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T R A D U Ç Ã OL Í G I A A Z E V E D O

K R I S T I N C A S H O R E

jane,sem limites

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título original Jane, Unlimited© 2017 by Kristin Cashore© 2018 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

edição Fabrício Valério e Flavia Lago editora-assistente Natália Chagas Máximopreparação Ana Lima Cecíliorevisão Flávia Yacubiandireção de arte Ana Soltdiagramação Pamella Desteficapa Pamella Destefiimagens de capa © Tijana Moraca / Trevillion Images; © Bedneyimages / Freepik;

© Iakov Filimonov / Shutterstockimagens de miolo © luis_molinero / Freepik; © Kjpargeter / Freepikmapas © Ian Schoenherr

Todos os direitos desta edição reservados à

VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866plataforma21.com.br | [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cashore, KristinJane, sem limites / Kristin Cashore; tradução Lígia Azevedo. – São Paulo: Plataforma21, 2018.

Título original: Jane, unlimited.ISBN 978-85-92783-57-0

1. Ficção juvenil 2. Suspense – Ficção I. Título.

18-13048 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

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sumário

Tu Reviens ............................................................................................13

A obra de arte desaparecida ...............................................................97

Mentiras sem limites ..........................................................................179

Em que alguém perde uma alma e Charlotte encontra uma ...........267

Jane, sem limites .................................................................................325

O vira-caça, a menina e o quadro .....................................................379

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tu reviens

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A casa à beira do penhasco parece um barco desapare-cendo na neblina. O pináculo, um mastro; as árvores chicoteando contra sua

base as ondas de um mar revolto.

Ou talvez Jane só esteja com barcos na cabeça, já que está dentro de

um que faz tudo o que pode para prender sua atenção. Uma onda atinge o

iate, fazendo o equilíbrio dela vacilar. Jane senta, aterrissando triunfante nas

proximidades de onde pretendia. Outra onda a joga em câmera lenta contra

a janela panorâmica do iate.

– Eu nunca passei muito tempo num barco. Imagino que você deva se

acostumar – ela diz.

Sua companheira de viagem, Kiran, está deitada de costas no assento

sob a janela, com os olhos fechados. Ela não está enjoada. Está entediada.

E não dá nenhuma indicação de ter ouvido Jane.

– Deve ter sido assim com tia Magnolia – continua Jane.

– Minha família me dá vontade de morrer – Kiran diz. – Espero que a

gente se afogue.

O nome do iate é Kiran.

Pela janela panorâmica, Jane vê Patrick, que capitaneia o iate, no deque

sob a chuva, encharcado, tentando pegar o cunho de amarração. Ele é jovem,

deve ter vinte e poucos, o cabelo curto escuro, pele branca bronzeada e olhos

azuis tão brilhantes que Jane os notou de imediato. Alguém deveria estar

esperando na doca para ajudá-lo, mas não apareceu.

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– Kiran? – Jane chama. – Será que devemos ajudar Patrick?

– Ajudar a quê?

– Não sei. A atracar.

– Está de brincadeira? – Kiran pergunta. – Patrick pode fazer tudo sozinho.

– Tudo?

– Ele não precisa de ninguém – Kiran garante. – Nunca.

– Tá – Jane diz, imaginando se é só seu sarcasmo de sempre se expres-

sando ou se ela tem algum problema específico com Patrick.

Às vezes é difícil saber com alguém como Kiran.

No convés, Patrick consegue pegar o cunho. Com o corpo tenso, ele puxa

a corda com os dois braços e aproxima o iate da doca. É meio impressionante.

Talvez ele possa mesmo fazer tudo sozinho.

– E qual é a do Patrick, aliás?

– O nome dele é Patrick Yellan – Kiran diz. – Cresceu comigo e com Ravi,

e agora ele e a irmã caçula, Ivy, trabalham para o meu pai. Os pais também tra-

balhavam, mas morreram anos atrás num acidente de carro na França. Desculpa

– ela acrescenta, olhando para Jane. – Não queria te fazer pensar em acidentes.

– Tudo bem – Jane diz automaticamente, juntando os nomes e fatos às

demais informações que conseguiu.

