Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

71
selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

description

Um livro onde é abordado o dia a dia de pacientes diagnosticados com microcefalia

Transcript of Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Page 1: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

selfie:em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Page 2: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Missão Salesiana de Mato GrossoUniversidade Católica Dom Bosco

Instituição Salesiana de Educação Superior

Chanceler: Pe. Gildásio Mendes dos SantosReitor: Pe. José Marinoni

Entrevistas, Transcrição das Entrevistas, Fotografias, Redação e Edição

Ana Carolina Dias Cáceres

RevisãoAna Carolina Dias Cáceres

Projeto Gráfico, Arte da Capa e Diagramação Maria Helena Benites

Orientação do Projeto Prof. Me. Oswaldo Ribeiro

Coordenação do Curso de Jornalismo da UCDB Prof. Me. Oswaldo Ribeiro

Trabalho concluído em 2014

Page 3: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Ana Carolina Dias Cáceres

selfie:em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Page 4: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

su

rio

Page 5: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

614

16 2030 3640 44

4852

68

810

Dedicatória

Introdução

Conclusão

Capítulo 1Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Agradecimento

Prefácio

Antes de mim Minha chegada

Os outros da escola

A descoberta da música e sua influência

Ídolos e a busca por um lugar que me apaixonasse

Religiosidade e o papel social da igreja

Visita à psicóloga: debatendo amores e marcas

Outros lados de uma mesma moeda

Page 6: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

de

dic

at

ór

ia

Page 7: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Dedico este livro aos meus pais,

amigos, professores e todos aqueles que

convivem diariamente com a Microcefalia.

Page 8: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

ag

ra

de

cim

en

to

s

Page 9: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Pelo apoio dado para que este trabalho saísse, agradeço à Deus primeiramente, meus

pais que colaboraram com suas memórias e ajudaram na parte financeira do projeto, aos professores que estiveram do meu lado durante nos quatro anos de curso e me de-

ram a base e o conhecimento necessário para executá-lo, em especial agradeço a professora

Cristina Ramos que me ajudou a escrev-er este livro e a professora Maria Helena que gentilmente o diagramou, a regente do coral UCDB, Edna Martinez, que teve a paciência de entender minhas ausências

dos ensaios, aos entrevistados que cederam suas histórias para serem contadas aqui e por fim, agradecer especialmente aos meus

amigos, Adriel Mattos, Deborah Caroline, Vinicius Prates e Arlon Blaszaki por terem

tido a paciência e estarem do meu lado do começo ao fim.

À vocês, o meu muito obrigada!

Page 10: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

pr

efá

cio

Page 11: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Jovem do século XXI, quase não se olha no espe-lho. Usa outra estratégia para se enxergar. Tira uma selfie. Está pronto e lindo para a balada, tira uma selfie e compartilha nas redes sociais. Acabou de almoçar, quer saber se está com uma alface nos dentes, tira uma selfie e só compartilha se tudo estiver ok. Percebeu que está no lugar com o visual de fundo mais lindo e des-colado do mundo, tira uma selfie e joga na rede. E até mesmo no banheiro, ele vê o seu reflexo na imagem que tirou de si mesmo, olhando para o espelho, mero detalhe. A palavra selfie, tão repetida nos últimos dois anos, faz referência ao termo em inglês self-portrait, autorretrato em língua portuguesa.

A autora Ana Carolina Dias Cáceres faz parte dessa geração “autorretrato publicado na internet”. Quem a segue nas redes sociais já viu inúmeras selfies publica-das: selfie dos olhos puxados bem delineados de preto, selfie com a boca pintada de batom vermelho, selfie com laço no cabelo, selfie com turbante, selfie de chapéu, sel-fie com o violino, selfie com o colar de pérolas, selfie ca-minhando com o amigo, selfie dentro do ônibus e mais montagens em mosaico de selfies e selfies. Tudo dentro dos padrões dos jovens de hoje, que olham para si fixamente por meio dessas imagens digitais e parecem querer se encontrar em dois cliques: o da câmera e o do botão compartilhar.

Aos 23 anos e quase jornalista, Ana Carolina, fez a selfie da sua vida. Este livro. Um autorretrato, onde ela pode ultrapassar a imagem codificada em números e que mostra as marcas do que nasceu junto com ela: a microcefalia. Para ir além das cicatrizes físicas a autora fez um resgate jornalístico de si mesma. Se entrevis-tou. Revirou os armários de si, para entender o signifi-cado da microcefalia nessa jovem mulher e quem sabe

11

Page 12: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

12 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

assim diminuir a desinformação sobre a síndrome na sociedade.

Mas a personagem principal, Ana, não está sozinha na foto em prosa. Na narrativa desse livro aparecem outros personagens. Os outros, que a amam demais por ela ter microcefalia. Que a agridem demais, por ela ter microcefalia. Os outros, que a fazem amar demais, idolatrar, por ela ter microcefalia. E aqueles outros, que por também serem portadores da microcefalia, sentem tudo isso e muito mais.

Selfie é um livro que mostra a personagem Ana, em um mergulho na sua própria história de sobrevivência, adaptação e bravura ao encarar a alteridade. De natu-ralidade ao enfrentar os desafios. E coragem para bar-rar a falta de fundamentos do preconceito. No retrato dela mesma, a microcefalia é diferença e motivação.

Cristina Ramos da Silva Ribeiro*Jornalista e Ma. Em Estudos de Linguagens.

Professora do Curso de Jornalismo

da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).

Page 13: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

13se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Page 14: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

int

ro

du

çã

o

Page 15: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

O presente trabalho tem por finalidade abordar a Mi-crocefalia. Uma síndrome caracterizada pelo fechamento prematuro das fissuras do crânio. Este fechamento pre-maturo pode trazer danos ao desenvolvimento cerebral da criança, ocasionando seqüelas cognitivas e/ou motoras, além de outras síndromes associadas como a Paralisia Ce-rebral, por exemplo.

Porém, neste trabalho será possível observar que mesmo com tais seqüelas, a criança pode ser capaz de ter uma vida normal, de acordo com suas possibilidades, fazendo coisas como estudar e conviver socialmente.

A Microcefalia está associada a duas formas:Causas primarias ou genéticas. Neste caso a Microce-

falia é conhecida pelas designações verdadeira ou Vera. Quem apresenta esta microcefalia pertence a um grupo de distúrbios que geralmente não tem outras malformações ou ligação com algumas síndromes genéticas específicas, como por exemplo, a Síndrome de Down.

Causas secundárias ou não-genéticas. Neste caso tam-bém conhecida como Microcefalia por Cranioestenose.

Este tipo de Microcefalia ocorre devido um grande nú-mero de agentes nocivos que atingem o feto intra-útero, principalmente atingindo a mãe no primeiro trimestre de gestação. A exemplo podemos citar o uso de drogas (me-dicamentos e álcool), desnutrição materna, infecções (ru-béola, toxoplasmose, varicela), insuficiência placentária e exposição à radiação.

Fora isso, quando se há um processo mais rápido de crescimento cerebral durante o período pós-parto indo até os dois primeiros anos de vida, é possível que a microcefa-lia ocorra devido a fatores como hipóxia grave, traumatis-mo crânio-encefálico, acidente vascular cerebral e distúr-bios degenerativos do sistema nervoso central.

