este parágrafo está mais próximo do final da Crítica da Faculdade do Juízo – ou do término de uma parte da mesma. Uma tal tomada de partido é consonante com muito do que é afirmado no §48, quer acerca do gosto, quer acerca do génio. Respectivamente, no início e no fim desse parágrafo, Kant salienta que «[p]ara o julgamento de objectos belos enquanto tais requer-se gosto ([z]ur

236 Henry E. Allison chega a considerar que o §50 pode ser interpretado como uma parte do texto de Kant na qual o nosso autor parece insinuar que o gosto constitui condição suficiente para que se produzam obras de arte belas. Diz o comentador que «Kant parece sugerir ao mesmo tempo que o génio é necessário para a produção de bela arte (§46) e que o gosto sem génio é suficiente (§50)» (Allison, 2001: 273). 237 Os conflitos para os quais aqui chamamos a atenção ocorrem no interior da Crítica

da Faculdade do Juízo, mediante a contraposição de algumas passagens da obra. Num âmbito mais alargado, a saber, o do inteiro trabalho filosófico de Kant, a plurivocidade de sentido da noção de génio é ainda mais evidente. A nossa intenção não passa, contudo, por descrever o desenvolvimento da noção de génio ao longo do trabalho filosófico de Kant. Àqueles que pretendam satisfazer um tal fim, sugere-se desde logo a leitura do artigo “Kant’s Early Theory of Genius (1770-1779)”, no qual Giorgio Tonelli tenta «reconstruir o desenvolvimento das ideias de Kant acerca do génio utilizando os materiais contidos no seu Nachlass, publicado por Adickes» (Tonelli, 1966: 109), assim como de Kants Lehre von Genie und die Entstehung der “Kritik

der Urteilskraft”, texto no qual Otto Schlapp recorre aos Kolleghefte.

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Beurteilung schöner Gegenstände als solcher wird Geschmack

erfordert)» (Kant, 1998: 215) e que «[o] gosto é (…) simplesmente uma faculdade de julgamento e não uma faculdade produtiva (Geschmack ist bloß ein Beurteilungs-, nicht ein produktives Vermögen)» (Kant, 1998: 218). No mesmo parágrafo, o nosso autor lembra que «para a própria arte, isto é para a produção de [objectos belos], requer-se génio (zur schönen

Kunst selbst, d. i. der Hervorbringung solcher Gegenstände, wird Genie erfordert)» (Kant, 1998: 215)238,e assim repete o primeiro ponto que ele próprio assinalou na sua primeira explicação da noção de génio, a saber, que o génio «é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada (ein Talent sei, dasjenige, wozu sich

keine bestimmte Regel geben lässt, hervorzubringen)» (Kant, 1998: 212). O gosto, então, é uma faculdade para ajuizar; o génio, por sua vez, um talento para a produção. O gosto não produz; o génio não ajuíza. Não obstante ambos serem necessários para a bela arte, um para produzir, o outro para ajuizar, não haverá, nesse contexto, qualquer relação entre eles.

Embora possa ser tentadora, a proposta que acabámos de apresentar – de acordo com a qual Kant terá alterado a sua posição concernente às capacidades do génio, tendo passado a considerá-lo condição suficiente para a produção de bela arte e a defender a inexistência de quaisquer relações entre esse talento e o gosto – não pode ser admitida. Ela entra em conflito desde logo com o título do §48: «Da relação do génio com o gosto (Vom Verhältnisse des Genies zum Geschmack)» (Kant, 1998: 215). Mesmo que este título fosse encarado como uma imprecisão decorrente de uma hesitação de Kant – até pela sua colocação, como título do parágrafo que medeia aqueles nos quais a posição do nosso autor relativamente às capacidades do génio alegadamente se altera – facto é que o título do §50, a saber, «Da ligação do gosto com o génio em produtos da bela arte (Von der Verbindung des Geschmacks mit Genie in Produkten der schönen

238 Já tivemos o cuidado de assinalar que, no concernente a esta passagem, a tradução elaborada por António Marques e Valério Rohden é incompleta. O génio é requerido unicamente para a bela arte, não para toda e qualquer arte.

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Kunst)» (Kant, 1998: 225) reforça a relação entre os dois talentos em causa no contexto da beleza artística. Além disso, os conteúdos do §50 plasmam uma insuficiência do génio para a bela arte. A frase com que Kant fecha esse parágrafo indica-o claramente: «para a arte bela requerer-se-iam faculdade da imaginação, entendimento, espírito e gosto ([z]ur

schönen Kunst würden Einbildungskraft, Verstand, Geist und Geschmack

erforderlich sein)» (Kant, 1998: 226), sendo que «[a]s três primeiras faculdades obtêm a sua unificação antes de tudo pela quarta ([d]ie drei

ersteren Vermögen bekommen durch das vierte allererst ihre

Vereinigung)» (Kant, 1998: 269), isto é, pelo gosto. Perante a dificuldade com que nos confrontamos, poderia

simplesmente admitir-se a inconsistência da Crítica da Faculdade do

Juízo no que concerne às noções de gosto e de génio – por conseguinte, relativamente àquilo que é necessário para a bela arte – e assumir-se que há duas concepções, incompatíveis, sem adiantar qualquer explicação para elas.239 Em nosso entender, porém, há uma perspectiva a partir da qual aquilo que de aparentemente contraditório Kant nota acerca do génio não carece de compatibilidade. Essa perspectiva assenta na tese segundo a qual nem todos os homens dotados de génio estão no mesmo patamar de prontidão para produzir belas obras de arte.

Ser dotado de génio corresponde a possuir um talento outorgado pela natureza sob a forma de uma proporção especial das faculdades do ânimo. No entanto, apesar de todos os génios (todos os homens dotados de génio) possuírem, por definição, um tal dom, nem todos estão nas mesmas condições para a produção de objectos artísticos belos. Desde logo no §47, ao elucidar e confirmar a introdução da noção de génio feita no parágrafo anterior, Kant menciona a figura do aprendiz (Lehrling) (cf. Kant, 1998: 214). Entretanto, no §60, no âmbito das suas últimas considerações relativas à bela arte, o nosso autor faz referência às figuras do mestre

239 É essa a tese de Allison, de novo, para quem no texto de Kant podem observar-se duas concepções de génio: uma «concepção grossa» e uma «concepção fina» (Allison, 2001: 301).

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(Meister) e do discípulo (Schüler) (cf. Kant, 1998: 264). Se recorrermos à explicitação do processo de sucessão entre génios, isto é, entre mestre e aprendiz ou discípulo, compreendemos que o simples facto de este último possuir um dom natural ao qual se chama génio não é suficiente para que ele produza uma bela obra de arte. Um outro talento é necessário para a produção de objectos artísticos belos.240

Quando, no §46, refere que os produtos do génio têm de ser exemplares e, portanto, servir de padrão de medida ou regra de julgamento, Kant assinala que «eles próprios não surgiram por imitação (selbst nicht durch

Nachahmung entsprungen)» (Kant, 1998: 212). Assim como não surgiram por imitação, os produtos do génio não podem servir de padrão de medida ou regra de julgamento para aqueles que os acolhem se estes os encararem como protótipos e optarem pela cópia, pela imitação. Nesse caso, asfixia-se (erstickt man) a liberdade da faculdade da imaginação, perde-se o ímpeto espiritual (Geistesschwunges), anula-se o carácter genial da obra (cf. Kant, 1998: 224 e 265).241 A imitação revela apenas habilidade.242 No âmbito da imitação, há, como é indicado no §47, diferenças de grau (Grade), não diferenças específicas (spezifische Unterschiede) (cf. Kant, 1998: 213). Os maiores descobridores, como Newton, que não apenas apreendem aquilo que por outros foi pensado, mas também pensam e

240 Por isso é que deve afirmar-se que só em princípio é que o génio é sempre exemplar (cf. Gil, 1998: 273). 241 Segundo Kant, o exercício do génio nem sequer deve envolver «uma precaução receosa (ängstliche Behutsamkeit)» (Kant, 1998: 224). Ele deve envolver coragem, mesmo que tal resulte na concessão de deformidades (Missgestalten): «Unicamente num génio esta coragem é mérito; e uma certa audácia na expressão e em geral algum desvio da regra comum fica-lhe bem (Dieser Mut ist an einem Genie allein Verdienst; und eine gewisse Kühnheit im Ausdrucke und überhaupt manche Abweichung von der

gemeinen Regel steht demselben wohl an)» (Kant, 1998: 224). Esta tese pode ser encarada como de alguma maneira já sugerida em O Belo e o Sublime, de 1764, onde Kant refere os «movimentos livres e naturais do génio, cuja beleza resultaria somente desfigurada por uma correcção trabalhosa dos defeitos» (Kant, 1943: 74). 242 Como é dito no §17, acerca do ideal da beleza, «quem (…) imita um modelo, na verdade mostra, na medida em que o consegue, habilidade (wer ein Muster nachahmt,

zeigt, sofern als er es trifft, zwar Geschicklichkeit)» (Kant, 1998: 123).

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imaginam, eles próprios, são grandes cabeças (große Köpfe); os mais laboriosos imitadores e aprendizes, são, no entender de Kant, patetas (Pinsel) (cf. Kant, 1998: 212-213). Para as grandes cabeças, o exemplo do génio produz «uma escola, isto é um ensinamento metódico segundo regras, na medida em que se tenha podido extraí-lo daqueles produtos do espírito e da sua peculiaridade (eine Schule, d. i. eine methodische

Unterweisung nach Regeln, soweit man sie aus jenen Geistesprodukten

und ihrer Eigentümlichkeit hat ziehen können)», mas, mesmo para elas, a bela arte é «uma imitação para a qual a natureza deu, através do génio, a regra (Nachahmung, der die Natur durch ein Genie die Regel gab) (Kant, 1998: 224). Quanto aos patetas, que copiam «tudo, até aquilo que enquanto deformidade o génio somente teve que conceder, porque não podia eliminá-la sem enfraquecer a ideia (alles, was das Genie als

Missgestalt nur hat zulassen müssen, weil es sich, ohne die Idee zu

schwächen, nicht wohl wegschaffen ließ)», para esses «aquela imitação torna-se macaquice (diese Nachahmung wird Nachäffung)» (Kant, 1998: 224).243 Segundo Kant, uma obra de arte de génio serve de produto exemplar e, assim, de padrão de medida ou regra de julgamento para aquele que a acolhe, se este a encarar como modelo da sucessão (cf. Kant, 1998: 214).244

243 Uma espécie de macaquice é o maneirismo (das Manierieren), imitação «da simples peculiaridade (originalidade) em geral, para distanciar-se o mais possível dos imitadores, sem contudo possuir o talento para ser ao mesmo tempo exemplar (der bloßen Eigentümlichkeit (Originalität) überhaupt, um sich ja von Nachahmern so

weit als möglich zu entfernen, ohne doch das Talent zu besitzen, dabei zugleich musterhaft zu sein)» (Kant, 1998: 224-225). Trata-se de um produto «amaneirado unicamente se a apresentação da sua ideia visar nele a singularidade e não for adequada à ideia ([a]llein manieriert nur alsdann, wenn der Vortrag seiner Idee in demselben auf die Sonderbarkeit angelegt und nicht der Idee angemessen gemacht

wird)» (Kant, 1998: 225). 244 Notam Marques e Rohden, que «[n]o manuscrito de Kant constou Nachahmung … Nachahmung (imitação … imitação)», sendo que «“[c]ópia” e “imitação” são expressões devidas a Kiesewetter» (Kant, 1998: 214). A edição da Preußische Akademie der Wissenschaften preserva o que se lê no manuscrito. O mais importante, porém, é assinalar, precisamente como fazem os autores da tradução por nós utilizada da Kritik der Urteilskraft para o Português, que «Kant teria querido escrever

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O que é que significa sucessão (Nachfolge) – como é que, no contexto da bela arte, se sucede? Embora, no âmbito dos §46 e §47, depois de afirmar que «a regra tem que ser abstraída do acto, isto é do produto, no qual outros queiram testar o seu próprio talento (die Regel

muss von der Tat, d. i. vom Produkt, abstrahiert werden, an welchem

andere ihr eigenes Talent prüfen mögen)», Kant admita que «[é] difícil explicar como isto seja possível» e acrescente apenas que «[a]s ideias do artista provocam ideias semelhantes no aprendiz, se a natureza o proveu com uma proporção semelhante de faculdades do ânimo ([d]ie

Ideen des Künstlers erregen ähnliche Ideen seines Lehrlings, wenn ihm

die Natur mit einer ähnlichen Proportion der Gemütskräfte versehen

hat)» (Kant, 1998: 214); apesar disso, muito antes, no §32, logo depois de ter descrito a sucessão como sendo «a influência que produtos de um autor original podem ter sobre outros (Einfluß, welchen Produkte

eines exemplarischen Urhebers auf Andere haben können)», ele afirma que tal somente quer dizer «haurir das mesmas fontes das quais aquele próprio hauriu e apreender do seu predecessor somente a maneira de proceder nesse caso (aus denselben Quellen schöpfen, woraus jener

selbst schöpfte, und seinem Vorgänger nur die Art, sich dabei zu

benehmen, ablernen)» (Kant, 1998: 184). Que maneira é essa? Embora não seja possível ensinar

metodicamente o modo de proceder na bela arte, tal modo é passível de sucessão se o discípulo tiver como padrão de medida aquilo a que Kant chama «o sentimento da unidade na apresentação (das Gefühl der Einheit in der Darstellung)» (Kant, 1998: 225). É esse o padrão

Nachahmung … Nachfolge (imitação … sucessão)» (Kant, 1998: 214). Tal tese é muito significativamente reforçada por uma passagem do olhar retrospectivo que Kant lança sobre a explicação da noção de génio, na qual o nosso autor afirma que «o produto de um génio (de acordo com o que nele é atribuível ao génio e não ao possível aprendizado ou à escola) é um exemplo não para a imitação (…) mas para a sucessão por um outro génio (ist das Produkt eines Genies (nach demjenigen, was in demselben dem Genie, nicht der möglichen Erlernung oder der Schule zuzuschreiben ist) ein

Beispiel nicht der Nachahmung, sondern der Nachfolge für ein anderes Genie)» (Kant, 1998: 224).