Kiran é inglesa de origem americana por parte de pai e indiana por

parte de mãe. Os dois se divorciaram e o pai se casou de novo. Ela é revol-

tantemente rica. Jane nunca havia tido uma amiga que crescera com empre-

gados. Kiran é minha amiga?, ela pensa. Conhecida? Talvez mentora? Talvez

agora não, mas no passado. Era quatro anos mais velha que Jane e tinha ido

fazer faculdade na cidade em que ela morava. Tinha dado aulas particulares

de escrita para Jane, que estava no ensino médio.

Jane sabe que Ravi é o irmão gêmeo de Kiran. Nunca o conheceu,

embora ele às vezes visitasse a irmã na faculdade. As aulas particulares eram

diferentes quando Ravi estava na cidade. Kiran chegava atrasada, com o rosto

iluminado, os modos menos rigorosos, menos intensos.

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– Patrick é o único responsável pelo trajeto de ida e volta para a ilha? –

Jane pergunta.

– Acho que sim – Kiran diz. – Pelo menos de uma parte. Tem outras

pessoas envolvidas.

– Ele e a irmã moram na casa?

– Todo mundo mora na casa.

– E é bom voltar? – Jane pergunta. – E poder ver os amigos com quem

você cresceu?

Jane está jogando verde, tentando descobrir como as relações com os

empregados funcionam quando se é tão rico.

Kiran não responde de imediato, só olha para a frente, apertando os

lábios. Jane imagina se sua pergunta foi indelicada.

Então a outra diz:

– Acho que houve um tempo em que ver Patrick de novo, depois de

uma longa ausência, fazia eu sentir que estava voltando para casa.

– Ah – Jane diz. – E não mais?

– É complicado – Kiran diz, com um leve suspiro. – E é melhor não

falar disso agora. Ele pode ouvir.

Patrick precisaria ter superpoderes para ouvir essa conversa, mas Jane

sabe reconhecer uma despistada de assunto quando vê uma. Através da janela

e da chuva forte, ela vê as formas vagas de outros barcos, pequenos e grandes,

ancorados na baía diminuta. O pai de Kiran, Octavian Thrash IV, é dono

dos barcos, da baía, da ilha ao largo da costa leste, das árvores ao vento, da

mansão ao longe.

– Como vamos chegar à casa? – Jane pergunta, sem divisar uma estrada.

– Vamos nadando na chuva, como mergulhadoras?

Kiran bufa, e surpreende Jane ao lhe lançar um sorrisinho de aprovação.

– De carro – ela diz, sem explicar. – Eu estava com saudades desse seu

jeito engraçado de falar. E das suas roupas.

A blusa com padrão em zigue-zague dourado de Jane e a calça vinho

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de veludo cotelê fazem com que pareça uma das criaturas marinhas de tia

Magnolia. Um peixe-palhaço-castanho ou uma garoupa-de-rolo. Jane nunca

se veste sem pensar na tia.

– E quando é o baile da primavera? – ela pergunta.

– Não lembro – Kiran diz. – Depois de amanhã? Em dois dias? Prova-

velmente no fim de semana.

Há uma festa para cada estação na casa de praia de Octavian Thrash IV.

Esse é o motivo da viagem de Kiran. Ela voltou para a da primavera.

E dessa vez, por algum motivo inexplicável, convidou Jane, ainda que,

até a semana anterior, as duas não se vissem desde a formatura de Kiran, quase

um ano antes. Ela tinha surpreendido Jane na livraria do campus onde traba-

lhava quando fora usar o banheiro, como muitos alunos faziam. Presa atrás do

balcão de informações, Jane a viu entrar, com uma enorme bolsa nas mãos e

uma expressão de incômodo no rosto. Com qualquer outro fantasma do passa-

do, o primeiro instinto de Jane seria dar as costas, se esconder atrás dos cachos

escuros, ficar imóvel. Mas a visão de Kiran Thrash levou Jane imediatamente

à estranha promessa que tia Magnolia arrancara dela antes que partisse em sua

última expedição fotográfica.

Ela fizera Jane prometer que nunca recusaria um convite para visitar a

propriedade da família de Kiran.

– Ei – Kiran disse naquele dia, parando no balcão. – Janie. É você.

