Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro - Relatório de Milícias completo

download Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro - Relatório de Milícias completo

of 108

Transcript of Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro - Relatório de Milícias completo

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    1/108

    organizao:

    no rio de Jane io

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    2/108

    Apoio: Fundao Heinrich Bll

    organizao:

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    S459Segurana, trfco e milcia no Rio de Janeiro /organizao, Justia Global.- Rio de Janeiro : Fundao Heinrich Bll, 2008.

    Inclui bibliografaISBN 978-85-1. Segurana pblica - Rio de Janeiro (Estado).2. Rio de Janeiro (Estado) - Milcias.3. Trfco de drogas - Rio de Janeiro (Estado).I. Justia Global (Organizao).II. Fundao Heinrich Bll.

    08-3477CDD: 363.2CDU: 351.75

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    3/108

    1

    Segurana, trco emilcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    4/108

    1. Termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposta resistncia priso seguida de conronto. Procedimento inicialmente regulamentado durante a ditadura

    militar pela Ordem de Servio n. 803, de 02/10/1969 e publicado no Boletim de Servio do dia 21/11/1969.

    APRESENTAO

    uma publicao organizada por JustiaGlobal, com o apoio da Fundao Heinrich Bll, e que contacom a contribuio de organizaes da sociedade civil e acad-micos. O livro pretende contribuir com algumas refexes atuaissobre o modelo de poltica de segurana que vem sendo adotadono estado e traz inovadoras anlises sobre a crescente atuaode grupos criminosos.

    A publicao apresenta um estudo exploratrio sobre as mil-cias e cinco artigos que trazem para o primeiro plano, atravs dediversas perspectivas de anlise, questes cruciais para o debateatual da segurana pblica no Rio de Janeiro. So analisados o

    processo de mudana na economia poltica do crime, as disputasde territrio entre o trco de drogas e os seus modos de coer-o, a expanso das milcias e do seu brao poltico no Estado, aintensicao da violncia de Estado e um acentuado processode privatizao da segurana pblica.

    No primeiro artigo, Discursos e Prticas na Construo deUma Poltica de Segurana: o caso do governo Srgio CabralFilho (2007 2008), a Justia Global discute a construo deuma poltica de segurana pblica pautada no enrentamento,que contribuiu para o aumento das violaes de direitos huma-nos e das execues sumrias cometidas pela polcia, comodemonstrou o relatrio preliminar da visita ao Brasil do Relator

    da ONU para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais,Philip Alston. O artigo analisa algumas maniestaes pblicasdo governador Sergio Cabral e do secretrio de segurana JosMariano Beltrame e evidencia as estratgias para eetivar aesde guerra que oram responsveis pelo aumento signicativodos chamados autos de resistncia1.

    Segurana, Trfco e Milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    5/108

    Jailson de Souza e Silva, Fernando Lannes e Raquel Willadino,do Observatrio de Favelas, no texto Grupos Criminosos Arma-dos com Domnio de Territrio: reexes sobre a territorialidade docrime na regio metropolitana do Rio de Janeiro, trabalham como conceito de domnio de territrio para analisar as prticas rea-lizadas pelo trco de drogas e pelas milcias; mapeia a infun-cia desses grupos em diversas comunidades do Rio de Janeiro eapresenta propostas de polticas pblicas de segurana.

    Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relaoincompatvel, do proessor da Universidade Federal do Rio deJaneiro, Roberto Leher, amplia o debate ao relacionar as atu-ais polticas de segurana para a Amrica Latina com o processo

    histrico de ormao dos Estados nacionais no continente. Deacordo com o autor, o modelo de controle social exemplicadono Plano Colmbia encontrou seguidores no Rio de Janeiro etem resultado em violaes de direitos humanos vinculadas cri-minalizao da pobreza e dos movimentos sociais.

    Avaliando o surgimento dos grupos de extermnio na Bai-xada Fluminense nas dcadas de 1970-80, Jos Cludio AlvesSouza, proessor da Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro, problematiza o enmeno das milcias na cidade do Riode Janeiro no artigo Milcias: Mudanas na Economia Poltica docrime no Rio de Janeiro. Para o autor, as milcias e os grupos deextermnio so evidncias de que membros do aparato policial

    reconguram uma nova relao com o crime. Deixam de serapenas mediadores na economia poltica do crime para esta-belecer seu prprio controle militarizado das reas pobres dacidade, o que possibilita o avano de certas atividades crimino-sas e unciona de maneira complementar prtica de execu-es sumrias adotada por sua poltica de segurana. As redes

    do crime so analisadas no emaranhado que abrange a mo-de-obra barata para o trco de drogas, os grupos econmicose polticos envolvidos, e, claro, o Estado.

    No artigo Associaes de Moradores de Favelas e seus Diri-gentes: o discurso e a ao como reverso do medo, Itamar Silva,coordenador do Instituto Brasileiro de Anlises Socioeconmicas(IBASE) e Lia de Matos Rocha, doutoranda do IUPERJ, apresen-tam e discutem as percepes de lideranas de movimentos sociais- principalmente lideranas ligadas s associaes de moradoresde avelas - diante de suas possibilidades de ao no contexto pol-tico atual no Rio de Janeiro, da tensa relao com o trco de dro-gas e dos limites da representao poltica nas avelas cariocas.

    Por m, a pesquisa Seis por Meia Dzia?Um estudo explorat-rio do enmeno das chamadas Milcias no Rio de Janeiro, deautoria do proessor Igncio Cano, do Laboratrio de Anlise daViolncia (LAV-UERJ) com colaborao da Justia Global, realizauma minuciosa refexo do enmeno das milcias na cidade doRio de Janeiro. Com base em um arto levantamento de dados -notcias da imprensa, inormaes do servio de disque-denn-cia e entrevistas com pessoas que moram em comunidadesdominadas por milcias - a pesquisa evidencia o modus operandidesses grupos armados, a sua extenso no poder poltico local ea sua abrangncia territorial na cidade.

    A manuteno do controle exercido pelo trco e, agora a

    rpida expanso das milcias, em reas pobres da cidade, aliadasao aumento do nmero de execues praticadas por agentes doEstado so provas contundentes da alncia deste modelo de segu-rana adotado pelo Estado do Rio de Janeiro, que se baseia exclu-sivamente em uma poltica de enrentamento, com uma claraopo por medidas repressivas e pela diuso da violncia estatal.

    3

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    6/108

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

    2533

    37

    48

    CAPITALISMO DEPENDENTE

    E DIREITOS HUMANOS: UMARELAO INCOMPATVEL

    Roberto Leher

    ASSOCIAES DE MORADORES DE FAVELASE SEUS DIRIGENTES: O DISCURSO E A AO

    COMO REVERSOS DO MEDOItamar Silva e Lia de Mattos Rocha

    SEIS POR MEIA DZIA?: UM ESTUDO

    EXPLORATRIO DO FENMENO DASCHAMADASMILCIAS NO RIO DE JANEIROIgnacio Cano e Carolina Ioot

    MILCIAS: MUDANAS NAECONOMIA POLTICA DO CRIMENO RIO DE JANEIROJos Cludio Souza Alves

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    7/108

    5NdicE

    6

    16

    DISCURSOS E PRTICAS NA CONSTRUO DE UMAPOLTICA DE SEGURANA: O CASO DO GOVERNO

    SRGIO CABRAL FILHO (2007-2008)Camilla Ribeiro, Raael Dias e Sandra Carvalho

    GRUPOS CRIMINOSOS ARMADOSCOM DOMNIO DE TERRITRIOREFLEXES SOBRE ATERRITORIALIDADE DO CRIMENA REGIO METROPOLITANADO RIO DE JANEIROJailson de Souza e Silva,Fernando Lannes Fernandes,Raquel Willadino Braga

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    8/108

    Camilla Ribeiro, Raael Dias e Sandra Carvalho1

    I. IIntroduo

    O presente texto reere-se aos discursos e prticas que, desde

    o processo eleitoral, o ento candidato Srgio Cabral Filho apre-

    sentou publicamente em relao poltica de segurana pblica.

    Assim, sero analisadas declaraes e aes na rea de segu-

    rana pblica nos dois primeiros anos do governo Srgio Cabral.

    Os discursos dos agentes pblicos (governador, secretrio

    de segurana, comandantes da polcia militar, etc.) constitu-

    ram uma estratgia prtico-discursiva para legitimar uma pol-

    tica de segurana baseada, segundo suas palavras, na poltica

    do enrentamento ou conronto que tem como eeitos con-

    cretos: a disseminao das mega-operaes em comunida-

    des pobres da cidade do Rio de Janeiro e o aumento signica-

    tivo dos autos de resistncia2 durante o ano de 2007. Mais do

    que uma poltica de conronto, a proposta de segurana pblicaposta em prtica pelo governo Srgio Cabral Filho evidencia a

    ocorrncia de aes de extermnio por parte do Estado, sem a

    devida investigao pblica desses atos.

    Utilizaremos como indicador da anlise: a realizao de mega-

    operaes policiais em avelas da cidade do Rio de Janeiro e

    o concomitante aumento dos autos de resistncia3 no perodo

    demarcado (2006-2008).

    Para entender a poltica de segurana do atual governo pre-

    cisamos azer uma breve contextualizao histrica das polti-

    cas de segurana hegemnicas no estado do Rio de Janeiro,

    durante a dcada de 1990 e na primeira dcada deste sculo.

    II. Breve hIstrIco da poltIca desegurana no rIo de JaneIro

    A construo da poltica de segurana militarizada, nas dca-

    das de 1980-1990, baseia-se no discurso de combate ao tr-

    co de drogas na cidade do Rio de Janeiro e tem como eeito

    nmeros crescentes de civis mortos.

    Segundo Ceclia Coimbra (2000) a concepo hegemnica

    de segurana pblica nas dcadas de 80 e 90 infuenciadapela Doutrina de Segurana Nacional que durante a ditadura

    militar enraizou-se no cotidiano e estava voltada contra os opo-

    sitores polticos do regime autoritrio. Atualmente, com a utili-

    zao de outras estratgias o inimigo interno passa a ser as

    parcelas mais miserveis da populao.

    dIscursos e prtIcasna construo de umapoltIca de segurana:o si cb Fi (2007-2008)

    1. Camilla Ribeiro Coordenadora de Projetos da Justia Global; Raael Dias pesquisador da Justia Global; Sandra Carvalho Diretora Executiva da Justia Global.

    2. Termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposto conronto com a polcia e resistncia priso. 3. No ano de 2007 o nmero total de autos de

    resistncia no Estado do Rio de Janeiro oi de 1330 casos.

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    9/108

    Coimbra (2001, p.18) analisa com acuidade os discursos

    produzidos pela mdia e agentes de Estado e que conduziram

    Operao Rio4. O uso da Doutrina de Segurana Nacional

    contra inimigos internos torna possvel a crescente crimina-

    lizao dos pobres, negros e moradores de avelas entendidos

    como as classes perigosas.

