Segurança Publica No Brasil Até 2007

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SEGUE-SE a descrição de um processo (sucessivas tentativas de formular e implantarpolíticas por meio da elaboração de planos), buscando-se compreenderseus principais movimentos (os avanços e recuos, as pressões e reações,a indução e as negociações que marcaram a experiência recente dos diversos atoresrelevantes na área da Segurança Pública, em âmbito nacional).

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    EGUE-SE a descrio de um processo (sucessivas tentativas de formular e im-plantar polticas por meio da elaborao de planos), buscando-se compreen-der seus principais movimentos (os avanos e recuos, as presses e reaes,

    a induo e as negociaes que marcaram a experincia recente dos diversos ato-res relevantes na rea da Segurana Pblica, em mbito nacional). No por acaso, o verbo adotado descrio, em vez de avaliao. Por prudncia e honestidade intelectual, descartemos falsas expectativas: muito difcil proceder a uma avalia-o de polticas de segurana pblica, assim como da performance policial. Nose trata de uma dificuldade exclusivamente brasileira. Em todo o mundo, entre os especialistas e gestores, estudiosos e profissionais que atuam na rea, essa uma questo controversa. As polmicas se sucedem em seminrios internacio-nais e visitas de consultores. simples entender: determinada poltica pode ser

    A Poltica Nacionalde Segurana Pblica:histrico, dilemas e perspectivasLUIZ EDUARDO SOARES

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    Minas terrestes, armas, munies e drogas so encontradas pela polcia no subsolo da casa de traficante na favela da Coria, em Senador Camar, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ).

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    virtuosa e, ainda assim, os indicadores selecionados podem apontar crescimento dos problemas identificados como prioritrios por exemplo, taxas de certos tipos de criminalidade. O contrrio tambm verossmil: podem conviver uma poltica inadequada e bons resultados.

    A problemtica da avaliaoDeixando de lado hipteses mais simples, como os efeitos de sazonalidade1

    e a relatividade da acelerao,2 h a hiptese prosaica de que fatores sociais pro-motores das condies favorveis reproduo ampliada de prticas criminosas fatores independentes de aes policiais e externos ao mbito de interveno de polticas pblicas de segurana continuem a produzir seus efeitos e o faam em razo de diversos motivos alheios rea em foco, com potncia crescente. Nesse caso, mesmo que a poltica de segurana fosse adequada, inteligente e consistente, eficiente, eficaz e efetiva, ainda assim os indicadores poderiam ser negativos. Provavelmente, seriam menos maus do que se a referida poltica no estivesse sendo adotada, mas isso conduziria o analista a um argumento contra-factual impossvel de testar e, portanto, de comprovar.

    O contrrio tambm seria vivel: os referidos fatores negativos poderiam perder fora ou mesmo desaparecer, produzindo resultados positivos e alheios s polticas de segurana.

    Consideremos quatro exemplos da participao relativamente autnoma de fatores negativos (o primeiro e o quarto fatores citados, a seguir, so, na verdade, positivos, em si mesmos, porm negativos do ponto de vista de seu provvel impacto sobre a segurana pblica): dinmicas demogrficas ou a qua-lidade da sade pblica materno-infantil, ou o aperfeioamento das condies sanitrias, fruto de processo de urbanizao, levam ao aumento do nmero de jovens na populao. Sabemos que a magnitude da presena de jovens na popu-lao constitui uma varivel significativa para o panorama da criminalidade e da violncia. Eis a um contexto favorvel ao crescimento do nmero de crimes.

    Desastres naturais, como enchentes e tornados, podem gerar desabaste-cimento, desespero e uma onda de saques, de tal maneira que se produza um ambiente propcio proliferao de prticas criminosas de tipos diversos, contra a vida e o patrimnio.

    Crise econmica, provocando desemprego em massa e aprofundando de-sigualdades, na contramo de uma cultura hegemnica individualista e igualit-ria, pode funcionar como vetor facilitador da difuso de prticas criminosas.

    Crescimento econmico e elevao da renda mdia, universalizao do acesso ao ensino pblico, em ambiente de intenso desenvolvimento tecnolgico, no contexto da expanso do que se convencionou chamar sociedade do conhe-cimento ou da informao, tornam simples a reproduo domstica de obras culturais (como filmes e gravaes musicais) e incontrolvel sua distribuio ilci-ta, colocando em xeque os termos que tradicionalmente definem a propriedade intelectual e alimentando verdadeira avalancha dos crimes apelidados pirataria.

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    Cada uma das quatro hipteses ou as quatro, associadas corresponde(m) a um conjunto de fatores independentes da performance policial ou das pol-ticas de segurana, e configura(m) cenrios em que boas prticas polticas e performance virtuosas no podem mais do que reduzir danos ou limitar conseqncias negativas. Seria injusto e inadequado avali-las pelo resultado agregado do entrechoque de dinmicas, vetores e processos, a no ser que o fizssemos comparativamente a situaes anlogas.

    Em certo sentido, vetores independentes esses e outros, incluindo aque-les que, a par de intrinsecamente positivos, exercem presso auspiciosa esto sempre atuando, sobretudo em momentos de instabilidade. Como impossvel isolar o campo de interveno das polticas e das performances a serem exami-nadas, impem-se cautela e uma boa dose de ceticismo na aplicao da clusula ceateris-paribus reconheamos que, a rigor, ela s aplicvel em laboratrio, hiptese que no se presta aos fenmenos sociais.

    O quadro comea a ficar realmente interessante quando observamos que o sucesso ou o fracasso de tais polticas e performances concorrem para a forma-o de vetores independentes positivos ou negativos, o que relativiza a prpria noo de independncia dos fatores, com a qual trabalhamos at aqui.

    H outras dificuldades: o aprimoramento dos servios de segurana p-blica pode elevar o grau de confiana da populao nas polcias, o que, por sua vez, pode levar ao crescimento do volume das denncias ou dos registros de crimes. o que tipicamente ocorre quando, por exemplo, o Estado oferece s mulheres um atendimento respeitoso e diferenciado, mediante a qualificao de policiais e da instalao de Delegacias Especializadas (as Deam). Os delitos computados crescem exatamente quando a performance melhora e uma poltica positiva se implementa o que, em geral, leva os incautos na mdia e os espertos na oposio a crticas injustas e precipitadas. Polticas especificamente dedicadas reduo da homofobia e do racismo produzem o mesmo efeito. Via de regra, o efeito sentido em qualquer rea e se potencializa quando so as instituies da segurana pblica e da Justia criminal, em seu conjunto, que se aprimoram e conquistam credibilidade.

    Pesquisas demonstram que o cidado no procura a polcia quando vtima de um crime, principalmente por trs razes: medo de ser maltratado pela prpria polcia; ou de ser alvo de vingana por parte do agente do crime e de seus cmplices; e descrena na capacidade da polcia, o que tornaria intil seu esforo de ir Delegacia. Deduz-se, portanto, que, se os resultados come-arem a aparecer, produzir-se- um crculo virtuoso e as denncias e registros tendero a chegar, aumentando a capacidade de investigao e antecipao das polcias se a gesto for orientada de modo adequado. Evidentemente, o ar-gumento s vlido se os registros crescerem at certo ponto, bem entendido; ponto dificilmente identificvel, ex-ante, a partir do qual produzir-se-ia um efeito de saturao.