Ela olhou para o braço de Jane, onde tentáculos de águas-vivas tatuadas

escapavam por baixo da manga da blusa.

– Kiran – disse Jane, tocando o braço por instinto. A tatuagem era

nova. – Oi.

– Você estuda aqui agora?

– Não – Jane disse. – Tranquei o curso. Tirei um tempo para mim

mesma. Trabalho aqui, na livraria – ela acrescentou, o que era óbvio e um

assunto no qual não queria entrar.

Mas Jane tinha aprendido a bater papo, a preencher o silêncio com

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falso entusiasmo, a oferecer seus fracassos como iscas nas conversas, porque

às vezes permitia que evitasse justamente a próxima pergunta que Kiran fez.

– Como está sua tia?

Seus músculos já haviam memorizado o esforço que precisava fazer agora.

– Ela morreu.

– Ah – disse Kiran, estreitando os olhos. – Não foi à toa que você lar-

gou o curso.

Era menos simpática que a reação normal, embora mais fácil de enfrentar,

porque causou certa irritação em Jane.

– Eu poderia ter largado de qualquer jeito. Estava odiando. Os outros

alunos eram uns metidos e eu ia bombar em biologia.

– Com o Greenhut? – Kiran perguntou, ignorando o comentário de

Jane sobre os alunos.

– É.

– Amplamente conhecido como um babaca pretensioso – disse Kiran.

Apesar de seus instintos sugerirem o contrário, Jane sorriu. Greenhut

assumia que os alunos já tinham uma boa base de biologia, o que talvez

fosse justo, porque ninguém parecia ter tanta dificuldade quanto Jane. Mas

tia Magnolia, que havia sido professora adjunta de biologia marinha, não se

segurava para falar dele. “Greenhut é convencido, hipócrita e burro”, dissera

uma vez, desgostosa. “Sem querer ofender Iô e os outros burros. Ele quer se

livrar dos alunos que não fizeram o ensino médio em escolas de elite.” “Está

funcionando”, Jane havia dito na época.

Na livraria, Kiran continuou falando:

– Talvez você acabe indo para outra faculdade, longe daqui. Pode ser

saudável se afastar um pouco de casa.

– É, talvez.

Jane sempre tinha morado na cidadezinha universitária ao norte do

estado, cercada de estudantes aonde quer que fosse. E a matrícula era gratuita

para os parentes de professores. Mas talvez Kiran estivesse certa, talvez Jane

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devesse ter escolhido outra faculdade. Uma pública, onde os outros alunos

não fariam com que se sentisse tão… provinciana. Os alunos ali vinham de

toda parte do mundo e tinham muito dinheiro. Sua colega de quarto tinha

passado o verão no interior da França e, quando descobriu que Jane havia

estudado francês na escola, só queria conversar nessa língua sobre cidades das

quais ela nunca tinha ouvido falar e queijos que nunca havia comido.

Era desorientador participar das aulas a que ela tinha assistido pelas

janelas a vida inteira e se sentir infeliz. Jane acabava passando a maior parte

das noites com tia Magnolia, em vez de no dormitório, sentindo que vivia

uma versão paralela da sua vida, desconfortável em sua própria pele. Como

se fosse uma peça de quebra-cabeça que não se encaixava.

– Você podia estudar arte em algum lugar – Kiran disse. – Você não

fazia uns guarda-chuvas legais?

– Eles não são arte – disse Jane. – São guarda-chuvas. E meio zoados.

– Bom, você que sabe – disse Kiran. – Onde está morando?

– Em um apartamento na cidade.

– O mesmo em que morava com sua tia?

– Não – Jane disse, com uma dose de sarcasmo que provavelmente foi des-

perdiçada com Kiran. Claro que ela não podia pagar pelo mesmo apartamento.

– Moro com três alunos da pós.

– E como é?

– É legal – Jane mentiu.

Seus colegas de quarto eram muito mais velhos e estavam sempre ocu-

pados demais com suas investigações intelectuais elevadas para se importar

em cozinhar, limpar ou tomar banho. Era como viver com o Corujão cheio

de si do Ursinho Pooh, só que com uma higiene pior e em dose tripla. Jane

quase nunca ficava sozinha. Seu quarto não passava de um armário, pouco

propício à customização de guarda-chuvas, que exigia espaço. Era difícil se

movimentar sem bater em algum. Às vezes ela dormia com um trabalho em

andamento no pé da cama.

