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Maria Olívia da Silva nasceu em 28 de fevereiro de 1880. É a mulher mais velha do Brasil. Ao longo dos seus 126 anos, acompanhou o fim oficial da escravidão no país, a pro c l a- mação da República, o suicídio de Getúlio Va rgas, a construção de Brasília, o golpe militar de 1964, o movimento pelas eleições dire- tas, a vitória de Fernando Collor s o b re Lula, o impeachment de Collor e a chegada de Lula ao po- der. Assistiu à passagem de 42 p residentes, entre outros tantos agentes políticos e nove moedas nacionais. É testemunha de com- p romissos assumidos em prol do desenvolvimento do Brasil e guar- da, na gaveta do quarto, uma lista de promessas a cobrar. A primeira pode ser os 10 mi- lhões de empregos prometidos, em 2002, pelo então aspirante a pre- sidente Luiz Inácio Lula da Silva. Já passados três anos de seu gover- no, os índices oficiais do Ministério do Trabalho registram a criação de 3,5 milhões de postos de trabalho. Esses índices são contestados por analistas independentes. Pode ser um erro escusável, mas a mentira política não pode ser justificada ao v a l e r-se de razões de Estado como escudo e, muito menos, ser assu- Julho/Dezembro 2005 32 AUGUSTO CARAZZA, JÚLIO HONAISER, SAULO FRAUCHES E THYAGO MATHIAS Se eleito, eu prometo... Ao longo da história política brasileira, a mentira tornou-se eficaz instrumento de mobilização social “Lula sai da história para entrar no marketingFernando Gabeira Xô corrupção: José Dirceu, Lula e Duda Mendonça na campanha presidencial de 2002 João Wainer / Folha Imagem

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Maria Olívia da Silvanasceu em 28 defevereiro de 1880. É amulher mais velha do

Brasil. Ao longo dos seus 126anos, acompanhou o fim oficialda escravidão no país, a pro c l a-mação da República, o suicídio deGetúlio Va rgas, a construção deBrasília, o golpe militar de 1964,o movimento pelas eleições dire-tas, a vitória de Fernando Collors o b re Lula, o impeachment d eCollor e a chegada de Lula ao po-

d e r. Assistiu à passagem de 42p residentes, entre outros tantosagentes políticos e nove moedasnacionais. É testemunha de com-p romissos assumidos em prol dodesenvolvimento do Brasil e guar-da, na gaveta do quarto, umalista de promessas a cobrar.

A primeira pode ser os 10 mi-lhões de empregos prometidos, em2002, pelo então aspirante a pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva.Já passados três anos de seu gover-no, os índices oficiais do Ministériodo Trabalho registram a criação de3,5 milhões de postos de trabalho.Esses índices são contestados poranalistas independentes. Pode serum erro escusável, mas a mentirapolítica não pode ser justificada aov a l e r-se de razões de Estado comoescudo e, muito menos, ser assu-

Julho/Dezembro 200532

AUGUSTO CARAZZA, JÚLIO HONAISER, SAULO FRAUCHES E THYAGO MATHIAS

Se eleito, eu prometo...Ao longo da história política brasileira, a mentira tornou-se

eficaz instrumento de mobilização social

“Lula sai da históriapara entrar no

marketing”Fernando Gabeira

Xô corrupção: José Dirceu, Lula e Duda Mendonça na campanha presidencial de 2002

João Wainer / Folha Imagem

mida como prática institucional.Q uando profissionais de mar-

keting político criam ou transfor-mam candidatos, fica difícilsaber se promessas mentiro s a sresultam da ingenuidade de ho-mens públicos em campanha ouda intenção de iludir. O deputadofederal Fernando Gabeira (PV-RJ)atribui ao excesso de influênciados marqueteiros a sua decepçãopara com o PT, partido que aban-donou em 2003. “Lula saiu dahistória para entrar no marketing.Ao descobrir o imenso potencialda linguagem publicitária, elepassou a superestimar o trabalhode marketing em detrimento domovimento social que o apoia-va”, declarou em entrevista pu-blicada pela revista Veja, emjunho de 2005.

