Sem Medo Do Passado

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8/6/2019 Sem Medo Do Passado http://slidepdf.com/reader/full/sem-medo-do-passado 1/163 Sem Medo do Passado Warrior of the Highlands Verônica Wolff Escocia, 1646 Um heroi do passado... Durante as pesquisas para seu trabalho de conclusão de curso, Haley Fitzpatrick se depara com um estranho artefato que a manda de volta no tempo para a Escocia do seculo 17, e para o caminho do notorio Alasdair MacColla, um guerreiro com uma presença impressionante e uma reputação sanguinaria... Um amor do presente... Deduzindo que aquela mulher com sotaque estranho é uma espiã inimiga, MacColla trata de rapta-la. Porem , a sua beleza e a coragem de Haley despertam no guerreiro um desejo que ele até então desconhecia... A principio, Haley fica apavorada diante de seu imponente raptor, mas logo ela descobre que MacColla é muito mais do que o bruto descrito nos livros de História, e compreende que ele é o homem da sua vida. Entretanto, a menos que ela consiga descobrir um meio de mudar o passado, o guerreiro por quem ela se apaixonou esta destinado a ter uma morte tragica... Digitalização e Revisão: Crysty

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Sem Medo do PassadoWarrior of the Highlands

Verônica Wolff 

Escocia, 1646

Um heroi do passado...Durante as pesquisas para seu trabalho de conclusão de curso, Haley

Fitzpatrick se depara com um estranho artefato que a manda de volta no tempopara a Escocia do seculo 17, e para o caminho do notorio Alasdair MacColla, um

guerreiro com uma presença impressionante e uma reputação sanguinaria...Um amor do presente...Deduzindo que aquela mulher com sotaque estranho é uma espiã inimiga,

MacColla trata de rapta-la. Porem , a sua beleza e a coragem de Haleydespertam no guerreiro um desejo que ele até então desconhecia...

A principio, Haley fica apavorada diante de seu imponente raptor, maslogo ela descobre que MacColla é muito mais do que o bruto descrito nos livrosde História, e compreende que ele é o homem da sua vida. Entretanto, a menosque ela consiga descobrir um meio de mudar o passado, o guerreiro por quemela se apaixonou esta destinado a ter uma morte tragica...

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

Querida leitora,

Quando o temido guerreiro Alasdair MacColla encontra uma mulher misteriosa emmeio à incursão ao castelo de seu inimigo, ele desconfia que ela seja uma espiã. Porém,

logo se dá conta de que, além de encantadora, é uma moça corajosa, diferente dequalquer uma que ele ja conheceu, e seu coração passa a bater mais forte por ela. Haley não sabe por que, mas algo a transportou de volta no tempo para o século XVII. Aos  poucos, convivendo com aquele famoso herói do passado, que começa a amar, eladescobre que o destino a enviou até lá por um motivo...

Leonice Pompônio Editora

Copyright © 2009 por Verônica Wolff Originalmente publicado em 2009 pela Berkley Publishing Group

PUBLICADO SOB ACORDO COM PENGUIN GROUP INC.

NY,NY-USATodos os direitos reservados.Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas

ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: WARRIOR OF THE HIGHLANDSEDITORA Leonice PomponioASSISTENTES EDITORIAIS

Patrícia ChavesVânia Canto Buchala

EDIÇÃO/TEXTO

Tradução: Gabriela MachadoCopidesque: Paula RottaRevisão: Patrícia ChavesARTE Mônica Maldonado

MARKETING/COMERCIAL Andréa RiccelliPRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi

PAGINAÇÃO Ana Beatriz PáduaCopyright © 2009 Editora Nova Cultural Ltda.

Rua Paes Leme, 524 — 10° andar — CEP 05424-010 — São Paulo — SPwww.novacultural.com.br 

Impressão e acabamento: RR Donnelley

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Prólogo

Campbell olhou para a mulher. Parecia uma criatura maltratada e murcha, apesar denão ser muito mais velha do que ele, com seus quarenta e três anos. O luar destacavaumas poucas mechas brancas que estriavam seus cabelos ruivos e, embora o corpoestivesse curvado, os músculos esticavam-se, finos e tensos, sobre os ossos.

Ele se remexeu. Os membros de seu clã ficariam horrorizados com tal magia negra,mas o temor que ele sentira no início estava se dissipando, e a curiosidade aumentava acada minuto que passava. Pena estar sentado no chão como um camponês; suas costasdoíam, e pedrinhas se enterravam em suas palmas cada vez que ele ajeitava o peso nosolo gelado.

O modo reservado da mulher plantara a semente da dúvida em sua cabeça; seriaela realmente alguém a se temer, ou era apenas uma velha senhora esperta, perita emseparar os homens de suas bolsas?

Campbell só conseguia vê-la de relance. Os olhos dela focavam-se em um lugar àdistância e não se dignavam a pousar sobre ele, piscando como se ela fosse cega, emboraele soubesse que não era. Movia-se como um gato no escuro, e ele percebeu por que asbruxas escolhiam esse animal como bichos de estimação. Veria se, aquela Finola tinhapoderes. E a queimaria ele mesmo, se não fosse a feiticeira que proclamara ser.

Finola. Sua pele arrepiou-se. Campbell sabia que o nome significava "sombrabranca", e isso provocava imagens íntimas e indesejadas em sua cabeça. Fragmentos de

pele cor de marfim. A cascata de cabelos ruivos sobre um ombro pálido.Desvencilhou-se do devaneio. Talvez fosse a magia negra em ação. Talvez ela

tivesse o poder de mudar de forma para o de alguma companheira diabólica do próprioLúcifer. Sem pensar, cuspiu na fogueira ritual para exorcismar os pensamentos.

O olhar de Finola ergueu-se de chofre para encontrar o dele. A luz das chamas, aspupilas verde-amareladas reluziram, e Campbell imaginou ver uma fagulha maligna ali,como uma sombra oleosa deslizando logo abaixo da superfície. Antes, queria vê-la decabeça erguida e, agora, só queria que ela desviasse os olhos.

Sua voz vibrou na escuridão. Qualquer coisa para quebrar o sortilégio que oenregelava até os ossos.

— Quando vai começar, mulher?

O olhar sinistro recuou como uma membrana retrátil, e o que restou foi somenteFinola e encará-lo com indisfarçável desgosto.

— Você anseia por seu inimigo como uma criança mimada. Sua impaciênciatransforma em trabalho muito penoso uma tarefa simples.

Ele franziu os lábios. Impaciência... era isso mesmo. Havia uma tarefa a ser feita, eele não precisava ouvir reprimendas de uma bruxa.

Seu clã mantinha uma rixa de longa data contra o clã MacDonald. Porém, fora

Alasdair MacColla quem erguera as lanças, usando as batalhas do reino como desculpapara encharcar o solo escocês com o sangue de incontáveis filhos dos Campbell.

E era MacColla que ele haveria de destruir.

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— Paguei-lhe um bom dinheiro para me ajudar a arruiná-lo.

A bravata de Campbell defrontou-se com um silêncio impenetrável. A bruxasimplesmente virou-se para o trabalho, usando os polegares para moldar os toques finaisde uma figura de barro à sua frente.

— Você quer MacColla — disse ela, por fim. — E aqui está ele. — Afastou-se para

revelar uma efígie rústica feita de barro das Terras Altas, amassado numa representaçãode um homem sem face. — O corp creadha. O corpo em barro de seu inimigo MacColla. —A mulher pegou um punhado de sedosos fios negros de uma bolsa à cintura e enfiouchumaços na cabeça da imagem de argila. — O cabelo da irmã lembra o homem. — Entãoesticou o braço como uma cobra, para agarrar a mão de Campbell, cortando-lhe a palmacom uma pequena lâmina de aço.

— Como ousa...

— Vai calar sua língua, ou garantirei seu silêncio. — Pela segunda vez, os olhos dabruxa encontraram os dele.

A boca de Campbell ressecou-se. Os primeiros vestígios de verdadeiro pavor o

invadiram, enregelando seu sangue. Ele precisava lembrar-se de seu objetivo ali. Lembrar-se do que estava prestes a fazer. Era um homem de posição que poderia liquidar comaquela Finola apenas com uma palavra. E usaria o que quer que precisasse, inclusive ela,para arruinar MacColla de uma vez por todas.

A velha falou de novo, mas, dessa vez, sua voz soou oca, sobrenatural.

— Viemos pela noite até um local onde três riachos se encontram.

Àpertando-lhe a mão com força surpreendente, Finola puxou Campbell para pertodo corp creadha, pingando o sangue que lhe escorria da palma sobre o orifício dos olhosna argila.

— Que o inimigo veja o sangue de seu ódio.Ela tirou da manga da capa um osso descarnado da espádua de um cordeiro.

— Vamos pôr  o feitiço no coração de seu inimigo. — A luz do fogo lambeu emsombras vermelhas a superfície do osso, colocado no torso da figura de barro. — Que oinimigo sinta a lâmina de sua vingança.

O poder subiu numa descarga pela espinha de Campbell, dissolvendo suaapreensão. Ele desfecharia o golpe mortal em MacColla e no clã MacDonald. A lâmina desua vingança.

A mulher pegou uma tenaz do chão e começou a tirar seixos rolados da fogueira,

colocando-os um por um em torno da efígie.— Que o inimigo queime nas chamas de sua destruição.

Sim, queime, MacColla. Campbell o aniquilaria. Seus clãs se hostilizavam haviagerações, por causa de terra e poder. Más com a guerra que agora devastava a Irlanda eas Terras Altas, a rivalidade se tornara algo maléfico. Algo sanguinário. Queime.

Campbell livrara o oeste da maioria dos vermes MacDonald. Aprisionara o pai e oirmão de MacColla e, embora os dois estivessem livres agora, ele os exilara do resto do clãpara a Irlanda.

Porém, subestimara o filho do meio. MacColla voltara para buscá-lo, farejando-o

como um cão, procurando vingança. Chegara às suas terras em Inveraray, saqueandoseus domínios e matando seus parentes. E Campbell jurara destruir MacColla de uma vezpor todas.

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Mas, primeiro, ele o veria sofrer.

Finola inteiriçou-se. Com um hausto profundo, revirou os olhos e cambaleou,arfante. Balançando-se para trás e para a frente, entoou:

 Amortalhada pelo escuro da noite, Invoco os elementos. Ouvi-me. Pelo sangue domeu inimigo...

Cantando e tremendo, passou a mão pela coroa de argila na cabeça da imagem.Concedei-me o domínio sobre o fogo, Concedei-me o domínio sobre o vento,

Concedei-me o domínio sobre a terra. Concedei-me o domínio sobre a água.

Campbell estava inquieto outra vez. Que a mulher usasse o seu sangue naqueleritual o perturbava, e sua mão tateou em busca do punhal.

A incerteza o incomodou. Seu clã não gostaria de saber a que ponto ele chegara. Amagia negra era temida nas Terras Altas, è ele jamais conhecera alguém que a tivesseusado. Seus nobres pares das Terras Baixas simplesmente pediriam sua cabeça sedescobrissem que ele se envolvera com tamanha abominação demoníaca.

Eu me banharei no fogo lustral, Eu me banharei em lagos de vinho.Às mãos da feiticeira balançavam-se em cima das chamas, puxando a fumaça

cinzenta para o peito. Então, ela encheu as palmas em concha de terra e água e jogou-asno fogo, que assobiou zangado, lançando plumas de fumaça branca pela noite. Campbelltirou um lenço do bolso do casaco, cobrindo a boca e o nariz para impedir o corpo de inalar tal malefício.

Eu me banharei nas lágrimas das mães, Eu me banharei em rios de sangue.

Fagulhas brancas saltaram das chamas e rodopiaram em torno deles antes de seextinguirem em negrura. Campbell recuou, encolhendo-se, olhando ao redor com horror epânico, as mãos finalmente se fechando no cabo da arma.

Finola levantou-se de repente, e as labaredas subiram com ela. Campbell soltou opunhal, murmurando uma prece conforme se afastava da fogueira.

O branco dos olhos da bruxa encheu as órbitas e brilhou num tom cinzentosobrenatural. A voz passou a um timbre mais alto, suplicando num lamento inumano:

Vossa arte, a amada meia-noite,

Vossa arte, o cisne negro,

Vossa arte, o príncipe da noite,

Escutai-me e concedei-me domínio sobre as

estrelas.

A bruxa caiu de joelhos e fitou o fogo. O centro azul incandescente inchou-se e oápice dividiu-se no que parecia um milhar de pontas amarelas, todas lambendo edançando num frenesi. A mulher se reclinou como se fosse respirar as chamas paraacolher o fogo pelo nariz e pela boca.

Aquilo fora longe demais. Campbell tinha de detê-la antes que ela evocasse opróprio demônio. Estendeu a mão, sentiu o calor das chamas, e a umidade do suor da mu-lher irradiou-se para seus dedos. Um gesto, e a empurraria para a fogueira, batizando-acom fogo, como qualquer bruxa deveria ser batizada. Era hora de voltar atrás, de optar por 

um caminho diferente do Mal. O corpo da mulher queimaria, e ninguém saberia de seuflerte com as artes negras.

Com os olhos lacrimejando, os lábios finos e secos partidos num sorriso, ela

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murmurou:

— Eu vejo.

Campbell puxou o braço para trás. Sentiu a serenidade repentina de Finola comouma brisa fresca. E encontrou sua própria determinação. Usaria os poderes da mulher apenas daquela vez. E esperaria. A hora da morte da mulher chegaria.

Finola pegou uma tábua do chão sem olhar.— Assim seja — disse, com voz rouca, e começou a murmurar um sortilégio.

O pequeno punhal faiscou conforme ela riscava e entalhava o quadrado de madeira.Indiferente ao calor, ela apanhou um punhado de gravetos chamuscados da beirada dofogo e usou-o para traçar linhas e círculos no painel. Trabalhava depressa, como se emtranse, rabiscando formas que lentamente se revelaram figuras.

— Chamo para o seu lado aquela que pode destruir MacColla. — Finola jogou opedaço de madeira diante de Campbell e, dessa vez, ele não recuou. O painel mostrava aimagem de um homem robusto com uma mulher ao lado, desenhados em cinza e preto. —Chamo a mulher que será a esposa dele.

Capítulo I

Boston, dias atuais.

Haley esfregou o dedo sobre a lâmina e virou-a na mão. Aquela era a arma maisestranha em que já pusera os olhos.

Quem fora o homem que a empunhara?, perguntou-se, projetando a mente paraoutra época. Cerca de 1675, o catálogo dizia. O sangue de quem fora derramado?

Os padrões de filigranas em sua base permaneciam nítidos, mas a beirada da facaestava denteada pela corrosão. Sem poder resistir, Haley tocou hesitante a polpa dopolegar na ponta da lâmina, e arquejou quando sentiu a picada. Levou o corte à boca,sentindo o cheiro amargo do aço que se agarrara à sua palma.

Outra lâmina, mais afiada e mais fria, invadiu-lhe os pensamentos. Fazia anosagora, mas, num piscar de olhos, Haley estava de volta ao passado, revivendo o momentoque a transformara para sempre.

Correu o dedo pela cicatriz, esfregando-a de leve, O tecido era insensível, e elaquase podia imaginar que não fazia parte de seu corpo. Mesmo assim, nunca conseguia seesquecer dele. Como nunca se esqueceria daquele outro punhal comprimido com força emsua garganta.

Inale profundamente, exale depressa. A respiração limpa a mente, ela podia ouvir seu pai dizer. Ele a ajudara muito após o ataque, usando a experiência e a força de

vontade para trazer a filha de volta das trevas que a haviam envolvido.Um sorriso surgiu em seus lábios ao pensar no pai. O amor de sua família a

trouxera de volta, mas fora o treinamento de seu pai na academia de polícia, influenciado

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por um pouco da velha e boa briga de rua do sul de Boston, que ajudara Haley a controlar a sensação de vulnerabilidade que a paralisara.

Droga! Ela precisava pensar em sua dissertação, e não ser desviada do caminhopor uma arma. Colocou a estranha adaga de volta sobre a mesa e pegou um elástico dopulso para prender os cabelos para trás. Fora ao museu naquele dia em busca deinspiração, e Sarah a deixara no depósito do segundo andar para examinar quais dos pou-

cos artefatos poderiam ser relevantes num tópico sobre a Grã-Bretanha do século XVII.O orientador a ameaçara, dizendo que ela corria o risco de perder seu salário de

professora. Ela estava no programa de graduação fazia quatro anos agora, e emboradesse um jeito de esticar um capítulo aqui e ali, precisava estabelecer a diretriz do trabalhoe concluí-lo.

Haley puxou o elástico com força e prendeu a massa rebelde de cabelos no lugar.Precisava de algo novo. Algo que rendesse um ou dois artigos num periódico especializadoe a tirasse do sufoco por algum tempo.

O dr. Clark estava prestes a perder a paciência.

O interesse de Haley por armamento pré-moderno não ajudava no conteúdo,desviando-se perigosamente, para o que ele considerava teoria militar. E, com a bolsa deestudos dos departamentos de História e Línguas Celtas, ela não tinha escolha a não ser posicionar-se como uma pura historiadora da era da Reforma escocesa. Ponto-final. Por mais que, em vez disso, preferisse estudar antigas espadas de lâminas largas.

Resmungando um impropério, ela pegou a arma de cima da mesa, inclinou-se paratrás da cadeira e esticou as pernas à frente. A peça era maravilhosa. E, inexplicavelmente,estava enterrada nos fundos dos arquivos do museu, como tantas outras jóias na coleçãode Harvard.

Superficialmente, parecia um simples punhal, elegante, embora robusto. Mas Haley

percebera de imediato para o que estava olhando. Era algo conhecido como "armacombinada", uma criação dos armeiros pré-modernos. Eram armas capazes de múltiplastarefas. Uma lança que disparava balas. Um estojo de caçada com uma pequena pistolanivelada à lâmina do facão. Ela vira certa vez uma elaborada peça de museu que era umaespada, uma bengala, um martelo e um apoio de mosquete, tudo num só artefato.

Muitas das armas combinadas eram deselegantes, exibições ostensivas de riqueza,pouco ou nada confiáveis. Aquela, porém, era impressionante. Só quando a segurara namão é que ela pudera sentir o vazio da lâmina que servia como cano da pistola. E se odono não fosse inclinado a usar balas, a ponta da faca poderia ser destacada e tirada dabase como uma seta de aço letal. O fecho de pederneira, correspondente ao gatilho

detonador, era quase completamente camuflado pela gravação sobre a lâmina e pelasbelas cabeças de cães na cruzeta em forma de "T" acima do cabo.

Haley deslizou a palma da mão ao longo da face chata da lâmina, maravilhada como padrão intrincado. E estremeceu.

O ar-condicionado deveria ter sido ligado. Haley pôs o punhal no colo e vestiu amalha sobre o vestido. Abotoava distraidamente o agasalho quando percebeu... Pegou aarma de novo e examinou o cabo com atenção. Ergueu-o para a luz. Algo estava entalhadona base, e era diferente da filigrana da lâmina.

Relanceou os olhos ao redor, e, vendo que estava sozinha, lambeu o polegar eesfregou-o pelo fundo do cabo. Havia algo gravado ali, oculto pelas manchas pretas.Bafejou o metal e usou a barra do vestido para poli-lo.

A letra "J" apareceu. E, depois, "L.V.E". Era uma inscrição: "Para J". "W" algumacoisa. Poderia ser "with love", "com amor"?

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Céus, quem daria ao ser amado um punhal? Haley lustrou a ponta do cabo, parandosó quando o braço começou a doer.

"Para JG com amor de Ma..."

— Nossa! — ela exclamou, quando seu celular vibrou sobre a mesa.

Com a mão no peito, ela olhou para a mensagem de texto.

Está atrasada. Tire seu traseiro daí. Revirando os olhos, ela resmungou:

— O quê, a cerveja está esquentando?

Enfiou o celular na bolsa, recolheu as anotações e, com um último olhar para opunhal sobre a mesa, saiu da sala.

— Dra. Brawn — Haley disse, com um sorriso largo para uma das restauradoras doFogg Art Museum, de Harvard.

— Dra. Fitzpatrick. — Sarah Brawn retribuiu o sorriso. Ambas sabiam que aindaestavam a anos do cobiçado PhD, mas haviam se encontrado no seminário do primeiroano de faculdade e, compartilhando o amor pela pizza e artefatos peculiares, tinham ficadoamigas.

— Acho que consegui uma idéia para minha dissertação — Haley falou. — Obrigadade novo, a propósito, por sacar aquele punhal para mim. Ajudou a fazer as idéias fluir.Aquelas armas combinadas me deixaram estarrecida.

— Ora, me abalaram também. Achou um título para o trabalho?

— Da Força ao Poder: Armas de Fogo Britânicas e a Forjadura de um Império. — Aentonação de Haley era apropriadamente grandiloqüente. — Sabe, como o surgimento dapólvora possibilitou a eles construir um império. Desse jeito, posso enfocar o século XVII,mas também posso estudar todas aquelas velhas armas de pederneira tão interessantes.

— Essa coisa de pólvora já não foi explorada à exaustão?

— Ei! — Haley exclamou, fingindo tristeza. — Ainda estou trabalhando nisso.

— Quero dizer... ótimo!  — Sarah ficou pensativa por um momento. — Mas forjar realmente soa mais como uma coisa de espada...

Haley ergueu a mão para mudar de assunto.

— Vai se encontrar conosco mais tarde?

— Reunião do clã?

Ela fez que sim, tirando uma echarpe surrada da bolsa para enrolar no pescoço.

— Futebol e cerveja no Paddy's. — Haley sorriu.

— Vocês, Fitzpatrick, são como relógios.

— No que diz respeito a futebol e a meus irmãos? Sim. — Haley ajeitou a pesadabolsa de lona, passando-a sobre a cabeça e pelo ombro. — Vamos, venha comigo. Eu lhepago uma rodada.

— Outra hora. Não estou interessada em ficar com um dos rapazes Fitzpatrick.

— Ei, somos boa gente! — Haley riu. — E os Pats estão jogando.

A amiga sorriu e fez um gesto de adeus, com o nariz já enfiado de volta no livro.

— Doutora! — um coro de vozes gritou quando Haley entrou.

A família de Haley passara a chamá-la de doutora no momento em que ela

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começara a faculdade. Ela olhou ao redor, para todas aquelas fisionomias acolhedoras,deixando os olhos se ajustar à luz. O lugar recendia a cerveja e fritura, e isso trouxe umsorriso à sua face. Ela poderia estar na torre de marfim agora, mas sempre seria do sul deBoston.

Três altos Fitzpatrick estavam ao seu lado num instante, e outros dois acenaram damesa com as canecas de plástico, espirrando cerveja.

Os Fitzpatrick iam ao Paddy's toda semana para assistir aos jogos de domingo.Embora o clã tivesse crescido para incluir alguns amigos, uns poucos primos, uma esposa,duas namoradas e os invariáveis pretendentes que eles tentavam arranjar para a únicairmã, e caçula, ainda por cima, a semelhança familiar entre os irmãos era inconfundível:cabelos escuros e crespos e pele clara, com um corado perpétuo nas faces.

Daniel Júnior, também chamado de Danny Boy, agarrou Haley num abraço, e ocheiro de peixe encheu-lhe os sentidos. Ela ergueu os olhos e sorriu para o irmão maisvelho. Seus cabelos estavam amarrados para trás num rabo de cavalo por causa doemprego temporário como cozinheiro num botequim de frutos do mar. Ele era alto e tinhauma covinha no queixo. Haley não conseguia entender como o mais charmoso dos irmãos

podia estar tão absolutamente solteiro.Colin e Conor, os gêmeos, competiam para chamar a atenção da irmã. Eles haviam

sido os mais encrenqueiros dos seis irmãos, e eram agora os mais assentados do grupo.Um se casara, e o outro estava a caminho disso. Ambos tinham deixado as companheirasem suas mesas para ir até Haley, bagunçar seu cabelo, pegar sua bolsa e tirar a echarpede seu pescoço.

— Vamos lá, bela. — Danny abriu caminho de volta entre os irmãos paradesabotoar o decote da malha ainda fechada no colarinho. —- Solte isso um pouco.

— Uma cerveja vai ajudar! — Gerry berrou, da mesa, erguendo o copo e abrindo um

largo sorriso. À mão livre brincava com o maço de cigarros, que ele não podia fumar ládentro.

— Isso, doutora! Espante o frio! — Jimmy exclamou. Enviou-lhe um sorriso radiantede seu lugar, com o braço ao redor da namorada, Maggie.

Haley teve de rir ao vê-lo: as pontas das orelhas já estavam vermelhas com abebida, acentuadas pelo corte escovinha de oficial de polícia, como o pai.

Nesse momento, o pai se aproximou de Haley, com uma caneca na mão, uma cestade batatas fritas na outra, e inclinou-se para beijá-la na face.

— Estou contente de ver que seu trabalho pôde poupá-la por uma noite.

Mais de quarenta anos haviam se passado desde que saltara do barco vindo de suaDonegal natal, mas ele nunca perdera o caloroso sotaque irlandês.

— E presumo que mamãe esteja jogando bridge esta noite?

A mãe de Haley ficara infeliz ao ver o último dos filhos deixar o ninho e começara ase dedicar a uma série de hobbies. E fora a única a se surpreender quando descobriracomo podia se divertir.

— E onde mais? — Danny levou Haley até uma cadeira.

— Hora de se concentrar, pessoal. — Gerry serviu-se de outra cerveja.

— Gerry apostou vinte dólares na série — Danny disse, olhando para a tevê.— Ele é louco. — Conor olhou para a irmã com atenção. — O que você diz?

Sempre foi boa em sacar as coisas.

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Haley tomou um longo gole de sua cerveja enquanto pensava.

— O Dallas ainda não achou seu jogo — falou, com a mesma gravidade com queabordava seu orientador acadêmico. — Acho que vai ser uma batalha decisiva. Então, sim,concordo com Gerry.

— Escutem! — Jimmy debruçou-se sobre a mesa e roubou o isqueiro da mão de

Gerry. — Ei, atenção, pessoal! — Bateu o velho Zippo de metal do lado do copo.— Eu disse para calarem a boca, seus tontos! — Deu um tapa na cabeça do irmãomais próximo.

— Que diab... — Danny encolheu-se e alisou os cabelos para trás.

— Desculpem, senhoras. — Jimmy ignorou Danny e olhou para as mulheres. —Mas temos um comunicado. Maggie, amor?

A namorada, envergonhada, dirigindo-se a Haley, disse:

— Esperamos você chegar, pois eu queria que fosse a primeira... a primeira aouvir...

— Você terá uma nova irmã! — Jimmy anunciou, e sua voz foi de imediato abafadapelos urras e por alguns gritinhos femininos.

— É mesmo? — Haley inclinou-se para Maggie, feliz. — Tenho de ver o anel.

Colin falou acima do tumulto.

— E quando você vai se tornar uma mulher honesta, doutora?

Haley o chutou por baixo da mesa. Pegou a mão de Maggie e a virou sob â luz,fazendo o pequeno diamante faiscar.

— Oh, rapazes, é lindo!

O rosto meigo de Maggie desabrochou num sorriso. Com os cachos loiros deMaggie e o metro e noventa e cinco de seu irmão moreno, Haley mal podia esperar paraver como seus filhos seriam.

— E olhe — Maggie tirou o anel e virou-o para a luz fraca do bar —, Jimmy sabiameu tamanho, e até mandou gravá-lo para mim.

Haley pegou a jóia, estreitando os olhos para ler a, minúscula inscrição: "Jamesama Maggie".

— O bobo não conseguiu pensar em algo mais criativo — disse Gerry.

— Cale a boca. — Jimmy jogou o isqueiro de volta para o irmão.

— Não. — Haley fitou-os de cara amarrada. — É simples e perfeito. Diz tudo. —Virou-se para Jimmy.

— Adorável.

— Deus os abençoe, crianças — disse o pai.

Nesse instante, um brado irrompeu pelo bar, e todos os olhos voaram para a tela datevê. Os Patriots tinham marcado um gol. Logo, a atenção se concentrava no jogo.

James ama Maggie, Haley pensou, sentindo um calor invadi-la. Tinha os olhos natela, mas sua mente divagava. Outra inscrição, muito mais antiga, veio à sua mente. Quem

dedicaria Um punhal ao ser amado? Para JG com amor de Ma...Não havia muitos nomes começados com "J" na Escócia. Haley vasculhou o

cérebro. Era mais sensato presumir que o destinatário fosse um homem. Talvez John.

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

Bem, era provável que, na Escócia do século XVII, tivesse sido usada a versão gaélica,lain. Então, quem sabe fosse um James Ou Jamie.

Aquele Ma, porém, seria mais difícil de adivinhar. Poderia ser Mairi, Malveen,Margaret, Marsali...

— Ei, Mag! — Haley ouviu Gerry provocar. — Passe o açúcar ao seu cunhado.

Mag.Com amor, de...

— Magda? — Haley disse de repente. O bar caiu num silêncio momentâneo, e todosse voltaram para ela.

— Desculpem. Só estava pensando. — Escondeu o rosto no copo enquanto tomavaum longo gole de cerveja.

— Você precisa se concentrar — Colin a repreendeu.

JG, ela pensou. A esposa de James Graham chamava-se Magdalen.

Mas o punhal datava de 1675. Graham fora enforcado pelo menos vinte anos antesdisso.

Haley meneou a cabeça.

JG poderia ser qualquer um de milhares de homens.

Mas quantos deles teriam os recursos para comprar uma arma tão extravagante?

— Ei, doutora! — Gerry estalou os dedos na frente dela.

— Estou dizendo, ela precisa se concentrar. — Colin meneou a cabeça.

— Hum? — Haley encarou-o com olhos vagos. — Oh, sim! — Remexeu-se na

cadeira, fitando sem ver a tela plana pendurada a um canto.Talvez a peça estivesse datada errada. Mas era uma pistola de pederneira.

Qualquer coisa anterior a 1650 usaria provavelmente um mecanismo de trava de roda.

— Tenho de ir. — Haley levantou-se de repente. Estava começando a ficar maluca.Aquele punhal não poderia ter pertencido ao famoso herói de guerra enforcado emEdimburgo no meio do século XVII. Ela precisava destrinchar a coisa toda, veria se foraMargaret ou Marjory ou Martha quem dera o estranho presente e, depois, se concentrariana dissertação. Assim que descobrisse aquele pequeno mistério.

A frase foi seguida por resmungos, e Danny encarou-a.

— Dá má sorte sair antes do intervalo.— Não vai celebrar com a gente? — Jimmy indagou, hesitante.

— Não, realmente, rapazes, preciso sair à caça de algo.

— Só vai poder ir se estiver se referindo a um aluno daquela sua escola. — Gerryesticou a perna pela lateral da mesa, como se para impedi-la de fugir.

— Pare de vagar por aí e sente esse seu traseiro, doutora! — Conor exclamou.

— Desculpem. — Haley estendeu os braços e deu um grande abraço em Maggie. —Bem-vinda à família.

— Ela vai mesmo embora? — Conor perguntou ao pai, incrédulo.

— Deixem a garota em paz — retrucou o pai. — Ela tem assuntos mais importantesa tratar do que uma simples partida de futebol.

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Haley saiu para o frio, enrolando a echarpe no pescoço, com o som de vaias,palmas e provocações soando às suas costas.

 Argyll, Escócia, 1646 

Os galhos da árvore mal sustentavam seu peso conforme ele a escalava e, mesmo

assim, o vento nas folhas fazia mais ruído que MacColla. Era uma noite sem lua, e eleapertou-se mais ao tronco quando os galhos se tornaram mais finos e mais fibrosos emsua subida. Só quando a copa começou a vergar com o peso, ele viu o telhadomaterializar-se na escuridão.

Era uma velha torre de vigia, robusta e quase sem janelas, apesar do imponentetítulo de Castelo de Inveraray. Durante o dia, degraus de madeira conduziam à entradaatravés do salão nobre até o segundo andar.

A risada de MacColla soou baixa e calma. Os tolos deviam ter julgado que algunsdegraus removíveis representavam uma segurança adequada, pois não havia guardas por perto.

Não havia nenhuma janela pela qual pudesse subir a partir do chão, deixando otelhado como o segundo melhor ponto de acesso. Estudou-o de seu poleiro na árvore. Umsótão com uma janela simples era a única coisa que interrompia a silhueta aguda dacumeeira. Um parapeito baixo de pedra flanqueava um estreito passadiço à beira dotelhado, presumivelmente para impedir os guardas de cair dos cinco andares para a mortecerta.

Não importava. MacColla arriscaria a vida sem pensar duas vezes para chegar àsua Jean.

Ergueu-se e saltou, lançando o corpo maciço pelo ar, chocando-se contra a lateral

do telhado e escorregando até parar com um baque no estreito passadiço. Levantou-se etirou o punhal do cinto. Rapidez e agilidade eram de suprema importância, e ele deixarasua espada larga para trás. Encolheu os dedos sobre as telhas de ardósia, frias e úmidassob seus pés descalços.

Os olhos treinados percorreram a escuridão, abarcando o terreno à distância. Ocastelo ficava em Glen Aray, e a paisagem era de um negrume quase impenetrável,pontuado apenas pelo débil cintilar do Loch Fyne, uma sombra prateada ao longe. Choçasse erguiam às margens do lago; era o vilarejo de Inveraray.

Certo agora de que ninguém ouvira sua aterrissagem, MacColla seguiu seu caminhoaté a entrada baixa recortada na trapeira.

A porta estava trancada. Não seria assim tão fácil. Ele se inclinou sobre o parapeitode pedra e olhou pela borda. As janelas mais próximas eram uma fileira de seteirasestreitas, um andar abaixo.

Caminhou ao longo da lateral da laje até seu término, e olhou para a frente da torre.Um pequeno balcão se projetava no andar superior. MacColla virou-se para o telhadoescorregadio, e outra vez para a frente. Lajes se erguiam para moldar a cumeeira.

— Não há alternativa, então — resmungou. Prendendo o punhal entre os dentes,escalou os blocos de granito empilhados, até chegar à pequena abertura. Apoiou-se nascoxas e esticou-se para alcançar o balcão, agarrou-se a uma coluna de pedra e deixou-secair, segurando-se depressa com a outra mão conforme seu corpo balançava. Içar-se e

passar por um espaço tão apertado era difícil, e MacColla teve de escorregar de barrigaaté chegar a um cômodo escuro como breu no andar de cima. Apesar da ansiedade,parou. Ela estava perto agora. Podia sentir a presença dela, suportando Deus sabia o quê

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nas mãos do inimigo.

Tal como seu pai suportara; ele fora mantido cativo por aquele mesmo homemdurante anos, numa torre daquelas, amarrado como um selvagem. E Campbell se atreveraa fazer outro prisioneiro do clã MacDonald.

MacColla deixou escapar um silvo baixo da garganta ao pensar em Jean. Frágil e

adorável, com brilhantes cabelos negros e um toque de timidez no olhar. A encantadoraJean. Sua irmã.

Ele jurara que morreria nas mãos de uma centena de Campbell antes de permitir que ela ficasse mais outro dia cativa daquele bastardo brutal. Havia rumores de queCampbell não estava em casa e, se o patife fora tolo o bastante para abandonar a preciosaprisioneira, MacColla aproveitaria a oportunidade.

Abaixou-se, caminhando e escorregando a mão pela pedra úmida conformeprosseguia, avançando hesitante a cada passo para ver com o corpo o que seus olhos nãoconseguiam divisar no escuro.

A construção devia ser do velho estilo, com andares de um aposento ligados por 

uma escada em espiral. O quarto de Campbell devia ser num andar superior e prova-velmente estava vazio. Porém, ele precisava ter cuidado conforme se aproximava dosandares de baixo. Era tarde, e MacColla esperava que o sono ou a bebida, ou quem sabeambas as coisas, tornasse fácil despachar os homens de seu inimigo.

Apostava que encontraria sua irmã nas despensas no nível do chão. Ou melhor, eraonde ele esperava encontrá-la. Os guardas não haveriam de querer perder muito temponas catacumbas sob o castelo, provavelmente cheias de ratos, urina e umidade. E elepreferia encontrá-la amarrada e intocada do que sendo usada como diversão no salão docastelo.

Sentiu a abertura à frente mesmo antes que os dedos escorregassem pela borda do

primeiro degrau. Pegou o punhal, na mão esquerda e tateou o caminho para baixo pelaescada estreita em caracol, escavada na pedra. Chegou a um patamar e, mudando opunhal para a mão direita, parou para deixar que os olhos se ajustassem ao jogo de luz esombra.

Cada andar será semelhante a este, pensou, imaginando o castelo. Um dos andaresinferiores abrigaria a família, acima do que seria um grande salão, e a cozinha e asdespesas ficariam no nível do terreno.

Esquadrinhou o aposento. Um guarda-roupa, alguns baús e uma escrivaninhaemergiram das sombras. Era bem equipado. Devia ser do chefe, então.

Continuou descendo, expandindo os sentidos. Os homens estavam por perto, e elepreferia manter a vantagem da surpresa. Com os olhos arregalados no escuro e as narinasdilatadas, ele era um ser selvagem caçando, avaliando o chão abaixo através de puroinstinto. Escutou roncos distantes e o ressoar tranqüilo das vozes de dois homens falandobaixo. A luz da lareira lambia os degraus de baixo, fraca demais para atravessar assombras negras da escada. MacColla esgueirou-se para baixo e entrou na luz alaranjadado patamar. Dois homens bebiam diante do fogo. O terceiro estava num banquinho, decostas para ele.

MacColla avançou sorrateiramente até ficar atrás dele, e sentiu a risada do homemreverberar em seu peito ao puxá-lo e cortar-lhe a garganta.

A morte foi silenciosa, mas o guincho do banco não foi, e ele logo atraíra a atençãodos outros dois. O mais alto soltou um brado de alarme, mas MacColla não se deixouperturbar.

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Largou o morto e assumiu uma postura de prontidão. Permitiu que o primeiromovimento fosse deles, pois era quando, na maioria das vezes, os homens cometiam errosfatais. Com as pernas separadas, os joelhos dobrados e os braços afastados do corpo,MacColla era um animal posicionado para atacar.

E o primeiro a se mover foi realmente o primeiro a cair. O mais alto dos doisCampbell saltou para a frente, investindo contra MacColla, que o pegou com facilidade,

segurando-lhe o braço da espada com a mão esquerda e enterrando o punhal em seuabdômen.

Uns poucos grunhidos, a respiração pesada e o raspar de cadeiras eram as únicascoisas a ecoar pelas paredes de pedra.

O outro Campbell era rápido, mais veloz que MacColla, cujo um metro e noventa demúsculos e força o tornavam poderoso, mas, de certa forma, rígido quando se tratava decombate em locais apertados.

O homem de Campbell não tinha uma espada na mão e, assim, investiu contraMacColla com uma pequena adaga tirada da bota. MacColla saltou para trás, mas não

depressa o bastante para evitar a picada da lâmina em seu peito. A dor o fez concentrar-se, e ele emitiu um rosnado. Investiu com o punhal para baixo e, sendo muito mais alto,atingiu com facilidade a carne da clavícula do adversário.

Ao olhar para o ombro ensangüentado, o pânico substituiu a arrogância anterior naface do Campbell. Aquela era uma luta pela vida, e o homem atirou-se contra ele, masantes que pudesse desferir o golpe, MacColla flexionou o braço.

Seus bíceps eram uma massa rija de músculo, projetando-se na camisa de linho.Ele levou o braço para trás e girou, arrancando a faca do oponente e acertando-o direto namandíbula.

O som agudo e entrecortado de dor quebrou o silêncio do quarto, e a careta de

MacColla transformou-se num sorriso. Seu punho largo aterrissou com força devastadorasobre a têmpora e o ouvido do Campbell. O sujeito desabou comum baque que desmentiaa pequena estatura.

MacColla desceu correndo as escadas e chegou ao salão. Os roncos que ouviradois andares acima ecoavam pela pedra fria. Um fogo baixo bruxuleava, lançando uma luzâmbar sobre os homens esticados em mantas em frente à lareira. O cheiro de urina ecerveja impregnava o ambiente. Era provável que ele não precisasse manchar mais sualâmina de sangue diante de tanta bebedeira. Na verdade, pensou, olhando para a portaprincipal com um sorriso, assim que Jean estivesse a salvo, os dois poderiam até sair dalide um modo civilizado.

Os degraus que ligavam o salão nobre ao andar de baixo eram de madeira, podrese abaulados pela idade. MacColla seguiu pela beirada externa, descendo depressa. Acozinha tinha um teto baixo e paredes cobertas de gordura e fuligem. Uma mulher de idadedormia curvada perto do fogão. Poucas brasas fumegavam em meio à cinza do fogo.

MacColla avançou pelas duas despensas antes de descobrir a porta trancada acadeado. A trava estava enferrujada, e ele perdeu alguns minutos tentando abri-la com opunhal. Impaciente, arrebentou o fecho da porta com uma pancada de sua arma.

Jean gritou, e o som quase partiu seu coração. Sua irmã estava numa despensaúmida e escura, piscando os olhos para se ajustar à luz débil que vinha da cozinha.

— Sou eu, garota, Alasdair. — Correu até ela e ergueu-a nos braços. — Oh,Jeannie... minha linda Jeannie. — A angústia apertou sua garganta conforme ele tateava opequeno corpo em busca de sinais de maltratos.

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Jean enterrou a face no peito do irmão. Apesar do corpo trêmulo e da respiraçãoarfante, os soluços eram silenciosos.

A visão de sua irmã, abatida em seus braços e escondendo as lágrimas, enfureceuMacColla. Campbell tinha desgraçado seu pai, exilado sua família para a Irlanda sitiadosuas terras pela ganância do poder.