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    O mesmo valeria para o caso de as polcias demonstrarem que passaram a adotar atitudes respeitosas para com os cidados, independentemente da cor, do bairro, da idade, da opo sexual e da classe social. Em ambas as situaes, os nmeros dos crimes tenderiam a crescer (no os fatos, os nmeros), e a qualida-de da ao preventiva e repressiva se ampliaria (reitere-se a observao cautelar assinalada antes).

    Claro que h sempre o recurso a pesquisas de vitimizao, que medem eventos e percepes. Repetidas com regularidade, so o meio mais seguro para acompanhar quantidades e tipos de ocorrncias, assim como a confiana popular nas polcias. Todavia, no resolvem o problema da avaliao, porque persistem os motivos referidos.

    H tambm as profecias que se autocumprem e os efeitos no intencionais da ao social efeitos perversos ou de composio. Sobretudo quando avalia-es no se esgotam nos exerccios acadmicos e se convertem em instrumen-to de monitoramento, induo, distribuio de recursos e de capital poltico. Quando polticas e performances so avaliadas para fins de aprimoramento, nus e bnus so distribudos a gestores e corporaes, conforme os resultados colhi-dos. Essa perspectiva altera o prprio objeto da avaliao, para o bem ou para o mal, complexificando todo o processo. Note-se que pode ser um equvoco pre-miar com recursos os Estados ou as reas que apresentam os dados mais graves, as taxas mais elevadas de criminalidade, uma vez que a valorizao pode tornar atrativo o fracasso; tanto quanto fazer o inverso pode condenar ao abandono, e ao crculo vicioso do agravamento que se retroalimenta, a situao mais neces-sitada de apoio.

    Resultados paradoxais isto , eminentemente positivos, mas, simultane-amente, geradores de efeitos negativos (sendo essa ambivalncia sincrnica ou diacrnica, conforme o caso) constituem outra fonte de problemas para ava-liaes. Por isso, uma boa poltica deve manter-se aberta, autorizando mudan-as sucessivas de orientao, a partir, entretanto, de linhas gerais permanentes. Tal abertura corresponderia ao reconhecimento do carter dinmico do quadro sobre o qual pretende incidir o dinamismo, aqui, espelha os movimentos de-rivados dos prprios impactos precipitados pela poltica adotada. No se trata, portanto, exatamente, nem de profecias que se autocumprem (porque os pro-blemas contemplados preexistiam interveno dirigida para resolv-los e no so agravados por dita interveno; pelo contrrio, so amenizados ou solucio-nados) nem de aes geradoras de efeitos perversos (porque os efeitos visados so alcanados). No entanto, os resultados positivos esses aos quais atribumos a qualidade da ambivalncia e do paradoxo criam novos desafios.

    Um exemplo: digamos que o aprimoramento das investigaes policiais aumente a taxa de esclarecimento de determinados crimes, reduzindo a impuni-dade. Disso pode resultar o estmulo ao desenvolvimento de tcnicas mais sofis-ticadas de organizao, comunicao e ao dos criminosos que atuam na rea em causa. Mais bem organizados, equipados e orientados, os criminosos podem

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    tornar-se mais ambiciosos e mais perigosos, em suas escolhas e aes. O custo do investimento nesse esforo de qualificao, por parte dos criminosos, pode ser compensado pela inflao do valor dos objetos ou bens (materiais ou imateriais) por eles visados essa inflao pode ser, por sua vez, determinada pelo aumento do risco das operaes necessrias para obter tais bens ou objetos. O aumento do risco provm seja da melhoria dos servios policiais (um bem em si mesmo, uma vez que gera um sem-nmero de benefcios para a sociedade) seja do endu-recimento das leis penais o que mostra quo falsa pode ser a suposio de que leis mais duras so eficientes no combate ao crime.

    Tome-se o caso das drogas: na medida em que se aperta o cerco ao trfico internacional, maiores passam a ser os riscos do transporte ilegal e da distri-buio para o varejo. A leitura ingnua deduziria dessa adio de custos uma eventual tendncia desacelerao do comrcio de drogas. Contudo, o que mais difcil e envolve mais riscos tem mais valor e passa a exigir, para realizar-se, pagamento correspondente ao novo valor, inflacionado, paradoxalmente, pelos novos obstculos agregados proviso do servio ilcito. Ganhos mais elevados, por seu turno, implicam mais estmulo a investimentos nessa rea da economia ilegal e maior capacidade de recrutamento de operadores dispostos a enfrentar bices e riscos. Ou seja, a espiral descrita faz de cada nus acrescido ao ato cri-minoso uma promessa de benefcio, uma ampliao da recompensa.

    O mesmo vale para o caso da corrupo: aprimoramento dos instrumentos de controle, intensificao de aes repressivas e aumento de penas tornam o custo da transgresso mais elevado. No entanto, o ciclo no se esgota a. Con-siderando-se que a parcela do ganho ilcito (digamos que se trate de fraudar uma licitao) apropriada pelo mediador criminoso , por definio, elstica, o aumento do risco pode promover um novo arranjo, em cujo mbito se reduza a margem de lucro do beneficirio da fraude sem subtrair-lhe atratividade , e se eleve, proporcionalmente, o percentual que cabe ao broker, mantendo-se, para ele ou ela, o interesse da operao. Se o processo inflacionar excessivamente o valor da operao, pode, ao invs de desestimul-lo, suscitar a mudana de sua qualidade, tornando-a ainda mais danosa. Por exemplo, provocando o entendi-mento entre os competidores da licitao para que a manipulem, incluindo-a em pacote mais abrangente, em cujos termos todos os envolvidos se beneficiariam, a mdio prazo, lesando-se com mais proficincia e em maior intensidade o inte-resse pblico. Isso no significa que nada haja a fazer e que Estado e sociedade devam render-se ao inevitvel. Mas significa, sim, que intervenes realmente efetivas requerem mais engenho e arte isto , mais ateno complexidade do que suporia necessria a viso ligeira do problema.

    Nesse contexto, talvez ganhem sentido algumas perguntas que, de outro modo, provavelmente soariam inconseqentes e arbitrrias: o chamado pro-blema das drogas no decorreria justamente da criminalizao, tornando-as matria de segurana pblica? E a corrupo, no a estaramos combatendo por mtodos caros e contraproducentes? Hoje, no Brasil, h muitos mecanismos de

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    controle, que envolvem gastos considerveis e um verdadeiro cipoal burocrtico, dificultando imensamente a gesto e exigindo exao fiscal de efeitos recessivos. Talvez esse emaranhado oneroso e paralisante exera um papel contraditrio, alimentando a corrupo, pelos motivos supra-expostos.

    Efeitos paradoxais das polticas de segurana e da performance policial po-dem ser, ainda, as migraes das prticas criminosas: o sucesso de determinadas intervenes locais acaba provocando o deslocamento dos crimes para bairros contguos, cidades prximas ou estados vizinhos. O resultado agregado pode, com isso, manter-se inalterado ou deteriorar-se, uma vez que migraes podem implicar disputas por territrio e intensificao do recurso violncia para que se viabilize o empreendimento criminoso. H tambm a migrao no-geogr-fica, mas de tipo de crime: quando a represso de roubos a banco aumenta, os criminosos podem deslocar-se para a prtica de seqestros e da para o roubo de cargas e assim sucessivamente.