Em suma, nos casos aqui apresentados será possível conhecer as duas classificações: Vera e Cranioestenose. Além dos impactos que a sindrome causa durante a vida da criança.

15

Page 16: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

1an

tes

de m

im

Page 17: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Quando nascemos a única certeza que temos é que viemos para um mundo desconhecido. Estamos vi-vos? Estamos sonhando? não se sabe. Assim como não se sabe se a vida será a mais normal possível ou se teremos que lidar com alguns obstáculos pelo resto dela.

Minha mãe, Clara, morena, estatura média, olhos castanhos conheceu meu pai, Erminio, também mo-reno e de descendência paraguaia em uma festa junina de escola. Na época minha mãe tinha apenas dezes-seis anos, enquanto que meu pai, um ano mais velho, possuia dezessete.

Na ocasião, minha mãe namorava. Era o então na-morado que ela esperava na festa, mas que por alguma ironia do destino, não conseguiu chegar a tempo de uma viagem que fazia. O amor dos meus pais nasceu ao primeiro olhar. Indo para casa onde morava e tra-balhava, dona Clara já não conseguia tirar da cabeça o garoto que vira na festa. Porém, um dia, na casa da minha avó, Odezina, que na época morava em outro bairro (lavadeira, baiana forte, daquelas arretada como diriam os próprios baianos), minha mãe avistou meu pai passando. O rapaz da festa e por quem tinha se apaixonado, e que mais parecia um sonho.

Até então nem o nome ela sabia. Questionou mi-nha avó sobre o assunto sem revelar seu real interesse no rapaz. E enquanto não havia um segundo encon-tro, algum tempo se passou e a paixão foi aumentan-do.

Após ter visto, mesmo que de longe o jovem por quem se apaixonara naquela noite de junho, minha mãe começou a ir mais vezes à casa dos pais para po-der vê-lo novamente. Isso tudo durou quase um ano. Até que o destino resolveu, mais uma vez, trabalhar a favor deles.

Carregando sempre uma carta consigo enquanto aguardava a chance de estar cara a cara com meu pai

17

Page 18: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

18 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

e se declarar, não se importando se a resposta seria a que ela esperava ou não, minha mãe o encontrou no-vamente, descobrindo que o nome que disseram a ela, Ferminio, na verdade era Erminio.

O segundo encontro ocorreu num domingo. A fa-mília do meu pai e da minha mãe tinha amigos em co-mum. E foi através de um convite para um passeio em uma chácara que Dona Clara pode finalmente encon-trar meu pai. E foi neste domingo, no ultimo dia do ano de 1979, que minha mãe, envergonhada, entregou a carta que escrevera à ele, se declarou e foi embora. Sendo que meu pai, após ter lido a carta, a procurou e disse que ocorria o mesmo com ele. E desta forma foi que uma história de mais de trinta anos começou. Com um inicio de namoro enrolado, feito de desen-contros, eles resolveram morar juntos, sem muitas condições, já que meu pai tinha acabado de conseguir seu trabalho de funcionário público no Laboratório Central de Campo Grande, no qual permanece até hoje. Trinta e quatro anos no mesmo emprego. Na época minha mãe trabalhava em uma maternidade em Campo Grande.

Sendo assim os dois resolveram alugar uma casa quase que sem móveis. Na cama de casal eram dois colchões de solteiro. Mas, tudo isso foi temporário. Em seguida eles compraram um terreno para pagar em cinco anos e com algum esforço foram construin-do a casa onde residimos até hoje. Meus pais se muda-ram para o nosso lar sem muita infra estrutura. Sem luz, sem água encanada, sem banheiro. Até então não possuíam filhos. Foi só quase sete anos depois que minha mãe começou a se dar conta que não conseguia engravidar. A partir de então começou a fazer um tra-tamento médico e recebeu o diagnóstico que confir-

Page 19: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

19se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

mou suas suspeitas. As possibilidades de engravidar eram mínimas. Porém, no intervalo do tratamento, o médico que a acompanhava morreu em um aciden-te Após quatro meses de falecimento do doutor, cujo nome era Ivan, minha mãe retornou o tratamento, tendo que começar tudo de novo com o médico Ru-bens Marques fez um pedido de Ultrason. Foi nesse Ultrason que veio a notícia. Minha mãe finalmente engravidara do seu primeiro filho. E já estava de 18 semanas, o que equivale cinco meses de gravidez. Saiu do exame radiante. Extremamente feliz. O garoto da família, que resolveram dar o nome de Marcos, nasceu no último dia de março em 1987, de parto normal, na maternidade Campo Grande. Passaram-se três anos e minha mãe, para a felicidade dela, engravidou nova-mente. Desta vez de mim, uma menina.

Page 20: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

2m

inha

che

gada

Page 21: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Começou o pré-natal, as consultas periódicas, fez tudo exatamente como se manda o figurino e os médi-cos. Pois, não era como a primeira gravidez. Era uma criança muito esperada, já que seria a primeira neta, primeira sobrinha, a primeira menina a qual a família toda esperava.

Nos exames realizados durante a gravidez nada apontava a Microcefalia que me acompanharia pelo resto da vida. Mas, de qualquer forma minha mãe já tinha acertado com o obstetra que a criança nasceria através de uma cesariana, para que fosse feita uma li-gadura das trompas, pois, dois filhos estavam de bom tamanho e não queria mais engravidar.

Então, em 6 de março de 1991 minha mãe se des-pediu do filho Marcos, conversou com ele dizendo que ficaria apenas dois dias fora e que logo voltaria comigo nos braços. Mas não aconteceu assim. Inter-nou-se no dia 9 às sete da manhã e a cesariana ocorreu as três da tarde.

Sendo assim, o meu nascimento, como de alguns, foi planejado. Mas só o nascimento, porque o que vi-ria depois pegou a todos de surpresa. Vim para este mundo às três horas da tarde de um sábado. Fruto de uma cesariana que foi interrompida em determinado momento pelo médico responsável para a confirma-ção da vontade da minha mãe fazer a cirurgia de es-terilização.

Todo o pré-natal foi absolutamente normal e apa-rentemente era uma criança normal. Mas, foi no nasci-mento que o obstáculo a qual tenho que lidar até hoje veio á tona.

De início o médico responsável pelo parto, Dr. Wilson Sammi, considerou a existência da Síndrome de Down, até mesmo por conta da minha aparência. Mas essa idéia veio por terra quando o neurocirurgião Janivaldo Nunes Lacerda entrou em cena. Foi dele que veio o diagnóstico final. Meus pais descobriram que

21

Page 22: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

22 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

tinham uma filha com Microcefalia. Até hoje algo tão raro de se acontecer que até mesmo os médicos se confundem com alguns tipos de síndromes, como a de Down, por exemplo.

Contudo, minha aparência apontava algumas ca-racterísticas da Microcefalia que ajudaram o neuroci-rurgião a desconfiar e pedir então a tomografia, que na época era raro encontrar locais que o fizessem em Campo Grande. Minha família conseguiu a realização deste exame, dois dias após meu nascimento, em uma clínica particular que acabava de ser criada, a DIIMA-GEM. O exame custou cerca de oitocentos cruzeiros. Na capital de Mato Groso do Sul, o lugar era o único a realizar este exame. O outro local próximo para a tu-mografia era no interior de São Paulo, em Presidente Prudente.