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– Eu gostava da sua tia – Kiran disse. – E de você também – ela acres-

centou, e então Jane parou de pensar em si mesma e começou a estudá-la.

Alguma coisa nela tinha mudado desde seu último encontro. Kiran

costumava se mover como se estivesse sendo impulsionada por pelo menos

quatro propósitos urgentes ao mesmo tempo.

– E o que te trouxe à cidade? – Jane perguntou.

Kiran deu de ombros, indiferente.

– Estava dando uma volta.

– Onde você mora?

– No apartamento na cidade.

Jane sabia que ela se referia aos dois últimos andares de uma mansão em

Manhattan com vista para o Central Park, bem distante para quem estava só

“dando uma volta”.

– Mas vou voltar à ilha para o baile da primavera – Kiran acrescentou. –

E talvez fique lá por um tempo. Octavian deve estar com um humor daqueles.

– Bom, espero que você se divirta – disse Jane, tentando imaginar como

seria ficar hospedada em uma ilha particular com um pai zilionário com um

humor daqueles.

– E essa tatuagem? – perguntou Kiran. – É uma lula?

– É uma água-viva.

– Posso ver?

A tatuagem, azul e dourada, ficava no antebraço, com tentáculos finos

e espiralados brancos e pretos se estendendo até o cotovelo. Em geral, Jane

usava as mangas dobradas para mostrar mais, porque, secretamente, gostava

que pedissem para ver.

Ela puxou a manga até o ombro.

Kiran olhou para a água-viva sem alterar a expressão.

– Hum – disse apenas. – Doeu?

– Doeu – confirmou Jane.

Ela tinha feito um bico por três meses como garçonete para pagar.

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– É delicada – disse Kiran. – Bem bonita. Quem desenhou?

– É baseada numa foto que minha tia tirou de uma medusa do Pacífico

– disse Jane, com certo prazer.

– Ela chegou a ver a tatuagem?

– Não.

– O tempo pode ser mesmo um cretino – Kiran disse. – Venha, vamos

beber alguma coisa.

– Quê? – Jane disse, assustada. – Eu?

– Depois do trabalho.

– Não posso beber legalmente.

– Compro um milk-shake pra você.

Aquela noite, no bar, Jane falou sobre como pagava aluguel, comida e seguro

de saúde com o salário de um trabalho de meio período em uma livraria;

sobre como às vezes, quando estava distraída, pensava que tia Magnolia só

tinha partido em uma de suas excursões fotográficas; sobre os desvios que

ela se via fazendo para evitar o prédio em que haviam morado. Jane não

pretendia falar tudo, mas Kiran era da época em que a vida fazia sentido. Sua

presença a confundia. Simplesmente saía.

– Pede demissão – Kiran disse.

– E como vou viver? – Jane perguntou, irritada. – Nem todo mundo

pode usar o cartão de crédito sem limite do pai.

Kiran absorveu o golpe sem reagir.

– Você não parece feliz.

– Feliz? – Jane repetiu, incrédula. Kiran continuou a beber seu uísque com

tranquilidade, o que deixou Jane profundamente irritada. – E o que você faz, aliás?

– Nada.

– Bom, e você também não parece exatamente feliz.

Kiran surpreendeu Jane com uma risada.

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– Um brinde a isso – ela disse, então virou o copo, inclinou-se sobre

o balcão, pegou um pote de guarda-chuvinhas e escolheu um azul e preto,

combinando com a camiseta de Jane e os tentáculos de sua tatuagem. Kiran o

abriu com cuidado e girou nos dedos, então ofereceu para Jane, anunciando:

– Para você se proteger.

– Me proteger do quê? – Jane perguntou, examinando o delicado inte-

rior do guarda-chuvinha.

– De bobagens – disse Kiran.

– Nossa – disse Jane. – Então todo esse tempo eu poderia ter impedido

as bobagens com um guarda-chuvinha de drinque?

– Talvez só funcione pra bobagenzinhas.