    O mesmo ocorre em mbito internacional: mais rigor no combate ao ter-rorismo, por exemplo, pode induzir deslocamento de suas bases para reas pe-rifricas s disputas polticas centrais do ponto de vista dos protagonistas do terror. Coloquemo-nos na posio do agente do terror. O que ele procura? Deque ele precisa (alm de dinheiro e militantes) para criar seus meios de inter-veno, treinando suas equipes e reunindo informaes para planejar aes? Soindispensveis as seguintes condies: acesso a um territrio situado em uma regio geopoliticamente estvel e pacfica, que suscite pouca suspeita e baixo in-teresse, por parte das agncias de inteligncia dos pases diretamente envolvidos nos confrontos terroristas.

    Um territrio em que prospere a impunidade; marcado por baixa quali-dade dos servios nacionais de segurana; no qual armas ilegais circulem livre-mente; em que haja vastos espaos para treinamento, distantes da ateno de instituies do Estado e pouco acessveis mdia. Um territrio que propicie acesso praticamente ilimitado a tecnologia e comunicaes de primeira quali-dade, servido por transporte rpido e eficiente para qualquer parte do mundo ou seja, inserido na globalizao, mas relativamente refratrio, por fora de sua soberania, voracidade panptica dos pases centrais. Um territrio politi-camente independente, que no se envolva em profundidade com os conflitos nos quais os terroristas estejam implicados; no qual no haja grandes segmentos populacionais tendentes a engajar-se na poltica das regies em conflito; em que a situao poltica interna seja estvel; e no qual a economia favorea o emprego de fora de trabalho nativa barata. Claro que o Brasil se destacaria, portanto, como opo preferencial, fosse esse o clculo dos terroristas. Nesse sentido, convergiriam ao eficiente antiterror em outros pases com a desateno para dizer o mnimo nacional: o resultado poderia ser a migrao para nosso pas de bases de treinamento e operao terroristas.

    Observe-se que no s resultados so pertinentes para a avaliao. Proces-sos e metas intermedirias, identificadas por diagnsticos institucionais como

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    especialmente relevantes, devem ser objetos de acompanhamento crtico siste-mtico. Por exemplo: a qualidade da formao e da capacitao dos policiais e demais profissionais que atuam no campo da segurana pblica; a consistncia dos dados produzidos; os mtodos de gesto; a confiabilidade e efetividade dos controles interno e externo etc. Para o caso das polticas preventivas, os progra-mas aplicados podem ter valor segundo distintos critrios, independentemen-te de resultados perceptveis a curto prazo. Nesse sentido, acrescente-se que a perspectiva temporal necessria para uma avaliao rigorosa, mas nem sempre factvel, dada a natureza prtica da prpria avaliao, til, afinal de contas, para o monitoramento corretivo do sistema examinado, cujo aprimoramento no pode aguardar uma dcada de estudos comparativos.

    Deixemos por ora a reflexo sobre os limites da avaliao de polticas de segurana pblica e de performance policial e passemos descrio dos planos que prescrevem polticas de segurana pblica, assim como dos movimentos en-cetados pelos atores relevantes para implement-los. O mbito de observao nacional e o perodo so os ltimos oito anos (2000-2007, ainda em curso).

    Governos Fernando Henrique Cardoso:tmida gestao de um novo momentoSucessivos ministros da Justia do segundo governo Fernando Henrique

    Cardoso (FHC), com a colaborao de secretrios nacionais de segurana, ges-tavam, lentamente, um plano nacional de segurana pblica, quando um jovem sobrevivente da chacina da Candelria, Sandro, seqestrou, no corao da Zona Sul carioca, o nibus 174, ante a perplexidade de todo o pas, que as TV trans-formaram em testemunha inerte da tragdia, em tempo real. Ato contnuo, o presidente da Repblica determinou que seus auxiliares tirassem da gaveta o pa-pelrio, e decidissem, finalmente, qual seria a agenda nacional para a segurana, pelo menos do ponto de vista dos compromissos da Unio. Em uma semana, a nao conheceria o primeiro plano de segurana pblica de sua histria de-mocrtica recente, o qual, em funo do parto precoce, precipitado a frceps, vinha a pblico sob a forma canhestra de listagem assistemtica de intenes heterogneas. Assinale-se que, antes, no primeiro governo FHC, deram-se pas-sos importantes para a afirmao de uma pauta especialmente significativa para a segurana pblica, quando se a concebe regida por princpios democrticos: foi criada a secretaria nacional de Direitos Humanos e formulou-se o primeiro plano nacional de Direitos Humanos.

    Faltava quele documento a vertebrao de uma poltica, o que exigiria a identificao de prioridades, uma escala de relevncias, a identificao de um conjunto de pontos nevrlgicos condicionantes dos processos mais significati-vos, de tal maneira que mudanas incrementais e articuladas ou simultneas e abruptas pudessem alterar os aspectos-chave, promovendo condies adequadas s transformaes estratgicas, orientadas para metas claramente descritas. Isso, entretanto, no se alcana sem uma concepo sistmica dos problemas, em

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    suas mltiplas dimenses, sociais e institucionais; tampouco se obtm sem um diagnstico, na ausncia do qual tambm no se viabiliza o estabelecimento de metas e de critrios, mtodos e mecanismos de avaliao e monitoramento. Odocumento apresentado nao como um plano no atendia aos requisitos m-nimos que o tornassem digno daquela designao.

    Entre as boas idias daquele plano, destacava-se o reconhecimento da importncia da preveno da violncia, tanto que derivou da o Plano de Inte-grao e Acompanhamento dos Programas Sociais de Preveno da Violncia (Piaps) cuja misso era promover a interao local e, portanto, o mtuo fortale-cimento dos programas sociais implementados pelos governos federal, estadual e municipal, que, direta ou indiretamente, pudessem contribuir para a reduo dos fatores, potencialmente, crimingenos. A ambio era formidvel, assim como os obstculos sua execuo. Dada a estrutura do Estado, no Brasil, caracterizada pela segmentao corporativa, reflexo tardio da segunda revoluo industrial, nada mais difcil do que integrar programas setoriais, gerando, pela coordena-o, uma poltica intersetorial. Sobretudo quando a pretenso ultrapassa o dom-nio de uma nica esfera de governo e se estende aos trs nveis federativos.

    Importantes esforos foram feitos pela Secretaria Nacional de SeguranaPblica (Senasp) na direo certa: o estabelecimento de condies de coope-rao entre as instituies da segurana pblica; o apoio a iniciativas visando a qualificao policial; o investimento (ainda que tmido) na expanso das penas alternativas privao da liberdade; o desenvolvimento de perspectivas mais ra-

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    Seqestro do nibus 174 no Jardim Botnico, no Rio de Janeiro: o seqestrador Sandrodo Nascimento, com a refm Gesa Gonalves, negocia com a polcia, aps deixar o nibus.

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    cionais de gesto, nas polcias estaduais e nas secretarias de segurana, aravs da elaborao de planos de segurana pblica, nos quais se definissem metas a alcanar.

    Exemplo maior da ateno tardia e modesta do segundo governo Fernan-do Henrique Cardoso segurana foi a criao do Fundo Nacional de SeguranaPblica, que ficaria sob responsabilidade da Senasp e que, supostamente, serviria de instrumento indutor de polticas adequadas. No entanto, ante a ausncia de uma poltica nacional sistmica, com prioridades claramente postuladas, dada a disperso varejista e reativa das decises, que se refletia e inspirava no carter dispersivo e assistemtico do plano nacional do ano 2000, o Fundo acabou limi-tado a reiterar velhos procedimentos, antigas obsesses, hbitos tradicionais: o repasse de recursos, ao invs de servir de ferramenta poltica voltada para a indu-o de reformas estruturais, na prtica destinou-se, sobretudo, compra de ar-mas e viaturas. Ou seja: o Fundo foi absorvido pela fora da inrcia e rendeu-se ao impulso voluntarista que se resume a fazer mais do mesmo. Alimentaram-seestruturas esgotadas, beneficiando polticas equivocadas e tolerando o convvio com organizaes policiais refratrias gesto racional, avaliao, ao monito-ramento, ao controle externo e at mesmo a um controle interno minimamente efetivo e no-corporativista.