Ele jurara um dia destruir aquele homem. E descobrira agora que tomara gosto pelosangue de todos os Campbell. A constatação o fez engasgar, e o amargo da bile o obrigoua pigarrear.

— Ainda está trabalhando?

Haley detestava falar ao celular e teve de tapar o outro ouvido para escutar a voz deSarah acima do ruído do metrô.

— Estou terminando. Como foi o jogo?

— Saí no meio — Haley retrucou. — Resolvi voltar ao museu. Estou na estação

Broadway agora. Pode me levar de volta ao depósito? Preciso ver uma coisa.— Haley, eu estava pronta para sair. O museu fechou já faz uma hora.

— Chegarei em quarenta minutos no máximo, tudo bem? — A inscrição do punhalgirava em sua cabeça, e Haley sabia que não se livraria daquilo até ver a arma outra vez.

— Isso não pode esperar até amanhã?

Haley não respondeu, esperando que a amiga cedesse.

— Está bem — Sarah disse, por fim. — Vou esperar no balcão. Bata quando chegar aqui. Mas vou lhe dar dez minutos. Cravados.

— Você é o máximo! — Haley desligou e ergueu os olhos. O sorriso sumiu de suaface. Dois rapazes a encaravam, como se à espreita.

A fisionomia de um era dura. O outro parecia estar sob o efeito de drogas ou bebida.Tinha os olhos meio fechados debaixo do boné de beisebol e a boca entreaberta. Haleylembrou-se de dois outros homens.

Fazia muitos anos. Eles tinham saltado sobre ela quando estava a caminho de casa,após a faculdade. Um deles quisera roubar sua bolsa e o laptop. Havia se esforçadodurante um ano para comprar aquele computador, mas não conseguia se importar com oobjeto. Era a faca que requeimava em sua memória, e o homem que a empunhara,apertando-a contra seu pescoço.

O gelo percorreu suas veias com a lembrança.

Naquele momento, um grupo de estudantes enxameara pela rua, rindo, em seupróprio mundo, nem mesmo vendo-a, mas isso fora o bastante para assustar os homens,fazendo-os sumir na noite.

Porém, não antes que seu atacante tivesse puxado a lâmina, que fizera um corteraso por sua carne, deixando-a com o sangue a escorrer pelo lado do pescoço, pingandodevagar no chão.

Ela era uma inocente aluna do segundo ano da faculdade na época. Uma garotaque nunca se assustara com o escuro. Ao contrário, adorava passear pelo campus tarde

da noite, emocionando-se comas sombras que brincavam por todos aqueles prédiosimponentes de tijolos, que tinham abrigado tantos professores importantes.

Mas Haley não era mais uma garota inocente. Naquela noite, um senso horrível de

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vulnerabilidade se alojara dentro de si, como um tumor. Uma coisa inflamada que seucorpo agora hospedava.

Ela começara a treinar com o pai logo após o assalto. Pesos, exercícios,autodefesa, com um rigor alimentado pela sensação perturbadora de que, de algumaforma, escapara de um destino pior. De que, até então, ela apenas evitara certos perigosda vida por algum estranho acaso do universo.

Apesar da especialização em História, seu foco desviara-se para uma fascinaçãomórbida por armas e batalhas. Tinha se atirado de cabeça no mundo das velhas pistolas efacas. Embora parecessem seguros em sua distância histórica, aqueles objetos haviamsido concebidos para a destruição. E era como se, ao estudá-los, ela pudesse agarrar-se àesperança de controlá-los, de entender o que lhe acontecera. De dominar o medo.

Tal como poderia dominar a situação agora. Moderou a respiração, tentandoacalmar o coração acelerado. Era seu primeiro encontro com uma ameaça potencial desdeaquela noite, anos atrás, e ela não deixaria o pânico esmagá-la.

Girou nos calcanhares, apertando á tira da bolsa com força no peito, e seguiu para a

outra ponta da plataforma. A estação de repente pareceu vazia. Ela relanceou os olhospelo túnel: de um lado, um sem-teto se recostava à parede; do outro, uma mulher apertavaa mão de uma criança, fingindo não ver Haley.

Ela apressou o passo, e o ruído ecoou alto pela estação. Eles a seguiram, devagar.Podia senti-los e ouvia o estalar da grossa corrente de prata usada por aquele de olhar duro, que dava uma volta do cinto para dentro do bolso.

Perto do fim da plataforma, Haley parou, fingindo estudar o mapa pendurado naparede. A adrenalina a invadiu, deixando tensas as suas pernas. E ela teve de se esforçar para lembrar qualquer coisa que seu pai lhe ensinara sobre autodefesa. Respirou fundo ese concentrou nos treinamentos, nos movimentos metódicos e deliberados, que haviam

executado tantas vezes.Bloquear, esmurrar, recuar depressa, voltar ao centro. Vezes e vezes seguidas, até

que lutar se tornara tão instintivo quanto respirar.

Com o coração diminuindo o compasso, Haley postou-se mais ereta. Sentiu-se bemplantada ao chão, os pés conectados solidamente ao concreto do piso sob eles. As pernasfirmes, prontas, mas flexíveis.

O ressoar baixo e os estalos agudos de um trem distante encheram o túnel. Haleypercebeu que os homens recuavam. A composição guinchou e parou lentamente, e elaouviu o chiar das portas se abrindo, as conversas e os passos das pessoas saindo dometrô.

Virou-se e entrou no vagão mais próximo, sem ter certeza se a emoção estranhaque pesava em seus sentidos era de alívio profundo ou de desapontamento.

Ainda inquieta, Haley tomou o caminho mais longo e mais bem iluminado pelo pátiode Harvard de volta ao museu. Correu o trecho inteiro desde a estação e, por fim, bateucom mais força do que pretendia na porta trancada.

— Calma, sua medrosa.

A irritação de Sarah era visível através dos painéis de vidro da porta. Ela adestrancou e deixou Haley entrar.

— Puxa! — Sarah apressou-se a trancar o ferrolho. — Sabe que não posso deixar você entrar depois da hora. Eles tirariam o meu couro.

Poucas luzes iluminavam o interior do saguão.

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— Bem, vá em frente. — Sarah apontou a escada. — Deixei destrancado para você.

Ansiosa para ver a arma mais uma vez, Haley subiu os degraus de dois em dois. Aporta fechou-se atrás dela, e foi como se entrasse numa caverna.

Jogando a bolsa no chão, ela pegou depressa a combinação de arma e punhal daestante e sentou-se à mesa. Retirou-a do retângulo de pano e olhou o cabo para examinar 

a inscrição."Para JG com amor de Ma..."

Haley bafejou a inscrição e usou, para esfregá-la, o pano em que a arma ficavaguardada. Trabalhava depressa. Se Sarah a pegasse fazendo algo mais do que apenasolhar a peça, era o seu couro que seria arrancado.

-g-

Ela olhou para o relógio. Sete minutos antes de Sarah vir bater. Esfregou o cabocom renovado vigor.

-da.

Haley arquejou.

Magda. "Para JG com amor de Magda." Só poderia ser aquele casal. Não sabiamuito sobre a mulher, mas James Graham fora um dos mais famosos heróis militares daHistória da Escócia.

Não. James Graham morrera no cadafalso antes que aquela arma fosse fabricada.Ponto-final.

Porém, poderia ela levantar uma dúvida razoável? Daria uma tese interessante.

Virou o punhal nas mãos e acariciou as filigranas. Não se tratava apenas de umapeça rara e maravilhosa. Parecia... importante, de alguma forma.

E se?...

As pessoas sobreviviam a enforcamentos. Poderia Graham ter sobrevivido à própriamorte, como Maggie Dickson, que saltara de sua carroça, ou James Spalding, que searrastara para fora de sua própria cova rasa?

Histórias apócrifas e verdades históricas se mesclavam o tempo todo.Principalmente na velha Escócia.

Não, havia algo ali, seus instintos lhe diziam. Haley não sabia como ou por quê,apenas sabia. Tinha de ser a arma de James Graham.

Dominada pela emoção, lágrimas repentinas arderam em seus olhos. Pensar quetinha em suas mãos algo que Graham poderia ter tocado, segurado, usado tantos séculosatrás...

Um calafrio subiu por sua espinha. As implicações eram imensas. Havia muitopoucos artefatos disponíveis como parte da vida de Graham, excetuando-se sua espadaem exibição no Museu Montrose, na Escócia. Seu nome aparentemente estava gravadonaquela lâmina também, embora ela não tivesse tido a sorte de segurá-la.

A descoberta de outro artefato era algo tremendo. Identificar sua procedência trarianotoriedade a Haley em inúmeros campos: História Européia, Estudos Celtas, EstudosMilitares, Museologia...

Com um sorriso, ela endireitou o corpo. Estaria no posto mais alto de seudepartamento em pouco tempo.

E isso não era nem a metade. A data da arma colocava o momento da morte de

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Graham em questão.

Seria possível que Graham não tivesse morrido quando os livros de História diziamque ele morrera?

Por certo que não.

Haley riu. Não havia meio de algo assim ser mantido em segredo do rei, da corte,

dos nobres, do clã.E, no entanto, ali estava um indício. Uma arma ostentando suas iniciais, usando

tecnologia que não se encaixaria na época da morte presumida de Graham. Ou, para ser mais precisa, o mecanismo de trava de pederneira como aquele estava disponível em1650, mas apenas isso. Lá pela metade do século, ainda era muito caro para estar disseminado, e a trava de roda, muito mais simples, ainda era a preferida.

Haley sorriu. Se James Graham não tivesse, de fato, morrido no cadafalso, o mundoda História Européia seria muito abalado. E seria ela a espalhar a notícia.

Ela conseguira sua dissertação.

Mesmo que a teoria não fosse verdadeira, seria muito bom para ela apresentar adiscussão. Começaria a escrever um artigo naquela noite, e o usaria como capítulo intro-dutório.

Esquadrinhou a arma, buscando outras idéias. Examinou a marca de prova, antiga equase desaparecida. Estampada pelo fabricante, indicava que a arma estava dentro dopadrão, que suportara uma pesada carga de pólvora. Parecia um "X" com um círculoembaixo. Ela precisava ir mais fundo ali. Ver se encontrava exemplares semelhantes,usando a marca de prova como um marco no tempo, e até mesmo para identificá-la comode um fabricante de armas específico.

Contudo, se verificasse que a arma era original e anterior a 1650, isso apenas seria

uma prova contrária à sua teoria.Haley meneou a cabeça. Algo lhe dizia que estava certa. James Graham fora um

tático brilhante; não teria ido com calma para a morte. Algo, ou alguém, devia ter inter-ferido. Mas o quê, e como?

Olhou para o relógio outra vez. Era hora de sair dali.

Enrolou a preciosa peça no pano e colocou-a de volta no armário, enquanto oscapítulos de sua tese tomavam forma em sua mente. Podia vê-la claramente. E seu título.Um Punhal, com Amor: A Sobrevivência Secreta de James Graham. Ou... Fecho dePederneira: A Ressurreição de um Herói Militar. Ou algo assim. Daria um crédito a Sarah e

 juntas pensariam em algo interessante.Abaixou-se para pegar a bolsa e então enregelou. Uma sombra agitou-se no limite

de sua visão. Haley ficou imóvel. Claro que eram apenas seus nervos à flor da pele numanoite cheia de eventos.

Silêncio.

Fora sua imaginação. Um truque dos olhos, cansados do esforço de um dia inteirosob luzes fluorescentes.

Levantou-se e seu coração disparou. Havia algo sobre a mesa.

— Sarah?

Nenhuma resposta. Um painel sujo de madeira estava no meio da mesa. Pareciaum desenho rústico de duas pessoas.

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— Que diabos...

Chamou mais uma vez, bem alto:

— Sarah?

Não era próprio de Sarah jogar algo sobre a mesa sem dizer nada. Além disso, elateria ouvido a porta se abrir. A menos que alguém estivesse no lugar o tempo todo,

escondido.Controlando os nervos, ela abaixou-se e espiou entre os armários, procurando em

lugares absurdos, onde nenhuma pessoa caberia.

Estremeceu.

Era algum tipo de brincadeira assustadora?

Será que Sarah estava lhe pregando uma peça para se vingar por ficar ali até tarde?

Pegou o painel e sentiu o cheiro de alguma coisa queimada, que revirou seuestômago.

— Esquisito — resmungou.Entalhes de runas e estranhos desenhos cobriam as beiradas do painel. Haley

passou o dedo de leve sobre eles, sentindo a aspereza da madeira crua e lascada onde afaca trabalhara.

Soprou o pó da superfície. Um homem e uma mulher estavam retratados em carvãoem traços rápidos, destacando apenas os detalhes salientes. Ele era alto e robusto, comcabelos revoltos e traços grossos de preto nas sobrancelhas. A mulher era mais baixa, decabelos pretos puxados para trás, mas com um cacho solto sobre a testa. Haley passou opróprio cabelo para trás da orelha.

Havia algo familiar naquela mulher. Apertando os olhos, ela olhou mais de perto esoltou um grito, um som agudo que ressoou pelas paredes. Sua pele arrepiou-se.

A mulher tinha uma cicatriz no pescoço.

Haley levou a mão à própria cicatriz e percorreu os olhos outra vez pela sala. Elaevitara tocar o desenho, com medo de borrá-lo, mas esfregou-o com rudeza agora, ten-tando enxergar melhor. Lascas de madeiras enterraram-se em sua palma, e ela praguejou,sendo invadida pelo pânico e pela raiva.

Sua cabeça começou a zunir.

 A cicatriz. Havia algo na cicatriz da mulher.

Inclinou o painel. A luz incidiu num ângulo, e Haley inspirou fundo. A cicatriz era deum vermelho embotado de sangue.

Um guincho metálico lancetou-lhe os ouvidos, e ela sacudiu a cabeça com força.Sentia-se hipnotizada, compelida a levar a mão ao pescoço da mulher. Com cuidado, ela otocou.

O contato frio do sangue ainda úmido era pegajoso sob a polpa de seu dedo. O ar ao redor pareceu espessar-se, úmido e denso em seus pulmões. Ela sentiu um puxão.Estava desmaiando?

Caindo...

A escuridão engoliu seu grito.

MacColla colocou a irmã no chão e beijou-a na testa. Levou o dedo à boca, fazendo

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um gesto que pedia silêncio. Precisava levá-la para um lugar seguro, mas sair da casa datorre de Campbell se mostrava mais desafiador do que entrar. Empurrou a escada móvelcom o pé. Fora puxada de qualquer jeito para cima no fim do dia. Baixá-la sem ajuda fariaum barulho de acordar os mortos.

Debruçava-se pela abertura, avaliando a longa queda até o chão, quando ouviu oestalo. Virou-se, com o punhal na mão, esperando ver um dos Campbell.

Em vez de um homem, uma mulher materializou-se à sua frente, a face brancafantasmagórica na escuridão, o vestido preto flutuando em torno das pernas como se fosseum espírito da noite. Cachos negros pendiam soltos, emoldurando-lhe o rosto, esvoaçandopelas faces.

Seus olhares se cruzaram. Os dela eram cinzentos ao luar, e ele experimentou aestranha sensação de que poderia ver o infinito naquelas profundezas.

A mulher tropeçou, e MacColla sobressaltou-se. Não era uma aparição. Ela seagachou, apoiando-se nas mãos e nos pés como uma criatura selvagem. MacColla adian-tou-se. O vestido da mulher esticara-se sobre os seios e os joelhos, desnudando um trecho

pálido de canela que ele não pôde deixar de notar.Estava olhando para uma maldita Campbell!

Ela se levantou, e o vestido continuou colado ao corpo, expondo a pele no decote,mas grudado ao monte dos seios, quadris e coxas. Estranho, mas botas curtas apontavamna barra, envolvendo os pés e os tornozelos em couro preto. O olhar de MacCollapercorreu-lhe o corpo, subindo. E depois parou, preso mais uma vez por aqueles olhosestranhos e luminosos. Ele finalmente encontrou a voz, que saiu rouca e baixa:

— An e Caimbeulach a tha annad? — indagou, em gaélico escocês, aproximando-se dela. — Responda, mulher. Tem sangue dos Campbell em suas veias? Uma irmã, éisso? — Inclinou-se e agarrou seu queixo com rudeza, virando o rosto de um lado para o

outro. A mulher tinha feições fortes. Cílios espessos emolduravam olhos grandes, e umaboca sensual compensava o nariz quase exagerado. Mais bonita do que ele imaginava queuma Campbell seria.

Ela ficou tensa, e MacColla sentiu os músculos enxutos e firmes do braço flexionar sob sua mão. E mais forte também.

A pele era macia e sem rugas, cremosa perto dos cabelos negros.

— Não — ele murmurou. — Irmã, não. Sobrinha, então.

— A bheil Gàidhlig agad? — ela perguntou, hesitante. Sua frase soava artificial.

— Sim, eu falo gaélico — ele retrucou, em inglês. Empurrou-lhe o queixo num gestobrusco. — Mas você, aparentemente, tem noções estranhas sobre a língua gaélica.

MacColla relanceou um olhar para os homens desmaiados ao lado do fogo, e depoisexaminou de novo a mulher.

— De onde você é? Ela o encarou.

— Você! — O terror iluminou suas feições. — Você estava naquela... pintura. Quemdiabos é você? — Ela olhou ao redor, aflita. — Para onde diabos me levou?

Ela o estava xingando de diabo? Aquela Campbell miúda se atrevia a amaldiçoá-lo?MacColla a encarou, tentando decifrar aquele sotaque estranho. Ela parecia estar falando

inglês, mas nada semelhante ao que ele sempre ouvira. As palavras soavam como latidosagudos de um cão.

— Fale devagar quando me xingar.

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Chegou ainda mais perto dela. Vira um brilho de inteligência e coragem naquelesgrandes olhos cinzentos, e sentiu-se compelido a olhar mais de perto.

Ela recuou, gritando palavras ininteligíveis.

MacColla mediu-a outra vez, da cabeça aos pés. Era uma criatura bemproporcionada, de altura mediana. Se Campbell tinha gosto por seqüestro, os dois

poderiam jogar aquele jogo. Se pelo menos ele pudesse entender aquela gritaria...— Air do shocair!  — ele ordenou, dirigindo-se a ela. — Calma agora. Chega depragas. — Estudou o movimento de sua boca, tentando captar as palavras. Os lábios eramcheios e escuros, em contraste com o brilho pálido das faces sob a luz da lua. Ele provariaaquela mulher, decidiu, de repente. — Antes que eu as arranque de sua boca.

Agarrou-a, segurando-a pelo braço. Nunca fora dado a sequestros. Mas um beijo?Um beijo não seria nenhum crime.

A mulher flexionou o braço outra vez sob seus dedos, e ele sorriu. A sensação dacarne sólida sob sua palma fazia seu coração disparar. Muitas moças haviam se oferecidopara receber um beijo do grande herói MacColla. Mas nenhuma como aquela. Aquela tinha

músculos. Interessante.Maldição! Estava sentindo desejo por uma maldita Campbell!

Inclinou-se, e a mulher imobilizou-se, como uma lebre paralisada à vista do arco docaçador. Uma longa risada ressoou na garganta de MacColla, tão ansioso ele estava por saboreá-la. A mão livre apertou-a carne macia da nádega, puxando-a em sua direção.

Beijou-a. Queria a princípio ser rude, mas ela reagiu com meiguice. Tão doce quesua boca tornou-se gentil ao prová-la. E, por um único momento, ele imaginou que a moçacorrespondia ao beijo, a respiração suspirando na dele, a boca se abrindo para que ele asaboreasse, fresca e quente ao toque de sua língua.

E, então, com um ligeiro gemido, ela prendeu seu lábio inferior entre os dentes emordeu.

MacColla afastou-se. Ela o encarou, com os dentes à mostra, e exalou o ar dospulmões com um arfar digno de um lobo à caça.

Ele estudou a gatinha selvagem à sua frente, e então, de maneira estranha einexplicável, percebeu-se rindo. Aqueles longos anos de exílio, a prisão de seu pai, acaptura de sua irmã... Tudo fora uma mortalha de espera e temor que toldara sua visão por muito tempo, até agora. Era como se o véu tivesse de repente queimado até virar cinzas,despertando-o para a vida. Uma risada profunda e libertadora explodiu do fundo de seupeito.

Um dos homens ao lado do fogo remexeu-se.

MacColla olhou para a irmã, e o terror e a confusão em seus olhos o fizeramrecordar-se de si mesmo. Clareando a garganta, acenou para Jean.

— Sim — ele murmurou. — Precisamos ir embora daqui. — Olhou de volta para amulher. — Uma bela Campbell para meu espólio de guerra — disse, lambendo o sanguedo lábio inferior. Abriu um sorriso largo para a moça, sabendo muito bem que o sanguetingira de vermelho seus dentes.

Ele não precisava de um homem para ajudá-lo a abaixar a escada do castelo, afinal,MacColla pensou, ao empurrá-la para a entrada. A mulher o ajudaria.

Enfiando a mão pelos cabelos dela, ele a levou na direção de Jean. Apesar daviolência do gesto, procurou não machucá-la. Seria uma atitude ignóbil. Queria apenasassustá-la para amansá-la. Poderia precisar de táticas assim se fosse lidar com uma alma

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valente como aquela.

Seu objetivo era usá-la como troca. Membros da família eram a moeda de barganhamais efetiva. Era uma lição que o próprio Campbell lhe ensinara, com seu pai e irmãocomo exemplo. Se tivesse tido alguém mais próximo ao coração de Campbell com quebarganhar, talvez pudesse ter poupado o pai e o irmão de tantos anos de prisão.

Que diabo, que diabo, que diabo... Opensamento reverberava em sua mente.

Homenzarrão, cabelos pretos, sobrancelhas grossas. E que droga fora aquela suareação a ele? A primeira vista provocara um calafrio involuntário por todo o seu corpo. Elea beijara, e ela se sentira derreter, numa pura reação animal ao tamanho do sujeito.

Haley sacudiu a cabeça para livrar-se da lembrança. Tinha de recobrar-se. Ele eraevidentemente o homem retratado naquela coisa horrível que ela encontrara no depósito.O sangue latejou na ponta de seus dedos ao lembrar-se do painel de madeira, agora longede suas mãos.

O terror roubou o ar de seus pulmões, e o fluxo de adrenalina em seu organismoatordoou-a. Haley forçou o ar a entrar em seu corpo paralisado.

Não seria uma vítima de novo. Não desta vez.

Lembrou-se das vozes dos irmãos, das provocações e desafios. Ouviu-os falar,cercando-a: "Homem à vista, Hale".

— Tire as mãos de mim. — Ela tentou livrar-se da mão que a prendia. O bastardoapenas riu.

Quem diabos era ele? E por que falara em gaélico? Será que estava em seudepartamento na faculdade? Por certo que a vinha espreitando, mas ela nunca o viraantes. Como entrara no museu?

Oh, Deus... Sarah! Seu pânico transformou-se em pavor, e um frio tomou-a. Seráque Sarah estava bem? Se alguma coisa acontecesse a ela, seria tudo culpa sua.

— Onde está Sarah? O que você fez com ela? — Plantou os pés no chão comfirmeza, fazendo-o cambalear ligeiramente. O homem a fitou por um momento, e o ódio ainvadiu. — Não fala inglês?

— Sim, eu domino o inglês. — Ele agarrou-a pelo queixo, puxando-lhe a face emsua direção. — Quem é Sarah? Tem uma irmã se escondendo por aí também?

O homem olhou ao redor, fitou de soslaio a companheira, e Haley registrou apresença da outra mulher pela primeira vez.

Não conseguia mexer a cabeça com aquele aperto, mas revirou os olhos como pôdepara estudar a mulher. Parecia estar em conluio com ele. Que tipo de palhaçada é esta?Ela era esguia e bonita, mas Haley sentiu-se gratificada ao perceber que também pareciaabalada, com a respiração ofegante e lágrimas correndo pelo rosto.

— Quem são vocês? — ela rosnou, debatendo-se em vão.

O homem a ignorou, concentrando-se apenas na companheira.

— Calma, Jean — disse à mulher, em gaélico. Então Haley julgou que ele dizia: —Desceremos pela escada e iremos embora daqui.

Escada? Haley tentou entender o que estava acontecendo.— Para onde vai me levar?

— Alasdair — a outra mulher falou por fim, num murmúrio trêmulo. — A moça não é

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certa. Está me pondo mau olhado, mesmo agora.

A garota queria dizer que ela não era certa da cabeça. Haley encarou-a com dureza.Se existia uma coisa como mau olhado, ela o convocaria agora para aquela coisinhaafetada.

O homem soltou uma risada que pareceu aborrecer a companheira ainda mais. Ela

se encolheu diante dele, o que irritou Haley, e a fez querer enfrentá-lo.— Por favor. — A moça falou de novo, dirigindo-se apenas a Alasdair. — Por favor,leve-me para longe deste lugar.

Os olhos do homem se suavizaram quando fitou a companheira, a máscaraassustadora derretendo-se em algo mais gentil. Uma preocupação sincera enterneceu-lheas feições e relaxou a boca carnuda.

Haley percebeu, espantada, que ele era... belo.

E que estava completamente concentrado no bem-estar da garota. Uma onda deciúme inexplicável a invadiu e faiscou dentro dela, embora o impulso fosse ridículo.

Ela não precisava de um homem para cuidar dela. Era capaz de cuidar de simesma.

Os olhos da garota se arregalaram.

— Deixe-a em paz — murmurou. — Ela... ela é... ela não é certa, Alasdair.

Haley tentou livrar-se do aperto do homem, mostrando os dentes para suacompanhia conforme se debatia,

— Droga, já basta! — Ele empurrou Haley para a frente mais uma vez, na direçãodo que'parecia um buraco na parede que mergulhava nas trevas. — Precisamos ir, eagora.

Haley esforçou-se para tentar compreender o que acontecera. Ele a deixara semsentidos no museu, com certeza, mas para onde a levava agora? Parecia um castelo. Seráque o lunático a carregara para alguma mansão maluca nos arredores de Boston?

Olhou ao redor até onde conseguiu, esperando ver cabeças empalhadas de animaise enfeites espalhafatosos de ferro forjado. Mas o aposento grande era despojado. Haviaapenas uma mesa rústica de jantar e alguns homens adormecidos ao lado da lareira.

Ela pensou em chamá-los, pedindo ajuda, mas seus olhos se ajustaram à luz tênue,e Haley pensou melhor. O fogo iluminou as feições rudes dos homens enrolados emmantas sujas. Um albergue?

Com ele a levara até ali? Não sentia nada dolorido, portanto não fora maltratada.Talvez ele tivesse usado clorofórmio ou algo assim. Claro que tivera de dirigir para bemlonge da cidade para chegar àquele lugar.

Onde diabos estavam? Talvez em algum lugar perto do Cabo? Um farol talvez?Tentou ouvir ou sentir sinais do mar.

Ele a cutucou, obrigando-a a parar diante da abertura na parede. Oh, Deus!  Omaluco ia empurrá-la por uma janela? O pânico explodiu de novo, turvando sua visão, eHaley instintivamente entrou em ação, lançando seu peso para trás, forçando o corpo a sedistanciar da escuridão escancarada. Sentiu a mão do homem se apertar com mais forçaem sua nuca, mas ela jogou o corpo para trás com gestos frenéticos, firmando os

calcanhares no chão de pedra. Seus pés bateram em algo duro e, em sua aflição, elanotou um lance de degraus de madeira, parecido com um palco, bloqueando seu caminho.Haley imobilizou-se.

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Tentou olhar de novo para a companheira do homem. Inútil, Haley pensou, comdesprezo. Apenas parada ali, tremendo.

E, então, a constatação surreal se deu num estalo. Seus captores usavam roupasbizarras, como se tivessem voltado de algum tipo de encenação histórica. Estavam ambossujos, ela num longo vestido, manchado de preto na barra, ele descalço e de kilt. E nadaparecido com aqueles kilts elegantes e as bolsas de couro que os homens usavam nos

torneios das Terras Altas. Aquele parecia desfiado, a manta enrolada em torno dele, aponta jogada de qualquer jeito sobre o ombro.

Oh, droga! O pavor a enregelou. Haley não saberia dizer por quê, mas as roupasdispararam seus alarmes internos, já guinchando até o mais alto nível de alerta. Ela nãosabia o que aquela gente queria fazer, mas ser seqüestrada por um casal de fãs deHistória medieval falando gaélico não parecia um presságio muito bom.

A mão do homem em seu pescoço afrouxou-se. Ele chutou a escadadesengonçada. Homem típico, Haley pensou com um desgosto que aclarou sua mente.

Calma. Calma. Estou calma. Ela se obrigou a tranquilizar-se. As batidas do coração

tornaram-se regulares; os músculos ainda sentiam a adrenalina, mas não mais pareciamgeleia, por causa do medo.

Homem típico por subestimar uma mulher. Ela poderia fugir. Precisava saltar. Seaquela escada representava a altura dali até o chão, ela só teria um andar para cair. Teriade rolar ao aterrissar. Depois, correria como louca.

Haley livrou-se com um safanão da mão do homem, sentindo um chumaço decabelos ser arrancado do couro cabeludo. Saltando para a frente, pisou na beira da escadae saltou para o vazio.

A danada da moça saltara, os cabelos negros esvoaçando como um corvo solto nanoite. MacColla correu para a beirada e olhou para baixo, a tempo de vê-la rolar pelo chão

e sair correndo.— Droga! — Olhou para Jean e recuou de novo. — Droga — resmungou mais uma

vez. Agarrou a irmã pelas mãos e desceu-a pela porta de entrada, abaixando-a até quesua barriga pendesse pela beirada e ele não conseguisse mais segurá-la. — Corra! —ordenou, ao deixá-la cair. — Agora!

A moça Campbell já se distanciava, fugindo como uma corça pela campina banhadapelo luar.

Jean cambaleou para a frente. MacColla não perdeu tempo e saltou para o chão,aterrissando com um resmungo e rolando depressa até ficar de pé. Percebeu a comoção

no castelo ao alto. Os homens tinham acordado.— Corra! — ele bradou, empurrando a irmã pelas costas. — Vamos... — Agarrou-a

pela mão e puxou-a. — Corra!

Jean pareceu sair do torpor e, erguendo o vestido acima dos joelhos, saiu correndo.MacColla passou por ela, usando braços e pernas até se aproximar da mulher. Esticou amão para lhe agarrar o vestido uma vez, duas, mas ela correu ainda mais depressa,fazendo um trajeto sinuoso pelo mato.

— Caile mhallaichte — ele rosnou.

Atirou-se à frente, agarrando-a com força pela cintura, derrubando os dois no chão.

Queria prendê-la, e não esmagá-la; portanto, rolou de lado, parando só quando a percebeusentada sobre seu corpo.

Segurou-a pelos quadris. Então, uma ânsia tão grande o invadiu, que ele não

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questionou o impulso. Simplesmente esmagou a moça ao peito enquanto a visão dela acavalgá-lo enchia-lhe a cabeça.

Ver aqueles místicos olhos cinzentos se arregalar com a sensação de seu corpo sobo dela fez o prazer borbulhar por suas veias. Ofegante, ele sentiu a vida pulsar dentro desi, e um sorriso explodiu em sua face, inundado de triunfo.

Então, como uma gata feroz, ela enterrou as unhas em seu rosto, estapeando-o etentando arrancar seus olhos.

— Sua gata selvagem! — MacColla desviou-se dos tapas o melhor que pôde,segurando-a com força pelo quadril com uma das mãos e tentando aparar os golpes com aoutra.

— Alasdair!

Era a voz de Jean.

MacColla viu três homens correndo em sua direção e rolou a mulher para o chão,sob o corpo. Agarrando-a com ambas as mãos, olhou depressa para a irmã. Praguejou. Asegurança de Jean era a única coisa com a qual deveria se preocupar no momento. Nãopoderia deixar os pensamentos se desviarem para uma misteriosa mulher do clã Campbell.

Olhou para ela e lamentou ter de deixá-la ir. Lamentou não saber o nome daquelamoça estranha que levara vantagem sobre ele. Daria um belo espólio. Porém, ele nãopodia perder de vista a coisa mais importante: libertar sua irmã e vê-la em segurança.

— Droga! — Sua voz saiu num grunhido baixo. Os homens se aproximavamdepressa. Olhou para a moça. Havia um desafio naqueles olhos cinzentos. — Que Deusme ajude! — Segurou-lhe os braços acima da cabeça com uma das mãos, tomou o queixocom a outra e esmagou sua boca na dela. Sabia que precisava levar a irmã para asegurança, mas sabia também que precisava saborear mais uma vez aquela suavidade,

experimentar de novo aquele calor. Interrompeu o beijo e deu uma risada breve,escapando por pouco dos dentes afiados.

MacColla afastou-se depressa é, agarrando a mão fria de Jean, correu para longe.Conseguira. Libertara a irmã. Tinham apenas de chegar aos pôneis que ele amarrara nosbosques, e iriam embora dali.

Então, MacColla ouviu um grito agudo cortando a noite, um som de enregelar osangue que o fez parar de imediato.

Jean tropeçou e caiu ao lado dele, erguendo os olhos, com o terror estampado naface.

Era a moça. Seu grito tinha o som do puro horror, como se fosse atacada por demônios, e a pele de MacColla arrepiou-se toda. Puxou Jean para que levantasse eempurrou-a com força.

— Ruith! — ordenou. Corra.

Virou-se, apertando os olhos para distinguir as figuras na escuridão. O luar incidiasobre os corpos, e a mulher debatia-se loucamente nas mãos dos homens.

Ele avançou a passos largos. Então, o grito da moça tornou-se um som medonho,arrancado das entranhas. A voz ficou rouca e depois se partiu num gemido de desespero.

MacColla disparou numa corrida. Não pensou no motivo ou em como aquilo

acontecera, mas somente que ela estava sendo atacada pelos próprios parentes, e ele nãodeixaria um homem levar a melhor sobre qualquer mulher.

Principalmente aquela mulher.

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Estavam em cima dela, como cães selvagens disputando um osso, e MacCollamergulhou sobre eles, atacando-os com fúria, agarrando um homem e erguendo-o pelacabeça, quebrando-lhe o pescoço e jogando-o para longe.

Isso deixava dois sobre ela, e, justamente quando ele se abaixava para arrancar mais outro, a moça o surpreendeu, libertando-se a pontapés.

Ele ficou estupefato, encarando-a com os olhos arregalados. A lua lançou um halobranco de luz pela face da jovem. A boca carnuda se abriu, conforme ela ofegava.Percebeu seu olhar e o fitou, destemida, orgulhosa.

A mais bela criatura que MacColla já vira.

Tarde demais, ele percebeu as mãos em sua canela, puxando-o antes que elesoubesse o que estava acontecendo. Caiu com um baque, o peso de cem quilos demúsculos desabando na campina e, no mesmo instante, os dois Campbell estavam sobreele.

Haley arrastou-se para longe. Estava solta. Podia correr. Para onde?

Olhou para os homens que brigavam. O que se chamava Alasdair lutava parasuperar a desigualdade de forças. A construção de pedra às suas costas assomava na es-curidão. Não era um farol. Nem uma mansão. Parecia uma maldita casa de torreescocesa...

Haley esquadrinhou a noite. A garota estava parada na linha do horizonte, tremendoe choramingando. Ela poderia fugir, mas, se Alasdair fosse dominado, a garota seria apróxima? Com certeza, a criatura patética não sobreviveria cinco minutos com aquelesanimais. E Haley podia não gostar dela, mas isso não queria dizer que apreciaria vê-labrutalizada.

Além disso, mesmo que fugisse, duvidava que fosse capaz de escapar daqueles

dois homens que evidentemente tinham uma queda por sangue.Um deles estava sobre seu seqüestrador, as mãos em torno do pescoço do

estranho. O outro se ajoelhou, e ela viu mais uma vez o faiscar do aço na noite.

Ela e seu perseguidor de cabelos negros pareciam compartilhar os mesmosinimigos, o que o tornava seu aliado. No momento. Se ela quisesse salvar a própria vida,teria de salvar a de Alasdair.

Apressou-se a voltar e caiu de joelhos, passando as mãos, aflita, pela grama úmida,sem desviar os olhos da briga à frente.

Tantos anos de treinamento com seu pai, e o mais frustrante fora perceber que

nunca ganharia uma luta se confrontasse sua força com a dos homens. E, já que eraassim, Haley aprendera a brigar sujo.

 Achei. Sentiu a beirada cortante de uma pedra nos dedos. Ignorando a terra queentrava sob as unhas, ela cavou, tirando a pedra do chão. Era pequena, menor que suapalma, terminando em ponta. Mas era o melhor que ela poderia esperar.

O segundo homem sentou-se nos calcanhares, segurando Alasdair para baixo,enquanto observava o amigo esganá-lo, tirando-lhe a vida. Sorria, como se gostasse doespetáculo.

Qual deles? Haley ponderou as opções. Atacar o homem ajoelhado, ou distrair ooutro? Primeiro o mais importante.

Alasdair estava sendo estrangulado até a morte. Socava o atacante, a força bruta deseus golpes fazendo o inimigo oscilar a cada baque. Mas o homem apertava seu pescoçocomo uma tenaz, apesar do sangue que lhe enegrecia o nariz e os olhos na escuridão.

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— Alasdair!— a outra mulher gritou.

A atenção dos atacantes desviou-se por um momento, e Haley viu ali suaoportunidade.

 Aquele que o está estrangulando, então.

Haley agachou-se no capim, apertando a pedra com força. Pulou, aterrissando com

um baque nas costas do homem, e passou um braço com força em torno de seu pescoçoenquanto descia o outro com violência, batendo a pedra em sua têmpora.

— Alasdair! — a jovem gritou de novo, dessa vez com um toque de esperança navoz.

Ela o ama.

Haley não teve mais tempo para pensar nisso. Sentiu o chão fugir sob seus pésquando o homem sacudiu a cabeça e tentou levantar-se, começando a golpear seusbraços com ferocidade.

Ela soltou a pedra e pendurou-se no atacante, tentando desesperadamente furar 

seus olhos e, enrolando as pernas em torno de sua cintura, enterrou os calcanhares emsuas partes íntimas.

Alasdair se recobrara depressa e estava empenhado num combate com o que oprendera no chão. Haley ouviu o assobio do aço e viu o braço esquerdo de Alastair proje-tando-se para cima, contendo a mão do inimigo. O direito girou, quebrando o braço dohomem no cotovelo. Um estalo grotesco soou, e a lâmina voou para o chão.

O homem que Haley montava girou o corpo e espremeu-a com força no solo. O ar foi expulso de seus pulmões num guincho agudo, e ela esqueceu Alasdair, sentindoapenas a vontade desesperada de respirar.

Algo muito errado acontecera com suas costelas. Cada inalação parecia lançar cacos de vidro em seu peito. A escuridão toldava tudo conforme Haley se encontravaprestes a perder os sentidos, para em seguida acordar outra vez. E o homem continuavaem cima dela, prendendo suas mãos, apertando seus seios, enfiando os joelhos entre suaspernas.

E então, de repente, ele sumiu. Desapareceu de cima dela.

Haley continuou deitada, ofegante, cada respiração um choque, uma cutiladanauseante. Levou a mão trêmula para cima, limpando as lágrimas frias. O movimento foiuma nova agonia.

As costelas. Estariam quebradas?

Voltou a prestar atenção ao redor. O que estava acontecendo? Concentre-se.Cerrou os dentes, sufocando o grito que queria escapar a cada expiração.

Não posso respirar. Um novo fio de lágrimas escorreu por suas faces. Tentou semexer. Foi capaz de se virar ligeiramente. Nada quebrado. A náusea a invadiu, e elaentreabriu os lábios para respirar por entre os dentes cerrados. Algo... rasgado.

Uma disputa sombria desenrolava-se aos seus pés. Escutou gemidos entrecortados.E depois... silêncio. Haley tomou coragem, imaginando se sobrara alguma força dentro desi. Não queria descobrir o que acontecera, onde estava ou com quem, enquanto as trevasa atraíam com sua promessa de calma e paz. Percebeu um movimento outra vez e

preparou-se para o inevitável.Mas as mãos que a ergueram eram gentis. E ela odiou o choramingo de dor que lhe

escapou da garganta. Era o homem de cabelos pretos. E, dessa vez, os olhos revelavam

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ternura ao fitá-la.

— Alasdair... — Sua voz soou rouca, e o nome dele, em sua língua, não era nempergunta nem chamamento.

— Sim. Sou chamado de MacColla. Alasdair... MacColla.

Os olhos de Haley se abriram para admirar aquele homem que a seqüestrara e

depois a abandonara, só para em seguida voltar e salvá-la. Um selvagem feroz. Umhomem que alegava ter o mesmo nome de um herói de outrora.

Ilusões a respeito de Alasdair MacColla? A dissertação de Haley devia estar afetando-a para imaginar que aterrissara na velha Escócia com o amigo de JamesGraham, MacColla. Ou isso, ou ela machucara mais que apenas as costelas. Fechou osolhos com força para expulsar o pensamento.

— Deveríamos... deixá-la?

A voz sussurrada de Jean chegou até Haley no chão onde estava, tonta, deitada nocapim.

MacColla aparecera sabe-se lá como com dois pôneis, e logo cavalgavam pelanoite, com Haley dobrada à sua frente.

Quando ele por fim parou, ao amanhecer, Haley escorregou agradecida para ochão, a mão comprimida com força do lado. Estava com fome e morrendo de sede, mastudo que podia fazer no momento era ficar deitada ali. Mesmo assim, isso era um ligeirodesconforto, comparado à agonia que ela sentia a cada respiração. Estava aliviadasimplesmente por se deitar ali, curvada, conseguindo espaço para mais que apenas umarquejo raso.

— Realmente, Alasdair, viajaríamos mais depressa se...

— Eu posso ouvi-la — Haley disse para ninguém em particular.

