SEGURANc;:A, TERRITÓRIo, POPUlA

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  • Paul-Michel Foucault nasceu ero Potiers, Franca. ero 15de outubro de 1926. Em 1946 ingressa na cole Normale Sup-rieure, onde conhece e mantm contato com Pierre Bourdieu,Jean-Paul Sartre, Paul Veyne, entre outros. Em 1949, conclui sualicenciatura em psicologia e recebe seu Diploma em EstudosSuperiores de Filosofia, com urna tese sobre Hegel, sob a orien-ta~;:o de [ean Hyppolite. Morre em 25 de junho de 1984.

    Michel Foucault

    Seguranca, Territrio,Populaco

    Curso dado no College de France (1977-1978)

    Edif;ao estabelecida por Michel Senel1artsob a dreco de

    Francois Ewald e Alessandro Fontana

    'IraducoEDUAROO BRANDAo

    Revso da traducoCLAUDIA BERUNER

    Martins Fontessao Paulo 2008

  • Estaobrafoi publicada origina/mente erojrancis como ttuloSCURIT, TERRITOIRf,POPULATION

    porditiotls du Seuil, Pars,Ccrpyright Seuil/Gal1imard, 2004.

    EdifOO esta/Jeledda porMichelSeneIlart soba dirq:4o (! Fratlfois Ea/de Alessandro Pontana.

    Copyright 2008, Livraria Martins Fon/es Editora Ltda.,SW Paulo, paraa presente edifiJO.

    NDICE

    1~ edio;io 2008

    Traduo;ioEDUARDO BRANDAo

    Revisio da traduo;ioClaudia Beniner

    Acompanhamenlo editorialMariaFernanda Alvares

    Revis6es plicasAndraStahelM. da Silva

    So/ange MartitlsDinar/eZorzanellida Silva

    Produo;io grficaGeraldo Alves

    Paginao;iolFotolitosStudio 3 Desenvolvimento Editorial

    Nota XIII

    Dados Intel'nadonais de Catalogao;lo na Publica'jio (al')(Cimal'a Brasileka do Livro, sp,Brasil)

    AULAS, ANO 1977-1978

    ndices para catlogo sistemtico:1. O Estado: Filosofa: Ciencia poltica 320.101

    Titulo original: Scurit, territoire, populationBibliografia.ISBN978-85-336-2377-4

    1. Ciencia poltica ~ Filosofia 2. O Estado 3. Poder (Cien-cias sociais) 4. Razo de Estado 1.Senellart, Michel. Il. Ewald,Francois. m. Fontana, Alessandro. IV.Titulo. V. Srie.

    Poucault, Mcbel, 1926-1984.Seguranca, territrio, populaco : curso dado no College

    de France (1977-1978) / Michel Foucault; edico estabelecidapor Michel Senellart sob a direcc de Francois Ewald e AJes-sandro Fontana; traduco Eduardo Brandao; revisc da tra-ducac Claudia Berliner. - sao Paulc : Martns Fontes, 2008.-(Coleco tpicos)

    3Aula de 11 dejaneiro de 1978 .Perspectivageral do curso: o estudo do biopoder.- Cinco proposices sobre a anlise dos meca-nismos de poder. - Sistema legal, mecanismosdisciplinares e dispositivos de seguranca. Doisexemplos: (a) a punico do roubo; (b)o tratamen-to da lepra, da peste e da varola, - Caractersti-cas gerais dos dispositivos de seguranca (I): osespa~os de seguran~a. - O exemplo da cidade. -Tres exemplos de organzaco do espaco urbanonos sculos XVI e XVll: (a) La Mtropolite deAlexandre Le Maitre (1682); (b) a cidade de Ri-chelieu; (c)Nantes.

    COD-320.10107-4435

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    Aula de 18 dejaneiro de 1978 .Caractersticas gerais dos dispositivos de segu-ranca (lI): a relaco com o acontecimento: a arte

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  • de governar e o tratamento do aleatrio. - O pro-blema da escassez alimentar nos sculos XVII eXVIll. - Dos mercantilistas aos fisiocratas, - Di-ferencas entre dispositivo de seguranca e meca-nismo disciplinar na maneira de tratar o aconte-cimento. - A nova racionalidade governamentale a emergencia da "populaco". - Concluso so-bre o liberalismo: a liberdade como ideologia etcnica de governo.

    Aula de 25 dejaneiro de 1978.......................................... 73Caractersticas gerais dos dispositivos de segu-ranca (III): a normalizaco. - Normaco e nor-malizaco, - O exemplo da epidemia (a varola)e as campanhas de inoculaco do sculo XVIll. -Emergencia de novas noces: caso, risco, pergo,crise. - As formas de normalzaco na disciplinae nos mecanismos de seguranca. - Implantacode urna nova tecnologia poltica: o governo daspopulaces, - O problema da populaconos mer-cantilistas e nos fisiocratas. - A populaco comooperadora das transformaces nos saberes: daanlise das riquezas aeconomia poltica, da his-tria normal abologa, da gramtica geral afilo-logia histrica.

    Aula de 1.' defevereiro de 1978........................................ 117O problema do "governo" no sculo XVI.- Mul-tiplicidade das prticas de governo (governo desi, governo das almas, governo dos flhos, etc.).-O problema especfico do governo do Estado. -O ponto de repulso da literatura sobre o gover-no: O principe, de Maquiavel. - Breve histria darecepco do Prncipe, at o sculo XIX. - A artede governar, distinta da simples habilidade doprncipe. - Exemplo dessa nova arte de governar:O espe/ho poltico de Guil1aume de La Perrere

    (1555). - Um governo que encontra seu fim nas"coisas" a dirigir. - Regressiio da lei em benef-cio de tticas diversas. - Os obstculos histricose institucionais aaplicaco dessa arte de gover-nar at o sculo XVIll. - O problema da popula-,ao, fator essencial do desbloqueio da arte degovernar. - O tringulo govemo-populaco-eco-nomia poltica. - Quest6es de mtodo: o projetode urna histria da "governamentalidade". A su-pervalorzaco do problema do Estado.

    Aula de 8 defevereiro de 1978......................................... 155Por que estudar a governamentalidade? - Oproblema do Estado e da populaco. - Relem-brando o projeto geral: triplice deslocamento daanlise em relaco (a) ansttuco, (b) afunco,(e) ao objeto. - Objeto do curso deste ano. - Ele-mentos para urna histria da noco de "gover-no". Seu campo semntico do sculo XIII aosculo XV. - A idia de governo dos homens. Suasfontes: (A) A organzaco de urn poder pastoralno Oriente pr-cristo e cristo. (8) A dreco deconsciencia. - Primeiro esboce do pastorado.Suas caractersticas especficas: (a) ele se exercesobre urna multiplicidade em movimento; (b) urn poder fundamentalmente benfico que tempor objetivo a salvacodo rebanho; (e) urn po-der que individualiza. Omnes et singulatim. O pa-radoxo do pastor. - A instituconalzaco do pas-torado pela Igreja crist,

    Aula de 15 defevereiro de 1978....................................... 181Anlise do pastorado (continuaco). - O proble-ma da relaco pastor-rebanho na literatura e nopensamento grego: Homero, a tradico ptagr-ca. Raridade da metfora do pastor na literaturapoltica c1ssica (Iscrates, Demstenes). - Urna

  • exceco maior: o Poiitico de Plato, O uso da me-tfora nos outros textos de Plato (Crtias, Leis,Repblica). A crtica da idia de urn magistrado-pastor no Poltico. A metfora pastoral aplicadaao mdico, ao agricultor, ao ginasta e ao pedago-go. - A histria do pastorado no Ocidente comomodelo de governo dos homens indissociveldo cristianismo. Suas transformaces e suas cri-ses at o sculo XVITI. Necessidade de urna his-tria do pastorado. - Caractersticas do "governodas almas": poder gIobalizante, coextensivo aorganzaco da Igreja e distinto do poder polti-co.- O problema das relaces entre poder polticoe poder pastoral no Ocidente. Cornparaco coma tradco russa.

    Aula de 22 defevereiro de 1978....................................... 217Anlise do pastorado (fim). - Especificidade dopastorado crsto em relaco as tradces orien-tal e hebraica. - Urna arte de governar os ho-mens. Seu papel na histria da governamentali-dade. - Principais caractersticas do pastoradocristo do sculo III ao sculo VI (sao Joao Cri-sstomo, sao Cprano, santo Ambrso, Greg-ro, o Grande, Cassano, sao Bento): (1) a relacocom a salvaco. Urna economa dos mritos edos demritos: (a) o princpio da responsabili-dade analtica; (b) o princpio da transferenciaexaustiva e instantnea: (c) o princpio da inver-sao sacrifical; (d) o princpio da correspondenciaalternada. (2) A relaco com a lei: instauraco deurna relaco de dependencia integral entre aovelha e quem a dirige. Urna relaco individual enao finalizada. Diferenca entre a aptheia gregae a aptheia crist. (3) A relaco com a verdade: aproduco de verdades ocultas. Ensinamento pasto-

    ral e direco de consciencia. - Concluso: urnaforma de poder absolutamente nova que assina-la o aparecimento de modos especficos de indi-vdualzaco, Sua importancia decisiva para ahistria do sujeito.

    Aula de 1.' demarro de 1978............................................ 253A noco de "conduta". - A crise do pastorado. -As revoltas de conduta no campo do pastorado.- O deslocamento das formas de resistencia, napoca moderna, para os confins das insttuicespolticas: exemplos do exrcito, das sociedad,;ssecretas, da medicina. - Problema de vocabula-rio: "revoltas de conduta" I "insubmisso", "dis-sidncia", JI contracondutas" . As contracondutaspastorais. Recapitulaco histrica: (a) o ascetis-mo; (b) as comunidades; (e) a mstica; (d) a Es-critura; (e) a crenca escatolgica. - Concluso:desafios da referencia anoco de "poder pasto-ral" para urna anlise dos modos de exerccio dopoder em geral.

    Aula de8 demarro de 1978............................................. 305Da pastoral das almas ao governo poltico_doshomens. - Contexto geral dessa transformaco: acrise do pastorado e as insurreices de condutano sculo XVI.A Reforma protestante e a Con-tra-Reforma. Outros fatores. - Dois fenmenosnotveis: a intensfcaco do pastorado religiosoe a multiplcaco da questo da conduta, nos pla-nos privado e pblico. - A razo governamentalprpria do exerccio da soberania. - Comparacocom sao Toms. - A ruptura do continuum cosmo-lgico-teolgico. - A questo da arte de governar.- Observaco sobre o problema da inteligibilida-de em histria. - A razo de Estado (I): novidade

  • e objeto de escandalo. - Tres pontos de focalza-~ao do debate polmicoem tomo da razode Es-tado: Maquiavel, a "poltica", o "Estado".

    Aula de 15 de marro de 1978........................................... 341A razo de Estado (TI): sua definico e suas prn-cipais caractersticas no sculo XVII. - O novomodelo de temporalidade histrica acarretadopela razo de Estado. - Traeos especficos da ra-zo de Estado em relaco ao govemo pastoral:(1) O problema da salvaco: a teoria do golpe deEstado (Naud). Necessidade, violencia, teatra-lidade. - (2) O problema da obediencia. Bacon: aquesto das sedices. Diferencas entre Bacon eMaquiavel. - (3) O problema da verdade: da sa-bedoria do prncipe ao conhecimento do Estado.Nascimento da estatstica. O problema do segre-do. - O prisma reflexivo no qual apareceu o pro-blema do Estado. - Presenca-ausncia do ele-mento "populaco" nessa nova problemtica.

    Aula de22 de marro de 1978........................................... 383A razo de Estado (III). - O Estado como prnc-pio de inteligibilidade e objetivo. - O funciona-mento dessa razo govemamental: (A) Nos tex-tos tericos. A teoria da manutenco do Estado.(E) Na prtica poltica. A rela~ao de concorrn-cia entre os Estados. - O tratado de Vesteflia eo fim do Imprio Romano. - A forca, novo ele-mento da razo poltica. - Poltica e dinmica dasforcas, - O primeiro conjunto tecnolgico carac-terstico dessa nova arte de govemar: o sistemadiplomtico-militar. - Seu objetivo: a busca de umequlbro europeu. O que a Europa? Aidia de-"balanca", - Seus instrumentos: (1) a guerra; (2)a diplomacia; (3) o estabelecimento de um dis-positivo militar permanente.