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do modus aestheticus, isto é, da maneira (Manier).245 É o sentimento da unidade na apresentação, então, aquilo que possibilita que a faculdade da imaginação do discípulo seja despertada «para a conformidade com um conceito dado (zur Angemessenheit mit einem

gegebenen Begriffe)» (Kant, 1998: 264); e é por intermédio de um tal sentimento, por conseguinte, que – experimentando o seu génio, através da produção de ideias estéticas, no produto de outro génio – o discípulo «é despertado para o sentimento da sua própria originalidade, exercitando na arte uma tal liberdade em relação à coerção de regras, que a própria arte obtém por este meio uma nova regra, pela qual o talento se mostra como exemplar (zum Gefühl

seiner eigenen Originalität aufgeweckt wird, Zwangsfreiheit von

Regeln so in der Kunst auszuüben, dass diese dadurch selbst eine

neue Regel bekommt, wodurch das Talent sich als musterhaft zeigt )» (Kant, 1998: 224). O processo de sucessão só se efectiva se, em face da obra do mestre, o aprendiz, além de ser original, sentir a unidade na apresentação, padrão do modus aestheticus, único modo de composição dos pensamentos válido para a bela arte.

Enunciado o carácter decisivo da sucessão para a produção de belas obras de arte, aquilo que agora importa notar é que o sentimento da unidade na apresentação pode ocorrer unicamente se o aprendiz exercer a sua faculdade de juízo estética, isto é, se ele

245 A clarificação da distinção entre método e maneira é apresentada por Kant no final da revisão da noção de génio, depois do §49: «Na verdade há na exposição dois modos (modus) em geral de composição dos seus pensamentos, um dos quais chama-se maneira (modus aestheticus) e o outro, método (modus logicus), que se distinguem entre si no facto que o primeiro modo não possui nenhum outro padrão que o sentimento da unidade na apresentação, enquanto que o outro segue princípios determinados; para a arte bela vale portanto só o primeiro modo (Zwar gibt es

zweierlei Art (modus) überhaupt der Zusammenstellung seiner Gedanken des Vortrages, deren die eine Manier (modus aestheticus), die andere Methode (modus logicus) heißt, die sich darin von einander unterscheiden: dass die erstere kein anderes Richtmaß hat, als das Gefühl der Einheit in der Darstellung, die andere aber

hierin bestimmte Prinzipien befolgt; für die schöne Kunst gilt also nur die erstere)» (Kant, 1998: 225).

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exercer o seu gosto. Estamos autorizados a afirmar, então, que só exercendo o seu gosto pode o discípulo tornar-se mestre; só assim pode ele impedir que a sua faculdade da imaginação, enquanto produtora, se exerça num regime de liberdade sem leis e, consequentemente, de produção de meros disparates; só exercendo o seu gosto pode o discípulo averiguar e melhorar a adequabilidade das suas ideias e da maneira como as apresenta, a qualidade da sua expressão, verificar se essa expressão dispõe as faculdades da imaginação e do entendimento conformemente a fins para o conhecimento em geral, se a maneira de apresentar o material fornecido pela capacidade produtiva da faculdade da imaginação é adequada para comunicar universalmente o inefável, se ela é adequada à comunicabilidade universal da disposição subjectiva do ânimo por ocasião da representação do objecto, podendo melhorá-la se não for; só assim pode aquele que é dotado de génio avaliar e possibilitar o reforço da consistência das suas ideias, da capacidade de as suas ideias serem universal e duradouramente aprovadas, pode ele avaliar e possibilitar o reforço da capacidade que essas ideias terão de promover a sucessão de outros e o crescimento da cultura; só se o génio exercer o seu gosto podem os seus produtos ser não apenas originais, mas também exemplares e, por conseguinte, servir de padrão de medida ou regra de julgamento para outros. Por outras palavras, só através do exercício do gosto pode ser desenhado o círculo produtivo, pode ser feita a sucessão entre mestre e discípulo, pode o novo génio ser «a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento» (Kant, 1998: 224), pode ele ser aquele que «é original e ao mesmo tempo inaugura uma nova regra, que não pôde ser inferida de quaisquer princípios ou exemplos anteriores (original ist und zugleich eine

neue Regel eröffnet, die aus keinen vorhergehenden Prinzipien oder

Beispielen hat gefolgert werden können)» (Kant, 1998: 223). Só se o génio exercer o seu gosto podem os seus produtos ser exemplos para a sucessão por génios subsequentes; só assim pode ele

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inaugurar uma nova regra. Só se o génio exercer o seu gosto pode a natureza, através dele, dar a regra à bela arte; só assim podem as suas obras de arte ser belas.246

Mediante a proposta que acabámos de apresentar para salvar as considerações que Kant faz acerca do génio da queda numa contradição, proposta que encara como decisiva a distinção estabelecida por Kant entre mestre, por um lado, e aprendiz ou discípulo, por outro, assim como a importância do gosto para a efectivação do processo de sucessão entre artistas dotados de génio, pode ser compreendida, finalmente, e reconhecida como feliz, a analogia sugerida por Gary Banham, para quem

[s]e o génio nos providencia a noção de uma segunda natureza, o gosto é como um segundo juízo dentro dessa segunda natureza, regulando a nossa dieta de maneira a que a nova natureza se mantenha numa condição saudável. O gosto é o médico da segunda natureza (Banham, 2000: 113).

O exercício do génio pode levar, de facto, a uma produção disparatada de matéria. Mas se o exercício do génio, enquanto um tal talento é um talento para a bela arte, não pode ser identificado com uma produção disparatada de matéria, se, portanto, a arte do génio, enquanto bela arte, não é o resultado de uma produção desse tipo, então aquele que é dotado de génio tem de exercer o seu gosto. O exercício do génio no sentido da produção de objectos belos depende do exercício do gosto – para produzir belas obras de arte, aquele que é dotado de génio tem de exercer a sua faculdade de juízo estética. A razão disso é que ele (aquele que é dotado de génio, não o próprio génio, enquanto talento) tem de ajuizar, sendo que a faculdade através da qual se ajuíza o belo não é outra que não o gosto, faculdade de juízo estética.

246 Respondemos deste modo à questão, lançada por Fernando Gil, de saber «[c]omo se concilia a exemplaridade do gosto e do génio com a “subjectividade” do juízo de gosto e com a “originalidade” do génio» (Gil, 1998: 273).

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2. CULTIVO, EXERCITAMENTO E CORRECÇÃO DO GOSTO

Numa tentativa inicial de responder à questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte, acabámos de mostrar que, sendo condição indispensável, o génio não é condição suficiente para tal. Para produzir objectos artísticos belos é igualmente necessário gosto – aquele que é dotado de génio tem de exercer a sua faculdade de juízo estética. Sem prejuízo desta afirmação, devemos notar, porém, haver várias passagens da Crítica da Faculdade do Juízo a indicar que, assim como nem todos aqueles que são dotados de génio estão no mesmo patamar de prontidão para produzir belas obras de arte, também nem todos aqueles que são dotados de gosto estão nas mesmas condições para ajuizar correctamente uma obra de arte como bela. Tais passagens deverão ser consideradas numa tentativa de fornecer uma resposta mais completa à questão de saber o que é necessário para produzir objectos artísticos belos. Fá-lo-emos sem negar que um génio que exerça o seu gosto é indispensável à produção de bela arte.

No “Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”, Kant indica que o gosto é cultivado. Fá-lo no §14, ao mencionar a «cultura (Kultur)» do gosto (Kant, 1998: 115). No mesmo parágrafo, o nosso autor refere um gosto «autêntico, incorrompido e sólido (echten, unbestochenen, gründlichen)» e sugere diferentes fases do gosto, por exemplo aquela na qual ele é «ainda rude e não exercitado (noch roh und ungeübt)», é «ainda fraco e não exercitado (schwach und

ungeübt)» (Kant, 1998: 115).247 O gosto (a faculdade de juízo estética) é uma faculdade cultivável e exercitável.248 Entretanto, no §48, Kant acrescenta que o gosto é «exercitado e corrigido através de diversos

247 Tal vai ao encontro do parágrafo anterior (§13) no qual Kant refere um gosto «ainda bárbaro (noch barbarisch)» (Kant, 1998: 113). 248 A afirmação de um gosto que se desenvolve não é uma novidade da Crítica da Faculdade do Juízo. Em O Belo e o Sublime, Kant refere um «gôsto que por vezes se afina» (Kant, 1943: 60). Esse gosto, inicialmente «rude» (Kant, 1943: 60), pode transformar-se num «gôsto muito apurado» (Kant, 1943: 63).

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exemplos da arte ou da natureza (durch mancherlei Beispiele der Kunst

oder der Natur geübt und berichtigt)» (Kant, 1998: 217). Essa afirmação vai ao encontro de uma outra, proferida no fecho do §32:

entre todas as faculdades e talentos o gosto é aquele que, porque o seu juízo não é determinável mediante conceitos e preceitos, maximamente precisa de exemplos daquilo que na evolução da cultura durante maior tempo recebeu aprovação, para não se tornar logo de novo grosseiro e recair na rudeza das primeiras tentativas (unter allen Vermögen und

Talenten ist der Geschmack gerade dasjenige, welches, weil sein Urteil

nicht durch Begriffe und Vorschriften bestimmbar ist, am meisten der

Beispiele dessen, was sich im Fortgange der Kultur am längsten in

Beifall erhalten hat, bedürftig ist, um nicht bald wieder ungeschlacht zu

werden und in die Rohigkeit der ersten Versuche zurückzufallen) (Kant, 1998: 184-185).

Em primeiro lugar, importa salientar que o gosto é uma faculdade cultivável, exercitável e corrigível através de exemplos.249 É também importante notar, em segundo lugar, ser enquanto faculdade cujo fundamento de determinação é um sentimento, não um conceito ou um preceito, que o gosto mais precisa de exemplos. Finalmente, deve ser assinalado que os exemplos daquilo que na evolução da cultura durante maior tempo recebeu aprovação são os objectos referidos nas ciências

249 A propósito da noção de exemplo – ou, melhor, a propósito das noções de Exempel e Beispiel, traduzidas para Português através do termo “exemplo” – é de observar a distinção identificada por Fernando Gil. Sem prejuízo da admissão de que Kant «não é sempre fiel ao princípio da distinção», e notando que «a existência, em alemão, de um só adjectivo, exemplarisch, para os dois nomes do exemplo presta à confusão» (Gil, 1998: 267), Gil considera que, enquanto Exempel «está ligado à exemplificação entendida como simples instanciação de uma regra geral, como “caso particular” da regra», tratando-se, portanto, «somente de uma quantificação existencial, sem qualquer acréscimo de inteligibilidade relativamente à regra», Beispiel, diferentemente, «não representa a instanciação de uma regra», tratando-se «antes a invenção de um modelo» (Gil, 1998: 266-267). Nesse sentido, o Beispiel é «“introduzido” (o verbo é anführen) – isto é, produzido, comparado com outros exemplos possíveis» (Gil, 1998: 266). Ele está estreitamente ligado ao objectivo de «contribuir para a “compreensão de uma expressão” (zur Verständlichkeit eines

Ausdrucks)», e por isso é requerido «quando há um défice de compreensão» (Gil, 1998: 266-267).