A ratoeira, a vassoura e ocaçador de marajás

Compromisso fácil de se ver emeleições é o de combate à cor-rupção. Um exemplo da corridapresidencial de 2002 é o cartazque trazia uma ratoeira acom-panhada pelo texto “Xô cor-rupção: uma campanha do PT edo povo brasileiro”. Em 1989, oPRN de Collor venceu, por quatromilhões de votos, o presidenciá-vel petista com uma campanhapela moralização da política e ofim da inflação. Collor era o“caçador de marajás”. Essa ban-deira, contudo, data de 1960,quando Jânio Quadros propunhavarrer a corrupção para longe dogoverno.

Se a vassoura foi o “remédiopara o Brasil” e parece a soluçãopara a campanha de qualquerpolítico, ela também pôs um fim

às chances de vitória eleitoral dePaulo Maluf e Celso Pitta. Nopleito de 1996, o ex-governador eentão prefeito de São Paulo ma-nifestou apoio ao seu secretáriode finanças com a declaração deque “se o Pitta não for um bomprefeito, nunca mais votem emmim”. A principal meta de cam-panha de Pitta, a construção doFura-Fila – um sistema de trensleves que resolveria os problemasde transporte público da capitalpaulista – consumiu R$ 120 mi-lhões e não passou de mentira.Nenhuma obra foi feita. O ex-prefeito e seu mentor ainda nãoconseguiram se eleger para outrocargo público.

Comunismo: ameaça fantasmaDona Maria Olívia nunca foi

obrigada a votar. Além de não ter

sido alfabetizada, nasceu mulhere pobre num tempo em que oshomens votavam de acordo comsua renda, medida pela colheitade mandioca. Quando, em 13 demarço de 1964, João Goulartreuniu 200 mil pessoas no comí-cio da Central do Brasil, pelasreformas agrária e urbana, elatinha também na idade umaescusa para não votar. E, comigual indiferença, ela teria perce-bido as subseqüentes marc h a sdas famílias de classe-média“com Deus pela liberdade” senão fossem motivadas por ummedo que, àquela altura, eracomum no país: o avanço docomunismo.

Os executores do golpe de 1964fizeram uso do projeto de reestru-turação macroeconômica de JoãoGoulart, como, por exemplo, o

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Campanha de Maluf para governador, nos anos 1980: aliança entre artistas epolíticos

Coleção Manuel Camassa

controle sobre o valor dos alu-guéis e planos de incentivo àaquisição da casa própria, tra-tando-o como uma ameaça co-

munista que provocaria mu-danças radicais nos padrões devida do brasileiro-médio. Daí afarsa do golpe. O exercício domedo por via da mentira pode seratribuído, em grande parte, aoInstituto de Pesquisas e EstudosSociais (IPES), criado por em-p resários e intelectuais comfinanciamento norte-americano.O instituto fazia filmetes, filmesde propaganda divulgados emsindicatos, igrejas, organizaçõesde bairro e associações de mo-radores com objetivo de inspirarmedo.

“O discurso do medo foi usadocom muita eficácia em 1964. OIPES fazia filmes de muita quali-dade para os padrões da época, eos exibia em locais como sindi-catos, associações de moradores eigrejas. Era um material exata-mente com a idéia do medo. Osfilmes alertavam a sociedade queela devia se mobilizar para evitaro comunismo, que isso traria ofim da casa própria, enfim, essasameaças que a gente estava acos-tumado a escutar” – lembra a

historiadora Graça Salgado, pro-fessora do Departamento deHistória da PUC-Rio.

Com base no medo foi que oGolpe operou-se de fato no dia 1ºde abril. Embora os militares sus-tentem que a data certa é 31 demarço, na realidade foi no Diada Mentira que o Congre s s odecidiu afastar Jango e empossaro presidente da Câmara RanieriMazzilli. Deu-se, então, uma“revolução” que não alterava aordem de nada. Pelo contrário,mantinha as estruturas política eeconômica vigentes, embora im-plantasse uma ditadura com oargumento de que a posse deJango abriria as portas do Brasilpara o comunismo e, com ele,para o fim da democracia. A jus-tificativa, ao mesmo tempo, ser-via à implantação do Golpe e asua manutenção. A ameaça co-munista exigia uma vigilânciaconstante pelos militares contraqualquer forma de subversão, oque implicava em censura,perseguição política, tortura emorte.