    O esprito democrtico da maioria dos ministros da Justia que se reve-zaram no governo corroborou esse verdadeiro e involuntrio capitulacionismo. Escusando-se de intervenes mais ousadas, renunciando iniciativa reformista, ministros e secretrios nacionais repetiram exausto reunies com secretrios estaduais de Segurana e chefes das polcias, no af de persuadi-los a participar do esforo nacional, por exemplo, de uniformizao da linguagem informacio-nal das polcias pr-requisito indispensvel para o estabelecimento de condi-es mnimas para a cooperao operacional. A pequena sabotagem, a miudeza das arestas interpessoais, o atrito entre projetos e as rivalidades polticas com-binaram-se e criaram o caldo de cultura para que prosperasse o que se poderia denominar poltica do veto, graas qual todo o movimento nacional rumo racionalizao administrativa e modernizao institucional tornava-se refm da m vontade de uma autoridade estadual, do mau humor de um personagem obscuro, de uma crispao corporativa, de uma medocre disputa provinciana.

    De todo modo, destaque-se que o perodo Fernando Henrique Cardo-so marcou uma virada positiva, democrtica e progressista, modernizadora e racionalizadora, na medida em que conferiu questo da segurana um statuspoltico superior, reconhecendo sua importncia, a gravidade da situao e a necessidade de que o governo federal assuma responsabilidades nessa matria; e firmou compromisso poltico com a agenda dos direitos humanos, mais espe-cificamente, na rea da Segurana Pblica, com uma pauta virtuosa (preveno; integrao intersetorial e intergovernamental; valorizao da experincia local; qualificao policial; estmulo ao policiamento comunitrio; apoio ao programa de proteo s testemunhas e criao de ouvidorias). Infelizmente, a riqueza

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    da pauta no se fez acompanhar dos meios necessrios e suficientes para sua exe-cuo entendendo-se, nesse caso, os meios em sentido amplo: faltaram verbas, orientao poltica adequada, liderana e compromisso efetivos, e um plano sis-tmico, consistente, que garantisse uma distribuio de recursos correspondente s prioridades identificadas no diagnstico.

    Observe-se que, antes das movimentaes tmidas, porm inaugurais, do governo FHC, o campo da segurana pblica, no mbito da Unio, marcara-se por indiferena e imobilismo, resignando-se os gestores federais a dar continui-dade a prticas tradicionais, adaptando-as ao novo contexto democrtico, con-sagrado pela Constituio de 1988. As estruturas organizacionais, entretanto, permaneceram intocadas pelo processo de transio para a democracia, coroado pela promulgao da Carta Magna cidad. As autoridades que se sucederam limitaram-se a recepcionar o legado de nossa tradio autoritria, acriticamente, reproduzindo suas caractersticas bsicas, introduzindo meros ajustes residuais. Ou seja, as polcias e suas prticas deixaram de ser, ostensivamente, voltadas com exclusividade para a segurana do Estado, redirecionando-se, no perfunctrio, para a defesa dos cidados e a proteo de seus direitos sobretudo ao nvel do discurso oficial e dos procedimentos adotados nas reas afluentes das cidades. Todavia, a velha brutalidade arbitrria permaneceu como o trao distintivo do relacionamento com as camadas populares, em particular os negros, nas perife-rias e favelas. O mesmo se passou com o sistema penitencirio e os crceres, de um modo geral.

    Os tempos mudaram, o pas passou-se a limpo, em certo sentido, ade-quando-se nova ecologia poltica, ante a ascenso dos movimentos sociais e do associativismo, mas as instituies da segurana pblica preservaram seus obso-letos formatos com o ciclo de trabalho policial dividido, entre Polcia Militar e Polcia Civil , sua irracionalidade administrativa, sua formao incompatvel com a complexidade crescente dos novos desafios, sua antiga rivalidade mtua, seu isolacionismo, sua permeabilidade corrupo, seu desapreo por seus pr-prios profissionais, seu desprezo por cincia e tecnologia, e seus oramentos irrealistas, que empurravam os profissionais ao segundo emprego na segurana privada ilegal e em atividades nebulosas.

    Em uma palavra, a transio democrtica no se estendeu segurana p-blica, que corresponde a um testemunho vivo de nosso passado obscurantista e, do ponto de vista dos interesses da cidadania, ineficiente. Ainda que as reali-dades estaduais e regionais sejam muito diferentes, as instituies da segurana pblica tornaram-se, via de regra, parte do problema, em vez de soluo.

    Primeiro governo Lula: proposta audaciosa que a poltica abortouO primeiro mandato do presidente Lula teve incio sob o signo da espe-

    rana para a maioria da populao, e tambm para aqueles que se dedicavam segurana pblica e acreditaram nas promessas de campanha. Em fevereiro de 2002, Luiz Incio Lula da Silva, como pr-candidato Presidncia da Repblica

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    pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e presidente do Instituto Cidadania, acom-panhado dos coordenadores do Plano Nacional de Segurana Pblica,3 apresen-tou-o nao, no Congresso Nacional, ante a presena do ministro da Justia, Aloysio Nunes Ferreira, do presidente da Cmara, Acio Neves, e do presidente do Senado, Ramez Tebet.

    O Plano foi recebido com respeito at mesmo pelos adversrios polticos, porque, de fato, era ntido seu compromisso com a seriedade tcnica, repelia jar-ges ideolgicos, assumia posio eminentemente no-partidria e visava contri-buir para a construo de um consenso mnimo nacional, partindo do suposto de que segurana pblica matria de Estado, no de governo, situando-se, portanto, acima das querelas poltico-partidrias. Sagrado candidato, Lula in-corporou o Plano a seu Programa de Governo.

    O Plano Nacional de Segurana Pblica foi elaborado no mbito do Ins-tituto Cidadania, ao longo de mais de um ano de trabalho, tendo-se ouvido gestores, pesquisadores, especialistas e profissionais das mais diversas instituies e regies do pas, formados nas mais diferentes disciplinas, alm de lideranas da sociedade, em todo o pas. Os coordenadores tambm buscamos incorporar, na medida do possvel, as experincias bem-sucedidas, nacionais e internacionais. Eleito Lula, coube Secretaria Nacional de Segurana Pblica, rgo do Minis-trio da Justia, aplicar o Plano, o que comeou a ser feito, at que sucessivos sinais foram deixando clara a indisposio do governo para levar adiante a inte-gralidade dos compromissos assumidos.

    O autor foi secretrio nacional de Segurana Pblica de janeiro a outubro de 2003, tendo-lhe cabido colocar em marcha as primeiras etapas do Plano, nomeadamente:

    1. Construir um consenso com os governadores em torno do prprio Pla-no, de suas virtudes, sua convenincia, sua oportunidade, sua viabilidade, demonstrando os benefcios que proporcionaria para o conjunto do pas e para cada estado, em particular, se fossem feitos os esforos necessrios, em moldes cooperativos, suprapartidrios, republicanos, para que se supe-rassem as resistncias corporativas, as limitaes materiais, as dificuldades operacionais e de gesto, e se implementassem as medidas propostas. Mo-dular em sua estrutura, o Plano deveria ser implantado etapa por etapa, o que implicaria era a prospeco otimista que fazamos afirmao progressiva da tendncia a que se ampliassem as bases de apoio ao prprio plano, gradualmente, nas polcias e na sociedade.