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históricas mencionadas por Kant no §44 (cf. Kant, 1998: 208-209). Assim sendo, as habitual mas equivocadamente chamadas ciências belas podem contribuir para o gosto enquanto faculdade de juízo estética de que cada indivíduo é dotado, para o cultivo dessa faculdade em cada indivíduo, para o seu exercitamento, para a sua correcção.

Uma chamada de atenção poderá ser-nos feita imediatamente. Ela apontará para a eventualidade de surgir uma contradição se à nossa tese juntarmos a afirmação de que o gosto (faculdade de juízo estética) reivindica simplesmente autonomia. De facto, no §32, como já citámos, Kant afirma que «[o] gosto reivindica simplesmente autonomia ([d]er

Geschmack macht bloß auf Autonomie Anspruch)» (Kant, 1998: 183). Essa afirmação é, de resto, reforçada nos parágrafos seguintes (§33 e §34). O prazer que aquele que ajuíza tem por ocasião da representação do objecto é um prazer imediato; logo, não é através de um argumento, seja esse um argumento empírico ou um argumento a priori, que ele o sente. O fundamento do juízo de gosto é a «reflexão do sujeito sobre o seu próprio estado (de prazer ou desprazer), com rejeição de todos os preceitos e regras (Reflexion des Subjekts über seinen eigenen Zustand (der Lust

oder Unlust) mit Abweisung aller Vorschriften und Regeln)» (Kant, 1998: 187). No próprio §44, antes de usar a expressão ciências belas, Kant sustenta a tese segundo a qual não pode haver uma ciência do belo (cf. Kant, 1998: 208).250 Entretanto, nos §58 e §59, o nosso autor assinala, respectivamente, que o juízo de gosto é «livre (frei)» e tem «autonomia 250 Nesse parágrafo, Kant diz apenas que «[n]ão há ([e]s gibt weder)» uma tal ciência, assim como não há «uma ciência bela (noch schöne Wissenschaft)» (Kant, 1998: 208). Veja-se, no entanto, a sua justificação: se houvesse uma ciência do belo, «deveria então ser decidido nela cientificamente, isto é por argumentos, se algo deve ser tido por belo ou não; portanto se o juízo sobre a beleza pertencesse à ciência, ele não seria nenhum juízo de gosto (so würde in ihr wissenschaftlich, d. i. durch Beweisgründe,

ausgemacht werden sollen, ob etwas für schön zu halten sei oder nicht; das Urteil über Schönheit würde also, wenn es zur Wissenschaft gehörte, kein Geschmacksurteil

sein)» (Kant, 1998: 208). Por essa razão, não só não há, como também não pode haver uma ciência do belo. É exactamente isso que Kant salienta no §60: «não há nem pode haver uma ciência do belo (es keine Wissenschaft des Schönen gibt noch geben kann)» (Kant, 1998: 264). Já tínhamos transcrito estas passagens.

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por fundamento (Autonomie zum Grunde)» (Kant, 1998: 259) e que a faculdade do gosto «dá a si própria a lei com respeito aos objectos de um comprazimento tão puro, assim como a razão o faz com respeito à faculdade da apetição (gibt in Ansehung der Gegenstände eines so reinen

Wohlgefallens ihr selbst das Gesetz, so wie die Vernunft es in Ansehung

des Begehrungsvermögens tut)» (Kant, 1998: 263). Dadas estas restrições, duas questões devem ser levantadas: a primeira é a de saber se as ciências mencionadas por Kant no §44 podem contribuir para uma faculdade que reivindica simplesmente autonomia (o gosto); a segunda depende de uma resposta afirmativa à primeira e é a questão de saber em que medida poderão tais ciências contribuir para essa faculdade.

À primeira questão responde-se ressalvando que a afirmação segundo a qual o gosto reivindica simplesmente autonomia não impede que aquele que ajuíza tenha em conta o conhecimento que possui de línguas antigas, o conhecimento literário de autores clássicos, a história e o conhecimento das antiguidades, entre outros. Não é necessariamente que há contradição entre essa tese e a possibilidade de aquele que ajuíza ter em conta objectos que ao longo da história foram ou têm vindo a ser considerados belos, isto é, coisas que foram ou têm vindo a ser consideradas exemplos de beleza. Só há contradição se o facto de esses objectos terem sido ou terem vindo a ser considerados exemplos de beleza for o fundamento em que aquele que os ajuíza se baseia para os ajuizar como belos. No juízo de gosto, esse não é, contudo, o caso.

O facto de tais objectos terem sido ou terem vindo a ser considerados exemplos de beleza deve servir – e assim iniciamos a resposta à segunda questão – tão-somente de incentivo a que aquele que ajuíza procure e encontre mais facilmente em si os princípios do gosto, o que seria mais difícil se ele ajuizasse a partir de uma índole bruta, grosseira e rude. Note-se que, no parágrafo no qual indica que a faculdade de juízo estética reivindica simplesmente autonomia, Kant acrescenta que

[n]ão há absolutamente nenhum uso das nossas forças, por livre que ele possa ser, e mesmo da razão [que tem de haurir todos os seus juízos da fonte comum a priori] que não incidiria em falsas tentativas se cada

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sujeito sempre devesse começar totalmente da disposição bruta da sua índole, se outros não o tivessem precedido com as suas tentativas, não para fazer dos seus sucessores simples imitadores, mas para pôr outros a caminho pelo seu procedimento, afim de procurarem em si próprios os princípios e assim tomarem o seu caminho próprio e frequentemente melhor (Es gibt gar keinen Gebrauch unserer Kräfte, so frei er auch sein

mag, und selbst der Vernunft (die alle ihre Urteile aus der

gemeinschaftlichen Quelle a priori schöpfen muss), welches, wenn jedes

Subjekt immer gänzlich von der rohen Anlage seines Naturells anfangen

sollte, nicht in fehlerhafte Versuche geraten würde, wenn nicht andere

mit den ihrigen ihm vorgegangen wären, nicht um die Nachfolgenden zu

bloßen Nachahmern zu machen, sondern durch ihr Verfahren andere auf

die Spur zu bringen, um die Prinzipien in sich selbst zu suchen und so

ihren eigenen, oft besseren Gang zu nehmen) (Kant, 1998: 184).251

Procurar os princípios (die Prinzipien suchen) significa tentar descobrir em que se baseia um juízo – de maneira a que possa ajuizar-se fundamentando o juízo nesses princípios. Ora, as ciências referidas por Kant no §44, ao providenciarem àquele que ajuíza um conhecimento daquilo que foi ou tem vindo a ser considerado exemplo de beleza, convidam-no a ser o mais correcto possível no que concerne à maneira como ajuíza. Se ele não considerar belo um objecto, mas tiver conhecimento de que esse objecto foi ou tem vindo a ser considerado belo, então é possível – será mesmo plausível ou até provável – que ele hesite relativamente à correcção do seu juízo, isto é, que tenha dúvidas quanto àquilo no qual está a fundar o seu juízo. No §33, Kant chama a atenção para essa possibilidade:

[s]e alguém não considera belo um edifício, uma vista, uma poesia, então ele (…) pode até começar a duvidar se também formou suficientemente o seu gosto pelo conhecimento de um número satisfatório de objectos de

251 No mesmo sentido, veja-se a seguinte passagem do texto Ideia de uma História

Universal com um Propósito Cosmopolita, de 1784: «A razão numa criatura é uma faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece limites alguns para os seus projectos. Não actua, porém, instintivamente, mas precisa de tentativas, de exercício e aprendizagem, para avançar de modo gradual de um estádio do conhecimento para outro» (Kant, 2004: 23).

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uma certa espécie ([w]enn jemand ein Gebäude, eine Aussicht, ein

Gedicht nicht schön findet, so kann er sogar zu zweifeln anfangen, ob er

seinen Geschmack durch Kenntnis einer genugsamen Menge von

Gegenständen einer gewissen Art auch genug gebildet habe) (Kant, 1998: 185).

Um tal conhecimento pode contribuir para o gosto precisamente na medida em que pode contribuir para que aquele que ajuíza se questione quanto à correcção do seu juízo, isto é, quanto ao fundamento, aos princípios, no qual o seu juízo se baseia – ou, por outras palavras, quanto a estar a proferir um juízo de gosto ou um juízo de outro tipo.252 É nesse sentido que «[o] juízo de outros que nos é desfavorável na verdade pode com razão tornar-nos hesitantes com respeito ao nosso ([d]as uns

ungünstige Urteil anderer kann uns zwar mit Recht in Ansehung des

unsrigen bedenklich machen)» (Kant, 1998: 185). Esse juízo, desfavorável, pode tornar-nos hesitantes no que concerne ao nosso, precisamente enquanto pode levar a que questionemos se, de facto, estaremos a ajuizar segundo os princípios do gosto.

Não é unicamente para o gosto, no entanto, que os conhecimentos sublinhados por Kant, no §44, podem contribuir. Melhor: não é directamente que eles podem fazê-lo. Antes de mais, esses conhecimentos

252 É também no interior deste contexto que pode compreender-se algo afirmado por Kant no §60, a saber, «parece evidente que a verdadeira propedêutica para a fundação do gosto seja o desenvolvimento de ideias morais e a cultura do sentimento moral (leuchtet ein, dass die wahre Propädeutik zur Gründung des Geschmacks die

Entwicklung sittlicher Ideen und die Kultur des moralischen Gefühls sei)» (Kant, 1998: 266). Na medida em que também no caso da moralidade se requer que o sujeito supere aquilo que meramente agrada aos sentidos e, portanto, que ele não se deixe levar por inclinações, nessa medida, o desenvolvimento de ideias morais e a cultura do sentimento moral podem ser úteis no encaminhamento daquele que ajuíza para a procura e descoberta em si mesmo dos princípios do gosto. O mesmo se passa – e, de resto, de maneira ainda mais clara – relativamente ao juízo acerca do sublime. Na medida em que o seu fundamento reside precisamente «na disposição ao sentimento para ideias (práticas), isto é ao sentimento moral (in der Anlage zum Gefühl für (praktische) Ideen, d. i. zu dem moralischen)» (Kant, 1998: 163), a preparação para ajuizar acerca do sublime deverá consistir no desenvolvimento de ideias morais e na cultura do sentimento moral.

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podem contribuir para a faculdade do juízo. Aquilo que pode ser directamente cultivado, exercitado e corrigido através da recorrência às obras de arte referenciadas nas equivocadamente chamadas ciências belas é a faculdade do juízo. Esta nossa ressalva assenta numa passagem do já citado §32. Nessa passagem, Kant refere que, apesar de inicialmente «um jovem poeta não se [deixar] demover, nem pelo juízo do público nem pelo dos seus amigos, da persuasão de que sua poesia seja bela (lässt sich ein

junger Dichter von der Überredung, dass sein Gedicht schön sei, nicht

durch das Urteil des Publikums, noch seiner Freunde abbringen)», ele pode acabar por alterar o seu juízo – pode fazê-lo, nas palavras do nosso autor, «mais tarde, quando a sua faculdade do juízo tiver sido mais aguçada pelo exercício (späterhin, wenn seine Urteilskraft durch

Ausübung mehr geschärft worden)» (Kant, 1998: 183)253. A faculdade do juízo é, ou, pelo menos, pode ser, aguçada (geschärft).