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    Aula de 29 de marro de 1978........................................... 419O segundo conjunto tecnolgico caractersticoda nova arte de govemar segundo a razo de Es-tado: a polcia. Sgnficaces tradicionais da pala-vra at o sculo XVI.Seu novo sentido nos scu-los XVII-XVIll: clculo e tcnica garantem o bomemprego das forcas do Estado. - A tripla relacoentre o sistema do equilibrio europeu e a polcia.- Diversidade das situaces italiana, alem efrancesa. - Turquet de Mayeme, A monarquiaaristodemocrtica. - O controle da atividade doshomens como elemento constitutivo da forca doEstado. - Objetos da polcia: (1) o nmero de ci-dados: (2) as necessidades da vida; (3) a sade;(4) as profisses, (5) a coexistencia e a circulacodos homens. - A polcia como arte de adminis-trar a vida e o bem-estar das populaces.

    Aula de 5 de abril de 1978............................................... 449A polica (continuaco). - Delamare. - A cidade,lugar de elaboraco da polcia. Polcia e regula-mentaco urbana. A urbanzaco do territrio.Relaco da polcia com a problemtica mercan-tilista. - A emergencia da cdade-mercado, - Osmtodos da polcia. Diferenca entre polcia e jus-tica. Um poder de tipo essencialmente regula-mentar. Regulamentaco e disciplina. - Volta aoproblema dos cereais. - A crtica do Estado depolcia a partir do problema da escassez alimen-tar. As teses dos economistas, relativas ao pre~odo cereal, apopulaco e ao papel do Estado. -Nascimento de urna nova govemamentalidade.Govemamentalidade dos polticos e govema-mentalidade dos economistas. - As transforma-~oes da razo de Estado: (1) a naturalidade dasociedade; (2) as novas relaces entre o poder eo saber; (3) a responsabilidade com a populaco

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    (higiene pblica, demografia, etc); (4) as novasformas de intervenco estatal; (5) o estatuto daliberdade. - Os elementos da nova arte de gover-nar:. prtica econmica, gesto da populaco,cJ!relto e respeito as lberdades, polcia com fun-cao repressiva. - As diferentes formas de contra-conduta relativas a essa govemamentalidade. _Conclusio geral.

    Resumo do curso 489SitULlrao dos cursos 495

    tnditdi~~d~~~~6;;:::::::::::::::::::::::::::::::::::: : : : : : : : : : : : : : : :dice dos nomes de pessoas .

    NOTA

    Michel Foucault lecionou no College de France de ja-neiro de 1971 at sua morte em junho de 1984 - com exce-code 1977, quando gozou de um ano sabtico. O nome dasua cadeira era: Histria dos sistemas de pensamento.

    Essa cadeira foi criada em 30 de novembro de 1969,por proposta de [ules Vuillemin, pela assemblia geral dosprofessores do College de France em substtuico acadeirade histria do pensamento filosfico, que [ean Hyppoliteocupou at a sua morte. A mesma assemblia elegeu Mi-chel Foucault, no dia 12 de abril de 1970, titular da nova ca-deira', Ele tinha 43 anos.

    Michel Foucault pronunciou a aula inaugural no dia 2de dezembro de 1970'.

    1. MichelFoucaultencerrou o opsculo que redgiu parasua can-didatura com a seguinte frmula: "Seria necessrioempreendera bis-triados sistemasde pensamento" ("TItres et travaux", in Dits et crits,1954-1988,ed. por D. Defert e F.Ewald, colab. J. Lagrange, Pars, GalIi-mard, 1994,4 vols.; cf. vol. 1,p. 846). [Ed. bras.: Di/os e escritos - 5 vols.temticos,Rio de Janeiro, ForenseUniversitria.]

    2. EIa ser publicada pelas ditions GalIimard em mac de 1971com o ttulo: L'Ordre du discours. (Ed. bras.: A ordem do discurso, trad.Laura Fraga de Almeida Sampaio, sao Paulo, Loyoia, 1996.1

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  • XIV SEGURAN

  • XVI SEGURANc;A, TERRlTRIO, POPULA~O NOTA XVIl Icursivo especfico no conjunto dos"atos filosficos" efetua-dos por Michel Foucault. Neles desenvolve, em particular, oprograma de uma genealogia das relaces saber/poder emfunco do qual, a partir do incio dos anos 1970, refletir so-bre seu trabalho - em oposico ao de uma arqueologia dasformaces discursivas que ele at ento dominara'.

    Os cursos tambm tinham urna funco na atualidade.O ouvnte que assistia a eles nao ficava apenas cativadopelo relato que se construa semana aps semana; nao fica-va apenas seduzido pelo rigor da exposico: tambm en-contrava neles urna luz sobre a atualidade. A arte de MichelFoucault estava em diagonalizar a atualidade pela histria.Ele podia falar de Nietzsche ou de Aristteles, da pericia psi-quitrica no sculo XIX ou da pastoral crist, mas o ouvintesempre tirava do que ele dizia urna luz sobre o presente esobre os acontecimentos contemporneos. A forca prpriade Michel Foucault em seus cursos vinha desse sutil cruza-mento entre urna fina erudico, um engajamento pessoal eum trabalho sobre o acontecimento.

    Os anos 1970 viram o desenvolvimento e o aperfecoa-

    mento dos gravadores de fita cassete - a mesa de MichelFoucault logo foi tomada por eles. Os cursos (e certos semi-nrios) foram conservados gra~as a esses aparelhos.

    Esta edco toma como referencia a palavra pronuncia-da publicamente por Michel Foucault e fornece a sua trans-crico mais literal possvel'. Gostaramos de poder public-

    7.el. em particular "Nietzsche, la gnalogie, I'histore", in Ditselcrits, II, p. 137. [Trad. bras.: "Nietzsche, a genealogia e a histria, in Mi-crofisial dopoder, Roberto Machado (org.), Rio de [anero, Graal, 1979.1

    8. Foram utilizadas, em especial, as gravaces realizadas por GrardBurlet e Jacques Lagrange, depositadas no College de France e no IMEe.

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    la tal qual. Mas a passagem do oral ao escrito mpe urnantervenco do editor: necessrio, no mnimo, introduziruma pontuaco e definir pargrafos. O princpio sempre foio de ficar o mais prximo possvel da aula efetivamentepronunciada.

    Quando parecia indispensvel, as repetices foram su-primidas; as frases interrompidas foram restabelecidas e asconstruces incorretas, retificadas.

    As reticencias assinalam que a gravaco inaudvel.Quando a frase obscura, figura entre colchetes uma inte-gracoconjectural ou um acrscimo.

    Um asterisco no rodap indica as variantes significati-vas das notas utilizadas por Michel Foucault em relaco aoque foi dito.

    As citaces foram verificadas e as referencias aos tex-tos utilizados, indicadas. O aparato critico se limita a elucidaros pontos obscuros, a explicitar certas aluses e a precisaros pontos criticos.

    Para facilitar a leitura, cada aula foi precedida por umbreve resumo que indica suas principais artculaces.

    O texto do curso seguido do resumo publicado noAnnuaire du College dePrance. Michel Foucault o redigia ge-ralmente no mes de junho, pouco tempo depois do fim docurso, portante. Era a oportunidade que tinha para destacar,retrospectivamente, a intenco e os objetivos do mesmo. Econstituem a melhor apresentaco de suas aulas.

    Cada volume termina com urna "situaco", de respon-sabilidade do editor do curso. Trata-se de dar ao leitor ele-mentos de contexto de ordem biogrfica, ideolgica e pol-tica, situando o curso na obra publicada e dando ndcacesrelativas a seu lugar no mbito do corpus utilizado, a fim deacilitar sua compreenso e evitar os contra-sensos que po-deriam se dever ao esquecimento das circunstancias em quecada um dos cursos foi elaborado e dado.

  • XVIII SEGURAN

  • AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978

    Perspeetiva geral docurso: o estudo dobiopoder. - Cincoproposifies sobre a anlise diJs mecanismos de poder. - Siste-ma legal, mecanismos disciplinares e dispositivos de seguran-fIl. Dois exemplos: (a) a poni",odoroubo; (b) o tratamento diJlepra, dapeste e davarola. - Caractersticas gerais doe dispo-sitivos de seguran,. (I): osespafll5 deeeguranca. - O exemploda cidade. - rrs exemplos de organzafIJ do espafO urbanonossculos XVIe XVII: (a) La Mtropolite deAlexanre LeMilftre (1682); (b) a cidade deRiehelieu; (e) Nantes.

    Este ano gostaria de comecar o estudo de algo que euhavia chamado, um pouco no ar, de bopoder', isto , essasrie de fenmenos que me parece bastante importante, asaber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que,na espcie humana, constitui suas caractersticas biolgicasfundamentais vai poder entrar numa poltica, numa estra-tgiapoltica, numa estratgia geral de poder. Em outras pa-lavras, como a socedade, as sociedades ocidentais moder-nas, a partir do sculo XVllI, voltaram a levar em canta ofato biolgico fundamental de que o ser humano constituiurna espcie humana. em linhas gerais o que chamo, oque chame, para !he dar um nome, de biopoder. Ento, an-tes de mais nada, um certo nmero de proposces, por as-sim dizer, proposices no sentido de ndicaces de opco:nao sao nem principios, nem regras, nem teoremas.

    Em primeiro lugar, a anlise desses mecanismos de po-der que iniciamos h alguns anos e a que damos seguirnen-to agora, a anlise desses mecanismos de poder nao deforma alguma urna teoria geral do que o poder. Nao urna parte, nem mesmo um incio dela. Nessa anlise, tra-ta-se simplesmente de saber por ande isso passa, como sepassa, entre quem e quem, entre que ponto e que ponto, se-

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  • 6 SEGURANc;A, TERRJT6RlO, POPULA(:Ao AUlA DE11 DEJANElRO DE1978 7

    tem a fazer s pode aparecer, parece-me, no interior de urncampo de forcas reais, isto , urn campo de forcas que nun-ca urn sujeto falante pode criar sozinho e a partir da sua pa-lavra; urn campo de forcas que nao se pode de maneira ne-nhurna controlar nem fazer valer no interior desse discurso.Por conseguinte, o imperativo que embasa a anlise tericaque se procura fazer - j que tem de haver urn -, eu gasta-ria que fosse simplesmente urn imperativo condicional dogenero deste: se voc quiser hitar, eis alguns pontos-chave,eis algumas linhas de forca, es algumas travas e alguns blo-quejos. Em outras palavras, gastarla que esses imperativosnao fossem nada mais que indicadores tticos. Cabe a mimsaber, claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabea ns por conseguinte saber que campos de forcas reas to-mar como referencia para fazer urna anlise que seja eficazem termos tticos. Mas, afinal de contas, esse o crculo daluta e da verdade, ou seja, justamente, da prtica filosfica.

    Enfim, urn quinto e ltimo ponto: essa relaco, creio, s-ria e fundamental entre a luta e a verdade, que a prpria di-menso em que h sculos se desenrola a filosofa, pois bem,essa relaco sria e fundamental entre a luta e a verdade,creio que nao faz nada mais que se teatralizar, se descarnar,perder o sentido e a eficcia nas polmicas internas ao discur-so terico. Portanto proporei em tudo isso urn s imperativo,mas que ser categrico e incondicional: nunca fazer poltica'.