    A militarizao da segurana pblica no estado do Rio de

    Janeiro ativa no discurso higienista e racista do sculo XIX e no

    projeto urbanstico da cidade5 no comeo do sculo XX (Belle po-

    que) visava, sobretudo, controlar a populao pobre. A pobreza,era identicada como vetor de doenas e degenerados.

    Esse tipo de pensamento higienista, que recorrente na

    nossa sociedade, oi expresso recentemente por Marcus Jardim,

    Comandante do 1 Comando de Policiamento de rea (CPA) do

    Rio de Janeiro, ao armar que: A PM o melhor inseticida

    social6, no dia 15/04/08 em reerncia a ao da polcia mili-

    tar na avela de Vila Cruzeiro, onde oram mortas nove pessoas

    e eridas seis, tendo como justicativa o combate ao trco de

    drogas. Agindo dessa maneira, os representantes da poltica de

    segurana do estado do Rio de Janeiro visam naturalizar suas

    prticas, comparando seres humanos a insetos que podem ser

    mortos sem que ocorra qualquer investigao sobre os atos.

    A partir de 1980, em nome do combate ao trco de dro-

    gas, dierentes governos passam a implementar uma poltica de

    segurana cada vez mais repressiva e com rgido controle das

    populaes pobres, em especial os negros.

    Em relao s polticas neoliberais, que avanam desde

    1980, o socilogo Loc Wacquant (2001, p.7) arma que as

    polticas de penalidades buscam remediar com o aumento do

    Estado policial e penitencirio a diminuio do Estado econ-

    mico e social, conhecido tambm como Estado providncia ou

    de bem-estar social, que comea a ser desmontado nesse per-

    odo. Com isso, as polticas repressivas de Estado investem sobrea populao pobre, que atualmente no serve mais como exr-

    cito de reserva para o capitalismo contemporneo. Congura-

    se na atualidade um tratamento penal da misria que levado

    adiante por polticas de segurana que estimulam a letalidade,

    a demonizao de um segmento da populao e a concomi-

    tante militarizao de suas prticas.

    E isso no uma simples coincidncia: justamente por-

    que as elites do Estado, tendo se convertido ideologia do

    mercado total vinda dos Estados nicos, diminuem suas

    prerrogativas na rente econmica e social que preciso

    aumentar e reorar suas misses em matria de segu-

    rana, subitamente relegada mera dimenso criminal.

    No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda mais sedutora e mais unesta quando aplicada em pases

    atingidos por ortes desigualdades de condies e oportu-

    nidades de vida e desprovidos de tradio democrtica e

    de instituies capazes de amortecer o choque causado

    pela mutao do trabalho e do indivduo no limiar do novo

    sculo. (WACQUANT, 2001, p.7).

    O aumento do Estado punitivo onde se insere a atual pol-

    tica de segurana do Rio de Janeiro, que por meio das mega-

    operaes policiais e com os autos de resistncia vem trans-

    ormando as aes de segurana pblica em atos de extermnio

    e exposio permanente morte da populao pobre e negra.

    Loc Wacquant, a respeito da interveno das oras da ordem e

    os seus eeitos nas classes populares, arma que:

    [...] a insegurana criminal no Brasil tem a particularidade

    de no ser atenuada, mas nitidamente agravada pela inter-

    veno das oras da ordem. O uso rotineiro da ora letal

    pela polcia militar (...) as execues sumrias e os desa-

    parecimentos inexplicveis geram um clima de terror entre

    as classes populares. (WACQUANT, 2001, p.9).

    Diante desse contexto, podemos entender o avano de pol-ticas de segurana autoritrias, enquanto estratgias de con-

    trole da vida dos pobres, em sociedades desiguais e hierarqui-

    zadas como o caso do Brasil. Na cidade do Rio de Janeiro,

    essas polticas repressivas com a grie tolerncia zero,

    4. Ocupao militar realizada por Foras Armadas, polcia militar e civil de reas consideradas perigosas que seriam as ontes da violncia e do trco de drogas no Rio

    de Janeiro (1994-1995). 5. A remoo do Cortio Cabea de Porco, em 1893, no centro do Rio de Janeiro um exemplo do tratamento dispensado aos pobres pelo

    Estado. 6. O Comandante da PM Marcus Jardim ez uma analogia da atuao dos tracantes com a epidemia da dengue em 2008 no Rio de Janeiro, sendo a polcia

    militar a orma de combater os tracantes-insetos.

    7

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    10/108

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

    importada dos EUA com escala na Colmbia7, so colocadas

    em prtica. Com isso, chega-se a nveis dramticos, espe-

    cialmente para os pobres e negros, de mortes de civis e uso

    extremo da ora policial.

    III. o extermnIo como prtIca da poltIca desegurana no rIo de JaneIro.

    A violncia est to enraizada no cotidiano do carioca, que

    caracterizada por alguns segmentos da sociedade, meios de

    comunicao e por autoridades pblicas como guerra, deri-vada de um poder paralelo, impositor do terror e da desor-

    dem. No entanto, nesta guerra, a identicao do inimigo

    obedece a critrios geogrcos, sociais e raciais, que impe s

    camadas mais miserveis da populao a triste generalizao

    entre pobreza, raa e crime.

    Podemos ver a escalada do poder punitivo do Estado no Rio

    de Janeiro e como ela serve a lgica do enrentamento da cri-

    minalidade e especialmente no combate ao trco de drogas e

    aos narcotracantes.

    Sob o manto do fagelo das drogas, tm-se empreendido

    em larga escala a criminalizao das populaes excludas que

    habitam as avelas, identicadas como principal oco do tr-

    co de drogas e diusoras da violncia. Dessa orma, o com-

    bate ao trco de drogas, da maneira como tem sido empreen-

    dido, serve como pretexto e justicativa para aes violadoras

    aos direitos humanos, com o to de limpeza social.

    Discutindo as estratgias de criminalizao da pobreza, o

    historiador Renato Prata Biar, arma que:

    A estratgia no oi de criminalizar o pobre pura e simples-

    mente, mas de associar o local onde ele habita ao terror imposto

    por um novo e modernssimo grupo de selvagens, assassinos

    cruis e sanguinrios: os trafcantes de drogas. A fgura do tra-fcante nessas localidades o que permite que se exera essa

    poltica de invaso e de extermnio, mesmo quando se sabe

    que ali unciona apenas uma parte do trfco.8

    Para a juza Maria Lcia Karam (2003, p.78), o controle do

    sistema penal sobre a poltica de drogas no Brasil permite uma

    ao militarizada na segurana pblica e o aumento de pes-

    soas submetidas priso. No entanto, essa poltica est longe

    de promover segurana populao, assim como, enrentar de

    orma ampliada o problema do trco de drogas na nossa socie-

    dade para alm do comrcio varejista localizado nas avelas.

    Sobre essa questo, a sociloga Vera Malaguti Batista (2003)

    revela que a juventude, pobre e negra o perl predominante das

    pessoas que so presas ou passam por medidas scio-educativas

    em relao aos ilcitos relacionados a drogas. A seletividade do sis-tema penal (polcia, judicirio) permite que a populao pobre, negra

    e jovem seja alvo do controle repressivo do Estado. Ainda mais, com

    aes de extermnio, esses so os chacinados por tal lgica.

    A concepo de segurana pblica baseada na guerra contra

    o crime, no conronto armado e na criminalizao da pobreza tem

    sido constante ao longo de diversos governos no Rio de Janeiro.

    No ano de 1995, durante o governo Marcelo Alencar, o ento

    Secretrio de Segurana Pblica, General Newton Cerqueira,

    implantou a premiao aroeste9 (1995-1997) - graticao

    dada a Policiais Militares que praticassem atos considerados de

    bravura pelo comando da corporao. Na maioria das vezes, o

    policial premiado havia participado de aes que resultaram na

    morte de supostos criminosos.10

    Em 2003, o ento Secretrio de Segurana Pblica Josias Quin-

    tal declarou: Nosso bloco est na rua e, se tiver que ter conito

    armado, que tenha. Se algum tiver que morrer por isso, que morra.

    Ns vamos partir pra dentro.11 A declarao veio por conta da

    implementao da Operao Rio Seguro12. Anthony Garotinho,

    sucessor de Josias Quintal na Secretaria de Segurana Pblica,

    tambm comemorou a morte de mais de 100 pessoas (supostos

    bandidos) em menos de 15 dias no cargo13. O ano de 2003 regis-

    trou um nmero de 1.195 civis mortos em decorrncia da ao

    policial, em ace de 45 policiais mortos no mesmo perodo.14Por sua vez, antes de se eleger, o atual governador do Rio de

    Janeiro, Srgio Cabral Filho, havia sinalizado uma mudana de

    rumo na concepo da poltica de Segurana Pblica. No dia de

    7. No ano de 2007, o primeiro escalo da segurana pblica da cidade do Rio de Janeiro e o governador estiveram em Bogot para conhecer os programas de segurana

    como modelo a ser seguido. In: O Globo 23/03/2007: Em visita Colmbia Cabral conhece programas de segurana. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/03/23/295068560.

    asp 8. A Criminalizaao da Pobreza. Renato Prata Biar, Historiador, Rio de Janeiro. http://www.redecontraviolencia.org/Artigos/233.html 9. A promoo por bravura e grati-

    cao por mrito tambm conhecida como premiao aroeste, no perodo de 1995 at 1997, promoveu o acobertamento e ortaleceu os crimes cometidos por agentes

    do Estado. In: (COIMBRA, 2000, p.239). 10. Trs dos policiais presos ganharam graticao aroeste. Agncia Folha/AJB 08/04/97. http://www1.olha.uol.com.br/ol/geral/

    ge08041.htm 11. O Globo, 27/02/03. 12. Relatrio Rio: violncia policial e insegurana pblica. Rio de Janeiro: Justia Global, 2004. 13. O Globo, 11/05/03. 14. Direitos

    Humanos no Brasil 2003: Relatrio Anual do Centro de Justia Global. Rio de Janeiro: Justia Global, 2004.

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    11/108

    9

    sua eleio, 15 de novembro de 2006, declarou que os vecu-

    los blindados da polcia, conhecidos como Caveiro15 estavam

    com os dias contados. Disse, na ocasio, em relao aos eei-

    tos da utilizao do blindado sobre as comunidades pobres:

    um trauma para as comunidades. No d para azer Segurana

    Pblica com caveiro, acrescentando que a polcia entrar

    prestando servios e garantindo segurana populao.16

    No entanto, essa mudana de rumo no aconteceu. Em 18

    de novembro de 2006, dois dias aps ser apresentado como o

    uturo Secretrio de Segurana Pblica do Rio de Janeiro, JosMariano Beltrame, anunciou que no iria transormar os Cavei-

    res em sucata e admitiu seu uso de acordo com critrios rgi-

    dos17: Diz ele, em entrevista a um jornal carioca:

    Se houver necessidade de colocar tropas em determina-

    dos locais onde ns no pudermos nos socorrer de outra

    orma, o Caveiro ser utilizado. Ele existe para transportar

    policiais para reas onde comprovadamente existir risco. O

    que no queremos a banalizao do uso. 18

    Aps as declaraes de Beltrame, Srgio Cabral voltou atrs:

    No podemos dispensar equipamento comprado com recur-

    sos pblicos. Seria irresponsabilidade, anunciando a continui-

    dade dos veculos blindados19. Iniciava-se a poltica do con-

    ronto, que apresenta como critrio de ecincia o extermnio

    de pessoas nas comunidades pobres do Rio de Janeiro.

