“Sem ilustração”: a incapacidade das populações rurais na profilaxia rural do Paraná...

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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123. “Sem ilustração”: a incapacidade das populações rurais na profilaxia rural do Paraná (1916-1921) Beatriz Anselmo Olinto * Resumo: No presente trabalho, a análise da atuação da Comissão de Profilaxia Rural no Paraná (1916-1919), é o ponto de partida para a reflexão sobre diferentes processos de deterioração identitárias das populações rurais daquele estado no período de 1916 a 1921. Em meio a projetos sanitários, colonizações, resistências, miséria, falta de recursos e parcerias, além da eclosão da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comissão elaborou um extenso relatório sobre suas atividades. Com base nesses dados e dialogando com outros documentos do período, busca-se perceber como foram articuladas e constantemente apropriadas concepções a respeito das populações do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto civilizatória quanto de gestão autônoma de suas vidas. Também são problematizadas quais expectativas de futuro, classificações de grupo e intervenções, estatais ou não, foram legitimadas por esses discursos. Palavras-chave: Historia rural; Identificações; Doenças. Abstract: In this study the analysis of the actions of the Commission of Rural Prophylaxis in Paraná (1916-1919), is the starting point for thinking about different processes of deterioration of the rural identity in this state in the period 1916 to 1921. In the midst of health projects, colonization, resistance, poverty, lack of resources, partnerships and the outbreak of the Spanish Flu pandemic in 1918, the Comission prepared an extensive report on their activities. Based on these data and dialogue with other documents of the period, we seek to understand how they were constantly articulated and appropriate conceptions about the population in horizons of disability for the civilization and autonomous management of their lives. Which are also problematized the future expectations, group interventions, for the state or not, were legitimized by these discourses. Keywords: Rural history; Identity; Diseases. INTRODUÇÃO Toda a gente é mais ou menos infensa a submeter-se a um tratamento médico sério, sobretudo quando a doença não o fez sofrer muito, e o povo, a classe baixa, sobretudo o sertanejo sem educação e sem ilustração, é ainda mais difícil de se deixar convencer da necessidade de certas medidas terapêuticas e higiênicas. 1 No presente trabalho, a análise da atuação da Comissão de Profilaxia Rural no Paraná (1916-1919), chefiada pelo médico Heráclides de Souza Araújo e autor da citação acima, é o ponto de partida para a reflexão sobre diferentes processos de deterioração identitária das populações rurais daquele Estado no período de 1916 a 1921. Em meio a * Professora associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste e professora do programa de pós-graduação em História na mesma instituição. 1 SOUZA ARAUJO, Heráclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paraná: Esboço de Geografia médica. Curitiba: [s.n.], 1919, p. 130. http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2012v4n8p102

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Autora: Beatriz Anselmo OlintoRevista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.“Sem ilustração”: a incapacidade das populações rurais na profilaxia rural do Paraná (1916-1921)Beatriz Anselmo Olinto Beatrizhttps://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/viewFile/1984-9222.2012v4n8p102/24537

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  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    Sem ilustrao: a incapacidade das populaes rurais na profilaxia rural do Paran (1916-1921)

    Beatriz Anselmo Olinto*

    Resumo: No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de Profilaxia Rural no Paran (1916-1919),

    o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes processos de deteriorao identitrias das populaes

    rurais daquele estado no perodo de 1916 a 1921. Em meio a projetos sanitrios, colonizaes, resistncias,

    misria, falta de recursos e parcerias, alm da ecloso da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso

    elaborou um extenso relatrio sobre suas atividades. Com base nesses dados e dialogando com outros

    documentos do perodo, busca-se perceber como foram articuladas e constantemente apropriadas concepes

    a respeito das populaes do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto civilizatria quanto de gesto

    autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais expectativas de futuro, classificaes de grupo e

    intervenes, estatais ou no, foram legitimadas por esses discursos.

    Palavras-chave: Historia rural; Identificaes; Doenas.

    Abstract: In this study the analysis of the actions of the Commission of Rural Prophylaxis in Paran (1916-1919),

    is the starting point for thinking about different processes of deterioration of the rural identity in this state in

    the period 1916 to 1921. In the midst of health projects, colonization, resistance, poverty, lack of resources,

    partnerships and the outbreak of the Spanish Flu pandemic in 1918, the Comission prepared an extensive

    report on their activities. Based on these data and dialogue with other documents of the period, we seek to

    understand how they were constantly articulated and appropriate conceptions about the population in

    horizons of disability for the civilization and autonomous management of their lives. Which are also

    problematized the future expectations, group interventions, for the state or not, were legitimized by these

    discourses.

    Keywords: Rural history; Identity; Diseases.

    INTRODUO

    Toda a gente mais ou menos infensa a submeter-se a um tratamento mdico srio, sobretudo quando a doena no o fez sofrer muito, e o povo, a classe baixa, sobretudo o sertanejo sem educao e sem ilustrao, ainda mais difcil de se deixar convencer da necessidade de certas medidas teraputicas e higinicas.

    1

    No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de Profilaxia Rural no

    Paran (1916-1919), chefiada pelo mdico Herclides de Souza Arajo e autor da citao

    acima, o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes processos de deteriorao

    identitria das populaes rurais daquele Estado no perodo de 1916 a 1921. Em meio a

    * Professora associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste e professora do programa de ps-graduao em Histria na mesma instituio. 1 SOUZA ARAUJO, Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paran: Esboo de Geografia mdica.

    Curitiba: [s.n.], 1919, p. 130.

    http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2012v4n8p102

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    projetos sanitrios, colonizaes, resistncias, misria, falta de recursos e parcerias, alm da

    ecloso da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso elaborou um extenso

    relatrio sobre suas atividades, bem como construiu quadros de Geografia Mdica sobre as

    doenas, o territrio e as populaes atendidas. Com base nesses dados e dialogando com

    outros relatrios da viagem e mensagens do governador no perodo, busca-se perceber

    como foram articuladas e constantemente apropriadas concepes a respeito das

    populaes do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto civilizatria quanto de gesto

    autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais expectativas de futuro,

    classificaes de grupo e intervenes, estatais ou no, foram legitimadas por esses

    discursos.

    A hiptese aqui levantada que a noo de heteronomia auxilia a compreenso dos

    diagnsticos cientficos elaborados, nas primeiras dcadas do sculo XX, por diferentes

    parcelas da intelectualidade nacional. Neles construram-se regies e identidades de grupo

    como formadores do que era ento compreendido como o rural neste pas. Os discursos

    podiam ser diversos, porm apresentam permanncias de deslegitimao de pessoas como

    sujeitos autnomos e, tambm, deslegitimam seus saberes, hbitos e posses sobre a terra.

    Para prosseguir nesse intento o primeiro passo definir o que se entende por

    heteronomia e autonomia. Aqui, acompanha-se a definio de Kant, na qual a autonomia

    no escolher seno de modo a que as mximas da escolha estejam includas

    simultaneamente, no querer mesmo como lei universal.2 Assim, a autonomia deriva da

    noo de esclarecimento (ilustrao), definida por esse filsofo. Pois que, para Kant,

    esclarecer era sair da minoridade, da tutela de outrem, era o uso livre da razo por si e a

    conseqente responsabilidade por isso, nas palavras do autor: A menoridade a

    incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. 3

    Em oposio ao uso autnomo da razo e ao seu imperativo categrico, que se

    compem o conceito de heteronomia. Nele encontra-se uma forma de sujeio a uma lei

    exterior ou quaisquer outras determinaes que no pertenam ao mbito da legislao

    estabelecida pela conscincia moral de maneira livre e autnoma, nas quais no a

    vontade que ento da lei a si mesma, mas sim o objeto que d a lei vontade pela sua

    relao com ela4. A heteronomia ento seria uma menoridade diante da vontade de

    outrem, de um interesse pessoal ou passional.

    A proposta aqui compreender essa diferenciao como parte integrante da

    resposta a pergunta O que o esclarecimento? em Kant. Conseqentemente, esclarecer

    seria uma sada, uma soluo. Michel Foucault tambm analisou o mesmo texto e destacou

    que o sentido do esclarecimento seria ao mesmo tempo um processo e uma tarefa, j que

    para Kant: o prprio homem responsvel por seu estado de menoridade. preciso

    2 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: Edies 70, 2005 (p. 85, BA 87)

    3 KANT, I. O que Esclarecimento? Disponvel em , Acesso em: 12. dez.2010.

    4 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Op. Cit. (p. 86-87, BA 88-89).