Uma faculdade do juízo mais aguçada é uma faculdade do juízo mais preparada para proporcionar um juízo correcto (seja ele de gosto, seja ele de outro tipo) do que o é uma faculdade do juízo menos aguçada.254 253 Como assinala Maria Filomena Molder: «eis que a apreciação estética se descobre susceptível de ser aperfeiçoada, capaz de afinação» (Molder, 2007: 381). É certo que «[a] autonomia, isto é, a indiferença à apreciação alheia, é a regra da apreciação estética», mas «[s]e a apreciação estética deve ser de cada vez autónoma, a fim de que o juízo seja verdadeiramente puro, isso não quer dizer que não haja possibilidade legítima de alteração, isso não impede a inversão do juízo» (Molder, 2007: 381). Referindo-se especificamente à passagem que acabámos de citar da Crítica da Faculdade do Juízo, Molder acrescenta que «a autonomia do juízo é integrada, e não ameaçada» e que «ela é mesmo vivificada no campo tensional baptizado como exercício, o elemento da Ausübung, cujos efeitos se mostram no gesto de colocar-se no caminho dos outros poetas» (Molder, 2007: 381). Assim, no entender de Molder, «é da Ausübung, do exercício, que deriva a legitimidade da mudança da apreciação», o que significa que «[s]e o jovem poeta se comprometer num verdadeiro exercício poético, então a mudança de opinião mostra-se legítima» (Molder, 2007: 382). 254 Em 1785, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a propósito das leis a priori, Kant assinala que elas «exigem, para além do mais, uma faculdade de juízo aguçada pela experiência que, por um lado, permita discernir em que situações elas se tornam aplicáveis e, por outro, lhes faculte um acesso à vontade humana e eficácia no seu exercício prático, pois que o homem, afectado como é por tantas inclinações, é bem capaz de conceber a ideia de uma razão pura, mas não terá tão facilmente o poder

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Quanto ao exercício (Ausübung) que a aguça, esse exercício é qualquer um que possa contribuir para que aquele que ajuíza ajuíze através da faculdade de juízo adequada para a questão em causa e segundo os princípios dessa mesma faculdade. Se, por exemplo, a questão em causa for a de ajuizar se um objecto é belo, nesse caso ele tem de ajuizar através da faculdade de juízo estética (o gosto) e segundo os seus princípios. Ora, como acabámos de mostrar, para que tal aconteça pode ser útil o conhecimento de um número satisfatório de objectos de uma certa espécie, referido por Kant no §33, conhecimento que pode ser adquirido através das ciências citadas pelo nosso autor no §44.255 Esse conhecimento pode aguçar a faculdade do juízo – pode fazê-lo enquanto pode contribuir para que aquele que ajuíza procure em si próprio os princípios do gosto e descubra em que é que um juízo de gosto se baseia, por conseguinte na medida em que pode contribuir para que ele ajuíze correctamente. Aquilo que se usa correcta ou incorrectamente é não o gosto, mas a faculdade do juízo. Cultivar, exercitar e corrigir o gosto significa, mais geralmente, aguçar a faculdade do juízo, de maneira a que, quando se pretende ajuizar se um objecto é belo, se o faça através da faculdade de juízo estética (o gosto) e segundo os seus princípios.

É de notar, entretanto, que nem o facto de a faculdade do juízo ser algo que é aguçado, nem o facto de as ciências belas poderem ter importância para o proferimento do juízo de gosto, nenhum desses factos interfere na validade de que Kant tenta dotar a referida espécie de juízo. Se a ignorância quanto aos conteúdos das ciências mencionadas por Kant no

de a tornar eficaz in concreto no seu comportamento» (Kant, 2003: 55). Ainda na mesma obra, de resto, ele fala de um «juízo amadurecido pela experiência e aguçado pela observação» (Kant, 2003: 75). A faculdade do juízo é uma faculdade passível de aguçamento; e o aguçamento da faculdade do juízo contribui para o seu uso correcto, por conseguinte para o proferimento de juízos correctos, sejam eles de gosto ou de outro tipo. 255 Entretanto, se recorremos à Crítica da Razão Pura, vemos afirmado que «a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido» (Kant, 2001: 177) e que «[a]guçar a faculdade de julgar (…) é a grande e única utilidade dos exemplos» (Kant, 2001: 178).

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§44 levar a que aqueles que os ignoram discordem dos que conhecem tais conteúdos, aquilo de que deveremos falar é não de uma discórdia patente em juízos de gosto, mas simplesmente de uma incorrecção, por parte de um dos grupos, na aplicação da faculdade do juízo. A diferença que um nível superior de desenvolvimento da faculdade do juízo pode fazer em relação a um nível inferior resume-se à maior probabilidade de, quando pretende ajuizar se um objecto é belo, aquele que possui uma faculdade menos desenvolvida ajuizar através de algo que não o gosto e os princípios do gosto, o que constitui tão-só e apenas uma incorrecção quanto àquilo mediante o qual se ajuíza.256

256 Esta tese pode ser perspectivada como estando presente desde logo em O Belo e o

Sublime, de 1764, ainda que noutros termos. Afirma Kant, aí, que «[q]ualquer que seja o género das sensações tam delicadas de que tratamos até aqui, sublimes ou belas, sofrem o destino comum de aparecerem como falsas e absurdas aos olhos de todo aquêle cuja sensibilidade não concorda com elas» (Kant, 1943: 36). Tal acontece porque «[a]inda que não falte por completo uma sensibilidade apropriada, existem graus muito diferentes, e vê-se que um encontra nobre e digno uma coisa que para outros é extravagante» (Kant, 1943: 37). Mas o que está em causa é sempre aquilo no qual o juízo é baseado. Daí o nosso autor acrescentar que «[n]ão se tem razão quando se acusa de não entender a quem não vê o valor ou a formosura do que nos comove ou encanta», pois «[t]rata-se aqui não tanto do que o entendimento compreende como do que o sentimento experimenta» (Kant, 1943: 38). Coerentemente, no texto Investigação sobre a Clareza dos Princípios da Teologia Natural e da Moral, também de 1764, Kant assinala que «[o]s erros (…) não decorrem unicamente do facto de não se saber certas coisas, mas de se ousar julgar, mesmo que ainda não se saiba tudo o que para tal seria necessário» (Kant, 2006: 87). A este propósito, é igualmente relevante fazer uma referência a Donald W. Crawford. Questionando-se acerca do lugar que a apresentação de razões poderá ter na teoria estética de Kant, Crawford propõe a possibilidade de discórdia relativamente à beleza de um objecto sem que os juízos em causa deixem de ser juízos de gosto. Segundo Crawford, essa discórdia parece ser «o resultado não do tipo de atenção errado ou da atitude (“impura” como oposta a “pura”, “interessada” como oposta a “desinteressada”), mas de uma atenção ou de um apercebimento incompleto das características esteticamente relevantes da obra a ser considerada» (Crawford, 1974: 168). Exemplificando, o comentador afirma que «alguém pode ter falhado em notar e incorporar nos fundamentos do seu juízo acerca da Nona Sinfonia de Beethoven a importante estrutura da abertura do movimento final – a justaposição do baixo de cordas recitativo com o tema principal de cada um dos movimentos precedentes em jogo, dando espaço a uma voz baixa recitativa e finalmente a uma afirmação completa do tema principal do movimento

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Algo análogo se passa no que diz respeito à validade do sublime. No concernente à quantidade, Kant informa, logo no parágrafo inaugural da “Analítica do sublime” (§23) que os juízos acerca do sublime, tal como os juízos acerca do belo, são «singulares (einzeln)» (Kant, 1998: 137). São-no porque reivindicam «simplesmente o sentimento de prazer e não o conhecimento do objecto (bloß auf das

Gefühl der Lust und auf kein Erkenntnis des Gegenstandes)» (Kant, 1998: 137). Ao mesmo tempo, porém, eles são, segundo Kant, «juízos que se anunciam como universalmente válidos com respeito a cada sujeito (sich für allgemeingültig in Ansehung jedes Subjekts

ankündigende Urteile)» (Kant, 1998: 137). Essa tese é reforçada e complementada no parágrafo seguinte: «o comprazimento no sublime, assim como no belo, tem que ser, segundo a quantidade, de modo universalmente válido (muss das Wohlgefallen am Erhabenen eben

sowohl als am Schönen der Quantität nach allgemeingültig machen)» (Kant, 1998: 140); e «segundo a modalidade (der Modalität nach)» esse comprazimento tem de representar a conformidade a fins subjectiva «como necessária (als notwendig)» (Kant, 1998: 140). O comprazimento no sublime é, então, de acordo com o que Kant sugere, quer no §25, quer na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, universalmente comunicável (cf. Kant, 1998: 143 e 175); o juízo sobre o sublime pretenderá àquilo a que o nosso autor chama, no §30, «validade universalmente necessária (allgemein-

notwendige Gültigkeit)» (Kant, 1998: 181). Ainda no §23, Kant afirma que

final» (Crawford, 1974: 168). No entanto, como o próprio Crawford bem acaba por sugerir, a discórdia pode ser meramente aparente – cada um dos juízes pode referir-se a um objecto diferente: «o “este” em cada um dos seus juízos de gosto refere-se a diferentes objectos de apercebimento» (Crawford, 1974: 168), não havendo, portanto, «uma base comum de juízo», isto é, «um objecto comum (intersubjectivo) de experiência e por conseguinte de avaliação» (Crawford, 1974, 169). Citando S. Körner, diríamos que nestes casos há uma «falha para identificar o todo final, com o qual se é confrontado com alguma obra de arte cuja estrutura se nos desvenda apenas depois de muita atenção, trabalho e paciência» (Körner, 1984: 187-188).

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já se tem que ter preenchido o ânimo com muitas ideias se através de uma tal intuição [a saber, a intuição do extenso oceano, revolto por tempestades] nos devemos dispor a um sentimento, o qual é ele mesmo sublime, enquanto o ânimo é incitado a abandonar a sensibilidade e ocupar-se com ideias que possuem uma conformidade a fins superior (man muss das Gemüt schon mit mancherlei Ideen angefüllt haben, wenn

es durch eine solche Anschauung zu einem Gefühl gestimmt werden soll,

welches selbst erhaben ist, indem das Gemüt die Sinnlichkeit zu

verlassen und sich mit Ideen, die höhere Zweckmäßigkeit enthalten, zu

beschäftigen angereizt wird) (Kant, 1998: 139).

Entretanto, no §25, o nosso autor acrescenta que «o sublime não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias (das

Erhabene nicht in den Dingen der Natur, sondern allein in unsern Ideen

zu suchen sei)» (Kant, 1998: 144). Uma maior clarificação dessa tese encontra-se no parágrafo que especificamente diz respeito ao sublime dinâmico (§28) e naquele que imediatamente se lhe segue e que tem como assunto a modalidade do juízo sobre o sublime da natureza (§29). Se no primeiro se fala de uma «efectiva impotência momentânea (gegenwärtigen wirklichen Ohnmacht)» da qual o sujeito pode «ser consciente (bewusst sein)» (Kant, 1998: 159); é contudo no segundo que se percebe que essa só é ultrapassada sob a pressuposição de ideias, pois «só sob a pressuposição das mesmas (nur unter der Voraussetzung

derselben)» é que «o terrificante para a sensibilidade (das Abschreckende

für die Sinnlichkeit)» se torna «ao mesmo tempo atraente (zugleich

anziehend)» (Kant, 1998: 162). A que ideias se refere Kant nesses dois parágrafos? Se no §28 o nosso autor adianta que a disposição à sublimidade «se encontra na nossa natureza, enquanto o desenvolvimento e exercício [da faculdade espiritual] nos é confiado e permanece obrigação nossa (in unserer Natur ist; indessen dass die Entwickelung und Übung

desselben uns überlassen und obliegend bleibt)» (Kant, 1998: 159); é no parágrafo seguinte que ele concretiza a sua perspectiva, nomeadamente ao referir que o fundamento do juízo acerca do sublime reside «na natureza humana e, na verdade, naquela que com o são entendimento se pode ao mesmo tempo imputar e exigir de qualquer um, a saber na disposição ao

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sentimento para ideias (práticas), isto é ao sentimento moral (in der

menschlichen Natur und zwar demjenigen, was man mit dem gesunden

Verstande zugleich jedermann ansinnen und von ihm fordern kann,

nämlich in der Anlage zum Gefühl für (praktische) Ideen, d. i. zu dem

moralischen)» (Kant, 1998: 163). Pressupondo, então, que o ânimo está preenchido com ideias práticas e, na medida em que é nossa obrigação, enquanto homens, cultivar (desenvolver e exercitar) a faculdade espiritual, pressupondo que é da natureza humana estar disposto ao sentimento moral, assim tenta Kant sustentar aquilo que diz ser «a necessidade do assentimento do juízo de outros com o nosso acerca do sublime, o qual ao mesmo tempo incluímos neste juízo (die Notwendigkeit der Beistimmung

des Urteils anderer vom Erhabenen zu dem unsrigen, welche wir in diesem

zugleich mit einschließen)» (Kant, 1998: 163). É de ressalvar, porém, que não obstante o cultivo (a cultura) da

faculdade espiritual tratar-se de algo a que estamos obrigados, não obstante, então, devermos proceder ao desenvolvimento de ideias morais, isso não significa que sempre o façamos. Como o próprio Kant nota, já depois da “Analítica do sublime”, no §39,

[n]ão estou absolutamente autorizado a pressupor que outros homens tomem esse sentimento [a saber, o sentimento do seu destino supra-sensível, o qual, por mais obscuro que possa ser, tem uma base moral] em consideração e encontrem na contemplação da grandeza selvagem da natureza um comprazimento (que verdadeiramente não pode ser atribuído ao seu aspecto e que é antes aterrorizante) ([d]as aber andere

Menschen darauf Rücksicht nehmen und in der Betrachtung der rauhen

Größe der Natur ein Wohlgefallen finden werden (welches wahrhaftig

dem Anblicke derselben, der eher abschreckend ist, nicht zugeschrieben

werden kann), bin ich nicht schlechthin vorauszusetzen berechtigt) (Kant, 1998: 194).