    Esse modelo de segurana, pautado na letalidade como indi-

    cador de ecincia, toma vulto na dcada de 199020 e se apro-

    unda ainda mais na dcada atual. Os indicadores de autos

    de resistncia e as mega-operaes rearmam tragicamente

    essa concepo blica na poltica de segurana. A utilizao

    do Caveiro revela a opo por uma segurana pblica que

    criminaliza a parcela mais pobre da populao e cada vez mais

    militariza suas prticas de policiamento. O Relatrio da socie-

    dade civil entregue ao relator da ONU para Execues Sum-

    rias, Arbitrrias e Extrajudiciais, Philip Alston, assinala:

    Embora a posio ofcial seja em avor do emprego do Cavei-

    ro apenas em momentos especiais e de exceo, na pr-

    tica, o que vemos um uso cada vez mais incisivo, regular e

    cotidiano sendo justifcado pelo discurso do estado de exce-

    o permanente proporcionado pela atual poltica de guerra

    contra o trfco. (Relatrio da sociedade civil, 2007).

    Esse tipo de concepo de segurana aparece, tambm, na

    diuso do que se convencionou chamar de mega-operaes

    policiais, a partir de 2007. As denominadas mega-operaes

    so incurses policiais nas avelas que contam com um grande

    nmero de agentes das oras de segurana estadual e/ou ede-

    ral, alm de uma ampla cobertura e espetacularizao dos meios

    de comunicao. Essas operaes so apresentadas e justicadas

    pelas autoridades pblicas como ao pacicadora para erradicar

    a ora armada21. No entanto, as mega-operaes tm se tradu-

    zido em aes de alta letalidade, por parte das oras policiais.

    Em seu relatrio preliminar22 da visita que ez ao Brasil em

    novembro de 2007, Phillip Alston enatiza sua preocupao com

    essas mega-operaes realizadas nas avelas do Rio de Janeiro:

    (...) apesar da operao, realizada em junho de 2007, no

    Complexo do Alemo, ter resultado em 19 mortes, autorida-

    des do governo do estado declaram ser esta operao um

    modelo para as aes uturas da polcia.

    Em entrevista a Revista poca23, o governador Srgio Cabral,

    ao comentar a mega-operao policial realizada no dia 27 de

    junho de 2007 no Complexo do Alemo, armou:

    15. O Caveiro um veculo militar de combate utilizado pelas Policias Militar e Civil do Rio de Janeiro nas suas incurses pelas avelas e demais comunidades pobres.

    Tornou-se smbolo de uma poltica de segurana pblica violenta e criminalizadora da pobreza. 16. Srgio Cabral diz que vai aposentar caveires. Terra, 15/11/2006.

    http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1248507-EI5030,00.html 17. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://

    odia.terra.com.br/rio/htm/geral_68074.asp 18. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://odia.terra.com.br/rio/htm/

    geral_68074.asp 19. Ibidem. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://odia.terra.com.br/rio/htm/geral_68074.asp 20.

    A Operao Rio (1994-1995) demonstra como a militarizao da segurana pblica chega ao extremo com policiamento realizado com tropas do exrcito na rua. 21.

    Polcia prepara ao para pacicar o Complexo do alemo. O Globo OnLine. 24/09/2007. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/09/24/297858977.asp 22. Philip Alston

    apresentou o relatrio preliminar no dia 02 de junho no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. 23.Os bandidos j viram que no estamos de brinca-

    deira. Revista poca, Edio 477,06/07/2007. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77973-5856,00-OS+BANDIDOS+JA+VIRAM+QUE+NAO+ESTAMO

    S+DE+BRINCADEIRA.html

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    12/108

    A populao est convencida da necessidade desse con-

    ronto. Nos ltimos anos houve um crescimento da muscu-

    latura do trfco que a populao no suporta mais. As pes-

    soas esto prontas para azer o sacricio porque sabem que

    s isso vai melhorar sua qualidade de vida. Durante muitos

    anos o campo progressivo, a esquerda, associou a ordem

    pblica ditadura, ao autoritarismo. Hoje sabemos que a

    ordem pblica a garantia da cidadania. Todos temos que

    azer sacricio pela vitria contra a barbrie. No h como

    azer omelete sem quebrar os ovos. O prprio presidente Lula

    disse que o crime no se combate com ptalas de rosa. Euadoraria que os bandidos se entregassem, que entregassem

    suas armas pacifcamente, mas isso no possvel. No h

    outro caminho a ser seguido.

    Ainda, nessa mesma entrevista o governador declarou que

    o objetivo das operaes policiais: no acabar com o tr-

    co. Isso ningum conseguiu at hoje. O trco no acabou

    em Paris, em Nova Iorque e nem em Estocolmo, que tm muito

    mais recursos do que ns. O objetivo chegarmos a nveis civi-

    lizatrios de criminalidade. (Revista poca, 2007).

    necessria uma anlise mais detalhada do que o governador

    entende por nveis civilizatrios de criminalidade, pois em diver-

    sas oportunidades seu discurso pode ser entendido como eug-

    nico, associando criminalidade, pobreza e limpeza social. A viso

    civilizatria do governador Srgio Cabral Filho expressa uma

    concepo extremamente conservadora e autoritria em relao

    populao pobre moradora das avelas, ao relacionar a taxa de

    natalidade da Rocinha produo de violncia. Em entrevista aos

    meios de comunicao deendeu o aborto como orma de com-

    bate criminalidade. De acordo com suas palavras:

    A questo da interrupo da gravidez tem tudo a ver com a

    violncia. Quem diz isso no sou eu, so os autores do livroFreakonomics [Steven Levitt e Stephen J. Dubner]. Eles

    mostram que a reduo da violncia nos EUA na dcada de 90

    est intrinsecamente ligada legalizao do aborto em 1975

    pela Suprema Corte, citou [na verdade, oi em 1973] (...)

    Voc pega o nmero de flhos por me na Lagoa Rodrigo de

    Freitas, Tijuca, Mier e Copacabana, padro sueco. Agora,

    pega na Rocinha. padro Zmbia, Gabo. Isso uma brica

    de produzir marginal. O Estado no d conta.24

    Essa declarao por parte do governador do estado explicita

    o processo de criminalizao da pobreza em curso no Rio de

    Janeiro: ao mesmo tempo, que ocorre a intensicao de estra-

    tgias discursivas que apontam o aumento do poder repressivo

    como a nica poltica de segurana possvel. Assim, ao associar

    pobreza com criminalidade Srgio Cabral deende uma soluo

    baseada na preveno higienista, de triste memria na histriado pas, aliada ao uso das oras policiais.

    De ato, os discursos tanto do governador Srgio Cabral

    quanto de autoridades pblicas na rea de Segurana Pblica,

    tm deendido reiteradamente que as aes letais das oras

    policiais nas comunidades pobres do Rio de Janeiro so um mal

    necessrio e a nica orma para pacicar esses territrios,

    deixando-as com um nvel civilizatrio de criminalidade.

    A alta de reao social s presumveis execues que ocor-

    rem nas comunidades e que vitimam, de acordo com autori-

    dades pblicas, bandidos, crucial para a conduo de uma

    poltica de segurana pblica criminalizadora da pobreza, que

    estende o conceito de bandido e periculosidade para todos

    os moradores das avelas, em especial os negros25. Dessa

    orma, os representantes da segurana pblica no estado uti-

    lizaram diversas estratgias para desqualicar as aes contr-

    rias a concepo de guerra na segurana pblica. A estrat-

    gia principal associar as maniestaes sociais ao trco de

    drogas ou armar que as crticas ajudam ao trco.26

    Por sua vez, o secretrio de segurana, Jos Mariano Beltrame,

    apresenta um quadro em que a retrica blica a nica possvel

    na conduo da poltica de segurana. Para ele, o cenrio de

    guerra onde inevitvel eridos e mortos.

    Nesse sentido, em entrevista a Revista Veja, Jos MarianoBeltrame declara que:

    O Rio chegou a um ponto que inelizmente exige sacri-

    cios. Sei que isso dicil de aceitar, mas, para acabarmos

    com o poder de ogo dos bandidos, vidas vo ser dizimadas.

    24.Site G1 Cabral deende aborto contra violncia no Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2007, http://g1.globo.com/Noticias/0,,FLC0-5597-2821954,00.html. 25. Flau-

    zina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro (p.130). Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 26.Justia

    Global reage a crticas do chee da polcia civil. O Globo OnLine, 10/05/2008. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2008/05/10/justica_global_reage_criticas_do_chee_da_

    policia_civil-427319435.asp

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    13/108

    (...) uma guerra, e numa guerra h eridos e mortos.27

    Reorando ainda mais a lgica de guerra, outros agentes

    do Estado expressam a noo de retomada das comunidades

    atravs do incremento das aes repressivas. Em entrevista ao

    Jornal o Globo o Coronel Marcus Jardim, o ento Comandante

    do 16. Batalho da Polcia Militar, deendendo a intensicao

    das operaes policiais no Complexo do Alemo, declarou:

    Dar um pouco mais de trabalho porque precisaremos de mais

    homens, mas isto no vai impedir a retomada dessas comunida-des. Este ser um ano marcado por trs ps: Pan, PAC e Pau.

    Essa declarao irnica do Cel. Marcus Jardim reere-se as

    aes de retomada de comunidades pobres para a entrada do

    Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) do governo ederal

    e a estratgia de segurana para a realizao dos jogos Pan-Ameri-

    canos (junho 2007). No entanto, esse modelo no se restringiu ao

    perodo dos jogos, como j demonstramos. Ele transormou-se em

    modelo de segurana deendido pelo governo do estado.

    Alm do nmero de vtimas letais das mega-operaes, h

    ainda um saldo signicativo de pessoas eridas ou mortas em

    razo de balas perdidas, sem contar outros inmeros homic-

    dios resultantes de incurses policiais de menores propores,

    que azem parte do cotidiano dos moradores das avelas.

    Agora vamos analisar mais detalhadamente o acontecimento

    da mega-operao do Complexo do Alemo, que serviu como

    modelo para as operaes policiais que se seguiram, de maneira

    constante, com um nmero elevado de mortos e utilizao de

    excessivo uso da ora.

    Iv. a mega-operao no complexo do ale-mo: um modelo para a segurana pBlIca?