Durante esta tomografia nada aconteceu, exceto eu, ainda bebê, ter saído da sala roxa e com frio devido o ar condicionado do lugar. Quem me acompanhou e autorizou o exame foi minha tia por parte de pai, Ignácia Cáceres, e fui anestesiada para a realização do exame, devido a minha pouca idade.

Nasci, pois então, com um afundamento frontal e um entupimento nasal que me impediam de respirar normalmente.

Fiquei nove dias internada após o nascimento e neste nono dia de vida já fui submetida à primeira ci-rurgia. Justamente no dia em que deveria ter nascido se o parto tivesse seguido a sua linha natural.

Quem foi comigo na ambulância até o hospital no qual faria esta primeira cirurgia, pois devido a cesa-riana minha mãe estava impossibilitada de tal ato, foi meu pai ao lado da enfermeira.

Esta cirurgia era para a correção do entupimento nasal, correções físicas, já que este entupimento nasal se devia justamente pela aparência desconfigurada que possuía do lado esquerdo da face. O nariz torto era

Page 23: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

23se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Meu primeiro ano de vida

Page 24: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

24 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

uma delas. Além de também ter sido retirado quaren-ta por cento da estrutura óssea do crânio na região da fronte até a coroa.

Durante este primeiro procedimento cirúrgico, so-brevivi a meu primeiro obstáculo. Duas paradas cardí-acas, dois sustos aos médicos e sete horas de cirurgia que me renderam, pela quantidade de sangue perdido durante o processo, uma transfusão de sangue. Isso tudo apenas com nove dias neste, como diria minha avó, mundão de meu Deus. Esta foi a cirurgia, das sete que serão contadas aqui, que levou mais tempo em seu procedimento.

Durante todo este tempo da cirurgia, meu pai, até então, segundo as palavras ditas por minha mãe, não parava de chorar. A microcefalia era não só uma questão física, mas abordava alguns outros problemas que poderiam vir, como motores e intelectuais. Todos esses problemas precisaram de paciência para que se revelassem e se confirmassem. Meu pai conta que fez comigo alguns testes depois da cirurgia. Como por exemplo falar perto de mim para ver se ouvia ou fazer movimentos para ver se o olhava. Minha primeira vez em pé, segundo ele, foi por causa de um cachorro. Levantei querendo ir atrás dele. Ali já era indício de que a teoria de que eu possivelmente não andaria foi derrubada.

As coisas se seguiram o mais normalmente pos-sível. Porém, aos seis meses, durante uma sessão de fisioterapia, nas mãos da médica que estava cuidan-do dessa parte, tive a primeira das cinco convulsões que teria até a adolescência. Convulsões estas que me renderam os dois medicamentos que mais tomei: Te-gretol e Gardenal. Tá aí duas coisas que gostaria de esquecer pela fama que um dos remédios possui, mas, não podem faltar aqui.

Este início de vida foi tão conturbado, que os pa-rentes e familiares tiveram que apelar aos santos de

Page 25: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

25se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Registros de momentos do meu cotidiano

Page 26: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

26 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

devoção. Minha mãe prometeu na época, a Nossa Se-nhora Aparecida que deixaria meu cabelo crescer, o cortaria, trançaria e o levaria até o santuário nacional da santa. E foi assim que aconteceu. Aos sete anos, o cabelo foi cortado, trançado e levado ao Santuário Nacional de Nossa senhora Aparecida. Porém, não foi esta a única promessa feita para que Deus desse uma mãozinha, por assim dizer, na minha recuperação da cirurgia e para que logicamente nada de pior aconte-cesse. A irmã do meu pai, uma outra tia, Claudelina Cáceres, apelou para os irmãos Cosme & Damião, prometendo-lhes que se eu me salvasse e conseguisse progredir normalmente, faria, todo ano no dia em que comemora a data dos santos, uma entrega de doces assim como manda a tradição e eu entregaria as gulo-seimas em lugares como periferias da cidade, creches e escolas, até meus 10 anos. Porém, mesmo após a promessa cumprida, até hoje ainda entrego doces por aí no dia de São Cosme & Damião.

Após a primeira cirurgia e todas as suas compli-cações, fui pela primeira vez para a casa. Meu irmão, que na época estava com quatro anos de idade, estava ansioso pela chegada.

Até então tudo estava indo bem, até que aos três meses foi notado que não possuía força nas pernas. E por este motivo foi recomendado que eu começasse a ter sessões de fisioterapia e que também fosse acom-panhada por um psicólogo. E foi numa dessas sessões de fisioterapia, com seis meses, que tive a primeira convulsão. A médica Lurdes, cardiologista, diagnosti-cou um sopro no meu coração. Sendo que na mesma época também foi receitado os medicamentos que to-maria até meus 14 anos. Aqueles: Tegretol e Gardenal.

Page 27: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

27se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

O primeiro dia do índio. A primeira festa junina e Feira de Ciências aos 13 anos

Page 28: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

28 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

APÓS A PRIMEIRA CONVULSÃOo houve mais 5. Uma delas, brincando com o ca-

chorro da casa na época juntamente com os vizinhos , foi a mais inusitada de todas. Não pela convulsão, mas pelo lugar. Como havia dito estava brincando com o cachorro da família, e como era bem criança, tinha 4 para 5 anos, e o mesmo animal tinha uma casa feita de tábua, porém por ser um animal de porte grande, a mesma era grande o bastante para uma criança se en-fiar lá. E foi o que fiz. Idéia de jerico, óbvio. Mas sem-pre gostei muito de animal e essa cachorra era meu xodó na época. Pois bem, resolvi brincar lá dentro. Esconder-me na verdade, já que estávamos brincan-do de pique-esconde. Não tinha internet nem nada, as brincadeiras clássicas como esta eram um passatempo e tanto na época.

No meio da brincadeira, tive esta convulsão, den-tro da casa do cachorro. Cômico e trágico, ao mesmo tempo. Porque demorou para que minha mãe desco-brisse aonde estava.

Contudo, apesar das convulsões, já falava , andava. Porém a calcificação óssea prematura ainda inspirava receios quanto ao meu aprendizado e desenvolvimen-to. E aos nove meses passei por mais uma cirurgia nas mãos do neurologista Lacerda Nunes para retirada de parte da estrutura óssea frontal.

Page 29: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

29se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Fase universitária : o inicio na profissão de se contar e ouvir histórias

Page 30: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

3os

out

ros

da e

scol

a

Page 31: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Passaram-se alguns anos e nada de mais preocu-pante apareceu. Com quatro anos fui à escola. Por al-guma insistência minha já que era curiosa e sempre queria saber o que meu irmão, na época já estudando, tanto fazia.

Ir para a escola foi como se um sonho estivesse se realizando. A primeira aula foi incrível Lembro que foi de gramática. Aprender o ABC, aquilo de sem-pre. Mas era para mim um mundo totalmente novo e aquelas crianças todas falando ao mesmo tempo, eu só observava. Queria entender como podia haver tanta gente em uma sala tão pequena. Só que a realidade não tardava a aparecer. Eu teria um tratamento ali. Se algumas brincadeiras feitas no pátio eu não poderia participar, pelos riscos que havia. E assim o isolamen-to foi inevitável. O tempo tratou disso.