Viajar mais depressa se... me deixassem? Está certo, mocinha. Por favor, deixe-memesmo. Fechou os olhos com força. Se pelo menos...

— Cale-se, Jean. A moça vai conosco.

Ela precisava se livrar daquele gente, mas com tamanha dor nas costelas, nuncaconseguiria fugir do homem.

— Seu descanso acabou. — A voz masculina soou próxima. Ela abriu os olhos paravê-lo de pé. — Está pronta?

— Está me pressionando.

— Campbell não descansará. Nem eu.

Haley ignorou a mão estendida, e MacColla deixou escapar um leve resmungo. Comtrês rápidos arquejos, ela se sentou, sufocando um gemido. Lutou para ficar de joelhos,depois de pé, e seguiu até os cavalos.

Avaliou-os à luz da manhã. Eram animaizinhos fortes, um com crina e cauda pretas,o outro com um tom cinzento que combinava com o céu de chumbo.

— Onde conseguiu esses bichos, afinal? — Haley esfregou os quadris, receandooutro minuto de cavalgada. Olhou ao redor, tentando identificar onde estavam. — Esperoque alguma garota da hípica não tenha perdido seus pôneis premiados.

 — Se pode fazer troça, pode cavalgar — ele falou, erguendo-a e colocando-a nasela.

Foi o estalo do couro sob o corpo que fez Haley calar-se. Percebeu que até mesmo

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o cavalo estava arreado com peças de época; aquela era uma sela arcaica. A cada passo,distanciavam-se da civilização. Ela imaginou que fantasia confusa aqueles doisencenavam. Ou que tipo de maluco fingiria ser Alasdair MacColla. Haley relanceou osolhos pelas pernas musculosas que se retesavam atrás dela. O homem estava vestido deacordo com seu personagem, era evidente. Tinha até a espada de um metro e oitenta decomprimento e dois palmos de largura pela qual MacColla ficara conhecido, que ele pegara

em uma moita não muito distante daquele castelo esquisito.— Que pena! — ela resmungou. — Se você fosse o verdadeiro MacColla, era bem

provável que pudesse me disser se James Graham ainda estava vivo. Sentiu o homem seimobilizar às suas costas.

— O que disse? — A voz era um murmúrio ameaçador ao seu ouvido.

— Nada — ela retrucou depressa. Sabia que os dois encaravam com seriedademortal seus desempenhos.

A ansiedade revirou o estômago de Haley, tanto quanto a dor, ao imaginar paraonde a levavam e se estaria preparada para lutar e depois fugir quando chegasse a hora

certa. Tentou formular um plano. Estudou cada colina e cada vale conforme cavalgavam,pensando que, por certo, logo se aproximariam de uma cidade. Logo, viu que eraimpossível descobrir onde estavam. Era estranho. Não havia nenhum carro, e nem mesmouma estrada de verdade. Deveriam ter tomado algum caminho para fora de Boston. Elasabia que Massachusetts tinha um interior rural, mas nunca imaginara que fosse tãoextenso.

O céu tornou-se mais brilhante, e Haley conseguiu ver o panorama ao redor maisclaramente. Árido.   A zona rural nos arredores de Brimfield? Não. Nem de perto. Elapercorrera esse trajeto antes. Onde estavam as diversas fazendas encantadoras?

Mexer-se fez Haley perceber o quanto estava tensa. Cada passada curta do pônei

era uma agonia. Estava desesperada para parar.— Alasdair? — a garota murmurou. — Eu preciso parar.

Finalmente. Haley riu baixinho. A garota precisava se aliviar tão desesperadamentequanto ela.

— Jean, não pode agüentar um pouco mais? Campbell deve estar em nossoencalço. Preciso levar você a um lugar seguro.

— Mas...

— Droga, está bem! — MacColla obrigou o pônei a uma parada brusca. — Vamosparar, mas só por um momento, sim?

Desmontaram, e ela observou o homem levar a companheira até uma pequenamoita. Deu um sorriso de escárnio. Claro que a garota era incapaz de andar vinte metrosno meio do mato para cuidar de suas necessidades sozinha.

Haley podia cuidar de si mesma e, por isso, sentou-se no capim para fazer umlevantamento de suas várias dores, notando que todos aqueles pontos se tornavamentorpecidos com a umidade e o frio. Remexeu-se, afastando uma pedra que cutucavasuas nádegas. As horas passadas naquela prova de resistência tinham lhe dado tempopara imaginar cenários desastrosos... costelas quebradas, o baço esmagado...Pigarreando, cuspiu na palma e examinou o muco. Limpo. Parte dela temia que o solpudesse revelar a saliva mesclada com sangue, Mas, por mais que as costelas

parecessem lâminas dentadas em seu peito, ela sabia que não estavam quebradas. Elanão conseguiria cavalgar e nem mesmo se mexer, se estivessem.

Limpou a palma no vestido, num gesto lento.

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O som das vozes pouco a pouco ressurgiu das árvores, em trechos de conversa,num gaélico denso e fluido.

Haley não podia nem sequer adivinhar que gente era aquela ou como falavam tãobem aquela língua ancestral.

O inglês a surpreendia também. Era estranhamente pronunciado. Seriam irlandeses,

talvez?Apenas mais coisas confusas para somar à lista crescente de esquisitices. Elaprecisava descobrir quem, diabos eram eles. No mínimo, isso a ajudaria quando tivesseforças suficientes para tentar fugir.

— Mas quem é ela, então? — o homem indagou. — Você não pode ter certeza deque não fosse outra prisioneira...

— Eu era a única, Alasdair.

Namorados brigando? Haley pensou naquele casal peculiar, imaginando como umagarota de modos afetados inspirava tanto amor naquele homem.

Sentiu outra pequena pontada de ciúme. Onde estavam todos os pretendentes seenfileirando para cuidar dela?

E onde uma garota assim encontrara um homem como aquele, afinal? Umadesamparada indefesa e um homem que chamava a si mesmo de Alasdair MacColla. Umcalafrio arrepiou-lhe a pele. Por que esse nome?

E por que a tinham levado?

Haley retraçou seus passos. Examinava uma arma, que suspeitava tivessepertencido a James Graham. Era uma teoria implausível, mas ela descobrira uma armaque poderia sacudir a História como todos a conheciam. Algo que provaria que Graham defato não morrera, quando os livros afirmavam que morrera.

E então, ela fora seqüestrada por um homem que alegava ter o nome do famosocompatriota de Graham, o guerreiro Alasdair MacColla.

Os dois acontecimentos tinham de estar vinculados de alguma forma.

Um rival acadêmico? Quem mais falaria um gaélico tão perfeito? Ela não conseguiurefrear um arrepio de excitação, ao pensar que o interesse daquele MacColla sócorroborava sua teoria.

Ao senti-lo por perto, virou-se e foi tomada de surpresa com a proximidade doestranho. Com o máximo de ousadia que conseguiu reunir, ergueu o queixo para encará-lo.

Ele era belo e desconcertante. Fora fácil imaginá-lo um animal repulsivo no escuro,com seu kilt manchado e os cabelos desgrenhados. Mas o dia trouxera à luz as feiçõesfortes. Olhos grandes, castanhos, uma boca larga, um queixo quadrado. As sobrancelhaseram escuras e grossas, e a testa, alta. Os cabelos revoltos pendiam soltos de cada ladode um repartido irregular, caindo sobre os ombros largos.

Ele parecia tão... grande. O tecido rústico da camisa se esticava sobre os bíceps eos ombros, sem esconder a sólida muralha de músculos embaixo. O calor subiu às facesde Haley, e ela detestou a reação traiçoeira e irracional diante de tamanha demonstraçãode masculinidade.

Obrigou-se a uma indiferença que não sentia, e permitiu que os olhos passeassempelo resto dele, abarcando toda aquela força tremenda, o peito forte, e as panturrilhascheias de músculos que despontavam por baixo do kilt.

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Rival acadêmico? Certo. Mais o tipo professor maluco.

— Precisa mesmo vestir-se como Alasdair MacColla? — Ela olhou para a mantaescocesa. O xadrez verde-escuro, azul e preto já vira dias melhores. — Não me diga. Vocêé aluno da Brown, não é?

MacColla encarou-a com ar vago.

— Você é uma moça meio louca.— Tudo bem, eu desisto.

O maluco encarnara o papel de montanhês. Era evidente que ele passava os fins desemana jogando irônicos, como nos jogos das Terras Altas e comendo veado, quedescarnava com as próprias mãos. Coisa de gente que levava a bolsa de estudos a sério.

— Por que um traje de MacColla? Quero dizer, todo mundo sabe que era de JamesGraham que você queria se fantasiar. Afinal, ele foi o grande herói.

O homem fechou a carranca, enfurecido. Reprimindo um sorriso, Haley continuou:

— Mas você... você foi uma espécie de aliado próximo, certo? Graham era o belo, oesperto. Você não era mais da variedade "músculos de sobra, nada de cérebro"?Embora... — Fitou-o de cima a baixo. — Você tem a aparência certa. Consegue fazer bemo estereótipo. Não consigo ver você num elegante colete de veludo.

Encontrou-lhe o olhar de novo e algo semelhante a satisfação brincou nas feiçõesdo estranho. Ele não estava imaginando que ela o testava, certo?

— Tanto faz, sr. Alasdair MacColla. — Ela revirou os olhos. — Por que não diz paraonde está me levando?

Sua mente começou a zumbir. Ela precisava descobrir o que estava acontecendo.Tinha de ser outro professor celta, mas representando que tipo de peça?

— Vamos lá, me diga. Qual é a sua tese? — Haley apostaria que ele vira a arma. —Olhe, se é sobre a arma, podemos alegar que a encontramos juntos. Só me deixe ir embora.

Os olhos do homem se estreitaram.

É isso. Ele vira a arma, datara-a, percebera que pertencera a Graham e, somandodois mais dois, resolvera assustá-la e tirá-la da equação. Alguém que assumia o nome deum herói tão famoso de outrora, e tão notoriamente brutal, tinha de adotar todo tipo demaluquice para satisfazer a obsessão.

Haley esfregou o lado do corpo, representando seu papel de ferida.

— Acho que preciso de um médico. — Talvez isso o assustasse e o obrigasse alibertá-la.

De pé e imóvel, ele apenas a encarou, analisando-a.

— Não vou deixar que se aposse dela — Haley afirmou por fim, com ousadia.

— Eu me apossarei do que eu quiser, sua gatinha selvagem. — Ele a percorreu comos olhos, imprimindo às palavras um duplo sentido.

Um calafrio subiu pela espinha de Haley.

— Foi minha descoberta — ela retrucou, depressa. — É minha, você sabe. A arma é

minha!— Sei que você não tem arma. A menos que a tenha escondido. — Antes que ela

pudesse se afastar, MacColla puxou-a para mais perto, estendendo a mão e apalpando-Ihe

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as nádegas para revistá-la.

Haley soltou um grito agudo e observou quando a luz fugiu dos olhos de MacColla.E ele soltou-a com um gesto brusco.

— Droga. — A respiração sibilante passou por seus lábios tensos quando ele fez umesforço visível para controlar-se. — Pare com esses jogos, moça. Campbell está em

nossos costados, e eu preciso levar Jean para a segurança.Ela o encarou feio. Aquele negócio sobre Campbell outra vez.

— Robert Bruce está atrás de nós?

— Gostaria que estivesse — ele retrucou com uma risada. — Agora, se eu estiver certo, a segurança de Jean é a sua segurança. Portanto, se quer salvar a própria pele, émelhor voltar até aquele pônei e cavalgar.

Haley fitou-o, emudecida. Daria um jeito de ficar bem longe daquela gente o maisrápido que pudesse.

Cavalgar. A idéia de sacolejar mais no lombo daquele animal encheu-a de pavor.

Devia ter feito uma careta, porque ele soltou uma risadinha baixa. Antes queHaley pudesse fazer algo, MacColla a surpreendeu ao perguntar:

— Qual é o seu nome, moça?

Ele a seqüestrara... não deveria saber quem ela era?

— Haley...

— Percebo sua dor, Haley. — O tom era irritante de tão gentil, a voz se alongandopara pronunciar o nome com cuidado. — Você precisa respirar direito. Se tiver de cavalgar mais hoje, vamos ter de enfaixá-la.

— Mas você não acabou de dizer que vamos embora daqui?Ele sorriu.

— Eu sei o que eu disse. Mas só vai levar um instante. Não tenho nenhum médico àdisposição, mas eu mesmo já enfaixei muitos homens.

— Aposto que sim — ela retrucou por entre os dentes, e o estranho a surpreendeumais uma vez com uma gargalhada.

— Mas — ele emendou, muito sério —, quero sua palavra de que não tentará mearranhar enquanto faço isso, minha pequena caile bhorb.

O apelido peculiar pegou-a desprevenida. Pequena o quê? Feroz?

Um sorriso enviesado brotou nos lábios de Haley antes que ela pudesse pensar.Ela, uma pequena selvagem. Seus irmãos não adorariam saber disso?

— Não vou arranhá-lo — ela resmungou, pensando que seria um alívio ter ascostelas enfaixadas.

Com um ar cético, ele arqueou as sobrancelhas.

— Tem a minha palavra. — Haley estava ficando impaciente com aquelas atitudesamistosas. Quem ele achava que era para sequestrá-la e depois atacá-la com aquelecharme rude? — Só ande logo com isso!

Ele a encarou com ar crítico. E quando Haley pensou que ele não entendera o queela dissera, o homem sacou o punhal e, segurando-o entre os dentes, tirou o cinto, soltou amanta do ombro e deixou o tecido de lã amontoar-se no chão. Tudo que ele usava era umacamisa enorme que chegava até o meio das coxas.

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— Vou precisar enfaixar diretamente sobre a pele, ou a manta vai lacear e ceder.

— Oh... — Haley olhou para o vestido. — Eu... me dê um instante. — Ao notar queele não se mexia, resolveu ser mais direta. — Vire-se.

Podia jurar ter visto aquela sobrancelha grossa se arquear antes que ele se virassede costas. Então, tirou um braço e depois o outro pelo decote da malha apertada. Apesar 

do cuidado, ouviu os fios estalar e se partir. Uma pena, era seu vestido predileto. Pelomenos, ela usava uma camiseta por baixo.

Pensou no que acontecera à sua echarpe e, com uma pontada de dor, imaginou aseda azul-cobalto jogada sobre a mesa do depósito. Lembrou que um dos irmãos a soltarapara ela no bar. Colin ou Conor? Ao recordar deles, sentiu a garganta apertada e fungou.Precisava pensar na família para confortar-se, para não se sentir distanciada. Tinha devoltar. Seus familiares tinham ficado traumatizados após seu ataque. Não os faria passar por algo assim de novo.

Puxou o vestido até a cintura, revelando a camiseta de algodão por baixo. Deixaria ohomem enfaixar-lhe as costelas, descansaria por algum tempo e, depois, fugiria.

Ele arriscou um olhar, fascinado, quando ela passou os braços e o torso pelo decotedo vestido preto, remexendo-se e se contorcendo com uma expressão concentrada. Eraengraçado e excitante ao mesmo tempo.

O tipo de camisa que ela usava sob o vestido era desconhecido para ele. MacCollaesforçou-se para não olhar, mas aquela camisa grudava-se à moça, o tecido brancoparecendo macio ao toque, e sem deixar muito à imaginação. A pele dos ombros erapálida, a ossatura delicada em contraste com os músculos firmes e elásticos dos braços.

Ele esfregou o polegar nas pontas dos dedos, num gesto distraído, ao imaginar seaquela pele de marfim era tão sedosa quanto parecia.

Enquanto ela se concentrava em arrumar o vestido em torno dos quadris, ele deixouos olhos passear pelo torso bem formado. E sentiu o membro enrijecer-se ao vê-la enrolar o tecido nos quadris. Cerrou os punhos, ofegante.

O movimento levou o braço da moça a se apertar contra a base do seio, que seergueu, retesando a camisa. O tecido esticou-se, revelando o contorno do mamilo.

Ela dobrou a barra para o alto e puxou, expondo o ventre pálido e macio, eMacColla deixou escapar um gemido involuntário.

— Vire de costas! — ela esbravejou.

Os olhos dele correram a procurar os de Haley, cuja voz soara indignada,

combinando com as faíscas que saltavam do olhar.Ele obedeceu de imediato, aproveitando para recobrar o juízo. Da última vez que o

perdera, deliciara-se em saboreá-la. E não seria bom esquecer-se de si mesmo com aprisioneira. Uma Campbell, ainda por cima, pensou com desgosto.

Mas algo nela o irritava e o intrigava. Que tipo de mulher era ela para confrontá-locomo fazia? Ele estava acostumado a que todos se acovardassem diante dele.

Mas não havia covardia naquela mulher. Ela erguia o queixo com atrevimento, comose ele fosse um camponês comum, em vez de um líder de guerreiros.

E, depois, vê-la tirar as roupas com um misto de recato e determinação... Passou a

mão pelo rosto. Aquilo fora o suficiente para deixá-lo à beira de perder o juízo.— Certo.

MacColla ouviu aquela palavra estranha outra vez, e presumiu que ela queria dizer 

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que estava pronta. Ia se virar, mas percebeu que ele não estava.

Ela estava sentada, rígida e ereta, suportando o que devia ser uma dor extraordinária. No entanto, a atitude denotava força de recuperação, e não derrota.MacColla a vira como uma gata selvagem, porém a enxergava agora na verdadeira forma.Aquela mulher podia adotar a  persona de um predador, mas ao tirar a veste estranha,sentava-se diante dele como um cisne maravilhoso, com o pescoço e os seios claros, que

apenas acentuavam os fartos cabelos negros e a brancura da roupa íntima.Os ombros eram cremosos e largos, mas nada masculinos. As mãos se

entrelaçavam no colo, e ela mantinha os braços dobrados dos lados, os membros firmesfalando de força, mas não de trabalho pesado.

Seus olhos desceram ainda mais, e uma faísca de calor o fustigou. O ventre erafirme, uma extensão lisa de alabastro polido que ele teve de se esforçar para não tocar.

— Eu... — MacColla apalpou a manta por um momento e só então percebeu. O pescoço dela. Estendeu a mão, sem pensar. — Nossa, moça, seu lindo pescoço...

Passou com gentileza o polegar sobre a cicatriz, uma linha dentada e alta que

marcava a extensão da garganta. Usou o dorso da mão para afastar os cabelos e correu opolegar mais uma vez, maravilhado. Aquilo respondia a muitas perguntas.

— Como?

Ele percebeu, pelo modo como, ela desviava o olhar, pela forma como a espinhaenrijecia, que aquela simples marca a definia, tendo sido um ponto de mutação.Compreendia agora como, em vez de tê-la derrotado, qualquer que tivesse sido a tragédiaque recaíra sobre ela arrancara tudo o que não era essencial, para revelar uma poder e umespírito mais profundos, que eram a raiz daquela mulher.

— Não é da sua conta. — A voz soou comedida, mas tensa também.

Ele fitou-a nos olhos e viu uma névoa de lágrimas. Porém, mais que tristeza, viu aforça.

— Certo — disse, baixinho.

Desenrolou a tira e começou a trabalhar depressa, tentando não se encolher diantedos gemidos abafados de dor que ela deixava escapar. Inclinou-se, passando os braçosem torno dela para lhe alcançar as costas. Manteve-se em silêncio, as mãos grandes ecalosas puxando e apertando o mais gentilmente possível.

Os nós dos dedos roçaram a lateral firme do seio, e ele imobilizou-se. Ergueu osolhos para encontrar os dela. O momento prolongou-se, a respiração de ambos contida,

nenhum deles querendo desviar o olhar primeiro.Aqueles olhos, que a princípio tinham parecido sobrenaturais no escuro, fitaram os

seus sem piscar. Cinzentos e insondáveis, salpicados de preto, eram mais misteriosospara ele agora do que haviam sido nas sombras do castelo de Campbell.

Campbell. O pensamento foi como um facho de luz distante, chamando-o de volta.Ele tinha um dever para com a irmã. E, ao se apossar da estranha, assumira umaobrigação para com ela também. Porém, mais que isso, tinha um dever para com seu clã.Aquelas duas mulheres o retardavam quando o que ele precisava fazer era recordar-se doque importava de fato.

— Haley. Nome estranho. — Sua voz soou mais rude do que ele pretendia, e ele

viu-a encolher-se, como se tivesse sido agredida. — O que você é para o Campbell?O fio delicado que se estendera reluzente entre os dois desapareceu, como uma

teia de aranha mudando do sol para a sombra.

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Aquele homem, aquele cenário inteiro ultrapassara o surreal e se aproximava daloucura. Haley voltou à realidade, e levou um instante para entrar em foco.

— O quê? — indagou.

— Perguntei o que você é para o Campbell.

Haley conhecia História, sabia que Graham e Campbell eram inimigos, mas o que

esse último tinha a ver com a arma?— Que tal você falar primeiro? — Estrelinhas pareceram esvoaçar por um momento

diante de sua vista, e ela foi forçada a engolir convulsivamente quando uma onda denáusea subiu por sua garganta antes de prosseguir: — Sei que sabe sobre a arma.

— Arma?

Ela rilhou os dentes e apertou os lábios.

— O que sabe sobre James Graham? — Sua pergunta era uma acusação, e elasentiu que o homem se empertigava conforme enfiava a ponta da faixa dentro da atadura.

— O que você sabe sobre Graham? — Ele fingiu um tom cavalheiresco, mas Haleynão se deixou enganar.

— Não acho que ele morreu como dizem — ela retrucou.

O estranho ficou imóvel, e Haley sentiu-se gratificada. Ela sabia. Aquele sujeito eraalgum tipo de rival acadêmico esquisito. A competição o deixara doido.

— Na verdade, tenho quase certeza de que ele não morreu, quando todos dizemque sim.

Num único movimento brusco, ele prendeu-lhe a face entre as mãos.

— Quem é você? — esbravejou. — Unia espiã de Campbell?

O movimento súbito sacudiu-a e fez com que ela se encolhesse, com a impressãode que o peito se partira como vidro. Arquejou.

— Campbell? Que diáb...

Que tipo de show de horrores era aquele? MacColla, Graham, e agora aquelainsistência em Campbell também?

O baque surdo de um cantil batendo no chão a assustou.

— É melhor não provocar meu irmão!

Haley livrou o rosto do aperto de MacColla e, furiosa, virou-se para encarar a irmã

dele, parada com as mãos nos quadris às suas costas.— Eles o chamam de Fear Thollaidh nan Tighean, e ele nunca foi superado por 

nenhum homem. E certamente por nenhuma mulher.

A frase estranha em gaélico ressoou no fundo da mente de Haley, mas elaexpulsou-a para concentrar-se na garota. Certamente por nenhuma mulher. Que conversafiada! Eram criaturas como aquela que davam má fama às mulheres.

— Você me deixou encurralada. — Haley fingiu ceder. Precisava descansar, e nãolevantar suspeitas, se quisesse livrar-se dos malucos. — Olhe, estou machucada ecansada. Não conheço nenhum Campbell.

A dor ameaçou dominá-la. Haley ficou imóvel, a pontada no peito dando veracidadeà sua farsa.

— Não tenho a arma, se é por isso que estou aqui. Eu a tranquei antes que você me

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Sua atenção desviou-se outra vez para a moça. Registrou um leve som de irritaçãoemitido pela irmã quando ela desistiu de tentar conversar e passou a atiçar o fogo.Continuou observando a mulher. Apesar do sono profundo, ela permanecia rígida, com osbraços passados pelo torso, como se acalentasse a dor nas mãos.

Ninguém se postaria diante dele como ela. Porém, em vez de o fato deixá-lozangado, a energia dela o empolgava, assoprava uma fagulha havia muito apagada de

volta à vida.Percebeu que não sabia nem mesmo o nome inteiro da jovem. Esquecera de

perguntar o nome de seu pai, de seu clã, saber de suas origens.

Enquanto a via dormir, ele se entregava aos pensamentos. Era curioso que, assimque haviam fugido do castelo, os homens de Campbell a tivessem atacado combrutalidade. Era improvável que ela fosse um membro da família. Ou, se fosse, de algumaforma afrontara o clã.

No entanto, Jean alegara ser a única prisioneira mantida no castelo.

Aquela mulher era um enigma. Quem poderia ser e, mais importante, de que lado

estava?As perguntas a respeito de James Graham o haviam alarmado. Pouquíssimos

sabiam do estratagema que livrara James do cadafalso. Subterfúgios meticulosos e umacortina de fumaça por parte apenas dos amigos mais próximos mantinham suasobrevivência em segredo. Que uma estranha soubesse da verdade era muitopreocupante.

Poderia ser uma espiã? O ataque fora apenas uma farsa, algum tipo de armadilhapara enganá-lo e fazê-lo acolhê-la sob seus cuidados?

Que ela era forte e determinada, não tinha dúvidas. Estudou-a, adormecida. As

linhas profundas marcavam seu rosto, em torno da boca, na testa, a dor escrita na pele. Aexperiência contida no semblante não roubava sua beleza. Talvez até mesmo contribuíssepara ela.

Não eram feições delicadas. Tomadas em separado, eram vigorosas, como seucorpo. Um rosto quadrado, o nariz largo, os lábios cheios. Feições orgulhosas, que não sedesculpavam por se afirmar. Porém, postas em conjunto, criavam uma misteriosa alquimia,transformadas pela pele luminosa, pelos cabelos negros, pelos desconcertantes olhoscinzentos, numa criatura estranhamente feminina.

Estreitou os olhos ao avaliá-la.

Feroz. Robusta. No entanto, encantadora. De certa forma, uma leoa em toda a

magnificência, pelo tamanho e poder que detinha.Ele faria bem em recear aquela mulher. Como qualquer homem prudente faria

diante de tal criatura.

Campbell olhou para o homem à sua esquerda. O major Nicholas Purdon lutara aolado dos parlamentaristas e protestantes na Irlanda. De altura e constituição médias, ecabelos lisos da cor de água suja, tinha a imagem de uma pessoa medíocre. A naturezasem imaginação o tornava submisso.

Duas das características de personalidade que Campbell mais valorizava.

Ante um gesto seu, Purdon virou o balde, e a água fria tirou o sangue e o estupor daface do membro de seu clã. Trocaram de lugar.

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Campbell olhou para as mangas da camisa imaculada e dobrou o punho comcuidado. Finalmente pronto, ergueu os olhos e fez um ar de desgosto. A cabeça do homemvacilava, e a única coisa que o mantinha ereto era a corda que o amarrava ao assento.

— Você não morrerá ainda! — esbravejou, e esbofeteou o homem. — Diga-mequem a levou.

— Eu... lhe disse... Outro estalo agudo de pele contra pele.— Então fale de novo. — Campbell lutou para manter a paciência. Voltara aInveraray só para descobrir que sua prisioneira fora resgatada por MacColla com a ajudade uma mulher. — Diga-me como vocês, seus idiotas, deixaram que ele entrasse e ossuperasse.

Ele se esforçara tanto para capturar a irmã de MacColla. E a mais valiosa prisioneirasumira como vapor ao vento. Desferiu outra bofetada.

— Vocês o deixaram escapar. MacColla e... — A carne flácida de sua papada ficouroxa de raiva. — Duas mulheres.

Um som estrangulado escapou da garganta do homem, e ele se imobilizou ao ver acalma terrifícante tomar as feições de Campbell.

— Vou perguntar só mais uma vez. E depois você vai ver o que acontece quandominha paciência se esgota. — Campbell puxou um punhal do cinto, e a luz da vela incidiusobre a lâmina fina. Sorriu ao ver o homem fitá-lo, nervoso. — Gosta disso? Eu a chamode agulha. — Cortou o ar com o punhal, e a lâmina fez um ruído parecido a um pio depassarinho. Levou-a até a face do membro do clã e tocou a ponta logo abaixo de seu olho,espetando e deformando a pele delicada. — Agora, você tentará mais uma vez lembrar-sedessa outra mulher, antes que vire um farrapo precisando de costura.

— Foi aquela. — O sussurro veio da escuridão atrás dele.

A mão de Campbell escorregou, e o sangue escorreu da face do prisioneiro comouma lágrima vermelha.

— Finola. — Campbell virou-se para encarar a bruxa. Esquecera-se de que elaestava ali. Parecia estar sempre ali agora, observando. Isso o enregelou. — O que disse,mulher?

— Não esqueça com quem fala. — Ela saiu das sombras, serena. — Não sou ummembro do seu clã.

Finola rodeou o homem amarrado. Então se inclinou para ele, fechando os olhos einflando as narinas. Tinha os cabelos soltos, que escorregaram do ombro, tombando na

direção do sujeito, como um véu avermelhado. Ao ouvir o gemido de pavor do homemecoar pelo aposento, a bruxa sorriu.

— Não sou da sua gente para que fale comigo desse jeito. — Colocou o dedoossudo na face do homem. — Diferentemente deste aqui. — Seguiu o rastro de sanguecom a unha amarelada. — Seria prudente que você não se esquecesse.

Um ruído encheu o ambiente, o som de um fio de urina pingando no chão. A bruxasoltou uma gargalhada aguda e recuou.

— Ele fala a verdade. — Virou-se para encará-lo, com os olhos faiscantes e cheiosde maldade. — E eu lhe digo, ela era a mulher misteriosa. Aquela com o poder dedestroçar MacColla. Aquela que eu chamei.

Campbell levou um momento para registrar as palavras da feiticeira. Estaria dizendoa verdade?

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— Pedi que a trouxesse no tempo para mim. — Os músculos das pernas deletremiam de ódio reprimido. — Não para o meu inimigo.

— Eu a trouxe de volta para você, Campbell. E você não estava aqui. Não possopagar o preço por sua incompetência.

Campbell bufou, fechando e abrindo os punhos, frustrado. Queria aquela mulher,

quem quer que fosse. E agora ela estava com MacColla. Se tinha o poder de destruir seuinimigo, teria o poder de destruir o clã Campbell também.

Parou mais uma vez diante do homem amarrado e tirou seu punhal da bainha.Deslizou-o pela mancha ensanguentada na face dele, e os pés do prisioneiro começaram aempurrar, como se ele quisesse levar a cadeira para trás e escapar do chefe.

Purdon aproximou-se e parou atrás da cadeira, segurando os ombros do homem.Campbell lhe fez um gesto de cabeça. O soldado parecia ansioso para agradar. E, melhor,demonstrava gostar do trabalho. Os dias à frente exigiriam esse tipo de gente.

Ele olhou de novo para o prisioneiro e, com um rápido impulso da lâmina, espetou oolho do homem.

— Um lembrete — Campbell gritou, acima dos berros que encheram o quarto —para tomar mais cuidado da próxima vez que ficar de guarda.

Convocara para si  aquela mulher que voltara no tempo. Fora ele quem pagara, emuito, por isso. Arriscara-se demais. Sujara-se com magia negra. Aquela mulher era suapropriedade, era como uma arma extraviada. E, como uma coisa perdida, ele a encontrariae a reclamaria para si.

E se não pudesse controlá-la, ele a mataria.

— Quando isso tudo vai parar? — A pergunta de Jean rompeu o silêncio tenso noqual se encontravam nas últimas duas horas. Ela parecia recobrar o entusiasmo conformese distanciavam do covil de Campbell.

MacColla acordara Haley fazia tempo, arrastando-a de volta à sela para queprosseguissem. Tinham entrado pelo sopé de umas colinas que pareciam fazer parte deuma cadeia de montanhas, e agora ela estava completamente confusa. Será que estavamem Berkshires?

— Sim. — Haley também queria saber quando tudo aquilo ia acabar.

Sentiu a paciência de MacColla se esgotando, e uma onda de satisfação irracional aatingiu. Haviam viajado devagar a tarde toda, curvados para a frente, sobre o pescoço dos

pôneis, para subir com esforço as encostas escarpadas, e depois para trás, a fim dedescer as ladeiras. Cada movimento era uma agonia para ela e, mesmo assim, era agarota que exigia mimos.

— Poderia ser pior — MacColla resmungou. — Eu poderia levar vocês pelo BeinnBhreac. Seria mais rápido.

Beinn Bhreac? Que diab...

— Alasdair! — O tom de Jean era severo, e Haley sorriu. — Eu quis dizer quandoesta luta vai parar!

Ele não respondeu por algum tempo, e sua voz soou comedida quando por fim

retrucou:— Vai parar quanto tudo terminar, Jean. Não antes.

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Ótimo. Ele claramente se esquivava de todas as perguntas que ela fazia.

Beinn Bhreac. Esquisito! Que negócio era aquele de ficar falando em gaélico? BeinnBhreac. Colina manchada.

Entraram num vale profundo, ladeado de encostas rochosas que pareciam desertasdemais para fazer parte da Nova Inglaterra. Haley estava cada vez mais preocupada.

A paisagem deslumbrante nada fazia para acalmá-la. Ao contrário, a grandeextensão da colina e a vegetação rala passavam uma idéia estranha, aumentando asensação de algo fora do lugar.

O caminho serpeava, estreitando-se numa trilha e depois se alargando de novo.Pinheiros de um verde profundo apontavam pela encosta como uma imensa espinha. Umcervo enorme estacou no cume, tão repentinamente como se pego num instantâneo quecapturasse uma fração imóvel e majestosa de vida.

Não era a Massachusetts que Haley sempre vira. Encostas escarpadas osrodeavam, mas não os picos das cadeias de montanhas da América do Norte com que elaestava familiarizada. Aquelas colinas brutas, arredondadas, passavam a sensação de

rocha nua coberta de mato rústico verde-amarelado.Uma planta em particular dominava, e Haley vasculhou a mente, aflita para situá-la.

Queria encontrar algo reconhecível naquela paisagem cada vez mais estranha.

Não eram as Berkshires de jeito nenhum. Era algo mais parecido a...

— A urze ficará mais bonita no fim do verão. Urze?

— Fim do verão — ela murmurou. — Em que mês estamos?

MacColla demorou um instante antes de dizer, num tom hesitante, como se falassecom uma criança:

— Maio.Maio. Lembrou-se de que sinais do outono estavam por toda parte. Aquelas coisas

que reapareciam todo ano. A malha antiga de seu pai em tricô irlandês. A tevê ligada num jogo de futebol. A camisa vermelha e preta de grife de Colin. O vento gelado fazendoesvoaçar seus cabelos no pátio da faculdade. As árvores com as vestes gloriosas emvermelho e laranja do outono.

— Maio... claro — resmungou. Naturalmente que era maio. Por que não seria maionaquele universo retrógrado em que ela aterrissara?

— Olá! — um homem gritou à distância, e MacColla imobilizou-se às costas deHaley. — Alasdair MacColla! — ele berrou.

Olharam para cima e se depararam com alguém parado no cume da colina, àdireita, ligeiramente para trás. Alguém de kilt, com uma espada na cintura e um sorriso naface.

 Ah, bom! Haley vacilou na sela. Aquilo era a gota d'agua. Teve a percepção distantede que a mão de MacColla a segurava pela cintura.

— Espero que não tenhamos chegado muito tarde para o lançamento do martelo —ela murmurou, sentindo-se perdida. Será que todo mundo vai parecer equipado para os jogos das Terras Altas? Lutou para ficar ereta, apesar do sangue que parecia ser drenadode sua cabeça.

Ou MacColla não ouvira o comentário ou não tomara conhecimento dele.Concentrava-se no homem que agora descia a colina em sua direção. E explodiu numarisada enquanto enfiava os calcanhares no pônei para virar a montaria e encarar o recém-

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chegado.

— John Scrymgeour — MacColla informou à irmã, subitamente nervosa. Foi apenasum rápido aparte, mas a informação pareceu deixá-la à vontade.

— Disseram que você foi visto em Argyll. — John ofegava quando os alcançou.Cabelos castanhos emolduravam um rosto redondo e bem-humorado. — Passando o

tempo livre nas terras de Campbell? E mais outras coisinhas além disso, aposto. — Ohomem enviou um olhar questionador na direção de Haley.

Aquele sujeito estaria a par de toda aquela coisa de seqüestro? Se assim fosse,parecia indiferente ao fato, Será que poderia ajudá-la? E ela, deveria pedir a ajuda dele?

O sorriso do homem desvaneceu-se.

— Tenho notícias do rei. Rei?

O tom era sombrio, e Haley sentiu MacColla tornar-se apreensivo atrás dela. Opônei sentiu também, e deu alguns passos nervosos para o lado.

— É mesmo? E você está muito sério, Scrymgeour. O homem concordou com um

gesto seco de cabeça.— Talvez seja melhor ouvir suas notícias com uma caneca de cerveja. De repente

descobri que estou morrendo de sede — MacColla disse, cauteloso. — Siga com Jean namontaria, e nos encontraremos em sua casa em breve.

O gesto brusco da garota chamou a atenção de Haley. Duas manchas zangadastingiram as faces de Jean, num rubor que pareceu particularmente violento em contrastecom a palidez dos nós dos dedos que se fecharam nas rédeas.

— Por favor, agüente mais uma última subida, e vocês verão o vale se abrindodiante dos olhos, guardando minha modesta Fincharn na palma. — John caminhou até olado de Jean, inclinando-se num gesto cavalheiresco antes de montar atrás dela. — O lagoé lindo nesta época do ano. O sol da primavera dança na superfície como fogo. — Falavaao ouvido de Jean, e emendou: — Meu castelo fica na praia leste de Loch Awe.

Loch Awe. Maravilha. Um rei e um lago.

Avançaram bem depressa a partir dali, conforme as colinas se tornavam um tapeteespesso de grama verde. O lago apareceu e a náusea retornou às entranhas de Haley. Elasabia que não havia tais extensões de água na Massachusetts que ela conhecia. Eraimenso, estendendo-se ao longo de uma dobra no vale suavemente curvo, e reluzia, comoo homem dissera.

Uma construção cinzenta emergiu à distância, algo espectral na névoa e que se

materializou à medida que se aproximavam. O mal-estar tornou-se insistente, e Haleycomeçou a respirar pela boca para controlar o estômago. Provavelmente vacilou ou soltouum gemido, pois sentiu as mãos de MacColla firmando-a.

O castelo de John entrou em foco. Era um prédio retangular enorme, construído depedra cinza-escura e ornado de pequenas aberturas quadradas. Uma fortaleza de granito,sombria e quase sem janelas, no velho estilo dos antigos castelos.

Lochs, kilts, reis e, agora, castelos.

— Qual é o nome de seu rei? — A voz de Haley saiu num murmúrio. — Espere.Carlos? Carlos I?

— Está se sentindo bem, moça? Haley sentiu a mão de MacColla em seu ombro,mas afastou-a com um gesto brusco. Passando a perna trêmula por sobre o pônei,escorregou da sela e saltou para o chão.

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Ouviu conversas sussurradas e depois registrou o som da voz da garota desfiandoum gaélico ininteligível. Gaélico falado sem esforço por toda parte. E, então, apossibilidade a abateu. Mas, em vez de um clique iluminador de uma lâmpada, aconstatação repentina de Haley extinguiu a luz. Era como uma rocha desmoronando paratrancá-la numa caverna apertada e sem ar.

E fora a frase que havia provocado a avalanche. Uma frase obscura que tinham lhe

dito. Que a imobilizara. O nome com que Jean chamara o irmão, Haley se lembrava agora.E percebeu:

Fear Thollaidh nan Tighean... Destruidor de Lares.

Alasdair MacColla. O Alasdair MacColla.

Correu cambaleando por vários metros antes de cair de joelhos. O prédiodesgastado assomava à distância, zombando dela, testemunha indiferente de seu pavor. Anáusea irrompeu com plena força, e foi como se um punho violento a socasse, expulsandotudo que havia em seu estômago, A ânsia tirou-lhe o fôlego, fazendo a bile subir pelo nariz.

A dor nas costelas provocou o turvamento de sua visão, e um gemido alto escapou

de seus lábios. Haley tentou acalmar o corpo sacudido por espasmos, tentou silenciar spróprios gritos, cada movimento a mais pura agonia.

Sentiu a mancha de um vaso estourado nos olhos ao vomitar de novo. E a náuseaaumentou, como se alguma parte instintiva julgasse que poderia fazer tudo desaparecer pela força do próprio corpo.

A violência dos espasmos fez seus ossos estalar, renovando a dor nas costelas jámartirizadas, e ela vomitou mais uma vez com a pontada no tórax.

Teve a sensação de ter MacColla por perto, e o percebeu então, parado diante dela.Ele se inclinava em sua direção.

E, embora seu coração disparasse de medo, Haley conseguiu lançar-lhe um olhar de desafio. Contra ele, contra sua condição, contra aquela situação toda, irreal,inconcebível, incompreensível.

— Não! — gritou, rastejando para o lado, limpando o rosto. — Não!

Um dos homens mais brutais da História escocesa, de alguma forma desconhecida,buscava por ela.

Haley o viu, assomando sobre seu corpo, e agarrou-se com força à consciênciavacilante. Então ouviu Jean, ao longe.

— Eu avisei, Alasdair. A moça não é certa.

Dessa vez, em vez de dar forças a Haley, as palavras distantes de Jean a abalaram,deixando-a sem amarras. Não é certa.

A muralha impermeável de pedra talhada que Haley levara anos erguendo em tornode si mesma tornou-se um enorme castelo de cartas, agitando-se ligeiramente atéamontoar-se no chão.

MacColla relaxou no banho. Mal cabia na tina de cobre, mas a água estava quente edesentorpecia seus músculos tensos. Esfregou os nós dos ombros.

John fora generoso em lhes oferecer aqueles quartos, uma vez que a maior parte dafamília morava agora na casa em Glassary, ao leste. MacColla não era muito dado a luxos,e escolhera o aposento menor, porém o mais acolhedor. A lareira era grande, a janeladava para oeste, e o colchão era mais macio do que o chão no qual se acostumara a

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dormir nas últimas semanas.