    A mega-operao que mobilizou cerca de 1.200 policiais,

    realizada no Complexo do Alemo, em 27 de junho de 2007, na

    qual morreram ocialmente 19 pessoas, revela como essa pol-

    tica de segurana baseada em aes de extermnio. O laudo

    independente produzido pela Secretaria Especial de Direitos

    Humanos (SEDH)28 indica que houve casos de execuo sum-

    ria entre as pessoas mortas nessa mega-operao:

    De acordo com o parecer da SEDH a anlise dos laudos

    cadavricos evidenciam numerosas leses, em cada corpo,

    que incluem:

    A anlise da topografa dos oricios de entrada de projteis

    de arma de ogo evidencia maior concentrao em regies

    letais. Do total de mais de setenta oricios de entrada, cin-

    qenta e quatro atingiram regies mortais, o que corres-

    ponde a cerca de 75%

    Os peritos independentes acionados pela SEDH oramconclusivos em assinalar que: vrias das mortes decorreram

    de um procedimento de execuo sumria e arbitrria, e essa

    concluso se baseia nos seguintes elementos:

    Grandenmerodeorifciosdeentradanaregioposterior

    do corpo;

    Numerososferimentosemregiesletais;

    Elevadamdiadedisparosporvtima;

    Proximidadededisparos;

    Seqenciamentodedisparosemrajada;

    Armasdiferentesutilizadasnumamesmavtima.

    O laudo da SEDH chama ateno, tambm, para a ausncia

    de indicativos de condutas destinadas captura de vtimas e a

    ausncia de indicadores de condutas deensivas por parte das

    vtimas. Ou seja, a polcia atirou para matar. Esse ato tambm

    chamou a ateno do Relator da ONU, que em seu relatrio

    preliminar assinalou:

    (...) muitos ofciais do estado do Rio de Janeiro considera-

    ram a operao no Complexo do Alemo como um modelo

    para aes uturas. Entretanto, os resultados atuais desta

    operao no so signifcativos. Os mais importantes traf-

    cantes no oram presos ou mortos, e poucas armas e dro-

    gas oram apreendidas. Nenhum policial oi assassinado epoucos oram eridos, mas a resistncia encontrada justif-

    caria, aparentemente, o assassinato de 19 indivduos.

    A evidncia da ocorrncia de execues sumrias na opera-

    o realizada no Complexo do Alemo em 27 de junho tambm

    est explcita na destruio de provas pela polcia. Na manh do

    dia 28 de junho representantes da Justia Global, o Deputado

    27. Revista Veja 2032. http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=391382 28. Relatrio Tcnico Visita de Cooperao Tcnica Rio de Janeiro, Julho

    de 2007.Secretria Especial de Direitos Humanos, Presidncia da Repblica.

    11

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    14/108

    Estadual Marcelo Freixo e outras organizaes da sociedade civil

    estiveram na comunidade da Grota no Complexo do Alemo, ou

    seja, logo aps a realizao da mega-operao policial. Durante

    a visita oi possvel observar rastros de sangue pelo cho, col-

    ches e os utilizados para remover os corpos, carros queimados,

    casas incendiadas, lojas saqueadas e tambm conversar com

    os moradores e ouvir os seus relatos sobre toda violncia a que

    oram submetidos no dia anterior. Um depoimento, em especial,

    nos chamou a ateno. Um morador inormou que seu estabe-

    lecimento havia sido arrombado pela polcia. Tratava-se de umagaragem em que moradores alugavam vagas para guardar seus

    veculos. De acordo com o depoimento, o cadeado do estabele-

    cimento oi quebrado, o porto de erro oi metralhado pelos poli-

    ciais que roubaram uma Kombi, que serviu para que transportas-

    sem os corpos das vtimas que estavam no alto do morro. Depois

    de us-la os policiais atearam ogo na Kombi.

    Esse depoimento ganha importncia se conrontado com

    otos29 e laudos dos mortos na operao, que indicam que os

    homens que estavam dentro da Kombi morreram no local da

    ao policial e que oram levados para o hospital j mortos, des-

    azendo assim a cena do crime e inviabilizando a realizao de

    percia do local.

    O laudo independente produzido pela SEDH corrobora essa

    inormao, pois aponta que os corpos em bito deram entrada

    no Hospital Geral de Bonsucesso e no Hospital Estadual Get-

    lio Vargas e nos relatrios emitidos pelos mesmos no oram

    descritos procedimentos mdicos de ressuscitao. Indica que

    deram entrada no Instituto Mdico Legal (IML) despidos, envol-

    tos apenas em um ou dois lenis, e as vestes originais no

    oram encaminhadas posteriormente para percia.

    Em relatrio preliminar apresentado ao Conselho de Direitos

    Humanos da ONU, Philip Alston destaca que:Em certo sentido, a operao no Complexo do Alemo

    reete a principal estratgia do Governo do Estado. poli-

    ticamente motivada e consiste em policiamento pelas pes-

    quisas de opinio. Mas popular entre aqueles que querem

    resultados rpidos de demonstraes de ora. A ironia que

    contra producente..

    v. maquIando o extermnIo:autos de resIstncIa

    O discurso da guerra contra o crime, da poltica de con-

    ronto no se sustenta quando analisamos os indicadores na

    rea de segurana pblica. Os indicadores revelam um uso

    excessivo da ora no Rio de Janeiro, mesmo considerando a

    violncia do contexto em que a ao policia l se insere. Assim,

    o nmero de civis mortos durante aes policiais; a propor-

    o entre policiais mortos e civis mortos; a proporo entrepoliciais e civis eridos e a proporo entre civis mortos e

    presos, revelam que muitas dessas aes so de extermnio

    e que pouco impactam na reduo da criminalidade violenta

    no Rio de Janeiro.

    No Rio de Janeiro, o registro das pessoas mortas pela pol-

    cia includo na categoria Autos de Resistncia. O auto de

    resistncia um ormulrio em que a Polcia Militar registra

    eventos de resistncia armada no decorrer de sua atividade

    legal. No entanto, na prtica, uma das ormas que autori-

    dades policiais vm utilizando para mascarar as execues

    sumrias decorrentes de abusos no exerccio de suas unes.

    Sendo o ormulrio destinado ao registro das ocorrncias com

    resistncia armada, os autos de resistncia tm cumprido

    outro papel, na medida em que acabam sendo utilizados para

    o registro de qualquer morte ruto ou no de resistncia

    praticada por um policial.30

    Esse tipo de registro exclui as mortes realizadas pela pol-

    cia dos registros de homicdios, embora de ato sejam homic-

    dios. Dessa maneira, alm de subjugar vala comum de um

    nico documento todas as mortes perpetradas por agentes da

    polcia impedindo uma visualizao, classicao e controle

    de suas atividades que resultem em vtimas atais - este docu-

    mento contribui de maneira denitiva para descaracterizar ohomicdio policial na medida em que tais mortes no so

    classicadas como crime, mas como resultado de operaes

    legais de segurana31.

    O relator especial da ONU sobre execues, arbitrrias e extraju-

    diciais em seu relatrio preliminar da visita ao Brasil, em novembro

    de 200732, disse em relao utilizao dos autos de resistncia:

    29. As otos so do Instituto Mdico Legal do Rio de Janeiro e de ontes no divulgadas. 30.Relatrio Rio: violncia policial e insegurana pblica. Rio de Janeiro: Justia

    Global, 2004. 31. Misse, Michel. Como desarmar a violncia policial? Desarme: Notcias/Opinio. Rio de Janeiro, 04/03/2004. http://www.desarme.org/publique/cgi/cgi-

    lua.exe/sys/start.htm?inoid=3139&tpl=printerview&sid=16 32.O Relator esteve no Brasil em misso de 04 a 14 de novembro de 2007 e visitou So Paulo, Pernambuco,

    Rio de Janeiro e o Distrito Federal.

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    15/108

    Na maioria dos casos, mortes causadas por policiais em ser-

    vio so registradas como autos de resistncia ou casos de

    resistncia seguida de morte. Em 2007, no Rio de Janeiro,

    a policia registrou 1330 autos de resistncia, uma fgura

    que representa 18% do nmero total de homicdio no Rio

    de Janeiro. Em teoria, h circunstncias em que a polcia

    usou ora necessria e proporcional em resposta a resistn-

    cia de suspeitos de crime a ordens de ofciais encarregados

    da segurana. Na prtica, o quadro radicalmente dierente.

    A determinao sobre se uma execuo extrajudicial umamorte dentro da lei eita primeiramente pelo prprio poli-

    cial. Raramente as auto-classifcaes so seriamente inves-

    tigadas pela Polcia Civil. Eu recebi vrias alegaes bastante

    crveis de que homicdios por resistncia, que seriam de

    ato execues extrajudiciais. Isto reorado por estudos

    de relatrios de autpsias e pelo ato de que a taxa de civis

    mortos pela polcia surpreendentemente alta.

    Ao pesquisar a atuao da Justia Militar, Igncio Cano

    indica que ela incapaz de controlar e punir os abusos de

    utilizao da ora letal por parte dos policiais militares e os

    crimes que possam ser cometidos no uso da mesma. (CANO,

    1997, p.33). Ainda hoje no existem mecanismos que pos-

    sam investigar com iseno e autonomia os casos de abuso da

    ora cometidos pela polcia. Dessa maneira, a utilizao do

    termo auto de resistncia unciona como procedimento siste-

    mtico para inviabilizar investigaes autnomas da atividade

    policial.

    Uma das causas desse cenrio , obviamente, a impunidade.

    O desembargador Srgio Verani, que estudou casos de autos de

    resistncia, mostra que eles eram sistematicamente arquivados

    a pedido da promotoria. Quando o juiz negava o pedido de arqui-

    vamento, baseado em ortes indcios de execuo, a conrmao

    do mesmo pedido pelo procurador em segunda instncia inviabi-

    lizava qualquer ao penal. Verani enatiza que:

    (...) o Ministrio Pblico e, sobretudo o Poder Judicirio

    no podem tornar-se meros rgos homologatrios da arbi-

    trariedade e da violncia policiais, eetivando, dessa orma,

    a legalizao da impunidade, incompatvel com o Estado de

    Direito Democrtico33

    Esses assassinatos em nome da Lei abordados por Verani(1996), na dcada de 80, oram agravados no decorrer das lti-

    mas duas dcadas com o incremento da noo de guerra ao

    crime e a conseqentemilitarizao das polticas de segu-

    rana, como j oi indicado.

    Em comparao aos anos anteriores, o Governo Srgio

    Cabral Filho apresenta uma elevao no nmero de autos de

    resistncia. Os dados do Instituto de Segurana Pblica (ISP)

    de civis mortos em supostos conrontos com as oras poli-

    ciais em relao aos de policiais mortos em servio demonstram

    uma proporo de 41 para 1, ou seja, para cada policial morto

    em servio existem 41 civis mortos inseridos na categoria de

    auto de resistncia. No ano de 2007, oram registrados 1.330

    autos de resistncia no estado do Rio de Janeiro contra 23 poli-

    ciais mortos em servio.