    2. Os pontos fundamentais do acordo a celebrar seriam a normatizao do Sistema nico de Segurana Pblica (Susp) e a desconstitucionalizao das polcias.

    3. Aos governos estaduais e federal caberia instalar Gabinetes de Gesto In-tegrada da Segurana Pblica, um em cada estado, que funcionaria como brao operacional do Susp e comearia a trabalhar com base no entendi-mento poltico, antes mesmo da normatizao que o institucionalizaria.

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    O GGI seria um frum executivo que reuniria as polcias, de todas as instncias, e, mediante convite, as demais instituies da Justia criminal. As decises seriam tomadas apenas por consenso, para que se eliminasse o principal bice para a cooperao interinstitucional: a disputa pelo co-mando. Como se constatou haver ampla agenda consensual, para aes prticas, na rea da Segurana Pblica, no se temeu a paralisia pelo veto. Observe-se que os GGI comearam a operar, imediatamente, e, nos raros Estados em que, nos anos seguintes, no foram esvaziados pelo boicote poltico, renderam frutos e demonstraram-se formatos promissores.

    4. Cumpriria ao governo federal, por sua vez, no contingenciar os recur-sos do Fundo Nacional de Segurana Pblica, em 2003; e aument-lo, consideravelmente, nos anos subseqentes razo pela qual foi iniciada negociao com o Banco Mundial e o BID, visando um aporte a juros sub-sidiados de U$ 3,5 bilhes, por sete anos. O Fundo Nacional de Segurana seria aceito pelos credores como a contrapartida do governo federal.

    5. Tambm competiria ao governo federal enviar ao Congresso Nacional a emen-da constitucional da desconstitucionalizao das polcias e, como matria in-fra-constitucional, a normatizao do Sistema nico de Segurana Pblica.

    6. Uma vez endossados os termos do acordo com os 27 governadores, o pre-sidente os convocaria para a celebrao solene do Pacto pela Paz, reiteran-do, politicamente, o compromisso comum com a implantao do Plano Nacional de Segurana Pblica.

    Estivemos muito prximos de alcanar o entendimento nacional em tor-no das reformas, uma vez que os governadores se dispuseram a colaborar, en-dossando a carta de adeso que foi submetida apreciao de cada um. Entre-tanto, o presidente Lula, para surpresa dos que construam o consenso por meio de delicadas negociaes, no confirmou a participao do governo no Pacto Nacional. No chegou a haver, portanto, o passo nmero seis. Se o presidente tivesse convocado os governadores para a celebrao do Pacto, completaramos as etapas quatro e cinco, quase automaticamente, sem maiores traumas a des-peito de dificuldades naturais, mas, certamente, superveis, considerando-se a fora poltica, ento, do presidente, alm da liderana dos governadores.

    O presidente reviu sua adeso ao Plano e desistiu de prosseguir no cami-nho previsto, porque percebeu na interlocuo com a instncia que, po-ca, se denominava ncleo duro do governo que faz-lo implicaria assumir o protagonismo maior da reforma institucional da segurana pblica, no pas, ou seja, implicaria assumir a responsabilidade pela segurana, perante a opinio pblica. E isso o exporia a riscos polticos, pois a responsabilidade por cada problema, em cada esquina, de cada cidade, lhe seria imputada. O desgaste seria inevitvel, uma vez que os efeitos prticos de uma reorganizao institucional s se fariam sentir a longo prazo.

    Dada a contradio, no Brasil, entre o ciclo eleitoral (bienal, posto que os detentores de cargos executivos engajam-se, necessariamente, nas disputas

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    para as outras esferas federativas) e o tempo de maturao de polticas pblicas de maior porte e vulto (aquelas mais ambiciosas, que exigem reformas e ferem interesses, provocando, em um primeiro momento, reaes negativas e efeitos desestabilizadores), torna-se oneroso, politicamente, arcar com o risco das mu-danas, e, portanto, do ponto de vista do clculo utilitrio do ator individual, torna-se irracional faz-lo.

    Assim, em 2003, chegamos a um acordo nacional em torno de transfor-maes significativas e criamos uma nova agncia operacional, os GGI, mas os resultados se perderam em decorrncia da alterao de rota no ministrio da Justia e no Planalto.

    As caractersticas elementares do Plano Nacional de Segurana Pblica do primeiro mandato do presidente Lula eram originais: tratava-se de um conjunto de propostas articuladas por tessitura sistmica, visando a reforma das polcias, do sistema penitencirio e a implantao integrada de polticas preventivas, inter-setoriais. Em outras palavras, compreendia-se que alteraes tpicas produzem efeitos sobre os demais componentes do universo contemplado e que uma trans-formao suficiente para impactar a realidade da violncia criminal requer mu-danas simultneas e sucessivas, em nveis distintos e escalas diferentes, respeitan-do-se as lgicas e os ritmos especficos. Sobretudo, trabalhava-se com a convico de que a consistncia interna e a objetividade de um Plano dependem do rigor do diagnstico e de sua abrangncia, assim como o sucesso de sua implementao depende de avaliaes regulares e monitoramento sistemtico, identificando-se os erros para que no haja o risco de que se o repita, indefinidamente.

    Os focos sobre os quais incidiria o programa de reforma das polcias se-riam: recrutamento, formao, capacitao e treinamento; valorizao profissio-nal; gesto do conhecimento e uniformizao nacional das categorias que orga-nizam os dados, para que eles possam funcionar como informao; introduo de mecanismos de gesto, alterando-se funes, rotinas, tecnologia e estrutura organizacional; investimento em percia; articulao com polticas preventivas; controle externo; qualificao da participao dos municpios, via polticas pre-ventivas e Guardas Municipais, preparando-as para que se possam transformar, no futuro prximo, em polcias de ciclo completo, sem repetir os vcios das polcias existentes; investimento em penas alternativas privao da liberdade e criao das condies necessrias para que a Lei de Execues Penais (LEP) seja respeitada no sistema penitencirio.

    A normatizao do Susp no seria seno a definio legal das regras de funcionamento dos tpicos referidos. Assim, o Susp no implicaria a unificao das polcias, mas a gerao de meios que lhes propiciassem trabalhar cooperati-vamente, segundo matriz integrada de gesto, sempre com transparncia, con-trole externo, avaliaes e monitoramento corretivo. Nos termos desse modelo, o trabalho policial seria orientado prioritariamente para a preveno e buscaria articular-se com polticas sociais de natureza especificamente preventiva.

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    Paralelamente aludida institucionalizao do Susp, o Plano Nacional de Segurana Pblica do primeiro mandato do presidente Lula propunha a des-constitucionalizao das polcias, o que significa a transferncia aos Estados do poder para definirem, em suas respectivas constituies, o modelo de polcia que desejam, precisam e/ou podem ter. Sendo assim, cada estado estaria autorizado a mudar ou manter o status quo, conforme julgasse apropriado. Isto , poderia manter o quadro atual, caso avaliasse que a ruptura do ciclo do trabalho policial, representada na organizao dicotmica, Polcia Militar-Polcia Civil, estivesse funcionando bem. Caso contrrio, se a avaliao fosse negativa caso se consta-tasse desmotivao dos profissionais e falta de confiana por parte da populao, ineficincia, corrupo e brutalidade , mudanas poderiam ser feitas e novos modelos seriam experimentados. Por exemplo, a unificao das atuais polcias estaduais; ou a criao de polcias metropolitanas e municipais (pelo menos nos municpios maiores) de ciclo completo; ou a diviso do trabalho entre polcias municipais, estaduais e federais, de acordo com a complexidade dos crimes a se-rem enfrentados, sabendo-se, entretanto, que todas atuariam em regime de ciclo completo, ou seja, investigando e cumprindo o patrulhamento uniformizado.