Mesmo assim, estava mais tenso do que tinha razões para estar, e pensou naestranha mulher que o deixava tão alterado. Enfiou a cabeça na água e correu os dedospelos cabelos, desembaraçando a massa emaranhada antes de lavá-los.

Sentou-se de repente, e afastou os cabelos do rosto. Maldita distração! Ele ainda

não descobrira qual era o clã da mulher.A princípio, julgara-a uma espiã. Todos os indícios apontavam para isso. Ela surgiradiante deles no próprio covil de Campbell. Uma mulher misteriosa, forte e sozinha, semexplicações ou negativas prontas na língua. E, mais preocupante ainda, ela suspeitava daverdade sobre o destino de James Graham.

Porém, em seu coração, ele não acreditava que isso pudesse ser verdade. Elaparecia tão... inocente. Talvez o ferimento a fizesse parecer assim. Mas, ao percebê-latremer na sela conforme cavalgavam e firmá-la com suas mãos, sentira a confusão e avulnerabilidade da mulher.

Seria algum tipo de batedor do clã Campbell? Ele não daria muito crédito à idéia.

Ela tremera como um potro recém-nascido, aterrorizada diante da vista de Fincharn. Edepois, passara terrivelmente mal. Ele tinha imaginado se a estranha não seria, naverdade, inimiga do clã Scrymgeour, de John. Contudo, não houvera nenhum tipo dereconhecimento entre os dois.

O fato era que ele sentira pena da pobre moça. Apesar de cauteloso, tinha pena.

E... ah, como a desejava! A imagem daqueles braços e ombros cremososcontinuava em sua mente, atormentando-o. E a pele macia do ventre. Fantasiou despi-ladaquela estranha camisa. Sabia que os seios seriam ainda mais pálidos e mais perfeitos,se algo assim fosse possível.

Fechou os olhos, obrigando o corpo a voltar à compostura.Ele a manteria, por perto até descobrir a verdade sobre suas origens. E Deus o

ajudasse se ela mostrasse ser algo que não parecia.

Capítulo II

Haley completou outro círculo aflito pelo quarto, passando a mão ao longo da pedrafria das paredes conforme caminhava. A granulação áspera do granito ralava sua palma,mas ela não conseguia se conter. Algo tinha de tornar aquela experiência real e, por isso,ela comprimiu a mão com mais força na rocha úmida, impondo ao seu físico aquele mundoestranho, esperando que sua mente o acompanhasse.

Ela voltara no tempo. Não sabia como, só sabia que acontecera. A evidência estavaao seu redor. Porém, era algo além dos trajes, do gaélico e daquele frio do castelo que

agora ela sentia dentro de si mesma.Haley sabia. Sentia. Percebia na desolação à sua volta, no conhecimento animal,

que vinha das entranhas, tão antigo como o homem, de que poderia viajar por quilômetros

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em qualquer direção antes de encontrar outra alma viva. Podia sentir a ausência detecnologia como um silêncio repentino, e a natureza que a rodeava, poderosa, de umamaneira que nunca sentira antes.

Principalmente, sentia-se pequena e vulnerável.

E apavorada, a ponto de perder o juízo.

Parou. Precisava procurar alguma coisa que pudesse ser usada como arma. Jánotara o pequeno castiçal sobre a mesa de cabeceira. O jarro cheio de água poderia fazer algum estrago também. E enfiar no bolso a pequena faca da bandeja de queijo e pão foraóbvio. Seus olhos vasculharam o quarto. Tinha de haver algo mais.

Correu para o lado da cama pela centésima vez. Havia a mesinha com a vela, a jarra e a bacia. Ergueu o colchão fino. Era recheado de palha e fez um ligeiro ruído deamassado. Embaixo, havia uma rede tecida, presa à estrutura de madeira. Haley chutou abase. A coisa era muito reforçada para que ela pudesse tirar uma perna, e isso seriapercebido prontamente, de qualquer maneira.

A rede era uma versão do século XVII de uma cama de molas. Na verdade, era

benfeita, a corda amarrada com nós, fortes e passada por cima e por baixo de uma densaurdidura. Assim que cortasse a corda...

Oh, Deus, como? Colocou o colchão no lugar e sentou-se. Como escaparia dali?

Sua mente se voltou para a arma. E para aquela pintura tosca. Um painel demadeira ostentando as figuras rudes de um homem e de uma mulher. O homem eraMacColla, ela sabia disso agora. E ela era a mulher, com uma cicatriz no pescoço, quebrilhava com o sangue fresco. Mas de quem?

Aquela arma e aquela pintura eram as duas coisas que a vinculavam a... quando! 

Tentou situar-se no tempo e recordar-se da História. Quando e como MacColla

morrera? Fora numa batalha na Irlanda. Ele havia sido traído e assassinado. Ela não selembrava da data exata, apenas que fora na década de 1640. A época das Guerras dosTrês Reinos, aquele nome politicamente correto para algo a que alguns ainda se referiamcomo as Guerras Civis Britânicas. Mas quando, exatamente? 1645? 1646? E por que ela?Por que Alasdair MacColla? Procurou recordar-se de tudo que pudesse sobre aquelehomem. Era violento. Destemido. Mau.

Muitos proclamavam que ele inventara a estratégia de batalha que conferira aosescoceses das Terras Altas diversos triunfos em muitos anos: disparar um tiro demosquete e depois investir, terminando a batalha com espada e escudo.

Tantas vitórias famosas de MacColla! Tanta brutalidade infame!

Ele decerto era tão grande quanto os livros de História afirmavam. Haley nunca virauma imagem daquele homem, e pensou com um calafrio que o horrível painel de madeirapoderia ser a única representação dele que já existira. Mas a lenda não exagerara em seutamanho. Sua força era evidente no peito largo, nos braços fortes e nas coxas sólidascomo troncos, que à tinham aninhado enquanto cavalgavam.

MacColla. Com laços com as Terras Altas e a Irlanda. Com o desejo sanguinário dever todos os Campbell em túmulos.

Haley enregelou-se. Ela surgira, sabe-se lá como, no castelo de Campbell. Qualquer um acreditaria que ela era uma Campbell.

E depois, fizera aquelas perguntas idiotas sobre Graham. O pavor dominou-a, ao selembrar de sua insistência em afirmar que Graham não estava morto. O que MacCollapensaria disso? Devia parecer uma conversa maluca para ele. A conversa maluca de um

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inimigo. Oh, meu Deus...

Saltou de pé para mais uma volta pelo quarto. Cama, mesa. Duas janelas: nenhumvidro, aberturas muito estreitas para fugir. Porta: dobradiças? Uma possibilidade. Baú.

Haley caiu de joelhos, abriu o baú, viu a pilha de mantas de lã com cheiro de bolor em que já remexera uma dúzia de vezes e fechou-o depressa.

MacCoIla matava todos em seu caminho. E ali estava ela, em seu caminho.Olhou para as mãos trêmulas sobre o tampo de madeira. Controle-se, Haley.

Precisava acalmar-se se quisesse ser útil a si mesma.

Pense! Ele não a machucara. Na verdade, ele a salvara daqueles homens. Poderiatê-la matado umas doze vezes até aquele momento. Em vez disso, enfaixara gentilmenteseus músculos machucados, e a pusera com delicadeza sobre o cavalo, apesar das coisasterríveis que ela dissera.

Haley olhou ao redor com uma nova perspectiva. Um quarto, não um calabouço. Elanão parecia estar em nenhum perigo iminente.

A respiração agitada trouxe uma dor renovada a seu peito. Droga de machucado! Esse é que é o maior perigo.

Se estivesse no passado, fugir seria a morte certa. Para onde iria? Era evidente quemorreria de fome, de frio, seria seqüestrada ou assassinada.

Pousou a mão no chão frio de pedra e, com cuidado, sentou-se e se recostou nobaú.

O passado. Se estivesse mesmo no passado, poderia resolver o mistério do destinode James Graham...

Endireitou-se, com o coração acelerado.

Era um sonho transformado em realidade para qualquer acadêmico. Ela poderia ver por si mesma como tudo acontecera. Descobrir se Graham de fato morrera, ou sesobrevivera, passando a viver em segredo.

Estremeceu, decidindo que precisava saber.

Porém, e quanto à sua família? Deviam estar transtornados, esperando,preocupados.

Olhou outra vez pelo quarto. A jarra e a bacia. A vela ao lado da cama. O passado.

E se Graham estivesse lá fora em algum lugar? Haley esfregou os braços, alisandoos pelos arrepiados.

Ela o encontraria e depois acharia um meio de voltar para casa. Umas poucassemanas de incerteza para sua família, pela oportunidade de uma existência. Estivera tãopreocupada com sua pesquisa quando os encontrara naquele bar, que talvez eles atépresumissem que ela se enterrara no trabalho.

Contudo, onde estava agora? Seria aquela estranha e i bela pistola o objeto que aligaria ao seu tempo e ao seu lugar? Será que já a teriam fabricado?

Se ela tivesse mesmo aterrissado numa fortaleza de Campbell, provavelmenteestavam em algum lugar em Argyll.

Deus, encontrarei Campbell também? Haley arquejou e depois soltou uma risadadivertida. O retrato dele veio facilmente à sua mente. Fora um homem rico, poderoso epouco atraente. Tinha outros domínios, mas ela se recordou do nome de Loch Awe, queficava a oeste.

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Precisava de um plano. Levaria um tempo até sarar, e o usaria para investigar omundo ao seu redor, ver se poderia assinalar um lugar exato no tempo. Imaginou seFincharn tinha uma biblioteca. Isso seria a próxima coisa a fazer.

Mais do que tudo, precisava fingir ser alguém que não era. Deu-se conta de quenem mesmo dissera a MacColla seu sobrenome. Relembrou o encontro de ambos e fezuma prece muda de agradecimento por não ter dado qualquer pista de suas verdadeiras

origens. Ninguém poderia descobrir quem ela era.Haley sabia muito bem que homens como MacColla a julgariam uma feiticeira, e

tinha conhecimento do que isso significava nas Terras Altas do século XVII. Um homemcomo MacColla não pensaria duas vezes antes de acabar com ela, acendendo umafogueira adequada para uma bruxa. O raciocínio metódico gradualmente colocou-a emfoco, e a histeria que a sacudira abateu-se para uma pulsação distante.

Se não poderia contar a verdade, precisava de uma nova verdade.

Pensou com repentina clareza que as melhores mentiras eram elaboradas comdetalhes enraizados em fatos.

Embora ela provavelmente soubesse o que estava acontecendo na Escócia doséculo XVII melhor do que a maioria de seus habitantes, a compreensão que tinha dogaélico escocês não era lá essas coisas. O que não era bom se ela quisesse passar por uma nativa.

Mas a Irlanda... Ela conhecia bem a Irlanda. Era uma Fitzpatrick, de Donegal.Conhecia a História irlandesa. Droga, até fazia um pão levedado decente. Visitara osprimos muitas vezes, o suficiente para conseguir imaginar como era o país centenas deanos atrás.

Ela era e sempre seria Haley Fitzpatrick. E, daquele momento em diante, era daIrlanda.

Não sou uma prisioneira, Haley pensou. Não sou.

Embora continuasse dizendo a si mesma que MacColla não a pusera numcalabouço, após algumas horas sozinha no quarto, ela estava no limite, encolhendo-se acada ruído e voz distante no castelo. Por fim, resolveu que a única coisa que poderiatranquilizá-la seria testar sua teoria. Prisioneiros, afinal, não podiam andar livremente por aí.

Saiu do aposento, o coração batendo com tanta força que seu peito doía. Asescadas ficavam, graças a Deus, aperto de seu quarto. Ela se aproximou e desceu comcuidado. Seguiu para o corredor fronteiro de teto baixo, e depois para a porta de entrada

do castelo. Era grossa e arredondada na parte superior, com dobradiças trabalhadas deferro. Pousou a mão na maçaneta. O metal era frio e negro.

Continuou parada, à espera que alguém a impedisse de avançar, mas ninguém ofez.

Reunindo coragem, saiu. A porta girara mais facilmente do que ela esperava, eHaley virou-se para fechá-la atrás de si.

Com um suspiro, não conseguiu deixar de sorrir. Não se dera conta do misto decheiros que enchia os corredores do castelo até que o ar puro chegou a seus pulmões, oaroma de carvalho e de água fresca substituindo o odor de mofo e carne que pairava comopoluição, no ar interno.

Um cenário de tirar o fôlego a rodeava; colinas e picos distantes indo até onde avista podia alcançar. Atraída pela exuberância do lago, da margem coberta de vegetação eda confusão de árvores que crescia à sua beira, ela caminhou na direção da água.

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Seu coração diminuíra o compasso, mas ainda continuava com um martelar queecoava no fundo de sua mente. Tateou a faquinha no bolso da saia e a sensação do açofrio a acalmou.

Era uma coisinha que surrupiara de um prato de pão e queijo. Um velho cabo demadeira afixado a uma lâmina curta e serrilhada. Tirou-a e aninhou-a na palma. Fechou-ano punho. Como arma, seria difícil de segurar, difícil de controlar.

— O que está tramando, moça?

Haley assustou-se, e levou a mão às costas ao se virar.

MacColla estava parado ali, a curiosidade estampada no semblante. Usava omesmo manto no ombro, agora escovado. Sua enorme espada sumira das espáduas,embora Haley logo visse a adaga que pendia do lado de seu corpo.

— Pensei em dar um passeio. Não tenho permissão para sair?

— Tem — ele retrucou, num tom cauteloso. — Pode ir aonde quiser. Mas é melhor ficar atenta. Não vá muito longe. — MacColla olhou para as colinas e, depois, de volta paraela. — Scrymgeour é um aliado, mas muitos não são.

Haley não tinha certeza de como deveria responder a isso e, portanto, não dissenada. MacColla simplesmente continuou parado, encarando-a.

— O que você tinha aí? — perguntou, por fim.

— Hum?

— Atrás das costas, moça. O que escondeu?

Ela pensou em esconder a pequena arma. MacColla, porém, não era tolo. Sabia queela estava com alguma coisa, e era provável que se desse conta de que ela roubara algo.Assim, Haley achou melhor encarar a questão. Erguendo o queixo, ela respondeu:

— É uma faca. — Tirou a mão de trás das costas e abriu o punho para revelar afaquinha de queijo aninhada na palma.

MacColla relaxou os ombros, visivelmente aliviado.

— Planejando uma festinha, hein? — Para irritação de Haley, ele parecia reprimir um sorriso.

— Preciso de uma faca.

— Não precisa de nada assim.

— Posso necessitar me proteger.

— Se proteger? O que está tramando? O olhar de MacColla correu até a cicatriz nopescoço de Haley e se tornou sombrio.

— Por causa disso? — perguntou, baixinho. Haley desviou o olhar, espantada coma pergunta.

Embora a definisse de muitas maneiras, ela simplesmente se esquecera de queostentava uma marca tão horrível no pescoço. Correu o dedo de leve pela extensão docorte e deu de ombros.

— Você perguntou o que aconteceu... — Hesitou, sem saber por que resolveraabordar o assunto com ele. — Um homem... dois homens. Eles me atacaram.

Haley ouviu-o arfar e o fitou.— Não, isso não. Eles me deixaram apavorada. Fiquei bem. — Passou o dedo outra

vez pelo ferimento. — A não ser por isto.

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— E, então, você aprendeu a se proteger. — Ele fez um gesto de aprovação com acabeça.

— Sim.

Os olhos de MacColla se estreitaram, e o olhar que ele lhe endereçou intrigou-a.Embora Haley não soubesse o que significava, sentiu seu impacto fisicamente. Estava

desnorteada e, mesmo assim, aquele olhar carregado conectou-a à terra, ligou-a a algo, decerta forma. E ela sentiu-se... compreendida.

Então, ele a encarou com aquele sorriso largo, que enrugava os olhos castanhosamistosos e marcava a boca com linhas profundas. De novo, ela viu a pequena lasca nodente da frente. Um pequeno calafrio de emoção subiu por sua espinha. Ele apontou coma cabeça para a faca que segurava.

— Tem em mente retalhar seus inimigos até a morte? —Pensei que deveria praticar — ela disse, reunindo toda sua dignidade.

— Praticar cortando queijo?

Haley fez um ar inexpressivo. Sem tirar os olhos dele, passou um momentoencontrando o centro do equilíbrio da faca, balançando-a na ponta do dedo. Então, endirei-tando as costas, colocou a lâmina entre o polegar e os dedos indicador e médio. Virou-se.Mantendo o pulso firme, lançou-a com força, grata pela atadura nas costelas, que aliviavao movimento.

A faquinha girou e encontrou o alvo, o cabo estremecendo numa árvore próxima.

— Quero praticar isso.

— Gu seallaãh sealhbh ortl — MacColla dirigiu-se ao tronco, meneando a cabeça,como se maravilhado que a lâmina tivesse penetrado mais de dois centímetros na casca.Ergueu os olhos para ela e sorriu. — Puxa, mulher. Onde aprendeu isso?

— Com meu pai. — Haley retribuiu o sorriso sem querer. — Ele me ensinou.

— Mas ensinou como lutar com isso?

— Sim. — Ela foi até a árvore para recuperar a faca. Limpou a lâmina na saia, eemendou: — Lutar é o que ele mais me ensinou.

— Mostre-me. — O ceticismo marcava suas palavras, e Haley controlou o impulsode lançar a faca nos pés descalços de MacColla.

— Vou adorar — ela retrucou, com um desafio na voz. Tateou o pano que seapertava em torno de seu tórax, verificando se estava bem preso.

MacColla sacou a própria adaga da bainha. Haley fitou a arma, nervosa. Eram trintacentímetros de aço reluzente comparados à sua faquinha enferrujada.

— Não é uma luta justa.

— Nunca é, hein?

— Ótimo. — Ela deu de ombros. Tendo crescido com cinco irmãos, sabia desse fatomuito bem. — Umas poucas regras básicas, pelo menos. Você recua antes que essa coisame corte.

— Ou? — Ele abriu um sorriso largo.

— Ou eu corto suas costas. A risada foi sonora. MacColla concordou, o sorrisoainda na face.

Haley mordeu o lábio inferior. Era mentira. Não sabia como se defender daqueletamanho de adaga. Porém, seu pai mostrara a ela os movimentos básicos da briga de rua

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vida.

MacColla bateu com o lado do punho numa árvore e resmungou uma pragaenquanto sacudia a mão.

Voltara furioso para Fincharn, incapaz de pensar em qualquer outra coisa que não

fosse a cicatriz da moça. Um grosso cordão de pele marcando o pescoço que, caso con-trário, seria perfeito. Pensou no homem que se atrevera a cortá-la, e uma raiva irracional oengasgou.

Deu um passo de lado, acertando o punho em outra árvore.

Não sabia como, mas aquela mulher estranha o cativara. Ele compreendia o que erater algo roubado, entendia o sabor da vingança. Sabia muito bem o que era sofrer umferimento e, em vez de bater em retirada, virar-se para lutar.

Era o impulso de um guerreiro. Ele era um guerreiro, e reconhecera o espíritoguerreiro dentro de Haley.

Isso o emocionara. Fizera-o respeitá-la de um modo que nunca sentira antes. Quemulher tinha tanta coragem a ponto de enfrentar um inimigo com nada além de uma facade queijo?

MacColla enterneceu-se ao pensamento e deixou um sorriso curvar seus lábios.

Que tipo de mulher, de fato...

— MacColla rumou para oeste. — A ansiedade vibrava na voz de Nicholas Purdon.— Meus olhos o rastrearam através dos desfiladeiros, mas perderam a trilha perto damargem ocidental de Loch Awe.

— Sim — Campbell concordou. — Ele rumou para a água.

— Minha impressão, exatamente. — Purdon recostou-se na cadeira, parecendosatisfeito. Alisou os cabelos, com a testa enrugada,como alguém que estivesse muitoimpressionado com a própria sagacidade.

Campbell o fitou. O major estava sentado à sua esquerda à mesa de jantar deInveraray. Ele fizera um bom trabalho. Porém, ainda tinha de acabar com MacColla.Lançou um olhar para a bruxa sentada à ponta da mesa. A luz da vela lançava sombrassobre as feições duras. Ele a ignorava, e Purdon, sabiamente, seguia seu exemplo.

— Saiu-se bem. — Campbell ergueu o copo para o major.

Purdon esboçou um sorriso rápido de gratidão e disse: — Deve ser uma buscabastante simples. Há apenas um punhado de castelos a investigar ao longo do lago.

— Não se engane. Você fez um bom trabalho, mas sua tarefa ainda não estácompleta. — Campbell tomou um gole de seu conhaque. — Seria prudente não subestimar meu inimigo. MacColla é um selvagem, acostumado à terra como travesseiro. Eu nãodescartaria que ele optasse por uma copa de folhas em vez de um teto sobre a cabeça.

— Mas ele viaja com duas mulheres. Com certeza, elas não suportarão por muitotempo essas condições.

— Realmente. Não posso imaginar que aquele homem vá se demorar em algum

lugar por muito tempo.Duas mulheres, Campbell pensou. Seria aquela que tinham evocado capaz de

sobreviver a tais circunstâncias?

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— Bruxa! — ele gritou para a ponta da mesa. — A mulher que conjurou, de onde elavem?

— Eu não sei — ela retrucou.

Campbell trocou um olhar irritado com o major.

— Você não sabe — disse, sem rodeios.

Finola deu de ombros e, voltando a atenção ao prato, levou uma colherada deensopado à boca e começou a mastigar lentamente. Depois de engolir, voltou o olhar outravez para os homens. Um olhar plácido, inquisitivo, como se não tivesse idéia de qual seriao problema.

— Acabou?! — Campbell esbravejou.

— Você esquece seu intento — Finola falou, com calma. — Seu desejo era matar MacColla. Não aquela mulher. — Inclinou a cabeça. — Quando seu inimigo empunha umaespada, é contra a espada que você luta? Embora uma espada possa tirar a sua vida, alâmina não é sua inimiga. Aquele cuja mão segura a arma é seu único inimigo. Perder devista isso é perder a batalha.

— Está me ameaçando, mulher? — A fúria de Campbell ferveu em seu peito.Bruxaria. Uma diversão para mulheres e tolos. Ele escolhera aquele caminho por engano.Aquela Finola era uma arma, de fato, mas sem mira. Os poderes da magia negra pareciamaleatórios, como um peão a girar. Uma vez colocado em movimento, não havia meio decontrolar seu curso, sua intenção. — Fiz uma pergunta, e você me respondeu comasneiras.

— Bem, para onde MacColla se dirige? — Purdon indagou, num tom conciliador. —Vai zarpar para a Irlanda? Ao norte, para as Terras Altas? Ou primeiro ao sul, paraKintyre?

Finola apenas deu uma risadinha.— Onde está ele? — berrou Campbell, esmurrando a mesa. — Como sua bruxaria

pode ser poderosa se você é incapaz de responder a perguntas simples? — Fez um gestolargo para a mesa e as paredes. — Eu a tenho alimentado. Você tem água. Velasfornecem o fogo ao redor. Do que mais pode precisar? Jogue suas runas, leia as folhas,lance os ossos. Não me importo com o que você faça...

— Você presume muita coisa — ela disse, com uma risadinha tétrica. Seus olhoseram agudos como punhais sobre os dois homens. — Não pode esperar que eu preveja ofuturo aqui. — Olhou ao redor com desdém.

— Ah, mas eu espero, sim, isso de você. — A voz de Campbell era fria. — Você medisse que era a bruxa mais poderosa de toda a Escócia. Ora, prove o seu valor. Seusolhares ficaram cravados um no outro por um longo momento.

— Desafiar a sorte assim é uma manobra tola. — Finola enfiou a mão no manto, deonde retirou uma pequena bolsa de tecido. Puxou o cordão que a amarrava e pegou umobjeto do tamanho da palma, embrulhado em veludo escuro.

— O que é isso? — perguntou Campbell com rispidez. Empurrou a cadeira paratrás e caminhou até ela. Sua paciência se esgotara. Ela falava de sorte e presságios e, noentanto, a mágica da bruxa não forjara nada a não ser incerteza. Embora os truquesdespertassem sua curiosidade, ele queria evidências menos empíricas de sucesso.

Espadas, não pedras de adivinhação. Finola desdobrou o tecido.— Esta é uma keek-stane — disse, com a voz distante. Estendeu o veludo num

quadrado, aninhando o objeto em forma de bola nas dobras. — Para a adivinhação das

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visões.

Campbell inclinou-se para ver melhor. A luz ambiente pareceu tornar-se menosclara, insuficiente para iluminar o objeto. Apertando os olhos, ele percebeu que era vidro, etinha a parte de trás pintada de preto. Não era completamente redondo, como ele pensaraa princípio. A frente era côncava, e marcada por uma fenda profunda. A mancha era de umpreto tão escuro que parecia negar a luz.

Finola afagou a face polida e deslizou os dedos em torno da borda. Soltou unspequenos arquejos e, então, emitiu um grito tão alto e agudo que os homens levaram asmãos aos ouvidos.

O berro parou de repente. Revirando os olhos, a feiticeira começou a cantar:

Duas visões que eu possa ver, Alasdair MacColla, venha até mim.

Que eu possa ver, Venha até mim. Duas visões pairam livres, Surja para mim,

Finola abriu os olhos e exalou um suspiro muito longo. Inclinou-se para mais pertode seu keek-stane, apertou-o entre as palmas e arquejou.

— O que foi? — Campbell não via nada, a não ser o preto na face da pedra deadivinhação. — O que está vendo, bruxa?

Ela fechou os olhos mais uma vez, afastando as mãos do vidro e beijou as palmascom ternura.

— Cuidado, Campbell. — Ergueu os olhos para os homens parados a seu lado,muito agitados. — À maré virou. Não posso mais ver se a mulher provoca a derrocada deMacColla, ou a sua própria.

Ele se encolheu. Fazia tempo que suspeitava que a bruxaria da mulher era tolice.Porém, aquilo fora longe demais. Ele não vira nada além do negrume naquela pedra idiota,e sabia agora que estava certo em não confiar inteiramente nela.

— O que significa isso? — gritou, e atirou o copo na lareira. — Como poderia essaestrangeira, uma mulher, ser um perigo para mim! 

Ignorando-o, Finola virou o olhar duro para Purdon, que estava visivelmenteabalado.

— Você têm muito a recear.

Campbell lutou para não agarrar a bruxa pelo pescoço. Como saberia se ela oenganava?

— Como se atreve a se dirigir a meu homem, e não a mim? Vocês dois são meus

empregados. Você vai falar diretamente, mulher, comigol — Não sei o que a visão diz sobre você, Campbell. — Finola estava

perturbadoramente calma. — Apenas esse seu curso de ação não é mais prudente.

— Eu desisto de você. Desisto de sua... magia negra! — ele esbravejou. — Nãovejo nenhuma utilidade nisso. Seus talentos são meras tentativas de atrelar a fumaça.Você fala de reflexos em águas barrentas. — Campbell afastou-se depressa da bruxa.Parou ao pé das escadas e voltou-se de novo para ela. — Você foi paga. Saia agora. Seutrabalho está terminado.

— Você me abandona por seu risco. — O tom de Finola era como gelo negro numlago escuro, a superfície vidrada contestando a águas turbulentas por baixo.

— Que assim seja, bruxa.

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Ele não entendia. Bateu com a caneca na mesa, fazendo o líquido âmbar transbordar. As faces de Jean tingiram-se de vermelho, e ela baixou os olhos para o pratode ensopado. MacColla sentiu-se mal por aborrecer a irmã, mas não conseguira conter-se.

— E você tem certeza de que ele disse "desmobilizar"?

— Tenho — Scrymgeour retrucou, cauteloso. — A carta do rei pede que todos os

batalhões monarquistas sejam desmobilizados de uma vez. Mencionou especificamentevocê, Alasdair. Pedindo a você para debandar.

— Debandar... — MacColla resmungou. Toda aquela conversa sobre reis e cartas.Não significava nada. O rei não sabia nada sobre Campbell. Não sabia de sua luta, doserros que precisavam de vingança.

Sentiu uma onda de raiva e frustração. O mundo dos políticos se agitava, e aliestava ele, sentado com um copo de uísque e duas moças ao lado, quando o querealmente precisava era enfrentar o inimigo num campo de batalha, com nada além daespada às costas.

— Sim — Scrymgeour concordou, num tom grave. — Se você continuar essa rixa

com os Campbell, estará desafiando as ordens do rei.— Qualquer que seja minha luta com Campbell, desmobilizar as forças

monarquistas não irá conter os inimigos do rei no campo de batalha. — MacColla fitouScrymgeour, e o peso de seu olhar era algo que a maioria dos homens não enfrentaria. —Luto pelo clã MacDonald. Pela terra, pela honra. Existem coisas mais antigas que o rei,mais antigas que o Parlamento, ou os covenanters, ou qualquer dos muitos inimigosresolvidos a depor Carlos.

MacColla respirava pesado, tentando extrair sentido daquela reviravolta nosacontecimentos. Faria Campbell pagar por seus erros, e lutar era a única maneira. Sesignificasse estar em oposição ao rei, então, que assim fosse. Sacrificara muito pelo rei

Carlos. Lutara com James Graham contra Campbell e os covenanters, em defesa doestandarte do rei.

Seus lábios se retorceram, a face amarga de raiva, ao pensar nos incontáveishomens que perdera. Tantos do clã MacDonald caídos...

— Não voltarei atrás! — exclamou.

Levou a caneca mais uma vez aos lábios. Houvera um tempo em que pensara queseu serviço a Carlos seria recompensado. Imaginara que talvez o rei lhe concedesseterras. Um título. Mas, em vez disso, ele exigia a sua submissão?

— Não posso entender o que ele pensa — Scrymgeour disse — ao pedir a seus

simpatizantes...— O que ele pensa? — MacColla interrompeu, erguendo a voz. — Ele é um louco.

O que ele pensa...

Scrymgeour ficou tenso diante das palavras que soavam como traição.

Haley aventurou-se a dizer, com calma:

— O rei Carlos... — Quando todos se voltaram para fitá-la, ela deu uma tossidela ecomeçou outra vez. — O rei Carlos acha que, se puder fazê-lo dispersar suas forças,demonstrará a todos os inimigos que ele é sincero nas tentativas de promover a paz.

MacColla encarou-a, os olhos duros. Por fim, fez um lento gesto de cabeça.— É tarde demais para a paz. — Embora sua voz soasse calma, era fria como aço.

— Não me desarmarei. E se isso for um desafio tanto para o rei como para os

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covenanters, que seja.

Virou o copo, tomando um grande gole de bebida. Já se sentira isolado antes, masnunca recuara em sua luta contra Campbell. Se isso o tornava um aliado de ninguém, bem,ele não estava à procura de amigos.

Caçava inimigos.

Olhou com ar feroz ao redor da mesa, desafiando qualquer um que questionasseessa atitude e a taxasse de traidora. Scrymgeour, sentado do lado oposto, fitou-o, nervoso,por sob a borda do copo.

A moça estranha sentava-se à frente de sua irmã e foi a única da mesa queenfrentou seu olhar de igual para igual. Ele a encarou e encontrou, um olhar franco edireto, porém indecifrável.

— E você? — rosnou para ela. — Como sabe de tais coisas? Como posso ter certeza de que não é uma espiã de Campbell?

Haley abriu a boca para falar, mas ele a interrompeu.

— Fale-me desse seu nome estranho. — MacColla encheu o copo com outra dosegenerosa de uísque.

— Haley. — Sua voz soou monótona. — Haley Fitzpatrick.

— Fitzpatrick... — ele murmurou. — Uma irlandesa, é?

— De Donegal. — Ela endireitou o corpo.

— É mesmo? Conheço os Fitzpatrick, mas nunca ouvi falar de um nome tãoestranho como Haley. — Os olhos não desgrudavam dos dela, mesmo enquanto eletomava outro longo gole da bebida. — Só sei que acabou muito longe de casa. Ouaconteceu de ter sido seqüestrada, como foi minha Jean?

 Ah... Haley não pensara nessa parte dos eventos. Resolveu mudar de assuntodepressa.

— Ora, é uma história engraçada. Do meu nome, quero dizer. — Na verdade, elanão sabia onde seus pais tinham arranjado aquele nome. Imaginava que sua mãe o ouviraem algum lugar, gostara do som e pronto. Como não podia falar a verdade, decidiuinventar um pouquinho. — Minha mãe me achava um bebê barulhento de pulmões fortes,enérgico. E, da palavra "hale", vigoroso, resolveu me chamar de Haley.

MacColla continuou a encará-la, mudo. Então, de repente, explodiu numagargalhada. Deu um murro na mesa e bateu o copo no dela. Ao ver que estava vazio,encheu-o.

Haley ergueu o copo. Ao chegar ao nariz, sentiu os olhos lacrimejar. Aquela era umaporcaria de bebida. Ergueu-a até a luz da vela, imaginando se a deixaria bêbada.

Fechou os olhos com força e encostou o copo frio à testa. Droga. Abriu-os de novo,e correu-os pela mesa. Na situação em que se encontrava... Olhou para o copo na mão.

— Slàinte — disse, erguendo-o na direção de MacColla antes de entornar a bebidanum único gole. — Ah! — exclamou, e sacudiu o corpo num calafrio cômico. Bateu o copona mesa, empurrou-o para MacColla e sorriu através das lágrimas.

Não quis pensar na estranha sensação de satisfação que a aqueceu por dentro aoouvir a risada de MacColla explodir em resposta.

Observou-o servir-se de mais uísque, percebendo vagamente os olharesconstrangidos trocados entre os outros dois à mesa. O triunfo que sentiu ao escutar a

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cadeira de Jean arrastar-se foi algo que ela não poderia negar.

— Jean — Scrymgeour disse. Parecia nervoso com o comportamento agressivo doamigo, e dirigiu toda a atenção para a irmã de MacColla. — Posso...

— Sim — Jean murmurou. — Por favor, John.

— Se puder nos dar licença, Alasdair... —Scrymgeour já se levantara e ajudava

Jean com a cadeira. — Sra. Fitzpatrick... — Inclinou a cabeça na direção de Haley.— Sr. Scrym... geour. — Com certeza, era o título errado para o homem, mas Haley

duvidava que ele tivesse entendido o que dissera, de qualquer forma. A bebida arequeimava por dentro, enrolando sua língua. Para disfarçar, esboçou seu melhor sorriso.

Um silêncio constrangido caiu entre ela e MacColla no momento em que os outrosdois se retiraram. Ela vasculhou o cérebro em busca de algo para dizer, principalmenteporque não estava pronta para voltar ao quarto para passar a noite. Precisava de algo maisanestésico para poder dormir.

Além disso, a questão da morte de James Graham se tornara uma obsessão. E aliestava ela, sentada com provavelmente o único homem que conhecia a verdadeira sortedo famoso herói de guerra. Talvez se deixasse MacColla bêbado, ele revelasse algo,

— Hum... — ela resmungou. — Dizem que foi São Patrício que introduziu adestilação do uísque na Irlanda. — Ou assim seu pai proclamava, com um fervor queimplicava que saborear sua dose tinha algo de inspiração divina.

— Da mão do próprio Todo-Poderoso, hein?

Só quando ergueu os olhos e viu o ar divertido nos olhos de MacColla foi que Haleypercebeu que ele não falava a sério.

— Hum... — Haley tomou outro grande gole. O arrepio foi um pouco mais sutil dessavez. — Certo. É isso. — Bateu a mão na mesa. — Tem uma moeda ou algo assim?

— Uma moeda?

— Sim, você sabe, dinheiro. Uma moeda.

— Eu... — Ele pareceu hesitante.

—Oh — ela fez um gesto de descaso —, minha encantadora companhia é de graça.Só preciso de um pouquinho de ajuda para fazer esta coisa descer. Vamos lá, MacColla.Confie em mim.

— Ora, mas eu não confio em você, moça. — A voz dele soou fria e indiferente, e aexpressão era indecifrável. Só quando Haley começou a ficar nervosa, julgando que

passara dos limites, ele caiu na risada. — Não se preocupe. — Ele estendeu a mão esegurou-lhe o queixo. — Confiar em você, eu não confio — pegou na bolsa do cinto umamoeda de prata. — Mas vou escutá-la, está bem? — Jogou-a para Haley, que pegou amoeda com facilidade.

Ela segurou o metal entre os dedos, avaliando o homem a sua frente. MacColla era,evidentemente, muito mais que um bruto unidimensional, como a História o retratara,Estudou-o. Até aquele momento, tudo o que ela registrara de fato haviam sido as feiçõesfortes e morenas, e a tremenda intensidade que emanava dele. Porém, no momento eletinha o semblante e o corpo relaxados. Embora os olhos estivessem encobertos, e aexpressão fosse impossível de se ler, Haley imaginou que ele se mostrava o mais aberto

possível.Ela não conseguia se esquecer, em especial, de como ele era atraente. Grande,

moreno, forte, com lampejos de ternura que derretiam um ponto secreto em seu íntimo.

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Haley não queria admitir para si mesma que procurava cada vez mais esses lampejos,encorajava-os só para ver as feições duras se suavizar e sentir o gratificante encontro deseu olhar com o dele.

— Certo — disse, depressa e um pouco ofegante —, eis o trato. Você tem de fazer a moeda ricochetear dentro do copo. Se conseguir, ótimo. Se não, tem de beber oconteúdo do copo.

Ele a encarou, incrédulo, por um momento.

— Tem certeza, moça?

— O quê? — Fitou-o e viu o brilho divertido nos olhos dele. — Oh, entendi! Vocêacha que pode me vencer.

Ele riu e pegou a moeda, jogando-a sobre a mesa num movimento rápido. A moedabateu na madeira, subiu e caiu no chão.

— Você tem certeza, MacColla? — Ela sorriu e apontou para o copo, para que elebebesse.

Haley estendeu a perna e, prendendo a moeda sob o pé, puxou-a em sua direção edepois a apanhou. Bafejou o metal, dando brilho à prata, sustentando o olhar de MacCollao tempo todo.

Inclinou-se e, olhando pela superfície da mesa, mexeu o copo, como se fizessemedições importantes.

Sua habilidade excepcional naquele jogo tornara-se uma lenda entre os amigos deseus dois irmãos gêmeos em Boston, e ela pensou que poderia muito bem se aproveitar disso.

— Se eu conseguir, você tem de responder a uma pergunta.

— Uma pergunta? — Ele observou a mão de Haley subir e descer, aprontando-separa a jogada. — Que tipo de pergunta?

— Apenas uma pergunta corriqueira. — Ela soltou a moeda, que bateu no tampo damesa, pulou para trás e caiu facilmente dentro do copo.

A risada do guerreiro ressoou pelo quarto, e ele assustou a ambos quando estendeua mão para lhe dar um tapa no ombro.

— Você é uma criatura esperta.

— Obrigada. — Sorrindo diante do gesto de aprovação, Haley empurrou o copo nadireção dele. — Sou uma mulher de muitos talentos.

— É mesmo? — Ele arqueou uma sobrancelha. O duplo sentido a faz enrubescer.

— Sim... o quê?

— Qual é a pergunta, moça?

— Ah... isso. Claro. — Haley imaginou o que deveria perguntar. Não poderiaabordar a questão de James Graham de imediato.

Enquanto ela pensava, ele tentou mais uma vez colocar a moeda no copo, e falhou.Sem querer, Haley se percebeu perguntando: — O que o move, MacColla?

— O que me move? — ele indagou, e virou o copo de uisque.

— Sabe, o que o induz, o compele, o inspira.Ele deu de ombros, como se aquela fosse a pergunta mais simples do mundo.

Encheu o copo e empurrou-o para Haley. — Matar Campbell, é claro.

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— Essa é a sua pergunta?

— Você sabe que não. — Com um sorriso, ele apontou para o copo, indicando queela precisava esvaziá-lo.

— Eu sei, eu sei. — Haley pegou o copo. Já acostumada ao gosto, entornou abebida e gostou da sensação que correu por suas veias.

Ele a fitou em silêncio.— Nunca tinha visto uma moça capaz de agüentar o uísque no estômago.

— Bem, dizem que dá mais energia que o chá, certo?

— Dizem, é?

— Sim, como na música. — Sentia-se solta agora. Não embriagada, masagradavelmente tonta. Serviu outro gole no copo e, erguendo-o, cantou uma frase dacanção predileta de seu pai, louvando as bebedeiras: — Você é mais doce, mais forte,mais decente, mais animador que o chá... — Imitou o sotaque irlandês do pai. — Oh,uísque, você é meu querido, bêbado ou sóbrio.

Os dois riram, mas Haley logo sentiu dor e levou as mãos ao peito.

— Puxa, calma, moça. — MacColla ficou em pé. Parecendo inseguro quanto ao quefazer, pegou a jarra e encheu o copo. — Mais disto aqui pode ajudar a aliviar a dor.

— Oh, é mesmo?

— É sim, moça.

— Hum... — A alegria provocada pelo uísque foi de repente substituída pelamelancolia. — Isto não está ajudando.

Haley sentia-se encurralada, mandada de volta para o século XVII sem saber como,

ali sozinha com aquele homem, famoso por seus feitos perversos em combate, e semmeios de voltar ao tempo a que pertencia.

— Venha. — A voz soou baixa, e Haley não tinha certeza de tê-lo ouvido falar. Masentão, sentiu as mãos dele, firmando-a por trás, massageando os músculos doloridos desuas costas.

Ela examinara aquelas mãos antes e podia imaginá-las agora. Os dedos, longos efortes, e as palmas, largas e grossas. Aquelas mãos enormes empalmavam suas costasfacilmente. Subiam e desciam com gentileza, testando os pontos sensíveis entre ascostelas até encontrar a fonte da dor. Haley não era uma mulher pequena e, no entanto,sentia-se quase delicada ante aquela presença musculosa.