    Bem, gostarla agora de comecar este curso. Ele se cha-ma, portanto, "seguranca, territrio, populaco'",

    Primeira questo, claro: o que se pode entender por"se-guranca"? a isso que gostarla de consagrar esta hora e tal-vez a prxima, enfm, conforme a lentido ou a rapidez doque direi. Bem, um exemplo, ou melhor, urna srie de exem-plos, melhor anda, urn exemplo modulado em tres tempos.E simples, infantil, mas vamos comecar por a e creio queisso me permitir dizer um certo nmero de coisas. Sejaurna lei penal smplssima, na forma de proibico, digamos,JJ nao matars, nao roubars", com sua punco, digamos, oenforcamento, ou o desterro, ou a multa. Segunda modula-

    C;o, a mesma lei penal, ainda linao matars", ~da .ac~mpanhada de certo nmero de punices se for infringida.mas desta vez o conjunto enquadrado. de urn lado, portoda urna srie de vigilancias, controles, olhares, esquadri-nhamentos diversos que permitem descobrir, antes mesmode o ladro roubar, se ele vai roubar, etc. E, de outro lado,na outra extremidade, a punco nao simplesmente essemomento espetacuiar, definitivo, do enforcamento, da multaou do desterr, mas ser urna prtica como o encarcera-mento, impondo ao culpado toda ~a srie de exerccios,de trabalhos trabalho de transformaco na forma, sunples-mente, do q~e se chama de tcnicas penitencirias, traba-lho obrgatro, moralizaco, correco, etc. Tercerra modula-~ao a partir da mesma matriz: seja a mes~a lei penal, sejamigualmente as punces, seja o mesmo tipo de enq~adramento na forma de vigilancia, de um lado, e correcao, dooutro. Mas, desta vez, a aplcaco dessa lei penal, a orgaru-zaco da prevenco, da punco corretiva, tu~o isso vai sercomandado por urna srie de questes que,vao ser p;rgun-tas do seguinte genero, por exemplo: qual e a taxa media dacriminalidade desse [tipo]'? Como se pode prever estatisti-camente que haver esta ou aquela quantidade de r~ubosnum momento dado, numa sociedade dada, numa cidadedada na cidade, no campo, em determinada camada social,etc.?'Em segundo lugar, h~ ~omentos, regioes, siste~a~penais tais que essa taxa media Val aumentar ou dmnuir.As crises, a fome, as guerras, as punices rigorosas OU, aocontrrio, as punices brandas vo modificar essas propor-~6es? Outras perguntas mais: essa crminaldade, ou seja, oroubo portante, ou, dentro do roubo, este ou aquele tipode roubo, quanto custa 11 sociedade, que prejuzo: produz,que perdas, etc.? Mais outras perguntas: a repressao a_essesroubos custa quanto? mais oneroso ter urna rep:essao se-vera e rgorosa, urna represso fraca, urna repressao de tipo

    ..M.F.: gnero

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    porque se pretendia obter urn efeito corretvo, se nao sobreo culpado propriamente - porque se ele fosse enforcado acorreco era pouca para ele -, [pelo menos sobre olO restoda populaco. Nessa medida, pode-se dizer que a prtica dosuplicio como exemplo era urna tcnica corretiva e discipli-nar. Do mesmo modo que no mesmo sistema, quando sepuma o roubo domstico de maneira extraordinariamentesevera - a pena de morte para urn roubo de pequenssimamonta, caso tivesse sido cometido dentro de uma casa poralgum que era recebido nesta ou empregado como do-mstico -, era evidente que se visava com isso, no fundo,um crime que s era importante por sua probablidade, epodemos dizer que a tambm se havia instaurado algo comourn mecanismo de seguranca, Poderamos [dizerl" a mes-ma coisa a propsito do sistema disciplinar, que tambmcomporta toda urna srie de dimens6es que sao propria-mente da ordem da seguranca. No fundo, quando se pro-cura corrigir um detento, urn condenado, procura-se corr-gi-lo em funco dos riscos de recidiva, de reincidencia queele apresenta, isto , em funco do que se chamar, bemcedo, da sua periculosidade - ou seja, aqu tambm, meca-nismo de seguranca,Logo, os mecanismos disciplinares naoaparecem simplesmente a partir do sculo XVIII, eles j es-tao presentes no interior do cdigo jurdico-legal. Os meca-nismos de seguranca tambm sao antiqssimos como me-canismos. Eu tambm poderia dzer, inversamente, que, setomarmos os mecanismos de seguranca tais como se tentadesenvolv-los na poca contempornea, absolutamenteevidente que isso nao constitu de maneira nenhuma urnacolocaco entre parnteses ou urna anulaco das estruturasjurdico-legais ou dos mecanismos disciplinares. Ao contr-ro, tomem por exemplo o que acontece atualmente, ainda

    >1- M. Foucault diz:em compensaco, a correco, O efeito corretivodirigia-se evidentemente eo

    ..... M.E: tomar

    na ordem penal, nessa ordem da seguranca. O conjunto dasmedidas legislativas, dos decretos, dos regulamentos, das cir-culares que permitem implantar os mecanismos de seguran-,a, esse conjunto cada vez mas gigantesco. Afinal de con-tas, o cdigo legal referente ao roubo era relativamente mu-to simples na tradico da Idade Mdia e da poca clssica.Retomem agora todo o conjunto da legislaco que vai dizerrespeito nao apenas ao roubo, mas ao roubo cometido pelascrancas, ao estatuto penal das enancas, as responsabilidadespor raz6es mentis, todo o conjunto legislativo que diz res-peto ao que chamado, justamente, de medidas de seguran-ca, a vigilncia dos individuos depois de sua instituico: vo-ces vo ver que h urna verdadeira inflaco legal, nflaco docdigo jurdico-legal para fazer esse sistema de seguran,afuncionar. Do mesmo modo, o corpus disciplinar tambm amplamente ativado e fecundado pelo estabelecirnento dessesmecanismos de seguran,a. Porque, afinal de contas, para defato garantir essa seguranca preciso apelar, por exernplo, e apenas urn exemplo, para toda uma srie de tcnicas de vi-gilncia, de vigilncia dos individuos, de diagnstico do queeles sao, de classficaco da sua estrutura mental, da sua pa-tologia prpra, etc., todo urn conjunto disciplinar que vicejasob os mecanismos de seguran,a para faz-los funcionar.

    Portante, voces nao tm urna srie na qual os elemen-tos vo se suceder, os que aparecem fazendo seus predeces-sores desaparecerem. Nao h a era do legal, a era do disci-plinar, a era da seguran~a.Voces nao tm mecanismos deseguran,a que tomam o lugar dos mecanismos disciplina-res, os quas teriam tomado o lugar dos mecanismos [urd-co-legas. Na verdade, voces tm urna srie de edificios com-plexos nos quais o que vai mudar, claro, sao as prprias tc-nicas que vo se aperfecoar ou, em todo caso, se complicar,mas o que vai mudar, principalmente, a dominante ou,mais exatamente, o sistema de correlaco entre os mecanis-mos jurdico-legas, os mecanismos disciplinares e os me-canismos de seguranca. Em outras palavras, voces vo terurna histria que vai ser urna histria das tcnicas propra-

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    perfeito, j que feito por urn historiador: o estudo de[ean-Claude Perrot sobre a cidade de Caen no sculo XVIII",em que ele mostra que o problema da cidade era essencial efundamentalmente urn problema de crculaco.

    Tomemos urn texto de meados do sculo XVII, escritopor urna pessoa chamada Alexandre Le Maitre, com o ttu-lo de La Mtropolite". Esse Alexandre Le Maitre era urnprotestante que havia deixado a Pranca antes da revogacodo edito de Nantes e que tinha se tornado, a palavra im-portante, engenheiro-geral do Eleitor de Brandemburgo. Ededicou La Mtropolite ao rei da Sucia, e o livro foi edita-do em Amsterdam. Tudo isso - protestante, Prssia, Suecia,Amsterdam - nao em absoluto desprovido de significado.E o problema de La Mtropolite o seguinte: deve haverurna capital num pas e em que essa capital deve consistir?A anlise que Le Maitre faz a seguinte: o Estado, d.iz ele,se compe na verdade de tres elementos, tres ordens, tresestados mesmo: os camponeses, os artesos e o que elechama de terceira ordem ou terceiro estado, que sao, curio-samente, o soberano e os oficias que esto a seu servico".Em relaco a esses tres elementos, o Estado deve ser comourn edificio. As fundaces do edificio, as que esto na terra,debaixo da terra, que nao vemos mas que asseguram a so-lidez do conjunto, sao claro os camponeses. As partes co-mUTIS, as partes de servco do edificio, sao claro os arte-saos. Quanto as partes nobres, as partes de habitaco e derecepco, sao os oficiais do soberano e o prprio soberano".A partir dessa metfora arquitetnica, o territrio tambmdeve compreender suas funda~oes, suas partes comuns esuas partes nobres. As fundaces sero o campo, e no cam-po, nern preciso clizer, devem viver os eamponeses e nin-gum mais que os camponeses. Em segundo lugar, nas pe-quenas cidades devem viver todos os artesos e ningummais que os artesos. E, enfm, na capital, parte nobre doedificio do Estado, devem viver o soberano, seus oficiais eaqueles artesose comerciantes indispensveis ao funciona-mento da corte e do entourage do soberano". A relaco en-

    tre essa capital e o resto do territrio vista por Le Matrede diferentes formas. Deve ser urna relaco geomtrica, nosentido de que um bom pas , em poucas palavras, urn pasque tem forma de crculo, e bem no centro do crculo quea capital deve estar situada". Urna capital que estivesse naextremidade de urn territrio comprido e de forma irregularnao poderia exercer todas as funces que deve exercer. Defato, e a que a segunda relaco aparece, essa relaco en-tre a capital e o territrio tem de ser uma relaco esttica esimblica. A capital deve ser o ornamento do terrtro",Mas deve ser tambm urna relaco poltica, na medida emque os decretos e as leis devem ter no territrio urna im-plantaco tal que nenhurn canto do reino escape dessa redegeral das leis e dos decretos do soberano". A capital tambmdeve ter um papel moral e difundir at os confins do territ-rio tudo o que necessrio impor as pessoas quanto a suaconduta e seus modos de agr". A capital deve dar o exem-plo dos bons costumes". A capital deve ser o lugar em queos oradores sacros sejam os melhores e melhor se facam ou-vr", deve ser tambm a sede das academias, pois as cien-cias e a verdade devem nascer a para ento se difundir noresto do pas". E, enfm, urn papel econmico: a capital deveser o lugar do luxo para que constitua urn lugar de atracopara as mercadorias que vm do estrangero", e ao mesmotempo deve ser o ponto de redistribuco pelo comrcio decerto nmero de produtos fabricados, manufaturados, etc."

    Deixemos de lado o aspecto propriamente utpico des-se projeto. Creio que ele apesar de tudo interessante, por-que me parece que temos a uma defnico da cidade, umareflexo sobre a cidade, essencialmente em termos de sobe-rania. Ou seja, a relaco da soberania com o territrio que essencialmente primeira e que serve de esquema, de cha-ve para compreender o que deve ser uma cidade-capital ecomo ela pode e deve funcionar. Alis, interessante vercomo, atravs dessa chave da soberania como problemafundamental, vemos surgir um certo nmero de funcespropriamente urbanas, funces econmicas, funces mo-

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    rais e administrativas, etc. E o que interessante afinal que o sonho de Le Maitre o de conectar a eficacia polticada soberania a urna dstrbuco espacial. Um bom sobera-no, seja ele um soberano coletivo ou individual, a1gumque est bem situado no interior de um territrio, e um ter-ritrio que civilizado no que concerne asua obediencia aosoberano um territrio que tem urna boa dsposcoespa-cial. Pois bem, tudo sso,essa idia da eficacia poltica da 50-berania est ligada aqui aidia de urna intensidade das cr-culaces: crculaco das das, circulaco das vontades edas ordens, circulaco comercial tambm. Para Le Matre,trata-se, no fundo - idia ao mesmo tempo antga, j quese trata da soberana, e moderna, j que se trata da circula-co r-, de superpor o Estado de soberana, o Estado territoriale o Estado comercial. Trata-se de amarr-los e de reforc-los uns em relaco aos outros. Desnecessrio dizer-lhes quese est, nesse perodo e nessa rego da Europa, em plenomercantilismo, ou melhor, em pleno cameralismo". Ou seja,o problema como, dentro de um sistema de soberania es-trta, assegurar o desenvolvimento econmico mximo porintermdio do comrcio. Em suma, o problema de Le Mal-tre o seguinte: como assegurar um Estado bem capitaliza-do, isto , bem organizado em torno de urna capital, sede dasoberania e ponto central de crculaco poltica e comercial.J que, afnal, esse Le Matre foi engenheiro-geral do Ele-tor de Brandemburgo, poderamos ver a filaco que h en-tre essa idia de um Estado, de urna provncia bem "cap-talizada" e o clebre Estado comercial fechado de Fichte",isto , toda a evolucodesde o mercantilismo cameralista ata economia nacional alem do incio do sculo XIX. Em todocaso, a cidade-capital pensada nesse texto em funco dasrelaces de soberania que se exercem sobre um territrio.