Aqueles que mais facilmente tomam o sentimento do seu destino supra-sensível em consideração são os homens a que, no §29, o nosso autor chama «preparados pela cultura (durch Kultur vorbereitet)», e por isso as reacções que eles têm perante as «demonstrações de violência da natureza em sua destruição e na grande medida do poder desta

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(Beweistümern der Gewalt der Natur in ihrer Zerstörung und an dem

großen Maßstabe ihrer Macht)» são completamente diferentes das do «homem inculto (rohen Menschen)» (Kant, 1998: 162). Onde os homens preparados pela cultura descobrem a sublimidade, o homem inculto vê «puro sofrimento, perigo e privação (lauter Mühseligkeit, Gefahr und

Not)» (Kant, 1998: 162). De resto, é igualmente a tese segundo a qual o sentimento do sublime pressupõe a tomada em consideração de ideias morais aquilo que leva Kant a afirmar que «com os nossos juízos sobre o sublime na natureza não podemos iludir-nos tão facilmente [como com os nossos juízos sobre o belo na natureza] sobre a adesão de outros (mit

unserm Urteile über das Erhabene in der Natur können wir uns nicht so

leicht Eingang bei andern versprechen)» e que no caso do sublime «parece exigível uma cultura de longe mais vasta (es scheint eine bei

weitem größere Kultur erforderlich zu sein)» para que possamos «imputar, e também sem errar muito, [possamos] esperar directamente de qualquer um, unanimidade do juízo com o nosso (Einstimmigkeit des

Urteils mit dem unsrigen jedermann geradezu ansinnen und auch, ohne

sonderlich zu fehlen, erwarten können)» (Kant, 1998: 162).257 No caso do belo, o âmbito é o daquela maneira de pensar a que Kant chama, no §40, maneira de pensar alargada (erweiterten Denkungsart) (cf. Kant, 1998: 196-197); no caso do sublime, trata-se do âmbito da maneira de

pensar consequente (konsequenten Denkungsart), acerca da qual Kant diz que «é a mais difícil de se alcançar (ist am schwersten zu erreichen)» (Kant, 1998: 198). A emergência do sentimento do sublime é facilitada por um maior desenvolvimento de ideias morais, isto é, pelo alcance de uma cultura vasta. A possibilidade de alguém ser inculto e não considerar o seu destino supra-sensível, porém, não enfraquece as razões que aquele que sente um comprazimento perante a supracitada grandeza selvagem da natureza tem, segundo o nosso autor, para «postular em

257 Essa posição é reforçada, ainda no mesmo parágrafo, quando Kant assinala que o juízo acerca do sublime necessita «cultura (mais do que o juízo sobre o belo) (Kultur

(mehr als das über das Schöne)» (Kant, 1998: 163).

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qualquer um aquele comprazimento (jenes Wohlgefallen jedermann

ansinnen)» (Kant, 1998: 194). Embora nem todos os homens cumpram sempre a obrigação de ter em vista as referidas disposições morais, a observação dessas disposições não deixa de ser sua obrigação.

A ligação entre o sentimento do sublime, as ideias morais e a cultura permite-nos compreender, de resto, duas conclusões, elas próprias ligadas entre si. A validade universal de que o comprazimento no sublime é dotado, embora seja uma validade universal subjectiva, não deixa de ser uma validade universal a priori. É uma validade universal subjectiva porque a pressuposição que sustenta a exigência de comprazimento universal é «uma pressuposição subjectiva (einer subjektiven

Voraussetzung)» (Kant, 1998: 163); é uma validade universal a priori porque, sendo a observação das disposições morais, e portanto o sentimento moral, um dever de todos os homens, aquela pressuposição subjectiva é uma pressuposição subjectiva «que porém nos cremos autorizados a poder postular de qualquer um (die wir aber jedermann

ansinnen zu dürfen uns berechtigt glauben)» (Kant, 1998: 163). Esta é a primeira conclusão que agora se compreende.258 Uma segunda conclusão também se refere à validade do juízo acerca do sublime. No caso deste juízo estético, a faculdade do juízo, como é assinalado no §29, «refere a faculdade da imaginação à razão como faculdade das ideias (die

Einbildungskraft auf Vernunft als Vermögen der Ideen bezieht)» (Kant, 1998: 163). Ora, enquanto a consideração dessas ideias constitui um dever, a pretensão do juízo acerca do sublime à validade universal a priori não carece, segundo o nosso autor, de uma dedução – isto é, nas palavras do §30, «de uma legitimação da sua presunção (einer Legitimation seiner

Anmaßung)» (Kant, 1998: 179), de «uma dedução da sua pretensão a algum princípio a priori (subjectivo) (eine Deduktion seines Anspruchs

258 É a universalidade subjectiva a priori do comprazimento no sublime, aliás, aquilo que, segundo Kant, nos leva a dizermos que «não tem nenhum sentimento aquele que permanece insensível junto ao que julgamos ser sublime (von dem, der bei dem, was

wir erhaben zu sein urteilen, unbewegt bleibt, er habe kein Gefühl)» (Kant, 1998: 163).

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auf irgend ein (subjektives) Prinzip a priori)» (Kant, 1998: 180). Essa presunção estará legitimada precisamente enquanto o postular em qualquer outro do comprazimento no sublime somente é possível, conforme salvaguardado no §39, «através da lei moral, que é por sua vez fundada sobre conceitos da razão (vermittelst des moralischen Gesetzes,

welches seinerseits wiederum auf Begriffen der Vernunft gegründet ist)» (Kant, 1998: 194).

A dispensa de uma dedução para o caso do juízo acerca do sublime é explicada por Kant no primeiro parágrafo da “Dedução dos juízos estéticos puros”, o já citado §30, cujo título é, precisamente, «A dedução

dos juízos estéticos sobre os objectos da natureza não pode ser dirigida

àquilo que nesta chamamos sublime (Die Deduktion der ästhetischen Urteile über die Gegenstände der Natur darf nicht auf das, was wir in dieser erhaben nennen, sondern nur auf das Schöne gerichtet werden)» (Kant, 1998: 179). Embora logo no primeiro parágrafo da “Analítica do sublime” (§23) Kant adiante que o fundamento para o sublime tem de ser procurado «simplesmente em nós e na maneira de pensar que introduz sublimidade (bloß in uns und der Denkungsart, die Erhabenheit

hineinbringt)» (Kant, 1998: 140), apesar de, além disso, na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, o nosso autor afirmar que «o sublime sempre tem que se referir à maneira de pensar, isto é a máximas, para conseguir o domínio do intelectual e das ideias da razão sobre a sensibilidade (muss das Erhabene jederzeit Beziehung auf

die Denkunsart haben, d. i. auf Maximen, dem Intellektuellen und den

Vernunftideen über die Sinnlichkeit Obermacht zu verschaffen)» (Kant, 1998: 173); é só no §30, porém, que ele concretiza essa afirmação: «o sublime da natureza só impropriamente é chamado assim e propriamente só tem que ser atribuído à maneira de pensar, ou muito antes ao fundamento da mesma na natureza humana (das Erhabene der Natur nur

uneigentlich so genannt werde und eigentlich bloß der Denkungsart, oder

vielmehr der Grundlage zu derselben in der menschlichen Natur beigelegt

werden müsse)» (Kant, 1998: 180). Essa maneira de pensar é, como já vimos, a maneira de pensar consequente, e a sua máxima, que incita a

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«[p]ensar sempre de acordo consigo próprio ([j]ederzeit mit sich selbst

einstimmig denken)» (Kant, 1998: 196), não é outra que não a máxima «da razão (der Vernunft)» (Kant, 1998: 198). O seu fundamento na natureza humana, por sua vez, é a lei moral, e, por conseguinte, a disposição ao sentimento moral. Ora, aquilo que Kant assinala no §30 é que «[a] apreensão de um objecto, aliás sem forma e não conforme a fins, dá meramente motivo para nos tornarmos conscientes deste fundamento [da maneira de pensar na natureza humana] ([d]ieser sich bewusst zu werden,

gibt die Auffassung eines sonst formlosen und unzweckmäßigen

Gegenstandes bloß die Veranlassung)» (Kant, 1998: 180). Pois bem, sendo isso o que acontece no processo que conduz à ocorrência do sentimento do sublime, Kant conclui que «a nossa exposição dos juízos sobre o sublime da natureza era ao mesmo tempo a sua dedução (war

unsere Exposition der Urteile über das Erhabene der Natur zugleich ihre

Deduktion)» (Kant, 1998: 180), pois, como continua imediatamente a seguir,

quando decompusemos nos mesmos a reflexão da faculdade do juízo, encontramos neles uma relação conforme a fins das faculdades do conhecimento, que tem de ser posta a priori no fundamento da faculdade dos fins (a vontade) e por isso é ela mesma a priori conforme a fins; o que contém pois imediatamente a dedução, isto é a justificação da pretensão de um semelhante juízo à validade universalmente necessária (wenn wir die Reflexion der Urteilskraft in denselben zerlegten, so

fanden wir in ihnen ein zweckmäßiges Verhältnis der

Erkenntnisvermögen, welches dem Vermögen der Zwecke (dem Willen)

a priori zum Grunde gelegt werden muss und daher selbst a priori zweckmäßig ist: welches denn sofort die Deduktion, d. i. die

Rechtfertigung des Anspruchs eines dergleichen Urteils auf allgemein-

notwendige Gültigkeit, enthält) (Kant, 1998: 180-181).

Ficam, assim, respondidas as duas questões que aparecem no final do §26:

Visto que tudo o que deve aprazer sem interesse à faculdade do juízo meramente reflexiva tem de comportar, na sua representação, uma conformidade a fins subjectiva e como tal universalmente válida, se bem que aqui não se situe no fundamento nenhuma conformidade a fins da forma do objecto (como no belo), pergunta-se: qual é esta

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conformidade a fins subjectiva? E através de que é ela prescrita como norma, para na simples apreciação da grandeza – e na verdade daquela que foi levada até à inadequação da nossa faculdade da imaginação na exposição do conceito de uma grandeza – fornecer um fundamento para o comprazimento universalmente válido? (Weil alles, was der

bloß reflektierenden Urteilskraft ohne Interesse gefallen soll, in seiner

Vorstellung subjektive und als solche allgemein-gültige

Zweckmäßigkeit bei sich führen muss, gleichwohl aber hier keine

Zweckmäßigkeit der Form des Gegenstandes (wie beim Schönen) der

Beurteilung zum Grunde liegt, so fragt sich: welches ist diese

subjektive Zweckmäßigkeit? und wodurch wird sie als Norm

vorgeschrieben, um in der bloßen Größenschätzung und zwar der,

welche gar bis zur Unangemessenheit unseres Vermögens der

Einbildungskraft in Darstellung des Begriffs von einer Größe

getrieben worden, einen Grund zum allgemeingültigen Wohlgefallen

abzugeben?) (Kant, 1998: 148).

A conformidade a fins pela qual se pergunta é a conformidade a fins em referência aos fins da razão prática.259 Ela é prescrita como norma através do interesse moral. No caso do juízo acerca do sublime, a comunicabilidade universal do nosso sentimento comporta em si um interesse para nós – o interesse moral. Por essa razão é que a sua pretensão, segundo Kant, não carece de uma dedução «a algum princípio a priori (subjectivo) (auf irgend ein (subjektives) Prinzip a priori)» (Kant, 1998: 180).

Feita esta digressão pelo sentimento do sublime, nomeadamente pela temática da validade de um tal sentimento, para mostrar que o facto de esse sentimento aconselhar cultura não tem qualquer influência sobre a validade de que Kant o tenta dotar, devemos regressar à faculdade do juízo e ao seu aguçamento. Mais concretamente, devemos observar a contribuição que esse aguçamento poderá ter para a bela arte.

259 Esta tese está plasmada na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, onde Kant nota que o sublime, como explicação «do julgamento estético universalmente válido (ästhetischer allgemeingültiger Beurteilung)», refere-se «a fundamentos subjectivos (…) em oposição à sensibilidade para os fins da razão prática (sich auf subjektive Gründe wie sie wider dieselbe, dagegen für die Zwecke

der praktischen Vernunft bezieht)» (Kant, 1998: 166).