Aruã, um garoto de cabelos bem loiros, um típico capetinha era quem mais me atormentava por ser dife-rente. A maldade ‘’inocente’’ dele marcou minhas fu-turas decisões. Mas foi com ele que protagonizei uma cena extremamente bizarra. Minha primeira briga para valer.

Na época era fã de filmes como Karatê Kid e al-guns do ator Jackie Chan. Aprendia com facilidade gestos do que via e imitava-os. Certo dia minha pa-ciência se extinguiu. Tinha 8 anos e já estava exausta daquele garoto sempre me atormentando e ninguém para fazer nada. Resolvi agir por conta. Levei ele até próximo ao quadro negro e dei-lhe uma rasteira como havia visto em um dos filmes. Caimos numa briga onde só lembro de tê-lo deixado ele todo arranhado com a lapiseira que possuía na mão e um dos olhos roxos. Mas, logicamente que ele não sairia por baixo. Não seria chacota da sala. Ainda mais ele que adorava tirar uma onda de todos que não estavam em seus pa-drões. Enfim, o fato é que após eu ter dado uns arra-

31

Page 32: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

32 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

nhões e um belo olho roxo, ele revoltado pegou uma tampa da lixeira que tinha na sala, e quebrou na minha cabeça. A tampa felizmente era de plástico. Não sei dizer se não senti nada por estar tão enfurecida ou se porque realmente não foi nada. Mas, foi aí que a graça de me fazerem de piada caiu por terra. Ninguém fala-va comigo, mas também não falaram mais sobre mim nem faziam brincadeiras. Muito pelo contrário, aquele que um dia fez piada de mim teve que pagar os danos que havia feito. Um dia de glória, diria.

Os amigos, os primeiros, foram aos 11 anos. Thays foi a primeira amiga que tive. Cabelos cacheados, bem presos, ela morava próximo a minha casa. Puxei papo com ela logo no seu primeiro dia, explicando e dizen-do quem cada um era. Dali nasceu uma amizade que até hoje existe. Além dela, havia a Amanda. Morena, bem magrinha. Com esta perdi o contato, mas vinha comigo e com a Thays, além da Beatriz, carioca , sota-que ainda forte de lá, apesar de seus três anos já mo-rando em Campo Grande.

Antes da Thays, já existia a Tasmim, mas essa só se tornou amiga mesmo no meu ultimo ano naque-la escola. Sempre espontânea não me lembro como comecei a conversar com ela, mas minha primeira fi-cada com um garoto foi numa saída com essa amiga. O nome dos garotos, nem lembro, confesso. Afinal, simplesmente saímos, ela avistou os dois passeando, conversou, fez amizade, me apresentou e pronto, fi-camos cada uma com um. E até hoje ela é assim. Se quer, faz e acontece.

Os amigos vieram tarde, mas cada um deles, com exceção da Amanda até hoje mantenho con-tato. A Thays é a única que ainda vejo pessoalmen-te, por morar mais próximo de casa e estudar na mesma universidade. AS PULSÕES

Havia um procedimento que eu tinha que fazer

Page 33: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

33se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

após cada cirurgia. Esse procedimento é chamado pulsão.

As pulsões eram necessárias, pois, criava um liqui-do parecido com água na região onde era feita a cirur-gia e este liquido tinha que ser retirado. A retirada de tal liquido era feito com seringa. Uma seringa de 20 ml. A pulsão feita após a primeira cirurgia foi a que mais rendeu, pois, foi a que mais liquido foi retirado. O procedimento era feito de tal forma:

Com uma seringa, o neurologista que na época me tratava, drenava esse liquido e o retirava pela lateral da fronte. Era um processo dolorido. Criei traumas de agulha graças a essas pulsões. Até hoje um simples exame de sangue me arrepia. Já levei um numero de agulhadas que nem mesmo paciente de acumpultura deve ter levado. Mas, esse era um procedimento ne-cessário. Fazia parte do tratamento que tinha que ter após cada cirurgia.

Então não posso reclamar. Porém, seringas e agu-lhas quanto mais longe de mim, melhor.

DA MINHA PROFESSORA FAVORITAMe lembro bem do nome, da sua fisionomia, do

seu jeito. Uma professora de História que foi capaz de me dar a maior lição que trago nessa vida. O afeto e seu valor. Quando deixou a escola chorei como se estivesse perdendo alguém da família. E ela era bem assim para mim. Uma segunda mãe naquele lugar. Até a chegada dela a escola era só a escola, mas quando apareceu virou minha segunda casa e História então, minha matéria favorita.

Era doce, calma com a molecada e eu a admirava. Cleide, um nome que nunca vou esquecer. Aprendi o valor do afeto com ela e suas aulas.

Ao final de uma das suas aulas, fiquei na sala dese-nhando. Ela chegou e me perguntou sobre a cicatriz. Perguntou se havia tido algum acidente ou algo assim.

Page 34: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

34 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Bom respondi que não. Estranhei o interesse porque ninguém até então não havia vindo me perguntar so-bre isso. Contei a história e de admiradora virei ad-mirada. E ali naquele dia encontrei a professora que seria a minha favorita até hoje. Uma pessoa que não esqueço que me tratou como igual. Mas tudo que é bom, dura pouco. Um dia ela me chamou e disse que estava saindo da escola. Chorei muito e pedia pra que ficasse, mas ela não podia. A professora que a substi-tuiu não era doce como ela, mas também não era tão ruim. Mesmo assim, até hoje, não conheci ninguém como ela. Como Cleide e suas aulas cuja a tranqüili-dade pairava como uma ave em um fio prestes a en-trar em colapso. Cuja aula eu prestava mais atenção e as provas da matéria que lecionava tirava as melhores notas. E por fim, Cleide, minha professora favorita de toda uma vida.

Page 35: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

35se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Page 36: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

4a

desc

ober

ta d

a m

úsic

a e

sua

influ

ênci

a

Page 37: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Como descobri minha sensibilidade musical eu sei bem dizer. Aos nove anos se iniciou um coral na es-cola. O nome da regente era Roseleide Brandão e a primeira música que cantei nele era o tema da família Adams. Na verdade não era bem um coral, mas algo como uma musicalização infantil. Mas, essa musicali-zação foi importante para que eu descobrisse esse ta-lento para música. Apesar de aos quatro anos ter feito balé. Mas no caso do balé não durou muito.

Esse coral me ajudou a descobrir o talento para música que com tempo se transformou em uma forte paixão.

No mesmo ano, numa dessas festas de escola, tipo festa da primavera, me apresentei. Cantei sozinha, só eu e Deus, por assim dizer, a música Anjo, da Kelly Key. Sem desafinar uma só vez e sem ter feito uma única aula de canto percebi para o que tinha nascido. Cantar, cantar e cantar, sem ter a vergonha de ser feliz. Minha maior paixão e sonho hoje: o canto.

Passado os anos me apresentei novamente, à cape-la ( só a voz), agora com 18 anos e no ensino médio, em um festival que ocorreu na escola estadual Arlindo de Andrade Gomes, a música casinha de sapê. Fiquei em segundo lugar nesse festival. Foi uma das coisas mais lindas que me aconteceram. Quem diria que eu, após tantas cirurgias e confusões, estaria ali, ganhan-do, mesmo que em segundo lugar um campeonato musical? Ninguém diria. A gata borralheira havia des-coberto sua melhor qualidade. Desde então, a música virou aquela influência máxima. E o que me move em cada decisão absurda ( ou não) que tomo até hoje.