    Vou pegar agora outro exemplo. Poderia te-lo pegadonas mesmas regies do mundo, ou seja, esta Europa do

    ,. As aspas constam do manuscrito do curso, p. 8.

    Norte que foi tao importante no pensamento e na teori~poltica do sculo XVII, essa regio que vai ~aHoland~ aSucia, em torno do mar do Norte e do mar Bltico. Krsta-na" e Gotemburgo", na Sucia, seriam. exem~l~s. Vou.pe-gar um na Franca. Ternos portan~o toda essa sene de cda-des artificiais que foram construidas, a1gumas no ,norte daEuropa e um certo nmero aqu, na Franca, na epoca deLus XIII e de Lus XIV. Tomo o exemplo de uma cidadezi-nha chamada Rchelieu, que foi construida nos confins daTouraine e do Potou, que foi construida a partir de nada,precisamente", Onde nao havianada, construiu-se uma~ci-dade. E como a construiram? Pois bem, utilizou-se a cele-bre forma do acampamento romano que, na poca, acaba-va de ser reutilizada na instituico militar como mstrumen-to fundamental de disciplina. Em fins do sculo XVI - inciodo sculo XVII, precisamente nos pases protestantes - ,?on-de a importancia disso tudo na Europa do Norte -, poe-sede novo em vigor a forma do acampamento romano bemcomo os exerccios, a subdiviso das tropas, os controlesco-letivos e individuais no grande projeto de dsciplnarizacodo exrcito". Ora, trate-se de Kristiania, de Gotemburgo oude Richelieu, essa forma do acampamento que se utiliza.A forma do acampamento interessante. De fato: no_casoprecedente, La Mtropolite de Le Maitre, a orgamzacao dacidade era pensada essencialmente dentro da categona maisgeral, mais global do territrio. Era por meio de um ma~rocosmo que se procurava pensar a cidade, com urna especiede abonador do outro lado, j que o prprio Estado era pen-sado como um edificio. Enfim, era todo esse jogo entre omacrocosmo e o microcosmo que perpassava pela proble-mtica da relaco entre a cdade, a soberania e o territrio.J no caso dessas cidades construidas com bas,; na figura doacampamento, podemos dizer que a cldad,; ~ pensada deincio, naoa partir do maior que ela,o terntono, ~a~ a par-tir do menor que ela, a partir de uma figura geometnca que urna espcie de mdulo arquitetnico, a saber, o quadra- J

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    lizaram, a noco de meio, porque, tanto quanto pude ver, elanunca e utilizada para designar as cidades nem os espa~osplanejados, em compensaco, se a noco nao existe, diriaque o esquema tcnico dessa noco de meio, a espcie de _como dizer? - estrutura pragmtica que a desenha previa-mente est presente na maneira como os urbanistas procu-ram refletir e modificar o espa~o urbano. Os dispositivos deseguranca trabalham, criam, organizam, planejam um meioantes mesmo da noco ter sido formada e isolada. O meioval ser I'0rtanto aquilo em que se faz a crculaco. O meio um ,conJunto de dadosnaturais, nos, pantanos, morros, umconjunto ~e dados artificiais, aglorneraco de individuos,aglomeraco de casas, etc. O meio certo nmero de efe-tos, que sao efeitos de massa que agem sobre todos os quea residem. urn elemento dentro do qual se faz urn enea-deamento circular dos efeitos e das causas, j que o que efeito, de urn lado, val se tomar causa, do outro. Por exem-plo, quanto maor a aglomera~ao desordenada, mas havermiasmas, mas se ficar doente. Quanto mais se ficar doen-te, rnais se morrer, claro. Quanto mas se rnorrer mais ha-vercadveres e, porconsegunte, maishaver miasmas, etc.Portante, esse fenmeno de circulaco das causas e dosefeitos que visado atravs do meio. E, enfim, o meio apa-re~e como um, campo de ntervenco em que, em vez deatmgrr os individuos como urn conjunto de sujeitos de dre-to capazes de acesvoluntrias - o que acontecia no caso dasoberania -, em vez de ating-los como urna multiplicidadede organismos, de corpos capazes de desempenhos, e de de-sempenhos requeridos como na disciplina, val-se procuraratngr, precisamente, urna populaco. Ou seja, urna multi-plicidade de individuos que sao e que s existem profunda,essencal, biologicamente ligados , materialidade dentro daqual. existem. O que val se procurar atmgir por esse meio precisamente o ponto em que urna sre de acontecimentos,que esses individuos, populaces e grupos produzern, nter-fere com acontecimentos de tipo quase natural que se pro-duzem ao redor deles.

    Parece-me que, com esse problema tcnico colocadopela cdade, ve-se - mas nao passa de um exemplo, pode-riamos encontrar vrios outros, voltarernos ao assunto -, ve-se a irrupco do problema da "naturalidade"* da espciehumana dentro de um meio artificial. E essa rrupco da na-turalidade da espcie dentro da artificialidade poltica de urnarelaco de poder , parece-me, algo fundamental. Para ter-minar, remeterei simplesmente a um texto daquele que foisem dvida o primeiro grande terico do que poderamoschamar de biopoltica, de biopoder. Ele fala disso, als, arespeito de outra coisa, a natalidade, que foi evidentemen-te urn dos grandes desafos, mas ve-se muito bem surgir aa noco de um meio histrico-natural como alvo de urnaintervenco de poder, que me parece totalmente diferenteda nocojurfdica de soberania e de territrio, diferente tam-bm do espaco disciplinar. [ a propsito dessa] idia deurn meio artificial e natural, em que o artificio age como urnanatureza em relaco a urna populaco que, embora tramadapor relaces socias e polticas, tambm funciona como urnaespce, que encontramos nos Estudos sobre a popular;iio deMoheau" um texto corno este: "Depende do governo mu-dar a temperatura do ar e melhorar o clima; um curso dadoas guas estagnadas, florestas plantadas ou queimadas,montanhas destruidas pelo tempo ou pelo cultivo contnuoda sua superficie formam um solo e um clima novosoTama-000 o efeito do tempo, da habitaco da terra e das vicis-situdes na ordem fsica, que os cantes mais sadios toma-ram-se morbgenos.?" Ele se refere a um verso de Virglio

    ,.Entre aspas no manuscrito, p. 16. M. Foucault escreve:

    Dizerque a Irrupcao da 'naturalidade' da espce humanano campodas tcnicas de poderseriaum exagero. Mas, se [at]ento elaapareca prin-cipalmente na forma da necessdade, da insuficiencia ou dafraqueza, do mal,agora ela aparececomo nrerseco entre tuna multiplicidade de indivduosque vivem, trabalham e coexstem uns com os outrosnum. conjunto de ele-mentosmateriais que agem sobreeles e sobreos guais eles agem de volta.

  • em que se fala do vinho que gela nos tonis e diz: ser queveramos hoje, na Itlia, o vinho gelar nos tonis?" Poisbem, se houve tanta mudanca, nao que o clima mudou, que as intervences polticas e econmicas do govemo mo-dificaram o curso das coisas a tal ponto que a prpria natu-reza constituiu para o homem, eu ia dizendo um outro meio,s que a palavra "rneio" nao est em Moheau. Em conclu-sao, ele diz: "Se do clima, do regme, dos usos, do costumede certas aces resulta o princpio desconhecido que formao carter e os esprtos, pode-se dizer que os soberanos, porleis sbas, por instituces sutis, pelo incomodo que trazemos mpostos, pela conseqente faculdade de suprimi-los,enfim por seu exemplo, regem a existencia fsica e moral dosseus sditos. Talvez um dia seja possvel tirar partido dessesmeios para matizar avontade os costumes e o esprito danaco.?" Como voces esto vendo, voltamos a encontraraqui o problema do soberano, mas desta vez o soberano nao mais aquele que exerce seu poder sobre um territrio a par-tir de uma localzaco geogrfica da sua soberania poltica, osoberano algo que se relaciona com uma natureza, ou an-tes, com a interferencia, a intrncaco perptua de um meiogeogrfico, climtico, fsico com a espcie humana, na me-dida em que ela tem um corpo e uma alma, uma existenciafsica [e] moral; e o soberano ser aquele que dever exercerseu poder nesse ponto de artculaco em que a natureza nosentido dos elementos fsicos vem interferir com a naturezano sentido da natureza da espcie humana, nesse ponto dearticulaco em que o meio se toma determinante da nature-za. a que o soberano vai intervir e, se ele quiser mudar aespcie humana, s poder faz-lo, diz Moheau, agindo so-bre o meio. Creio que ternos a um dos exos, um dos ele-mentos fundamentais nessa mplantaco dos mecanismosde seguran~a, isto , o aparecmento, nao ainda de uma no-~ao de meo, mas de um projeto, de uma tcnica poltica quese dirigiria ao meio.

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    NOTAS

    1. Cf. "11 faut dfendre la socit". Coure au College de Prance,1975-1976, ed. por M. Bertani & A. Fontana, Pars, Gallimard-Le Seuil ("Hautes tudes"), 1997, p. 216 ("De quoi s'agt-l daoscette nouvelle technologie de pouvoir, dans cette bio-politique,dansce bio-pouvoirqui est en trainde s'installer?" [De que se tra-tanessa nova tecnologia do poder, nessa biopoltica, nesse biopo-derqueest se instalando?]); La volont desavoir, Pars, Gallimard,"Bblotheque des hstores", 1976, p. 184 red. bras.: "Avontade desaber", in Histria da sexualidade J, trad. Maria Thereza da CostaAlbuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque, Rio de [aneiro,Graal,1985].

    2. Estas ltimas frases devem ser comparadas com o queFoucault declara, no fim desse mesmo ano, em sua longa entrevis-taa D.Trombador, sobrea sua decepcao, ao voltardaTursia, anteas polmicas tericas dos movimentos de extrema-esquerda de-pois de Maio de 1968: "Falou-se na Franca de hipermarxismo, dedeflagraco de teoras, de anatemas, de grupuscularizaco. Eraexatamente o contrap, o avesso, o contrrio do que me haviaapaixonado na Tunsia [quandodos levantes estudantis de marcode 1968]. Isso talvez expliquea maneira como procurei consideraras coisasa partir daquele momento, em defasagemrelativamentea essas discusses infinitas, a essa hpermarxzaco [...] Tentei fa-zercoisasque mplcassem uroengajamentopessoal, fsicoe real,e quecolocassemos problemasem termosconcretos, precisos,de-

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    finidosno interior de urna situaco dada" ("Entretien avec MichelFoucault" (fins de 1978), Ditset crits, 1954-1988, ed. por D. De-fert e F. Ewald, colab. l. Lagrange, Paris, GalIimard, 1994,4 vols,[doravante, DE em referencia a essa edco], Iv, n? 281, p. 80. So-bre o vnculo entre essa concepco do engajamento e o olharque,em outubro e novembro de 1978,Foucault lancasobre os aconte-cimentos do Ira, cf. nossa "Stuaco dos cursos", infra, p.510.

    3. Cf,aula de 1? de fevereiro (DE, ID,p. 655), em que Foucaultprecisa que teria sido mais exato intitular esse curso de "Histriada govemamentalidade".

    4. Q. Surveiller et Punir, Paris, GalIimard, "Bibliothque deshstoires", 1975. IEd. bras.: Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete,Petrpolis, Vozes, 1977.]

    5. na ltima aula (17 de marco de 1976) do curso de 1975-1976, Il faut dfendre la socit, op. cit., p. 219, que Foucault distin-gue pela primeira vez os mecanismos de seguranca dos mecanis-mos disciplinares. O conceito de "seguranca", todavia, nao reto-madoem Lavolont de savoir, onde Foucault prefere, em oposcoas disciplinas, que se exercemsobre o carpodos indivduos, o con-ceito de "controles reguladores" que se encarregam da sade e davida das populaces (p. 183).