    Nos primeiros trs meses de 2008, 358 civis oram mortos

    durante operaes policiais no Rio de Janeiro34, o que repre-

    senta um aumento de 12% em relao ao mesmo perodo de

    2007. Se essa mdia se mantiver, o Estado do Rio de Janeiro

    registrar 1431 autos de resistncia em 2008. Nesse mesmo

    perodo, oram 4 os policiais mortos durante o servio.

    A proporo entre civis e policiais mortos muito superior

    que a mdia internacional e indica o uso excessivo da ora e

    prticas de execuo sumria. (CANO, 1997)

    33. VERANI, Srgio. Assassinatos em nome da Lei, Rio de Janeiro: Ed. Aldebar, 1996, pg. 64. 34. http://www.isp.rj.gov.br/NoticiaDetalhe.asp?ident=133

    cIvIs mortos pela polcIa(autos de resistncia - nmero de vtimas)

    1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

    Estado 300 397 289 427 592 900 1195 983 1098 1063 1330 358*

    *os dados so relativos aos 3 primeiros meses de 2008.

    13

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    16/108

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

    Dinheiro exigido com violncia. Segundo, para evitar

    que faces saiam de seu controle. Pessoas suspei-

    tas deornecer inormaes ou colaborar com outras aces,

    so mortas. Em terceiro lugar, apesar de alguns no serem cria-

    dos como grupos de extermnio de ato, os relacionamentos il-

    citos que eles desenvolvem com outros elementos mais pode-

    rosos e auentes da comunidade, resulta reqentemente no

    engajamento de assassinatos de aluguel.

    Uma srie de outros homicdios, registrados como mortes

    com tipicao provisria e que inclui encontro de cadver, de

    ossada ou morte suspeita, esto em grande parte relacionadosa ao de grupos de extermnio e milcias que muitas vezes con-

    tam com a participao de policiais e outros agentes do Estado.

    Em 2007 essas mortes somaram 806 casos36.

    vI. a poltIca de extermnIo contraproducente

    A guerra contra o crime no tem, como alegam as auto-

    ridades, tornado o Rio de Janeiro mais seguro. O Estado apre-

    senta em mdia uma taxa em torno de 50 homicdios a cada

    100.000 habitantes, o que o coloca na terceira posio entre os

    mais violentos do Brasil, cando atrs apenas de Pernambuco

    e Esprito Santo, respectivamente37. A situao se agrava ainda

    mais se analisarmos os homicdios juvenis, em que o Rio de

    Janeiro ultrapassa a taxa de 100 homicdios para cada 100.000

    jovens38. Os autos de resistncia que no so computados nes-

    ses montantes, contribuem para alar o Rio a um patamar ainda

    mais elevado no que diz respeito a homicdios.

    Por outro lado, a elevao nos registros de autos de resistn-

    cia no encontra correspondncia nas taxas de apreenso de

    drogas e armas39, que em 2007, apresentaram queda em rela-

    o a 2006:

    polIcIaIs mIlItares mortos35

    Em servio Na olga Total % Folga

    2000 20 118 138 85,5

    2001 24 104 128 81,3

    2002 33 119 152 78,3

    2003 43 133 176 75,6

    2004 50 111 161 68,9

    2005 24 111 135 82,2

    2006 27 117 144 81,3

    2007 23 ND 23 ND

    ND dado no disponvel

    Essa discrepncia entre policiais e civis mortos indicam que h

    uma incidncia signicativamente menor de conronto armado,

    leia-se autos de resistncia, e, por outro lado, como apontam evi-

    dncias mdico-legais, muitos casos de execues sumrias.

    Chama a ateno o elevado ndice de letalidade de policiais

    durante a olga, ou seja, quando em tese, no estariam se envol-

    vendo em situao de conronto. Essas mortes tm ocorrido

    durante o chamado "bico" (geralmente atividade de segurana

    privada para aumentar a renda), em decorrncia de vingana e,

    muitas vezes, em virtude do envolvimento de policiais com ativi-

    dades criminosas e grupos de extermnio.

    Philip Alston, mais uma vez, em seu relatrio preliminar assinala

    em reerncia ao engajamento de policiais em ilegalidades, entre

    as quais a constituio de milcias e grupos de extermnio diz que:

    As polcias estaduais, especialmente a polcia mili-

    tar do Estado, trabalha rotineiramente em outro

    emprego, quando esto de folga. Alguns formam

    milcias, grupos de extermnio, ou esquadres

    da morte e outros grupos que agem com violncia,

    inclusive execues extrajudiciais, que ocorrem porvrios motivos. Primeiro, procuram dar proteo a

    comerciantes, fornecedores de transporte alternativo,

    em que outros so forados a pagar para este grupo.

    35. Estado do Rio de Janeiro: Policiais Militares Mortos em Servio e na Folga. CESeC- Universidade Cndido Mendes. http://www.ucamcesec.com.br/

    est_seg_evol.php 36. Estado do Rio de Janeiro: Mortes com Tipicao Provisria e Homicdios Dolosos. CESeC- Universidade Cndido Mendes. http://www.uca-

    mcesec.com.br/est_seg_evol.php 37. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros, da Organizao dos Estados Ibero-americanos para Educao, a Cincia e a

    Cultura (OEI), p. 23. Fevereiro de 2007. 38. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros, da Organizao dos Estados Ibero-americanos para Educao, a Cincia

    e a Cultura (OEI), p. 68. Fevereiro de 2007. 39. Estado do Rio de Janeiro: Apreenses de Armas e Drogas Eetuadas pela Polcia -1991/2007. CESeC- Universidade

    Cndido Mendes. http://www.ucamcesec.com.br/est_seg_evol.php

    Apreenso 2006 2007

    Drogas 13.312 11.062

    Armas 10 793 10.178

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    17/108

    15

    Assim, como armou o relator da ONU, Phillip Alston, em

    seu relatrio preliminar sobre o Brasil, a poltica de segurana

    posta em prtica pelo atual governo do Rio de Janeiro con-

    traproducente. Baseada em aes de extermnio, no impacta

    sequer no que diz ser seu alvo, o combate ao trco de drogas.

    Na lgica de enrentamento da criminalidade posta em pr-

    tica pelo governo Srgio Cabral, ou seja, a guerra contra o

    crime, no h correlao entre as aes e sua eetividade. O

    governo do Rio de Janeiro, como disse o prprio governador,

    no pretende acabar com o trco de drogas40. Pretende sub-

    meter os moradores de avelas sua ora, ao seu controle.As aes policiais nas avelas esto ocadas apenas no uso

    excessivo da ora, em execues sumrias. A proporo entre

    as mortes e as prises e apreenses de drogas e armas durante

    a realizao das mega-operaes nas avelas indica a ausncia

    de aes coordenadas de inteligncia, indica, mais do que isso,

    que a ao do Estado se torna cada vez mais criminalizadora da

    pobreza, como se as armas ossem ali abricadas e as drogas ali

    cultivadas. Ignora a participao ativa de policiais e de outros seg-

    mentos sociais na organizao de redes criminosas, como o tr-

    co de drogas e de armas, entre outras modalidades. A priso de

    integrantes de cpula da segurana pblica do governo anterior

    pela Polcia Federal orte evidencia da participao de policiais,

    polticos e outros agentes do Estado em atividades criminosas41.

    vII. consIderaes FInaIs

    O artigo buscou identicar como oi construda, at o

    momento, a poltica de segurana do governo Srgio Cabral, a

    partir das declaraes pblicas do governador e das principais

    aes do seu governo. A atual poltica de segurana est inse-

    rida numa escalada da represso e o concomitante desinvesti-

    mento nas reas sociais.

    Entendemos que a opo por uma poltica de enrentamentose expressa na realidade por aes de extermnio voltada para os

    pobres, negros e jovens moradores de avelas. O atual governo

    no dialoga com os movimentos sociais e organizaes de direitos

    humanos no debate de uma poltica de segurana que seja eetiva-

    mente pblica e pautada pela deesa dos direitos humanos

    40. Os bandidos j viram que no estamos de brincadeira. Revista poca, Edio 477,06/07/2007. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77973-

    5856,00-OS+BANDIDOS+JA+VIRAM+QUE+NAO+ESTAMOS+DE+BRINCADEIRA.html 41. Deputado lvaro Lins preso em fagrante no Rio, diz PF. G1. 29 de maio

    de 2007. http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL582542-5606,00.html

    Vrias maniestaes das organizaes e movimentos sociais,

    contrrias ao atual modelo de segurana, oram desqualicadas

    pelo governador do Estado e pelo seu secretrio de segurana, que

    muitas vezes tentaram associar organizaes e movimentos sociais

    ao trco de drogas. Esta estratgia autoritria e grosseira visa

    impedir qualquer maniestao contrria implementao dessa

    poltica de extermnio. At mesmo o relator da ONU, Philip Alston,

    oi desqualicado pelo secretrio de segurana pblica do Rio de

    Janeiro, na ocasio do lanamento do relatrio preliminar, onde az

    duras crticas poltica de segurana do Rio de Janeiro.

    Srgio Cabral no recebeu Philip Alston, quando este esteve noRio de Janeiro, evidenciando o desapreo do governador ao meca-

    nismo de direitos humanos e ao relator da ONU. Essa postura tam-

    bm est expressa na conduo dessa poltica de segurana que

    impe s comunidades pobres o modelo das mega-operaes

    policiais e o aumento sistemtico dos autos de resistncia.

    reFerncIas BIBlIogrFIcas:

    CANO, Igncio. Letalidade Policial no Rio de Janeiro: a atuao da Justia Militar.

    Rio de Janeiro: ISER, 1998.

    COIMBRA, Ceclia. Operao Rio: O mito das classes perigosas: um estudo sobre

    a violncia urbana, a mdia impressa e os discursos de segurana pblica. Rio de

    Janeiro: Ocina do autor; Niteri: Intertexto, 2001.

    MISSE, Michel. Como desarmar a violncia policial? Desarme: Notcias/Opinio. Rio

    de Janeiro, 04/03/2004.

    Relatrio da Sociedade Civil para o Relator da Especial da ONU para Execues,

    sumrias e extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.

    Relatrio Violncia Policial e Impunidade no Rio de Janeiro O Caso Wallace de

    Almeida. Justia Global, 2007.

    ALSTON, Philip. HUMAN RIGHTS COUNCIL .Mission to Brazil (414 November,

    2007), 14 May, 2008.VERANI, Srgio. Assassinatos em nome da Lei. Rio de Janeiro: Alberad, 1996.

    WACQUANT, Lic. As prises da Misria. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zarar, 2001.

    FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o

    projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    18/108

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

    grupos crImInososarmados com domnIode terrItrIo rf b

    iii i rimi ri Ji

    Jailson de Souza e Silva1

    Fernando Lannes Fernandes2

    Raquel Willadino Braga3

    consIderaes InIcIaIs

    Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territrio so

    redes criminosas territorializadas que atuam em atividades eco-

    nmicas ilcitas e irregulares, como o trco de drogas, servios

    de segurana e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir

    de uma base territorial especca, azendo uso da ora sica e da

    coao especialmente pelo uso de armas de ogo - como princi-

    pais meios de manuteno e reproduo de suas prticas.