– Obrigada – disse Jane, tentando sorrir.

– Bom, então, eu não trabalho – disse Kiran, encarando Jane por um

momento e depois desviando os olhos. – De vez em quando tento alguma

coisa, mas nunca consigo. E, pra ser honesta, meio que fico aliviada.

– Qual é o problema? Você tem um diploma. Tirava notas bem boas,

não? E fala umas sete línguas, não é?

– Você tá parecendo minha mãe – disse Kiran, mais cansada que irritada.

– E meu pai, e meu irmão, e meu namorado, e todo mundo com quem já

falei na minha vida.

– Só perguntei.

– Tudo bem – Kiran disse. – Sou uma riquinha mimada que pode se

dar ao luxo de ficar sentindo pena de si mesma pelo desemprego. Entendi.

Foi engraçado, porque era exatamente o que Jane estava pensando.

Mas, agora que Kiran tinha dito, Jane se ressentia menos.

– Ei, não coloca essas bobagens na minha boca. Estou armada – Jane

disse, brandindo o guarda-chuvinha.

– Sabe do que eu gostava na sua tia? – Kiran disse. – Ela sempre parecia

saber o que ia fazer em seguida. A gente sentia que era possível simplesmente

enxergar a escolha certa.

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Sim, Jane tentou responder, mas a verdade daquilo bloqueou sua garganta.

Ela pensou em tia Magnolia e engasgou.

Kiran observou, impassível, a expressão de tristeza de Jane.

– Pede demissão e vem comigo para a Tu Reviens – ela disse. – Fique

por quanto tempo quiser, Octavian não vai ligar. Cara, ele vai até comprar

o que você precisa pros seus guarda-chuvas. Meu namorado está lá, você vai

conhecê-lo. E Ravi. Vamos. O que te prende aqui?

Algumas pessoas são tão ricas que nem percebem quando humilham as

outras. Que valor havia em todo o cuidado que Jane punha deliberadamente

em sua subsistência se o convite indiferente de alguém que era quase uma estra-

nha, nascido do tédio e da vontade de fazer xixi, já a colocava em uma situação

financeira mais confortável?

Mas ela não podia recusar, por causa de tia Magnolia. A promessa.

– Janie, querida – a tia dissera quando a sobrinha acordara surpreen-

dentemente cedo uma manhã e a encontrara na banqueta da cozinha. – Você

já acordou?

– E você também – Jane respondera, um tanto surpresa, considerando

que ela era a insone da família.

Jane apoiara o quadril na beirada da banqueta da tia e se recostou, fe-

chando os olhos e fingindo que ainda dormia. Tia Magnolia era alta, como a

sobrinha, e seus corpos se encaixavam. Colocara sua xícara de chá na mão de

Jane, que sentira o calor nas palmas e nos dedos.

– Você se lembra da garota que te dava aula de escrita? – tia Magnolia

perguntara. – Kiran Thrash?

– Claro – Jane respondera, sorvendo um sonoro gole do chá.

– Vocês alguma vez conversaram sobre a casa dela?

– Aquela com o nome francês? Na ilha do pai?

– Tu Reviens – dissera tia Magnolia.

Jane sabia francês o bastante para traduzir aquilo:

– Você volta.

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– Exatamente, querida – dissera tia Magnolia. – Quero que me prome-

ta uma coisa.

– O quê?

– Que se alguém convidar você para ir lá, vai aceitar – ela dissera.

– Tá – Jane concordara. – Mas por quê?

– Ouvi dizer que é um lugar cheio de oportunidades.

– Tia Magnolia – Jane dissera, suspirando e abaixando a xícara para

encará-la. A tia tinha uma curiosa mancha azul em meio à íris castanha de

um dos olhos, como uma nebulosa ou uma estrela manchada, com seus picos

e raios. – De que diabos você está falando?

Tia Magnolia dera uma risadinha que viera do fundo da garganta, en-

quanto passava o braço em volta de Jane.

– Você sabe que às vezes eu tenho essas ideias malucas.