    6. Sobre essas novas formas de penalidade no discurso neo-liberal americano, ci. Naissance de la biopolitique. Cours au CoUgede Prance, 1978-1979, ed. por M. Seneliart, Paris, GalIimard-LeSeuil, "Hautes tudes", 2004, aula de 21 de marco de 1979, pp. 245ss. [Ed. bras.: Nascimento da biopoltica, trad. Eduardo Brando, SaoPaulo, Martins Fontes, no prelo.]

    7. Trata-se das estatsticas judicirias publicadas todos osanos, desde 1825, pelo Ministrio da [ustca. Cf. A-M. Cuerry, Es-saisur lastatistique morale dela France, Pars, Crochard, 1833, p. 5:"Os primeiros documentos autnticos publicados sobre a admi-nistraco da justca criminal na Franca remontam to-somente aoano de 1825. [...] Hoje, os procuradores-gerais enviam cada tri-mestre ao ministro da Iustica relatrios sobre o estado dos assun-tos criminais ou correcionais levados aos tribunais da sua compe-tencia. Esses relatrios redigidos com base em modelos unifor-mes, para que apresentem unicamente resultados positivos ecomparveis, sao examinados com cuidado no ministrio, contro-lados uns pelos outros em suas diversas partes, e sua anlise fei-ta no m de cada ano forma o Balan90 geral da administraiiio dajusti9a criminal."

    8. Q. Histoire delafolie /'age classique, Paris, GalIimard, "Bi-bliothque des histoires", ed, 1972, pp. 13-6 ledobras.: Histria daloucura na idade c/dssica, trad. J.1. Coelho Netto, Sao Paulo, Pers-pectiva, 19781; Les Anonnaux. Cours au Colkge deFrance,. anne1974-1975, ed. porV. Marchetti & A Salomon, Pars, GalIimard-Le Seuil, "Hautes tudes", 1999, aula de 15 de janeiro de 1975, pp.40-1 ledo bras.: Os anormais, trad. Eduardo Brando, Sao Paulo,Marlins Pontes, 2001, pp. 54-5]; Surveil/er et Punir, op. cit., p. 200.

    9. Les Anonnaux, op. cii., pp. 41-5; SurveiUer et Punir, op. cii.,pp. 197-200.

    10. M. Foucault volta a esse tema na aula de 25 de [aneiro,pp. 73 ss. Sobre a exposico de A-M. Moulin apresentada no se-minro, cf, infra, p. 105, nota 2.

    11. Iean-Claude Perrot, Gense d'une vil/e modeme, Caen auXVIII' sicle (tese, Universidade de Lille, 1974, 2 vols.), Paris-LaHaye, Mouton, "Gvilisations et Socits", 1975, 2 vols. MchelePerrot faz referencia a esse livro em seu posfcio a J. Bentham, LePanoptique, Paris, Belfond, 1977: "Linspecteur Bentham", pp. 189 e208, obra de que Foucault havia participado (entrevista a l-P. Bar-rou e M. Perrot, "Loel du pouvoir", ibid., pp. 9-31 [in Microfsicado poder, op. cit., pp. 209-27]).

    12. Alexandre Le Maitre (quartel-mestre e engenheiro-geralde SAE. de Brandemburgo), LaMtropolite, ou Del'iabliseementdes villes Capitales, deleur Utilit passive & active, de /'Unian de leursporties & de leur anaiomie, deleur commerce, etc., Amsterdam, B.Boc-kholt, 1682; reed. ditions d'histoire sociale, 1973.

    13.La Mtropolite, op. cit., cap. X, pp. 22-4: "Dos trs Estadosa serem distinguidos nurna Provncia; de sua funco e das suasqualidades."

    14.lbid.15. bd., cap. XI, pp. 2S-7: "Que, como na vida Campestre ou

    nos vilarejos s h camponeses, devam-se distribuir os Artesosnas pequenas cidades e s ter nas grandes Gdades, ou nas Capi-tais, a gente culta e os artesos absolutamente necessros."

    16. Ibid., cap. XVIll, pp. 51-4: "A grandeza que deve ter opas, a Provncia, ou o distrito a que se pretende dar urna cidadeCapital."

    17.lbid., cap. N, pp. 11-2: "Que a cidade Capital nao est ape-nas de posse do til, mas tambm do honesto; nao somente dasriquezas, mas tambm do escol e da glria."

    )

  • 18. Ibid., cap. XVIII,p. 52: "[A Capital] ser o Coraco polti-co, que fazviver e mover-se todo o carpo daProvncia, pelo prin-cpiofundamental da cienciaregente,que formaum inteirode v-rias pe~as, sem no entanto erruin-las."

    19. Ibid., cap. XXIII, p. 69: " [...] necessrio que o Olho doPrncipe lanceseus raos nos procedimentos do seu povo,que ob-servea conduta deste, que passa vg-los de perto e que sua sim-ples presenca sirva de freo ao vcio, as desordens e a njustica.Ora, isso s pode ter boro xito pela uno das partesna Metro-politana."

    20. Ibid., pp. 67-72: "Que a presence do Soberano necess-tia ero seus Estados, onde se d o maiorcomrco, paraser teste-munha das aces e do negcio de seus Sditos, mante-los naeqdade e no temor, mostrar-se ao povo e deste ser como o sol.que os ilumina COID sua presenca."

    21. Ibid., cap. XXVIll, pp. 79-87: "Que na Metropolitana agente de Plpitoe que prega deve ser oradoresclebres."

    22. Ibid., cap. xxvn, pp. 76-9: "Que h forles rezes para afundaco das Academias nas Gdades Capitas, ou Metropolitanas."

    23. Ibid., cap. XXV; pp. 72-3: "Que a Capital, porfazer o maiorconsumo, tambm deve ser a sede do comrcio."

    24. Ibid., cap.Y;pp. 12-3: "Que a causa essencial e final da ci-dade Capital s pode ser a Utilidade pblica e que com esse fimela deve ser a mais opulenta."

    25. A cameralstica, ou ciencia cameral (Cameralwissenschaft),designa a cienciadas nencas e da admnistraco que se desen-volveu, a partir do sculo XVII, nas"cmaras' dos prncipes, essesrgos de planejamento e de controle burocrtico que substitu-raro poueo a pOlleo os conselhos tradicionais. Foi ero 1727 queessa disciplina obteve o direito de entrar nas Universidades deHalle e de Frankfurt sobre o Oder, tomando-se objeto de ensinopara os futuros funcionrios do Estado (cf. M. Stolleis, Geschichtedes ffentlichen Rechts in Deutschland, 1600-1800, Munique, C. H.Beck, t. 1, 1988/ Histoire du droit public en Allemagne, 1600-1800,trad. fr. M. Senellart, Paris, PUF, 1998, pp. 556-8). Es50 criaco decadeiras de Oeconomie-Policey undCammersachen resultava davon-tade de Frederico Guilhenne 1da Prssia, que se havia propostomodernizar a admrustraco do reino e acrescentar o estudo daeconomia ao do direito na formaco dos futuros funcionrios.A.W. Smallresume assim o pensamento dos cameralistas: "0 pro-

    blemacentral da ciencia,paraos cameralstas, era o problemadoEstado. De acordo com eles, o objeto de toda teoria social eramostrar como o bem-estar (welfare) do Estado podia ser assegura-do.Viam no bem-estar do Estadoa fonte de todo outro bem-es-taro Toda a sua teoriasocial se irradiava a partir desta tarefa central:prover o Estado de dinheiro vivo (ready means)" (A.w. Small, TheCameralists: The pioneers 01 German social polity, Londres, BurtFranklin, 1909, p. VIII). Sobre o mercantilismo, cf. infra, aula de 5de abril, p. 454.

    26. [ohann Gottlieb Fichte (1762-1814), Der geschlosseneHandelsstaat, Tbingen, Colta I L'tat commercial fenn, trad. fr. J.Gibelin, Paris,Librairie gnrale de droit el de jurisprudence, 1940;nova ed. com ntroduco e notas de D. Schulthess, Lausanne,I:Age d'homme, "Rason dalectque", 1980. Nessa obra dedicadaao ministro das Fnancas, o economista Struensee, Fichtese erguetantocontra o liberalismo como contra o mercantilismo, acusadosde empobrecer a maioria da populaco, aos quais ope o modelode um "Estado racional" com fundamentocontratual, que contro-le a produco e planejea alocaco dos recursos.

    27. Kristiania: antigo nome da capital da Noruega (Oslo, des-de 1925), reconstruda pelo rei Cristiano N em 1624, depois do in-cendio que destruiu a cdade. M. Foucault diz todas as vezes"Krstana".

    28. Fundada por Gustavo Adolfo II em 1619, a cidade foiconstruida com base no modelo das cidadesholandesas,em razodos terrenos pantanosos.

    29. Situada a sudeste de Chinon (Indre-et-Lore), amargemdo Mable, a cidade foi construda pelo cardeal de Richeleu, quemandoudemoliros velhos casebres, no localdo dominiopatrimo-nial, e a reconstruiu, a partir de 1631,com base num projetoregu-lar tracado por [acques Lemercier (1585-1654). As obras foram di-rigidas pelo rmo deste ltimo, Pierre Lemercier, que fez os pro-jetosdo castelo e do conjuntoda cidade.

    30. O acampamento romano (castra) era formado por umquadrado ou um retngulo, subdividido em diversos quadradosou retngulos. Sobrea castrametaco romana (arte de instalar osexrcitos nos acampamentos), cf. a nota deta1hadssima do Nou-veau Larousse illustr, t. 2, 1899, p. 431. Sobre a retomada dessemodelo,no inciodo sculo XVll,como condco da disciplina mi-litar e forma ideal dos 'vobservatros' da multiplicidade humana"

    34 SEGURAN

  • - IJ o acampamento o diagrama de um poder que age pelo efeitode urna visibilidade geral" -, d. Surveiller et Punir,pp. 173-4 e fi-gura 7.A bibliografia citada porFoucault, ento, essencialmentefrancesa (p. 174, n. 1), com exceco do tratado de J.). van WalIhau-sen, r:Art mi/itaire pour l'infanterie, Francker; Uldrck Balck, 1615(trad. fr. de Kriegskunst zu Fusz por). Th.de Bry; citado p. 172, n. 1).Wallhausen foi o primeiro diretor da SchoZa militaris fundada emSiegen, Holanda,por [oo de Nassau em 1616. Sobre as caracte-rsticas da "revoluco militar" holandesa e sua dfuso na Alema-nha e na Suca,d. a rqussma bibtiografia fomecida por G. Farker,TheThirtyYear's War, Londres, Routledge & Kegan Paul, 19841 LaGuerre deTrente Ans, trad. fr.A. Charpentier, Pars,Aubier, "Collec-tion historque", 1987, pp. 383 e 407.

    31. P. Lelievre, L'Urbanisme et I'Architecture Nantesau XVIII'secle. tese de doutoramento, Nantes, Librairie Durance, 1942.

    32. Plande la vi/le de Nantesetdes projets d'embellissement pr-sents parM. Rousseau, archiiecte, 1760, com a seguinte dedicatria:"lllustrissimo atque omatissimo D. D. Armando Duplessis de Ri-chelieu, duci Aiguillon, pari Francae". Cf. P. Lelevre, op. cit., pp.89-90: "Uma magnaco tao completamente arbitrria s apre-senta, na verdade, o interesse da sua desconcertante fantasia." (Oplano da cidadede Nantes, com sua formade coreco, reprodu-zido no verso da pgina 87.) Cf.tambm p. 205: "Ser absurdo su-por que a prpria idia de 'crculaco' possa ter inspirado essa fi-gura anatmica, sulcada por artrias? Nao levemos mais longeque ele essa analogia limitada ao contorno, esquemtico e estili-zado' do rgo da crculaco."