Três anos após resolvi partir para o lado teórico da coisa. Fui me meter a besta de aprender a tocar violino. E consegui. Nessas aulas aprendi a ler parti-tura. Meu lado clássico, já gritante, explodiu com mais esse aprendizado. Me apaixonei ainda mais pelo clás-sico erudito. E o professor , apesar de ser de violino,

37

Page 38: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

38 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

por muito pouco não me colocou para ser coralista do coral do Estado. Só não fui por que na época uma virose maldita me tirou de cena. Não era para ser. Mas teria sido uma honra e tanto ser coralista do grupo que representa Mato Grosso do Sul. E nessa época também descobri que minha extensão vocal não era qualquer uma. Mas era uma extensão vocal das boas. Algo que segundo meu professor de violino era difícil de se ver. E oito anos depois, agora já na universida-de, regente do coral do mesmo lugar, confirmava. Eu poderia atuar nas vozes mais agudas até as mais graves dos timbres femininos. Definitivamente após todos os problemas, hoje ninguém imagina, nem mesmo o médico é capaz de acreditar que mesmo com a mi-crocefalia no meu calcanhar, seria capaz de tanto. De chegar até aqui. De fazer o que faço, de cantar o que canto, tocar o que escolhi tocar e acima de tudo de es-tar prestes a me formar, como estou. E minha história só é o começo de que o céu é o limite para quem não deixa de acreditar.

Page 39: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

39se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Sem a música a vida seria um erro. A entrada do violino na minha historia

Page 40: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

5íd

olos

e a

bus

ca p

or u

m lu

gar

que

me

enca

ixas

se

Page 41: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Há quem implique com esse meu amor excessivo por artistas. Um comunicador e referência profissio-nal, um ator com uma pegada de músico e uma can-tora extremamente louca e fascinante. Assim eu os caracterizo. Pessoas à margem da sociedade, não por serem humildes, mas por pensarem diferente. Por se-rem diferentes. Os três viraram ídolos por terem algo a ver comigo. Um lance diríamos de identificação. Sempre criticados mas que nunca deixaram de ser o que são e nem pensar como pensam.

O primeiro a aparecer e aquele com quem tive a oportunidade de estar frente à frente foi Marcelo Tas. Esse cidadão apareceu quando ainda tinha três anos. Na figura de um professor que todo mundo tinha medo e que eu via algo especial. O professor Tibur-cio do programa de Tv, Ra-Tim-Bum. Me identifiquei com excentridade daquele professor que influenciou em parte o meu desejo de ir à escola. Foi o primeiro que me apareceu diferente e que por ser justamente assim, eu gostei.

Aos sete anos, já vivendo o preconceito na pele por não ser igual a ninguém e pela cicatriz tão aparente, quem apareceu foi Johnny Depp no papel de Edward Mãos de tesoura que ironicamente, tinha tantas cica-trizes quanto eu.

Havia acabado de chegar da escola, chateada ain-da com as brincadeiras maldosas que havia escutado, liguei a TV e no passa daqui e dali, numa sessão da tarde dessas, dei de cara com aquele ser pálido e cheio de cicatrizes. Triste e sozinho exatamente como eu. E inocente igual a uma criança. Na época não sabia quem era a criatura, foi lá com 12 , 13 anos que des-cobri quem era que lhe dava vida. E ao ler percebi que não só o personagem era diferente e tinha a ver comigo, como o ator também. Suas idéias e a supera-ção a qual havia passado para chegar aonde chegou foi algo que me identifiquei de cara. Daí o resultado já era

41

Page 42: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

42 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

óbvio. Virou um ídolo que ainda pretendo conhecer. A terceira e ultima pessoa a virar minha referência

na vida foi Alecia Beth Moore e que é mais conhecida por seu nome artístico, Pink. Essa estranha e aparen-temente incrível no que se diz respeito o vocal, entrou na minha vida tão por acaso quanto os outros. Mas o estilo diferente, o apreço por algo de polêmica e sobretudo o fervor com que canta foram definitivos para que eu admirasse e que virasse como alguns cha-mam, de minha Diva. Ela consegue fazer com que a música em mim se torne tão forte quanto qualquer outra coisa e que o sonho do palco continue tão aceso quanto a chama de uma vela. Os três definiram meu lugar no mundo e me ajudaram a escolher meus valo-res, defini-los e defender as coisas que acredito, custe o que custar.

Page 43: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

43se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Johnny Depp, Marcelo Tas e Pink: ídolos de toda uma vida

Page 44: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

6a

reli

gios

idad

e e

o p

apel

soc

ial d

a ig

reja

Page 45: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Toda a minha família sempre foi muito religiosa. Minhas avós são daquelas que acendem velas para santo, fazem novenas, rezam o terço e pagam promes-sas. A fé sempre foi algo presente na minha vida. Mas, esta mesma fé me ajudou muito em momentos onde sentia medo de dar tudo errado nessas cirurgias que tinha que fazer.

Para começar, a promessa feita a Nossa Senhora Aparecida assim que vim ao mundo, depois a promes-sa feita a São Cosme e Damião e por fim a minha dedicação a igreja.

A fé me ajudou em vários aspectos com relação à Microcefalia. Acreditar que iria correr tudo bem nas cirurgias ou que a recuperação seria completa sem qualquer surpresa, era uma delas. Estou aqui hoje contando essa história pela competência da medicina e também porque acredito que lá em cima deve haver alguém que gosta muito de mim. Afinal sobreviver a duas paradas cardíacas com poucos dias de nascido não é qualquer um que pode dizer.

Mas a fé me levou, anos depois, à igreja. Lá des-cobri outro mundo. Um mundo onde eu poderia me despir das máscaras que usava, pois ali, não haveria julgamentos, não haveria criticas ou qualquer resquí-cio de preconceito. Descobri no mesmo lugar amigos que estariam comigo durante toda a semana mesmo que nós nos víssemos apenas no domingo.

Eu me divertia na igreja e ao mesmo tempo me fortalecia. Ali, comecei a me dedicar, encontrei no-vos amores, novas paixões, achei uma nova vida, uma nova família.

Fiquei por quatro anos em uma comunidade bem perto de casa chamada São Domingos Sávio. Lá me batizei, fiz a minha primeira comunhão e crismei. Hoje frequento outra comunidade, a Maria Mãe da Igreja.

Nessa comunidade me encontrei. Fui muito bem

45

Page 46: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

46 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

recebida pelas pessoas dali. Ganhei um amigo que hoje considero um irmão caçula. Amigo este que me deu o prazer de realizar o sonho antigo de cantar com um guitarrista tocando ao lado. Bem, ele é guitarrista e um dos meus melhores amigos. Afinal, foi ele que me trouxe de volta uma segurança que há muito já tinha perdido devido ao preconceito que enfrentei.

Mas, a igreja não me trouxe apenas amizades mara-vilhosas, como também me deu a chance de me sentir parte de um grupo. Me deu a sensação que fazia parte de algo e que não estava mais sozinha. E sobretudo, não importa o quanto o mundo me julgasse por apa-rência ou coisas assim, ali naquele lugar, durante duas horas, eu fazia parte de algo. Eu tinha pessoas que poderia contar, que me abraçariam sem que eu preci-sasse pedir, que me conheceriam, e mais do que isso, me tratariam como igual.