    O Brasil uma Repblica federativa; uma nao continental, marcada por profundas diferenas regionais. Solues uniformes no so necessariamente as melhores. Alm disso, solues uniformes acabam se defrontando com a pol-tica de veto, praticada por estados que no tm condies polticas de promover mudanas em suas polcias ou por aqueles que consideram contraproducente faz-lo. Esse contexto conduz paralisia e torna os estados que precisam de transformaes urgentes e profundas refns dos que optam pela manuteno do status quo. Observe-se que, segundo o que dispe o Plano Nacional de Segu-rana em pauta, em caso de mudanas, os policiais seriam aproveitados nas no-vas instituies, passando por processos de requalificao, desde que suas fichas profissionais recomendassem o aproveitamento.

    Sempre segundo o Plano Nacional do primeiro mandato de Lula, des-constitucionalizao no implicaria confuso quanto a princpios matriciais, na definio do prprio papel e da prpria natureza das polcias no Estado Demo-crtico de Direito. Os princpios elementares manter-se-iam na Constituio Federal. Os modelos organizacionais que passariam a ser definidos pelos esta-dos. A possibilidade de que o Brasil ingressasse em uma fase de intenso experi-mentalismo tida como muito auspiciosa e em nada conducente ao caos, a mais fragmentao e a mais ineficincia do que se verifica, atualmente. Isso porque a desconstitucionalizao dar-se-ia simultaneamente normatizao do Susp,processo que compensaria a flexibilizao federativa, posto que fixaria regras aplicveis a todas as polcias existentes ou por criar. Hoje, vigora a fragmentao bablica na formao, na informao, na gesto, nos abismos que separam as instituies da Unio e dos estados e mesmo essas, em seus respectivos mbi-tos de atuao. O Susp significaria ordenamento do caos e gerao de condies para a efetiva cooperao, horizontal e vertical.

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    A armadilha poltica descrita antes, fruto da contradio entre o ciclo elei-toral e o tempo de maturao de polticas pblicas reformistas, terminou levan-do o governo federal a aposentar, precocemente, seus compromissos ambiciosos na segurana pblica: o Plano Nacional foi deslocado, progressivamente, do centro da agenda do Ministrio da Justia, e substitudo, gradualmente, por aes da Polcia Federal, que passaram a emitir para a sociedade a mensagem de atividade competente e destemida, na contramo de nossa tradicional e corro-siva impunidade. No preciso ponderar, entretanto, que, por mais virtuosas que tenham sido as operaes da Polcia Federal surgiram questionamentos pertinentes quanto consistncia de algumas e ao carter miditico de muitas delas , aes policiais no podem substituir uma Poltica de Segurana Pbli-ca. Sobretudo em uma situao como a brasileira, marcada por fragmentao institucional e pela incompatibilidade entre o modelo herdado da ditadura e os desafios crescentes de uma sociedade que se complexifica e transnacionaliza, em contexto democrtico, mas profundamente desigual.

    Restaram, como contribuies mais significativas para a segurana pblica, na esfera da Unio, os esforos envidados pela Senasp em favor da qualificao policial, com cursos a distncia e presenciais (esforos necessrios mas insuficien-tes, porque teriam de ser acompanhados pela criao de um ciclo bsico nacional comum para todos os profissionais da segurana pblica e pela criao de um Conselho Federal de Educao Policial, com independncia de governos e ca-pacidade amplamente reconhecida, para avaliar, monitorar, orientar mudanas, discutir procedimentos e questionar metodologias, luz do conhecimento pro-duzido no pas e no exterior), e aqueles envidados em favor do desarmamento, cujo impacto, segundo alguns analistas, teria reduzido os homicdios dolosos no pas. O resultado do referendo, entretanto, favorvel comercializao de armas, freou o mpeto inicial do movimento, que unia polcias e expressivos segmentos da sociedade.

    Dois importantes compromissos originais do Plano Nacional de SeguranaPblica, com o qual o presidente Lula inaugurou seu primeiro mandato, foram descartados: a elevao do status da Senasp para o nvel ministerial, tornando-a uma Secretaria Especial, diretamente ligada Presidncia da Repblica, para cujo mbito seriam transferidas ambas as polcias federais; e o deslocamento da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) para a reforada Senasp (ou para o Mi-nistrio da Justia, ou da Sade).

    Segundo governo Lula: retomando compromissos,ampliando repertrios, adiando questes polmicasEm 20 de agosto de 2007, o governo federal lanou o Programa Nacional

    de Segurana Pblica com Cidadania (Pronasci), pela Medida Provisria 384,comprometendo-se a investir R$ 6,707 bilhes, at o fim de 2012, em um con-junto de 94 aes, que envolvero dezenove ministrios, em intervenes articu-ladas com estados e municpios.

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    Do ponto de vista dos princpios matriciais, o Pronasci reitera o Plano Na-cional de Segurana Pblica do primeiro mandato do presidente Lula, o qual, por sua vez, incorporava, sistematizava e explicitava o que j estava, embrionria ou tacitamente, presente no Plano Nacional do governo Fernando Henrique Cardoso. Isso mostra que, a despeito das diferenas e da precariedade do tra-tamento conferido questo dos princpios, no plano do governo FHC, tem havido mais continuidade do que descontinuidade entre os esforos sucessivos, que j formam uma srie histrica to mais relevante quo mais se distingue do perodo anterior, ainda fortemente marcado por reverente omisso, relativa-mente rea tabu da Segurana Pblica.

    Os valores consensuais em pauta que o Pronasci endossa e enfatiza so os seguintes: direitos humanos e eficincia policial no se opem; pelo contr-rio, so mutuamente necessrios, pois no h eficincia policial sem respeito aos direitos humanos, assim como a vigncia desses direitos depende da garantia oferecida, em ltima instncia, pela eficincia policial. Tampouco pertinente opor preveno a represso qualificada; ambas as modalidades de ao do Estadoso legtimas e teis, dependendo do contexto. Polcia cumpre papel histrico fundamental na construo da democracia, cabendo-lhe proteger direitos e li-berdades. Nesse sentido, empregar a fora comedida, proporcional ao risco re-presentado pela resistncia alheia autoridade policial, impedindo a agresso ou qualquer ato lesivo a terceiros, no significa reprimir a liberdade de quem perpe-tra a violncia, mas preservar direitos e liberdades das vtimas potenciais. Assim,aprimoramento do aparelho policial e aperfeioamento da educao pblica no devem constituir objetos alternativos e excludentes de investimento estatal. Nose edifica uma sociedade verdadeiramente democrtica sem igualdade no acesso Justia, a qual depende da qualidade e da orientao das polcias (e das demais instituies do sistema de Justia criminal) e da eqidade no acesso educao.