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O governo Jango caiu no 1º de abril

A ameaça vermelhaSe o discurso de pavor contra os comunistas serviu para assustar

boa parte das elites e da classe média no final dos anos 1980, ima-gine o pavor que isso era capaz de provocar nos anos 1960, emplena efervescência da Guerra Fria. Misturava-se a isso um discur-so de esquerda que alertava a população contra a ameaça imperi-alista de direita, encarnada na figura dos Estados Unidos. Estavapronta uma massa maniqueísta de dois blocos, sempre munida deargumentos para convencer a população de que havia um ladocerto e de que a opção por um outro traria sérios problemas aopovo brasileiro.

Órgãos associados à direita, como o Instituto de Pesquisa eEstudos Sociais (IPES), contavam com o suporte financeiro doempresariado e até de capital estrangeiro, com a finalidade de pro-duzir filmes e peças de propaganda capazes de provocar pânico napopulação, tornando-a facilmente manipulável.

Políticas econômicas dementira

Para Graça Salgado, entre t a n t o ,a grande mentira desse período dahistória política brasileira não sedeu no plano político, mas noeconômico. Os anos que vão de1968 a 1973 são lembrados pelamoderação da inflação e a mo-d e rnização das indústrias de base,de bens de consumo duráveis, detelecomunicações e de pro d u ç ã ode energia. Segundo a historiado-ra, “exemplo mais emblemático éo ‘milagre econômico’ e toda ajustificativa que foi dada para oc rescimento econômico do Brasilno período, que foi um cre s c i m e n-to econômico totalmente falso,sustentado por uma bolha de con-sumo de matéria, de equipamen-

tos, eletrodomésticos em cima deuma idéia da necessidade de sefazer a legitimação da ditadurapela eficácia. Eles criam uma‘mentira’, uma forma de busca delegitimação do regime, em cimade um crescimento econômicosustentado em juros subsidiadospelo poder público, para que aclasse média pudesse adquirirseus bens de consumo”. Ela re s-salta, ainda, que os militares ti-nham a consciência de que op ro g resso econômico brasileironão ia além da aparência. “Pa-gamos até hoje o preço do ‘mila-g re’: aumento do endividamentoe x t e rno e interno, dentre outro sf a t o res”, arg u m e n t a .

Ainda que o “milagre” fosseperdendo fôlego já nos últimos

anos do regime militar, o com-bate à inflação por ele gestadatornou-se preocupação, sobretu-do, dos governos civis, pós 1985.Depois do fracasso do PlanoCruzado, sob a chancela do pre-sidente Sarney e do economistaDílson Funaro, entrou em cena oPlano Collor, da ministra ZéliaCardoso de Mello. Entre outrasmedidas, dispunha que os saquesde contas correntes e aplicaçõesfinanceiras seriam limitados a 50mil cruzados novos (aproxima-damente R$ 6 mil). A intençãoera abastecer os caixas do gover-no e retirar dinheiro do mercado,de modo a inibir a demanda econter a inflação.

Antes da implementação efeti-va do plano, a ministra deu en-

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Fura-filaNão é necessária uma ameaça

megalomaníaca para conquistarapoio da população. Às vezes,uma mentirinha leve tambémajuda. Nos anos 1990, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta– apadrinhado por Paulo Maluf –tinha como um dos carros-chefede campanha o projeto Fura-fila:uma espécie de trem que apla-caria consideravelmente os pro-blemas do conturbado trânsitopaulista. Foi um sucesso. Depoisde eleito, a execução da obra re-velou-se um elefante branco: noano de 2000, mais de R$ 120 mi-lhões, dos R$ 146 milhões previs-tos, foram gastos, e estava longedo fim: a previsão de gastos subiupara R$ 230 milhões.

Quando Pitta deixou o cargo, fora construída apenas a estrutura básica de 2,8 quilômetros. Em2001, a ex-prefeita Marta Suplicy retomou a obra e ampliou a rede para mais 5 quilômetros, semconcluí-la, contudo. Até agora, já foram gastos R$ 600 milhões no Fura-fila, que permanece inacaba-do. Em novembro de 2005, o então prefeito, José Serra, anunciou retomar o projeto e ampliá-lo.Agora, a previsão para o fim das obras está marcada para 2008 e os gastos para a sua conclusão sãoestimados em R$ 400 milhões.