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    conceber ento que ele no poder sair dele a no ser por uma mudana que ele prprio

    operar em si mesmo. Uma sada autnoma.5

    Ento, apesar da autonomia ser a base para o esclarecimento, esse ltimo,

    enquanto paradigma de conhecimento acabou delegando os imperativos ao seu prprio

    fundo social. Assim, a sociedade burguesa que se desenvolveu no sculo XVIII entendia-se

    como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e negava o mundo

    antigo. Cresceu a partir do espao poltico europeu e, na medida em que se desligava dele,

    desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse processo. O sujeito desta

    filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria

    ser conduzida em direo a um futuro melhor.6

    Esse movimento desenvolveu-se, durante os sculos XIX e XX no ocidente, por uma

    razo Iluminista composta como fora constituidora do novo, como razo instrumental que

    age no presente para superar o passado e construir um futuro melhor. Essa reflexo

    fundamental na crtica contempornea dialtica inerente ao esclarecimento. Construindo

    um paradigma de conhecimento no qual o conhecer dominar e transformar o outro.

    Essas crticas so aqui pertinentes pois que se busca incluir o projeto de Profilaxia

    Rural no Paran em horizontes mais amplos de reflexo, a saber a formao do

    conhecimento e a manipulao da diferena na epistem moderna. Pois que, se o projeto de

    Profilaxia visava criar sujeitos higinicos em corpos dceis, esse processo de encontro entre

    saberes cientficos e os viventes do campo se dava atravs de uma postura de tutela do

    outro pelo conhecimento e conhecedor autorizado pela cincia. As mudanas propostas por

    parte da Profilaxia para as populaes rurais do pas poca deste estudo no foram

    pensadas como mudanas destas pessoas por si mesmo, ou melhor, mudanas produzidas

    por vontades autnomas (e imperativos universais), mas sim como objetos para os

    interesses e determinaes nacionais de ento. A poltica nacional era biopoltica, em nome

    de um projeto de construo da nao sua populao deveria ser salva de sua pressuposta

    ignorncia, suas vidas avaliadas, territorializadas, classificadas e projetadas para o futuro por

    diferentes dispositivos, a Profilaxia Rural no Paran foi um deles.

    PROFILAXIA RURAL NO PARAN: IDENTIFICAES, DOENAS E TRAGDIA

    Os trabalhos desenvolvidos pela Comisso de Profilaxia Rural no Paran entre os

    anos de 1916 e 1919, passaram por diferentes estratgias e olhares sobre as populaes

    rurais paranaenses. A Comisso foi chefiada pelo mdico Herclides de Souza Araujo, mdico

    paranaense e membro do grupo de cientistas em torno de Oswaldo Cruz. Souza Arajo

    voltara ao Paran em 1916, exatamente para chefiar a Comisso de Profilaxia Rural no

    Estado (C. P. R. Pr.). Souza Arajo, Adolpho Lutz e Olmpio da Fonseca haviam publicado o

    5 FOUCAULT, Michel. O que o esclarecimento? In: FOUCAULT, M. Arqueologia das Cincias e Histria dos

    sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II) 2 ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2005 (p. 338). 6 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise: uma contribuio para patognese do mundo burgus. Rio de Janeiro:

    EDUERJ/ Contraponto, 1999, p. 9-10.

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    relatrio da viagem feita pelo rio Paran, ao incio do ano 1918, naquele mesmo ano pelo

    Instituto Oswaldo Cruz.7 As informaes colidas durante essa viagem sero utilizadas

    tambm no relatrio da C.P.R.Pr.

    Inicialmente, a Comisso pretendia desenvolver uma proposta profiltica para a

    lepra. Porm, para o grupo de jovens mdicos que o acompanharam na Comisso, o desafio

    inicial de combate lepra logo seria ampliado para o combate s diversas verminoses

    disseminadas na populao rural do Estado, tanto nos campos, no litoral, nas cidades e nos

    sertes. A Comisso realizou trabalhos de profilaxia da ancilostomose, da ascaridase, entre

    outras verminoses. Alm destas, tambm exerceu profilaxia sobre a sfilis, o

    impaludismo/malria, o bcio, a doena sodoku e, diante da impossibilidade de lidar com a

    lepra, elaborou um grande projeto de isolamento compulsrio para essa doena. A Comisso

    tambm tratou de organizar e propor diversos projetos sanitrios e da ampliao das

    pesquisas sobre as doenas atendidas.

    A problemtica aqui desenvolvida busca compreender como a complexidade e o

    carter trgico das vivncias encontradas pelos jovens mdicos da Comisso expuseram as

    contradies entre os planos iniciais traados pelo olhar mdico, os interesses oligrquicos,

    os recursos disponveis e as vivncias das populaes atendidas. O relatrio apresenta um

    mundo sem consolo, compondo um palco trgico no qual: o belo e o horrvel que compem

    a vida humana tornavam-se plasticamente conhecidos, em uma sabedoria maior que as

    palavras. 8 Alm disso, rastreia-se a permanncia de vises sobre as populaes rurais nas

    quais so percebidas como incapazes para a autogesto de suas vidas impondo-lhes, como

    caminho para o progresso, uma vivncia tutelada.

    Em 1919, a Comisso entregar aos governos Federal e Estadual, como tambm

    publicar, um amplo relatrio dos trabalhos desenvolvidos at aquele ano. Nele, encontra-se

    o mapeamento do combate realizado s doenas endmicas que, segundo o prprio decreto

    que regulamentava o Servio de Profilaxia no Estado do Paran, dificultavam o trabalho nos

    campos e concorrem para a inferioridade orgnica do Homem 9 Assim, no eram todas as

    doenas que seriam alvo da profilaxia , mas sim as que incapacitavam ao trabalho, como a

    lepra, a sfilis, o impaludismo e as verminoses, essas tambm eram vistas como causas de

    uma suposta inferioridade daquele homem.

    Com a criao de uma viso de caos sanitrio no universo rural, uma ao ordenatria

    ser iniciada pelo Presidente do Estado Afonso Alves de Camargo em 1916 e mantida na

    dcada de 20, quando o governador Caetano Munhoz da Rocha impor uma poltica de

    sade pblica sistematizada em grandes instituies no Paran. Alm de manter em

    funcionamento os servios de Profilaxia Rural. Se Afonso de Camargo constituiu um trip de

    7 LUTZ, A., SOUZA ARAUJO, H.C, FONSECA, O. Viagem Cientfica pelo rio Paran e a Asuncion com volta por

    Buenos Aires, Montevidu e Rio Grande. Memrias do Instituto Oswaldo Cruz. Fascculo III, tomo X. Rio de Janeiro: Manguinhos, ano 1918, p. 104-173. 8 OLINTO, B. A . Pontes e Muralhas: diferena, lepra e tragdia no Paran no incio do sculo XX. Guarapuava:

    UNICENTRO, 2007. (p. 20) 9 Decreto 799/1918 In: SOUZA ARAUJO, Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paran: Esboo

    de Geografia mdica. Curitiba:[ s.n.], 1919, p. 25.

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    atendimento baseado na Profilaxia, vacinao e hospitais, ser Munhoz da Rocha que far

    uma poltica de sade pblica monumental, simbolizada pela construo de trs grandes

    instituies hospitalares: uma para a centralizao de todos os leprosos do estado, o

    Leprosrio So Roque; outra para atendimento aos tuberculosos, o Sanatrio So Sebastio

    da Lapa e, finalmente, uma para doenas transmissveis em geral, o Hospital de Isolamento

    Oswaldo Cruz.10

    Destaca-se que a Comisso funcionar com a parceria entre o governo Federal,

    Estadual e a Fundao Rockefeller, esse modelo foi implantado durante a Primeira Repblica

    no Brasil, a partir de 1910. Segundo Lina Faria, a partir de ento que as reas rurais

    passaram a fazer parte das polticas de sade executadas pelo governo federal, at ento

    essas eram muito mais centradas nos portos e na capital11.