— Eu... — Tentou falar, mas não conseguiu. Tinha de controlar-se. Aquilo erainesperado. Alasdair MacColla... fazendo massagem em suas costas? Desesperada parareadquirir o controle da situação, perguntou: — O que pode me dizer a respeito de JamesGraham?

Ele ficou imóvel por um instante, mas depois prosseguiu.

— Acho que a questão é, moça, o que você pode me dizer?

— Que ele foi capturado.

— Sim.

— Hum... ai... O polegar de MacColla apertou um nó. Haley arquejou, e elemassageou o local com lentidão e delicadeza.

Ela não percebera como seus músculos estavam nodulosos até que os dedos dele

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localizaram o ponto de tensão e o afrouxaram, provocando uma onda quente de sanguepelo torso. A caixa torácica se abriu, e ela respirou profundamente pela primeira vez desdeque se machucara.

Oh, Deus, é o paraíso! Espere. Concentre-se.

— E depois... depois ele foi levado em desfile pelo país.

— Todos sabem disso. Haley pestanejou por um instante, tentando recobrar o bom-senso. O ar em seu peito a deixara meio tonta.

— E foi... enforcado? — arriscou.

— Assim dizem.

— Hum... — Assim dizem. Fato? Ou boato? Haley estava prestes a insistir, quandoo polegar de MacColla roçou a parte inferior de seu seio. O toque pareceu bastanteinocente. Ele tivera a intenção de massagear seus músculos tensos, e o contato foraacidental. Mesmo assim, seus mamilos se enrijeceram e a respiração ficou ofegante,apesar da abertura dos pulmões.

— Mas... mas alguém viu... — O ar entrava em inalações rápidas e curtas, conformeos dedos de MacColla esfregavam a curvatura sensível sob o mamilo.

— Viu o quê, Fitzpatrick? — O tom era direto, de simples curiosidade. MacColla nãoparecia suspeitar do que ela falava, ou do que seu toque fazia com ela.

— Viu... — Oh! Haley virou-se ligeiramente. De propósito. Na direção dele. Tinha desaber se o contato era deliberado. Que Deus a ajudasse, esperava que fosse.

— Sim?

A voz soou rouca e baixa. Será que ela ouvira um eco do próprio desejo ali?

Um pigarrear soou, e MacColla afastou-se de imediato. Era Scrymgeour, parado nasoleira da porta, observando.

— Acho que deveríamos nos retirar para minha sala de estar, MacColla. — Elecorreu os olhos pelo aposento, e Haley não soube se o que viu neles era julgamento,curiosidade, surpresa, ou um pouco de cada coisa.

— Sim. — O gesto de cabeça de MacColla foi brusco. — Se... se puder medesculpar — disse a ela.

Desculpar. As palavras tinham algum sentido velado? Ele quisera tocá-la? Ela haviapercebido sua intenção ou simplesmente a imaginara?

— Sim — Haley respondeu. — Naturalmente.

Quando MacColla saiu, ela soltou um suspiro fundo, O movimento provocou umanova contração aguda de lado. Mas, com ela, veio o bom-senso.

* * *

— Está tentando me matar? — Haley puxou a coberta sobre o rosto, virando-se decostas para a irmã de MacColla. Um tambor batia em sua cabeça, e a luz só fez aumentar o rufar num crescendo até que ela pensou que seu crânio iria rachar.

Suas órbitas doíam, a garganta estava seca, o cérebro embaralhado e, qualquer 

que fosse o uísque, tinha lhe dado uma ressaca muito dolorosa.Ao ouvir Jean soltar um bufo de irritação, espiou, hesitante, por baixo da coberta. A

garota ainda estava ali, de pé, segurando o copo que trouxera. O líquido branco viscoso

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— Eu...

— Você não acredita.

Haley percebeu que a afirmação era verdadeira. Menosprezava Jean, e a garotasabia disso.

— Bem, nem todas podem agir como você — ela prosseguiu. — Só porque eu não

me fanfarrono por aí...— Eu não faço isso... — Haley protestou.

— Só porque eu não me fanfarrono por aí como um homem, não quer dizer que nãoposso conseguir que um homem me escute. Eu me atrevo a dizer que meus irmãos seimportam mais comigo do que um com o outro.

— Por que não é casada? — A pergunta espicaçou Haley de repente. Jean eravelha para os padrões do século XVII.

— Eu fui. — Embora o tom não permitisse perguntas, o sofrimento que tocou osemblante de Jean por um momento foi nítido. — Ele morreu. Sou viúva.

— Eu... oh... compreendo. — E, pela primeira vez, Haley realmente compreendeu.Jean estava de pé diante dela, com os longos cabelos pretos e as feições delicadas, tãolinda, tão jovem... e, mesmo assim, pelos padrões do século XVII, sua vida acabara. Iria dacasa de um irmão para a de outro, esperando o melhor. E o melhor seria encontrar algumviúvo para voltar a se casar.

Haley sentiu-se envergonhada.

— Sinto muito.

Jean fitou-a por um longo instante e, por fim, falou:

— Sim, vejo que sente. Não sei de onde vem, moça, ou quem é sua família. —Sentou-se na beirada da cama, a proximidade suavizando as palavras. — Mas faria bemem lembrar-se da sorte que tem em andar por aí como faz. Lutando, conversando,bebendo como um rapaz. Outras moças o fariam, se pudessem.

A mensagem era clara. Jean estava falando de si mesma. Ela andaria por aí comtanta independência, se pudesse. Ela falaria o que passasse em sua cabeça tão livrementetambém.

Haley sentou-se e, no fundo da mente, registrou que a pulsação ensurdecedora seacalmara, transformando-se em algo parecido a uma dor de cabeça forte.

— Você tem razão, é claro. Porém, estou longe de casa agora. — Recostou-se à

cabeceira da cama. Precisava de um aliado e de uma possível boa fonte de informações.— Acho que eu faria bem em me lembrar disso. Vai me ajudar, então? A lembrar ondeestou agora?

Jean pareceu assustada. E depois contente.

— Oh, sim. — Sorriu, hesitante, e estendeu a mão para tatear o tecido preto dovestido que Haley ainda usava. Embora tivesse tomado um banho, não tivera outra escolhaa não ser pô-lo de novo. — Posso vesti-la primeiro?

Um sorrisinho foi a resposta de Haley.

A luz do dia era um clarão a requeimar em sua consciência. Bebera demais.Perdera o controle e bebera demais.

MacColla rolou de bruços na cama e tentou expulsar a estranha mulher da mente.

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mais força contra o peito dele. — Isso realmente não é necessário.

Porém, quando chegaram ao pé dos degraus, o aroma que vinha da cozinha estavaainda mais pronunciado.

— Ah... — Ela suspirou, e seu estômago roncou de novo. — Acha que ainda temcomida?

— Tem, sim. — MacColla parou, mas ela segurou-se cora mais força, achando quenão estava preparada para pisar no chão. Sentia-se segura em seus braços, e as sombraspelo corredor eram negras e frias. Ele deu uma risadinha e continuou andando. — Semprehá comida.

Brasas alaranjadas e vermelhas aqueciam o fogão, iluminando o ambiente efazendo as sombras dançar pela cozinha.

MacColla a colocou no chão, encostando-a à bancada do açougueiro no meio dopequeno cômodo. Haley se virou e começou a procurar algo para comer, enquantomurmurava:

— Um belo e enorme sanduíche... algumas batatinhas... quem sabe um pouco desorvete de creme... — Ergueu a beirada de um guardanapo e suspirou, ao ver um grandepedaço de pão duro. — Olá...

Ele agarrou-lhe a mão com uma risadinha.

— Tenha paciência, moça. Espere um momento. — Encostou-a mais uma vez àmesa e se dirigiu a um canto. — Agora, se eu conheço minha irmã...

Haley ouviu um ruído de coisas sendo empurradas.

— Ah! Aqui está! — MacColla abriu uma latinha e cheirou o conteúdo. — A mãe domarido de Jean deu a ela de presente alguns livros para damas, com todos os tipos depoções e receitas. — Tirou algo de dentro da lata e estendeu a Haley. — Bolachas dopríncipe. Têm um pouco de doce, que vão lhe fazer bem.

— Eu não imaginava que Jean tivesse sido casada — disse, pegando o biscoitoaçucarado da mão dele. — Estávamos conversando de manhã e... oh... — Haley morderaum pedaço. Ainda estava morno, e ela pôde sentir o gosto de manteiga. — Tem... temaçúcar aqui! — exclamou, com a boca cheia.

— Sim. — ele ergueu as sobrancelhas, intrigado.

— Vocês não têm açúcar?

— Sim temos, mas... — Ela fez uma pausa. — De onde...

— Vem? Das índias Ocidentais. — Ele apertou seu queixo com um jeito brincalhão.— Não somos tão bárbaros assim.

— Bem, Scrymgeour não é, pelo menos.

O comentário o silenciou, até que ela o encarou, sorrindo. Uma risada sonoraescapou de MacColla, e algo dentro de Haley conectou-se a ele, fazendo-a rir de novo.

Ele continuou observando-a, com um brilho divertido nos olhos.

Os livros de História estavam todos errados, Haley percebeu. MacColla foraretratado como um destruidor, um selvagem, mas diante dela estava um homem que faziaapenas o que precisava fazer. Sua raiva e sede de vingança tinham brotado num lugar de

alegria e amor, a ferocidade mais intensa pela profundidade desses sentimentos.Meneando a cabeça, MacColla deu uma mordida no biscoito, sem deixar de fitá-la.

Haley sentiu a boca seca e engoliu com dificuldade. A mente embotou-se e, por 

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alguns segundos, ela perdeu o foco.

— Quanto tempo isso dura, afinal? — perguntou, ansiosa para preencher o silêncio.

— Dura?

— Sim, sabe como é, por quanto tempo isto continua bom? É delicioso.

— Meses. Sim — afirmou, diante de seu olhar incrédulo —, e quando ficar muitoduro, Jean vai quebrá-lo. Com um martelo.

— Um martelo?

— Isso, uma pequena marreta. — Ele a olhou por um momento. — Você não parecemuito familiarizada com uma cozinha, moça.

Haley resolveu que precisava mudar de assunto.

— O que aconteceu? Ao marido de Jean, quero dizer.

E então, foi como se alguma luz interna que animasse MacColla se apagasse.

— Morreu por minha causa — disse, gravemente.

— Você matou seu cunhado?

— Não! Ele... — MacColla recostou-se perto dela na bancada. — Foi em batalha.Minha espada quebrou e...

— Você quebrou a espada?

— Sim — ele respondeu, com um sorriso triste —, isso acontece. Num campo debatalha.

— Hum... — Ela o encarou com ar de ceticismo, inadvertidamente correndo os olhospelos músculos fortes de seus braços. Não imaginava que existissem muitas espadas de

um metro e oitenta de comprimento, manejadas com as duas mãos, que rachassem numcampo de batalha. — E o que você fez?

— Não foi o que eu fiz. Foi o que ele fez. Donald viu minha espada se partir e medeu a dele. Eu estava no meio da luta, liderando os homens. Quando minha espadaquebrou, uma nova apareceu na minha mão. Não tive tempo de pensar nisso... Ele morreu,claro. E minha Jean... pobre moça. O que ela realmente queria, e o que teria tido, era umacasa cheia de pirralhos. Se não fossem minhas lutas... — Passou a mão pelo rosto. — Lutopelo clã. Por Jean, de certa forma. Mas, se não fossem minhas batalhas, ela talvez tivesseuma casa em algum lugar, com um marido em sua cama e um punhado de filhos a seuspés.

Haley imaginou ter filhos aos seus próprios pés. Nunca pensara nisso antes, tãoabsorvida estava no trabalho acadêmico. Além disso, sempre imaginara que seus irmãosterminariam com uma dúzia de crianças a rodeá-la. Pela primeira vez, pensou que algoassim poderia ser realmente bom, se fosse com alguém a quem amasse.

— Mas você luta pela família, e esse é um bom combate. Sem ele, Jean não teriaum lar em parte alguma. Não de verdade. Não com Campbell a triunfar.

MacColla esboçou um ligeiro sorriso.

— Está tentando me converter?

— Não. Eu sei. — Sem pensar, ela estendeu a mão e pousou-a na manta que lhe

cobria o peito. — Sei que é uma boa luta. Mas...— Mas o quê, moça?

— Mas... — Haley fitou-o nos olhos. Eram cálidos e francos. Avaliou-o por inteiro.

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Ele tomara banho, e o cheiro de sabão emanava dele, misturado ao aroma da pele, algocomo couro, lã e almíscar.

O rosto estava bem barbeado, e a luz fraca do fogo delineava o queixo forte com umbrilho dourado. MacColla também lavara os cabelos, ela podia dizer pelos fios quedescansavam em ondas leves sobre o ombro.

Haley olhou realmente para o homem que tinha à sua frente e sentiu uma pontadaforte no peito, uma emoção indizível que parecia partir seu coração ao meio.

Ela era apegada ao lar. Sentia saudades do pai, da mãe, dos irmãos. Sofria com aincerteza quanto ao que acontecera, ao que estariam fazendo naquele momento, ao quedeveriam estar pensando. Imaginava, principalmente, como e quando poderia voltar paraeles. E, mesmo assim, gostaria de poder ficar ali, com MacColla, só um pouquinho mais.

Ele a encarou, esperando, com aqueles olhos castanhos que se enterneciam agorapor ela, e Haley pensou que aquele homem mudara algo em seu íntimo. Deu-se conta,naquele momento, de que se importava com ele.

Embora indecisa em relação ao que dizer, sentiu necessidade de lhe contar alguma

coisa. Mas o quê? E quanto?Ela sabia. MacColla iria morrer. Numa batalha, na Irlanda. Mas não sabia por quê

nem quando. Ele morreria e deixaria para trás tanta gente que dependia dele.

Ela ainda estaria ali quando isso acontecesse? MacColla a deixaria para trás?

A aflição a invadiu. Gostaria de recordar-se da História. Exatamente do queacontecera, e quando.

— Tome cuidado na Irlanda — disse, por fim.

— Na Irlanda? — Ele a encarou, confuso. — O que sabe da Irlanda?

— Sei que é... perigoso. Ele caiu na risada.— Perigoso?

— Falo a sério. — Haley sentiu-se desanimada de repente e recostou-se ao balcão.— Presumo que vá voltar lá, não?

— Sim, e logo. Para reunir mais homens para a luta.

— Só...

Haley imaginou como dizer àquele homem que sabia onde ele iria morrer. Sentiu-seimensamente triste, de súbito. A sensação de que havia algo que ela poderia fazer de quehavia algo que precisava fazer, mas que não sabia o que era, a importunava sem cessar.

— Só... por favor, tome cuidado, MacColla.

Haley caíra de imediato num profundo sono sem sonhos. Pela primeira vez em dias,estava saciada, sentindo-se plena, aquecida e deliciosamente exausta.

Não tivera como despir-se por completo. Nem vontade. A horrível engenhoca queera seu espartilho provocara o efeito irônico de firmar seus músculos machucados. QuandoJean o amarrara pela primeira vez, ela quase desmaiara de alívio.

E assim, depois que MacColla a ajudara a voltar para o quarto, ela se enfiara na

cama, de espartilho e tudo, suspirando ao afundar num monte de travesseiros, ondedormira confortavelmente ereta.

Porém, despertara de repente. Uma palma se fechara sobre sua boca e, por um

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momento, Haley pensara, tivera a esperança, de que MacColla a estivesse procurandopara passar a noite.

MacColla. Que alívio! Ele viera tomá-la. Ele a desejava, e esse desejo a faziareconhecer como o desejava também.

Seu corpo relaxou ante o pensamento. Ela não imaginara a intenção de MacColla

na noite anterior, quando se sentara e bebera com ele, e ele massageara suas costas comaquelas mãos grandes tão gentis. Lembrava-se dos toques acidentais em pontossensíveis. Não tinham sido acidentais, afinal.

 Alasdair MacColla. Viera procurá-la, e aquilo pareceu a única coisa certa quepoderia acontecer.

Contudo, ouviu a voz a seguir. Estranha, nova, mais anasalada que a dele, comseus "erres" roucos.

— Fique quieta ou morre, cadela!— a voz rosnou.

Seus olhos se esbugalharam. E então, Haley viu a lâmina. Fria e dura, como aquelafaca de tanto tempo atrás. Respirou fundo. O aço frio em sua garganta. Era a única coisano mundo com a capacidade de imobilizá-la. A única coisa capaz de roubar todo o seucontrole. Sentiu a lâmina no pescoço e enregelou-se.

Calma. Pense. Percebeu que havia dois homens no quarto e, no mesmo instante,seus sentidos ficaram em estado de alerta. Escuro. Meio da noite.

As mãos pareciam estar por todo seu corpo. Um número impossível de mãos. A sefecharem em sua boca, a agarrarem seus braços, segurando a faca em seu pescoço.

As lágrimas saltaram de seus olhos quando ela se deu conta do que estavaacontecendo. Não era MacColla, afinal. Eram estranhos. E ela estava sozinha, num quartolonge dos demais, Scrymgeour fora cuidadoso, colocando as mulheres em quartos a uma

distância decente dos homens.E isso seria sua ruína.

Ninguém ouviria seus gemidos, o ruído de pés se arrastando. Ela desapareceria nanoite, sem ninguém por testemunha.

A adrenalina inundou suas veias, acelerando o coração a um compasso frenético.Ela soltou um berro e mordeu a mão com força. Ouviu uma praga murmurada, e a mão emsua boca apertou-a com mais firmeza.

Dedos enfiaram-se com rudeza em seus cabelos, e ela torceu o corpo, desajeitada,ao ver-se arrastada para fora da cama. O espartilho rígido que proporcionara tanto alívio

torcera-se e a espetava. A dor ardeu em seu peito, e o terror foi subjugado por umaabençoada onda de fúria.

Ela se debateu como uma louca, os gritos abafados por uma palma que tinha agoraum gosto metálico. Arrancara sangue. O pensamento a fez entrar em foco, e ela lutou maisfreneticamente, porém os braços só a agarraram com mais força, puxando-a contra ocorpo sólido às suas costas.

Um ruído de pano rasgado encheu o quarto. Os lençóis?

Mãos se fecharam como garras em seus pés. Ela chutou, acertou o que pensou quefosse um queixo, e depois havia apenas ar quando o chão sumiu sob seus pés. Haley se

contorceu, tentando livrar-se dos homens que a seguravam, ignorando a agonia horrívelque se espalhava por seu corpo.

Seus movimentos não impediram que uma tira de linho fosse enfiada em sua boca e

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passada ao redor de sua face, cortando a pele, silenciando-a de modo mais efetivo do quequalquer mão.

Foi fácil depois, para os dois homens, arrastá-la pelas escadas e pela porta. Haleyviu o castelo de Scrymgeour entrar nas sombras, a imagem oscilando em meio a umanuvem de lágrimas.

Pare.Ela precisava acalmar-se, ou sufocaria com as lágrimas. Tinha de concentrar-se. Lutar. Pensar.

Aquilo não poderia ser um ato de violência aleatório. A Escócia do século XVII eraabundante em rixas e desforras.

Quem? Mesmo enquanto a pergunta saltava à sua mente, ela soube.

Campbell.

Homens invadindo as terras de Scrymgeour à noite. Vingança dirigida a um aliadode MacDonald, ou ao próprio MacColla. Só podia ser aquele sujeito.

Ele seqüestrara Jean uma vez. E agora, ela era levada em plena noite.

Chegaram a um grupo de árvores, e os homens a colocaram de pé no chão. Obaque a sacudiu, provocando uma nova onda de náusea. Ela se curvou, engolindoconvulsivamente, empurrando a bile de volta pela garganta. Sufocou a dor e tentoucontrolar a respiração, julgando que realmente poderia se engasgar se vomitasse.

O pano em sua boca estava escorregadio, ensopado de sua própria saliva. Haley omordeu. Esticou o queixo para baixo e forçou a língua pela abertura, tentando tirar o panoda boca, mas ele não cedeu.

Quando recuperou o fôlego, percebeu um silêncio tenso ao redor. O ar pesava coma espera. Um arrepio subiu por sua espinha. Campbell.

Por uma fração de segundo, ela teve esperanças de que talvez ele tivesse sidotratado com rudeza pelos livros de História. Talvez Campbell fosse um homem gentil.Talvez tivesse sido apenas a vontade de narrar a história entre os bons e os maus que lhegranjeara a fama de vilão.

As nuvens se adensavam ao alto, acinzentando o céu da noite. Mas, naquelemomento, elas se abriram, e um luar brilhante cortou as árvores, iluminando-os num fachosobrenatural de claridade.

E ela então o enxergou com clareza. Reconheceu Campbell de todos aquelesretratos. As feições empapuçadas mais pálidas sob o luar do que em qualquer pintura emque fora retratado. A crueldade animava aquele semblante. Estava escrita nos cantos dos

olhos. Delineava-se nos lábios finos e repuxados.Haley o viu e soube.

Ele era tão mau quanto haviam dito.

Jean bateu à porta mais uma vez. Era sólida e, mesmo batendo com força, nãoconseguia provocar muito som. Pensou em chutá-la, imaginando se Haley a chutaria, mas,em vez disso, resolveu abri-la.

O quarto estava silencioso, e ela se irritou. Será que a mulher ainda dormia? Beberacomo um homem e depois passara o dia inteiro no quarto. Estaria planejando vagabundear por mais outro? A atitude era nova para ela. Apenas a morte manteria Jean na camadurante o dia.

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— Sua irmã tem novidades a respeito de nossa... hóspede — disse Scrymgeour.

Jean olhou para ele, buscando forças. Embora tivesse soltado seu cotovelo, eleainda estava perto, a seu lado. Ela sentia falta do cuidado de um homem. Era bom selembrar de como era ter alguém para falar por ela nas horas difíceis. Voltou o olhar para oirmão.

— A cama dela está fria. Eu poderia jurar que ela sumiu antes do amanhecer.— O quê? — As feições de MacColla tornaram-se sombrias. — Droga! — eleresmungou, caminhando até o lado da cama para pegar a manta xadrez. Lembrou-se daconversa com ela na cozinha, os avisos estranhos de Haley sobre a Irlanda o haviamincomodado. — Eu sabia que algo estava errado. Ela fugiu?

Jean encolheu os ombros.

MacColla meneou a cabeça, impaciente. Sua irmã não tinha idéia do queacontecera à mulher. Enrolou apressadamente a manta na cintura.

— Que jogo ela está jogando? — indagou, pensando em voz alta. Depois, olhoupara Scrymgeour. — Venha, vamos ver o quarto.

— Sim, talvez haja alguma pista.

MacColla saiu para o corredor. Havia luz suficiente, embora as tochas nãoestivessem acesas, e o sol ainda não afastasse as sombras da noite. Com uma carranca,ele percebeu a escada no fim do corredor. O quarto de Haley ficava perto o bastante paraque ela pudesse escapar em silêncio.

Quem é ela? MacColla tentou abafar a ira que sentia pulsando em suas veias. Aonde poderia ter ido?

Encantara-se com aqueles lindos olhos cinzentos. Teria deixado de perceber algummotivo oculto? Ela fizera muitas perguntas sobre James, dissera coisas irritantes eacertadas sobre o rei, sobre a Irlanda. Qual seria o seu propósito? Por que enganá-lo sópara fugir de noite?

Entrou no quarto e deu uma volta rápida por ele.

— Há alguma coisa faltando?

— Eu... — Jean hesitou.

— Não que eu veja — disse Scrymgeour. — Não havia muito para ser levado.

MacColla foi até o lado da cama e arrancou os lençóis, como se pudesse encontrá-la ali embaixo, escondida. Jogou os travesseiros de lado, e então se imobilizou. Um calafrio

percorreu suas costas, e o pavor o enregelou.Inclinou-se devagar e pousou a mão no travesseiro. Ao lado, havia uma marca de

mão ensangüentada. Uma marca do tamanho da mão de um homem.

— Deus a ajude... — murmurou.

— O quê? — Jean encontrou a voz. — Alasdair, o que foi?

— A moça não fugiu. — Ele os fitou. — Foi levada.

Jean abriu a boca e a fechou sem dizer nada. Sabia melhor do que ninguém o queisso significava.

— Campbell? — Scrymgeour perguntou.— Quem mais? — MacColla levou a mão a nuca. Um gesto automático, buscando a

espada larga, em geral presa entre suas espáduas. Porém, quando não a encontrou, ficou

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em alerta.

Não deixaria Haley ser levada pelos cães de Campbell. A urgência de encontrar,matar, destruir os Campbell irrompeu renovada, enraivecendo-o, revigorando-o.

— O homem foi longe demais. — Aquela rixa era um cadinho em que fervia suaânsia por vingança até atingir uma fúria sem precedentes. MacColla seria amaldiçoado se

visse outro de sua gente ser levado por Campbell.Principalmente aquela mulher. Ela, que fora gravemente ferida antes. Ele não veriaHaley ferida de novo.

— Tenho de encontrá-la — murmurou. — Vou partir agora mesmo. Rastreá-los.Encontrá-los.

— Ficarei com Jean — Scrymgeour afirmou.

Algo faiscou nos olhos de MacColla ao virar-se de Scrymgeour para a irmã. Algumcálculo interno complicado, uma pergunta feita e respondida.

— Leve-a para o sul — disse, por fim. — Para a segurança. Minha família nos

espera em Kintyre. Leve-a para mim, Scrymgeour.— Levarei. — Ele pousou a mão, num gesto protetor, na curva das costas de Jean.

— Vá, agora. E eu a manterei em segurança.

— Eu preciso... — Haley baixou a voz para um murmúrio ultrajado. — Tenho de,você sabe, bu thoil leam fual a dhèanamh. — De certa forma, dizer que precisava fazer xixiem gaélico tornou a tarefa mais fácil.

O homem apenas a encarou de boca aberta. A pequena fogueira cintilava entre osdois, lançando sombras dançantes na face dele, exagerando o ar intrigado. Haley

continuou sentada, muda, esperando, enquanto imaginava que bobagem teria dito semquerer.

— Tha i ag iarraidh múin — Campbell resmungou. Não tirou os olhos dela, com umaexpressão que ficava entre o desgosto e o desejo. Só ele conseguiria fazer um comentáriorude sobre urinar parecer ameaçador.

— Vá, então — o vigia disse. Seu uso do inglês zombava da tentativa de Haley defalar gaélico. Era muito mais jovem que Campbell, com uns vinte e poucos anos, elaimaginou. A barba castanha que cobria a face dele como uma máscara peluda abriu-senum sorriso.

Não foi necessário que ela fingisse urgência. Realmente precisava ir, mas teve deesperar até o terceiro homem acordar e esvaziar a bexiga.

Quanto mais ela pudesse superar a desigualdade numérica, maiores suas chancesde fugir. Pelo que percebera, eles estavam voltando para aquele castelo horrível emInveraray, e ela não estava disposta a ser a próxima hóspede no porão de Campbell.

Haley ergueu as mãos, ainda amarradas, e arqueou as sobrancelhas. Eles tinhamdesamarrado seus pés, mas as mãos continuavam presas com firmeza à sua frente.

— Não — o barbudo disse, sem rodeios, com se falasse a uma criança insolente.

— Ora essa. — Ela ergueu ainda mais as mãos. — O que vou fazer? — Virou-separa Campbell e emendou: — Você com certeza não tem medo de que uma mulher possasuperá-lo, não é?

Seu jogo funcionou. Campbell não achava que uma mulher pudesse vencê-lo. Fez

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um gesto para o barbudo para que cortasse as cordas, e a esperança ganhou vida no peitode Haley.

Ela gemeu ao se levantar, enrijecida por ter ficado por tanto tempo na mesmaposição, com as pernas cruzadas no chão frio.

— Vá com ela — Campbell ordenou. Haley lançou o que esperava fosse um olhar 

inocente em sua direção, e ele emendou: — Depressa com isso, moça. E hora de irmosembora antes que seu marido nos encontre.

— Meu marido? — Será que ele pensava que ela e MacColla eram casados?

O barbudo riu, e um lento sorriso espalhou-se pela face de Campbell. Haleyimaginou que aquilo fosse uma versão de uma piada obscena.

Ela se virou para ir até o meio das árvores quando ouviu Campbell dizer ao guarda:

— Vá com ela.

A mente de Haley acelerou-se. Esperava que a deixassem sozinha. Que pudessecontar com uma vantagem inicial. Depois, correria como se o diabo a perseguisse e rezaria

pelo melhor. Mas, claro, isso seria fácil demais.Ouviu Os pés arrastados seguindo-a logo atrás e mediu mentalmente o homem.

Devia ter no máximo um metro e oitenta. Não muito mais alto que ela. Porém, estavaarmado. Vira o brilho de uma pistola em sua cintura. Ele precisaria de algum tempo paracarregá-la. Quinze segundos, talvez.

Ele não estava usando uma espada. Será que tinha um punhal? Era algo aconsiderar.

Haley gostaria de ter enfiado sua própria faca no vestido. A lâmina não faria muitoestrago, mas era melhor que nada.

Imaginou se o sujeito tinha uma adaga. Se ela não desse um jeito de fugir dessavez, talvez pudesse roubar a arma. Sentiu o espartilho apertado no peito. Era duro, não sedobrava. Ela poderia esconder uma arma nas roupas. Talvez abrir uma fenda no fundo doespartilho e enfiá-la ali.

O espartilho. Seu coração deu um salto. Claro! Seu espartilho. Ela já tinha umaarma.

Estava usando-a.

Ficara espantada com a compressão horrível quando Jean o fechara com oscordões. A maioria dos velhos espartilhos tinha barbatanas de marfim subindo pela frente.Uma haste com uns cinco centímetros de espessura e quarenta centímetros decomprimento, dura o suficiente para manter uma mulher apertada rigidamente.

Mas não aquele.

O seu tinha barbatanas também, mas eram feitas de aço. Ela ouvira falar debarbatanas de metal, porém nunca vira uma, e imaginara que deveriam ser mais baratasque sua concorrente de marfim.

Na ocasião, ela soltara a parte de cima um pouco, e espiara a camurça que forravaa barbatana. O couro tinha pintas castanho-escuras, manchado com o suor de algumaoutra mulher.

— Me dê um minuto — gritou para o barbudo, e sua voz soou aguda. O homempresumiria que ela estava nervosa por outras razões, sem dúvida.

Haley levou as mãos até o esterno e enfiou os dedos entre os seios, procurando os

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cordões que prendiam as barbatanas da frente do espartilho. Seus dedos trabalhavamdepressa, soltando os laços.

Ela relanceou os olhos por sobre o ombro. O homem estava parado, sorrindo.Manchas marrons grudavam-se como musgos na curva de seus dentes quebrados. Aquilodeu um foco a Haley.

Aliviar-se era a primeira coisa em sua lista. Se o nojento queria olhar, que olhasse.Virando as costas para ele, agachou-se, puxando o vestido para cima só o absolutamentenecessário. Se ele achava que teria um espetáculo, tudo o que veria seriam as costas deseu vestido.

Momentos depois, Haley agarrou o espartilho com renovada concentração. Enfiouum dedo no bolso estreito que o pano formava na frente da peça e tocou a beirada docouro que envolvia a barbatana.

Sua arma.

Teve de arquear as costas para puxá-la, forçando-a de um lado para outro, earquejou com a dor que o tranco com que arrancou a barbatana disparou por suas

costelas.— Depressa com isso, moça!

Ela ouviu o remexer impaciente dos pés do homem às suas costas.

A barbatana era pesada em sua palma, um peso reconfortante. Haley enfiou-a entreos seios. Preferia ter tirado o aço do envoltório de couro, mas não tinha tempo.

Tudo bem, pensou, enquanto um plano vinha à sua cabeça. Fechou a mão na baseda barbatana. Um bastãozinho rijo.

Com um sorriso, ela se levantou e seguiu em frente, deixando o homem para trás.

— Ei! — Haley ouviu a surpresa em sua voz quando ele correu para alcançá-la. —Ei, pare, moça!

Ela passou a andar cada vez mais depressa. Havia uma clareira adiante. As árvoresse espaçavam, e a vegetação tinha um tom verde-claro ao sol.

— Ei! — A voz do homem soou zangada.

Mas o sorriso de Haley só se alargou quando ela começou a correr. Precisavachegar à clareira. O som da respiração pesada do sujeito aproximou-se, ecoando pelosilêncio da mata.

Haley disparou numa corrida, parando apenas a poucos passos do bosque. Espere.

A voz de seu pai chegou até ela, tão espantosamente nítida que quase quebrou suaconcentração. Espere pelo momento.

Só quando sentiu o homem irromper para dentro da clareira, Haley virou-se paraencará-lo. Girou o corpo, com a barbatana nas mãos, a plena força de seu peso por trás daarma improvisada. Então voltou-se e agrediu homem ao lado da cabeça com um estalogratificante.

— Peguei você! — A voz de Haley soou exultante, combinando com o pico deadrenalina que corria em suas veias.

Recompôs-se de imediato. Precisava fugir. Depressa. Imaginou que tinha cinco

minutos no máximo antes que Campbell viesse ver o que os estava retendo.Mas primeiro... Ela se ajoelhou, pegou a pistola e arrancou a pequena bolsa de

couro com as balas do cinto do homem. Precisava de pólvora. Onde estaria? Apalpou-o

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com gestos rápidos, esperando que o sujeito estivesse mesmo desmaiado. Então, sentiu.Um frasco duro, oval, no bolso do peito. Usando as pontas dos dedos, ela abriu o casacosujo e fedido. Um bolso improvisado fora costurado no tecido, e a tampa gasta de umfrasco de bronze saltava pela abertura.

Depressa. Haley pegou o frasco e o enfiou junto com o saco de balas no espartilho.Levantando-se, esquadrinhou o horizonte. Colinas e mais colinas. Precisaria voltar e subir 

a montanha.Seu coração apertou-se. As encostas cheias de pedras e a vegetação baixa não

proporcionavam qualquer cobertura.

Esfregou o polegar distraidamente pelo cabo de madeira da pistola.

Campbell tinha pôneis. E, embora fossem animais resistentes, não haveria comopassar pelos picos mais escarpados. Ela não sabia quanto ao outro sujeito, mas tinhacerteza de que podia bater Campbell numa corrida a pé.

Gordo estúpido. Haley disparou a correr.

Conforme subia a primeira ladeira, pensou nos termos para referir-se a Campbell.Porco sanguinário. Refugo. Imbecil. Cretino.

Sua própria versão de um mantra.

Mudou a arma para a outra mão, segurando o cabo com força.

Pegue-me se for capaz! 

MacColla agachou-se, correndo os olhos pelo terreno. Dois pares de pegadas saíamdo castelo, marcados na terra do lado de fora da entrada. Botas masculinas que nãoandavam em linha reta. Deviam ter carregado a moça.

Levantou-se, respirando fundo. Fora um erro parar em Fincharn. Entretanto, amulher estava machucada e precisava descansar, assim como Jean. Nenhuma delasagüentaria o ritmo no qual ele gostaria de ter viajado.

E agora, estava sofrendo as conseqüências de seu erro.

Os rastros eram bastante claros, arrastados pelo mato, e rumavam para um bosquedistante nos limites da terra de Scrymgeour.

Ele correu naquela direção. Sua espada batia em suas costas a cada passo, comose espicaçando-o, empurrando-o.

Subestimara Campbell, ou o que Haley significava para aquele homem.

Quem é ela, e o que tem a ver com o clã Campbell? Ela, evidentemente, não erauma espiã. MacColla vira aquela marca de sangue no travesseiro. Se fora precisoderramar sangue para levá-la...

O pensamento o incitou a apressar a corrida. Aquela moça era estranha. Forte ebela, como uma criatura selvagem. E ele sentia uma fagulha de desejo cada vez que a via.Até um morto sentiria, só de vislumbrar aqueles misteriosos olhos cinzentos.

E ele tinha de admitir que a desejava desde o princípio. Mesmo antes de saber quecompartilhavam um inimigo comum.

Chegou às árvores. Agachou-se outra fez, e depois ficou de quatro, procurando por rastros mais difíceis de divisar na densa vegetação rasteira.

Galhos quebrados. Um ponto onde o tapete de folhas fora revolvido, revelando osolo escuro e úmido por baixo.

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MacColla se pôs de pé e caminhou devagar, as mãos nos joelhos ao se inclinar parao chão e seguir os rastros até uma clareira.

Um monte de terra e cinzas era tudo que restava de uma pequena fogueira.Abaixando-se, ele correu os dedos pelas cinzas. Ainda estavam quentes. Não tinham idomuito longe.

Deu a volta no acampamento e viu mato esmagado onde as patas haviam pisoteadoas folhas podres. Três conjuntos. Os dois seqüestradores tinham se encontrado com umterceiro.

Campbell? Esperava que sim. Ansiava por lutar contra o homem. Desejava isso.

Seu pai e seu irmão haviam perdido anos de suas vidas num calabouço deCampbell. E incontáveis membros do clã MacDonald tinham morrido lutando contra oshomens de Campbell. MacColla sonhava com o dia em que conseguiria desforrar-se.

Encontrou mais dois pares de rastros humanos, rumando para dentro das árvores. Aum ponto da trilha, os arbustos estavam amassados, revelando um pequeno trecho delodo. E havia uma única pegada: um pé pequeno, descalço.

— A moça Haley — ele resmungou, passando o dedo pelo contorno.

Levantou-se e saiu correndo de novo, tão depressa quanto pôde, ainda seguindo osrastros. Chegou a uma clareira, e uma risada ressoou por seu peito antes que ele pudessepensar em manter silêncio.

Um homem de Campbell, caído numa moita. Morto, ou quase.

— Boa garota — ele murmurou, sorrindo de alívio. Ela era uma lutadora.

Ele a encontraria, e lutaria com ela. Dois contra dois. MacColla gostava dasprobabilidades.

Droga! Droga! Droga! 

Haley praguejou e depois deixou escapar uma risadinha cheia de nervosismo emedo.

Subira a primeira colina e parará para descansar, escondida por um afloramentorochoso logo do outro lado. Seu peito a estava matando. Ela ofegava, e cada respiraçãoarfante provocava uma pontada de dor em seu peito.

Pensou em carregar a arma e esperar. Mas, ao examiná-la, virando-a nas mãos,praguejou de novo. Era uma linda pistola, feita de uma madeira escura com detalhes de

aço que faiscavam à luz do sol.E, naturalmente, era diferente de qualquer coisa que ela já disparara.

Era a antecessora da fecharia de pederneira. Haley pensou na arma de Graham, nomuseu, e soltou outra risada abafada. Ali estava sua teoria, bem em suas mãos. Não haviamuitas fechadas de pederneiras na primeira metade do século XVII.

Como se dispara esta coisa, diabos? Ela atirara com muitas armas para suapesquisa, mas nunca pusera as mãos em algo como aquilo.

Tinha certeza de que era uma snaphaunce primitiva. Eram chamadas de pistolas detrava de cão, numa referência à lingueta que travava o cão da arma numa posição segura.

Se ela bem se lembrava, era uma arma usada pelos soldados ingleses.Claro. Os Campbell tinham se aliado aos covenanters nas Guerras dos Três Reinos.

E os covenanters se encontravam muitas vezes do mesmo lado que os soldados do

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MacColla virou-se, olhou de novo para a colina, e acompanhou os rastros conformecomeçava a correr na direção do vale. Para longe de Haley. Tentou ignorar a pontadaaguda no peito.

Haley. Tinha de esperar que ela ficasse bem. Era uma lutadora. Corajosa, masesperta também, usando o cérebro e a força.

— Santo Deus, moça! — murmurou. Virou as costas para os rastros e seguiu atrásde Campbell. — Fique em segurança.

Ele irrompeu numa corrida, desejando que o esforço físico expulsasse as imagensde Haley de sua mente. Mas aqueles olhos cinzentos o assombravam, e ele correu maisdepressa ainda.

Alcançaria Campbell e o mataria. Depois, voltaria para buscar Haley. Estava muitoperto para deter-se agora.

E então ele ouviu. Um tiro estourou ao alto. As árvores eram esparsas nas colinas, enão havia nada para impedir o som de uma arma de fogo de ecoar até onde ele parara,ofegante, no fundo do vale.

E, dessa vez, a decisão de MacColla foi fácil.

Seus olhos se abriram. Lá estava. Um estalar distante de um galho sob o pé.

Haley levantou-se, tentou acalmar as mãos trêmulas e estudou a arma. Já atiraraantes, mas nunca com a intenção de matar.

O cheiro de pólvora entrou por suas narinas. Ela estendeu a pistola à frente,testando o peso nas mãos. Será que o coice era forte? Teria uma mira boa?

Enxugou a palma da mão direita na saia e depois a levou de novo para a coronha.

Tinha medo de que a arma servisse mais para coagir do que para disparar.Saiu de trás da pedra e assumiu a postura defensiva.

Outro estalo.

 Aí vem ele.

Soube de imediato: não havia como enganá-lo. Haley avistou os cabelos loiros sujosprimeiro, depois os ombros do casaco marrom. Ele chegou ao cume, e seus olhos jápareciam cravados nela.

O homem viu a arma em suas mãos, e foi a risada que soltou que firmou as mãostrêmulas de Haley.

— Bastardo — ela murmurou. E atirou.

Ao vê-lo encolher-se e cair, ficou exultante. Mas então o homem apoiou-se nos joelhos e se pôs em pé, vacilante, e sua alegria transformou-se em pânico.

Os olhares de ambos se encontraram, e a fúria que contorcia a face do homem aenregelou. Haley avaliou depressa suas opções.

Poderia enfrentá-lo? Ele estava ferido. Havia um buraco em seu ombro esquerdo, eo sangue já manchava o casaco. O braço esquerdo estava inutilizado, colado ao lado docorpo.

Ou poderia fugir. Seus olhos desviaram-se para trás, para a colina abaixo. Nãohavia lugar para se esconder.