Na igreja e na fé, encontrei o que buscava. Um lu-gar onde eu poderia ser eu mesma. Sem precisar fingir, sem me esforçar para me encaixar. Encontrei final-mente um grupo onde não importa o que fizessem, eu poderia participar.

Page 47: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

47se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Page 48: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

7vi

sita

à p

sicó

loga

: de

bate

ndo

amor

es e

mar

cas

Page 49: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Quando passamos por acontecimentos traumáti-cos é normal que nossa cabeça pire no meio do ca-minho e que tenhamos que recorrer a ajuda de um profissional. Porém, passei por vários médicos e nun-ca fui em um profissional de psicologia para que me ajudasse a entender os acontecimentos relacionados à Microcefalia e nem mesmo para compreender algu-mas características emocionais que possuo hoje e que de alguma forma estão ligadas à minha experiência na escola e a síndrome e suas conseqüências.

Em meio ao desenvolvimento deste trabalho e por orientação da professora fui à uma psicóloga falar des-ses aspectos.

Foi na clínica escola da universidade que a conversa ocorreu. Uma sala, só eu e a psicóloga. Alguns alunos passavam uma hora ou outra, mas nada interrompia.

O primeiro ponto que abordei com ela foi justa-mente meus relacionamentos. Os que nunca senti falta como namoros e tudo mais e as decepções amorosas que culminaram nesse meu desinteresse para namoros e até mesmo na descrença de relacionamentos afeti-vos duradores.

Contei a ela todas as histórias. O nome da psicólo-ga Tânia. Uma senhora simpática, paciente e que es-cutou cada palavra que eu dizia como se fosse minha melhor amiga.

Dos amores mais antigos até os mais atuais e todos os motivos pelos quais nunca acreditei nessa idéia de alma gêmea, porque não me vejo tendo uma. Nem agora e nem muito menos futuramente.

Nas palavras dela tudo isso é resultado justamente da insegurança que adquiri nos anos de escola, com todas as coisas que ouvia e pelas vezes que tive que ficar olhando as outras crianças brincarem e ficar de lado. Isso tudo influenciou nos relacionamentos futu-ros. Seja de amizade, sejam eles os amorosos. E por haver essa insegurança da minha parte ocorre o apego.

49

Page 50: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

50 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Colocando assim, tais pessoas em um lugar acima do que deveriam estar.

Outro ponto que foi abordado durante uma con-versa que durou uma hora foi com relação aos ídolos. Minha paixão por eles.

Ela também me disse que com relação a isso há por trás essa forma de preencher algo que aparentemente não me faz falta. Não agora. E que cada um deles tem algo que eu gosto ou que me identifique, como a mú-sica, por exemplo.

E por último e talvez tenha sido o assunto mais delicado para mim, foi com relação a auto estima e a me ver no outro que também é um fator que interfere em relação aos relacionamentos. Isto de não achar que eu seja boa o bastante para alguém, não por pretensão, mas por me colocar numa posição inferior. A maior parte da conversa foi essa.

Ela me disse que eu devia buscar alguém que não se importasse com aparência. Mas em um mundo onde a estética, o visual é o que vale, como buscar alguém assim? É mais racional assumir a própria sina do que sonhar com um caminho que não tem pretensão de existir, rebati.

Ela replicou com o seguinte argumento: quando conhecerem a menina por trás disso tudo, as coisas irão acontecer.

Page 51: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

51se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Page 52: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

8ou

tros

lado

s de

um

a m

esm

a m

oeda

Page 53: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Fátima Nelmara , 42 anos, casada, mora atualmen-te em Manaus, no Amazonas. Mãe de Sarah, uma por-tadora da microcefalia. Atualmente, Sarah está com 23 anos.

Ainda na gestação de Sarah, Fátima tentou aborto devido às agressões domésticas que sofria. O marido alcoólatra dificultava as coisas. A história de Sarah e das mudanças que houve em sua vida com sua chega-da foi contada por ela através do WhatsApp.

Perguntei a Fátima se sua filha tinha outra síndrome associada, como Paralisia Cerebral, por exemplo, e em resposta ela disse que não sabia dizer se Sarah possuía

Sarah e Fátima: uma luta diária

no Amazonas

53

Page 54: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

54 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

outras síndromes já que só foi feito um Raio X. Porém, aos quatro anos, Sarah apresentou uma característica co-mum entre os portadores: as convulsões que cessaram após algum tempo sem qualquer uso de medicamento.

Sarah, segundo a mãe, não anda, não fala, possui pa-ralisia do lado esquerdo e enxerga com dificuldade. Em sua ultima consulta definiu apenas o claro do escuro, mas sua audição é intacta. Não há problema nenhum.

Fátima descobriu a Microcefalia da filha aos quatro anos. Quando mudou-se para Manaus.

No início sua obstetra, que fez o parto cesariano de Sarah, deu indícios de que a menina era deficiente vi-sual. Fátima foi aconselhada pelo médico a ir para casa e ter um aborto espontâneo ou ficar internada até o bebe ganhar peso e operar. Optou pela segunda alter-nativa. Fátima fez uso dos medicamentos Dicorantil e Citotec. Este último é usado para provocar o aborto.

Há 20 anos morando em Manaus, natural de San-tarém, no Pará, a mãe contou que na cidade em que morava não havia estrutura. As dificuldades então, fo-ram diversas.

A menina chorava muito, tinha várias convulsões, passava noites em claro e com o pai a levava na cidade de bicicleta. Isso tudo até se mudarem para a capital Amazonense.

Com Sarah nos seus quatro anos e já morando em Manaus, a mãe a levou a um neurologista, que pediu um raio X e a informou que a filha possuía Micro-cefalia. Além de ter dito também que o cérebro da menina havia parado de se desenvolver juntamente com a caixa craniana já inteiramente fechada. Após esta informação elas ficaram freqüentando institui-ções e fazendo terapias. Já que a fisioterapia e as cirur-gias necessárias para o alongamento dos tendões que possibilitariam Sarah a andar tinham um custo alto na época em que deveriam ter sido feitas.

Fátima diz que conviver com Sarah é tranqüilo. E

Page 55: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

55se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

que fez um curso de enfermagem para lidar com as infecções que a fístula causava. Sua vida passou ser única e exclusivamente dedicada à menina de vinte e três anos e trinta e seis quilos que só dorme com um rádio ligado perto. E ai de quem desligá-lo. O choro é certo. E ainda assim ela acorda várias vezes durante à noite, enquanto que Fátima para cuidar dela acorda às cinco horas da manhã.

Aos 21 anos, Fátima teve que lidar com o precon-ceito em relação à sua filha. Ao se mudar para Manaus a aceitação se tornou mais fácil. Hoje se orgulha da jo-vem e como toda mãe coruja, até compra briga quan-do há algum tipo de olhar diferente ou comentário de cunho preconceituoso com relação à Sarah.

A família não tem convênio de saúde, vive do be-nefício pago e às vezes que já tentou usar do SUS nun-ca conseguiu, mesmo com a lei de prioridade.

Devido a situação da filha, Fátima contou ainda que sempre passa datas especiais como Natal e Ano Novo sozinha com ela e que não são convidadas para aniversários. Na opinião dela, por parte das pessoas, ainda falta amor.