    Os recursos para essa profilaxia rural vinham do governo federal (variavam entre

    e 1/3, conforme decreto federal de 1 de maio de 1918 e as regulamentaes estaduais

    posteriores12) Assim, constitui-se um projeto de nao que pressupunha a integrao do

    rural ao paradigma de civilizao importado da Europa em um universo no qual as vises

    sobre as mazelas do Brasil se davam dentro de um enquadramento dualista habitado por

    pares indissociveis, tais como litoral-serto, sade doena e moderno-atrasado13

    Porm, ainda acompanhando as pesquisas de Faria, as parcerias com a Fundao

    Rockefeller foram firmadas aps o Brasil j ter atravessado os momento iniciais de sua

    reforma sanitria.14 Nesse sentido, a Profilaxia Rural no Paran foi estabelecida em um

    sistema elaborado a partir dos trabalhos desenvolvidos por Oswaldo Cruz e do grupo em

    torno de Manguinhos. Aliana entre o governo federal, o estadual e a Fundao Rockefeller (

    dos recursos) constituda com papis bem especficos: o primeiro encarregava-se da

    direo, das estratgias e grande parte dos recursos, o segundo tambm com recursos e

    pessoal para apoio logstico, e a terceira atuava de forma mais localizada, no caso do Paran

    com postos em Antonina e Paranagu. Porm, a Fundao Rockefeller fornecia a troca de

    experincias e bolsas de estudo para a formao dos profissionais da rea mdica do pas.15

    Cabe apontar mais um fator na instituio da CPRPr, a instncia municipal de

    administrao pblica, pois o relatrio aponta frequentemente para a diferena de apoio

    recebido por parte dos governos municipais para os trabalhos da Comisso. Esses sero pea

    chave para a manuteno dos servios ou no, pois para alm da escassez de recursos

    mapeia-se tambm as tenses que envolviam a realizao do projeto elaborado no nvel

    federal e executado nos domnios das oligarquias locais. Em 1919, quando Souza Araujo faz

    10

    Ver: OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e tragdia no Paran. Guarapuava, PR: UNICENTRO, 2007. 11

    FARIA, Lina. Sade e Poltica: a fundao Rockefeller e seus parceiros em So Paulo. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2007 (p. 52). 12

    SOUZA- ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 14 e 21. 13

    LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto. Pouca sade e muita sava: sanitarismo , interpretaes do pas e cincias sociais. In:HOCHMAN, Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos sobre sade e doenas na America Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2004 (p. 496-497) 14

    FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 55. 15

    Idem (p. 40)

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    uma avaliao dos trabalhos realizados dirigida ao Presidente da Repblica, a forma

    escolhida pelo autor narrar e justificar primeiro as dificuldades na execuo para, somente

    aps, no desenrolar do texto apontar as realizaes, assim:

    O servio da profilaxia rural ainda representa para ns uma tentativa e uma experimentao. Sua execuo se nos apresenta extremamente cheia de dificuldades em virtude da grande extenso do nosso territrio, da quase infinita diversidade das condies locais, onde temos de operar, e, finalmente, em face da exigidade dos nossos recursos relativamente ao vulto grandioso da empresa.

    16

    Apesar de fazer parte da smula dos trabalhos realizados17, o texto compe um

    ideia de continuidade desses trabalhos, o que conseguiria em 1920 com a renovao do

    convnio entre estado e o governo federal18. Tambm passa a ideia de uma experimentao,

    ou seja, se por um lado traz a noo de conhecimento produzido pela experincia, por outro

    ameniza as expectativas quanto ao seu resultado. Funo tambm cumprida pelo destaque

    dado s dificuldades encontradas, a saber, a extenso do territrio, as sua diversidade local

    e a falta de recursos. Ser a partir desse quadro que o mdico passar a descrever

    minuciosamente a atuao da Comisso no captulo seguinte da obra, sob o ttulo

    Geografia Mdica.19 A modernidade rural apresentada como tarefa imensa para heris

    incompreendidos e solitrios, quase personas trgicas.

    Foi no sculo XX que a questo da constituio de polticas de sade para a rea

    rural por parte do governo federal brasileiro foi elaborada. O debate em torno da

    possibilidade civilizatria dessas populaes levou uma intelectualidade nacionalista a

    primeiro diagnosticar quais seriam os entraves para esse progresso e depois a lutar pela

    realizao da reforma sanitria nos sertes. Assim, um novo projeto de nao foi elaborado

    e esse s seria vivel por meio da integrao do sertanejo civilizao do litoral.20

    Atuao da CPRPr pode ser compreendida a partir da publicao do relatrio de

    Artur Neiva e Belisrio Penna sobre a expedio mdico cientfica do Instituto Oswaldo

    Cruz ao interior do Brasil em 1916, nele o quadro composto era de um pas com uma

    populao desconhecida, atrasada, doente, improdutiva e abandonada, e sem nenhuma

    identificao com a ptria.21 Logo em seguida, ao incio de 1918, criada Liga Pr-

    saneamento do Brasil, liderada tambm por Penna. Some-se a isso, a intensa publicao de

    artigos por parte de mdicos e intelectuais tanto na capital do pas, quanto na capital do

    Estado sobre a temtica, constitua-se uma viso de atraso do Brasil em relao aos pases

    europeus e sua nova resposta. Afinal, no era mais a culpa da raa e sim das doenas, o

    suposto atraso civilizatrio do Brasil.

    16

    SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural..., op. cit., p. 30. 17

    Idem, capa. 18

    PARAN. Mensagem do Presidente do Caetano Munhoz da Rocha dirigida ao Congresso Legislativo do Estado. 01/02/1920, p. 89. 19

    Idem, p. 4. 20

    FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 52. 21

    LIMA, N.; HOCHMAN, G. Pouca sade e muita sava. Op. Cit., p. 498.

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    108 SEM ILUSTRAO

    Essa mudana de postura bem representada em Jeca Tatu a ressurreio de

    Monteiro Lobato, publicado no mesmo ano de 1918. Pois que a descrio do personagem

    pelo autor passara de funesto parasita da terra em 1914, para: O Jeca no assim; est

    assim em 191822. A representao do caboclo no era mais de um ser quase morto em

    meio a uma natureza exuberante, mas sim, de algum doente a ser salvo pela ao da

    medicina.23 Essa mudana na viso de Monteiro Lobato pode ser vista como um smbolo da

    nova problemtica construda pela intelectualidade brasileira sobre as populaes rurais. Se

    at a primeira da dcada do sculo XX, o povo estava condenado a uma incapacidade

    civilizatria pela raa, agora, ele poderia ser higienizado atravs do saneamento do serto.

    Esse era o novo problema a ser solucionado pelo estado e pela cincia atuando em conjunto.

    Viso essa que ser reencontrada ao final do relatrio da C.P.R.Pr.:

    Combatemos tambm a assero vulgar desprovida de qualquer fundamento cientifico, to arraigada entre o povo e tambm os letrados, de que a anemia do nosso povo do litoral e dos campos corre por conta da m e insuficiente alimentao, a que ele se sujeita, descrevendo os nosso patrcios do interior como vitimas da inanio em meio a uma natureza rica e uma terra que d tudo o que se quer. O que acontece o seguinte; nas zonas de alta endemicidade da ancilostomose o homem em geral pouco produtor porque pouco trabalha, e se no trabalha mais no instinto de preguia e sim por que doente

    24

    Na passagem acima, no mesmo sentido da ressurreio do Jeca Tatu, tambm o

    homem rural do Paran poderia ser salvo de seu suposto pouco trabalho. Esse no era por

    ndole e sim por anemia. Doena esta, causada por verminoses e no por subnutrio, na

    viso do mdico. Porm, se fosse subnutrio, a sim seria culpa do trabalhador, pois que a

    qualidade da terra nunca questionada nos discursos provenientes das autoridades ligadas

    ao governo do Estado do Paran. Porm, esses discursos no podem em nada ofuscar a

    compreenso da diversidade de posies relacionais dos grupos envolvidos.25 O convnio do

    Governo Federal com o Estado, que possibilitava a existncia da Profilaxia Rural, necessitava

    criar constantemente imagens de consenso para aprovar o seu oramento26. O convnio

    com a Fundao Rockefeller elogiado, entretanto o prprio Souza Araujo aponta limites do

    tratamento ali desenvolvido. As oligarquias locais orbitam entre apoio aos trabalhos da

    Comisso e o aberto boicote a eles.

    22

    Passagens extradas de Urups e Problema vital de Monteiro Lobato apud NAXARA, Mrcia. Estrangeiro em sua prpria terra: representaes do brasileiro - 1870/1920 . So Paulo: FAPESP/Annablume, 1998 (p. 25 e 28). 23

    Idem, p. 29. 24

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 211. 25

    Sobre conflito de interesses entre governos estaduais e federais para a Profilaxia Rural , ver: LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto. Pouca sade e muita sava: sanitarismo , interpretaes do pas e cincias sociais. In: HOCHMAN, Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos sobre sade e doenas na America Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2004 (p. 496-497), artigo demonstra o conflito entre governo federal e seus projetos de profilaxia e as oligarquias locais a partir da constituio de 1891. 26

    Sobre as estratgias para a construo de um apoio no Congresso Legislativo Estadual do Paran para investimento em sade ver: OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e tragdia no Paran. Guarapuava: UNICENTRO, 2007. A autora aponta que o oramento para a construo de um Leprosrio havia sido rejeitado pelo congresso legislativo do Paran em 1917.