Se o ferimento não fosse muito grave, ele poderia alcançá-la. Ou Campbell a

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alcançaria. E seriam dois contra ela.

Precisava lutar. O homem estava com a própria pistola, mas nunca conseguiriacarregá-la com uma mão só.

Haley olhou para a espada larga, pendurada no quadril. Ele só precisaria de umadas mãos para empunhá-la. Se fosse destro, e ela presumia que fosse, poderia matá-la

com uma fácil cutilada.Se pretendesse de fato enfrentá-lo, Haley tinha de agir depressa. Chegar perto osuficiente para tornar a espada inútil.

Atacou-o, e sentiu uma pontada de prazer ao ver o espanto no rosto dele pelasegunda vez. Umas poucas passadas, e já o alcançara. A mão do homem parecia mover-se em câmera lenta para o cabo da espada.

Ela teria de dar tudo de si, ou desistir.

Tomando coragem para suportar a agonia que sabia que viria, Haley saltou.Chocou-se contra ele, e o impacto nas costelas assemelhou-se a facas enterrando-se emseu peito, atordoando-a. Passando os braços e as pernas em torno dele, agarrou-se comoum macaco ao homem.

Enterrou as garras no ombro ferido, e o sujeito berrou de dor ao seu ouvido, arespiração curta e quente em seu pescoço. Com o braço direito preso sob seu joelho, ele oretorceu, tentando afastá-la.

Apertando-o com mais força com as pernas, Haley ergueu a mão direita e desferiuuma série de murros no ferimento.

Estava perto demais, porém, e não conseguiu imprimir força ao punho. Firmou ospés por trás das costas do homem, soltou a outra mão e mirou os olhos dele. Empalmou-lhe a face como se fosse beijá-lo, enganchou os polegares nos cantos dos olhos e

empurrou. Era um truque que aprendera com o pai. Enfiar as pontas dos dedos nos olhos,torcer o pescoço do adversário para trás, e mesmo o maior dos homens cairia de costas nochão.

Ele desabou no solo, e o impacto fez as pedras rolar pela colina. Haley ergueu otronco, forçando o peso todo para baixo, a fim de enterrar o cotovelo no ferimento a bala.Entrelaçou os dedos para ter mais força, pois as palmas estavam escorregadias com osangue do adversário.

O berro que ele soltou foi um triunfo passageiro. Haley sentiu o homem debater-se,mas estava concentrada em esmurrá-lo no ferimento, esperando que desmaiasse de dor, enão percebeu que ele erguera o punho até que acertasse sua face. Sentiu a vista ofuscada

conforme tombava de lado.Ele a empurrou, cambaleou até ficar de pé e, recuando um passo, acertou-a com

um chute no queixo.

A escuridão a engoliu por um momento, e Haley escorregou lentamente pelaencosta. As pedras afiadas e o cascalho enterraram-se em seu ombro, e ela choramingou,puxando o ar para os pulmões.

Então, enterrou os calcanhares na terra, interrompendo a descida. Virou a cabeçapara trás e procurou localizar-se. O homem manquitolava em sua direção, com a mãodireita no ombro ensangüentado e a morte no olhar.

Haley ficou de joelhos. Instintivamente, correu a língua pelos dentes. O gosto desangue a enjoou, e ela cuspiu nas pedras.

O homem tirou a mão do ombro e desembainhou a espada. O movimento foi lento,

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tal como o sorriso que se espalhou pela face assassina.

— Não — ela murmurou. Não poderia terminar assim, morta por uma espada numacolina na Escócia do século XVII. Mais que seu terror, foi o senso de irrealidade que acongelou no lugar.

Ouviu um baque surdo. Metal chocando-se em pedra. O homem à sua frente não se

mexera, e Haley levou um instante para perceber de onde viera o som. Olhou para o chão.O cabo de um punhal tremia, a lâmina cravada na terra, a não mais que um passo de ondeela estava.

E, em seguida, ela o viu. MacColla, numa elevação acima, com a espada larga nasmãos. Ele lhe jogara uma arma.

Ao vê-lo, soube por que ele era conhecido como Fear Thollaidh nan Tighean, por que os homens o temiam e o chamavam de Destruidor de Lares. Ele era selvagem, numxadrez de cores sombrias, as sobrancelhas fechadas numa linha dura de raiva e vingança.

Tinha a espada apontada para o homem de Campbell, mas os olhos estavamcravados nela. Suas feições revelavam preocupação. Querendo tranquilizá-lo, Haley arran-

cou o punhal do chão e fez um ligeiro gesto de cabeça.Ele ouvira o tiro e subira correndo a colina, escalando as rochas até que os vira.

Aproximara-se em silêncio, de lado.

Haley estava coberta de sangue. A inquietação o assaltou, fazendo seu coraçãodisparar e galvanizando cada músculo. Ele a examinou, procurando sinais de ferimento e,quando não encontrou nada, um nó se desfez em suas entranhas. O alívio o inundou.

Voltou os olhos para o homem de Campbell. Estava ensangüentado, as calçasemplastradas de sangue, a face manchada. MacColla conteve o fôlego, procurando algumferimento, e então soltou um bufo diante do buraco negro no ombro do sujeito.

O sangue era dele, não dela.Percebeu que o homem vacilava.

Haley. Ela o acertara. Fora ela quem disparara a arma.

Forte e corajosa, lá estava ela, ajoelhada, os cabelos negros esvoaçando na brisa.Tão linda! Tinha certeza de que ela se levantaria e lutaria mais.

Sorriu. Não seria necessário.

Arrojou-se para o Campbell, e o ruído das pedras sob seus passos fez o homem sevirar. Tarde demais.

Com um único e poderoso giro da espada, MacColla decepou-lhe a cabeça.Jogando a espada no chão, MacColla caiu de joelhos a seu lado, e a alegria

sacudiu-a por inteiro.

Ela estava preparada para a luta... e pronta para a derrota. Mas então ele surgira donada. Ela lutara, e lutaria até o fim, mas um herói de antigamente aparecera e tomaraconta de tudo, e Haley estava mais do que feliz em permitir que assim fosse.

Suas sensibilidades modernas não pareciam pensar nas implicações que aquiloteria.

Ao fitá-lo naquele momento — os cabelos pretos soltos sobre os ombros, os

intensos olhos castanhos, as dobras da manta verde, azul e preta —, sentiu-se tãoreconfortada que precisou se controlar para não desabar no chão, aliviada.

Ele a percorreu com os olhos e tateou seus ombros e braços com gentileza,

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procurando algum ferimento.

— Eu... estou bem — ela murmurou.

MacColla imobilizou-se e respirou fundo. Pareceu relaxar, mas o olhar dele nãoencontrou o seu.

Lentamente, ele desceu as mãos até sua cintura, e as manteve ali por um momento

para depois subir pelo torso, roçando os polegares ao lado dos seios. Detinha o olhar emcada curva.

Em vez de doer, as costelas de Haley se expandiram com o calor do toque, como seos músculos pudessem por fim relaxar.

Ele ergueu os olhos, buscando os seus. Ao ver o sangue em sua face, onde elarecebera o chute, linhas fundas se formaram na testa de MacColla. Em silêncio, ele pegoua ponta da manta e limpou seu queixo.

Desviou a atenção para a boca. O tecido escapou dos dedos dele, e MacCollapassou o polegar com suavidade por seu lábio inferior. Falava baixinho, e as palavras emgaélico eram difíceis de entender.

Haley fitou a face que agora estava próxima, fascinada e embevecida, A bonita faceque era feroz demais para ser o que se convencionara chamar de bela. O nariz forte,romano, com a ponte alta que parecia emergir diretamente do meio das sobrancelhas, osmalares angulosos, a barba por fazer despontando no queixo.

Absorveu a visão de MacColla e sentiu uma onda tamanha de desejo que foi comouma explosão de luz vinda de dentro, abrasando-a, cegando-a para tudo a não ser ohomem à sua frente. Era uma necessidade que fugira de seu controle, e que ameaçavaconsumi-la, caso não fosse suprida.

— Como é que eu já a amo, gràdh geal mo chriodhe? — A voz de MacColla mal

passava de um sussurro.Empalmou sua face e inclinou-se devagar, abarcando-a com as mãos largas,

seguras. Haley sentiu a respiração dele em sua boca, o roçar dos lábios, e depois o lentocontato de carne com carne quando ele a beijou com ternura.

Sim.

Por um breve instante, ela ficou em suspenso. Tudo parou ao seu redor. E elapercebeu. Voltara no tempo por ele.

Nesse momento, as brasas que ele acendera nela irromperam num fogodescontrolado. Agarrou-se a ele, abraçando-o com força, beijando-o com paixão.

Saboreou-lhe o gemido de desejo e penetrou com as unhas a pele coberta pelo tecido,querendo-o, precisando dele ainda mais perto.

As mãos de MacColla estavam em suas costas, em sua cintura, em seus seios.Haley sentiu o vestido se afrouxando e o roçar dos dedos pela frente do espartilho, soltoonde a barbatana estivera. Os cordões a cutucavam, e era uma agonia contra a pelesensível, que ansiava pelo toque e pelos lábios de MacColla. Apenas ele poderia acalmá-la.

MacColla nunca imaginara algo assim. Nunca imaginara alguém como ela, tão doceem sua boca. Haley era dura ao enfrentar o mundo e, ao mesmo tempo, macia em seusbraços. Aberta para ele.

Ah, ele a desejava. E a teria. Haley seria sua.

Mas não ali. Não daquele jeito.

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Afastou-se devagar, o coração martelando no peito. Correu a língua pelos lábios,úmidos do beijo.

Estavam perto demais das terras de Campbell. Ele a teria, mas longe daquele lugar.

Desviando os olhos dela, correu-os pela colina desnuda e rochosa e pelo cadáver do homem de Campbell, que jazia a não mais que vinte passos de distância.

Campbell estava lá fora, em algum lugar.Ele a teria, mas não contaminada pelo jugo daquele homem. MacColla não tinha as

terras da família, mas tinha uma lareira e um refúgio seguro em Kintyre.

— Não assim, a chiall mo chridhe. — Sua voz era rouca, as palavras de amor novase ásperas em sua garganta. Querida do meu coração.

 Amor. Ele dissera a Haley que a amava.

MacColla afastou-se. Pousou as mãos com gentileza nos ombros dela e fitou-a. Oscabelos negros, que se espalhavam em todas as direções, o nariz reto e fino, eestranhamente saliente, e os olhos, sempre aqueles olhos cinzentos, chamando-o para

que se afogasse.— Sim — ele murmurou, afirmando a si mesmo o que suspeitava ser verdade. Amá-

la. Uma idéia estranha.

Ele tinha uma guerra a travar, não possuía um lugar ao qual chamar de seu e nadasabia sobre aquela moça.

E, mesmo assim, ali estava ela, sentada à sua frente, com seu coração nas mãos.

MacColla inclinou-se mais uma vez e beijou-a suavemente. Afastou-lhe o cabelo dorosto e, colocando-o atrás da orelha de Haley, disse:

— Venha, moça. Venha comigo.

Scrymgeour hesitou diante da porta do quarto. Depois, enchendo o peito, entrou.Sua coragem foi recompensada por um sorriso trêmulo de Jean. Um calor aqueceu-lhe opeito, e ele esboçou um sorriso radiante em resposta.

Recordando-se de seu propósito, ficou sério. O inimigo estava próximo, e ele tinhade levá-la para longe dali. Imediatamente.

— Vim ver se há algo que eu possa fazer. Se eu puder ajudar a empacotar suascoisas...

Ele não conseguiu afastar os olhos, deslumbrado, da beirada de renda transparenteque contornava a camisola, dobrada com esmero ao pé da cama, sobre um dos velhosbaús da família. De repente, teve de levar a mão ao bolso. Imagens pecaminosas da pelecremosa numa peça tão delicada fora mais do que seu corpo másculo pudera suportar.

— Embora... — gaguejou. — Embora eu ache que não haja muito para você levar.— Passeou pelo quarto, pouco à vontade. — Você não tem muito no mundo, não é?

Jean virou-se para ele, muda, com o olhar cravado no seu. Scrymgeour percebeuque acertara o âmago do problema. Uma jovem como ela deveria possuir baús cheios debelas coisas e não uma vida transitória, na qual se contentasse com a caridade deestranhos para ter algo simples como uma camisola.

— Há algo mais de que possa precisar? — ele perguntou. — Deve querer uma boacapa. — Não pôde deixar de correr os olhos por toda ela, pensando que não havia capa nomundo que fosse bonita o bastante para Jean.

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Ela era linda. Talvez, principalmente, por não se dar conta disso. O tempo nocalabouço de Campbell a deixara magra como um lebréu de corrida, mas, em vez deparecer abatida, ela parecia uma flor delicada e pálida. Era impossível fitá-la e não ser dominado pelo impulso de protegê-la. De tomá-la a seus cuidados.

— Eu... não — ela respondeu. — Você já compartilhou muito comigo.

Estremeceu, vacilando por um momento, como se afetada com aquela gentileza.— Oh, Jean... — Scrymgeour foi até o lado dela, fazendo-a sentar-se na beirada dacama. — Tudo o que você tinha lhe foi tirado. Eu nunca disse... eu gostaria de dizer...como eu sinto... pela sua perda. Perder um marido tão jovem...

As mãos de Jean se enovelaram em seu colo.

— Donald era um bom homem. — Baixou os olhos e murmurou: — Embora aindafosse um estranho para mim.

— A perda não é menos devastadora por isso — ele assegurou, gravemente.

Permaneceram em silêncio por algum tempo. Scrymgeour ponderou que não havia

nenhum lugar evidente para onde Jean pudesse voltar. Muitos do clã MacDonald tinhamsido exilados para a Irlanda. Embora a família direta de MacColla se encontrasse em umrefúgio seguro em Kintyre, não era o lugar ao qual pertenciam.

— O maldito Campbell — ele resmungou. O mesmo homem que arrancara tanto olar como o marido de Jean. E que agora estava por perto.

Scrymgeour estendeu a mão para pegar a dela. Ao erguer os olhos, foi atraído peloespelho sobre a mesa. Enxergou seu reflexo, e o homem que o encarou de volta tinhacarne de sobra na barriga. Viu um homem com um queixo fraco, que exigia o reforço deuma touceira espessa de suíças castanhas em torno da boca. Um homem com cabelosfeios e presença desinteressante.

A imagem foi como um jorro de água fria em seu peito, e ele se recompôs.

— Mas, e se ele vier atrás de nós?

Custou-lhe um momento para registrar as palavras de Jean. Ela falava de Campbell,naturalmente. Ficara traumatizada pela experiência, e não era de se admirar. Seqüestro eprisão não eram algo que uma jovem esquecesse logo.

— Não, moça. — Usou a desculpa para finalmente tomar a mão dela na sua.Apertou-a de leve e a soltou com relutância. — Ele não a pegará de novo. Nunca mais.

— Mas ele... esteve aqui. — Ela agitou as mãos, apontando o quarto ao redor, edepois as baixou, torcendo as saias, como se assim pudesse acalmar seu tremor. — LevouHaley.

— Sim, é provável que houvesse um Campbell aqui, que levou a mulher. E seuirmão a salvará, tal como a salvou.

Ela o fitou, com os olhos marejados de lágrimas.

E Scrymgeour soube o exato momento em que seu coração se partiu. Sem pensar,ele a tomou nos braços.

Jean ficou tensa diante da proximidade imprópria. Ansiava por isso. Fazia muitotempo que estava sozinha.

Apavorada. Despojada de tudo. Querendo comida e luz por tanto tempo nos porõesde Campbell. Porém, num sentido mais profundo, fora privada por tempo demais dasensação de proteção. De carinho. De amor.

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O veludo do casaco de Scrymgeour era macio sob sua face. Era azul-escuro, comoos olhos dele, mais profundo e mais calmo que qualquer lago.

Aos poucos, ela relaxou. Tornou-se consciente do martelar do coração dele sob suapalma. O calor másculo espalhou-se através dela. John cheirava a cachimbo, a lenhaqueimando e a conforto.

Jean sentiu a tensão esvair-se. Deixaria que ele a levasse a Kintyre.Primeiro, porém, deixaria que John lhe trouxesse a paz.

Capítulo III

— Como fez isso? — O sorriso, de MacColla era largo quando ele passou o braçoem torno do ombro de Haley e puxou-a com força. — Como conseguiu derrubar obarbudo?

Ela olhou para o dente lascado e sentiu uma onda inexplicável de calor pelo ventre.Era uma marca triangular, não perceptível de imediato. Ao vê-la, só conseguiu pensar queela beijara aquela boca.

— Minha barbatana. — Haley esboçou um sorriso tímido.

— Sua... o quê?— Você sabe. Do espartilho. — Segurou a mão dele e puxou-o para o alto da colina.

— Venha. Vou mostrar. — Seus olhos esquadrinharam as pedras ao redor. — Ah!

Haley abaixou-se e pegou o pedaço de aço envolto em camurça de onde o deixaracair quando disparara a pistola. Examinou-o, vendo se não tinha sinais de sangue.

MacColla fitou-a, admirado, quando ela puxou os cordões entre os seios comcuidado, abrindo a pequena fenda que mantinha a barbatana no lugar. Depois, com osolhos cravados nos dele, Haley enfiou a barbatana de volta.

— Sua gatinha selvagem! — Ele riu com gosto e abraçou-a de repente. — Você é

incrível! Só você encontraria alguma utilidade para seus trajes de moça e os transformarianuma arma. — Meneou a cabeça. — Agora que você recolheu seu pequeno bordão,deveríamos ir embora daqui. — MacColla esquadrinhou o horizonte. O Loch Awe reluzia,cercado de árvores baixas, serpeando pelo vale à distância. — Não imagino que Campbellfaça uma escalada — disse, ao se virar para olhar as montanhas além deles. Pico apóspico, elas se estendiam adiante, na direção de Inveraray. — Mas não podemos ter certezase ele não voltará com homens que o farão.

— Mas para onde vamos? — Ela se apressou para alcançar as largas passadas deMacColla pela beira do declive. — E quanto a Jean?

Ele examinou o terreno pelo qual subira como louco, procurando agora o melhor 

caminho para descer.— Deixei Jean aos cuidados de Scrymgeour.

— Oh... — Haley deu-se conta, de repente, de que fora a causa de tanta confusão.

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MacColla provavelmente se sentira relutante em deixar a irmã. Não devia ter sido umadecisão fácil. — Sinto muito.

— Sente? — Ele parou a inspeção e virou-se para encará-la. — Puxa, moça, vocênão tem nada do que se desculpar. Sou eu quem sente muito. Julguei mal o Campbell. E,devo confessar, julguei você mal. Não foi até... Eu não sabia... Não havia jeito de saber que Campbell iria atrás de você com tanta raiva, como se estivesse procurando por alguém

do meu clã. E, por isso, eu sinto muito.— Oh... — Haley ficou em silêncio por um momento, abalada com aquela admissão.

O famoso Alasdair MacColla estava diante dela, desculpando-se.

— Bem? — ele perguntou, com uma vulnerabilidade que ela achou encantadora .

— Bem, o quê?

— Você aceita minhas desculpas?

— Não é necessário se desculpar. — Esticou os braços e pousou as mãos nosombros largos. Nem na ponta dos pés seu rosto alcançava o dele. — Apenas me beije,MacColla.

Sentiu o sorriso dele em seus lábios, mas ele se afastou de repente.

— Venha, precisamos sair daqui. Vamos para Kintyre. — Pegou-a pela mão, edesceram em diagonal pelo barranco.

— É de onde você vem? — Haley perguntou, esforçando-se para acompanhar oritmo dele e conservar os pés firmes no terreno ao mesmo tempo. MacColla evitava ospontos mais pedregosos, procurando uma trilha que tivesse arbustos em que pudessemfirmar as mãos e os pés.

— Kintyre? Oh, não. Embora seja tradicionalmente terra do clã MacDonald. — Eleficou calado por um momento, testando um ponto escarpado. Assim que se assegurou deque o terreno era sólido, continuou: — Não, a casa de meu pai era na ilha de Colonsay. Láficam as verdadeiras terras da minha família, do meu clã Iain Mor.

— Mas pensei que você fosse um MacDonald.

— Sim. — Encarou-a como se ela fosse louca. — Sou um MacDonald, e daí?Embora o clã MacDonald tenha domínios tanto na Irlanda quanto na Escócia, nossaverdadeira terra é aqui, em solo escocês.

— Mas... — Haley parecia perplexa, e ele esboçou um sorriso.

— Mas o quê, leannan? — Rindo, ele soltou a mão dela e apertou-lhe o queixo. —Não faça essa cara tão confusa, moça. De qualquer maneira, não é a genealogia da minhafamília que precisa ser discutida. — Ergueu a sobrancelha com um ar de desafio.

Pega de surpresa, ela perdeu o pé, e MacColla virou-se para segurá-la. Restavaapenas um pequeno trecho de descida, e eles seguiram num silêncio concentrado.

Haley precisava contar a ele... alguma coisa. O quê?

Ele virou-se para ajudá-la nos últimos metros. Haley tentou continuar, mas ele aimpediu, com as mãos em seus ombros.

— Quem é você para ser um prêmio tão cobiçado para Campbell?

— Eu... — Haley respirava pesado. Concentrar-se na descida a deixara atordoada,

incapaz de pensar. Precisava descansar um pouco. Não dormira na noite anterior, nãocomia nada havia algum tempo, e isso tudo por fim a derrubara. — Podemos sentar umpouco? Preciso fazer uma pausa.

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MacColla meneou a cabeça, desapontado consigo mesmo.

— Claro. — Pegou-a pelo braço, ajudando-a a se sentar. — Claro que podedescansar.

A pele de Haley estava pegajosa ao toque, fria e úmida. Campbell fora a única coisaem sua mente, e MacColla acabara exigindo muito dela. A moça sumira fazia algum tempo

e provavelmente não comera nem dormira. Claro que precisava descansar. Ele não estavaacostumado a lidar com mulheres e maldisse a própria falta de jeito.

— Está com frio? — Ele se levantou para tirar a manta dos ombros, mas Haley oimpediu.

— Não. — Tentou rir, mas o som saiu como um arquejo pesado. — Por favor, hãoprecisa.

— Quer que eu vá procurar algo para comer? Você precisa se alimentar.

— Realmente, MacColla, não vou morrer. — Apontou para o chão ao seu lado. —Só preciso... de um momento.

— É Alasdair, moça. Meu nome cristão. — Sentou-se perto dela. — Pode mechamar de Alasdair.

— Você é MacColla em minha cabeça. — Ela o fitou, um olhar de soslaio quesugeria muito, mas não disse nada. — Não sei se poderia chamá-lo de outra forma.

— E o que sabe sobre mim?

Ela não era espiã de Campbell, evidentemente. E, embora MacColla fosseconhecido por suas vitórias com Graham, achava que as mulheres não se preocupavamcom tais aspectos das batalhas.

— Diga-me quem é, leannan. Uma Fitzpatrick, você afirma. Fale-me de sua família.

— Ele estendeu a mão, hesitante, parou, e depois pousou a mão de leve na curva dascostas de Haley. — Estou pronto a lhe entregar meu coração. Preciso saber.

Em vez de responder, ela descansou o queixo nas mãos. Olhou á distância, eindagou, sem rodeios:

— Em que ano estamos?

— Ciod na rud?' — A pergunta estranha o pegou de surpresa. — O que disse?

— Só pensei... — Ela virou-se para encará-lo, com aqueles misteriosos olhoscinzentos. — Realmente, MacColla, em que ano estamos?

— Mil seiscentos e quarenta e seis, embora você por certo...

— James Graham está vivo? — Ela fez um gesto de descaso. — Não importa. Nãoresponda.

— Quem é você para ter tais preocupações?

— Não sou daqui.

— Sim — ele deu uma risadinha —, descobri isso por mim mesmo.

— Não. — Ela desviou os olhos. — Quero dizer, não sou mesmo daqui.

Haley parecia tão pequena e sozinha... MacColla inclinou-se para mais perto epassou o braço em torno de seus ombros. Achou melhor simplesmente esperar em silêncio

por qualquer história que ela contasse.Haley respirou fundo.

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— Bem, vamos lá. Sou do futuro. — Ela o fitou, esperando pela reação.

MacColla apenas a encarou, sem entender, incerto do que se passava.

Ela fechou os olhos, como se estivesse se preparando para algo doloroso, e depoisemendou depressa:

— Meu nome é Haley Anne Fitzpatrick. Sou de Boston, Massachusetts. Tenho... —

Esfregou o rosto, engoliu em seco e tentou de novo, a voz rouca com as lágrimas. —Tenho cinco irmãos: Danny, Colin, Conor, Gerry e Jimmy. Meu pai... — Deixou escapar umgemido doloroso de angústia. — Meu pai é de Donegal. Mas ele foi para a América quandoterminou os estudos. É um policial. Era um policial. — Calou-se, respirando pesado, comose tivesse corrido um quilômetro. Por fim, continuou, parecendo entorpecida einexpressiva: — Minha mãe é irlandesa também, mas não imigrou recentemente. Seusparentes eram de Cork. Sou estudante de pós-graduação em Harvard. — O tom tornou-sealterado outra vez. — Entendeu? Harvard. De onde eu venho, isso é importante. Bolsistapara estudar a cultura celta. Meu foco é a armaria do século XVII. Não é o máximo? —Passou a falar febrilmente. — Nasci em 1970. Sapatos de plataforma e discoteca. Mas euera muito jovem para isso tudo. Para mim havia Ki-Suco, Guerra nas Estrelas, Madonna.

— Agarrou o braço de MacColla e chacoalhou-o. — Eu venho do século XXI. Aviões, tele-fones, video-games. Para não mencionar banhos quentes. — Parou e resmungou: — MeuDeus, banho quente parece ciência de foguetes neste momento. — Olhou sem ver para adistância.

MacColla por fim abriu a boca.

— O que está dizendo? — Sua voz era perigosamente calma. — Não compreendosuas palavras, leannan.

Leannan, Haley pensou. Ele a chamava de leannan. Querida. Amada.

De Alasdair MacColla. Que absurdo. E, mesmo assim, isso deu a Haley força para

prosseguir.— Estou dizendo... — cravou os olhos nele — que isto é o passado. Para mim, você

é do passado. Você morreu. Anos atrás. Centenas de anos atrás. Sei sobre você porquevocê é famoso. Parabéns! Você morreu na Irlanda. Não me lembro quando, exatamente,ou como. Você foi traído, isso é tudo de que consigo me lembrar. — Haley passou as mãosnos cabelos, descansando a cabeça nas mãos, desanimada. — Foi assassinado — disse,baixinho. Olhou para ele, o queixo apoiado no braço, sem se importar em enxugar aslágrimas das faces. — E tudo ficou uma droga! Deus, há a batalha de Culloden, a expulsãodas Terras Altas. O xadrez é declarado ilegal. As espadas também. A droga toda.

Ele não entendia metade do que ela dizia. Quase nada, na verdade.

Mas... o futuro? Sem saber o que dizer, ele tentou gracejar:

— Tem certeza de que não machucou a cabeça com essa sua barbatana?

Ela endereçou-lhe um olhar de puro sofrimento, e MacColla sentiu-o pelo corpo, tãodoloroso como qualquer ferimento físico.

— Por que continua perguntando de James? — Seu tom era gentil, e o lampejo dealívio que viu na face de Haley fez seu peito doer. Ela tinha medo dele? Receara suareação? — Graham, de Montrose — ele emendou, baixinho.

— Ora, sei muito bem de quem está falando. Encontrei uma arma. Acho que era a

arma dele. "Para JG, com amor, de Magda", dizia a inscrição. Quero dizer, a quem maispoderia pertencer?

— Mas como isso prova...

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você? — Manteve o tom direto. Embora não aceitasse aquela história, também não arejeitava. As habilidades de luta de Haley já o haviam espantado o suficiente para uma vidainteira, ele não conseguia imaginar por que deveria surpreender-se se ela aparecesse comalgo ainda mais impressionante. — O que você diz a respeito dessa arma não prova nada.

MacColla viu a mente de Haley trabalhando, os olhos cinzentos examinando apistola que ela virava nas mãos. A arma que ela disparara como se tivesse feito isso a vida

inteira.Poderia ser verdade? Ela atirava, lutava e falava como nenhuma outra mulher que

ele conhecia. Como nenhuma de que ouvira falar. Era determinada e forte. E muitosaudável também, o que era evidente. As pernas, longas e retas. Mesmo as facesradiantes, e o sorriso brilhante de dentes perfeitos falavam de uma vida de luxo.

De privilégio.

Ele não via como conciliar tais coisas. Que ela pudesse carregar e disparar umaarma tão bem quanto qualquer homem e, mesmo assim, tivesse a pele luminosa e clara,como se esculpida do mais fino marfim.

Achara que ela fosse uma espiã, mas será que não praticava alguma forma demagia negra? Seus pelos se eriçaram.

— Você é... — A voz de MacColla soou rouca e grave. — É algum tipo de... bruxa?

— O quê? — Haley riu. — Eu? Uma bruxa? Deus me livre! — Meneou a cabeça e,então, uma expressão peculiar toldou-lhe as feições, como se não tivesse pensado antesnessa conclusão. — Está brincando? — Um sorriso triste repuxou sua boca. — Eu lhedisse, somos irlandeses. Irlandeses católicos, para pôr um ponto-final nessa coisa toda. Fuibatizada, fiz a primeira comunhão, o crisma... tudo. — Haley suspirou e o encarou comtristeza.

MacColla não tinha certeza do que fazer, nem do que pensar.— Você ainda não acredita em mim, não é? — ela perguntou.

— Bem...

— Certo, eu não acreditaria também.

— Haley... — ele começou.

— Não, não, deixe-me pensar. — Ela conhecia um bocado sobre aquele período.Sabia sobre MacColla. O que poderia dizer para fazê-lo acreditar?

Vasculhou a memória em busca de qualquer pedaço da vida de MacColla de quepudesse se recordar. Freqüentara seminários, lera David Stevenson. Sabia de fatos secun-dários que não deviam ser bem conhecidos no próprio tempo em que estavam.

Posso fazer isso, pensou. Afinal, ela sabia de coisas que ele não lhe contara, e quenenhum dos companheiros dele devia saber. Conseguiria convencê-lo. Virou-se paraencará-lo.

— Seu pai foi aprisionado durante anos por Campbell. Espere — ela disse, derepente, e empalideceu. — Ele não está preso ainda, está? — Ao vê-lo menear a cabeça,Haley fez uma anotação mental para tentar juntar as peças do que acontecera ao pai dele,e quando. — Seu irmão Gillespie estava com ele — continuou, — Havia outros irmãostambém, mas não sei muito sobre eles... — Ela perdeu o ânimo. Aquilo não estava dando

certo.MacColla apenas sorriu.

— Muitos sabem da traição de Campbell contra meu pai, leannan.

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— Há aquele poeta! — ela exclamou e apontou o dedo para ele, empolgada.

MacColla franziu a testa.

— Sabe... qual é o nome mesmo? — Ela bateu os dedos nos lábios. — Iain LornMacDonald! Ele adorava você. Escreveu todos os tipos de poemas e canções sobre você.

A carranca de MacColla transformou-se num rubor escarlate. Ele abriu a boca para

falar, mas Haley o impediu.— Não, espere um minuto, eu não acabei. Ele tinha um apelido. Ora, isso não

poderia ser de conhecimento público, poderia? "MacDonald Gago", era isso? "IainCareca"? Bem, ele gaguejava e era careca, e tinha um apelido nessa linha. Eu só nãoconsigo... — Ergueu a mão, percebendo uma impaciência crescente nas feições deMacColla. — Espere. — Se pudesse se lembrar do apelido, isso seria algum tipo de provade... alguma coisa.

Qual era o apelido do poeta? Apelido...

— Ah! — A exclamação soou como um grito, e ela arregalou os olhos. — Seu pai!— Ela se inclinou, animada. — Seu pai tinha um apelido! CoIkitto. Porque ele era canhoto.Os mais íntimos o chamavam de Colkitto.

Ele assentiu, mudo e com os olhos apertados. Fosse de confusão ou suspeita,Haley não saberia dizer.

— Veja, na minha época, por algum tempo as pessoas... bem historiadoreschamaram você erroneamente de Colkitto. Achavam que você fosse canhoto. Discutiamsobre isso. Mas não é seu apelido, é? Seu pai Coll era... é conhecido pelos amigos maisíntimos como Colkitto. — Ela sorriu, triunfante.

Mas MacColla, não. Sua expressão sombria a enregelou, e roubou o sorriso de seuslábios.

Ele se levantou. E, embora oferecesse a mão para ajudá-la a ficar em pé, sua vozsoou brusca quando disse:

— Precisamos ir. Sou esperado em Kintyre por minha família. — Ele começou aandar.. — Não se preocupe, leannan. Logo poderá perguntar ao próprio homem.

Poderia acreditar em Haley? Tinham parado para um breve descanso, e MacCollasentou-se, observando-a.

A moça estava em seu próprio mundo, examinando a espada, como se pudessedestrancar a chave para o universo. Saltara para pegá-la no momento em que ale tirara abainha de couro para se sentar.

Ele acreditaria naquela história fantástica ou decidiria que ela era a louca maisadorável que já conhecera? Aquela conversa maluca de viajar através do tempo oconfundira. E, mesmo assim...

— Você diria que esta espada é de um gallowglass, um soldado mercenário deinfantaria irlandês? — ela indagou.

— Leannan, você faz perguntas muito peculiares. — Ele soltou o pequeno odre decouro do cinto e tomou um gole de água. Enxugou a boca na manga, divertido e des-concertado. — Então, fala irlandês também? Gallóglaigh. Soldados estrangeiros — elemurmurou. — Não ouço essa palavra faz tempo. Sim, tem a aparência de uma espada

irlandesa como aquelas com que os gallóglaigh lutavam.Observou-a voltar a atenção para a lâmina e correr a palma ao longo da base. Era

um desenho simples, com linhas em forma de V que se encontravam nas arestas. Haley

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estamos nas terras de Campbell. E, embora alguns de seu povo unam-se contra ele, nãohá meio de distinguir o amigo do adversário. — Enfiou a mão pelos cabelos dela e beijou-ano topo da cabeça. — Precisamos continuar andando. Encontrar cavalos e sumir daqui.

— Como encontraremos cavalos? — Haley apontou para o enorme espaço desertoem torno deles. Seguiam para o sul, tanto quanto possível, sob a cobertura dos trechos debosque que sombreavam o Loch Awe. Ela não imaginava que fossem se deparar com

algum estábulo em breve. — Estamos no meio do nada.— Não canse sua bela cabeça com isso. — Ele a puxou num último abraço rude. —

Passei a maior parte da estação incursionando por esta mesma terra. Espero poder arranjar um pônei para esse seu lindo traseiro. — Deslizou a mão para baixo e deu-lhe umbeliscão.

Haley deixou escapar um gritinho de surpresa. O sorriso de MacColla era franco, eele parecia bastante satisfeito consigo mesmo.

Ele a fitou, a expressão terna, os olhos castanhos gentis conforme percorriam suaface, embevecidos.

— Mais uma coisa, leannan.A afeição que Haley viu naqueles olhos a espantou.

Emocionou-a. Apavorou-a.

— Sim? — Sua voz saiu ofegante e débil.

— Acredito em você. — MacColla afagou-a na face. — Não compreendo suahistória, mas acredito nela.

Haley sentiu lágrimas nos olhos.

— De verdade? — Algo no fundo de seu âmago desenrolou-se. Ela não se dera

conta por completo do quanto estivera apavorada. Temerosa de que ele não lhe dessecrédito, de que a deixasse sozinha.

Porém, mais do que tudo, Haley temia ter compreendido mal a razão de ser mandada de volta. Porque sabia o motivo agora. Fora enviada de volta no tempo por ele.Para ele.

— E você — ela murmurou. — Você é o motivo de eu estar aqui.

— Sim. — A emoção tornou sua voz áspera. — E eu sou a razão pela qual vocêficará.

Ficar. Ela poderia? E quanto à sua família? Sua vida? Ficar seria abandonar seu

antigo mundo para sempre.Ela correu os olhos pelo rosto de MacColla. A boca cheia, com os lábios

entreabertos, prontos para tomar os seus; os olhos, nos quais ela testemunhara tantaferocidade, agora vulneráveis e repletos de afeição, só por ela.

Sim, ela pensou. Quem sabe...

Ficar. Por algum tempo.

Ele a beijou, com suavidade e vagar, e foi a coisa mais certa que Haley jáexperimentara.

— Podemos nadar? — O destino deles era o promontório de Kintyre, e embora tudoque soubesse do lugar fosse cantado por Paul McCartney e Wings, Haley estavaemocionada, empolgada em ver o que MacColla alegava ser um lar modesto num vale

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enquanto ele dava mais alguns passos.

Era um homem imenso. Uns dois metros de altura, ela estimava. Admirou osmúsculos retesados sob a camisa, a flexibilidade das panturrilhas firmes a cada passo. Oscabelos negros eram selvagens, ondulando, roçando os ombros. E havia aquela tremendaespada, que chegava quase ao chão às suas costas.

MacColla era uma surpresa e tanto para ela.Haley ouvira falar de sua ferocidade, testemunhara essa bravura em sua luta comos Campbell. Sabia que havia profundezas sombrias e viciosas que ainda teria deentender. O guerreiro nele a assustava. Poderia ela amar um homem capaz de tamanhabrutalidade?

E, contudo, descobria-se na expectativa de conhecer esse lado. Que Deus aajudasse, mas até mesmo esperava um dia poder presenciar Alasdair MacColla em ação.

O seu MacColla.

Um homem tão naturalmente divertido em contar suas próprias histórias. E capaz detanta paixão.

MacColla virou-se para ver onde ela estava. Ficaram ambos em silêncio por ummomento. Então, ele inclinou a cabeça.

— Não gostou da minha história? — indagou, estendendo a mão para ela.

Haley respirou fundo, adiantou-se e tomou-lhe a mão.

— Adorei sua história.

De repente, as sobrancelhas grossas se franziram.

— Qual é o problema? — ela perguntou.

— Seus pés, leannan. — Ajoelhou-se diante dela. — Você está mancando. — Coma mão em torno de sua coxa para firmá-la, MacColla ergueu-lhe o pé oposto e inspirou comforça.

Ela apoiou-se em seu ombro para equilibrar-se.

— Estou bem.

— Por que não me disse? — ele resmungou, e examinou o outro pé. — Você nãotem pés para tanta caminhada. — Levantou-se e ergueu-a nos braços. — Você é uma gataselvagem, sim, mas com patinhas muito delicadas.

— Ora essa, MacColla! — Quando ele começou a andar, Haley sacudiu-o pelos

ombros num protesto. — Não pode me carregar o caminho todo até Kintyre.— Eu carregaria. — Passou os braços dela em torno de seu pescoço, e seu sorriso

alargou-se quando ele estalou um beijo na face de Haley. — Se você pedisse.

— Não vou pedir uma coisa dessas. — Ela descansou a cabeça na curva do ombroforte, balançando os pés no ar, deixando-se inebriar pela sensação. — Então, qual é o seuplano?

Eles se aproximavam de uma clareira.

— Meu plano — ele respondeu, quando a colocou com gentileza junto a uma árvoreperto da beira da mata —, é fazer você descansar aqui. Precisamos de cavalos. E preciso

de comida. — Inclinou-se e beijou-a na testa. — Não se mexa, leannan. E, por favor, nãoseja seqüestrada na minha ausência. — Antes de entrar no bosque, virou-se e disse: —Voltarei com comida e pôneis.

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MacColla afastou-se em passos rápidos, e o sorriso de Haley tornou-se débil. Eladescansaria e pensaria.

E tentaria imaginar como exatamente pretendia impedir um herói de guerra demorrer.

— Uma moça? — Colkitto bateu a caneca na mesa, e a cerveja transbordou pelos

lados, ensopando o tampo de madeira. — O que meu filho está fazendo vadiando pelo paíscom uma moça?

Jean olhou para Scrymgeour. Ela sabia que o pai poderia fazer mesmo o homemmais destemido tremer, em especial quando bebia. Mas Scrymgeour continuava calmocomo sempre, e ela sentiu-se grata.

Ele relanceou os olhos em sua direção, e Jean endereçou-lhe um sorriso rápido etímido. Em momentos como aquele, sentia-se envergonhada com o comportamento do pai.Imaginou o que Scrymgeour pensaria deles. Dela, principalmente.

Tinha três irmãos, quatro, se contasse o bastardo, Angus, e Colkitto como pai, todoseles com aquela atitude guerreira, agarrando-se com tanta força à rixa de gerações que às

vezes ela receava que isso os definisse tanto quanto a própria linhagem do clã.Será que Scrymgeour estava ali, aguardando o momento de livrar-se de todos eles?

Jean sentou-se mais ereta, controlando os pensamentos o bastante para responder:

— Ele não está vadiando. — Cruzou as mãos no colo, numa pose tranqüila, quecombinava com a suavidade da voz. — Eu lhe disse, os homens de Campbell pegaram amulher. Meu irmão simplesmente...

— Simplesmente arriscou a pele por alguma estranha?

Jean hesitou. Isso a fizera pensar também, embora por razões diferentes. Nãogostara da mulher a princípio. Ressentira-se por ela ser livre e ter modos másculos. Porém,quando Alasdair descobrira que Haley sumira, a pressa com que ele correra atrás deladeixara Jean espantada.

Imaginou se a mulher poderia ser a chave para suavizar o desejo de seu irmão por vingança. O anseio dele era insaciável, infindável, e destruía tudo no caminho. Tinha sidoisso que lhe roubara o marido.

— Campbell está ameaçando tomar de volta esta terra — seu pai continuou. Deuum murro na mesa, acertando a poça de cerveja com um baque surdo.