    O Pronasci tem tambm o mrito de valorizar a contribuio dos municpios para a segurana pblica, rompendo os preconceitos restritivos, oriundos de uma leitura limitada do artigo 144 da Constituio contribuio que no se esgota na criao de Guardas Civis; estende-se implantao de polticas sociais preventivas.

    Outro princpio essencial, explicitamente retomado pelo Pronasci do Pla-no lanado por Lula em 2002, afirma que segurana matria de Estado, no de governo, situando-se, portanto, acima das disputas poltico-partidrias.

    Comparando-se os planos dos dois mandatos do presidente Lula, eviden-ciam-se algumas diferenas expressivas: em favor do Pronasci, destaque-se a edi-o de Medida Provisria que o institui, o que implica, entre outras vantagens, envolvimento formal do governo com sua implantao e fortalecimento poltico dos agentes responsveis por essa implantao. Os operadores trabalham sob constante tenso e insegurana, quando o plano a que servem e que se esforam por implementar s encontra como sustentao a palavra do lder, s vezes eva-siva e puramente retrica.

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    Ainda a favor do Pronasci, registre-se a importncia da explicitao dos recursos a serem destinados sua implementao, em seis anos (2007-2012), oque, por sua vez, importa em um benefcio adicional: o comprometimento do prximo governo, pelo menos em sua primeira metade, com a continuidade dos trabalhos e o cumprimento das metas previstas.

    Especialmente positiva tambm a identificao da instituio responsvel pela avaliao do programa, assim como a designao de agentes locais de ava-liao o que significa que haver investimento na construo de indicadores e no desenvolvimento de mtodos de avaliao. Da talvez venha a derivar uma dinmica que dissemine uma nova cultura institucional, ainda inexistente na rea da Segurana Pblica, como vimos, no s por conta de todas as dificuldades apontadas na primeira unidade do presente ensaio, mas tambm e, sobretudo, pela ausncia de mecanismos institucionais indispensveis a uma gesto racional, nas polcias: tecnologia, funes e rotinas, estrutura organizacional compatvel, qualificao de pessoal.

    Mas no houve somente avanos. Eis alguns pontos do Pronasci que re-presentam retrocesso, relativamente ao Plano de Segurana com o qual o presi-dente Lula venceu a eleio de 2002: (a) em vez de unidade sistmica, fruto de diagnstico que identifica prioridades e revela as interconexes entre os tpicos contemplados pelo plano, tem-se a listagem de propostas, organizadas por cate-gorias descritivas (em si mesmas discutveis) mas essencialmente fragmentrias e

    Membros da Fora Nacional de Segurana Pblica tomam posio durante operao para apreenso de drogas na favela da Grota, Complexo do Alemo, subrbio do Rio de Janeiro.

    Foto Sergio Moraes/Agncia Reuters - 13.6.2007

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    inorgnicas, isto , desprovidas da vertebrao de uma poltica; (b) O envolvi-mento de um nmero excessivo de ministrios lembra o Piaps, com seus mritos e suas dificuldades. A inteno excelente, mas o arranjo no parece muito rea-lista, sabendo-se quo atomizada nossa mquina pblica, e quo burocrticos e departamentalizados so os mecanismos de gesto; (c) A nica referncia regulamentao do Sistema nico de Segurana Pblica (Susp) brevssima, su-perficial, pouco clara, e sugere uma compreenso restrita, reduzindo-o dimen-so operacional: O Pronasci ir regulamentar o Sistema nico de SeguranaPblica (SUSP), j pactuado entre estados e Unio, mas ainda no institudo por lei. O SUSP dispe sobre o funcionamento dos rgos de segurana pblica. Seuobjetivo articular as aes federais, estaduais e municipais na rea da SeguranaPblica e da Justia Criminal (Documento do Ministrio da Justia, intitulado Pronasci); (d) O tema decisivo, as reformas institucionais, no sequer men-cionado provavelmente por conta de seu carter politicamente controvertido (dada a indefinio das lideranas governamentais a respeito do melhor modelo a adotar) e de seu potencial desagregador, derivado das inevitveis reaes cor-porativas que suscitaria. Assim, com o Susp anmico e sem o seu complemento institucional a desconstitucionalizao ou alguma frmula reformista, ao nvel das estruturas organizacionais , o status quo policial e, mais amplamente, o qua-dro fragmentrio das instituies da segurana pblica acabam sendo assimila-dos. Desse modo, naturaliza-se o legado da ditadura, chancelando-se a transio incompleta como a transio possvel. O Pronasci resigna-se a ser apenas um bom Plano destinado a prover contribuies tpicas.

    Examinemos as categorias com as quais o Pronasci formulado. As duas categorias ordenadoras denominam-se Aes estruturais e Programas lo-cais. A categoria Aes estruturais subsume os seguintes eixos temticos: Modernizao das instituies de segurana pblica e do sistema prisional; Valorizao dos profissionais de segurana pblica e agentes penitencirios; Enfrentamento corrupo policial e ao crime organizado; Programas lo-cais estes ltimos subdividem-se em: Territrio de paz; Integrao do jovem e da famlia; Segurana e convivncia.

    No primeiro eixo das Aes estruturais, denominado, como vimos, Modernizao das instituies de segurana pblica e do sistema prisional, encontramos os seguintes tpicos: (a) Fora Nacional de Segurana Pblica em que se diz quando foi criada, de quantos profissionais composta, para que serve, e que ganhar sede prpria, em Braslia, onde ficaro 500 agentes, em condies de pronto-emprego, mediante solicitao dos governadores; (b) Polcia Rodoviria Federal em que se fazem breves referncias a melhorias, em um pargrafo; (c) Vagas em presdios em que se prometem 37,8 mil no-vas vagas, at 2011, e a construo de presdios para jovens entre 18 e 24 anos; (d) Lei Orgnica das Polcias Civis em que no se especifica o contedo da Lei Orgnica em questo; (e) Regulamentao do Susp (j comentado); (f) Lei Maria da Penha (proteo mulher) em que se promete a construo

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    de centros de educao e reabilitao para agressores; (g) Escola Superior da Polcia Federal; (h) Campanha de desarmamento.

    No segundo eixo, Valorizao dos profissionais de segurana pblica e agentes penitencirios, incluem-se: (a) Bolsa-formao; (b) Moradia; (c) Rede de educao a distncia; (d) Graduao e mestrado; (e) Formao dos agentes penitencirios; (f) Atendimento a grupos vulnerveis em que se explicita o compromisso de formar os profissionais da segurana a tratarem de maneira adequada e digna mulheres, homossexuais, afro-descendentes e outras minorias; (g) Jornadas de direitos humanos; (h) Tecnologias no-letais; (i) Comando de incidentes; (j) Inteligncia; (l) Investigao de crimes; (m) Guardas Municipais; (n) Policiamento comunitrio.

    No terceiro eixo, Enfrentamento corrupo policial e ao crime organi-zado, constam: (a) Laboratrios contra lavagem de dinheiro; (b) Ouvido-rias e corregedorias; (c) Trfico de pessoas.

    No primeiro eixo temtico subsumido pela segunda categoria, Progra-mas locais, denominado Territrio de paz, esto os seguintes tpicos: (a) Gabinetes de Gesto Integrada Municipal; (b) Conselhos Comunitrios de Segurana Pblica; (c) Canal Comunidade.

    No segundo eixo temtico, Integrao do jovem e da famlia, incluem-se: (a) Mes da paz; (b) Sade da famlia; (c) Formao do preso; (d) Pintando a liberdade e pintando a cidadania.