  • Julho-dezembro de 2012

    109 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    Todavia, atravs do Relatrio da C.P.R.Pr., Souza Arajo, como tambm os demais

    mdicos da sua equipe, narram e organizam, avaliam e classificam as suas atividades como

    se essas fossem a nica sada para o futuro nacional. Para isso, assumem a responsabilidade

    por essa tarefa de conduzir o progresso, constituindo-se como sujeitos modernos. Da

    tambm apresentarem as dificuldades encontradas, a populao atendida, as doenas, os

    tratamentos e os resultados.

    No incio do Relatrio, o mdico j afirma que a motivao de todo o trabalho havia

    sido a questo da lepra, mas por vrios motivos acabara ficando relegada a um segundo

    plano, pelo menos naquele momento. Segundo ele:

    Vrios obstculos foram aparecendo e no se fez at hoje (1919) a profilaxia da lepra, mas em compensao, a campanha contra as verminoses em todos os municpios da marinha vai dando os mais brilhantes resultados, e a campanha anti-paldica por ns iniciada e dirigida acabou com o grande espantalho e o grande ceifador da vida dos preciosos trabalhadores do serto.

    27

    Na passagem acima o mdico aponta os vrios caminhos em que os trabalhos da

    Comisso se subdividiram, para alm do projeto inicial. O fracasso com a lepra naquele

    momento inicial era amenizado pela construo de uma viso atuao diante das outras

    doenas. Porm, os trabalhos da Comisso e de Souza Arajo devem ser analisados dentro

    do quadro maior de criao, pelo Governo Federal, do Servio de Profilaxia Rural com o

    objetivo de combater as endemias que assolam o interior do pais28 . Atravs desse Servio

    foram fundados postos sanitrios em vrias cidades do interior do pas. com esse sentido

    que, em 1919, ainda sob o impacto da Gripe Espanhola, os servios nacionais de sade so

    reformulados29.

    Souza Arajo continua a obra relatando as campanhas realizadas contra as

    verminoses, o trabalho conjunto com a Comisso Rockefeller30, o caos dos servios de sade

    no Paran quando da Gripe Espanhola. O Relatrio, alm de ser uma fonte profcua sobre

    esses assuntos, apresenta as propostas do mdico para o atendimento lepra. Nelas

    delineia-se a sua viso sobre o isolamento. Esses indcios apontam que, entre os finais das

    dcadas de 10 e 20, ocorreu uma mudana de perspectiva mdica e poltica sobre a sade

    das populaes, demarcando uma maior atuao estatal na sade pblica. As polticas de

    sade pblica nesse perodo demonstram a ampliao do papel do estado, assumindo a

    responsabilidade pelo manejo das populaes.

    Por outro lado, percebe-se Souza Arajo como um sujeito da razo que projeta

    sobre o papel um vir a ser futuro para aquelas populaes. Para isso os trabalhos da

    27

    SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural...., op. cit., p 12. 28

    Artigo 1 do decreto 13/ 001 de 1 de maio de 1918 que criou o servio, In: SOUZA ARAJO. Idem, p. 20. 29

    Ver: OLINTO, B. A. Uma cidade em tempo de epidemia: Rio Grande e a Gripe Espanhola. Dissertao (Mestrado em Histria). Florianpolis: UFSC, 1995. 30

    A Comisso Rockefeller, segundo ROSEN, atuava no sentido de auxiliar os pases na criao de agncias de sade nacionais e locais, includos os recursos humanos e materiais sobre os quais, no futuro se possam sustentar. Ver: ROSEN, George. Uma Histria da Sade Pblica. So Paulo: UNESP, Rio de Janeiro: HUCITEC, 1995, p. 363.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    110 SEM ILUSTRAO

    Comisso eram tambm uma organizao das gentes e das coisas em um conhecer

    elaborado atravs da classificao, do levantamento estatstico e espacializao das

    doenas. O mdico construa em seus escritos um mundo perfectvel, sua viso era de

    superao constante rumo ao progresso e de uma crena, at aquele momento, inabalvel

    na cincia e no futuro.

    Espacializar a distribuio de doenas um criar de territrios para elas,

    possibilitando assim, o domnio desse territrio por um saber estratgico, sendo ento um

    suporte para o exerccio de poderes. Acompanhando Foucault, ao recorrer geografia o

    discurso mdico estaria se apropriando dos dois procedimentos de verdade que ali se

    encontram. A saber, o inqurito seria o procedimento de verdade das cincias naturais; o

    exame, o procedimento de vigilncia das cincias humanas31. Pode-se ento perceber, de

    que maneira a medicina ancora a sua cientificidade duplamente, nas cincias naturais e nas

    cincias humanas.

    UMA GEOGRAFIA MDICA: O INQURITO, O EXAME E A VIGILNCIA

    Para compreender o horizonte conceitual da atuao mdica de Souza Arajo

    necessrio refletir sobre a concepo de Geografia Mdica. O conceito Geografia Mdica

    advindo do sculo XIX, mais especificamente da obra Ensaio de Geografia Mdica de Boudin

    em 1843. Segundo Sandra Caponi, nessa obra o autor procurava por leis de propagao das

    enfermidades que fossem anlogas s da distribuio das espcies vegetais. Isso ,

    percebendo a influncia da latitude, longitude, temperatura, presso, geologia, relevo, etc.

    Assim, a Geografia Mdica tinha como objetivo estudar a distribuio das doenas e

    conhecer as modificaes que imprimem no organismo por influncia do clima. 32 Desse

    conhecimento adviria o projetar das intervenes necessrias no ambiente com o objetivo

    de controle das doenas. Ideias que fundamentavam, por exemplo, a secagem de pntanos,

    pois que esses para Boudin seriam propcios para febre paldicas e a peste.33

    O conhecer geogrfico ento apresentado como um suporte condio de

    possibilidade do exerccio de poderes cientficos e estatais para o saneamento do ambiente

    e a sade das populaes. Nesse caminho o captulo Geografia Mdica do relatrio da

    Comisso de Profilaxia Rural inicia com a descrio e avaliao dos trabalhos realizados por

    esta em Curitiba e no incio do ano de 1917, o ento Presidente do Estado Affonso de

    Camargo faz tambm sua avaliao da necessidade da Profilaxia e de sua atuao:

    Se h servio pblico que mais deva preocupar a ateno dos governantes sem dvida o da

    higiene. Em que pese a salubridade e a amenidade do nosso clima, devemo-nos acautelar

    contra molstias endmicas e epidmicas.34

    31

    FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 162. 32

    CAPONI, Sandra. Sobre La aclimatacin: Boudin y La geografia mdica. Histria,Cincia e Sade- Manguinhos. V.14, n. 1, p. 13- 38, jan.- mar. 2007, p. 29. 33

    Ver: CAPONI. Idem..., p. 29. 34

    PARAN. Mensage... 01/01/1917, p. 11.

  • Julho-dezembro de 2012

    111 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    Da a importncia do trabalho da Comisso, pois naquele momento estava a

    percorrer o Litoral do Estado, onde faz a geografia mdica daquela regio, para que, em

    virtude das observaes feitas, possa o governo tomar as providncias que elas

    aconselham.35 Percebe-se ento a viso do conhecimento cientfico instrumental, na qual

    as informaes levantadas pelo trabalho da C.P.R.Pr. seriam a origem de uma ao eficaz por

    parte do governo do estado na gesto da higiene pblica.

    Trazer o conceito de Geografia Mdica para o Paran nas primeiras dcadas do

    sculo XX apresentava-se aos envolvidos como um trabalho hercleo. Foi assim constituda

    toda uma hierarquia burocrtica entre guardas sanitrios, tcnicos laboratoriais e mdicos.

    Para cobrir esse espao, a C.P.R.Pr. contava com uma equipe inicial interdisciplinar com dez

    mdicos e composta por microscopistas e guardas sanitrios. O pequeno nmero de pessoas

    envolvidas na Comisso aponta a importncia das parcerias municipais para a realizao dos

    trabalhos e, com a Fundao Rockefeller, para o levantamento de dados.

    Abaixo se pode observar a amplitude do levantamento da Comisso, atravs do

    mapa elaborado a partir dos dados sobre a infeco por Ancilostomose no estado.

    Figura 1: Mapa do Paran na perspectiva mdica da Ancilostomose

    Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia. Op. Cit.

    importante destacar que essa espacializao era sempre feita a partir das normativas

    do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, como tambm eram os saberes desse Instituto

    35

    PARAN. Mensagem.... 01/01/1919.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    112 SEM ILUSTRAO

    que instruam todo o projeto de Profilaxia Rural no pas. No Paran as medidas adotadas

    pela Comisso Profilaxia Rural iniciaram pela capital do estado. Essa no escapava a

    percepo de rural, pelo menos no olhar projetado do Rio de Janeiro. Consequentemente,

    os trabalhos realizados em Curitiba iniciam, com a abertura do Posto de Profilaxia. L a

    situao apresenta-se um pouco diversa em relao as outras localidades do Paran, pois o

    seu posto ser central, ou seja, o local de centralizao de todos os trabalhos da Comisso.