    33. tienne-Louis Boulle (1728-1799), arqulteto e desenhis-ta francs. Preconizava a adoco de formasgeomtricasinspiradasna natureza (ver seus projetos de um Museu, de urna BibliotecaNacional,de um palcio paraa capitalde um grande imprio oude urn tmulo em homenagem a Newton, in ). Starobinsk, 1798.LesEmblmes de la raeon, Pars,Plammarion, 1973, pp. 62-7).

    34. Oaude-Nicolas Ledoux (1736-1806), arquiteto e desenhis-ta francs, autor de L'Architecture considre sous le rapport de l'art,des moeurs et de la lgislation, Paris, ed. do autor, 1804.

    35. Plande lavi/lede Nantes, avecleschangements et lesaccrois-sements parle sieurde Vigny, architecte du Roy et dela Socit de Lon-dres, intendantdesMtimentsdeMgr leducd'Orlans. - Fait parnous,architeae du Roy, Paris, le8 avri11755. Cf.P. Lelievre, l'Urbanisme

    et l'Architecture..., pp. 84-9; d. igualmente o estudo que lhe consa-gra L. Delattre, in BuUetin de la Socit archologique et historique deNantes, t. LII, 1911, pp. 75-108.

    36. )ean-Baptiste Monet de Lamarck (1744-1829), autor dePhilosophie zoologique (1809); d. G. Canguilhem, "Le vivant etson mlieu", in id..La Connaissance delavie,Paris,Vrin,1965,p.131:"Lamarck sempre fala de meios, no plural, e entende expressa-mente por isso fluidoscomo a gua,o are a luz. Quando Lamarckquerdesignaro conjunto das aces que se exercem de forasobreum servivo, isto , o que hoje chamamos de meio, ele nunca dizmeio, mas sempre Jcircunstancias influentes'. Porconseguinte,cir-cunstancias paraLamarck um genero de que clima, lugare meiosao as espcies."

    37. Cf. G. Canguilhem, ibid., pp. 129-30: "Histricamenteconsiderados, a noco de meio e o termo meio foram importadosda mecnica paraa biologa, na segunda partedo sculo XVIII. Ancco mecnica, mas nao o termo, aparece com Newton, e o ter-mo meo, com seu significado mecnico, est presente na Encyclo-pdie [Enciclopdia] de D'Alember! e de Diderot, no verbete Meo.[...] Os mecanicistas franceses chamaram de meio o que Newtonentendiaporfluido, cujotipo, paranao dizero arqutipo nico, ,na fsica de Newton, o ter." E por intermdio de Buffon, explicaCanguilhem, que Lamarck toma emprestadode Newton o mode-lo de explicaco de urna reaco orgnica pela a;ao de um rneio.Sobre a emergenciada idia de meio, na segunda metade do s-culo XVIII, atravs da noco de "forcas penetrantes" (Buffon), d.M.Poucault, Histoire de lafolie..., op. cit., ID, 1, ed, de 1972, pp. 385ss. ("No~o negativa [...) que aparece no sculo XVIII, para expli-car as varaces e as doencas, muito mais que as adaptaces e asconvergencias. Como se essas 'forcas penetrantes' formassem overso, o negativo do que vira ser,posteriormente, a noco posi-tiva de meio", p. 385).

    38. G. Canguilhem, in op. cit.,p. 130: "O problema a resolverpara a mecnica na poca de Newton erao da a;ao adistancia deindivduos fsicos distintos."

    39. Moheau, Recherches etConsidrations sur lapopuiation delaFrance, Paris, Moutard, 1778; reed. com introd. e quadro analticoporR. Gonnard, Paris, P. Geuthner, IJ Collectiondes conomistes etdes rformateurs sociauxde la Prance", 1912;reed.anotadapor E.Vilquin, Pars, INED/PUF, 1994. Segundo ).-0. Perrot, Unehistoire

    36 SEGURAN;:A, TERRIT6RIo, POPUIA

  • intellectuelle de l'conomie politique, XVII'-XVIII' sicle, Pars, d. deEHESS, "Civilisations et Socts", 1992, pp. 175-6, esse livroconstitu "0 verdadeiro I esprito das leis' demogrficas do sculoXVITI". A identidade do autor ("Moheau",sem nenhum prenome)foi objetode urna langa controvrsia desde a publicaco da obra.Certo nmero de comentadores viram a uro pseud6nimo detrsdo quaI estaria dissimuladoo baro Auget de Montyon,sucessiva-mente intendente de Riom, de Aixe de La Rochelle. Parece esta-belecidohoje em dia que o livrofoi mesmo escritopor [ean-Bap-tiste Moheau,que foi seu secretrio at 1775 e morreu guilhotina-do em 1794. Q. R. Le Me, "Iean-Baptste Moheau (1745-1794) etlesRecherches...Un auteur nigmatique ou mythiquei", in Moheau,Recherches etConsidrations..., ed. de 1994, pp. 313-65.

    40. Recherches et Considrations..., livro 1I, parte 2, cap. XVII:"Dainfluencia do Governo sobre todas as causasque podem de-terminar os progressos ou as perdas da populaco", ed. de 1778,pp. 154-5; ed, de 1912, pp. 291-2; ed. de 1994, p. 307. A frase ter-minaassim: "[...] e que nao h nenhuma relaco entreos grausdefrioe de calornas mesmas regi5es ero pocas diferentes".

    41. !bid.: "Vrglo nos surpreende quando fala do vnho quegelavana Itlia nos tonis; certamenteo campo de Roma nao eraO que hoje na poca dos romanos,que rnelhoraram a habtacode todos os lugares que subrneterarn asua dominaco" (ed. de1778, p. 155; ed. de 1912, p. 292; ed. de 1994, p. 307).

    42. tu, pp. 157,293,307-8.

    38 SEGURAN(A, TERRITRIO, POPUIAc;:A.O

    AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978

    Caractersticas gerais dosdispositivos de segura11{Q (JI):a rela~o com o acontecimento: a arte de governar e o trata-mento doaleatorio. - O problema daescassez alimentar nos s-culos XVII e XVIII. - Dos mercantilistas aosfisiocratas. - Di-ferenfQS entre dispositivo deseguranra e mecanismo disciplinarna maneira de tratar o acontecimento. - A nova racionatidadegovernamental e a emergencia da "popuadio". - Conclusiiosobre o liberalismo: a liberdade como ideologa e tcnica degoverno.

    Tnhamos comec;ado a estudar um pouco O que pode-riamos chamar de forma, simplesmente de forma de algunsdos dispositivos importantes de seguranc;a. Da ltima vez,disse duas palavras a propsito das relac;6es entre o territ-rio e O meio. Procurei !hes mostrar atravs de alguns textos,de um lado, de alguns projetos e tambm de algumas urba-nizaces reais de cidades no sculo XVIII, como O soberanodo territrio tinha se tomado arquiteto do espaco discipli-nado, mas tambm, e quase ao mesmo tempo, regulador deum meio no qual nao se trata tanto de estabelecer os lirni-tes, as fronteras, no qual nao se trata tanto de determinarlocalizaces, mas, sobretudo, essencialrnente de possibilitar,garantir, assegurar circulaces: crculaco de pes soas, crcu-laco de mercaderas, crculaco do ar, etc. Para dizer a ver-dade, essa funco estruturante do espac;o e do territriopelo soberano nao coisa nova no sculo XVIII. Afinal, quesoberano nao quis fazer urna ponte sobre o Bsforo ou re-mover montanhas?" Mas resta saber tambrn, justamente,no interior de que economia geral de poder se situam esse

    ... Ero vez dessa frase, figuram no manuscrito estes tres nomes:"Nemrod, Xerxes, Yu Kong".

  • 40 SEGURAN

  • 42 SEGURANc;:A, TERRlTRIO, POPULA

  • 44 SEGURAN;:A, TERRITRIO, POPULAc;:Ao AUlA DE18 DEJANEIRO DE 1978 45

    produza antes que ele se inscreva na realidade. Intil insis-tir nos fracassos bem conhecidos, mil vezes constatados,desse sistema. Fracassos que consistem no seguinte: primei-ro, essa manutenco do preco dos cereais no nvel mais bai-xo produz este primeiro efeito, de que, mesmo quando habundancia de cereais, ou melhor, principalmente quandoh abundncia de cereais, os camponeses vo se arruinar,pois dizer abundancia de cereais dizer tendencia dos pre-cos a baixa e, finalmente, o preco" do trigo para os campo-neses vai ser inferior aos investimentos que eles fizerampara obr-lo, lago, ganho que tende a zero, as vezes que atcai abaixo do custo da produco para os campaneses. Emsegundo lugar, segunda conseqnca, val ser que, nao ten-do obtdo, nem nos anos em que o trigo abundante, lucrosuficiente com a sua colheita, os camponeses vo se ver fa-dados e constrangdos a plantar pouco. Quanto menos lu-cro tiverem, menos vo poder semear, Esse plantio escassovai ter como conseqnca imediata que bastar a menor ir-regularidade climtica, quer dzer, a menor oscilacoclim-tica, fria demais, estiagem demais, umidade demais, para queessa quantidade de trigo que justo o suficiente para ali-mentar a populaco caia abaxo das normas requeridas e aescassez alimentar apareca no ano segunte. De modo que,a cada instante, essa poltica do pre,o mais baixo possvelexpe a escassez alimentar e, precisamente, a esse flageloque se procurava conjurar.

    [Perdoem-me o] carter ao mesmo tempo por demaisesquemtico e um tanto austero disso tuda. Como as coisasvo se passar no sculo xvm, quando se procurou destra-var esse sistema? Todo o mundo sabe, e a1is exato, quefoi do interior de urna nova concepco da economa, talvezat do interior desse ato fundador do pensamento econ-mico e da anlse econmica que a doutrina fisiocrtica,que se comecou a colocar como principio fundamental de

    >1- M.E: o precc de rusto

    govemo econmico' o principio da liberdade de comrcio ede crculaco dos cereais. Conseqncia terica, ou melhor,conseqncia prtica de um principio terico fundamental,que era o dos fisiocratas, a saber, que o nico ou pratica-mente o nico produto lquido que podia ser obtido nurnanaco era o produto campons', A bem da verdade, nao sepode negar que a liberdade de circulaco dos cereais efe-tivamente urna das conseqncas tericas lgicas do siste-ma fisiocrtico. Quer tenha sido o prprio pensamento fi-socrtico, quer tenham sido os fisiocratas com sua influen-cia que a tenham imposto ao governo francs nos anos1754-1764, mesmo assim urn pouco verdade, embora semdvida nao seja suficiente. Mas creio que o que seria de fatoinexato considerar que essa forma de opco poltica, essaprogramaco da regulaco econmica nao seja nada maisque a conseqncia prtica de urna teoria econmica. Creioser possvel mostrar facilmente que o que aconteceu entoe que deu ensejo aos grandes editas ou "declaraces" dosanos 1754-1764, o que aconteceu ento fo, na realidade,talvez atravs e gracas ao intermedio, ao apoio dos fisiocra-tas e da sua teora, foi na verdade toda urna mudanca, oumelhor, urna fase de urna grande mudanca nas tcnicas degovemo e urn dos elementos dessa nstauraco do que cha-marei de dispositivos de seguranca. Em outras palavras,voces podem ler o principio da livre circulaco dos cereaisseja como a conseqncia de um campo terico, seja comoum episdio na mutacodas tecnologias de poder e como umepisdio na mplantaco dessa tcnica dos dispositivos deseguranca que me parece caracterstica, urna das caracters-ticas das sociedades modernas.