Com o marido alcoólatra, Fátima cuida da menina sozinha e no dia em que me contou sua história estava pensando em como a levaria para o médico já que o transporte público é inviável e não tem condições de pagar um táxi para levá-las.

Fátima não sofreu ao saber da situação da filha. Deram à Sarah sete anos de vida. Hoje ela está com 23 anos e freqüenta a fisioterapia duas vezes por semana. Enquanto que Fátima, com 42 anos lida com a filha com mãos de ferro e uma dedicação ímpar.

Page 56: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

56 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

As meninas de Goiás

Page 57: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

57se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Me espantei quando soube a idade da mãe. Mara Rodrigues, aos 26 anos, tem duas filhas com Micro-cefalia. Izabel de 3 anos e Joana de 5 anos, são duas meninas de uma esperteza comum a qualquer criança vista como normal.

Joana, é a faladeira disse Mara, já sabe o alfabeto e até mesmo dizer o nome de cores em inglês e portu-guês.

Mara soube da Microcefalia da filha assim que ela nasceu. Mas a confirmação mesmo só veio após os exames feitos com um mês, confirmando também que sua procedência era genética.

Na hora em que soube que a primeira filha tinha microcefalia , Mara contou que sentiu medo, mas de-pois o amor de mãe falou mais alto. Apesar da revolta que sentiu com o preconceito e por estar acontecendo com ela.

Ambas não possuem nenhuma sequela, diz a mãe, apesar de o crânio ter um perímetro menor do que o normal e o eletro possuir alterações.

Na família, o preconceito existia. Mara se afastou dos familiares por isso. Palavras como Praga, ET e Aberração eram usadas pelos parentes para se referir a sua filha. Mara hoje reside com as crianças em Sena-dor Canedo, Goiás.

As dificuldades com Joana e Izabel são pelo nervo-sismo de ambas e por Izabel não conseguir se comu-nicar com pessoas diferentes. E justamente por essas características elas não levam uma vida social normal, sendo que a mãe já perdeu emprego e por isso chegou a faltar dinheiro na casa.

As meninas tem dois irmãos. A convivência com eles é tranqüila. Se amam muito, contou Mara e elas chamam eles de ‘’meus irmãozinhos’’.

Mara depende do sistema público de saúde. A cida-de onde morava não tinha neuropediatra, apenas neu-rologista. Foram encaminhadas para a capital do Es-

Page 58: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

58 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

tado, mas não tem previsão para quando. Elas tomam Carbamapezina para controlar as crises de convulsão.

Isabel e Joana possuem a Microcefalia Vera. Sem danos cerebrais, apenas um fechamento prematuro das fissuras cranianas, o que explica o tamanho menor do que o normal da caixa craniana das crianças.

um sorriso por trás das dificuldades

Page 59: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

59se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Thays Cristina é das que entrevistei a mãe mais re-cente. Thalles Ruan recém completou um ano de idade.

Thales foi diagnosticado com a Microcefalia ao ter-ceiro mês de nascido. A mãe ao descobrir ficou sem saber o que fazer, além da tristeza que sentiu. Thays nunca havia ouvido falar da Microcefalia, mesmo tendo visto crianças assim. Porém, segundo ela, não havia pa-rado para prestar atenção até então.

Quem orientou Thays a procurar um neurologis-ta para ter um diagnóstico foi a fonoaudióloga que a acompanhava. Eles não possuem convênio médico.

Por ser ainda um bebê, Thalles não dá tanto traba-lho. O dia a dia é tranqüilo. E a maior dificuldade se deve apenas pelo fato dele ainda não conseguir perma-necer sentado e ser muito irritado. Uma panelinha de pressão de 5 quilos e 60 centímetros.

O pequeno de São Luis

Page 60: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

60 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

O preconceito na família vem do lado do pai. Thays, disse que há uma indiferença por parte da avó paterna. Fora isso o restante da família é só amor com a criança que por onde passa contagia com um sorriso sempre meigo no rosto.

Thalles não tem nenhuma síndrome associada e nem mesmo toma medicamento ou sofreu convul-sões, apenas alguns espasmos e dificuldades motoras.

Nada como a familia para dar colo na hora necessária

Page 61: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

61se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Lucas Tavares Somma, 26 anos, filho de Tais Moura Tavares, possui microcefalia e teve uma Síndrome cha-mada Antifosfiolipidio. Esta síndrome é uma doença autoimune. A neurologista chegou até escrever sobre o caso de Lucas, pois, achou que havia alguma ligação com a Microcefalia. A síndrome causa coágulos e entre 2000 e 2002 Lucas foi internado devido a uma hemiplegia, que consiste em uma paralisia de metade do corpo (direita ou esquerda). Até 2008 fez acompanhamento com uma en-docrinologista.

Lucas terminou o ensino médio em 2010. Atualmente se prepara para fazer vestibular para tecnólogo em Luteria

Um apaixonado por música de 26 anos

Page 62: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

62 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

na Universidade Federal do Paraná (UFPR). A universida-de tem uma vaga em cada curso para portadores de defi-ciência. Mas apesar de não parecer, Lucas , contou Tais, possui dificuldades cognitivas e motora. Mas, a legislação assegura currículo adaptado na educação básica e o Con-selho nacional de Educação garante também para o ensi-no superior.

Lucas sabe ler e escrever, porém escreve com alguma dificuldade. Não é tão bom com raciocínio matematico, mas isso é uma coisa que ele não é o único, e possui uma memória, que como dizem por aí, é de elefante.

Moradora de Curitiba, Paraná, Taís só descobriu a mi-crocefalia do filho após a realização de uma pá de exames e quando a criança já tinha quase um ano. Porém, a duvida começou quando aos seis meses Lucas não sentava.

A reação dela ao saber da situação do filho, segundo suas próprias palavras, era como se o mundo tivesse desa-bado. Ela desceu do consultório da médica que se locali-zava em um prédio, ficou com a criança no colo em uma praça que ficava em baixo , enquanto o pai foi buscar o carro e abraçava o bebe e chorava, sentindo-se completa-mente perdida e sozinha, contou.

A neurologista de Lucas encaminhou o garoto para fa-zer fisioterapia, sessões com a fonoaudiólogo e sessões de psicologia na clínica de uma Universidade da região. Mas por ser um campo de estágio, mudavam muito as pessoas responsáveis pelo tratamento de Lucas, então a mãe ao perceber que ele estava regredindo, resolveu tirá-lo.

A família nunca criticou, mas lidar com a solidão não foi algo fácil. A ausência de serviços públicos de qualidade também dificultou e foi uma batalha para conseguir pagar os atendimentos.

Eu sempre achava que não estava fazendo o suficiente. Queria que aparecesse alguém que me desse algum prog-nóstico, mas eu só tinha um diagnóstico, a Microcefalia, disse Tais.

Page 63: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

63se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Mas o lado musical de Lucas foi incentivado mesmo pelo cunhado de Tais, que também músico, estimulou esse gosto que o menino já possuía antes mesmo de falar, o levando para concertos, o qual quieto, ouvia.

Além do gosto pela música, o menino é alegre , feliz, muito sociável, define a mãe. E ela ainda contou que ele está na fase de querer fazer tudo sozinho.