    Para isso o Governo Federal definiu em junho de 1919 que somente funcionariam junto ao

    Posto Central os servios de vacinao e o dispensrio anti-siflico, devendo ser fechada a

    Policlnica dos Pobres que funcionava, at ento, no mesmo prdio.36

    Entretanto, pode-se compreender melhor essa instruo acompanhando o

    Relatrio. Nele Souza Arajo informa que, aps a epidemia de gripe de 1918, [...] a

    populao pobre desta capital continuou a procurar, para consulta de todas as doenas, o

    nosso posto central, acostumada que estava a ser aqui prontamente socorrida por ocasio

    da grande epidemia. Em consequncia disso, o Ministro da Justia e Negcios Interiores, a

    quem estava subordinada a Comisso, havia decidido pela extino da tal Policlnica dos

    Pobres, pois [...] a maioria destes doentes no interessava muito a questo da higiene

    pblica, e devendo os mdicos internos se preocupar mais com as pesquisas de laboratrio e

    o dispensrio anti-siflico [...].37

    Nessa passagem, a constituio da doena como problema a ser solucionado,

    quase nada tem a ver com a sua existncia natural e sim com as questes histricas que

    transformam em um dado momento, uma determinada doena, em um problema. Segundo

    o Relatrio em questo, a populao de Curitiba padecia de muitas outras molstias e as

    percebiam como passiveis de tratamento mdico e a ele recorriam. Mas, apesar dessa

    demanda, o Ministrio havia decido fechar esse servio em favor da higiene, da pesquisa e

    do tratamento da sfilis. Indicando que o atendimento disponvel por parte de uma medicina

    social definido pelos cnones da cincia e da administrao pblica e no por demanda.

    Esse evento narrado por Souza Araujo corrobora com as interpretaes

    recorrentes na historiografia sobre esse momento histrico, como um perodo no qual a

    interveno buscava prioritariamente salvar o futuro nacional, em nome de um modelo de

    civilizao ocidental moderna. As populaes pobres eram percebidas como potencialmente

    perigosas e entraves a esse modelo. A higienizao dos seus corpos e o saneamento do seu

    habitat seria, supostamente, o caminho para transform-las e sujeit-las produtividade

    capitalista. A Comisso de Profilaxia apresenta-se nesse quadro como uma operao

    estratgica de produo de conhecimento, da tambm a importncia das pesquisas

    realizadas por seus membros, pois delas deveria decorrer a verdade cientfica sobre o

    presente que instrumentaria a interveno estatal e possibilitaria prever e controlar o

    futuro.

    Logo a seguir, na narrativa do prprio mdico, ele informa que, aps o fim da

    Policlnica dos Pobres no ms de junho de 1919, [...] pudemos nos escusar da obrigao de

    36

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 40. 37

    Idem (p. 50).

  • Julho-dezembro de 2012

    113 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    examinar e tratar todos os doentes que procuravam o nosso servio, mas, pelo habito de

    humanidade que adquire todo o mdico que lida com o povo, fomos afrouxando e hoje a

    consulta gratuita diria no nosso servio voltou a ser um fato.38 A vida mais complexa que

    os projetos e se infiltra nas fissuras dos dispositivos.

    O Dispensrio Antissifiltico de Curitiba era apresentado como o arqutipo

    civilizacional da Comisso, l era a central de comando da estratgia profiltica, o local que

    abrigaria os principais laboratrios. Um espao disciplinar privilegiado para estudar os

    comportamentos desviantes. Porm, as pessoas atendidas pela Policlnica dos Pobres

    tambm estavam l. Elas eram sujeitos que sabiam resistir e manipular regras e situaes

    que se apresentavam. Tal fato expe os mdicos a uma dimenso trgica do viver, pois a

    populao recorria aos seus saberes, entretanto os parcos recursos dispensados sade no

    haviam sido projetados para esse tipo de atendimento. No projeto profiltico rural, a

    populao que deveria ser salva e as doenas que deveriam ser combatidas tornavam-se

    apenas uma projeo sobre os viventes. As mximas a serem conhecidas e atendidas eram

    exteriores vontade dos envolvidos, eram mscaras, fantasmagorias cientficas, apartadas

    da vontade e necessidade cotidiana.

    Retomando a anlise da opo da Comisso de Profilaxia Rural do Paran por uma

    geografia mdica, destaca-se que essa opo j indicava o carter de seus procedimentos. O

    conhecer geogrfico reunia em si os procedimentos do inqurito (cincia naturais) e do

    exame (cincias humanas). Nele a verdade constitua-se tanto por ajustamento de partes

    (testemunhos, provas), quanto pela vigilncia (um olhar minucioso).39 Da deter-se um pouco

    mais no funcionamento deste dispositivo.

    O funcionamento dos servios profilticos iniciava com a abertura do Posto

    Sanitrio. Esse era organizado em um prdio cedido pela prefeitura local e tinha a sua

    direo geral entregue a um mdico diplomado. Esse ltimo deveria residir no local e

    realizar os tratamentos gratuitamente. Tambm cabia ao mdico visitar em casa os doentes

    que resistissem ao tratamento e convenc-los a participar, bem como proferir as

    conferncias educativas para a populao.40 Os resultados esperados dessas medidas podem

    ser resumidos na passagem abaixo:

    Vereis que aos poucos estes indivduos plidos, edemaciados, barrigudos, e de olhos sem brilho, de pele cor de terra, de fisionomia sem expresso, de artrias sem sangue, de crebros sem inteligncia e de crescimento retardado, iro cada dia rareando mais e a sade voltar aos vossos lares e com ela a alegria e a felicidade. Ento levantareis as mos para o cu e agradecereis ao Deus de vossa religio os benefcios que a cincia vos trouxe. Chegar ento o dia, feliz para a nossa ptria, em que no mais sero chamados os nossos irmos do litoral e dos campos, de indivduos, indolentes e preguiosos e sem inteligncia.

    41

    38

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 50. 39

    Ver: FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003 e FOUCAULT, M. Sobre a Geografia In:FOUCALUT, M. Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 40

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 66. 41

    Idem, p. 64.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    114 SEM ILUSTRAO

    A citao acima foi retirada do discurso proferido pelo mdico Herclides de Souza

    Arajo em 12 de dezembro de 1918, quando da inaugurao do Posto Sanitrio do municpio

    de Morretes. Esse discurso foi reproduzido pelo seu autor tanto no Relatrio da Profilaxia

    Rural do Paran, quando na Revista Paran Mdico.

    O Posto Sanitrio de Morretes foi o primeiro inaugurado pela Comisso Sanitria

    Federal para o Estado do Paran fora da capital. O posto de Morretes j estava em pleno

    trabalho desde o dia 1 de outubro de 1918, porm, s foi inaugurado oficialmente, segundo

    as palavras do prprio mdico aproveitando a presena do Sr. Dr. Lewis Wendell Hackett ,

    diretor no Brasil do Conselho Sanitrio Internacional da Rockefeller Fundation42, o qual

    estava no Paran para firmar a parceria para a instalao de dois postos de campanha contra

    a ancilostomose, verminose mais abundante no litoral segundo os levantamentos da prpria

    Comisso de Profilaxia.

    A inaugurao do Posto de Morretes foi adiada quando da ecloso da Gripe

    Espanhola, qual se seguiu a paralisao dos trabalhos da Comisso no dia 20 de outubro de

    1918, pois todos os seus membros foram desviados para o atendimento populao doente.

    Nas palavras de Souza Arajo: ficou o pessoal da nossa comisso a disposio do Governo

    do estado para auxilio no combate a gripe.43 Mas, tambm a Gripe, transformou-se em

    dados e porcentagens de letalidade populacional ao encontrar a Comisso, como pode ser

    verificado abaixo:

    O sistema projetado era to eficaz que mesmo doenas no previstas acabavam

    por fortalec-lo, pois que forneciam mais informaes para a totalizao geogrfica e

    podiam ser alardeadas como servios prestados, como no caso da Gripe Espanhola e da

    Policlnica dos Pobres.