Ela viu Scrymgeour arrepiar-se com o espirro da cerveja. Ele limpou a facediscretamente, e Jean ruborizou-se, mortificada.

Mais uma vez, sua mente desviou-se para seu marido. Donald MacKay, deArdnacroish. Quase um estranho para ela, mas um bom homem.

Ele sacrificara a própria espada em batalha, entregando-a a seu irmão quando a deAlasdair se quebrara. Ao dar a ele a espada, seu marido tinha lhe dado a vida. Era por causa dele que seu irmão ainda vivia.

Jean sorriu com tristeza e tentou afastar esses pensamentos. Olhou para o pai,observando a boca que se mexia. Ela ouvia o som, mas não registrava as palavras.

Os homens sempre falavam de batalhas. Jean esperava mais da parte deles. DeAlasdair, em especial. Ele era mais inteligente, mais sensato que o resto. O único homem

em sua família que sabia ler. Que era um visionário. Um líder.Imaginou o motivo pelo qual seu marido morrera aquele dia, na batalha de Auldearn.

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Sua mãe entrou na sala, e Jean recordou-se de como ela fora bela. MacColla eraum homem de tamanho incomum, todos os seus irmãos eram, e fora um traço que sópoderiam ter herdado da mãe. Embora Colkitto fosse alto, sua mãe era quase da mesmaaltura dele, ainda ereta e forte, apesar da idade.

— Sim, marido, temos cerveja à mão. — Mary sorriu, e Jean sentiu-se grata peloelegante gesto de cabeça que endereçou a Scrymgeour ao encher de novo o copo dele. —

Não há necessidade de berrar. Estou logo ali no outro cômodo.— Parou atrás da cadeirado marido e pousou a mão em seu ombro. — Você pode se imaginar um rei entre oshomens, meu amor — disse, e olhou para as paredes desnudas da humilde cabana dedois cômodos —, mas esta casa está muito longe de ser um castelo. — Ela cravou osolhos em Jean e piscou com malícia.

Scrymgeour sufocou uma risada, surpreso com a impertinência de Mary.

Colkitto soltou uma gargalhada, um som trovejante que ecoou pelas paredes frias depedra. Um riso largo, escancarado, que revelou os dentes amarelados pela idade.

— À minha Mary! — Ele ergueu a caneca agora cheia. — Nunca a ouvi falar com a

língua tão afiada. — Virou a cabeça para fitá-la. — Você é tão bonita quanto no dia em quenos conhecemos, beanag. — Tomou um grande gole de cerveja.

— E você, na duine agam — Mary retrucou. Tirou a caneca da mão dele para tomar um gole. — Eu o acho irascível do mesmo jeito.

— Vamos beber a isso. — Com uma risada, Colkitto afagou a face da esposa edepois voltou a atenção para a mesa. — Mas em breve lutaremos. Os MacDonaldreclamam Kintyre, e Campbell não deixará isso ficar assim. Marquem o que eu digo, elevirá atrás de nós, com sangue na mente.

Sangue, e mais sangue...

A amargura de seu pai aumentava a cada dia. Tão acre como a maldita cerveja sema qual ele não podia mais viver.

E Alasdair. Seu irmão não era mais um jovem. Era hora de ele pensar em outrascoisas. Um lar. Uma esposa.

Tinha quase quatro décadas no costado e ainda nenhuma vida própria da qual falar.

Parecera cativado por aquela mulher singular.

Jean fechou ás mãos em torno do copo. O metal era frio em sua pele quente.

A sombra de um sorriso surgiu por um instante em seus lábios. Talvez a estranha denome Haley fosse justamente aquela a virar a cabeça de seu irmão.

Campbell olhou para a direita, avaliando com discrição o homem que cavalgava aseu lado, e congratulou-se pela decisão prudente. O major Nicholas Purdon era um sol-dado completo. Recebia ordens sem perguntas e parecia apreciar a matança de papistas etolos.

Endereçou ao rapaz um raro sorriso e incitou a montaria a um trote. As terras planasde pasto que circundavam o castelo eram um terreno agradável, feitas para uma fácilaproximação. Um local peculiar para se construir uma fortaleza, para dizer o mínimo. Masa tolice de alguém fora seu triunfo.

Triunfo. Ele gostava da vitória. Buscara por ela com uma bruxa, mas finalmente aencontrara com um soldado.

Com Purdon à sua direita e um tal de general Leslie à esquerda, ele limpara a

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região dos MacDonald. Juntos, tinham encurralado MacColla e sua família.

E, juntos, haviam matado MacColla.

— Tem certeza de que ele está morto?

— Sim — Purdon disse —, o grandalhão está morto. Poderia ser verdade?MacColla, morto. Campbell ficou radiante. Nenhum MacDonald era páreo para mil e

seiscentos de seus melhores soldados. Nem mesmo MacColla.— Skipness foi uma conquista — Purdon continuou, referindo-se à batalha que os

homens de Campbell tinham travado no castelo, na parte alta da península de Kintyre. —Foi um longo cerco, mas o Castelo de Skipness é seu. — Apontou para a edificação queassomava diante deles.

— Não me importo com o castelo. — Campbell puxou as rédeas e ergueu os olhos.Skipness era uma sólida fortaleza retangular construída com pedras vermelhas e amarelas.— Um monte solene de pedras, não é?

Não deu chance ao major para responder. Notou um ajuntamento de homens queexaminava algo no chão, e então avistou as botas pretas, esticadas de um modo pouconatural no mato. Desmontou depressa, deixando as rédeas penduradas.

Os homens rodeavam o corpo, mas Campbell podia dizer pela silhueta que era umhomem enorme que jazia morto no chão.

MacColla.

Purdon alcançou-o quando Campbell resmungava alegremente:

— Não ligo para castelos, major, quando a cabeça de MacColla está aí para ser tomada.

— E o senhor a tem. — Purdon sorriu. O grupo se abriu, e o soldado apontou para o

corpo com um floreio.— Seu idiota! — A imprecação de Campbell soou com um silvo de serpente. —

Esse não é MacColla! — Cutucou a cabeça do homem com a bota, virando-a de um ladopara outro. Ele era alto, de cabelos negros e nariz arrogante; alguém parecido comMacColla. — Esse é o irmão dele.

— Ora... — Purdon começou, com cautela —, não é um filho de Coll Ciotach omesmo que qualquer outro?

Campbell respondeu com o silêncio. Sua mão desceu para a espada de lado, e eleviu, gratificado, alguns dos homens se encolher.

O aço fino soltou um assobio agradável quando ele girou a espada na diagonal àsua frente. Depois, numa cutilada para baixo, ajoelhou-se para enterrar a lâmina nagarganta do MacDonald morto.

Levantou-se, e precisou arrancar a espada do solo sob o pescoço do homem. Por fim, virou-se para o major.

— Não — retrucou. — Não é o mesmo. Agora, trate de encontrar MacColla. Overdadeiro MacColla. E você o matará. E matará seu pai e sua mulher.

Ele relanceou o olhar para sudoeste e fechou os olhos para protegê-los do sol, baixono céu. MacColla estava lá fora. Embrenhara-se para mais longe, ao sul. Sentiria ochamado da Irlanda e iria para lá. E Campbell o pegaria antes disso.

— Vamos para o sul — disse —, sangrar o país dos MacDonald conformecavalgamos.

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marmorizando o coque apertado na altura da nuca.

Haley respirou fundo.

— Aquela é sua... — ela começou a perguntar, mas MacColla respondeu ao saltar no chão e, em duas passadas, envolver a mulher nos braços — ...mãe. — Haley comprimiuos lábios. — Bem, vamos lá.

Escorregou do pônei e, por um instante, esticou as pernas entorpecidas. Depois,sem saber o que fazer, segurou as rédeas dos cavalos e ficou ali parada, esperando queficasse claro o que deveria fazer ou para onde deveria ir.

Observou com atenção enquanto a mãe de MacColla segurava o rosto do filho entreas mãos, conversando em gaélico, rápido demais para que ela pudesse compreender.Sorriu ante a visão do guerreiro que, apesar do tamanho e da ferocidade, ainda era o filhodaquela mulher.

A irmã de MacColla saiu da casa, passou por trás dos dois e rumou em sua direção.Enxugando as mãos no avental, Jean acenou com a cabeça e abriu um sorrisosurpreendentemente amistoso.

— Bem-vinda — ela disse. — Estou muito contente em vê-la. Você deu um sustoem meu irmão. Tenho certeza de que os cães do inferno não poderiam alcançá-lo, tãodepressa ele saiu correndo de Fincharn.

O comentário provocou uma onda inesperada de calor no peito de Haley. MacCollacorrera atrás dela.

— Eu sabia que ele a encontraria — Jean prosseguiu. — E fico feliz com isso. Seido que Campbell é capaz.

Era uma afirmação grave, e Haley imaginou o que a pobre garota suportara nosporões daquela sombria casa da torre.

Um silêncio incômodo caiu entre as duas antes de Jean se animar outra vez.

— Mas no que eu estou pensando? — Pegou as rédeas das mãos de Haley epassou-as por sobre a cabeça dos pôneis para enrolá-las no pescoço dos animais. —Venha comigo — convidou, estendendo a mão. Presumindo saber a razão de suaansiedade, acrescentou: — Não se preocupe com as montarias. Este é um trabalho parahomens. Meu irmão cuida das batalhas, deixe que cuide também dos animais. — Esboçouum sorriso enviesado.

Haley tomou-lhe o braço.

— Você certamente vai querer um banho — disse Jean. — E temos uma cama para

você também.Isso seria um luxo, Haley pensou.

— Você dormirá comigo — acrescentou Jean —, mas só nós duas.

A mãe de MacColla estava concentrada no filho e, quando Haley pensou quetemporariamente escapara da apresentação, ouviu-a exclamar:

— Não pense que vai me escapar! Quero conhecer a moça que meteu meu filho emtal confusão.

Haley sentiu a mão firme no ombro e virou-se para encarar Mary MacDonald.Embora seu sorriso acolhedor a deixasse à vontade, era evidente que aqueles olhosperspicazes não perdiam nada.

— Oh, eu... — Ela vasculhou a mente à procura de uma maneira educada de se

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apresentar no século XVII. Finalmente, disse: — É um prazer conhecê-la.

— Ah... — Mary ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar rápido para o filho —,que belo inglês. Não é de admirar que meu filho diga que não devo falar com você emnossa própria língua. — Levou a mão ao rosto de Haley e examinou-o detidamente. — Eletambém diz que, embora seu pai seja irlandês, você tem a índole de uma mulher dasTerras Altas. — Bateu de leve em sua face, como se lhe testasse o humor de improviso.

MacColla fez um gesto de saudação para alguém, e todos se viraram para ver Scrymgeour, que se aproximava. Haley viu-o lançar um olhar para Jean, como se tivessesido automaticamente atraído por ela, para depois desviá-lo depressa. E imaginou sealguém mais notara.

O cumprimento que ele e MacColla trocaram foi mais reservado do que da últimavez. Haley olhou para Jean e de novo para os homens, percebendo que MacColla, pelomenos, estava ciente do interesse de Scrymgeour por sua irmã.

— Têm notícias de Gillespie?— MacColla perguntou.

Haley conteve o fôlego. Estava tão nervosa por encontrar os pais de MacColla, que

se esquecera de que um irmão apareceria também. E ela não tinha certeza de estar preparada para isso.

— Nenhuma palavra ainda — Mary retrucou, a voz tensa.

— Gillespie ruma para o sul neste exato momento — Scrymgeour apressou-se emassegurar. —Tenho certeza de que veremos o teimoso qualquer dia desses.

De repente, Haley sentiu-se grata pela presença de Scrymgeour. Ele se mostravaeducado, formal e ponderado como sempre. Estudou-o enquanto os homens conversavam.Embora fosse desprovido do que se poderia chamar de garbo, não fora seu tamanho o queprimeiro lhe chamara a atenção. Haviam sido as feições agradáveis, acolhedoras e

francas. Confiáveis. Notou que Jean o observava também, e percebeu que não era a únicaagradecida pela presença dele.

— Segundo entendi, você viaja com Alasdair agora. Custou um momento a Haleypara registrar que Mary dirigira o comentário a ela.

— Hum, sim — respondeu, olhando para MacColla em busca de confirmação.

— Então, logo voltará para sua terra — Mary continuou. — Para a Irlanda.

Haley sentiu um ardor nos olhos. Para a Irlanda. Esforçou-se para manter umsorriso nos lábios. Onde ele encontraria a morte.

— Imagino que esteja ansiosa para ver seu pais de novo.

— Eu... sim.

— Foi uma longa jornada, mamãe. — MacColla interveio, poupando-a. Estava aolado dela num instante, com o braço em suas costas, num gesto protetor. — E vou diretopara a cozinha. Pegar alguma coisa do que minha irmã tenha colocado no pote.

— Ela fez uma ótima galinha...

Nesse instante, Haley ouviu um leve farfalhar vindo de trás. A mão de MacColladesapareceu de suas costas, e ela o viu girar o corpo de lado, bem a tempo de se esquivar do salto de um velho senhor disposto a derrubá-lo. Encontrando o ar, o homem tropeçoupara a frente, e MacColla virou-se para pegá-lo antes que caísse no chão.

Colkitto, ela presumiu.

O homem levantou-se e soltou uma gargalhada.

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um halo. — Puxa. Parece um ninho de ratos.

— Oh, não. — Jean guiou-a até um banquinho de três pernas. Apesar de manter aexpressão neutra, Haley podia ver o ar divertido em seus olhos. — É mais como algopreparado para um passarinho.

Uma brincadeira, Haley pensou. Interessante.

Jean passou a pentear seus cabelos em silêncio, parando para desemaranhar osnós com os dedos. Haley via ocasionais vislumbres dela no espelho. Notou que ela pareciamais solta agora que estava perto da família. Tinha cor nas faces, e havia tranqüilidade namaneira como se conduzia.

Quando seus cabelos finalmente ficaram desembaraçados, Jean correu os dedospor eles, e Haley estremeceu. O couro cabeludo estava dolorido por ter ficado com oscabelos puxados para trás com firmeza o dia inteiro. E senti-los soltos pelas costas era umalívio delicioso. Jean começou a separá-los em grossas mechas para trançar, e Haleyassustou a ambas quando disse abruptamente:

— Não. — Olharam-se pelo espelho.

— Quero dizer, posso, por favor, deixá-los soltos? — Haley perguntou. — Seriacorreto?

— Faça como quiser.

Haley viu-a olhar para os próprios cabelos no espelho, e perguntou-se se Jeanestaria imaginando os dela soltos.

Jean abriu a porta para sair, e MacColla estava parado lá, pronto para bater.

— Eu... — Olhou para além da irmã, cravando os olhos em Haley. — Pensei quepoderíamos exercitar as pernas um pouco. Fizemos uma longa cavalgada. E as terras emtorno de Kintyre são muito bonitas.

— Eu... sim — Haley conseguiu dizer. Ele também se lavara e se trocara, e vê-loenchendo a soleira da porta, tão concentrado nela, esvaziou sua mente de qualquer pensamento.

Jean inclinou a cabeça de leve e passou por baixo do braço do irmão ao sair.

— Não tão bonitas quanto você, porém, leannan — ele disse, assim que a irmã seafastou. — Você é uma visão esplendorosa, com seus cabelos brilhando às costas comoum lago ao luar.

MacColla insistiu em mostrar-lhe a costa ao redor do promontório de Kintyre,escalando um pequeno penhasco para terem uma vista panorâmica. Embora fosse umasubida suave até o cume, o coração de Haley disparou ao ver uma escarpa tão aguda dooutro lado, descendo até a praia lá embaixo.

O vento assobiava ao redor, carregando o cheiro de maresia, os pios dos pássarose os gritos distantes das focas.

Lamentando a decisão de usar os cabelos soltos, Haley segurou-os. Porém,esqueceu o aborrecimento assim que abarcou por inteiro o cenário espetacular que oscercava.

— Ali seria Dunaverty — MacColla disse, seguindo seu olhar até o castelo àdistância. — Uma fortaleza dos MacDonald. — Olhou solenemente para a massa cinzenta

e preta empoleirada no cume de uma formação rochosa monolítica.Quase completamente rodeada por água, a rocha gigantesca parecia caída do céu

para a terra à beira do mar. Uma muralha dupla defendia a fortaleza por terra, reforçada

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por uma trincheira cavada fundo no solo rochoso. Do outro lado ficava uma escarpa derochas e água.

A vista a emudeceu. Na época em que ela nascera, o castelo estivera em ruínas por séculos. Ninguém em seu tempo jamais o vira. Nem mesmo num desenho.

Uma lufada de vento uivou em torno deles, provocando arrepios na pele de Haley.

— Veja — MacColla disse, depois de um tempo, e virou um pouco seu queixo,fazendo-a olhar à distância. — Lá está. — Inclinou-se e colocou a face perto da sua.Apontou pelo mar, para a Irlanda, uma silhueta fantasmagórica no horizonte. — Sua terranatal.

A respiração de Haley falhou.

— A Ir... — começou, e o vento pareceu roubar o resto da palavra de sua boca.Irlanda. Onde MacColla vai morrer.

— Ou melhor, a terra natal de seu pai — ele emendou, alheio à angústia causadapela vista.

Haley se esforçou para respirar, para sacudir a mórbida premonição que sependurou à sua mente como uma teia de aranha, provocando um arrepio em sua pele.

Irlanda. Sempre fora um lar para ela. Um lugar de faces amistosas e sorridentes.Fogueiras de turfa, uma porção de primos, grama úmida e verde, dirigir carros pequenosdo lado errado da estrada, o cheiro de cigarros e petróleo, ser empurrada em  pubsabarrotados, com uma caneca de Guinness na mão e ouvir seu pai juntar-se às outrasvozes numa canção.

— A terra natal de meu pai — murmurou, concordando, e suas palavras sumiram novento.

Cruzando os braços com força no peito, Haley forçou a sensação a se dissipar.

A terra natal de seu pai. MacColla estava se referindo à sua história. Tinhamconversado, discutido o que contar à família. Ela poderia por direito proclamar a Irlandacomo a terra natal de seu pai. Não custara muito para que concordassem que precisavammanter o resto de sua história em segredo.

Tudo que qualquer um precisava saber era que Haley provinha da Irlanda. Isso e ofato de que era católica seriam os únicos pontos de interesse para Colkitto, de qualquer forma.

Ela tinha medo das perguntas que poderiam fazer. Tinha medo de viver tão perto deestranhos. Verdadeiros estranhos, ao redor dos quais ela não sabia como agir, o que dizer,

o que fazer.— É para Antrim que estamos olhando. Meus parentes MacDonald estão lá.

Parado atrás dela, MacColla a envolveu com os braços, roçando-os abaixo de seusseios. Por um momento, todo pensamento consciente fugiu quando ela sentiu aquele corpocontra o seu, quente, abrigando-a do vento.

Ela afrouxou os braços no peito, saboreando a sensação. O abdômen forte, osgrandes bíceps... Ele se abaixou um pouco para descansar o queixo em sua cabeça. Haleysentiu a bolsa de couro na curva das costas e estremeceu ao pensar no que havia debaixodaquele kilt.

Um desejo primitivo a invadiu. Ao sentir aquele homem tão poderoso e firme às suascostas, ficou desesperada para mantê-lo perto de si. Para possuí-lo, absorver cada partedele, fazer com que a possuísse.

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E, principalmente, para mantê-lo longe da Irlanda, um lugar que ela de repentedetestava mais do que qualquer outra coisa que já conhecera.

Em vez disso, dormiriam separados. Ela com Jean, num pequeno sótão no topo deuma escada em caracol, enquanto ele e os outros homens dormiriam debaixo da escada,no chão em frente ao fogo. O único outro quarto pertencia a Colkitto e sua esposa.

Ela não sabia o que ia acontecer entre os dois. Tinham compartilhado só um beijo.Ele pronunciara palavras de amor surpreendentes, assustara-a com uma afeição des-pretensiosa e, no entanto, Haley não sabia o que esperar. O que MacColla esperava dela.

— Ist —, ele murmurou, e Haley estremeceu com a sensação do hálito dele em seuouvido. Envolvendo-a com mais força nos braços, ele apontou para um local na encosta dopenhasco lá embaixo. Era apenas uma fenda estreita na rocha, mas o emaranhado demato seco e cascalho atraiu seu olhar. — Um ninho, leannan. Está vendo?

Haley fez que sim. E, então, seus olhos se ajustaram. Avistou uma cabecinhabalançando, penas brancas e acinzentadas nas sombras.

— Espere, aquilo é um... papagaio-do-mar?

O pássaro imobilizou-se e se virou, exibindo um bico que parecia um engraçado ebrilhante nariz cor de laranja.

Ela estava esperando pela resposta, imaginando como o pássaro era chamado emgaélico, quando sentiu a boca de MacColla em seu pescoço.

A língua era quente, distribuindo lentos beijos langorosos por sua pele. Haley sentiuo corpo despertar para a vida. A respiração tornou-se ofegante, a pulsação acelerada.Tremendo, ela se soltou ainda mais contra ele.

— Você é minha, leannan? — A voz dele era um murmúrio rouco no ar de repenteimóvel. MacColla parecia um selvagem. Em estado bruto. Vital.

Haley sentiu o calor que tomava seu corpo mesclar-se à pontada de anseio em seucoração. Concordou, muda.

— Esta noite. — Ele afastou seus cabelos para mordiscá-la com gentileza na basedo pescoço. — Irei procurá-la.

Haley passou o jantar num transe mudo. Colkitto monopolizou a conversa, falandosobre o rei, sobre Campbell, sobre a Irlanda. Ela sabia que deveria estar ouvindo, mas eraincapaz de se concentrar. Seu corpo era a única coisa que clamava por atenção,empurrando as preocupações de sua mente para longe do alcance da consciência.

MacColla desviava o olhar constantemente em sua direção, como se ela fosse um

ímã. E Haley ruborizava cada vez que isso acontecia.Ele estava tenso, os nós dos dedos brancos, conforme segurava a faca ao comer. O

corpo forte parecia uma arma engatilhada. Carregada, perigosa. Uma arma pronta paradetonar.

Ela se retirou para o quarto, deitou-se e permaneceu acordada durante horas,esperando, ansiosa, por ele.

Temia que Jean pudesse acordar; que MacColla tivesse mudado de idéia.

Mas então o ouviu, muito tempo, depois que Jean adormecera. Um leve raspar dooutro lado da porta.

Haley esgueirou-se em silêncio para fora da cama. A camisola brilhou com umbranco sobrenatural sob o luar. Ela enrolou uma manta de lã nos ombros.

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Seu coração estava acelerado quando ela tateou a porta e correu o ferrolho comcuidado.

MacColla estava lá, um gigante na soleira estreita da porta. Usava as mesmasroupas, a manta desbotada e a camisa. Os pés estavam descalços.

Ficou imóvel, como um fantasma na escuridão. A face estava nas sombras, o luar 

incidindo apenas em alguns traços. Aponte do nariz. A linha dura do maxilar.Haley imaginou por um momento se ele era uma aparição. Se tudo não passava deuma fantasia, de alguma fábula de sua imaginação.

— Tugainn leam. — A voz soou baixa, rouca, só para ela ouvir. Venha comigo.

Estendeu a mão, os dedos delineados pela luz prateada da lua, e Haley a tomou.Deixou que aqueles dedos fortes se entrelaçassem aos seus.

Ele teve de virar o corpo num ângulo desajeitado para caber na escada, mas nãosoltou sua mão. Desceram e se esgueiraram para fora da cabana em silêncio.

O capim reluzia ao luar, transformando o orvalho em milhões de pequenas jóias,

fazendo parecer uma trilha mágica, fria e fresca sob seus pés.Caminharam por algum tempo, rumando para a praia. Nenhum dos dois falou, e o

abafado rolar das ondas na areia ficou mais alto, chegando até eles com a brisa da noite.

Haley estremeceu, e ele puxou-a para mais perto. Quando finalmente falou, sua vozera hesitante, e ela pensou que talvez MacColla estivesse tão nervoso quanto ela.

— Há uma pequena caverna. Não estamos muito longe agora. Acho... — Ele parou,erguendo-lhe o queixo para que o fitasse. Embora seus olhos estivessem escuros nassombras, Haley sentiu sua intensidade, encarando-a, consumindo-a.

Prendeu a respiração, ansiando por conter aquele momento no tempo, guardar 

aquela sensação dos olhos de MacColla nos seus, para sempre.Ele clareou a garganta, afastou seus cabelos da testa e prosseguiu:

— É uma bonita caverna, leannan. Acho que você vai gostar dela. — Acariciou-a naface mais uma vez com o polegar e, depois, continuaram a andar.

Subiram uma pequena ladeira, e ela a viu. Ou, melhor, foi o que ela não viu. Aausência de terra diante deles dizia que estavam diante do mar. Sua visão ajustou-se. Aágua era uma extensão vidrada, como uma obsidiana negra enchendo o horizonte. Umaúnica vaga branca banhada de luar riscava a superfície, iluminando os rolos de águasempre em movimento.

— Tome cuidado, moça. — Pondo a mão em sua cintura, MacColla conduziu-a por uma reentrância superficial nas pedras, subindo e descendo com cuidado pelo penhasconegro.

Saltou o último trecho, e os pés aterrissaram num baque surdo na areia. A estreitafaixa de praia se curvava diante dos dois no formato de uma lua crescente, cercada por uma extensão de areia molhada que parecia prata fundida ao luar.

— Uma pequena caverna. — MacColla virou-se para ajudá-la, mas se imobilizou. Apedra em que ela estava a deixava um pouco mais alta que ele, as faces a centímetros dedistância. — Só para você, leannan — disse, com doçura, a voz áspera de emoção. —Toda para você.

Haley passou os braços em torno do pescoço dele, e MacColla ergueu-a comfacilidade, fazendo-a envolver as pernas em sua cintura. Recuou um passo, e ela teve asensação de que a gravidade a puxava para ele, como se fosse mais conectada a

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MacColla do que à terra em si.

Ele rumou para um trecho seco de praia, a boca deslizando sobre a dela enquantocaminhava. MacColla parou e, sem deixar de segurá-la, passou a depositar em seupescoço beijos ternos, que se tornaram quentes e ávidos, e deslizaram até a linha dodecote.

Haley apertou-se a ele, enterrando os dedos nos cabelos negros, desesperada parapuxá-lo para mais perto ainda.

Ele ergueu a cabeça, e os olhos semicerrados de desejo tinham um brilho intenso.

— A chiall mo chridhe — ele murmurou. Colou a boca na dela, num beijo faminto eapressado, como um animal no ataque. Afastou-se, buscando-lhe os olhos. — Tha gràdhagam ort.

Eu te amo.

Inclinou-se para ela mais uma vez, os lábios entreabertos deslizandovagarosamente sobre os seus, o beijo tornando-se mais intenso, a língua investindo,saboreando, explorando cada parte da sua.

O corpo inteiro de Haley começou a formigar, ganhando vida numa explosão desensações. Ela encheu os pulmões com o cheiro de MacColla, de almíscar e da salmourado mar. Os seios sensíveis intumesceram, e ela sentiu uma onda subir por entre as coxasaté seu âmago, conforme o desejo a invadia, deixando um calor pulsante em sua esteira.

MacColla ajoelhou-se e, com cuidado, deitou-a de costas. Debruçou-se sobre ela,apoiando o peso nos cotovelos e joelhos. Os fartos cabelos caíam, levando o cheiro más-culo mais intensamente até ela, mas lançando a face dele nas sombras.

Algo primitivo transpassou-a quando o sentiu, grande e insistente, esfregando-secontra a fenda entre suas pernas, exigindo satisfação.

— Leannan. — A voz dele era um suspiro ao vento. — Eu quero você, leannan.

Ele tomou-lhe a boca outra vez e pousou a mão em seu seio, massageando-o sobrea camisola fina.

Haley gemeu e fechou os olhos. Encolheu-se ao sentir uma onda de frio nas pernas,e percebeu o deslizar do tecido para cima de suas coxas. Gemeu de novo, erguendo osquadris para se aproximar dele.

A mão de MacColla tateou por um momento até encontrar o caminho por baixo dabarra enrolada. Tocou a pele macia da coxa e alisou-a.

Afagou mais acima.

Os dedos a encontraram úmida e ansiosa por ele, e Haley arquejou. MacColla roçouo polegar em círculos firmes sobre a pele úmida, e os beijos de Haley se tornaramdesvairados. Ela pensou que morreria de desejo.

Ele parou por um instante, e depois deslizou o dedo para dentro dela, sem deixar deacariciá-la com o polegar. Virou suavemente o dedo, e aquele simples gesto a fez gritar enquanto ondas sucessivas de prazer a atingiam.

Emitindo um gemido profundo, MacColla arrancou-lhe a camisola, e logo se livrou,com gestos bruscos, da própria roupa.

Ao vê-lo, Haley ofegou. Ele era imenso. Estava pronto, inflamado, a massa viril pesada sobre seu ventre.

— Nós... — Ela hesitou, insegura. — Você precisa ir devagar.

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

Mas primeiro ele tiraria a areia dos cabelos dela.

— Realmente, Jean. — Haley estremeceu. Empurrou as cabeças de peixe paradentro da água fervendo com a colher de pau. — O que tem contra os corpos dos peixes?Tenho certeza de que darão uma bela sopa.

— Fique quieta. — O raro bom humor que iluminava as feições de Jean contradiziao tom seco de sua voz. — Isso seria um desperdício de peixe bom. As cabeças fazem umbelo ensopado. Pare de reclamar, ou será você quem vai estripá-los.

Haley teve de desviar os olhos do caldeirão. O vapor fazia seus olhos lacrimejar, eaquelas cabeças horrorosas continuavam olhando feio para ela, com os olhos vidrados eas bocas abertas, que pareciam prontas a acusá-la de alguma coisa.

Fitou Jean. Vira a garota mostrar tamanha determinação diante do pai e do irmãoque passara a achar que suas primeiras impressões poderiam ser errôneas. Impressionou-a que tivessem mais em comum do que pensara a princípio. Ambas eram filhas únicascriadas numa casa cheia de rapazes. E, depois, havia MacColla.  A garota adora o irmão,

Haley pensou com um sorriso, portanto não pode ser tão má.Afastando os cabelos dos olhos com o braço, Jean terminou de lavar o sangue da

última das cabeças dos hadoques. Percebeu que Haley a olhava e estalou a língua.

— Continue mexendo. É desse jeito. Estou acabando com este. Depois,adicionamos os nabos e as cenouras. Não há muito — suspirou e olhou para o pequenomonte de nabos sobre a bancada —, mas terá de dar. Temos leite suficiente, graças aJohn.

Dessa vez, Haley teve certeza de que não tinha imaginado a expressão queperpassara a face de Jean. Sabia. A garota tinha uma queda por Scrymgeour.

— E John gosta de sopa de peixe? — Haley perguntou, com ar inocente.— Como vou saber se ele gosta? — Jean murmurou, a voz vacilante.

— Ah, não sei. — Ela deu de ombros. — Vocês dois parecem passar um bocado detempo juntos.

— Não mais do que é decoroso. — As faces de Jean enrubesceram violentamente.

— Oh, claro que não — Haley falou. — De jeito nenhum. E, além disso, ele é muitobonito. Notou as mãos dele? São muito elegantes. — Viu quando as faces de Jeanmudaram do vermelho para o escarlate profundo, e então continuou: — Ele daria ummarido maravilhoso para qualquer mulher. O que acha? Acha que ele seria um bom...

provedor? Vocês dois parecem próximos.— Próximos, é? — O queixo de Jean tremeu com alguma emoção oculta.

Haley começava a pensar que havia ido longe demais quando a jovem virou-se ecravou-lhe um olhar determinado. Enxugando as mãos no avental, disse:

— Tudo bem, então vamos falar de proximidade. Mas mantenha essa colher namão. Terá de aprender a fazer uma boa sopa de peixe, se tiver de alimentar meu irmão.

Dessa vez, Haley foi pega de surpresa.

— O que quer dizer?

— O que eu quero dizer? — Sorrindo, Jean levou as mãos aos quadris. — Sei quevocê tem escapado sorrateiramente por aí. E não é necessário. Esgueirar-se como umaraposa no galinheiro, quero dizer. Embora... — tamborilou os dedos no queixo, pensativa

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— eu ache que Alasdair seja a raposa e você a galinha, não?

Haley percebeu que, de fato, a subestimara. E muito.

— Deus a abençoe... — Jean riu, um som musical que dissolveu a careta defensivade Haley. — Mas você vai se descobrir enfiada até os joelhos em caçarolas de sopa depeixe, se eu conheço Alasdair.

Haley começou a rir também, mas o riso congelou-se em sua garganta. A idéia deuma vida inteira partilhando sopa de peixe com MacColla não a apavorava tanto quanto elaesperava. Parecia na verdade... agradável.

— Não precisa me olhar como um peixe morto! — Jean exclamou. — Um cego veriaque meu irmão está caído por você, moça.

Um gemido agudo cortou o ambiente, interrompendo a conversa. Jean saiucorrendo. Haley perdeu um instante olhando como uma tola para o caldeirão antes delargar a colher, imaginando o que seria. De onde viria.

O som ecoou de novo. Um lamento aflito.

Um único pensamento trouxe Haley de volta ao momento. MacColla.Levou a mão ao coração, que batia com força. Saiu correndo pelo corredor e entrou

na sala. Seus olhos percorreram a cena até se depararem com MacColla. Era irracional,pois estavam todos juntos e pareciam a salvo em Kintyre, mas, mesmo assim, ela sentiuuma onda de alívio ao vê-lo.

O aceno grave com que ele a chamou mostrava o sofrimento e a necessidade deMacColla de tê-la por perto.

Surpreendeu-se ao ver a sala cheia de gente. De repente, parou e recuou umpasso. Segurou-se ao batente com força, julgando que pudesse não ser bem-vinda diantede algo que não lhe dizia respeito.

Lá estavam Jean, Scrymgeour, Colkitto e MacColla. Todos de olhos cravados emMary. Ela estava sentada num banco ao lado do fogo, com o marido de pé, ao lado. Com acabeça apoiada no abdômen de Colkitto, ela agarrava com força as dobras de sua manta.

Era dela a voz chorosa, repetindo vezes seguidas a mesma palavra. Os ouvidos deHaley custaram um momento a perceber que Mary MacDonald entoava um nome:Gillespie.

Então viu seu rosto e compreendeu de imediato. Só a mais horrível e impensáveldas tragédias destroçaria uma fortaleza como aquela.

Alguém morrera.

— Gillespie — MacColla murmurou. — Mo bràthair.

Meu irmão.

Gillespie. O filho de Mary.

Como sua própria mãe reagiria ao perder um filho? Ou Haley, ao perder um irmão?

Deus do céu! Era uma tragédia. Na Escócia do século XVII, era uma tragédia brutal,devastadora. E comum.

Oh, meu Deus, MacColla! O terror brotou em suas entranhas, ao pensar no dia queviria. O dia em que ela poderia receber a notícia que a destroçaria para sempre.

— Gillespie. — Era Colkitto dando voz às palavras que ninguém queria pronunciar.Sua fúria era calma, tão árida e tão completa como a fina camada de gelo nas agulhas dospinheiros. — O Campbell matou Gillespie. E agora vem atrás de nós. Atrás de MacColla.

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Preciso de mais homens. E há os confederados irlandeses que esperam por nós, ansiosospara provar o sangue de Campbell.

Colkitto apertou a mulher com força ao peito.

— Sua mãe e eu ficaremos aqui, em solo escocês. Não vou voltar com o rabo entreas pernas para a Irlanda. Fui expulso de meu país pela última vez.

— Não é... — MacColla começou, comum rosnado.— Filho, eu sei. Um exército espera por você lá. Mas escute, rapaz. Sou um velho e,

se tenho de morrer, será o chão da Escócia que beberá meu sangue.

— Não pode ficar aqui. — A voz de Rollo cortou a sala como um caco de vidro, clarae afiada. — Tem de ir embora de Kintyre.

— Para Islay, então — MacColla disse ao pai. — Vamos reunir uma dúzia dehomens e o senhor zarpará para Islay.

— Ranald! — Mary arquejou.

— Sim, meu irmão está lá — afirmou MacColla. — Há uma fortaleza rebelde emDunyveg. Pai, preciso que mantenha o castelo de lá. Voltarei, com milhares à retaguarda.

Mary enxugou os olhos com os dedos.

— Posso...

— Não, mamãe. Não é seguro para a senhora.

Enquanto Colkitto se debruçava para abraçar a esposa, Haley viu-a sentar-se umpouco mais ereta. E foi uma revelação. Mary estava acostumada à separação. Que vida, adessas mulheres, pensou, com um calafrio. Sempre dizendo adeus a seus maridos e filhos,freqüentemente pela última vez.

Scrymgeour falou então, a voz calma e segura.— Mary virá comigo. Vocês duas virão — disse, dirigindo-se a Jean. — Campbell

terá ido embora de Fincharn, com a atenção concentrada em algum outro lugar. Não vaisuspeitar que voltamos. Seguiremos para Loch Awe de imediato. Para minha casa. —Virou-se para MacColla e prometeu, num tom sombrio: — As mulheres ficarão seguras lá.— Olhou para Haley, emendando: — Você também irá, é claro. Todos iremos...

— Ela não fará isso. — As palavras de MacColla ressoaram baixas e ferozes,arrepiando os braços de Haley. — Ela fica comigo. — Seu olhar silenciou qualquer um quequisesse contradizê-lo.

MacColla pretendia protegê-la. Haley, porém, sabia. Olhou a sala, abarcando todoaquele retrato de profundo sofrimento.

Os homens do clã MacDonald estão começando a morrer.

Correu os olhos ao redor e compreendeu. Era MacColla quem precisava deproteção agora.

Haley sentou-se na areia, não longe de onde ela e MacColla tinham se amado. E,em vez de sentir-se aquecida pela lembrança, a recordação a atingiu como um punhal.Aguda e penetrante como aço.

Ficara empolgada, imaginando o que seria tornar-se íntima dele. Porém a realidadefora muito maior, muito mais avassaladora do que qualquer fantasia. Houvera ternura e umdesejo devastador ao mesmo tempo. Perder-se nele fora como a sensação reconfortantede chegar em casa, com a emoção de tomar um rumo novo, não mapeado.

Porém, quantas noites teriam?

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Ela tentou saborear as lembranças, mas seus olhos desviavam-se para a Irlanda,uma longa e fina faixa de sombras assomando no horizonte, como uma nuvem negra detempestade;

Encolheu os pés na areia, sentindo o frio úmido reconfortá-la, no auge dodesespero. Estava com pena de si mesma.

Nuvens pesadas riscavam o horizonte, conforme o céu se incendiava e anoitecia. Osol incidiu num ângulo agudo em sua face. Haley virou-se por completo para o poente,apertando os olhos para protegê-los do halo laranja cintilando sobre o mar.

Seu coração se apertou. Zarpariam no dia seguinte, pela manhã. Primeiro,seguiriam para Islay, com Colkitto. Depois, para a Irlanda. Seria o adeus para Jean, eScrymgeour, e Mary. Adeus para Colkitto.

Haley não nutria concepções erradas sobre a vida no século XVII. Duvidava que osvisse outra vez.

E o que seria de MacColla? O que seria daquele homem, fadado a morrer numcampo de batalha irlandês?

Fadado? Haley imaginou o que isso significaria, se o caminho de uma vida humanaera predestinado, um mapa infalível de eventos gravados em pedra.

Não podia ser. O que mais explicaria sua presença no passado?

Tentou desvendar isso, rastrear as fitas de Mõbius e encontrar a explicação para aconvergência, a conexidade e a continuidade dos espaços em sua viagem no tempo. Mascada vez que pensava que compreendera, traçando e seguindo os acontecimentos notempo, se emaranhava em paradoxos, simplesmente terminando de volta no ponto departida.

Isso significaria que ela poderia alterar a História? Tinha de poder. Por que mais

teria sido mandada de volta? Ou melhor, de que outra forma poderia ser?Pensamentos de sua família flutuaram por sua mente. Ela não precisava estar 

sofrendo assim. Poderia voltar a Boston, abrigada e segura, rodeada pela família. Estaria asalvo de guerras. Imersa em luxo impensável.

Porém, ainda não tentara encontrar o caminho para casa. Escolhera MacColla.

Voltaria para sua família, se tivesse a chance? Poderia voltar?

Descobriu, naquele momento, que tinha de ficar. Passar por tudo aquilo. MacCollanão deveria morrer. Ela precisava impedir que isso ocorresse. O problema era que osacontecimentos marchavam inexoravelmente para a frente, e ela não tinha idéia de como

pará-los. Redirecionar a História.Ou de como saber, se conseguisse.

O gosto de sal em sua garganta lembrava o de lágrimas.

— Você parece muito melancólica, leannan.

A voz a assustou. Os preparativos exigidos para aquelas várias viagens tinhamtomado a atenção de MacColla a tarde inteira. Haley achava que ele ainda estaria traba-lhando nisso. Dirigindo, pedindo, comandando, acertando tudo para os dias que viriam.

— Parece uma avezinha tristonha.

Ele parou diante dela, apertando os olhos contra os raios do sol poente. A mantabatia em suas pernas com a brisa. A luz direta salientava o menor detalhe, da areia coladasobre os pés descalços ao leve vestígio de barba nas faces, lançando sombras nas linhas

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em torno da boca, arqueada num ar divertido.

O olhar que lhe endereçou afastou o frio dos ossos de Haley. Era difícil sentir-se tãoinfeliz diante daquele homenzarrão que viera procurá-la, com aquele sorriso só para ela.

— Mas você não precisa aprontar tudo? — ela indagou.

— Sim. — Afundou-se pesadamente a seu lado, passando o braço em torno de

seus ombros para puxá-la para mais perto. — Mas acho que tenho outras necessidadestambém. — Piscou para ela.