    As atividades criminosas, grosso modo, podem ser denidas

    a partir de dois padres de uncionamento no que se reere

    relao com o espao. Por um lado, h aquelas atividades

    que prescindem de um substrato espacial especco para seu

    uncionamento. Por outro lado, h aquelas atividades cuja exis-

    tncia requer um substrato espacial. Podemos ilustrar esses

    padres a partir de dois exemplos prximos.

    As quadrilhas de assaltantes de bancos so grupos crimino-sos que no necessitam de uma base espacial especca para

    suas atividades. Essas quadrilhas podem se organizar e se reu-

    nir em bases logsticas pontuais, como casas ou apartamen-

    tos, mas raramente algo mais amplo que isso, porque o tipo de

    atividade que realizam requer o mximo de controle sobre as

    inormaes que o grupo dispe e sobre a identidade dos parti-

    cipantes do grupo. O connamento, neste caso, a base de

    seu uncionamento. Assim, quanto mais escondida or, e quanto

    menos relao sua base logstica tiver com o local planejado do

    crime, melhor.

    Um exemplo que nos ajuda a pensar uma atividade criminosa

    que necessita de um recorte espacial especco de atuao, o

    jogo do bicho. Esta atividade ilcita possui uma estrutura organi-

    zacional interna baseada na diviso do espao pelos seus mem-

    bros, que atuam dentro de suas reas de infuncia, inclusive para

    alm de sua atividade especca, como o caso de suas ligaes

    com polticos locais e mesmo com outras mas, como a dos

    caa-nqueis ou das vans. Esse exemplo remete a uma relao de

    uso, apropriao e domnio do espao como orma de garantia da

    reproduo das atividades criminosas o que implica, neste caso,o que os gegraos chamam de territorialidade.

    Robert Sack (1986) dene territorialidade como sendo a ten-

    tativa de um indivduo ou grupo de aetar, infuenciar ou contro-

    lar pessoas, enmenos e relaes, pela delimitao e deesa do

    controle sobre uma rea geogrca (p.19). Esta rea, ele dene

    1. Coordenador Geral do Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro, Doutor em Sociologia da Educao, proessor Adjunto do Departamento de Educao da UFF,

    Consultor do UNICEF e Canal Futura. 2. Coordenador Executivo do Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro, Doutorando em Geograa pela UFRJ. 3. Coordenadora de

    Direitos Humanos do Observatrio de Favelas. Doutora em Psicologia Social pela Faculdade de Cincias Polticas e Sociologia da Universidad Complutense de Madrid.

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    19/108

    17

    como territrio. Corrobora com esta denio a do tambm

    gegrao Marcelo Lopes de Souza (1995), para quem o territrio

    dene-se por um espao denido e delimitado por e a partir de

    relaes de poder (p.96).

    A territorialidade do crime, nestes termos, a expresso espa-

    cial das prticas dos grupos criminosos. A sua orma, contudo,

    varia de grupo a grupo, bem como os mecanismos utilizados no

    processo de territorializao, ou, em outros termos, de apropria-

    o e domnio do espao. O peso atribudo a reerncias simbli-

    cas na demarcao das ronteiras e limites, bem como o uso daora e da coao, so estratgias que os grupos criminosos lan-

    am mo nesse processo. Outros mecanismos, mais sutis, como

    a popularidade de um indivduo ou grupo tambm podem ser-

    vir de suporte territorializao, garantindo legitimidade sobre a

    rea dominada rente aos seus ocupantes ou vizinhos.

    No caso do Rio de Janeiro, observa-se que os grupos crimi-

    nosos atuantes no ramo do comrcio varejista de drogas quali-

    cadas como ilcitas, normalmente denominado de trco de

    drogas no varejo ou simplesmente trco de drogas, azem

    uso de recortes espaciais especcos para sua atuao. Esses

    recortes ocorrem, em particular, a partir do domnio territorial

    de avelas e outros espaos pobres e segregados da cidade,

    avorecendo-se de caractersticas especcas dessas localida-

    des, sendo a mais importante a baixa participao do Estado

    como regulador e garantidor de direitos. Em alguns casos

    especcos, como as avelas, contribui ainda a organizao

    espacial interna marcada por becos, vielas e ruas estreitas,

    que dicultam o acesso da polcia. Estes grupos, que come-

    am a se organizar como quadrilhas entre o nal dos anos 70

    e incio dos anos 80 se ortalecem em sua base territorial de

    atuao ao estabelecerem uma relao de reciprocidade or-

    ada (DOWDNEY, 2003) com os moradores das reas con-

    troladas. Com isso, ocupam algumas lacunas deixadas pelarelao rgil do Estado com estas comunidades, muitas vezes

    substituindo os direitos por avores e as obrigaes por rela-

    es de cumplicidade.

    At a dcada de 80, a atividade desses grupos ocalizava o

    comrcio varejista de drogas ilcitas, algo que alimentava boa

    parte do mercado consumidor do Rio de Janeiro. A compre-

    enso de um relativo monoplio da venda de drogas na cidade

    naquele momento importante para se entender as mudan-

    as ocorridas ao longo dos anos 90 e 2000. As disputas inter-

    nas, resultantes do poder que o trco passa a ocupar ao longo

    dos anos 80, tem como resultado a ciso do Comando Verme-

    lho, at ento grupo hegemnico e quase que absoluto no tr-

    co de drogas no Rio de Janeiro. Desta ciso surge o Terceiro

    Comando, que passa a disputar o mercado de drogas ilcitas,

    cujas principais bases de reerncia passam a ser as territoria-

    lidades assumidas por cada grupo. O local de atuao, neste

    sentido, transorma-se em um territrio a ser deendido. A ter-

    ritorialidade, ento, assume um papel central para a prpria

    sobrevivncia do grupo. Ter uma base territorial no era apenas

    um ponto de partida para a venda de drogas, mas para a pr-pria manuteno e reproduo do grupo e de suas atividades.

    Esta dinmica contribuiu para a ocorrncia de novas rupturas e

    o surgimento de outras aces do trco de drogas no Rio de

    Janeiro, como, por exemplo, os Amigos dos Amigos, conhecida

    como ADA.

    Somada diversicao das aces do trco nos anos 90,

    deve-se considerar a disseminao dos pontos de venda de dro-

    gas, que gradativamente se espraiam no s pelas avelas da

    cidade como por outros espaos, como apartamentos em bair-

    ros nobres, produzindo, por um lado, uma nova congurao da

    territorialidade do trco no varejo e, por outro, um aumento da

    concorrncia pela venda de drogas.

    grupos crImInosos armados com domnIode terrItrIo na regIo metropolItana dorIo de JaneIro

    Na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro existem gran-

    des Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territrio que

    atuam em dierentes campos e que, eventualmente, entram

    em confito. So eles o Jogo do Bicho, o Trco de Drogas no

    Varejo, a Mineira e as recentemente denominadas milcias.

    Estes grupos possuem bases territoriais organizadas de maneiradierenciada, tanto em termos de consolidao quanto em ter-

    mos de controle das ronteiras (remetendo ao que Robert Sack

    chama de controle do acesso).

    O Jogo do Bicho o grupo que possui uma organizao terri-

    torial mais consolidada, tendo sua estrutura interna de unciona-

    mento baseada em reas bem delimitadas, onde cada bicheiro

    atua, respeitando a rea dos demais. Esta consolidao de um

    territrio bem delimitado, estvel, dene, ela prpria, muito da

    estrutura de uncionamento do Jogo do Bicho, revelando um

    quadro de acertos e ajustes dentro desta rede criminosa em

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    20/108

    que as disputas internas no constituem ameaa ao seu uncio-

    namento. Neste caso, a partilha do bolo uncionou como ele-

    mento amenizador dos confitos e rupturas, j que cada mem-

    bro sabe bem claramente seus limites de atuao.

    A Milcia, conhecida em sua origem como Mineira, orga-

    niza-se territorialmente a partir de reas de infuncia, no tendo

    limites espaciais bem denidos, atuando, sobretudo, a partir da

    idia de ronteira, o que signica estar em ranca expanso de

    seus domnios territoriais. Sua rea de expanso privilegiada so

    os loteamentos ilegais e irregulares da perieria urbana da regiometropolitana do Rio de Janeiro. Atuam em um ramo que vem

    ganhando ora desde os anos 70, em que as invases de ter-

    renos por grupos autnomos de sem-teto oram substitudas

    pela gura de uma espcie de empreendedor imobilirio. Ele

    agencia lotes em reas pblicas, muitas vezes sob respaldo de

    vereadores e deputados, ou outras guras pblicas que garan-

    tem o uncionamento de um esquema de venda ilegal de lotes

    na perieria urbana. Esse enmeno, que vem se ampliando

    desde os anos 70, ganha ora na medida em que estes grupos,

    por sua origem de justiceiros, vendem um modelo de urbani-

    zao baseado na segurana, a exemplo do que ocorre, de

    maneira sosticada e regularizada, nos empreendimentos imo-

    bilirios para ricos que comeam a se multiplicar nos anos 80

    os condomnios exclusivos.

    A Milcia tambm atua no ramo da segurana privada, oe-

    recendo este servio a comerciantes das comunidades popu-

    lares onde est territorializada, alm de ter ortes ligaes com

    a ma das vans, que envolve o transporte irregular em si e

    esquemas de corrupo e lavagem de dinheiro.

    A origem da Milcia controversa, mas liga-se em particular,

    a uma narrativa quase mitolgica, ocada em justiceiros locais,

    como o caso de Rio das Pedras, maior avela da Zona Oeste da

    cidade. Segundo relatos de moradores, a ento Mineira come-ou com o agrupamento em torno de um aougueiro que revol-

    tado com os constantes assaltos ao seu estabelecimento, resolveu

    organizar um grupo para garantir a segurana na comunidade.

    Este grupo, que matava ou espancava os assaltantes, com o

    tempo, passou a atuar de maneira prossional, expandindo suas

    atividades, a partir do poder adquirido, para o setor imobilirio.

    Hoje, aquele grupo criminoso possui um orte controle sobre o

    loteamento das reas de ocupao, promovendo uma espcie de

    organizao das ocupaes irregulares e ilegais.

    Cabe destaque ainda ao discurso moralista que permeia

    a atuao dos milicianos. O uso e comercializao de drogas

    ilcitas no so tolerados, havendo casos de espancamentos,

    expulses e mesmo mortes de usurios e/ou supostos vendedo-

    res. Trata-se, em linhas gerais, de um novo re-encantamento

    do mal, conorme assinalou ZALUAR (1994) quanto viso

    construda pela sociedade em torno das drogas e dos tracan-tes. com base nesse re-encantamento do mal que a Milcia

    vem ocupando um espao cada vez maior nas reas pobres da

    cidade, vendendo um modelo de urbanizao, ainda que ile-

    gal ou irregular, centrado na segurana e na moralidade, algo

    que, inormalmente, vem seduzindo muitos moradores de ave-

    las territorializadas pelo trco - como o caso de muitos que

    ao longo dos anos 80 e 90, buscando ugir da violncia dos tra-

    cantes, optaram por morar em Rio das Pedras.