    Sobre a ordenao do Posto da profilaxia pode ser percebida a preocupao de

    detalhar todas as funes e hierarquiz-las no Relatrio. Assim, cada Posto deveria contar

    com um microscopista, ressaltando uma vez mais a importncia da pesquisa emprica (no

    caso e exame de fezes) para a construo da verdade na geografia mdica. Sobre a

    hierarquia, essa era estruturada e projetada com mincia, assim: Os guardas s podero

    administrar o tratamento por determinao do mdico, no podendo nunca alterar a dose

    prescrita. Ou ainda: qualquer sintoma diferente [...] o guarda dever sem demora correr e

    dar conta do que se passa para o mdico.44

    Assim, o relatrio sempre reitera a autoridade do mdico sobre o guarda, essa

    necessidade de reforar frequentemente o papel de cada categoria envolvida no projeto e

    deixar claros os limites da atuao dos guardas sanitrios, indicia um receio do mdico em

    relao a estes ltimos. Talvez uma falta de confiana na sua subservincia hierarquia e

    autoridade cientfica. Talvez por serem pessoas escolhidas entre os moradores locais, mais

    prximos dos pacientes, proximidade reforada por visitarem as residncias e ministrarem

    42

    SOUZA-ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 61. 43

    Idem, p. 121. 44

    Idem, p. 71-72.

  • Julho-dezembro de 2012

    115 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    os medicamentos, o que poderia acarretar um reconhecimento como uma autoridade

    saneadora por parte da populao local. Mas so apenas hipteses.

    Figura 2: Quantificao da Gripe Espanhola

    Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia.Op. cit.

    Logo ao incio do servio o municpio em questo era dividido em zonas e cada

    uma delas era entregue a um guarda sanitrio. O servio do guarda baseava-se na coleta de

    material e tratamento. O diagnstico e a prescrio do tratamento eram exclusividade dos

    mdicos, porm a coleta e o ministrar dos remdios indicados para a populao eram feitos

    pelos guardas sanitrios.

    Para isso toda uma srie de dispositivos burocrticos instaurada, os guardas

    sanitrios deviam fazer a numerao, identificao de todas as casas na zona de sua

    responsabilidade e anotar em suas cadernetas os dados de cada morador e as doses

    ministradas a eles. Alm disso, o guarda sanitrio era encarregado de distribuir os folhetos

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    116 SEM ILUSTRAO

    informativos. E mais, ele poderia a qualquer momento perder o seu emprego: O guarda ou

    qualquer outro funcionrio que se apresentar freqentemente doente, prova a sua

    incapacidade para os servios da comisso e ser obrigado a deixar o emprego.45 O guarda

    e outros cargos inferiores na hierarquia profiltica, aparecem como seres limtrofes entre o

    saber cientfico e o povo. Podendo cruzar uma tnue linha que parece separar os dois grupos

    por se apresentar doente, estigma incapacitante para a funo na viso da Profilaxia.

    Ao final se organiza com os dados um boletim mensal com cpias enviadas ao

    Ministro da Justia, ao secretario do Interior do Estado, ao Diretor da Higiene e a imprensa.46

    O essencial era produzir informaes, disciplinar corpos e hierarquizar saberes; o prdio, o

    censo, os medicamentos e a propaganda so seus instrumentos.

    Essa atuao que constri o esboo de Geografia Mdica no Paran apresentado

    no Relatrio da Comisso, mas nele tambm so territorializadas regies a partir de uma

    diviso nosolgica. Apesar das doenas apresentarem-se em todos os locais analisados pela

    Comisso, a sua atuao deveria escolher quais seriam combatidas em cada lugar.

    nesse sentido que Curitiba descrita sempre a partir do Dispensrio

    Antissifiltico. Cabe destacar que o atendimento ali prestado era gratuito para meretrizes

    (devidamente recenseadas e identificadas) e indigentes. Tambm oferecia leitos para que as

    mulheres que no tivessem onde ficar durante o tratamento e fossem internadas. Para,

    assim, segundo o mdico, no continuassem a disseminar ao doena por falta de opo

    para sobrevivncia. Todas as meretrizes eram obrigadas a comparecer decentemente

    vestidas e portar-se respeitosamente, sob pena de censura.[...] 47 A profilaxia da sfilis era

    baseada tambm no recenseamento e na expedio de carteiras de identificao das

    prostitutas. 48

    Bem diferente a regio denominada Litoral. Essa compreendia as localidades de

    fato litorneas e as que ficavam entre essas e o incio da Serra do Mar. L seria o lugar de

    maiores resistncias do mandonismo local, segundo Souza Araujo:

    preciso confessar que a nossa ao no foi recebida com a boa vontade que era de se esperar. Diversos indivduos de cidade e entre eles o homem de mais responsabilidade na administrao municipal, procuraram impedir a execuo das mais comezinhas medidas de higiene pblica, tais como a construo de latrinas, etc. Uma verdadeira luta.

    49

    O Litoral o espao para os chamados refratrios profilaxia. O mdico

    descreve a regio em situao de penria e ausncia de gua potvel, de esgotos e latrinas.

    Em Morretes, a prescrio persuadir refratrios, a Comisso intensifica a estratgia de

    visitas domiciliares para o convencimento da populao bem como as propagandas em

    panfletos e filmes. Souza Araujo organiza todo um esquadrinhar da municipalidade, exige

    45

    Idem, p. 70. 46

    Idem, p. 153. 47

    Idem, p. 298. 48

    Idem, p. 285 e 308. 49

    Idem, p. 65.

  • Julho-dezembro de 2012

    117 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    exatido e mincia nos relatrios, cria prmios e penalidades. O resultado dos exames e

    trabalhos por fim quantificado: 100% infectados, 50% com anemia, 149 latrinas

    construdas. Nas vizinhas Antonina e Porto de Cima, a malria e as verminoses so

    identificadas. Os mdicos da Comisso trabalham ali com apoio da Fundao Rockefeller e

    diagnosticam tambm 100% da populao infectada por verminoses. Destaca-se a

    inexistncia de fossas em Porto de Cima e, principalmente, a alta letalidade de Gripe (57%)

    em Antonina, mas essa no recebe nenhuma explicao ou formulao de hipteses por

    parte da Comisso, mesmo diante da mdia geral de mortalidade no Paran, apenas 1,8%,

    os dados da prpria Comisso. No Litoral , apesar de existirem dois portos, Antonina e

    Paranagu, o relatrio no problematiza a existncia de sfilis.

    Ainda no Litoral, agora em Paranagu, a preocupao a malria e tambm as

    verminoses, 100% da populao diagnosticada com vermes. Nessa localidade, a parceria

    com a Fundao Rockefeller ser descrita pelo mdico: Comprometeu-se esta (Fundao

    Rockefeller) a instalar um posto de campanha contra as verminoses no municpio de

    Paranagu.50 A diferena de projetos profilticos e os conflitos internos do campo cientfico

    na rea mdica so apontados pelo mdico:

    Nota Em Paranagu a comisso Rockefeller limitou-se a tratar os opilados, sem cogitar do servio de latrinas o que nos obriga a fazer este servio com mxima urgncia, porque do contrrio, terminado o tratamento, poucos meses depois de curados se reinfestaro outra vez.

    51

    A distino apontada central na estratgia de Souza Araujo, no a toa que

    existem punies previstas para a no construo de fossas e intimaes para a construo

    foram distribudas por todo o litoral52, se alguma consequncia da decorreu no se tem

    indcios at o momento. Porm, Souza Araujo conhecia bem os insucessos da Fundao

    Rockefeller e os aponta em diferentes momentos do texto53. Para o mdico as falhas

    estavam exatamente na vigilncia constante dos doentes, pois que, a Fundao Rockefeller

    distribua os remdios e no fiscalizava a sua ingesto. Ao contrrio, na Profilaxia Rural, um

    guarda sanitrio passava de casa em casa ministrando a dose prescrita pelo mdico, esse

    mtodo era denominado de intensivo e justificado pela gravidade da situao do Litoral, pois

    que esse logo tornar-se-ia inabitvel por causa das verminoses. Nas palavras do nosso

    narrador:

    O mtodo intensivo ou sistemtico o mais prprio para as grandes campanhas contra as verminoses intestinais e aquele que apresenta

    54todos os requisitos de

    xito completo. A base do mtodo o tratamento a domicilio de toda uma

    50

    Idem, p. 84. 51

    Idem, p. 87. 52

    Idem, p. 93. 53

    Idem, p. 87 e 192. 54

    Idem, p. 100.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    118 SEM ILUSTRAO

    populao opilada, dirigido pessoalmente pelo mdico, e freqentemente fiscalizado pelos seus auxiliares.

    55

    A Profilaxia Rural construiu muitos planos de interveno, mas tinha poucos

    recursos a ela destinados pelos governos Federal e Estadual. A insistncia de Afonso

    Camargo e Munhoz da Rocha em elogiarem a pessoa de Souza Araujo como ilustre, digno e

    perseverante56 inversamente proporcional ao apoio financeiro aos seus projetos. Mdicos

    e populaes abandonados pois em um palco trgico ningum ter consolo.