    No terceiro eixo, Segurana e convivncia, encontram-se: (a) Urbani-zao; (b) Projetos educacionais; (c) Atividades culturais.

    As apresentaes dos itens so sumarssimas. Portanto, no seria justo ava-li-las pelo documento divulgado. Ser necessrio aguardar a apresentao do Pronasci, em sua verso completa e definitiva. Saltam vista, entretanto, des-de logo, alguns aspectos, positivos e negativos. So extremamente positivos os pontos focalizados, em si mesmos. Todos so relevantes, ainda que alguns sejam muito importantes do que outros, at porque constituem precondies para a realizao dos demais. Todavia, o carter assistemtico do Programa, concebido como uma listagem de tpicos e compromissos que mal se adaptam s catego-rias ordenadoras escolhidas ou que o fazem com heterogeneidades e assimetrias, acaba provocando redundncias e lapsos ou seja, no se indicam os passos que completaro as iniciativas anteriores, para torn-las efetivas, uma vez que, muitas delas vale reiterar , mesmo quando virtuosas em si mesmas, podem condenar-se ineficcia se no forem acompanhadas de outras medidas e reformas.

    Cito apenas alguns exemplos, que poderiam se multiplicar: mencionam-se as duas polcias federais, afirmando-se compromisso com aes destinadas a pro-mover aprimoramentos tpicos. Contudo, nada se diz sobre suas inter-relaes e sobre as relaes de ambas com a Senasp, assim como nada se diz sobre a re-lao desse conjunto institucional com as polcias estaduais. Tampouco se iden-tificam critrios para distribuio dos recursos do Fundo Nacional de Segurana

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    Pblica, nem h o reconhecimento de que as polcias federais, tanto quanto as estaduais, permanecem desprovidas de mecanismos de avaliao, monitoramen-to e controle externo.

    Os seis eixos do Susp no so reconhecidos como alvos estratgicos de in-tervenes sistmicas e modulares: formao, informao, gesto, percia, con-trole externo e articulao com as polticas sociais. Por isso, o Pronasci elencapropostas em vrias dessas reas, mas no o faz de forma estruturada: refere-se, por exemplo, a cursos diversos, mas no substituio da atual fragmentao bablica que se verifica no setor, atualmente, por um modelo nacional, respei-toso da diversidade regional e da autonomia federativa, mas integrador. Sobre o futuro das Guardas Municipais, o documento omisso. Apenas defende a valorizao e qualificao das Guardas, atribuindo-lhes vocao para a preven-o, mas no assume posio na polmica sobre o destino institucional dessas corporaes: h dezenas de projetos de emenda constitucional, no Congresso Nacional, que propem sua transformao em polcias ostensivas, uniformizadas e armadas.

    Essa mudana de status desejvel sem que as Guardas se submetam a intensa preparao e profunda reorganizao, para que essas futuras polcias municipais no reproduzam os vcios das PM? A ruptura do ciclo de trabalho policial deveria ser replicada na esfera municipal, ou seja, as Guardas deveriam ser pequenas PM? Ou deveramos aproveitar a oportunidade histrica de uma renovao institucional desse porte para superar a dicotomia que, hoje, divide o trabalho policial entre as polcias civil e militar, nos estados? Por que no Guar-das Civis municipais como polcias de ciclo completo, ainda que se lhes preser-vem a vocao comunitria e preventiva?

    Eis a, portanto, razes para otimismo e para cautela. Os mritos do Pro-nasci so suficientes para justificar a esperana de que haver avanos na seguran-a pblica brasileira. Mas no parecem suficientes para justificar a esperana de que o pas comear, finalmente, a revolver o entulho autoritrio que atravanca o progresso na rea, com sua carga de irracionalidade e desordem organizacional, incompatveis com funes to importantes, exigentes e sofisticadas, em uma sociedade cada vez mais complexa, na qual o crime cada vez mais se organiza, se nacionaliza e se transnacionaliza. Por outro lado, considerando-se a virtude dos compromissos j firmados pelo ministro da Justia, Tarso Genro, atravs da edio do Pronasci, com todo o seu potencial para produzir bons resultados ainda que parciais e insuficientes , h bons motivos para crer que o processo poder fortalecer sua liderana e criar condies polticas mais favorveis para a assuno dos riscos envolvidos na reformas mais ousadas.

    Notas

    1 O vero muda hbitos, aumenta o nmero de encontros sociais em espaos pblicos, o que tende a elevar a possibilidade de conflitos e a exposio a riscos o mesmo vale, internamente ao ciclo semanal, para os finais de semana.

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    2 Quando comparado a outros recortes diacrnicos, isto , a outros perodos similares de tempo, o aumento observado pode revelar-se, de fato, uma reduo do crescimento que seria esperado se o padro histrico previamente fixado se mantivesse.

    3 Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano, Roberto Aguiar e o autor do presente ar-tigo.

    RESUMO O artigo descreve as sucessivas tentativas de formular e implantar polticas de segurana pblica, em mbito nacional, por meio da elaborao de planos, buscando-se compreender seus principais movimentos: avanos e recuos, presses e reaes, a indu-o e as negociaes que marcaram a experincia recente dos diversos atores relevantes. O perodo coberto corresponde aos dois governos Fernando Henrique Cardoso, ao pri-meiro mandato do presidente Lula e s novas propostas recentemente anunciadas pelo Programa Nacional de Segurana com Cidadania (Pronasci), no oitavo ms do segundo mandato. Para contextualizar o exame dos planos e do processo poltico envolvido, so analisadas as dificuldades implicadas na definio de critrios, mtodos e mecanismos de avaliao e monitoramento de polticas de segurana pblica e da performance policial.PALAVRAS-CHAVE: Avaliao e monitoramento de polticas de segurana pblica e de per-formance policial, Planos nacionais de segurana, Direitos humanos, Violncia, Crimi-nalidade, Corrupo e brutalidade policiais, Obstculos polticos para a reforma das polcias, Polcia e democracia, Transio incompleta, Agenda futura.

    ABSTRACT This paper describes the successive attempts of formulating and mplement-ing public security policies through the elaboration of plans in Brazil. It seeks to un-derstand their main movements: advances and retreats, pressures and reactions, as well as the induction and the negotiations that have characterized the recent experience of their several relevant agents. The analyzed period covers both terms of former President Fernando Henrique Cardosos administration, President Luiz Incio Lula da Silvasfirst government and the new proposals announced by the National Public Security and Citizenship Program (Pronasci) in the eighth month of his second term in office. In order to contextualize the assessment of the plans and of the political process involved, the paper analyzes the difficulties derived from the definition of criteria, methods and mechanisms of evaluation and monitoring of public security policies and police perfor-mance.KEYWORDS: Evaluation and monitoring of public security policies and police performan-ce, National public security plans, Human rights, Violence, Criminality, Police cor-ruption and brutality, Political obstacles to the police reform, Police and democracy, Incomplete transition, Future agenda.

    Luiz Eduardo Soares professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing, secretrio de Valorizao da Vida e Preveno da Violncia do Municpio de Nova Iguau, RJ. Seus ltimos livros so: Meu Casaco de General: 500 dias no front da seg-urana pblica do estado do Rio de Janeiro (Cia. das Letras, 2000); Cabea de Porco,com MV Bill e Celso Athayde (Objetiva, 2005); Elite da tropa, com Andr Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006); Legalidade libertria (Lmen-Juris, 2006); e Segurana tem sada (Sextante, 2006). @ [email protected]

    Recebido em 7.9.2007 e aceito em 10.9.2007.