De fato, a tia era adepta das viagens inesperadas, como acampar em

uma área remota dos lagos Finger, onde pernoitar não era exatamente permi-

tido e nem sequer havia sinal de celular. Elas liam à luz da lanterna, ouviam

as mariposas batendo contra a lona da pequena tenda iluminada e pegavam

no sono ao som dos mergulhões. Então, uma semana depois, tia Magnolia

poderia ir para o Japão fotografar tubarões. As imagens com que voltava im-

pressionavam Jane. Podia ser a foto de um tubarão, mas o que Jane via era tia

Magnolia e sua câmera, em silêncio na água fria, respirando com um tanque

de oxigênio, esperando pela visita de uma criatura que poderia muito bem ser

alienígena, de tão estranhos que eram os habitantes do mundo submarino.

– Você é maluca – Jane dissera. – E maravilhosa.

– Mas não peço que prometa muita coisa, não é?

– Não.

– Então me prometa isso.

– Tudo bem – Jane dissera. – Por você, prometo que nunca vou recusar

um convite para ir à Tu Reviens. Mas por que está acordada?

– Tive uns sonhos estranhos – ela dissera.

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Dias depois, a tia partira numa expedição para a Antártida, fora pega

por uma nevasca quando estava longe do acampamento e morrera congelada.

O convite de Kiran trazia tia Magnolia para perto de um jeito que nada

nos últimos quatro meses tinha conseguido.

Tu Reviens. Você volta.

É desconfortável estar tão longe de casa, com todas as suas ansiedades

costumeiras substituídas por novas. Octavian saberia que a filha convidou

Jane? E se ela ficar de vela depois que Kiran encontrar o namorado? Como se

deve agir com pessoas que têm iates e ilhas particulares?

Dentro do Kiran, com a chuva caindo forte do outro lado da janela, Jane

procura respirar fundo, devagar e constantemente, como tia Magnolia a ensinou.

“Vai ajudar quando for aprender a mergulhar”, ela costumava dizer

quando a sobrinha era pequena, com cinco, seis ou sete anos. No entanto, as

aulas de mergulho nunca se materializaram.

Inspira, Jane pensa, focada na barriga expandindo. Expira. Ela sente o

torso abaixar. Olha para a casa, flutuando acima deles na tempestade. Tia

Magnolia nunca se preocupava. Só seguia em frente.

Jane de repente se sente como uma personagem de um romance de

Edith Wharton ou das irmãs Brontë. Sou uma jovem de meios reduzidos, sem

parentes ou perspectivas, convidada por uma família rica para sua propriedade

glamourosa. Pode ser o início da minha jornada heroica?

Ela vai precisar escolher um guarda-chuva apropriado para isso. Será que

Kiran vai achar esquisito? Há algum que não seja constrangedor? Jane se ajoe-

lha para abrir uma de suas caixas e dá de cara com a escolha perfeita. O cetim

do pequeno guarda-chuva alterna marrom-escuro com rosa-acobreado. A es-

trutura é de latão antigo, mas forte. Ela poderia empalar alguém com a ponta.

Jane o abre. O mecanismo range, os arames parecem distorcidos e o

tecido se estende desigual.

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É só um guarda-chuva torto e idiota, ela pensa, segurando as lágrimas.

Por que estou aqui, tia Magnolia?

Patrick enfia a cabeça no compartimento. Seus olhos piscam para Jane,

então se concentram em Kiran.

– Estamos atracados, Kir – ele diz. – O carro já está esperando.

Kiran se levanta sem nem olhar para o rapaz. Então, enquanto ele volta

para o deque, ela o observa pela janela, descarregando caixas de madeira nos

ombros. Os olhos de Patrick encontram os dela, mas Kiran desvia o rosto.

– Pode deixar suas coisas – ela diz a Jane sem dar muita importância

àquilo. – Patrick vai levar depois.

– Tá – Jane concorda, com a certeza de que há algo entre Patrick e Kiran.

– E quem é seu namorado, aliás?

– Ele chama Colin e trabalha com meu irmão. Vocês já vão se conhecer.

Por quê?

– Por nada.

– Você fez esse guarda-chuva? – Kiran pergunta.

– Fiz.

– Imaginei. É a sua cara.

Claro que sim. Caseiro e esquisito.