    Entretanto a agricultura no Paran durante o perodo de 1916 a 1921

    apresentada como um sucesso pelos presidentes do estado. Afonso Alves de Camargo, em

    sua Mensagem ao Congresso Legislativa ano incio de 1918, se refere ao ano de 1917 como:

    ano decorrido foi de verdadeiros triunfos para o nosso estado no que diz respeito a sua

    produo agrcola.57

    O referido presidente tambm prev um grande futuro para o Paran atravs da

    agricultura: Nesse dia seremos um dos expoentes mximos da riqueza econmica do Brasil.

    [...] E estou seguro que esse dia no tardar desde que continuemos, sem esmorecimentos,

    a nossa propaganda rural, pois o abandono do campo a nica hiptese de fracasso do

    nosso engrandecimento futuro.58 E o incremento agrcola do estado, a lisonjeira situao

    financeira decorrente e o elogio aos trabalhos da Profilaxia Rural se repetem ano a ano.

    POPULAO RURAL TUTELADA: PERMANNCIAS E VISAGENS

    Pode-se indicar que o trabalho da Comisso ajudou na diminuio das resistncias

    existentes, durante a primeira dcada do sculo passado, ao investimento pblico vultoso na

    rea da sade. Tais resistncias parecem ter sido dissipadas atravs da constituio de uma

    verdade mdica calamitosa sobre a situao do interior do Estado, viso essa instituda a

    partir dos trabalhos da Comisso de Profilaxia.

    Souza Araujo defendia a ao direta do mdico sobre a populao, o que

    aproximaria a autoridade do povo com a entrega dos remdios no prprio habitat. Um

    mtodo intensivo segundo o autor, atravs do recenseamento, visitao do mdico e seu

    uso assistido dos medicamentos, ou seja, a sua administrao pelo guarda sanitrio. S

    assim, com essa proximidade com essa populao refratria, o mdico passaria [...]a ter

    sobre eles verdadeira e direta ascendncia. A ao do povo passa a ser apenas obedecer,

    cumprir ordens em seu benefcio e deixar-se medicar.59 Como j dissera Trajano dos Reis e

    no se pode cuidar da salvao pblica sem ser um ditador60.

    55

    Idem, p. 163. 56

    Ver. PARAN. Mensagem do Presidente..., op. cit., p. 1916-1921. 57

    PARAN. Mensagem do Presidente Afonso Alves de Camargo ao Congresso legislativo do Estado 01/02/1918 (p. 33) 58

    Idem, ibidem. 59

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia..op. cit.., p. 130. 60

    Idem, p. 112.

  • Julho-dezembro de 2012

    119 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    Para justificar o autoritarismo evidente das afirmaes da profilaxia, so

    compostas vises depreciativas arquetpicas sobre as populaes rurais. Nesse sentido, o

    Relatrio apresenta, alm das resistncias das oligarquias locais, tambm formas de

    resistncias das prprias populaes rurais, apesar de lidas depreciativamente dentro de

    modelos arqutipos de teimoso e ignorante, respectivamente:

    Cuidando carinhosamente, fazendo-se respeitar pela nobreza do seu gesto, vai o mdico, pouco a pouco, se apoderando da confiana da gente dos campos, levando-a, com habilidade, ao exame e tratamento das outras doenas, que, raramente, suspeita causar-lhe dano. Porque essa gente naturalmente impressionvel, o mdico no esquece os meios de que a cincia pode dispor para convencer os mais teimosos.

    61(...) No dia em que se conseguir pela educao do

    sertanejo convenc-lo de que o maior mal que ele pode fazer a si mesmo, aos parentes e vizinhos permitir que em redor da sua habitao, na horta e no seu pomar, continuem a espalhar fezes humanas ou defecar na superfcie do solo ora aqui, ora ali, poderemos precisar o tempo necessrio para a extino da ancilostomose entre ns

    62

    O teimoso e o ignorante so quase ingnuos, seres abandonados em sua eterna

    minoridade. Uma nova ordenao s poderia vir como uma salvao externa a essas

    criaturas sem nenhum trao de civilizao. Convencidos das benesses da cincia porque so

    impressionveis e, se um dia forem educados, cessaro apenas de adoecer por sua prpria

    culpa. A Profilaxia apresenta-se como uma positividade biopoltica, nica forma de inclu-los

    no projeto nacional seria manipul-los e salv-los de si mesmo.

    Figura 4: Um dos modelos de construo de fossas

    Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia...op. cit.

    61

    Idem, p. 158. 62

    Idem, p. 211.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    120 SEM ILUSTRAO

    Com isso suas vidas sero expostas como vidas nuas, no sentido definido por

    Giorgio Agamben63, ou seja, sua hexis corporal ser minuciosamente examinada e seus

    costumes tero valorao moral ao tornarem-se maus hbitos, pois: No h nenhuma zona

    do Estado que a gente visite, seja no litoral, seja nos campos, nos sertes ou no Baixo

    Paran, em que se no encontre o povo dominado pelo mal habito de no fazer usos de

    latrinas. 64

    O que enfim est aqui sendo gerido por essa profilaxia? Vidas olhadas por um

    projeto poltico, ou melhor, vidas nuas objetos de biopoltica. Uma vida exposta a luz de

    saberes a fim de transform-la em operaes reconhecveis e previsveis. A Profilaxia lidava

    com a vida compondo duplos como: civilizao e barbrie, progresso e atraso, higiene e

    perigo, sujeito da ao e objeto de pesquisa. Duplicao integrante da ordenao das coisas

    e das gentes pela epistem moderna. O ser - humano duplicado e seu ser e estar no mundo

    analisado e modificado. Acompanhando Naxara: O povo brasileiro, visto por suas elites,

    aproximava-se do atraso e da barbrie, enquanto que o que se tinha em vista era alcanar o

    progresso e a civilizao. Tal questionamento acabou levando a uma identificao do

    brasileiro pela ausncia do que se esperava ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe

    faltava.65

    Para isso, a C.P.R.Pr., faz tabula rasa sobre as medidas profilticas desenvolvidas

    pela cultura indgena, do trabalho desde a infncia, da existncia de uma medicina popular e

    do crescimento agrcola. A vida dos trabalhadores no campo vista como o negativo, o

    avesso da civilizao desejada, seus conhecimentos e seu trabalho desprezado. So

    representados como ignorantes e embrutecidos, s vezes por ignorncia e sempre pela

    doena. Vistos como seres incapazes de autogesto, necessitando serem retirados de uma

    situao de falta, de ausncia, por uma nomos planificada por um sujeito do conhecimento

    externo a eles.

    A modernidade fiel a herana metafsica ocidental e com isso ao politizar a vida

    nua e inclu-la na polis, o faz construindo a poltica como biopoltica.66 Assim, a zo, a vida

    nua, entra na polis e o viver transformado em bem viver, entendido como o viver de um

    corpo disciplinado, mas ainda excludo. Pois que a incluso ocorre apenas diante do

    abandono de sua vontade autnoma em nome de uma submisso aos objetivos pragmticos

    de um outro.

    O projeto de construo de um povo para o Brasil estado-nao pretendeu incluir

    trabalhadores rurais tutelados, vistos como sem ilustrao em permanente minoridade.

    Lembrando Kant:

    O esclarecimento a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. [...] A preguia e a covardia so as causas pelas quais

    63

    Ver: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. 2ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. 64

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., op. cit, p. 211. 65

    NAXARA, M. Estrangeiro em sua prpria terra..., op. cit., p. 18. 66

    AGAMBEM, G. Homo Sacer..., p. 15.

  • Julho-dezembro de 2012

    121 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    uma to grande parte dos homens, depois que a natureza de h muito os libertou de uma direo estranha, continuem no entanto de bom grado menores por toda a vida. So tambm as causas que explicam por que to fcil que os outros se constituam em tutores deles. to cmodo ser menor

    67.

    O vivente rural era transformado em sinnimo de atraso, sozinho no teria futuro,

    s os mdicos a esse conheciam, mas ser o orculo tambm um papel na tragdia. A

    comisso de Profilaxia sustentava ento uma minoridade de longa durao para essas

    populaes, tuteladas por seus senhores, sejam eles senhores de terras, de saberes ou

    soberanos.