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Aguçada a faculdade do juízo daquele que é dotado de génio, cultivado, exercitado e corrigido o seu gosto, através do julgamento de objectos que foram ou têm vindo a ser considerados exemplos de beleza, torna-se mais fácil para ele não apenas ajuizar correctamente – o que, quando se trata de beleza, significa ajuizar segundo os princípios do gosto – mas, através de um juízo correcto, avaliar a capacidade que a sua obra tem de fazer com que qualquer outro possa melhor procurar, em si mesmo, por ocasião da representação dela, os princípios do gosto. Fica, assim, compreendido em que medida «para a bela arte em sua inteira perfeição se requer muita ciência (es werde zur schönen Kunst

in ihrer ganzen Vollkommenheit viel Wissenschaft erfordert)» (Kant, 1998: 208) e as equivocadamente chamadas ciências belas constituem «a preparação necessária e a base para a bela arte (zur schönen Kunst

die notwendige Vorbereitung und Grundlage)» (Kant, 1998: 209). Ao mostrarmos a importância dessas ciências para a faculdade do juízo, e consequentemente para o gosto, mostramos, ao mesmo tempo, a sua importância para a bela arte.260

260 De acordo com Maria Filomena Molder, aquilo que um poeta tem de fazer «para se tornar poeta» é «[a]prender a reconhecer a poesia graças à leitura dos outros poetas, conseguir a maestria do talento, desdobrá-lo, expandi-lo» (Molder, 2007: 383). Molder está a falar «da educação, do progresso do sentimento naquele que produz obras poéticas, obras de arte» (Molder, 2007: 382). Diz ela que «[o] poeta tem de cultivar a poesia a fim de purificar, firmar, afinar o seu próprio juízo, quer dizer, educar o seu próprio sentimento» (Molder, 2007: 382). Trata-se de «educação sentimental», trata-se daquilo que a intérprete diz ser «a tarefa mais humana: aprender a aceitar a beleza» (Molder, 2014: 118), pois «[m]esmo se sabemos ler, mesmo se ouvimos e vemos muito bem, mesmo se os nossos ouvidos e os nossos olhos preenchem a sua função, podemo-nos descobrir surdos e cegos, incapazes de ouvir a palavra dos poetas, incapazes de ver uma pintura ou uma escultura» (Molder, 2014: 116). O poeta educa-se no plano sentimental através de um «movimento de olhar para trás [que] se manifesta como descoberta do outro, procura das fontes, acto de rememoração: o sentido de realizar um gesto, de acenar para o sentido, de receber e de transmitir» (Molder, 2007: 383). No entender de Molder, «a tradição é a atmosfera nutritiva da actividade poética e, além disso, a actividade poética apresenta-se como a imagem originária da história; dito de outro modo, a poesia como tradição revela ser o modelo da história sob todas as suas formas» (Molder, 2007: 383).

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Não é apenas enquanto os objectos artísticos mencionados nas ciências referidas por Kant no §44 são exemplos do cumprimento das regras associadas à componente mecânica, coerciva e escolástica do tipo de arte que representam que essas ciências são importantes para a bela arte.261 Para que aquele que ajuíza – seja ele um génio ou não o seja – ajuíze correctamente, é aconselhável que a sua faculdade do juízo esteja aguçada. Acabámos de ver que e como para o aguçamento da faculdade do juízo podem contribuir os juízos acerca de belas obras de arte. Tendo em conta que muitas belas obras de arte estão referenciadas nas equivocadamente chamadas ciências belas, o conhecimento dos conteúdos dessas ciências é importante para o aguçamento da faculdade do juízo e, portanto, para o uso correcto dessa faculdade – por exemplo, para o proferimento de um juízo de gosto quando se pretende ajuizar se algo é belo. Sendo assim, estamos em condições de afirmar que tais ciências podem contribuir para a bela arte na medida em que podem contribuir para o aguçamento da faculdade do juízo e, portanto, para o proferimento de juízos correctos, nomeadamente da parte do artista genial.262 Devemos recordar que o génio 261 Nesse sentido, eles, assim como as ciências que os mencionam, plasmam o gosto enquanto corpus. O conhecimento das referidas regras, através do conhecimento de objectos que as cumprem, promove a criação de obras de arte nas quais essas regras igualmente são cumpridas. 262 Compreende-se, também neste contexto, algo que Kant afirma no último parágrafo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (§60), a saber, que «[a] propedêutica a toda a bela arte, na medida em que está disposta para o mais alto grau da sua perfeição, não parece encontrar-se em preceitos, mas na cultura das faculdades do ânimo através daqueles conhecimentos prévios que se chamam humaniora ([d]ie Propädeutik zu aller schönen Kunst, sofern es auf den höchsten Grad ihrer Vollkommenheit angelegt

ist, scheint nich in Vorschriften, sondern in der Kultur der Gemütskräfte durch

diejenigen Vorkenntnisse zu liegen, welche man humaniora nennt)» (Kant, 1998: 265). Ajudando a que aquele que ajuíza se questione quanto à correcção do seu juízo, isto é, quanto a estar a ajuizar através da faculdade adequada e considerando os princípios dessa faculdade, o conjunto de conhecimentos supracitado possibilita-lhe o aguçamento da sua capacidade de ajuizar e, por conseguinte, se ele, além de fruidor, é criador, um embelezamento da sua arte. Note-se, aliás, que no mesmo parágrafo, ainda antes das palavras que acabámos de citar, Kant indica que a efectivação do processo de sucessão entre artistas dotados de génio requer uma «crítica penetrante (scharfe Kritik)» (Kant, 1998: 265).

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é educável – concretamente, ele é educado pelo gosto (cf. Kant, 1998: 226). Assim, para produzir objectos artísticos belos, aquele que é dotado de génio tem de exercer o seu gosto, e o seu gosto tem de ser um gosto exercitado, uma faculdade do juízo aguçada. Só exercitando o seu gosto, só aguçando a sua faculdade do juízo, só recorrendo a uma faculdade do juízo aguçada, só exercendo um gosto exercitado, só assim pode ele produzir uma bela obra de arte.

***

Consideramos ter respondido de maneira suficientemente fundamentada à questão de saber o que é necessário para a produção de bela arte, isto é, para a produção de objectos artísticos belos.

Para tal, fomos obrigados a conciliar os indícios contraditórios dados na Crítica da Faculdade do Juízo relativamente aos talentos necessários para a produção de belas obras de arte. Fizemo-lo através de uma chamada de atenção para o carácter educável do génio, para o carácter cultivável, exercitável e corrigível do gosto e para o carácter aguçável da faculdade do juízo.

Aquele que é dotado de génio só está pronto para produzir belas obras de arte se exercitar o seu gosto e se o seu gosto estiver suficientemente cultivado, exercitado e corrigido. O seu gosto é cultivado, exercitado e corrigido através do aguçamento da sua faculdade do juízo. A sua faculdade do juízo é aguçada mediante o conhecimento de obras de arte que ao longo da história foram ou têm vindo a ser consideradas exemplos de beleza. Essas obras de arte fazem parte dos conteúdos das equivocadamente chamadas ciências belas. Assim sendo, o conhecimento (de objectos que compõem os conteúdos) dessas ciências contribui especialmente para a produção de belos objectos artísticos, para a produção de obras de arte belas, para a produção de bela arte.

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Conclusão

Ao longo deste estudo, tentámos responder a duas questões: a de saber se e como pode falar-se de bela arte, não obstante uma tal noção atravessar a primeira parte da Crítica da Faculdade do Juízo, e a de saber o que é necessário para a produção de obras de arte belas, sem prejuízo da afirmação segundo a qual a bela arte é a arte do génio.

A elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada à primeira questão obrigou-nos a convocar várias outras. Entre elas, ainda na primeira metade da nossa tese, as questões de saber o que é um juízo de gosto, qual o princípio do gosto, como tenta Kant justificar que o juízo de gosto seja um juízo estético universalmente válido a priori, quais os requisitos que um juízo tem de cumprir para que através dele se declare artístico um objecto ou que exigências tem um juízo de satisfazer para que através dele se declare bela uma obra de arte.

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CONCLUSÃO

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Foi precisamente a enunciação das exigências que um juízo – pretendido ser de gosto – tem de satisfazer para que através dele uma obra de arte seja declarada bela que nos levou a questionar o significado e a legitimidade da noção de bela arte. Colocada lado-a-lado com a apresentação dos requisitos que um juízo tem de cumprir para ser um juízo de gosto, aquela enunciação torna a noção de bela arte uma contradição nos termos, levando-nos a concluir que não pode ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto, declarar-se belo um objecto artístico, falar-se de bela arte.

Uma tal conclusão é, no entanto, precipitada. Kant não apenas ocupa uma parte significativa do seu texto a falar de bela arte, como menciona mesmo obras de arte declaradas belas.

Procurando compreender o significado da noção de bela arte, legítima ou não, a partir da sua definição como arte do génio, e, muito particularmente, a partir da explicitação da noção de ideia estética e da denominação da beleza como expressão de ideias estéticas, fomos levados a considerar que, no entender de Kant, o exercício da faculdade da imaginação daquele que ajuíza, mesmo quando no seu juízo ele considera conceitos determinados, pode ser não meramente um exercício harmónico com a actividade do entendimento, mas também um exercício livre. É possível um exercício livre da faculdade da imaginação, aliás, mesmo se for tida em conta uma perfeição do objecto, isto é, uma conformidade a fins objectiva interna. Trata-se de um exercício livre mas limitado.

Pois bem, na medida em que é essa possibilidade que legitima as noções de beleza aderente como beleza e de juízo de gosto aplicado como juízo de gosto, é ela que sustenta a possibilidade de ajuizar-se uma obra de arte através de um juízo de gosto, a possibilidade de declarar-se belo um objecto artístico, a possibilidade de falar-se de bela arte, enfim, a legitimidade desta noção. Entretanto, a partir de uma interpretação do termo representação e de uma segunda releitura das distinções estabelecidas por Kant entre beleza livre e beleza aderente e entre puro

juízo de gosto e juízo de gosto aplicado – assim como da aceitação da plurivocidade de sentido da noção de gosto na Crítica da Faculdade do

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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Juízo – sustentámos aquilo que de mais exigente o §16 nos solicita: a admissão da possibilidade de ajuizar-se uma obra de arte através de um puro juízo de gosto, a admissão da possibilidade de declarar-se livremente belo um objecto artístico, a legitimidade de falar-se de bela arte como beleza livre.

Recapitulemos, então, as condições para responder à questão de saber se é legítimo falar-se de bela arte. A essa questão pode responder-se afirmativa ou negativamente. A nossa investigação mostrou que uma resposta negativa deve ser recusada.263 Ainda assim, é importante recordar as suas condições. Entre as respostas positivas, há duas respostas devidamente fundamentadas. Resumiremos aquilo no qual cada uma delas assenta.

Uma resposta à questão de saber se pode falar-se de bela arte baseada no título do §15, de acordo com o qual «[o] juízo de gosto é totalmente

independente do conceito de perfeição ([d]as Geschmacksurteil ist von dem Begriffe der Vollkommenheit gänzlich unabhängig)» (Kant, 1998: 117), e na tese, do §48, segundo a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte «tem que ser posto antes no fundamento um conceito daquilo que a coisa deva ser (muss zuerst ein Begriff von dem, was das

Ding sein soll)» e «tem que ser tida em conta ao mesmo tempo a perfeição da coisa (wird zugleich die Volkommenheit des Dinges in Anschlag

gebracht werden müssen)» (Kant, 1998: 216), uma tal resposta tem de ser negativa. Se o juízo através do qual se declara belo um objecto é um juízo de gosto e se o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte não pode ser um juízo de gosto, então uma obra de arte não pode ser declarada bela – mais simplesmente: uma obra de arte não pode ser bela. Por conseguinte, não é legítimo falar-se de bela arte.

263 Embora seja a letra da Crítica da Faculdade do Juízo, nomeadamente o título do §15, a possibilitar essa resposta, negativa, é igualmente a letra da terceira Crítica, nomeadamente a manutenção dos termos beleza e juízo de gosto, no §16, quando se trata, respectivamente, de beleza aderente e de juízos de gosto aplicados, a indiciar a carência de justificações satisfatórias para uma tal resposta. O espírito da obra de Kant dá força à tese segundo a qual pode falar-se de bela arte.