    H urna coisa, em todo caso, que verdade: que, mu-to antes dos fisiocratas, certo nmero de governos haviamde fato pensado que a livre crculaco dos cereais era nao suma melhor fonte de lucro, mas certamente urn mecanismode seguranca muito melhor contra o flagelo da escassez ali-mentar. Era em todo caso a idia que os polticos inglesestiveram bem cedo, desde o fim do sculo XVIL j que em

    j

  • 1689 eles haviam criado e feito o Parlamento adotar um con-junto de leis que, em suma, impunha, admitia a liberdadede circulaco e de comrcio dos cereas, com um sustent-culo e um corretvo, entretanto. Em primeiro lugar, a lber-dade de expor:a~ao, que d~a permitir em periodo fasto,ou seja, em penodo de abundancia e de boas safras, susten-tar o preco do trigo, dos cereas em geral, que corria o riscode desabar pelo prprio fato dessa abundancia. Para sus-tentar o preco, n~o s se permitia a exportaco, mas ajuda-va-se a exportaco por um sistema de incentivos, instituin-do um corretivo, um adjuvante a essa liberdade'. E, em se-~ndo lug~ para evitar igualmente que houvesse, em pe-nodo favorvel, urna mportaco grande demais de trigopela Inglaterra, estabeleceram-se taxas de importaco, de talmaneira que ~ excesso de abundancia vindo dos produtosImportados nao fizesse os preces novamente carem". Logo,o bom pre~ era obtdo por essas duas sries de medidas.

    Esse modelo ingles de 1689 val ser o grande cavalo debatalha do~ tericos da economa, mas tambm dos que, deurna maneira ou outra, tinham urna responsabilidade ad-ministrativa, poltica, econmica na Franca do sculo XVITr.E foram ento os trinta anos durante os quais o problemada, liberdade dos cereais foi um ,dos problemas polticos eteo~cos malor~s n~ Franca do seculo XVITI. Tres fases, porassirn dizer: pnmeiro, antes de 1754, ou seja, no momentoem que o velho sistema juridico-disciplinar ainda vigoraplenamente com suas conseqncas negativas, toda urnafase de polmicas, 1754, adoco na Franca de um regirneque , em linhas geras, moldado quase tal e qual no da In-glaterra, ou seja, urna liberdade relativa mas corrigida e, decertaf?rma, s~stentada"; depos, de 1754 a 1764, chegadados fsiocratas I mas somente nesse momento, acena te-rica e poltica, toda urna srie de polmicas a favor da liber-dade dos cereais, e, enfm, os editos de maio de 1763" e deagosto d~ 1764", que estabelecem a liberdade quase totaldos c~reals, c0l!1 apena~.algumas restrices, Por conseguin-te, vtona dos fsiocratas .mas tambm de todos os que, sem

    ser diretamente fisiocratas, os discpulos de Cournay" porexernplo, tinham sustentado essa causa. 1764 , portante, aliberdade dos cereais. Infelizmente, o edito de agosto de[17]64. Em setembro de [17]64, isto , no mesmo ano, algu-mas semanas depos, as ms colheitas na Guyenne fazemos pre~os subirem a urna velocidade astronmica, e j co-meca a surgir a questo de se nao se deve voltar atrs nes-sa liberdade dos cereais. Com isso. vamos ter urna terceiracampanha de dscusses, defensiva desta vez, em que os fi-siocratas e os que sustentam os mesmos princpios sem serfisiocratas vo ser obrigados a defender a liberdade que fi-zeram quase integralmente reconhecer em 1764'".

    Portanto ternos todo um pacote de textos, de projetos,de programas, de explicaces, Vou me referir simplesmenteao que , ao mesmo tempo, o mais esquemtico, o mais cla-ro e que teve, de resto, urna importancia considervel. umtexto que data de 1763, que se chama Carta deum negocian-tesobre a natureza do comrcio dos cereais. Foi escrito por umsujeito que se chamava Louis-Paul Abeille", importante aomesmo tempo pela influencia que teve seu texto e pelo fatode que, discpulo de Gournay, tinha em suma unificado amaioria das posces fisiocrticas. Ele representa portantourna [espcie] de ponto de artculaco no pensamento eco-nmico dessa poca. Ento, [se tomarmos] esse texto comoreferencia - mas ele simplesmente exemplar de toda urnasrie de outros, e, com algumas modificaces, creio que en-contrariamos nos outros textos os mesmos princpios queos aplicados por Abeille na sua Carta de um negociante -, nofundo, o que que ele faz? Mais uma vez, poderiamos reto-mar o texto de Abeille numa anlise do campo terico, pro-curando descobrir quas sao os princpios diretores, as re-gras de formaco dos conceitos, dos elementos tericos, etc.,e seria preciso sem dvida retomar a teoria do produto l-qudo". Mas nao assirn que eu gostaria de retomar esse tex-to. Nao, portante, como no interior de urna arqueologia dosaber, mas na linha de urna genealogia das tecnologas depoder. E ento creio que poderiamos reconstituir o funcio-

    46 SEGURAN(:A, TERRITORIO, POPULAc;:AO AULADE18 DE]ANEIRO DE 1978 47

  • namento do texto, em funco nao das regras de formacodesses conceitos, mas dos objetivos, das estratgias a que eleobedece e das programac;6es de aco poltica que sugere.

    Creio que a primeira coisa a aparecer seria a seguinte:que, no fundo, para Abelle, essa mesma coisa que se deviaevitar a qualquer preco, antes mesmo que ela se produzis-se,no sistema jurdico-disciplinar, a saber, a escasseze a ca-restia, esse mal a evitar na viso de Abeille e dos fisiocratas,e dos que pensam da mesma maneira, no fundo nao ne-nhum mal. E nao se deve pens-lo como um mal, ou seja,deve-se consider-lo como um fenmeno que , primeira-m_en~e, natural e, por consegui~te, em ,segundo lugar, quenao e nem bom nem ruim. Ele e o que e. Essa desqualifica-C;ao em termos de moral ou simplesmente em termos debom ou de ruim, de coisas a evitar ou a nao evitar, essa des-qualficaco implica que a anlise nao vai ter por alvo prin-cipal o mercado, isto , o prec;o de venda do produto emfunco da oferta e da procura, mas vai de certo modo recuarum ponto ou sem dvida at vrios pontos e tomar por ob-jeto, nao tanto o fenmeno escassez-carestia, tal comopode aparecer no mercado, j que o mercado, o espac;omesmo do mercado que faz aparecer a escassez e a cares-tia, mas o que chamarei de histria do cereal, desde o mo-mento em que o cereal plantado, com o que isso implicade trabalho, de tempo gasto e de terras semeadas - de custo,por conseguinte. O que acontece com o cereal desde essemomento at o momento em que ter finalmente produzi-do todos os lucros que pode produzir? A unidade de anli-se nao ser mas, portanto, o mercado com seus efeitos es-cassez-caresta, mas o cereal com tudo o que !he podeacontecer e !he acontecer naturalmente de certo modo, emtodo caso em funco de um mecanismo e de leis em quevo interferir tanto a qualidade do terreno, [como] o cuida-d? com que cultivado, as condic;6e~ climticas de sequi-do, calor, umidade, e enfim a abundancia ou a escassez, acolocacono mercado, etc. muito mais a realidade do ce-real do que o medo da escassez alimentar que vai ser o acon-

    tecimento que vamos procurar entender. E nessa realida-de do cereal, em toda a sua histria e com todos os vaivnse acontecimentos que podem de certo modo fazer sua hist-ra oscilar ou se mexer em relaco a urna linha ideal, nes-sa realidade que se vai tentar enxertar um dispositivo gra-cas ao qual as oscilacesda abundancia e do prec;obaixo, daescassez e da carestia vo se ver, nao impedidas de ante-mo, nao proibidas por um sistema jurdico e disciplinar, que,impedindo isto, forc;ando aquilo. deve evitar que elas ocor-ramo O que Abeille e os fisiocratas e tericos da economano sculo XVIII procuraram obter foi um dispositivo que,conectando-se a prpria realidade dessas oscilaces, vaiatuar de tal modo que, por urna srie de conexes com ou-tros elementos da realidade, esse fenmeno, sem de certomodo nada perder da sua realidade, sem ser impedido, seencontre pouco a pouco compensado, freado. finalmente li-mitado e, no ltimo grau, anulado. Em outras palavras, umtrabalho no prprio elemento dessa realidade que a osci-laco abundancia/escassez, carestia/prec;o baixo, apoian-do-se nessa realidade, e nao tentando impedir previamen-te, que um dispositivo vai ser instalado, um dispositivo que precisamente, a meu ver, um dispositivo de seguranc;a enao mais um sistema jurdico-disciplinar.

    Em que vai consistir esse dispositivo que se conectaportanto realidade de certa forma reconhecida, aceita,nem valorizada nem desvalorizada, reconhecida simples-mente como natureza, qual o dispositivo que, conectan-do-se a essa realidade de oscilaco, vai permitir regul-la?A coisa conhecda, vou simplesmente resum-la. Em pri-meiro lugar, nao visar o menor prec;o possvel. mas sim au-torizar, propiciar at um aumento do prec;o do cereal. Esseaumento do prec;o do cereal, que pode ser proporcionadopor meios um pouco artficiais, como no mtodo ingls, emque as exportac;6es eram sustentadas por incentivos, emque se fazia presso sobre as importaces, taxando-as, po-de-se utilizar esse meio para fazer o prec;o do cereal subir,mas tambm se pode - e essa a soluco liberal (tomarei

    48 SEGURANc;:A, TERRITRIO, POPULAc;:AO AULADE 18DEJANEIRO DE 1978 49

    j

  • daqui a pouco sobre essa palavra, "liberal") aqual se ali-nham os fisiocratas - [suprimir] todas as probces de esto-cagem, de modo que as pessoas podero, como quserem,quando quiserem, na quantidade que desejarem, por maiorque seja, estocar seu cereal e rete-lo, aliviando assim o mer-cado quando houver abundncia.Vo ser igualmente supri-midas todas as proibices de exportaco, de modo que aspessoas tero direto, se tiverem vontade, quando os pre~osexternos forem favorveis, de mandar o cereal para o exte-rior. Aqui tambm novo alivio do mercado, desobstruco, ecom isso, quando houver abundancia, a possibilidade de es-tocagem, de um lado, e a permisso de exportaco, do ou-tro, vo manter os pre~os.Teremos ento uma coisa que pa-radoxal em relaco ao sistema precedente, que era imposs-vel e indesejvel riele, a saber, que, quando houver abun-dancia' haver ao mesmo tempo preces relativamente altos.Acontece que gente como Abeille, por exemplo, e todos osque escreveram nessa poca, escreviam num momento emque, justamente, urna srie de boas safras entre 1762 e 1764permitia tomar esse exemplo favorve1.

    Portanto os preces sobem mesmo em perodo de abun-dancia. A partir desse aumento dos pre~os, o que vamoster? Primeiro, urna extenso do cultivo. Como foram bemremunerados na safra anterior, os camponeses podero dis-por de muito grao para semear e fazer os gastos necessriospara um grande plantio e um bom cultivo. Com isso, depoisdessa primeira safra bem paga, aumentam as probabilida-des da safra seguinte ser boa. Mesmo que as condces cli-mticas nao sejam muito favorveis, a maior extenso dasterras semeadas, o melhor cultivo compensaro essas mscondces e haver maiores probabilidades de a escassezalimentar ser evitada. Mas, ampliando assim o cultivo, oque vai acontecer?Vai acontecer que essa primeira elevacodos pre~os nao ser acompanhada por uma elevaco seme-lhante e de mesma proporco no ano seguinte, porque, afi-nal, quanto maior a abundancia, os preces evidentementetendero a se estabilizar, de modo que urna primeira eleva-

  • 52 SEGURANc;:A, TERRITRIO, POPULAc;:AO AUlA DE18 DEJANEIRO DE 1978 53

    bem perfeitamente que ao fim do sexto mes as importacesvo ocupar o lugar do trigo que falta no pas. Ora, as pes-soas que tm trigo e que podem vende-lo, e que teriam atentaco de rete-lo aguardando esse tal sexto mes ao fim doqual os pre~os deveriam disparar, nao sabem quanto trigovai poder vir dos pases exportadores e, portante, chegar nopas, Nao sabem se, afinal de contas, no sexto mes nao vaihaver urna quantidade tao grande de trigo que os pre~osdesabaro, Logo, em vez de esperar esse sexto mes, em quenao sabem se os pre~os nao vo baxar, as pessoas vo pre-ferir aproveitar, desde o inicio, desde o anncio da safraruim, a pequena alta de pre~os que se produz, Vo pr seutrigo no mercado e nao voo haver esses fenmenos que seobservam agora, em tempos de regulamentaco, esses com-portamentos de pessoas que retm o trigo a partir do mo-mento em que se anuncia urna safra ruim, Portanto a altade pre~os vai ocorrer, mas logo vai se estabilizar ou alean-car o teto, na medida em que todo o mundo vai entregarseu trigo na perspectiva das tas mportaces, quem sabemacicas, que vo se produzir a partir do sexto mes",