    A pesquisadora Carmem Kummer tambm apontou, com muita propriedade, ao

    final de sua dissertao dedicada a Profilaxia Rural no Paran, uma permanncia do

    problema da sade nas zonas rurais do estado, assim:

    Conforme o IPARDES, apenas 35,8% de 199 municpios considerados rurais apresentavam (em 2001) algum tipo efetivo de prestao de servios na rea da sade. No podemos negar que nenhuma ao foi tomada desde a dcada de 1910, uma vez que o saneamento no meio rural nessa poca deu incio a muitos projetos realizados dcadas depois. Por outro lado, possivelmente podemos afirmar que as justificativas apresentadas para definir este ndice alarmante se inserem nas mesmas queixas apresentadas por Souza Arajo, Joo de Barros Barreto e Eduardo Leal Ferreira, quais sejam, o infindvel descaso poltico das elites locais com aqueles que julgam ser irrelevantes e desnecessrios para o pas.

    68

    Uma continuidade de problemas que poderiam ser trazidos para a ordem do dia sob

    as mesmas justificativas utilizada pelos mdicos do incio do sculo XX. Ou seja, uma

    permanncia de uma viso de mundo em torno do rural e sobre as pessoas que l vivem.

    Essas permanncias se caracterizam como um conjunto de estigmas, metforas,

    estratgias, imagens, polticas, etc; dispostas para o rural e que partem do pressuposto de

    uma eterna minoridade daquela populao. Consequentemente, o apelo recorrente por

    formas de tutela e conseguinte sujeio, como uma inferioridade diante do urbano, do

    moderno, do cientfico e do erudito. No seria a toa que os discursos sobre a modernidade

    no campo hoje, incio do sculo XXI, sejam ligados ao agronegcio, um empreendimento

    extremamente mecanizado e de alta tecnologia, que necessita de poucos viventes no

    campo. Sem os viventes, s restaria a terra boa? Por outro lado, a agricultura familiar

    objeto de inmeras tentativas de resgate, de conservao, ou ainda de criao de opes

    econmicas sustentveis, as quais permitam a sua sobrevivncia. Propostas cientificamente

    embasadas por bem intencionados saberes acadmicos.

    Aqui, novamente a heteronomia, as solues encontradas para os problemas

    criados, so elaborados por outrem com interesses e disposies de fora da vontade

    autnoma. As pessoas envolvidas e as necessidades por elas mesmas percebidas, no

    67

    KANT, I. O que esclarecimento? Op. cit. 68

    KUMMER, Carmem Slvia da F. No esmorecer para no desmerecer: As prticas mdicas sobre sade da populao rural paranaense na primeira repblica. Dissertao (Mestrado em Histria) Curitiba: UFPR, 2007, p. 136.

  • Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.

    122 SEM ILUSTRAO

    participam do projeto, esvaziando a ao como um processo autnomo de

    responsabilizao. Em ambos os casos, a verdade cientfica incorre, mais uma vez, no perigo

    de subsumir o outro. Lembrando mais uma vez Foucault vocs no tem direito de

    menosprezar o presente.69 Pois cada um responsvel pelo processo histrico do conjunto.

    Afinal a modernidade uma atitude, uma maneira de pensar e agir que se apresenta como

    tarefa.

    CONSIDERAES

    Em 1919 a Profilaxia Rural no Paran propunha questes mais amplas do que o

    saneamento do serto paranaense, pois que era a vida das pessoas o objeto de interveno.

    O rural era visto pela Profilaxia como um espao de falta, o olhar que se lanava no via o

    que l existia, pois o quanto prostrado pela doena e indolente pelos vermes podia ser um

    trabalhador que sustentavam a economia do estado?

    No Relatrio da C.P.R.Pr. no faltam exemplos disso, porm sempre citados de

    forma indireta. Como quando o mdico analisa a Doena de Soduku, decorrente da mordida

    de rato e narra as condies de vida da menina que fora mordida. Ela tinha 11 anos e

    trabalhava de empregada domstica na casa de um advogado em Curitiba a onde fora

    mordida. Sua famlia era de origem polaca e continuava morando em Ponta Grossa, onde

    eram agricultores.70 Tambm a vida dos homens moradores do Alto e Baixo Paran descritos

    como ausentes por estarem trabalhando na coleta e transporte do mate. Eram homens,

    mulheres e crianas, todos sujeitos de sua prpria sobrevivncia cotidiana, porm narrados

    como objetos de interveno.

    E os outros saberes? Souza Araujo transcreveu o relatrio de lvaro Lobo sobre

    Tomazina: No s a gripe vitimou enormemente a populao sertaneja, tambm os

    curandeiros e raizeiros, bem como prticas de farmcia audaciosos e incompetentes

    aumentaram extraordinariamente o coeficiente de mortalidade, chegando a tal imbecilidade

    muita vez s raias do assassnio puro e frio.71 Os saberes saneadores populares so assim

    ou culpabilizados pela piora do caos higinico j existente, como no caso da Gripe, ou

    silenciados. Contra esse silncio pode-se recordar a fala sobre Foz do Iguau como um local

    de total caos na viso do mdico, mas que por outros documentos pode-se saber que ali

    residia a senhora Joana Rosa, descrita como algum de grande conhecimentos sanadores,

    inclusive salvando a vida de militares alocados na Colnia Militar de Foz.72 Tambm as

    formas indgenas de profilaxia das doenas, descritas no relatrio, mas no consideradas

    como tal. Nesses pequenos fragmentos da vida dos outros, a heteronomia das populaes

    rurais se dissolve, transforma-se em uma iluso de tica, talvez uma farsa. De longa

    69

    FOUCAULT, M. O que so as luzes? In:______. Arqueologia das Cincias e Histria dos sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II) 2 ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2005, p. 341- 349. 70

    SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., p. 314. 71

    Idem, p. 125-126. 72

    Ver novamente: MYSKIW, Antonio Marcos. A Fronteira como Destino de Viagem: A Colnia Militar de Foz do Iguassu. Tese (Doutorado em Histria). Niteri: UFF, 2009.

  • Julho-dezembro de 2012

    123 BEATRIZ ANSELMO OLINTO

    permanncia, mas ainda uma farsa.

    para encontrar caminhos para essa proposta que se reflete mais uma vez sobre a

    Profilaxia Rural. Essa, como um dispositivo de conhecimento, constituiu bem intencionados

    procedimentos produtores de novos sujeitos, mas foi tambm um projeto de heteronomia.

    Eis a sua tragdia, querer dessujeitar o outro em nome de uma nova sujeio, mas produzir

    apenas sujeitos espectrais. Retornando a Giorgio Agamben, os viventes encontram os

    dispositivos entendendo-se esses como: Qualquer coisa que tenha de algum modo a

    capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os

    gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes.73

    Se a vida e as pessoas envolvidas no projeto profiltico so compostas como

    sujeitos espectrais e os prprios processos de subjetivao eram essenciais para a

    construo de possibilidades de integrao poltica, a prpria motivao primeira da

    interveno profiltica, a saber, a inveno de um estado-nao, teria como resultado

    apenas sujeitos fantasmas e, assim, o palco poltico composto permanecer vazio.

    Seguindo as reflexes de Foucault e Agamben, por uma ltima vez, o dispositivo

    atende a uma urgncia, apresenta-se como estratgia concreta de saberes e poderes74. A

    Profilaxia Rural ser um dispositivo no s pela sua urgncia (aps a construo do rural

    como um problema nacional pelos prprios mdicos), mas tambm pelos seus

    procedimentos para a gesto prtica dos viventes. Pois ela, atravs de sua geografia mdica,

    disps, ao organizar as normas de conduta do viver; situou, ao construir as regies

    endmicas e, tambm, positivou, isto , coagiu, comandou sentimentos e comportamentos.

    nesse sentido que a Profilaxia dessujeitava os viventes ao reproduzir a

    heteronomia e constitu-los como incapazes de autonomia. Assim, o agricultor higinico, ou

    o Paran saneado, bem como, o mdico ilustrado e o guarda sanitrio obediente, so

    visagens de um olhar iludido, capturado por promessas de felicidade e de possibilidades de

    evitar a dor atravs da interveno da razo, de sua tcnica e cincia.

    Nem a ao da Profilaxia Rural atingiu os seus objetivos, nem a zo foi incorporada

    definitivamente a polis. O bem viver continuou o viver. Projetos grandiloquentes no Brasil do

    sculo XX tendiam a ser aplicados apenas de maneira fragmentria e particularista, quando

    no clientelista. O trgico subjacente em todo conhecer se mantinha. O indizvel, o

    imprevisvel, o inclassificvel permanece na complexidade da vida cotidiana.

    ____________________ Recebido em 05/08/2012

    Aceito para publicao em 01/10/2012

    73

    AGAMBEM. O que o contemporneo? Op. cit., p. 40. 74

    AGAMBEM, op. cit., p. 29.