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CONCLUSÃO

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Ao dar essa resposta, considera-se ilegítima a distinção estabelecida por Kant, no §16, entre beleza livre e beleza aderente – ou, equivalentemente, entre puro juízo de gosto e juízo de gosto aplicado.264 Há um conflito entre os critérios da beleza aderente e os critérios da beleza, entre os critérios do juízo de gosto aplicado e os critérios do juízo de gosto: se a beleza aderente pressupõe um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição do objecto segundo esse conceito, então ela não pode ser uma beleza; se num juízo de gosto aplicado se considera o fim do objecto, e, portanto, o que se tem no pensamento, então um juízo de gosto aplicado não pode ser um juízo de gosto. Embora alicerçada precisamente no título do parágrafo anterior (§15) uma tal recusa da distinção estabelecida por Kant supõe uma não consideração de quais serão as razões para o nosso autor chamar beleza à beleza aderente e juízo

de gosto ao juízo de gosto aplicado. Além disso, ela entra em conflito com qualquer referência de Kant à beleza da arte, à beleza de obras de arte, à bela arte. Ora, ao longo da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética”, com especial destaque para os §44-§53, são inúmeras as referências do nosso autor a uma bela arte.265

Uma segunda resposta à questão de saber se e sob que condições é legítimo falar-se de bela arte pode ter como ponto de partida precisamente a procura das razões pelas quais Kant chama beleza à beleza aderente e juízo de gosto ao juízo de gosto aplicado e as inúmeras referências a uma arte bela feitas pelo nosso autor. No caso de se considerar que um juízo no qual a faculdade da imaginação se exerce livremente, mesmo que limitada, pode ser um juízo de gosto, nesse caso pode falar-se de bela arte. A

264 Igualmente se consideram ilegítimas as noções de beleza fixada e juízo de gosto em parte intelectualizado, introduzidas no §17, e de juízo estético logicamente

condicionado, mencionada no §48. 265 Tivemos oportunidade de salientar esse facto do texto de Kant como segundo facto a ter em conta para não limitar a resposta à questão de saber se pode falar-se de bela

arte a uma consideração do título do §15 e da passagem, do §48, de acordo com a qual no juízo através do qual se declara bela uma obra de arte têm de ser tidos em conta um conceito daquilo que o objecto deva ser e a perfeição da obra de arte segundo esse conceito.

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afirmação da correcção dessa premissa legitima as distinções estabelecidas por Kant no §16. Fá-lo em detrimento do título do §15. Esse título tem de ser refutado: num juízo de gosto (num juízo através do qual se declara belo um objecto) pode ser tida em conta a perfeição do objecto. Nesse caso, o juízo de gosto é aplicado, a beleza do objecto é aderente, o objecto é condicionadamente declarado belo.

Pois bem, as considerações que, ao longo dos §44-§53, Kant profere acerca do exercício da faculdade da imaginação, tais considerações indicam que o exercício dessa faculdade é, no contexto da bela arte, um exercício livre. Embora Kant não nos informe explicitamente daquilo que é necessário para que o exercício da faculdade da imaginação seja um exercício livre, embora ele não elenque as condições da liberdade dessa faculdade, o que ele afirma na parte mencionada da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” indica que, quando se trata de produzir ou ajuizar obras de arte do génio, o exercício da faculdade da imaginação é um exercício suficientemente livre para que se profira um juízo de gosto, não obstante condicionado pelo reconhecimento de um conceito dado – por exemplo, uma ideia da razão – assim como pelo reconhecimento de um conceito daquilo que o objecto deva ser e pela observação da perfeição da obra de arte segundo esse conceito. A liberdade da faculdade da imaginação é limitada, mas não esgotada.

A segunda resposta à questão de saber se é legítimo falar-se de bela

arte assenta, então, na tese de acordo com a qual uma obra de arte pode ser condicionadamente declarada bela, isto é, na tese segundo a qual um objecto artístico pode ser declarado belo através de um juízo de gosto aplicado. Trata-se de uma resposta afirmativa: pode falar-se de bela arte. Quando se fala de bela arte, está a falar-se de uma arte condicionadamente declarada bela, de uma arte declarada bela através de juízos de gosto aplicados. A beleza da arte é, no contexto desta resposta, uma beleza aderente; o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é, neste âmbito, um juízo de gosto aplicado.

Importa notar, porém, que uma resposta afirmativa à questão de saber se pode falar-se de bela arte não tem de ser acompanhada pela afirmação

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segundo a qual a beleza da arte é uma beleza aderente – ou, equivalentemente, o juízo através do qual se declara bela uma obra de arte é um juízo de gosto aplicado. Essa necessidade não pode ser admitida se tivermos em conta o facto principal por nós apresentado como a considerar para uma legitimação da noção de bela arte: há obras de arte que são belezas livres, há objectos artísticos que são livremente declarados belos, que são declarados belos através de puros juízos de gosto (cf. Kant, 1998: 120).

Conceber esse facto supõe, em primeiro lugar, interpretar o termo representação num sentido exemplificativo ligado ao gosto. Além disso, supõe que, no contexto da bela arte, a distinção entre beleza livre e beleza

aderente – ou, equivalentemente, entre puro juízo de gosto e juízo de

gosto aplicado – seja interpretada como uma distinção entre, respectivamente, declarações de beleza nas quais apenas são considerados propósitos e constrangimentos do âmbito do gosto e declarações de beleza nas quais são tidos em conta propósitos e constrangimentos que não pertencem a esse âmbito. As obras de arte que – à semelhança dos objectos artísticos mencionados no §16 como sendo belezas livres – representam apenas o tipo de obra de arte que devem ser, tais obras são livremente declaradas belas, isto é, declaradas belas através de puros juízos de gosto. Assim, entre as respostas afirmativas à questão de saber se pode falar-se de bela arte, há uma que afirma a possibilidade de falar-se de bela arte enquanto arte livremente declarada bela, enquanto arte declarada bela através de puros juízos de gosto. Algumas obras de arte são belezas livres, a beleza de alguma arte é uma beleza livre, a beleza da arte pode ser uma beleza livre.

Recapituladas as condições para responder à questão de saber se pode falar-se de bela arte, voltemo-nos de novo para a resposta à questão de saber o que é necessário para a produção de obras de arte belas. A elaboração de uma resposta suficientemente fundamentada a esta questão obrigou-nos a examinar e de alguma maneira conciliar as considerações aparentemente contraditórias que, em especial nos parágrafos directamente concernentes à bela arte, Kant profere acerca do génio, do gosto e da relação entre esses dois talentos. A chave dessa conciliação

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

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reside no carácter educável do génio e no carácter cultivável, exercitável e corrigível do gosto.

Não obstante vários artistas poderem ter em comum entre si o facto de serem dotados de génio, o nosso estudo mostrou que esse facto não é suficiente para que cada um deles produza objectos artísticos belos. Um aprendiz ou discípulo não está no mesmo patamar de prontidão que um mestre para produzir uma bela obra de arte. Para que passe a estar, é-lhe necessário atravessar um processo de sucessão no qual a sua faculdade de juízo estética, enquanto ajuizando a partir do sentimento da unidade na apresentação, desempenha um papel crucial. Só exercendo o seu gosto pode o aprendiz ou discípulo dotado de génio sentir a unidade na apresentação, suceder, tornar-se um mestre e, por conseguinte, passar a estar efectivamente pronto para produzir objectos artísticos que, além de originais, sejam exemplares – obras de arte de génio, obras de arte geniais, belas obras de arte.

Mas a nossa investigação não mostrou apenas que nem todos os artistas dotados de génio estão no mesmo patamar de prontidão para produzir belas obras de arte. Ela mostrou igualmente que nem todos aqueles que são dotados de gosto estão nas mesmas condições para ajuizar correctamente uma obra de arte como bela. Por conseguinte, nem apenas o génio, nem sequer o génio e o gosto, constituem condição suficiente para a produção de objectos artísticos belos. Só um génio educado e um gosto cultivado, exercitado e corrigido compõem uma tal condição.

Pois bem, o cultivo, o exercitamento e a correcção do gosto correspondem ao aguçamento da faculdade do juízo, nomeadamente de maneira a que, quando se trata de belas obras de arte, aquele que ajuíza ajuíze através dos princípios da faculdade de juízo estética. Ora, assim como o génio é educado pelo gosto, a faculdade do juízo é aguçada para o julgamento da beleza da bela arte mediante objectos que ao longo da história foram ou têm vindo a ser considerados exemplos de beleza, objectos esse que fazem parte dos conteúdos das equivocadamente chamadas ciências belas. Por conseguinte, o conhecimento (de objectos que compõem os conteúdos) de tais ciências, ao contribuir para o

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CONCLUSÃO

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aguçamento da faculdade do juízo, contribui especialmente para a produção de bela arte.

Estão respondidas as questões que conduziram a nossa investigação – Se e como poderá falar-se de bela arte? O que é necessário para a produção de belas obras de arte? Estão recapituladas as nossas respostas. Várias perguntas foram deixadas em aberto ao longo deste estudo – necessariamente. Uma outra deve agora ser lançada.

Cultivada, exercitada e corrigida a sua faculdade do juízo, aguçada a sua faculdade do juízo através do conhecimento de objectos que foram ou tenham vindo a ser considerados exemplos de beleza, aquele que ajuíza – seja ele um génio ou não o seja – está mais apto a proceder a uma crítica do gosto já não como ciência, pois, enquanto tal, a Crítica

da Faculdade do Juízo já critica o gosto, e assim o aprimora e consolida, mas como arte. No §34, logo a seguir a afirmar que a crítica do gosto «é arte (ist Kunst)» se mostrar «somente em exemplos (nur

an Beispielen)» a «relação recíproca do entendimento e da sensibilidade na representação dada (sem referência à sensação ou conceito precedentes), por conseguinte a unanimidade ou não unanimidade de ambos (wechselseitige Verhältnis des Verstandes und

der Einbildungskraft zu einander in der gegebenen Vorstellung (ohne

Beziehung auf vorhergehende Empfindung oder Begriff), mithin die

Einhelligkeit oder Misshelligkeit derselben)» (Kant, 1998: 187)266, Kant acrescenta que

[a] crítica como arte procura meramente aplicar as regras fisiológicas (aqui psicológicas), por conseguinte empíricas, segundo as quais o gosto efectivamente procede (sem reflectir sobre a sua possibilidade), ao julgamento dos seus objectos e critica os produtos da bela arte ([d]ie

Kritik als Kunst sucht bloß die physiologischen (hier psychologischen),

mithin empirischen Regeln, nach denen der Geschmack wirklich

266 No lugar de “sensibilidade”, deve escrever-se “faculdade da imaginação”. A palavra usada por Kant é “Einbildungskraft”, como pode ser confirmado por intermédio da transcrição que fazemos do texto da Preußische Akademie der Wissenschaften.

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verfährt, (ohne über ihre Möglichkeit nachzudenken) auf die Beurteilung

seiner Gegenstände anzuwenden und kritisiert die Produkte der schönen

Kunst) (Kant, 1998: 187-188).

Pois bem, ao aplicar as referidas regras e ao criticar as obras de arte que ao longo da evolução da cultura foram ou têm vindo a ser aprovadas durante mais tempo, a crítica do gosto como arte pode colocar em causa os conteúdos das ciências mencionadas no §44.

O princípio do gosto é o princípio da conformidade a fins formal da natureza para as nossas faculdades de conhecimento. A observação de uma tal conformidade a fins é possível mediante um sentimento de prazer no movimento simultaneamente livre e harmónico das faculdades de conhecimento entre si por ocasião da representação do objecto. Proferir um juízo de gosto é proferir um juízo baseado nesse princípio, isto é, na observação de uma conformidade a fins formal do objecto, seja ele natural ou artístico, para as nossas faculdades de conhecimento. Se, por ocasião da representação de uma obra de arte referenciada nas equivocadamente chamadas ciências belas, aquele que ajuíza não observar uma conformidade a fins formal desse objecto para as suas faculdades de conhecimento, então ele pode questionar que tal objecto seja parte dos conteúdos dessas ciências. Pode questioná-lo pela simples razão de que não considera belo o objecto em causa. O mesmo acontece em sentido inverso. Se, mediante o proferimento de um juízo de gosto, aquele que ajuíza declarar bela uma obra de arte, então ele pode defender que essa obra de arte passe a fazer parte dos conteúdos das referidas ciências.

Além de termos mostrado a importância de tais ciências para o gosto – para o seu cultivo, para o seu exercício, para a sua correcção – e, derivadamente, para a bela arte, mostramos, agora, a influência que o cultivo, o exercício e a correcção do gosto poderão ter sobre elas, sobre o que nelas é afirmado. Considerando essa influência, a questão que deixamos em suspenso é a de saber se é legítimo defender-se que a bela arte será conduzida à posteridade unicamente através de modelos de gosto de condições bem definidas consoante a

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CONCLUSÃO

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espécie de bela-arte em causa267 ou se essa condução dependerá da inauguração de uma nova regra de cada vez que um artista genial produz uma bela obra de arte268. Possam os nossos estudos ser conduzidos à posteridade, possamos responder a essa questão em investigações posteriores.