    Nos anos 2000, a expanso acelerada das milcias para novos

    territrios, para alm da Zona Oeste, provoca sua visibilizao

    acentuada na cidade. Com isso, o enmeno se torna um dos

    principais pontos do debate sobre segurana pblica no Rio de

    Janeiro, sobretudo a partir de 2006; nesse ano, as milcias

    ocuparam vrias avelas dominadas h dcadas pelos grupos

    de tracantes de drogas, tais como o Quitungo, Morro do Bar-

    bante, Ramos e Roquete Pinto, aparentemente com velado

    apoio das oras de segurana do governo estadual.

    Segundo matria publicada no jornal O Globo de 10 de

    dezembro de 2006, a cada 12 dias daquele ano uma avela

    dominada pelo trco oi tomada por milcias. Relatrio da Sub-

    secretaria de Inteligncia da Secretaria de Segurana Pblica

    indicava que, entre 2005 e 2006, o nmero de comunidades

    dominadas por esses grupos saltou de 42 para 924. Por sua vez,o Gabinete Militar da Preeitura do Rio, calculava que em 2006

    haveria 55 comunidades sob o domnio de milcias.

    Apesar das divergncias entre os rgos pblicos sobre o

    nmero de comunidades controladas por milcias na regio

    metropolitana do Rio de Janeiro, h acordo quanto contun-

    dncia do avano desses grupos nos ltimos anos e sobre a

    4.Entre 2006 e 2007 houve diversas menes na imprensa do Rio de Janeiro a um relatrio elaborado pela Subsecretaria de Inteligncia, no entanto, at o momento

    tal documento no oi publicizado integralmente.

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    21/108

    existncia de uma maior concentrao na zona oeste da cidade,

    base anterior da Mineira.

    Embora os dados sobre as localidades dominadas ainda sejam

    incipientes, a partir das inormaes disponveis, incluindo rela-

    tos de moradores destas reas, possvel identicar algumas

    caractersticas sobre a composio e os mecanismos de ocupa-

    o e dominao das milcias.

    Trata-se de grupos compostos principalmente por homens liga-

    dos s oras de segurana do Estado, reormados e na ativa, pro-

    venientes das polcias civil, militar, do corpo de bombeiros e, emcasos mais espordicos, das oras armadas. Apoiados em um

    discurso ortemente moralista centrado na promessa de ordem e

    paz, estes grupos dominam e exploram reas antes controladas

    pelo trco de drogas. Ao ocupar uma comunidade, as milcias

    eliminam o trco de drogas no varejo, mas passam a explorar

    as demais atividades ilegais existentes no territrio. Desta orma,

    tudo aquilo que era gerenciado pela rede do trco de drogas -

    exceto o comrcio ilcito das drogas no varejo passa s mos do

    novo grupo. Alm disso, as milcias introduziram uma prtica que

    no era utilizada pelo trco: a cobrana de mensalidades por

    domiclio para remunerar a segurana privada5.

    Em alguns casos, tambm h inormaes sobre dinmicas

    de especulao imobiliria, porm, de maneira geral, os gran-

    des lucros das milcias esto nas taxas de segurana cobradas

    a comrcios e domiclios, no gio dos botijes de gs6, na explo-

    rao clandestina da TV a cabo (popularmente conhecida como

    gatonet) e na taxao dos servios de transporte alternati-

    vos (kombis, vans e moto txis). Isso signica que agentes do

    Estado, com conhecimento anterior da dinmica das redes ilci-

    tas, optaram por rmar-se enquanto mais um grupo criminoso

    organizado e independente, visando assumir de orma exclusiva

    os lucros obtidos nos territrios dominados.

    A motivao , sobretudo, nanceira. No entanto, o argu-mento central utilizado pelas milcias para obter apoio nas ocu-

    paes de que vo estabelecer a paz e a ordem, livrando

    as comunidades do trco de drogas e trazendo benesses

    para a comunidade. O xito que estes grupos vm obtendo

    nos processos de invaso e ocupao de territrios que eram

    controlados pelo trco se explica, em parte, pelo conheci-

    mento da dinmica e estrutura local derivado de relaes ante-

    riores com a rede ilcita, e pela promessa de abolir os conron-

    tos armados, a exposio ostensiva a armamentos pesados e

    ao trco de drogas.

    Alguns grupos contam ainda com o apoio do aparato de

    segurana ocial do Estado. As ocupaes costumam se dar de

    orma rpida e discreta. De acordo com relatos de moradores de

    reas dominadas, so comuns, durante a invaso e ocupao,

    os desaparecimentos e as execues de pessoas ligadas ao tr-co de drogas local.

    Ao contrrio da polcia mineira - grupo ormado basica-

    mente por policiais moradores das comunidades - as milcias

    se organizam externamente comunidade e tomam o territ-

    rio sem que haja qualquer tipo de pertencimento ao lugar. No

    entanto, os dois tipos de organizao criminosa convergem em

    alguns aspectos. Tanto na polcia mineira, como na milcia,

    o ator explorao-econmica a partir do controle do territrio

    aparece como uma caracterstica essencial. Por outro lado, no

    se tratam de organizaes com um comando nico.

    Cabe destacar que alm da motivao econmica, h

    indcios de que as milcias tambm almejam infuenciar a esera

    poltica a partir da criao de currais eleitorais e da articulao

    com representantes do legislativo e do executivo. Um levanta-

    mento realizado pelo Jornal O Globo em 20077, indicou que

    das 92 reas dominadas naquele momento pelas milcias, 73

    tiveram pelo menos um policial, bombeiro ou militar reormado

    entre seus candidatos mais votados nas ltimas eleies. De 9

    candidaturas da rea de segurana pblica, 5 se elegeram com

    votaes expressivas em reas ocupadas por milcias. nesse

    contexto que as milcias vem se expandindo no Rio de Janeiro

    com uma velocidade alarmante.

    A dominao das milcias se d por meio de monitora-mento e controle permanente sobre a comunidade, de modo

    que qualquer iniciativa est sempre sujeita deliberao e aos

    interesses do grupo dominante. Isso implica mecanismos de

    coao da populao, incluindo a coao armada, ainda que

    de orma mais velada que a do trco. Com isso, o morador no

    5. Este tipo de cobrana no realizado em todas as comunidades sob domnio das milcias. Foi constatado que em algumas localidades a cobrana eita somente

    ao comrcio. 6. Os moradores so obrigados (ou pelo menos intimidados) a adquirirem os botijes vendidos dentro da comunidade, com preos acima da mdia.

    7. Publicado na edio do dia 11 de evereiro de 2007.

    19

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    22/108

    ca totalmente livre do convvio com armas de ogo em suasruas, embora sua exposio seja menos ostensiva.

    Atualmente, comeam a prolierar relatos sobre diversas or-

    mas de violncia utilizadas pelas milcias. As punies cruis

    e truculentas dos transgressores, a elevao dos preos dos

    produtos no comrcio local, derivado das taxas semanais ou

    mensais as quais esto submetidos os comerciantes, associada

    obrigatoriedade de realizar compras no interior da comuni-

    dade; o ressurgimento de jovens armados pelas ruas de algu-

    mas comunidades para garantir a vigilncia e a ordem, e o

    monitoramento constante so alguns atores que tem gerado

    insatisaes com as milcias e eito com que os moradores dasreas dominadas percebam que, apesar do discurso pautado

    nas idias de ordem e paz, na verdade a dinmica de atu-

    ao deste grupo implica uma nova modalidade de tirania.

    O ltimo grande grupo criminoso armado que disputa o domnio

    de territrios na regio metropolitana do Rio de Janeiro o Trco

    de Drogas no Varejo. Como indicamos anteriormente, este grupo

    atua em reas especcas, tendo nas avelas e conjuntos habita-

    cionais seus principais espaos de territorializao. A presena do

    trco de drogas nas avelas cariocas no algo recente. Remonta

    aos anos 50, quando a maconha era comercializada por peque-

    nos tracantes e vendida, sobretudo, para os moradores das pr-

    prias avelas. Com a chegada da cocana nos anos 80 e o aumento

    da demanda por drogas por parte da classe mdia, o cenrio do

    comrcio das drogas ilcitas se modica e seu controle passa a ser

    exercido por quadrilhas organizadas (DOWDNEY, 2003).

    Os anos de 1983 e 1984 podem ser considerados o marco

    temporal da chegada e consolidao do comrcio ilcito de

    cocana no Rio de Janeiro. nesse perodo que maosos ita-lianos, ligados ao trco internacional de drogas vm ao Rio

    de Janeiro negociar com grupos criminosos locais (ZALUAR,

    2004). O Comando Vermelho organizao criminosa original-

    mente undada para a deesa dos direitos dos presos, e poste-

    riormente centrada em assaltos a bancos - muda seu oco, que

    passa a ser o trco de drogas e o roubo de automveis, ativi-

    dade paralela de suporte nanceiro ao trco. Tambm nesse

    momento que os grupos que controlam a cocana na Amrica

    Latina procuram a cpula do Comando Vermelho propondo

    uma sociedade (AMORIM, 2003). Cabe considerar ainda que

    este perodo oi caracterizado por uma poltica de seguranapblica branda nas avelas cariocas, resultado de uma tentativa

    de humanizao da polcia pelo governo Brizola (1983-1985).

    Observa-se, com isso, que o cenrio poltico (governo Bri-

    zola), somado s caractersticas do contexto scio-espacial do

    Rio de Janeiro, como o stio das avelas, a condio de pobreza

    de seus moradores e um mercado consumidor promissor

    (SOUZA, 1994a; 1994b), tornaram esta cidade um ponto estra-

    tgico da venda de drogas, e no mais apenas um ponto de pas-

    sagem de seu comrcio internacional. Como arma Dowdney

    (2003), as avelas so geogracamente convenientes do ponto

    de vista da deesa militar (p. 74).

    A chegada da cocana sinaliza, ento, a passagem do para-

    digma maconha-38 para o paradigma cocana-AR15

    (SOUZA, 2000), segundo o qual a deesa dos pontos de venda

    torna-se um dos aspectos centrais na comercializao da droga.

    Com isso, observa-se um aumento do uso de armas pesadas

    pelos tracantes, algo que, atrelado s disputas internas, dado

    o crescimento e visibilidade do negcio do trco, transormou a

    disputa e manuteno dos pontos de venda numa disputa mili-

    tarizada que passou a envolver os grupos criminosos organiza-

    dos em dierentes aces e a polcia.