Mas com relação a música, Tais me contou que Lu-cas tem aula em uma escola com um professor que faz um programa especial para ele. Nessa escola ele aprende a história, elementos da música, notação musical e a tocar alguns instrumentos de percussão e teclado. Porém, apesar de aprender muita coisa ele aprende mais devagar que os outros alunos.

Ele também cursou duas disciplinas na faculdade com um professor de música que topou incluí-lo na turma mesmo sem matricula, declarou Tais.

Conforme Taís vinha me contando da ligação e habi-lidades do filho com a música, fui percebendo similiarida-des entre nós. Mas, teve algo que me chamou a atenção. Quando ela me contou que Lucas possuia uma memória auditiva muito desenvolvida e que ele é capaz de conhecer peças só pelos primeiros acordes e que discrimina o som de cada instrumento em uma música, cogitei a hipótese dele ser ouvido absoluto. Em outras palavras conseguir tirar qualquer tipo de música sem o auxilio de partituras, tablaturas e etc, apenas de ouvido. E Taís me disse que os professores dele também já chegaram a levantar esta hipótese.

O caçula de dois irmãos, Lucas foi o portador de Mi-crocefalia mais velho que achei aqui. Com 26 anos, prestes a se iniciar na universidade, o rapaz, apesar de suas limita-ções, mostra a partir do seu amor pela música que pode ser sim capaz de grandes feitos.

Page 64: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

64 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Marta Sandei, 34 anos, é a mãe de Murilo, oito anos, portador da síndrome o qual este livro tem a finalidade de abordar.

O diagnóstico de Murilo foi aos seis meses. No fi-nal da gravidez, conta Marta, o médico que a atendia percebeu que a criança havia parado de se desenvol-ver. Devido a isso, decidiu trazer Murilo ao mundo com 36 semanas de gestação.

O menino não fez nenhuma cirurgia craniana, po-rém, ao cinco anos fez uma plástica nos olhos, já que

Uma história de oito anos de vida

Page 65: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

65se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

havia nascido com Ptose e nos testículos que estavam no abdomem.

A reação de Marta ao saber da Microcefalia do filho foi de medo de perdê-lo. Ficou assustada e só pensava porque tinha que estar passando por isso, declarou.

Mãe de duas meninas, além de Murilo, Marta con-tou ainda que as filhas, na época com 16 anos, não gostavam quando chamavam o irmão de especial. E que até hoje não curtem o rótulo dado a ele por al-guns. Mas na família, ele não só é adorado pelas irmãs, como pela familia toda. Diferente dos outros casos contados até aqui, o único preconceito que Marta diz ter visto foi nas ruas e na escola quando ele começo a estudar.

Hoje Murilo faz praticamente tudo sozinho, exceto tomar banho que ela ainda ajuda, contou Marta.

Com relação a escola, perguntei a ela como é o ren-dimento dele e ela me disse que ele é hiperativo, en-tão devido a isso possui dificuldades no aprendizado. Além do distúrbio no comportamento, que antes dava até muito trabalho, mas que agora com o auxilio dos medicamentos está acompanhando bem.

Apesar do preconceito de algumas crianças, Muri-lo não pode reclamar de solidão. Segundo a mãe, ele possui muitos amigos.

Murilo tem convênio desde bebê, mas faz acom-panhamento também em Botucatu, na UNESP. Toma Ritalina, 10mg, Pamelor, 10 mg e Captoropril 12,5 mg.

Para o acompanhamento na UNESP eles tem au-xílio da prefeitura com a condução, já que a família não possui veículo particular. Murilo faz fisioterapia, fono e uma espécie de aula particular, duas vezes por semana. Fazia equoterapia, mas já obteve alta.

Marta paga no convênio 120 reais mais uma taxa de 20 reais por consulta. E os medicamentos Ritalina e Captopril o governo fornece gratuitamente, porém o Pamelor é por conta de Marta.

Page 66: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

66 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Apaixonado por Vídeo Game, computador, adora brincar e tem que ter sempre um amiguinho por per-to, Murilo não se diferença nesses aspectos de outras crianças. Exceto pelo pavio curto e de não gostar de jogar futebol com outras crianças, mas neste último por receio de cair ou que o derrubem, já que seu equi-líbrio é sua maior dificuldade.

Timidez não é característica desse menino. Adora fazer amizades, conversa com quem quer que seja e não se esquece da pessoa tão fácil. Muito alegre, defi-ne o filho, Marta.

Murilo foi submetido a um exame de pesquisa de anomalias cromossômicas e descobriu-se microdele-ções para cinco síndromes. Mas a geniticista explicou que ele não possui nenhuma delas.

Caçula, Murilo é irmão de duas gêmeas que hoje es-tão com 24 anos e está prestes a completar nove anos. A gravidez de Marta ocorreu sem qualquer complica-ção, o que aponta que a Microcefalia de Murilo pode vir a ser genética. Ou seja, as fissuras cranianas fecharam-se ainda durante a gestação, prematuramente.

Murilo mostrando o quanto a Medicina também é capaz de errar quando o assunto é romper barreiras e vencer desafios

Page 67: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

67se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Page 68: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

co

nc

lus

ão

Page 69: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

Após toda a pesquisa feita para que esse trabalho pudesse ser concluído percebi que além do meu caso ser raro, descobri em alguns casos que entrevistei, que mesmo com sequelas causadas pela Microcefalia, é possível que o indivíduo tenha uma vida relativamen-te normal.

O caso que mais me chamou a atenção, justamente por ser em partes parecido com o meu, foi o de Lu-cas Tavares, de Curitiba. Prestes a fazer vestibular, já finalizou o ensino médio, graças a uma vaga destinada a pessoas especiais. O rapaz é influenciado e apaixona-do por música. E essa paixão o ajuda, pelo que perce-bi, a enfrentar as barreiras que surgem pelo caminho. Além da dedicação familiar, comum nos cinco casos que conheci.

Porém, algo ficou evidente. A Microcefalia para mim não se tornou um problema maior somente por-que tive a sorte de ter um médico que conhecia bem a síndrome. E agiu da forma mais rápida e precisa pos-sível.

O papel do neurocirurgião ou neurologista nes-te caso é fundamental. Cabe a ele informar a família dos desafios que o individuo portador da Microcefalia pode vir a ter. Meu caso foi uma exceção, mas não há que se negar que existem casos de pessoas que duran-te a formação no ventre materno têm danos no cé-rebro devido a esse fechamento prematuro do crânio.

A Microcefalia não tem cura, porém, tem trata-mento. Os mais diversos tratamentos de acordo com as necessidades de cada portador. Alguns, ainda fazem fisioterapia, outros acompanhamento psicológico e até mesmo fonoaudiologia, mas cada um deles tem o esforço e o apoio da família para isso. E a base fami-liar é mais importante que qualquer acompanhamento médico.

69

Page 70: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

70 se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação

Contudo, a minha conclusão final depois de todo o trabalho para que este livro conseguisse sair do forno, é que não importa a barreira que tenhamos que que-brar, somos capazes. Uma dose de vontade e tudo é possível. Até mesmo de surpreender aqueles que um dia disseram que não seriamos capazes de fazer qual-quer coisa por sermos diferentes dos demais.

Page 71: Selfie: em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação

71se l f i e : em meu autorretrato , a m icroce fa l ia é d i f erença e mot i vação