267 No §47, Kant assinala que «[o]s modelos da bela arte são (…) os únicos meios de orientação para conduzir a arte à posteridade ([d]ie Muster der schönen Kunst sind die

einzigen Leitungsmittel, diese auf die Nachkommenschaft zu bringen)», como já notámos, e acrescenta que «no ramo das artes do discurso (…) somente podem tornar-se clássicos os modelos em línguas antigas, mortas e agora conservadas apenas como línguas cultas (im Fache der redenden Künste können nur die im alten, toten und jetzt nur als gelehrte aufbehaltenen Sprachen klassisch werden)» (Kant, 1998: 214). Antes, numa nota a uma passagem do §17, o nosso autor refere que «[m]odelos do gosto com respeito às artes elocutivas têm que ser compostos numa língua morta e culta: primeiro, para não ter que sofrer uma alteração, a qual atinge inevitavelmente as línguas vivas, de modo que expressões habituais tornam-se arcaicas e expressões recriadas são postas em circulação por somente um curto período de tempo; segundo, para que ela tenha uma gramática que não seja submetida a nenhuma mudança caprichosa da moda, mas possua a sua regra imutável ([M]uster des Geschmacks in Ansehung der redenden Künste müssen in einer toten und gelehrten Sprache abgefaßt

sein: das erste, um nicht die Veränderung erdulden zu müssen, welche die lebenden

unvermeidlicher Weise trifft, dass edle Ausdrücke platt, gewöhnliche veraltet und neugeschaffene in einen nur kurz dauernden Umlauf gebracht werden; das zweite,

damit sie eine Grammatik habe, welche keinem mutwilligen Wechsel der Mode

unterworfen sei, sondern ihre unveränderliche Regel hat)» (Kant, 1998: 267). 268 Recordemos que no processo de sucessão a arte obtém «uma nova regra (eine neue

Regel)» (Kant, 1998: 224) através de cada nova obra produzida pelo artista dotado de génio, regra essa «que não pôde ser inferida de quaisquer princípios ou exemplos anteriores (die aus keinen vorhergehenden Prinzipien oder Beispielen hat gefolgert

werden können)» (Kant, 1998: 223).

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BIBLIOGRAFIA

CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana 281

BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb (1988). Aesthetica [1750], trad. Hans Rudolf Schweizer. Theoretische Ästhetik: die grundlegenden

Abschnitte aus der “Aesthetica”. Hamburg: Felix Meiner Verlag. BUDD, Malcolm (2008). Aesthetic Essays. Oxford and New York: Oxford University Press. BURKE, Edmund (2008). A Philosophical Enquiry into the Origin of our

Ideas of the Sublime and Beautiful [1757]. Oxford: Oxford University Press. DERRIDA, Jacques (2008). De la Gramatologie [1967], trad. António Ramos Rosa. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva. _____ (1986). Marges de La Philosophie [1972], trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Margens da Filosofia. Porto: Rés. FOUCAULT, Michel (2005). L’Archéologie du Savoir [1969], trad. Miguel Serras Pereira. A Arqueologia do Saber. Coimbra: Almedina. GADAMER, Hans-Georg (2006). Wahrheit und Methode [1960], trad. Joel Weinsheimer and Donald G. Marshall, Truth and Method. London: Continuum. GOETHE (1993). Die Metamorphose der Pflanzen [1790], trad. Maria Filomena Molder, A Metamorfose das Plantas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. HUME, David (1997). Of the Standard of Taste [1757]. De domínio público e disponível em: https://www.csulb.edu/~jvancamp/361r15.html. INNERARITY, Daniel (1996). La Filosofía como una de Las Bellas Artes [1995], trad. Artur Guerra e Cristina Rodriguez. A Filosofia como uma das

Belas Artes. Lisboa: Teorema. KANDINSKY, Wassily (2008). Grammaire de la Création [1912-1925], trad. José Eduardo Rodil, Gramática da Criação. Lisboa: Edições 70. _____ (1999). L’Avenir de la Peinture [1925-1943] , trad. José Eduardo Rodil, O Futuro da Pintura. Lisboa: Edições 70. _____ (2008). Über das Geistige in der Kunst [1912], trad. Genoveva Dieterich, De lo espiritual en el arte. Buenos Aires: Editorial Paidós.

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SE E COMO PODERÁ UMA OBRA DE ARTE SER BELA

282 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana

LONGINO (1984). Peri Hýpsous [ca. séc. I], trad. Custódio José de Oliveira, Tratado do Sublime. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. LYOTARD, Jean-François (1979). Discours, figure [1971], trad. Carlota Hesse e Josep Elias. Discurso, Figura. Barcelona: Gustavo Gili. _____ (1997). L’Inhumain. Causeries sur le temps [1988], trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre, O Inumano – Considerações sobre o

Tempo. Lisboa: Editorial Estampa. MORLEY, Simon (ed.) (2010). The Sublime – Documents of

Contemporary Art. London and Cambridge: Whitechapel Gallery and The MIT Press. NIETZSCHE, Friedrich (1984). Das Philosophenbuch [1872-1875], trad. Ana Lobo. O Livro do Filósofo. Porto: Rés. _____ (1997). Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn [1873], trad. Helga Hoock Quadrado. Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral. Lisboa: Relógio d’Água. PARSONS, Glenn; Carlson, Allen (2008). Functional Beauty. Oxford: Clarendon Press. PERNIOLA, Mario (2005). Contro la comunicazione [2004], trad. Manuel Ruas, Contra a Comunicação. Lisboa: Editorial Teorema. RICOEUR, Paul (1995). Interpretation Theory: discourse and the surplus

of meaning [1976], trad. Artur Morão, Teoria da Interpretação. Porto: Porto Editora. _____ (1983). La Métaphore Vive [1975], trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães, A Metáfora Viva. Porto: Rés. SCHOPENHAUER, Arthur (s.d.). Die Welt als Wille und Vorstellung [1819], trad. M. F. Sá Correia. O Mundo como Vontade e Representação. Porto: Rés. TOWSEND, Dabney (2001). Hume’s Aesthetic Theory – Taste and

sentiment. London and New York: Routledge.

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Anexos

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284 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana

1. TÍTULOS

Crítica da Faculdade do Juízo Prólogo Primeira Introdução Introdução “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (primeira parte)

“Analítica da faculdade de juízo estética” (primeira secção) “Analítica do belo” (primeiro livro)

“Primeiro momento do juízo de gosto, segundo a qualidade”

explicação do belo inferida do primeiro momento

“Segundo momento do juízo de gosto, a saber segundo a sua quantidade”

explicação do belo inferida do segundo momento

“Terceiro momento do juízo de gosto, segundo a relação dos fins que neles é considerada”

explicação do belo deduzida deste terceiro momento

“Quarto momento do juízo de gosto segundo a modalidade do comprazimento no objecto”

explicação do belo inferida do quarto momento

“Observação geral sobre a primeira secção da analítica”* “Analítica do sublime” (segundo livro) “A. Do matemático-sublime” “B. Do dinâmico-sublime da natureza”

“Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos” “Dedução dos juízos estéticos puros”

“Dialéctica da faculdade de juízo estética” (segunda secção) “Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica” (segunda parte)

“Analítica da faculdade de juízo teleológica” (primeira divisão) “Dialéctica da faculdade de juízo teleológica” (segunda divisão) “Doutrina do método da faculdade de juízo teleológica” (apêndice) “Observação geral sobre a teleologia”

* Não existe uma primeira secção da analítica; existe uma “primeira secção” da “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” e um “primeiro livro” da “Analítica da faculdade de juízo estética” (cf. Kant, 1998: 469 e 471). A “Observação geral sobre a primeira secção da analítica” é uma observação geral sobre o primeiro livro da “Analítica da faculdade de juízo estética”, denominado “Analítica do belo”.

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2. ARTICULAÇÃO

(Representação do) Objecto

Sensus Communis Aestheticus, Gosto, Faculdade de Juízo Estética

Movimento Livre e Harmónico das Faculdades de Conhecimento

Princípio da Conformidade a Fins Formal da Natureza para a

nossa Faculdade de Conhecimento

Conceito Racional Transcendental do Supra-Sensível

- condição do entendimento da legalidade do princípio da conformidade a fins formal da natureza para a nossa faculdade de conhecimento - fundamento da conformidade a fins subjectiva da natureza para a nossa faculdade do juízo

Prazer

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286 CTK E-Books▐ Serie Hermeneutica Kantiana

3. LIVRE DECLARAÇÃO DA OBRA DE ARTE COMO BELA

Obra de Arte

Puro Juízo de Gosto

Propósito Estético** / Propósito do âmbito do Gosto***

- conceito do que a coisa deva ser enquanto tipo de obra

Constrangimentos Estéticos** / Constrangimentos do âmbito do

Gosto***

- exigências inerentes ao tipo de obra

Perfeição

- cumprimento das exigências inerentes ao tipo de obra

Declaração da Obra de Arte como Livremente Bela

** “Estético” ≠ aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão

subjectivo

*** “Gosto” ≠ faculdade de juízo estética

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collective essays and commented translations of Kant’s Writings, in

Spanish, German, English, French, Italian and Portuguese. The main

editors of the three series of the publishing house intensively care

about the quality of CTK publishing. Before submitting any manuscript,

authors and editors are kindly ask to send the corresponding main

editor a summary of the proposal, with a table of matters and, if

necessary, a list of authors with the abstract of their chapters. All

submitted manuscripts will go through a fast and responsive peer

review process, which will involve an international board of prestigious

senior Kant scholars. If the peer review process recommends

publication, we will then proceed to the formal approval stage,

submitting a summary of the proposal to some members of CTK E-

Books Advisory Board, whose function will be to endorse the peer

reviewer’s recommendation. The main editors will keep the authors

and editors posted about the steps of this stage. If the proposal is

definitively approved, the main editors will contact authors or editors

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collaborators of the digital library. A copy of CTK E-Books style

guide will also be sent to authors or editors at this stage. The books

published by CTK E-Books might be printed on demand.

Editorial Board and E-Book Series

Roberto R. Aramayo (IFS/CSIC, Spain): Main Editor of the Translatio

Kantiana Series

María Julia Bertomeu (Univ. Nacional de La Plata, Argentina): Main

Editor of Quaestiones Kantianas Series

Nuria Sánchez Madrid (UCM, Spain): Main Editor of Hermeneutica

Kantiana Series (Monographies and Individual Essays)

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Pablo Muchnik (Emerson College, USA): Main Editor of Dialectica

Kantiana Series (Collective Volumes)

Advisory Board

Maria Lourdes Borges (UFSC, Brazil)

Monique Castillo (Univ. Paris XII, France)

Alix Cohen (Univ. of Edimburgh, UK)

Adela Cortina (Univ. Valencia, Spain)

Bernd Dörflinger (Univ. of Trier, Germany)

Jean Ferrari (Univ. de Bourgogne, France)

Claudia Jáuregui (UBA, Argentina)

Joel Klein (UFRN, Brazil)

Heiner Klemme (Univ. of Halle, Germany)

Efraín Lazos (IIF/UNAM, Mexico)

Robert Louden (Univ. of Southern Maine, USA)

Carlos Mendiola (Univ. Iberoamericana, Mexico)

Pablo Oyarzún (Univ. of Chile, Chile)

Lisímaco Parra (Univ. Nacional de Colombia, Colombia)

Claude Piché (Univ. of Montreal, Canada)

Hernán Pringe (UBA, Argentina)

Gérard Raulet (Univ. Paris IV, France)

Claudio La Rocca (Univ. of Genua, Italy)

Margit Ruffing (Univ. of Mainz, Germany)

Paulo Tunhas (Univ. of Porto, Portugal)

Howard Williams (Univ. of Aberystwyth, United Kingdom)

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Translatio Kantiana E-Book Series

The Translatio Kantiana Series seeks to make available to Kant

scholars and PhD students commented translations of different Kant’s

Writings into Spanish, German, English, French, Italian and

Portuguese.

Quaestiones Kantianas E-Book Series

Quaestiones Kantianas Series aims at retrieving classical

interpretative essays focusing on different features of Kant’s thought

and work, in their original language or translated for broadening the

scope of some of these essays.

Hermeneutica Kantiana E-Book Series

Hermeneutica Kantiana Series seeks proposals that will bring to a

multilingual audience interpreting essays regarding all areas of Kant’s

critical thought.

Dialectica Kantiana E-Book Series

Dialectica Kantiana Series promotes essays of the Kantian legacy,

gathered in collective volumes, focusing on subjects tackling key

ethical, political and social challenges that may help us to better

assess the problems of our present time.

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Este primer libro de la Biblioteca Digital de Estudios Kantianos,

que inaugura la serie Hermeneutica kantiana de CTK E-Books, fue terminado por Ediciones Alamanda

el día 10 de febrero de 2017