    No se pode esquecer, ao longo desse processo, o papel

    ocupado pela polcia. A polcia, por um lado, adotou a lgica daguerra s drogas como paradigma de interveno, resultando

    em conrontos blicos e num aumento signicativo do nmero

    de mortes, seja de bandidos, seja de policiais, seja ainda de

    moradores das avelas, que passaram a sorer diretamente os

    eeitos desse conronto. Por outro lado, a polcia, no como ins-

    tituio, mas a partir de grupos de policiais corruptos e interes-

    sados em lucrar com o comrcio ilcito de drogas, comps um

    grupo parte, que passou a disputar com os tracantes uma

    atia dos rendimentos do trco atravs da extorso e, em mui-

    tas circunstncias, associando-se ao negcio, seja com o trco

    Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    23/108

    de armas, seja colaborando com os circuitos de deslocamentoda droga at os pontos de venda.

    Assim, se por um lado a lgica de guerra s drogas ampliou

    o grau de violncia dessa instituio nos espaos territorializa-

    dos pelo trco, por outro e, contraditoriamente, essa represso

    aumentou o poder dos grupos corruptos, j que o preo pela

    tranqilidadetornava-secadavezmaisalto.Issolevouaum

    aumento abrupto da corrupo, com sua instituio na conta-

    bilidade do trco o arrego - e situou os grupos corruptos

    em uma nova condio, que aproveitando-se de sua posio

    comearam a partilhar dos lucros obtidos pelo comrcio ilegal

    de drogas. Dessa orma, os grupos corruptos da polcia passa-ram a estabelecer relaes promscuas com o trco, atuando

    em dierentes rentes, desde a extorso at a participao direta

    no trco de drogas.

    A disseminao e popularizao de novas drogas, especial-

    mente as sintticas, a diversicao dos pontos de venda e, por

    conseguinte, da concorrncia resultando em uma queda sig-

    nicativa no valor nal da droga ao consumidor, acilitado pela

    cadeia de corrupo que se consolida e se estende para as ron-

    teiras -, a permanncia da irregularidade das prticas comerciais

    e de uso do solo, alimentadas pela alta de scalizao, aplica-

    o de regulao especca (conorme prevista no Plano Diretor

    Decenal) e ainda o uso de mecanismos paralelos de resoluo

    de confitos, reoradas pelo descrdito das instituies estatais,

    ez com que as avelas e demais espaos populares da cidade

    se tornassem o espao ideal de consolidao e ampliao das

    redes ilcitas ali instaladas. A rede do trco, diante desse cen-

    rio, diversica-se, ampliando seu grau de interveno nos espa-

    os avelizados e de participao em atividades econmicas ilci-

    tas ou no regularizadas, como o caso do transporte alternativo

    (moto-txis e vans), da cobrana por servios de segurana, ou

    ainda da cobrana de gio por servios como o gs.

    Observa-se que as redes do comrcio varejista de drogas il-

    citas consolidam-se ao longo dos anos 90, havendo uma maiordenio quanto s redes de corrupo e controle dos territ-

    rios. As guerras entre aces so cada vez menores a partir

    do ano 2000, demonstrando uma tendncia acomodao dos

    pontos de venda, muito embora isso no tenha implicado no m

    de uma certa instabilidade, seja pela ameaa permanente de

    incurses policiais de conronto pautadas na lgica da guerra

    s drogas, seja pela eventualidade de um grupo rival quererdisputar o territrio. O ato, porm, que o risco vem dimi-

    nuindo, azendo com que o custo nal da droga e sua taxa de

    lucro -, diminua igualmente. Como sinaliza Machado (1996),

    O comrcio de drogas ilcitas tem o carter de atividade

    transnacional, opera em escala global, mas seus lucros

    dependem da localizao geogrfca dos lugares de produ-

    o e de consumo, da existncia de ronteiras nacionais e

    da legislao de cada Estado nacional (p. 30-31)

    Esses atores infuenciam diretamente o preo nal do pro-

    duto: Cada ronteira atravessada aumenta os riscos e, portanto,o investimento em corrupo e logstica. Com isso, os preos

    aumentam e com eles a possibilidade de lucros (Ibid.: 30).

    Ou seja, o que d lucro o risco que a comercializao

    implica. Nesse sentido, avaliamos que, na medida em que o

    risco diminui, as taxas de lucro diminuem, aetando diretamente

    os mercados locais, especialmente aqueles que se situam na

    esera mais empobrecida e precria da rede: as avelas, que

    representam a maniestao mais pobre e menos sosticada

    do trco de drogas (DOWDNEY, 2003: 75).

    A diminuio das taxas de lucro do trco de drogas no varejo

    do Rio de Janeiro oi constatada na pesquisa realizada pelo

    Observatrio de Favelas entre 2004 e 2006 sobre a participao

    de crianas, adolescentes e jovens na rede social do trco de

    drogas no varejo8. O principal refexo disso oi a queda signica-

    tiva dos rendimentos dos trabalhadores da rede do trco. Veri-

    cou-se, por exemplo, que o exerccio de uma uno cujo rendi-

    mento situava-se na aixa de 7 a 10 Salrios Mnimos em 2001

    como demonstraram alguns estudos -, podia situar-se em 2006

    na aixa de 1 a 3 Salrios Mnimos. Os refexos da queda das

    taxas de lucro no aparecem apenas na reduo dos rendimen-

    tos dos trabalhadores da rede do trco, mas revelam-se tambm

    na diversicao cada vez maior das atividades dos grupos crimi-

    nosos que atuam no trco de drogas.A diversicao das atividades ilcitas e irregulares pratica-

    das pelos tracantes de drogas no algo recente. A antro-

    ploga Alba Zaluar mencionava, j em 1982, a cobrana de

    pedgio e taxas de proteo a comerciantes pelos tracantes da

    Cidade de Deus (ZALUAR, 1994b). Igualmente, a prpria ori-

    gem do Comando Vermelho no deixa dvidas de que embora o

    8. OBSERVATRIO DE FAVELAS. Caminhada de crianas adolescentes e jovens na rede do trco de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006. Rio de Janeiro:

    2006. Disponvel para download em www.observatoriodeavelas.org.br

    21

  • 7/22/2019 Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro - Relatrio de Milcias completo

    24/108

    trco viesse a assumir um papel preponderante nas atividadesdo grupo, sua trajetria em atividades ilcitas os colocava em

    condies de continuar atuando em outros campos, como men-

    cionamos anteriormente quanto ao roubo de veculos. O ato,

    porm, que temos observado uma diversicao e expanso

    cada vez maior das atividades ilcitas e irregulares praticadas e/

    ou nanciadas pelos grupos criminosos que tracam drogas no

    Rio de Janeiro.

    O chamado transporte alternativo, que na realidade uma

    atividade irregular, porm praticada livremente, com rouxa s-

    calizao do governo e alimentada por ortes redes de corrup-

    o e lavagem de dinheiro, uma das atividades irregulares quemais crescem no Estado do Rio de Janeiro, e que conta com a

    participao de grupos criminosos. Os servios de segurana

    privada oerecidos nas avelas e a cobrana de gio pelo gs de

    cozinha, entre outros servios, so tambm exemplos da expan-

    so das atividades dos grupos criminosos que atuam, original-

    mente, no ramo das drogas ilcitas.

    Com base nisso, acreditamos que as circunstncias atuais

    avorecem a denominao desses grupos no mais como tr-

    co de drogas pura e simplesmente algo que, a propsito, j

    escamoteava na origem os limites de uncionamento destes gru-

    pos, pois atuam no varejo em condies limitadas e precariza-

    das em comparao ao Trco das redes internacionais, que

    envolve outro nvel de penetrao nas eseras de poder. Acre-

    ditamos que a denominao mais adequada para estes grupos

    seja a de Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territ-

    rio, algo que, no nosso entender, no se restringe apenas aos

    grupos de tracantes, mas tambm aos grupos que se organi-

    zam como mineira e milcias, cujas atividades, como vimos,

    tambm vm se diversicando cada vez mais.

    Contudo, importante ressaltar que no a diversicao

    e ampliao das atividades praticadas pelos grupos crimino-

    sos o ator explicativo central para essa denominao proposta.

    O ponto que nos chama mais a ateno a articulao dessaampliao das atividades com a expanso territorial dos grupos,

    em particular a mineira que vem se territorializando em dire-

    o s reas de expanso imobiliria irregular de baixa renda

    seu principal negcio - e, mais recentemente, as milcias que

    vem ameaando a relativa estabilidade nas avelas da cidade,

    investindo pesadamente na disputa pelo controle dessas reas.

    Trata-se, portanto, de uma relao que envolve o uso de

    armas de ogo, negcios ilcitos ou irregulares e o controle de

    reas geogrcas. a partir da conjuno desses trs elemen-

    tos que esses grupos atuam, e esta a base a partir da qual

    propomos essa nova denominao para esses grupos, comoorma de ampliar a capacidade de entendimento sobre sua

    atuao.

    Nesses termos, pertinente nossa armao anterior de que

    o cenrio uturo mais provvel o aumento do nmero

    de grupos criminosos armados com domnio de territrio

    em avelas e bairros periricos da regio metropolitana

    do Rio de Janeiro. Esses grupos vm se envolvendo em

    diversas atividades lcitas e ilcitas. A sua caracterstica

    marcante o uso de armas de ogo de alto calibre, que

    originalmente oram empregadas para a deesa de pontosde venda de drogas ou para a deesa do territrio contra

    grupos rivais e que, com o tempo, passaram a ser utiliza-

    das como instrumento de extorso, coao e presso, na

    comunidade e ora dela. O uso de armas possibilita um

    processo de territorializao crescente, no qual o territ-

    rio dominado passa a uncionar como base das ativida-

    des da quadrilha. A distino intergrupos tambm ocorre

    pela reerncia territorial, podendo-se alar, neste sentido,

    de uma identidade territorial que passa a defnir a inser-

    o em uma aco. A territorializao ocorre, sobretudo,

    em reas avelizadas ou de perieria urbana, mas vem se

    ampliando para as reas ormais da cidade, em uno

    da disputa de mercado. Quanto mais acirrada or esta dis-

    puta, mais se ragmentar o territrio da cidade (SOUZA

    E SILVA & BARBOSA, 2005: 113)

    Com base nisso, podemos apontar alguns eeitos mais ime-

    diatos do processo crescente de territorializao dos grupos

    criminosos armados com domnio de territrio na cidade, que

    constituem, ao nosso ver, o principal obstculo ao alcance das

    condies necessrias ao desenvolvimento econmico, social e

    humano na regio metropolitana do Rio de Janeiro, dicultando

    o exerccio pleno da cidadania.Na escala da metrpole, observa-se a ragmentao do

    tecido scio-poltico espacial (SOUZA, 2000), que refete o pro-

    cesso de territorializao dos grupos criminosos armados em

    avelas e outros espaos populares da cidade acompanhada

    pela territorializao das classes altas em espaos auto-segre-

    gados, como os condomnios echados. A cidade ragmentada