Celso Pitta na viagem inaugural do Fura-Fila

trevista à jornalista Lillian WitteFibe, da Rede Globo, em quenegou a possibilidade de confis-co. Quatro dias após a posse deCollor e depois de um feriadobancário de três dias, em 19 demarço de 1990, deu-se o confiscodas poupanças pelo prazo de 18meses. No domingo seguinte, ementrevista ao Fantástico, o presi-dente foi perguntado sobre agarantia de que o dinheiro con-fiscado seria devolvido, ao querespondeu: “A garantia é que euassino em baixo”. Durante acampanha presidencial, Fernan-do Collor acusou Lula de tramaro confisco das cadernetas depoupança.

Quase um século antes, quan-do Dona Maria Olívia tinhanove anos, o embuste financeirodeu-se de forma oposta. Nãopela retirada de dinheiro dom e rcado, mas pela concessão detítulos de crédito sem garantia.Rui Barbosa, ministro da fazen-da do governo do mare c h a lD e o d o ro da Fonseca, pro m e t e udesenvolvimento econômico,porém teve que emitir papel-moeda para atender à demandapor empréstimos que não set r a n s f o rmaram em investimen-to produtivo e, assim, impulsio-

nou a inflação que assolou opaís ao longo de quase todo oséculo XX. Não deixa de seruma prova de que a associaçãoe n t re mentira e política noBrasil vem de longe.

Herança malditaConforme aponta em seu livro

Os bestializados: o Rio de Janeiro ea República que não foi, o escritormembro da Academia Brasileirade Letras José Murilo de Carvalhoe s c reve que “o encilhamentotrouxe uma febre de enriqueci-mento a todo custo”. Em con-cordância, não era difícil ler nosjornais da época a sentença “aRepública é a riqueza!”. Tal é aexpressão de um primeiro entusi-asmo com a novidade trazidapela proclamação de 15 denovembro de 1888. Desde aí, noentanto, o povo passou a se acos-tumar com promessas não cum-pridas.

Segundo o historiador Bruno deCerqueira, presidente do InstitutoDona Isabel I, a República bra-sileira é uma farsa porque “foiimplantada sem apoio popular esó tentou conquistá-lo tard i a-mente, com medidas que apon-tavam para uma feição modernado país que não condizia com arealidade, como se isso pudesseser imposto de cima para baixo.Ela não passou de um outrogolpe militar, que nunca con-seguiu traduzir-se em uma ‘coisapública’ de verdade”.

Talvez o símbolo maior doperíodo republicano seja o presi-dente Getúlio Vargas, que tam-bém carregou consigo a aura deherói e de mentiroso, sobretudono que diz respeito a seu suicídio,

em agosto de 1954. Hoje, algunsh i s t o r i a d o res defendem que ac a rta-testamento que deixoupara “sair da vida e entrar nahistória” não foi escrita por ele esim pelo jornalista José SoaresMaciel Filho, redator de discursosde Vargas. Pouco importa.

O pesquisador do CPDOCAmérico Fre i re lembra que “as fi-guras políticas fortes, que geramimpacto no imaginário popular,são capazes de gerar polêmicas eentram na história como lendas. Éo caso de Getúlio Va rgas. Semprecomentam a respeito das coin-cidências nas datas das mortes deJango, JK, Lacerda. Fazem parte damitologia política. O herói, “paidos pobres”, não pode ter se suici-dado, justamente porque ele é oherói, aquele que não podedemonstrar fraqueza. Não acre d i-to que seja uma grande farsa,uma grande mentira, uma cons-piração para enganar o povo.Para mim, não passa de especu-lação, pois não há nada de factu-al. O mesmo vale para a “cart a -testamento”, um belo golpe emcima da oposição. Dizem que elafoi forjada, que existe uma outra,mas acho que também faz part ed e s s e jogo especulativo. Há re-g i s t ros, sim, que Va rgas já pensavaem se suicidar em outros momen-tos, ele já vinha construindo essaidéia. Mas eu não acredito quetenha sido uma farsa. Getúlio sematou, mas o imaginário popularem busca de heróis vai criandoessas idéias.” Por isso, Dona MariaOlívia, com seus 126 anos, develembrar mais dos homens públicosque constam dos livros de históriado que das promessas que lhespoderia cobrar.

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Debate na campanha presidencial de1989: Collor acusou Lula de terintenções de confiscar as cadernetasde poupança