    Do lado dos exportadores dos pases estrangeiros, va-mos ter o mesmo fenmeno, quer dizer, se souberem quena Franca h urna escassez alimentar, os exportadores in-gleses, alemes, etc', vo querer aproveitar as elevaces depre~os, Mas eles nao sabem que quantidade de trigo virpara a Franca dessa maneira. Nao sabem de que quantida-de de trigo seus concorrentes dispern, quando, em quemomento, em que proporco eles vo levar seu trigo e, porconseguinte, tambm nao sabem se, esperando demais, naofaro um mau negocio. Donde a tendencia, que tero, deaproveitar a alta imediata de preces para lancar seu trigonesse mercado para eles estrangeiro, que a Franca, e comisso o trigo vai afluir na medida mesma de sua escassez",Ou seja, o fenmeno escassez-carestia induzido por urnasafra ruim num dado momento que vai acarretar, por todaurna srie de mecanismos que sao ao mesmo tempo colet-vos e individuis (tomaremos sobre esse ponto daqui a pou-

    col, aquilo que o vai pouco a pouco corrigir, compensar, freare finalmente anular, Ou seja, a alta que produz a baxa. Aescassez alimentar ser anulada a partir da realidade dessemovimento que leva a escassez alimentar, De modo que,numa tcnica corno esta de liberdade pura e simples da cir-culaco de cereas, nao pode haver escassez alimentar, CornodzAbelle, a escassez alimentar urna quimera,

    Essa concepco dos mecanismos do mercado nao simplesmente a anlise do que acontece, ao mesmo tem-po urna anlise do que acontece e urna programacodo quedeve acontecer, Ora, para fazer essa anlise-programaconecessrio um certo nmero de condces. Voces puderamidentific-las de passagem, Prmero, a anlise" teve de serconsideravelmente ampliada, Prmeiro, ela tem de ser am-pliada do lado da produco, MOOs urna vez, nao se deve con-siderar simplesmente o mercado, mas o ciclo inteiro, desdeos atos produtores inicas at o lucro final, O lucro do agri-cultor faz parte desse conjunto que preciso, ao mesmotempo, levar em conta, tratar ou deixar desenvolver-se, Emsegundo lugar, ampliaco do lado do mercado, porque naose trata simplesmente de considerar um mercado, o merca-do interno da Franca, o mercado mundial de cereais quedeve ser levado em conta e posto em relaco com cadamercado no qual o cereal pode ser vendido, Nao basta por-tanto pensar nas pessoas que vendem e que compram naFranca num mercado dado, preciso pensar em todas asquantidades de cereal que podem ser postas avenda em to-dos os mercados e em todos os pases do mundo, Amplia-~ao portanto da anlise do lado da produco, amplaco dolado do mercado, [Em terceiro lugar,] amplaco tambmdo lado dos protagonistas, na medida em que, em vez de lhesimpor regras imperativas, vOO-se procurar identificar, com-preender, conhecer como e por que eles agem, qual o cl-culo que fazem quando, diante de urna alta dos pre~os, eles

    ... M. Foucaultacrescenta: a consideraco

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    retm os cereais, que clculo, ao contraro, vo fazer quandosabem que h liberdade, quando nao sabem que quantida-de de cereal val chegar, quando hesitam em prever se have-r alta ou baixa do cereal. isso tudo, isto , esse elementode comportamento plenamente concreto do horno oeconomi-cus, que deve ser levado igualmente em consideraco, Emoutras palavras, urna economa,ou urna anliseeconmico-poltica, que integre o momento da produco, que integre omercado mundial e que integre enfim os comportamentoseconmicos da populaco, produtores e consumidores.

    Nao s isso. Essa nova maneira de conceber as coisase de program-las implica algo importantissimo em relacoa esse acontecimento que a escassez alimentar, ero rela-

  • cidade dos individuos j nao pertinente, a populaco, sm,Essa cesura no interior do que constitua a totalidade dossditos ou dos habitantes de um reino, essa cesura nao urnacesurareal. Nao vai haver urna coisa e outra. Mas noprprio interior do saber-poder, no prprio interior da tec-nologia e da gesto econmica que vamos ter esse corte en-tre o nvel pertinente da populaco e o nvel nao-pertinen-te, ou anda, o nvel simplesmente instrumental. O objetivofinal vai ser a populaco. A populaco pertinente comoobjetivo, e os individuos, as sries de individuos, os gruposde individuos, a multiplicidade dos individuos, esta nao vaiser pertinente como objetivo. Vai ser simplesmente perti-nente como instrumento, intermdio ou condco para obteralgo no nvel da populaco,

    Cesura fundamental sobre a qual procurarei tornar daprxima vez, porque creio que tudo o que est envolvidonessa noco de populaco aparece bem claramente a. Apopulaco como sujeito poltico, como novo sujeito coleti-vo absolutamente alheio ao pensamento jurdico e polticodos sculos precedentes, est em via de aparecer a na suacomplexidade, com as suas cesuras.Vocsj esto vendo queela aparece tanto como objeto, isto , aquilo sobre o que,para o que sao dirigidos os mecansmos para obter sobreela certo efeto, [quanto como] sujeito, j que a ela que sepede para se comportar deste ou daquele jeito. A populacocoincide com a antiga noco de povo, mas de maneira talque os fenmenos se escalonam em relaco a ela e que ha-ver certo nmero de nveis a reter e outros que, ao contr-rio, nao sero retidos ou sero retidos de outra maneira. E,para assinalar simplesmente a coisa sobre a qual gostaria detornar da prxima vez, por ser ela fundamental, eu gostara- e encerrarei com esse texto de Abeille - de !hes indicar que,nesse texto justamente, encontramos urna distnco curio-sssima. Porque, terminada sua anlise, Abeille tem entre-tanto um escrpulo. Ele diz: tudo isso muito bonito. A es-cassez-flagelo urna quimera, est bem. Ela urna quime-ra, de fato, contanto que as pessoas se comportem devida- >1- Palavra omitida por M. Poucault.

    mente, isto , que urnas aceitem suportara escassez-cares-tia e que as outras vendam seu trigo no devido momento,isto , bem cedo, contanto que os exportadores despachemseu produto assim que os pre

  • ma sob certos aspectos, que ela faz eco, que ela tem urnaespcie de simetra em relaco ao pensamento jurdico quedizia, por exemplo, que todo indivduo que aceita as leis doseu pas assina um contrato social, aceita-o e o revalida acada instante em seu prprio comportamento, enquantoaquele que, ao contrario, viola as leis, rasga o contrato so-cial, este toma-se estrangeiro em seu prprio pas e, porconseguinte, cai sob as leis penais que vo pun-lo, exil-lo,de certo modo mat-lo", O delinqente em relaco a essesujeito coletivo criado pelo contrato social rasga esse con-trato e cai do lado de fora desse sujeito coletivo. Aqui tam-bm, nesse desenho que comeca a esbocar a noco de po-pulaco, vemos estabelecer-se urna divisria na qual o povoaparece como sendo, de urna maneira geral, aquele que re-siste aregulaco da populaco, que tenta escapar desse dis-positivo pelo qual a populaco existe, se mantm, subsiste,e subsiste num nvel timo. Essa oposico povo/populaco importantssima. Procurarei lhes mostrar da prxima vezcomo, apesar da simetra aparente em relaco ao sujeito co-letivo do contrato social, na verdade de urna coisa bem di-ferente que se trata e [que] a relaco populaco-povo nao semelhante aoposico sujeito obediente/delinqente, queo prprio sujeito coletivo populaco muito diferente dosujeito coletivo constitudo e criado pelo contrato social".

    Em todo caso, para terminar com isso, gostaria de mos-trar a voces que, se quisermos entender melhor em queconsiste um dispositivo de seguran~a como o que os fisio-cratas e, de maneira geral, os economistas do sculo XVIIIpensaram para a escassez alimentar, se quisermos caracte-rizar uro dispositivo como esse, creioque necessrio com-par-lo com os mecanismos disciplinares que podemos en-contrar nao apenas nas pocas precedentes, mas na mesrnapoca em que eram implantados esses mecanismos de se-guranca. No fundo, creio que podemos dizer o seguinte.A disciplina essencialmente centripeta. Quero dizer que adisciplina funciona na medida em que isola um espa~o, de-termina um segmento. A disciplina concentra, centra, en-

    "" Entre aspas no manuscrito, p. 7: "J a seguranca 'laisse faire', nosentido positivo da expresso."

    cerra. O primeiro gesto da disciplina , de fato, circunscre-ver um espaco no qual seu poder e os mecanismos do seupoder mconaro plenamente e sem limites. E, justamen-te, se retomarmos o exemplo da polica disciplinar dos ce-reais tal como ela existia at meados do sculo XVIII, talcorno voces vo encontr-la exposta em centenas de pgi-nas do Tratado de polcia de Delamare". a policadisciplinardos cereais efetivamente centripeta. Ela isola, concentra,encerra, protecionista e centra essencialmente sua ac;~ono mercado ou nesse espa~o do mercado e no que o rodela.Em vez disso, voces vem que os dispositivos de seguranca,tais como procurei reconstitu-los, sao o contrrio. tendemperpetuamente a ampliar, sao centrifugos. Novos eler:>en-tos sao o tempo todo integrados, integra-se a produco. apsicologa, os comportamentos, as maneiras de fazer dos pro-dutores, dos compradores, dos consumidores. dos Importa-dores, dos exportadores, integra-se o mercado mundial.Tra-ta-se portanto de organizar ou, em todo caso, de deixar CIr-cuitos cada vez mas amplos se desenvolverem. ..

    Em segundo lugar, segunda grande diferenca: a. dISCI-plina, por definico, reg,;)ame~ta tudo.A discplina nao del-xa escapar nada. Nao so ela nao permIte o laisser-jaire, masseu principio que at as coisas mais nfimas na~ d~emser deixadas entregues a si mesmas. A menor infraco a dIS-ciplina deve ser corrigida com tanto maior cuidado q~antomenor ela for. J o dispositivo de seguranca, como voces 111-ram deixa fazer' [laisse faire]. Nao que deixa fazer tudo,ma; h um nivel em que o laisser-faire indispensvel. Dei-xar os pre~os subirem, deixar a escassez se estabelecer, del-xar as pessoas passarem fome, para nao deixar que certacoisa se faca. a saber, instalar-se o flagelo geral da escassezalimentar. Em outras palavras, a maneira como a dsciplinatrata do detalhe nao , em absoluto, a mesma maneira como

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    uro s pretexto aos Mercadoresmal-intencionados e sempre vi-dos de ganho paradetermn-los a ampliarseus.objetivos acustada escassez alimentar, naodexaro de se aproveitar deste;lago osvimos adotarnovamente seu comportamento ordinrio e valer-senovamente de todas as suas prticas danosas para fazer o precodos cereais subir: sociedades, viagens aProvncia, difuso de boa-tos monoplios mediante a compra de todos os cereas, aumentodos lances nos mercados, compra antecipada de cereais no p ounas granjas e celeiros, retenco ero armazns: assim, todo o .co-mrcio vu-se reduzido a alguns dentre eles, que dele se havamapoderado" (citado por 5. L. Kaplan,. Bread, Polities ~nd PolitiealEeonomy in the Reign of Louis XV; Hala, Martinus NIJhoff: 1976,p. 56 / LePain, lePeuple et leRoi, trad. fr.M.-A. Revellat, Pars, Per-rin, "Pour I'histoire", 1986, pp. 52-3).

    5. Essa noco constitui o tia condutor do pensamento deQuesnay, das "Maxmes de gouvemement conomique" [M~mas de govemo econmico], que concluem o verbete "Grans"[Cereais] (1757; in F: Quesnay et laphysiocratie, !NED, 1958, t. 2, pp.496-510), as "Maximes gnrales du gouvemement conor:riqued'un royaume agricole" [Mximas gerais do g