As duas saem na chuva. Patrick estende a mão firme para Jane, mas ela

segura em seu antebraço sem querer. Ele está ensopado. Patrick Yellan, Jane

nota, tem braços lindos.

– Cuidado – Patrick diz em seu ouvido.

Em terra firme, Kiran e Jane correm para um carro preto enorme na doca.

– Foi Patrick quem me chamou para vir para o baile – Kiran grita na chuva.

– Quê? – grita Jane, afobada. Ela tenta proteger Kiran com o guar-

da-chuva, o que acaba fazendo um rio de água gelada escorrer no próprio

pescoço. – Sério? Por quê?

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– Vai saber. Ele disse que precisa me confessar uma coisa. Sempre faz

uns anúncios assim, e aí não diz nada.

– Vocês… são próximos?

– Para de tentar me proteger da chuva – Kiran diz, abrindo a porta do

carro. – Só estamos nos molhando mais.

Então há uma estrada que começa na baía e contorna a base da ilha em

sentido horário, até subir gradualmente o penhasco em uma série de curvas

em ferradura.

Não é uma viagem tranquila com o Rolls-Royce na chuva; o carro parece

grande demais para fazer as curvas sem escapar um pouco da pista. A motorista

tem cara de buldogue e dirige como se tivesse que pegar um trem. Grisalha,

com olhar duro, pele clara e maçãs do rosto pronunciadas, usa legging e cami-

seta pretas e um avental com manchas de comida. Ela encara Jane pelo retro-

visor. A garota estremece, inclinando a cabeça para que os cachos indomados

escondam seu rosto.

– Por que está de avental, sra. Vanders? – Kiran pergunta. – Estamos

com pouco pessoal de novo?

– Um grupo que não era esperado acaba de chegar – ela explica. –

O baile da primavera é depois de amanhã. Cook está enlouquecendo.

Kiran recosta a cabeça no apoio do assento e fecha os olhos.

– Quem chegou?

– Phoebe e Philip Okada – a sra. Vanders diz. – Lucy St. George…

– Assim meu irmão me mata – Kiran diz, interrompendo.

– Ele próprio ainda não apareceu – a sra. Vanders diz, com certo peso.

– Que choque – Kiran diz. – Estamos esperando algum ladrão de banco?

A sra. Vanders grunhe e diz:

– Imagino que não.

– Ladrão de banco? – Jane pergunta.

– Bom – Kiran prossegue, ignorando-a –, eu avisei que minha amiga

viria, então espero que haja um quarto só para ela. Janie precisa de espaço.

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– Reservamos a suíte vermelha na ala leste, com um escritório adjunto que re-

cebe o sol da manhã – a sra. Vanders diz. – Infelizmente, não tem vista para o mar.

– É longe de mim – Kiran reclama. – E perto do Ravi.

– Bom – a sra. Vanders diz, subitamente abrandando a expressão –,

ainda temos sacos de dormir, se quiserem ficar todos juntos. Você, Ravi e

Patrick gostavam de fazer isso quando crianças, lembra? Ivy era pouco mais

que um bebê e implorava para ficar com vocês.

– Tostávamos marshmallows na lareira do quarto de Ravi – Kiran explica

para Jane. – O sr. Vanders e Octavian não tiravam os olhos de nós, certos de

que íamos nos queimar.

– Ou incendiar a casa – completa a sra. Vander.

– Ivy se enchia de doce e acabava dormindo logo – Kiran diz, saudosa.

– E eu dormia entre Ravi e Patrick em frente à lareira.

As memórias vêm, muito nítidas. Memórias têm vontade própria. Ficar

sentada com tia Magnolia na poltrona vermelha, ao lado do radiador que

estalava e assoviava. Liam os dois primeiros livros do Ursinho Pooh. “Eu vou

numa expedição!”, tia Magnolia dizia quando Christopher Robin liderava

uma ao Polo Norte. Às vezes, se a tia estivesse cansada, as duas liam em si-

lêncio, lado a lado. Jane tinha cinco, seis, sete, oito. Se tia Magnolia tivesse

colocado meias na secadora, o ar cheirava a lã.

O carro se aproxima dos fundos da casa, vai até a frente e para na garagem.

Não é mais um barco esse lugar que Jane agora vê tão de perto. É um palácio.

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