— Oh, é mesmo?

— É mesmo, leannan.

O desejo faiscou em seu ventre, mas Haley sentiu o espectro da Irlanda pesadosobre ela, fitando-a de longe.

— MacColla?

— Está tão séria. — Ele apertou-lhe o braço. — Como posso tirar essas marcas depreocupação de sua testa?

— Não vá.

— Você sabe que eu preciso ir — ele disse baixinho. Haley foi incapaz de falar por algum tempo, e ele ficou calado a seu lado.

— A Irlanda é bem ali — ela disse, por fim, apontando para a ilha distante. — Por que não zarpamos daqui? Por que ir primeiro para Islay?

— Você desdenha de minhas intenções maliciosas, e me pergunta de assuntosmarítimos? — MacColla riu. — E eu que esperava uma pergunta relacionada com omanejo de espadas. — Ergueu as sobrancelhas, divertido com a própria piada.

Haley fechou o cenho. Recusava-se a morder a isca e mudar de assunto.— É muito perigoso zarpar daqui — ele acabou dizendo, com um suspiro. — As

águas do Srugh na Maoile são muito imprevisíveis.

— O... mar de Moyle?

— Seu gaedhealg melhora a cada dia — MacColla disse, concordando. — A únicarota segura para a Irlanda é por Islay. Vi milhares de homens viajar entre os dois locais, embarcos feitos de couro e salgueiro. Eles acostam e desmontam os barcos para o próximohomem usar.

— Bem — Haley murmurou, nervosa —, nós tomaremos um barco de verdade,

certo?— Aquele é um barco de verdade. — Ele a fitou, sorrindo, e depois soltou uma

gargalhada sonora. — Ah, o olhar de pavor em seu belo rosto! — Tomou seu queixo napalma da mão. — Pare de se preocupar. Meu pai é um marinheiro de verdade. Tem umagalé de doze remos que nos atravessará a salvo. Deixaremos Islay com a maré baixa,quando as correntes são mais fracas. Será uma viagem calma, eu diria. — Riu. — Quemsabe possamos pegar alguns belos hadoques para uma sopa.

Ele a fitou, mas Haley sabia que o sorriso que ela lhe deu não estava nos olhos.

— Vejo a tempestade nesses seus belos olhos cinzentos. Não se preocupe,leannan, me disseram que as águas ocidentais proporcionam a melhor navegação domundo.

— Disseram? Você nunca navegou?

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remavam, o ligeiro chapinhar dos remos ao sair e entrar na água, a batida rítmica da águacontra o casco. Aproximavam-se da Irlanda, e cada ruído apertava o nó em seu estômago.

Passou horas olhando sem ver pela água, o medo e a incerteza vidrando-lhe osolhos. O mar estava calmo, como MacColla prometera que estaria, e o céu cinzentoenegreceu tão depressa que parecia que num momento era dia e, no outro, noite.

O céu escurecido explodiu em milhões de pontos de luz. E quanto ela pensou que aimensa abóbada ao alto engolira seus pensamentos sombrios, Haley a viu, e o terror disparou através dela. A Irlanda. Emergiu das sombras, distinta e negra, assomando paraperto. Naquele momento, Haley experimentou um ódio e um medo tão grandes daquelelugar que seu estômago se embrulhou.

A Irlanda, que lhe trouxera um dia tanta alegria, agora parecia uma coisa má,monstruosa e agourenta, pairando diante deles como algum imenso animal adormecido.

Conforme se aproximaram da praia, os barcos começaram a sacudir loucamente,lutando contra as ondas que subiam e quebravam na areia, que brilhava pálida à luz dasestrelas.

Haley respirou fundo e olhou para o céu, como se isso a ajudasse a conter áslágrimas.

Sentiu um toque na coxa. A mão de MacColla. Quente, amorosa. Porém, por quantotempo? Quanto tempo restava até que aquele herói de antigamente jazesse frio em suatumba?

Ela estremeceu.

— O que será, será, leannan.

Haley sentiu os dedos, fortes e seguros, acariciando-a na face. MacCollaempalmou-lhe o rosto, virando-o em sua direção.

Ela fechou os olhos com força, incapaz de fitá-lo, sentindo o coração partir-se com aperda. Lágrimas surgiram.

Mesmo antes que abrisse os olhos, ela soube o que veria: o amor por ela,temperado pelo impulso obstinado de fazer o que ele pudesse por seu clã. Veria sua con-fiança, sua determinação, a convicção de que isso era a coisa certa. A única coisa.

Porém, ela sabia que não era assim. Não era o triunfo que esperava por ele naspraias da Irlanda. Era a morte.

E ela sabia que só a morte desviaria MacColla de sua missão.

Caberia a ela ajeitar as coisas.

Abriu os olhos e estudou-o. As sombras escureciam-lhe a testa e a boca. MacCollafitou-a, e ela agarrou a mão dele com força.

Haley tinha sua própria missão. Não podia perdê-lo.

Não mais se importava com James Graham, em descobrir se ele estava vivo oumorto. Nem com uma estúpida arma. Os estudos e a bolsa da faculdade não faziamsentido agora.

Importava-se apenas com MacColla e com o futuro ao lado dele, pelo qual ansiavadesesperadamente.

A voz de seu pai veio até ela, de muito distante. Aquelas palavras que lhe dissera nobar, tanto tempo atrás: Nossa Haley sabe o que precisa fazer.

Voltar num lampejo para Boston, para seus irmãos e seu pai, provocou uma dor 

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— Sou um jogador generoso — Taaffe explicou —, mas os parlamentaristas não seergueram ao meu desafio.

— Você fez o quê?! — MacColla exclamou. — É assim que pensa que poderesolver essa guerra, como se fosse um jogo de dados?

— Os homens parecem desanimados ultimamente. Achei que um bom e

cavalheiresco desafio os inflamaria.— Nossa... — Haley resmungou, atônita diante do absurdo —, isso é muito... rei  Arthur de sua parte.

— Não é num esporte que nos empenhamos — disse MacColla, com tom de aço navoz. — Não há justas, nem lanças. Só sangue em fartura assim que a luta começa.Inflamar, de fato. Muito sangue será derramado.

O quase rosnado de MacColla atraiu o olhar de Haley, e ela o enxergou pelo que defato era. Um guerreiro sanguinário, ansioso pela batalha.

O lampejo de humor que ela sentira um momento antes deu uma reviravoltasombria. Era aquele bufão sentado diante deles quem estaria ao lado de MacColla emcombate.

— Ah, sim — Taaffe concordou, muito sério. — Dias sangrentos estão sobre nós.Nesse momento, temos um exército de mil e duzentos homens montados e sete mil a péreunidos. A maioria acampada em Kanturk, menos de uma légua adiante. O resto esperana colina de Knocknanuss. A melhor posição estratégica é Cork, eu me atreveria a dizer.

Knocknanuss. Haley sentou-se ereta no banco duro, o coração saltando à boca.

— Embora o inimigo marche em nossa direção, ainda somos em maior número e...ora, cara senhora... — Taaffe voltou a atenção para Haley —, não se sente bem? — Virou-se para MacColla. — Peço desculpas, senhor. Como me atrevo a falar de tais assuntos

sombrios diante de uma das mais belas...— O que disse? — Haley o interrompeu.

— Receio que a senhora desmaie...

— Não! — ela exclamou. — Onde? Onde acabou de dizer que estavam ossoldados?

— Ora,na colina de Knocknanuss. Aventure-se até o cume, e será recompensadapela mais bela das paisagens estendendo-se adiante.

As palavras foram apenas um zumbido aos ouvidos de Haley.

Knocknanuss.Sentiu a descarga de adrenalina no corpo. Por que aquele nome despertava algo

nela?

Soubera de algo crítico, um dia, mas o que fora mesmo? Knocknanuss. Algumacoisa acontecera nesse lugar.

Capítulo IV

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— Vamos lá, pode me contar! — Haley exclamou, divertindo-se com o olhar dedesconforto na face de Rollo.

Desde que ouvira o nome Knocknanuss, ela estava aborrecida. Por fim, recordara-

se de que era o local de uma famosa batalha, mas não sabia quem vencera, nem como.Houvera batalhas demais a partir daquele período, e ela não conseguia lembrar-se detodas.

Porém, descobrira que sentar-se e conversar com Will Rollo era uma diversão bem-vinda. E perguntou de novo:

— James Graham está vivo, não está?

— Uma centena de pessoas alegaria outra coisa — Rollo retrucou, indiferente. —Graham foi visto enforcado, afinal.

Ele olhava para a frente, e Haley aproveitou a oportunidade para estudá-lo. Era um

homem grande. Não como MacColla, com seu peso e força, porém mais como um astro decinema, alto, de feições elegantes, cinzeladas.

Embora não exibisse a ferocidade dos habitantes das Terras Altas, Rollo tampoucoparecia um tipo cortês das Terras Baixas. Era um meio-termo. O tipo de homem que elaimaginava que James Graham seria.

— MacColla disse tudo, a não ser que Graham está vívo. Disse que vocês eramamigos. Deu a entender que vocês são amigos.

— Eu nunca ouvi MacColla dizer uma coisa dessas.

Haley poderia jurar que vira um sorriso faiscar por um momento nos olhos de Rollo.

Desviou o olhar para o salão, pensando na questão de James Graham, e percebeu quetodas as suas teorias e especulações não importavam mais.

MacColla era tudo que importava.

Esquadrinhou o salão, procurando por ele. Estava parado na beirada da pista dedança, observando os dançarinos rodopiar ao compasso das gaitas de foles. Poderiamestar longe das praias da Escócia, ela pensou, mas os MacDonald levavam suas gaitaspara onde quer que fossem.

A série terminou, e ela ouviu alguém chamá-lo. Viu-o entornar a cerveja num longogole. Um homem jogou-lhe uma espada larga, e ele sorriu, pegando-a com facilidade.Quando as gaitas de foles soaram mais uma vez, MacColla juntou-se a dois homens napista de dança.

Uma dança do sabre. Haley comoveu-se ao observar aqueles homens fortes esérios deixar as espadas cruzadas no chão para dar início a um dos mais antigos rituais. Esentiu-se cheia de satisfação ao ver MacColla, glorioso e exuberante, com um sorrisolargo, já se movendo ao ritmo da música.

Alguém começou a bater uma caneca sobre a mesa, ao compasso da melodia. Foiseguido por outro e, depois, por punhos e palmas, até que uma batucada ressoava pelosalão.

Haley julgara MacColla o mais magnífico dos homens. Porém, ao vê-lo dançar, ela

percebeu por que canções haviam sido escritas sobre ele. Por que a História recordava-sedele como mais do que uma pessoa comum. Seu carisma, sua paixão e alegriaincendiavam o ambiente. Era mais que um homem, era verdadeiramente um herói épico.

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Os homens saltavam e sapateavam entre as espadas, os braços erguidos, asmantas dançando com seus movimentos.

Ela se sentiu radiante. Que prazer tão simples e puro era observá-lo! A dança aemocionou, amainando o desespero, e ela soube por que os escoceses recorriam àsgaitas de foles, à dança e à cerveja, conforme descobria um lampejo de alegria ocultaenterrada no fundo de sua alma.

Seus olhos desviaram-se por um breve instante para Rollo, e ela imaginou o que elepensaria de tudo aquilo. A expressão que exibia era calma, a costumeira amargurasubstituída por alguma outra emoção mais suave. Contudo, ela sabia que ele nunca seriacapaz de algo como a dança do sabre.

A batida tornou-se mais rápida, e Haley bateu palmas no compasso, os olhosatraídos de volta para os homens. Um deles arrancou o gorro, e as pessoas deram vivas,MacColla gritando mais alto que todos. Ele ria gostosamente, os pés se movimentandodepressa no ritmo, chutando e saltando sobre o aço.

Os olhos dele perscrutaram a multidão e, ao vê-la, ele sorriu.

O sofrimento a golpeou, e Haley fechou as mãos nas saias. Observá-lo, ver tantafelicidade, tanta vida, fazia seu peito se apertar, comprimindo seus pulmões, toldando suavisão.

Temos de ir embora daqui. Deixar a Irlanda. 

— Será que essas pessoas se dão conta de que estamos em guerra?

Haley não percebeu que falara até ouvir a resposta de Rollo.

— Um pouco de festa é bom para um soldado. Muitos deles voltarão da batalhacomo um corpo sem vida num esquife. — Rollo estudou a multidão, de pé e gritando,batendo palmas no ritmo da música. — Distrações assim não são incomuns antes da

batalha.Distrações. A palavra fez Haley pensar naquele ridículo lorde Taaffe. Ele organizara

a noite festiva, alegando que seus homens precisavam de distração. As forçasparlamentaristas estavam em marcha e, mesmo assim, o homem insistia em diversões.

As coisas entre Taaffe e MacColla eram tensas desde que tinham se conhecido.Aquele lorde tinha dinheiro nos cofres, e Haley suspeitava que ele enfiara na cabeçacomprar para si mesmo um pouco de bravura no campo de batalha.

A música chegou ao fim e MacColla afastou-se da pista de dança, dando tapas nascostas dos companheiros dançarinos.

Ele era tudo que Haley via. Outro grupo de homens tomou os lugares na pista, masela mal percebeu quando se arranjaram num círculo, cada um deles segurando a ponta daespada do homem seguinte.

Tentando desesperadamente controlar as emoções, ela murmurou:

— Só vocês, escoceses, encontrariam um jeito de dançar com suas espadas.

Assustou-se com a risada de Rollo. E sentiu-se gratificada também. Virou-se e sesurpreendeu ao perceber como ele era encantador. Haley nunca vira mais que o esboço deum sorriso em sua face. Imaginou o que lhe acontecera às pernas, e como a vida delepoderia ter sido diferente.

— Sim — Rollo concordou. — Realmente, só nós, escoceses.MacColla observou Haley. Ah, como ela era adorável, apesar dos pensamentos

sombrios que continuamente voltavam a enrugar-lhe a testa...

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Resmungou ante a resistência da peça, e o gesto terno tornou-se mais rude. Osdedos que tinham pousado de leve em seu pescoço emaranharam-se em seus cabelos,erguendo-os e revelando sua nuca para a boca ávida de MacColla.

Ele enrijeceu às suas costas, e Haley sentiu o intenso desejo no modo como ele aapertava, comprimindo-se a ela.

Seus mamilos saltaram, tesos. O espartilho os roçava, e ela gemeu, desesperadapara livrar-se dele.

— Tire-o...

MacColla então a virou de frente, tomando sua boca em um beijo selvagem. Elepreenchia todos os seus sentidos. Tinha gosto de cerveja, e cheirava a suor e lã. O hálitoquente encheu seus pulmões, e ela o respirou, ansiosa para tê-lo ainda mais perto, torná-loparte de si, guardá-lo para sempre.

Haley não saberia dizer como as roupas de ambos foram tiradas; apenas que ofizeram num soltar aflito de cordões e cintos, tecido e couro.

Ele estava sobre ela num instante, na cama, depositando beijos famintos sobre seusseios, seu ventre, sua face. Beijou-a na boca mais uma vez, com ardor. E ela contorceu-se,pronta, úmida, ansiando por ele. MacColla penetrou-a, e o mundo desapareceu.

Tudo o que Haley tinha agarrava-se a ele. Recebeu-lhe a língua dentro da boca ecravou as unhas na pele dele, aproximando-o ainda mais de si. Envolveu as costas fortescom as pernas, os músculos internos a se contrair em torno dele, puxando-o para maisfundo, desesperada para ser o abrigo final.

Chegaram ao clímax em meio a gritos e investidas, suor e arquejos, e um grandesoluço finalmente escapou da garganta de Haley.

Ela sabia o que o tempo traria. MacColla sairia de dentro dela. E chegaria a hora em

que ele se levantaria da cama. E, então, o dia em que ele pisaria em seu último campo debatalha.

MacColla passara uma noite no paraíso, e despertou num pesadelo.

Haley recebera um quarto para si em Assolas House e, apesar de MacColla saber que precisava descansar, deitara-se emaranhado com ela nos lençóis, mergulhando esaindo do sono, acordando para verificar se ela ainda estava ali. Para ver-lhe a face umavez mais.

Ela estava desesperada para sair da Irlanda. E, embora ele precisasse acreditar queseria triunfante, as palavras de Haley o fizeram hesitar. O que os dias vindouros trariam?

Seria tão fácil e maravilhoso abrir mão de tudo aquilo para estar com ela. Viver somente para Haley. Encontrar um lar e uma lareira em alguma ilha pequenina a oeste,onde passariam o restante de seus dias devotados apenas um ao outro.

Inclinou a cabeça para estudá-la, esparramada sobre ele. Memorizou os longoscílios pretos sobre a pele cremosa, e o rosado daquelas faces, coradas e bonitas. Oscabelos, ondulados e pretos, caindo de todos os lados sobre seu peito. Os braços esguiose fortes que, mesmo no sono, agarravam-se com força a ele.

E, então, ouviu gritos. De longe, a princípio. Batidas às portas. Pés se arrastando.

Chegara a hora, e uma tristeza profunda como o luto lancinou-o, inesperadamente.

Os ruídos tornaram-se mais próximos, mais altos. Haley acordou, e os olhos deambos se encontraram.

— Não vá — ela suplicou, entrelaçando os dedos aos dele. MacColla sentiu uma

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única lágrima pingar, quente, em seu peito. — Não vá. Você não tem de ir.

Ele não conseguiria suportar os protestos e, assim, beijou-a, tirando-os de sua boca.Haley estava macia, com sabor de sono e sexo. Ficar seria tão fácil... Mas ele não tinhaescolha.

— Eu te amo, leannan. Com meu coração e alma, eu te amo. Mas você sabe que eu

devo fazer isso.A porta do quarto em que estavam foi a próxima. Batida de punhos.

— Sim! — MacColla gritou. Sem tirar os olhos dela, disse: — Já vou.

Ambos se dirigiram à sala de jantar e ouviram as notícias, que eram bem piores doque haviam imaginado.

Haley observou quando a paixão esvaiu-se da face de MacColla. Um homem vivotransformado em granito.

— Dunyveg — Rollo disse. — Os homens de Campbell invadiram o castelo emDunyveg.

— Meu irmão?

— Ranald foi executado assim que tomaram o castelo. — Rollo remexeu-se nacadeira, o único som no absoluto silêncio da sala. — Sinto muito, MacColla.

Haley olhou para MacColla e viu claramente que ele receava fazer a pergunta namente de todos. E assim perguntou por ele:

— E quanto a Colkitto?

MacColla endereçou-lhe um olhar agradecido, e continuou a fita-la enquantosuperava as notícias.

— Sim. — Rollo disse, num tom áspero. — Colkitto também.— Como? — ele perguntou, voltando-se para o amigo.

— Ele deixou o castelo sem pedir por segurança.

— Para negociar a rendição? — MacColla indagou, espantado.

— Não. — Rollo soltou uma risada sem alegria. — Saiu das muralhas do castelopedindo mais uísque.

— É verdade?

— Sim — retrucou Rollo. — Ele deve ter se julgado protegido. Coll era velho,

MacColla. As regras implícitas dos combates nas Terras Altas não se aplicam aoscovenanters. Esses homens lutam sem um código, sem pensar nos costumes antigos.

— É difícil acreditar que o grande Coll Ciotaeh esteja morto! — Taaffe exclamou. —Uma captura assim não se faz sem manchar a honra dos covenanters.

Embora o olhar de MacColla fosse duro, Haley achou ter ouvido uma verdadeiratristeza na voz do homem. Imaginou que um tipo antiquado como lorde Taaffe deveriaestar horrorizado por tamanho menosprezo aos princípios.

— Uísque — MacColla resmungou, meneando a cabeça. — O velho tolo ficousedento por mais uísque.

Seu pai estava morto. Dois de seus irmãos. Mesmo assim, Campbell lhe escapava,e os covenanters atravessavam as terras dos MacDonald na Escócia. Simpatizantes doParlamento arrasavam a Irlanda. Marchavam sobre eles naquele instante.

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marfim e uma bonita caixa. Mas a munição está escassa. E apenas porque os homens serecusam a carregar uma trava de mecha eu posso deixar isso com você. — Pegou a arma,e o cano escorregou de suas mãos. Inclinando o mosquete, ele avaliou o comprimento. — Eles ficam preocupados em se queimar.

— Oh, que ótimo — Haley resmungou. MacColla soltou uma risada sem graça.

— Quando eu voltar, comprarei a mais bela pistola de toda a Irlanda para você.— Quando você voltar, vou socá-lo na cabeça e levá-lo de volta para a Escócia.

— Puxa, leannan. — Com um suspiro, ele largou o mosquete e estendeu a mãopara ajudar Haley a levantar. — Você sabe que eu preciso fazer isso.

— Deixe-me ir com você.

Seus olhos estavam sem vida quando ele respondeu:

— Eu já disse que não. Você ficará aqui. Onde é seguro.

— Mas... isso não parece certo. Combata em qualquer outro lugar. Se insistir emficar na Irlanda, pelo menos afaste a batalha da colina de Knocknanuss. — Ela nãoconseguia recordar exatamente o que acontecera lá, mas a cada menção do local sentiacalafrios.

— Não — ele murmurou. — Nosso inimigo está em movimento. Os homens deInchiquin marcham sobre nós. Seja o que for que eu sinta por esse lorde Taaffe, ele es-colheu um local decente do qual atacar. — Tocou-a no rosto. — Isto é um adeus, leannan.Não tem um beijo para mim?

Não. Era cedo demais. Ela não poderia dizer adeus. Beijá-lo seria separar-se dele.Poderia um beijo significar um adeus para sempre?

Apesar de MacColla chegar mais perto, o toque suave das mãos dele em seu rosto

era o único contato entre eles. Como se a separação já tivesse começado.Ele desceu a boca sobre a sua, e Haley sentiu as lágrimas escorrer pelas faces.

MacColla beijou-a lentamente, com intensidade e cuidado. Não apertou seu corpoao dele e, embora ela quisesse puxá-lo para mais perto, ficou grata por aquele espaçoentre os dois. Superar essa distância agora seria romper o último fio frágil que a mantinhainteira.

Haley estava se preparando, aprontando-se para o que sabia que precisaria fazer.

Ele terminou o beijo, e após sussurrar que a amava, afastou-se dela para enfrentar o que tivesse de ser.

Sozinho.

A moça estivera errada. Que Deus a abençoasse, mas Haley estiveraredondamente enganada. A risada ressoou em seu peito, rouca pela respiração ofegante.A batalha fora violenta. E ele triunfara.

O inimigo recuava.

MacColla liderava o lado esquerdo, e Taaffe o direito. Apesar de lutarem na mesmacolina, os dois flancos não estavam dentro do campo de visão um do outro.

Aqueles dos seus homens que portavam mosquetes haviam disparado e, emseguida, jogado as armas de fogo para cair sobre o inimigo com punhais e espadas.

Ele deu um sorriso satisfeito. Haley lhe dissera que isso fora chamado de "Cargadas Terras Altas", e que o próprio MacColla inventara a estratégia. Divertira-se com ainformação, pois todos sabiam que os irlandeses tinham concebido o esquema tempos

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atrás. Disparavam as flechas, jogavam os arcos, e depois investiam num selvagem ataque,como uma tropa de homens loucos.

Outra seqüência de gritos irrompeu em torno dele, quando os homens clamaram:Por Deus e São Patrício! MacColla virou-se e viu uma nova onda de soldados da infantariaparlamentarista tentando romper o flanco esquerdo.

Atacou-os com a espada larga, mantendo o escudo às costas para um mínimo deproteção por trás.

Não era a melhor arma para um enfrentamento cara a cara, mas ele a preferia. Dofundo de sua mente, surgiu uma lembrança breve, de Haley falando a respeito de sualenda, e de como ele usara aquela mesma espada para decapitar tantos homens de umasó vez.

Poderia usar um truque assim, se ao menos eles ficassem parados esperando ogolpe. Riu ao fazer um giro sibilante com a espada, e sentiu-se gratificado quando umpunhado de homens fugiu diante da vista.

Nesse momento, uma comoção chegou aos seus ouvidos, e sentiu um corpo atrás

de si. Após desferir uma rápida cutilada no pescoço do adversário à frente, rodopiou paraolhar a confusão na retaguarda... bem a tempo de ver um jovem girar o escudo e bloquear a investida do inimigo às suas costas. Como o rapaz parecia ter a situação sob controle,MacColla decidiu deixá-lo terminar a tarefa, observando quando ele enterrou o punhal noabdômen do inimigo, torcendo o braço com força até o homem cair de joelhos.

— Obrigado — disse MacColla, olhando a manta deformada na cabeça docompanheiro.

Outro bando de soldados correu na direção deles, e os dois se posicionaram decostas um para o outro, a fim de enfrentar o inimigo.

— O que tem na cabeça, rapaz? — MacColla girou a espada numa posturaagressiva.

— Não tenho elmo — ele retrucou, ao desviar uma lâmina com seu escudo edesferir rápidas cutiladas com o punhal. — Sou um latoeiro.

— Latoeiro? — MacColla ofegou, liquidando o homem diante de si. — O que issotem a ver com alguma coisa? — Virou-se para observar o rapaz despachar o último dosparlamentaristas.

Com um sorriso largo, o jovem tirou a coisa da cabeça, deixando à mostra umafrigideira bem enrolada no tecido de lã.

— Imaginei um elmo, e o fabriquei com uma velha frigideira que tinha.MacColla riu, dando-lhe um tapa no ombro.

— Qual é o seu nome, latoeiro?

— Robertson.

— E quantos homens você matou hoje, Robertson?

— Dezenove.

— Por Maria! — MacColla meneou a cabeça, admirado. — Eu mesmo só matei vintee um. É uma pena que nem todos os meus soldados sejam comerciantes. — Ainda rindo,ele inspecionou a colina. O trabalho estava praticamente terminado. Muitos de seusinimigos jaziam mortos, e outros tinham recuado e fugido. — Podemos, latoeiro? —perguntou, apontando para o sopé da colina.

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— Oh, sim, senhor. — O rapaz virou-se, agitando o punhal no ar, descendo a colinae berrando: — Por Deus e São Patrício!

MacColla desceu atrás dele, com um largo sorriso na face, para caçar o inimigo atéquase uma légua além de Knocknanuss.

* * *

— Eu não viajei por todo esse caminho, exposto aos perigos, enfrentando esta terrade papistas e selvagens, só para vê-lo fracassar. — Campbell cravou um olhar furioso emPurdon.

— Não, senhor — o major retrucou depressa. — O problema em Skipness, com omais velho dos MacDonald, foi...

— Não estou interessado em suas desculpas! — ele esbravejou. — Você faria bemem se lembrar de quem é o dinheiro que enche seus cofres. Muito bom que tenha matadoo irmão de MacColla. Agora, porém, você matará o próprio MacColla. — Estudando o valeà distância, ele continuou, com um grunhido: — O bastardo tem nos escapado. O malditoestá encharcado de sangue dos nossos soldados. As colinas verdes, Purdon. — Fez umgesto abarcando as terras adiante. — Olhe para aquelas colinas verdes cobertas demontículos lamacentos e ensangüentados.

Campbell esfregou a pistola ao lado do corpo. Hora de morrer, MacColla. Gostariade matar o inimigo com as próprias mãos. Porém, não ousava meter-se em tamanhaconfusão. Embora Taaffe fosse um general desastroso, tinha sete mil soldados deinfantaria sob seu comando.

— Você é minha espada agora, major. — Virou-se de novo para encará-lo. — E nãofalhará Outra vez. — Sem deixar o oficial responder, declarou: — MacColla vagueia pelo

campo de batalha, arrasando nossa infantaria parlamentarista. A perda de nossa infantariaera algo necessário, como cortar um membro gangrenado para salvar o corpo. — Protegeuos olhos e fitou a distância, como se pudesse avistar o inimigo de onde estava. — Nossacavalaria surpreenderá Taaffe, enquanto a atenção de MacColla estiver em outra parte.

— Nossa cavalaria está postada na encosta oposta ao inimigo — Purdon disse,excitado. — A infantaria irlandesa de Taaffe está parada. São como crianças com aquelaslongas saias amarradas entre as pernas. Quando virem nossos cavalos subir ao cume dacolina de Knocknanuss...

—: Sim! — Campbell riu. — Gostaria de poder ver a cara de Taaffe quando umamuralha de cavalos desabar sobre ele. Ele não verá a lâmina mortal até que seja

comprimida à sua garganta.Ele abriu um sorriso largo. Aquele era o momento pelo qual esperava. Estava

prestes a vencer o último dos MacDonald. Matara dois irmãos e o pai. MacColla seria opróximo. Esfregou a face, perdido em pensamentos.

— E mais uma coisa, Purdon.

— Senhor?

— Certifique-se de matar a mulher dele. — Meneou a cabeça. — É uma pena queeu não tenha a chance de matá-la diante dos olhos de MacColla.

— Será um prazer, lorde Campbell — Purdon retrucou, sorrindo.

Um clarim distante soou.

— Está na hora. — Campbell esfregou a coxa. Sua vontade de ver MacColla morrer 

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era tão grande que ele quase quis ser um lutador. — Não se meta na batalha. Você temoutra caça.

Purdon recolheu as rédeas em uma das mãos, e seu cavalo dançou de lado,ansioso.

— As forças de MacColla estarão desordenadas. É provável que ele seja separado

de seus homens, ficando atrás deles. Esperando que façam o que se imagina, ele ficarásozinho, ou quase, entre eles e a colina de Knocknanuss. Pensará que a batalha estáganha. — Campbell lançou um olhar final de comando para o major. — Encontre-o,Purdon. Encontre MacColla e mostre a ele o contrário.

O major anuiu e afastou-se depressa, descendo a colina na direção de MacColla.

— Como assim, ele não está lá? — MacColla passou a mão nos cabelos. Olhoupelo vale, esquadrinhando o bosque cerrado e a encosta suave de uma colina adiante,como se pudesse enxergar os soldados desaparecidos de onde se postava.

— Sim, senhor. — O jovem mensageiro remexeu-se diante dele, apertando o quepenas mãos. — Temos batedores procurando saber do paradeiro de Taaffe.

— Volte você mesmo — MacColla resmungou. Não compreendia como seucompanheiro podia ter desaparecido. A falha tinha de estar com o mensageiro. — Essanão é a mais desafiadora das tarefas, rapaz. Taaffe estará junto a seus homens.

— Mas... — O jovem baixou os olhos, incapaz de sustentar o olhar intenso deMacColla.

— Fale. E olhe para mim enquanto isso.

— Sim, senhor. — A voz do mensageiro tremeu. — Taaffe não está com seushomens. E... seus homens não estão lá também. A cavalaria parlamentarista cobre acolina. Os homens parecem... bem, eles bateram em retirada, senhor.

— Deus do céu! — MacColla exclamou rispidamente.

— Sou o único que sabe como lutar? — Examinou o rapaz à sua frente. — Volte eencontre Taaffe. Ele precisa saber que derrotamos a infantaria parlamentarista. O que eleestá pensando ao se retirar?

O mensageiro continuou imóvel, a observá-lo.

— Agora! — MacColla berrou, e o rapaz saiu correndo.

Enxugou o sangue das mãos e dos dedos. O mensageiro falara de cavalos. O

exército parlamentarista não devia ter atacado com a plena carga da cavalaria. Só podiaimaginar que Taaffe vira um bando deles e entrara em pânico.

MacColla resmungou. Não acreditava que o rico lorde tivesse desperdiçado umavitória retumbante de um modo tão covarde.

Sentiu um movimento e virou-se a tempo de ver um grupo de cavalos irromper deum trecho de bosque não muito longe dali.

— Maldição! — Virou-se para enfrentá-los e distinguiu quatro soldadosparlamentaristas galopando direto até ele.

Quatro para um.

Seus olhos dardejaram à direita e à esquerda. Ele estava sozinho e em campoaberto. Não havia nada a fazer.

— Maldição do inferno!

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coisa a usar contra um mosquete àquela curta distância. Sua mão fechou-se e abriu-se,enquanto ele pensava na pistola de O'Grady, dentro de seu alcance.

Purdon falou de novo.

— Eu vi a face desse MacDonald, seus olhos, enquanto observava a vida de seuirmão esvair-se em sangue.

Um arrepio mortal e gelado correu por MacColla.O homem que matara Gillêspie. Quem era aquele bastardo? Começou a se virar,

ansioso para a luta, mas a pistola de O'Grady estava de volta, o cano comprimido à suascostelas.

Relanceou os olhos para os dedos de juntas brancas de seu captor. O soldadoestava nervoso, e os nervos matavam.

— Sim — afirmou Purdon. — Eu matei seu irmão. Qual era o nome do cachorro?Gillespie? Ele, pelo menos, teve a coragem de me encarar.

Maldita pistola! MacColla contraiu os punhos, pronto para atacar.

— Calma — disse O'Grady, pressionando a arma com mais força. — Não atirareinum homem pelas costas. Ofereci rendição, e é o que você terá.

— Não se preocupe, O'Grady — falou Purdon, às costas dos dois. — Eu lhe dareicrédito pela captura. Mas a morte dele será minha.

O tiro ecoou pelo vale e atingiu as costas de MacColla, que caiu para a frente, de joelhos.

Fora baleado.

Tentou se levantar, mas não conseguiu se mexer. Olhou para baixo, para oabdômen, mas não viu nada. Estendendo a mão, correu os dedos lentamente pela cintura,de lado. Pelas costas.

E, então, seus dedos encontraram. Um buraco em sua carne.

Baleado nas costas.

A percepção surgiu, e a agonia o dominou, irradiando-se por suas veias, o sangue alatejar numa pulsação acelerada a partir do enorme rasgo molhado em suas costas. Suavisão vacilou, pretejando, e depois clareou.

Baleado. O horror invadiu-o. Morto.

Trouxe a mão de trás, que voltou pingando, escarlate com seu próprio sangue. Ele

iria morrer. O pavor deixou sua carne fria, a pele já como a de um morto.Leannan. Ela sabia. Mas, mesmo assim, ele se deixara matar. Minha leannan.

Sozinha. Ele se deixara ser morto. E uma mulher por conta própria? Ele a matara também,na barganha.

Não podia morrer. Tinha de protegê-la. Mais uma vez, lutou para se mover, e nãoconseguiu.

Sentiu a comoção, lenta e langorosa ao seu redor, como um zumbido distante deabelhas. Os dois homens andavam atrás dele, em torno dele, berrando. Os sons eramocos aos seus ouvidos, como se por trás de um painel de vidro.

Algo atraiu seu olhar. MacColla ergueu os olhos e apertou-os contra o sol. Leannan.Ouviu um ruído agudo e débil, de angústia, e percebeu que escapara de sua própriagarganta. Oh, Deus, não! 

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Haley estava ajoelhada no cume da elevação. Tinha aquele mosquete tremendopreso às costas.

Não. Seus pulmões se comprimiram, sua respiração tornou-se superficial, a dor como um raio estourando através de suas veias. Vá embora, leannan. Volte.

Maldito corpo! Precisava levantar. Protegê-la. Esforçou-se, mas não pôde se mexer.

Ajoelhou nas pernas sem vida.Ela estava no cume da colina, gritando-lhe alguma coisa.

Vá!  Ela estava em perigo, e ele não podia ajudá-la. O horror da constatação oassombrou. Vá, agora.

Tentou inspirar mais profundamente e flexionou os músculos das coxas, querendoque se movessem. A pontada de dor enviou farpas de luz branca a se estilhaçar por suavisão. A agonia era quase insuportável agora.

Iriam atirar nela, e Haley experimentaria aquela mesma dor. Não.

Era um pesadelo do qual ele não conseguia acordar. Estava morrendo, e não

conseguiria salvá-la.Precisava avisá-la, e tentou acenar. Mas se sentiu enterrado em areia movediça,

enregelado, afundando devagar.

Lembrou-se do tempo que tinham passado na praia. O luar prateado incidia nosseios de Haley, ao longo das coxas, na película de suor que lhe umedecia a testa.

MacColla sentiu a plenitude de sua vida naquela única visão dela. Naquelevislumbre de Haley, de sua alegria, de seu fogo. Nunca mais a veria. Nunca mais a tocariaao luar. Até mesmo a lembrança desapareceria para sempre.

As nuvens cobriram o sol, lançando-a nas sombras. E MacColla a viu com mais

clareza. O belo rosto. Gritando sem palavras. Vendo-o morrer.A garganta fechou-se com tamanha angústia.

Oh, Deus, minha leannan! 

MacColla tossiu. A agonia requeimava como fogo em seu ventre. Incandescente,cegante, um sofrimento inexprimível.

O mundo tornou-se cinzento. Estrelas explodiram diante dele.

Ele lutou para manter os olhos nela. Sua última visão, a dela.

Oh, leannan, meu amor. O horror desvaneceu-se em pesar. Um pesar imenso. Suas

veias doíam, empapadas de pesar.Sinto muito.

E MacColla recuou para as trevas, o mundo apartado dele para sempre.

Mesmo de uma grande distância, Haley era capaz de ver, ouvir e sentir o cheiro dabatalha de MacColla. Os mosquetes soltavam baforadas espessas de fumaça. Gritosecoavam, longínquos, assim como uma cacofonia de explosões e o embate distante deaço contra aço.

Até o mais curvado dos pôneis fora convocado para a luta, e ela tivera de se

esgueirar, seguindo MacColla às escondidas, a pé. Correra na direção daquela nuvemcinzenta, na direção dele. Embora não conseguisse enxergar mais a fumaça, sabia ondeestava, podia seguir seu cheiro, ver seu palio cinzento pairando sobre a colina. Sabia que o

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encontraria, que encontraria MacColla em cima da próxima encosta.

Porém, no momento, estava sozinha. O vale estendia-se vazio diante dela. Todosestavam empenhados na luta.

Nas batalhas de antanho, os aldeões observavam a carnificina à distância, e Haleyagora via que isso era de fato possível. A batalha era contida, absorvendo a plena atenção

até do último soldado.Onde está você?

Subiu ao cume da encosta suave e estacou. Tinha o longo mosquete pendurado àscostas, e a arma cutucou suas omoplatas quando ela caiu de joelhos.

A colina estava coalhada de corpos de mortos e de homens ensangüentados, ocheiro da morte pesado no ar. Seu estômago revirou-se, e ela levou a mão à boca.Dobrou-se ao meio e vomitou.

Droga!  Enxugou a boca, e levantou-se outra vez, tão depressa quanto foi capaz.Não havia tempo...

Esquadrinhou a colina, procurando um homem caído, alto e envergando um trajeoliva-escuro. A vista nauseou-a, e ela respirou fundo, tentando controlar o enjôo. Procurou,mas não viu MacColla entre os mortos. O alívio a fez estremecer.

Muitos dos corpos usavam casacos castanhos ou de um laranja ostensivo, ou tirasde pano marrom-amarelado. Parlamentaristas.

Haley cuspiu e enxugou a boca. Olhando à distância, podia ver a trilha de destruiçãoaberta por MacColla e seus homens.

Ele venceu. Seus confederados irlandeses tinham derrotado o exércitoparlamentarista.

Então, por que ela ainda se sentia tão inquieta?Descendo depressa a colina, seguiu a trilha dele. Correndo através da campina e

depois subindo a próxima encosta, Haley ignorou os pulmões que queimavam e a pontadaaguda como uma navalha ao lado. De repente, tinha uma certeza. Precisava alcançar MacColla imediatamente.

Ao chegar ao topo, avistou-o no mesmo instante.

— Não! — berrou, correndo pela borda, tentando compreender o que via.

Ele fora capturado. Um homem o segurava, outro estava atrás.

— MacColla! — O homem às costas dele estava erguendo o mosquete. O solreluziu sobre o metal. A cena inteira era tão silenciosa, tão distante... — MacColla, cuidado!

Ela precisava fazê-lo escutar. Olhe, vire-se, cuidado!  Haley ia tropeçando colinaabaixo até ele quando ouviu o disparo do tiro e imobilizou-se, horrorizada.

MacColla caiu de joelhos, e Haley sentiu que seu coração era arrancado do peito.Desabou no chão no mesmo instante, sua postura imitando a dele.

Precisava levantar-se e ir até onde ele estava, mas sentia-se paralisada. Nessemomento, ele ergueu os olhos, e um soluço rasgou sua garganta.

Ele a vira? Haley gritou-lhe o nome. Será que ele a vira? Oh, Deus, MacColla! 

Teve esperança de que ele a visse. Mas esperava também que o últimopensamento não fosse que ela falhara com ele. Ou pior, que ele falhara com ela.

Lutou para ficar de pé. Tinha de alcançá-lo.

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MacColla encolheu-se, seus lábios se moveram, e Haley viu a poça escarlateespalhar-se por seus joelhos.

— MacColla! — ela gritou.

O homem às costas dele ergueu os olhos até onde ela estava, mas Haley não seimportou. Só conseguia pensar em MacColla.

Seus olhos cravaram-se nos dela. Ele vacilou. Caiu sobre o ventre e ficou imóvel.Deus, não! 

Haley conteve o fôlego, e esperou, sentindo o lento pulsar de cada batida docoração. Esperou, mas já sabia.

MacColla estava morto.

— MacColla! — ela gritou outra vez, tentando trazê-lo de volta.

Soluços rasgaram seu peito. Oh, meu Deus!  Tremendo e gemendo, seu corporetorceu-se numa bola. Levou as mãos ao peito, em busca de ar, mas os soluços arranca-vam a respiração de seus pulmões.

Oh, Deus, MacColla...

Haley ficou largada no chão, os soluços lentamente aquietando-se num chorosentido. Ela perdera seu único e verdadeiro amor. Estava sozinha. Não pudera salvá-lo. Eele se fora de perto dela, para sempre.

Não. O pânico não lhe faria nenhum bem. Tinha de lutar. Não estaria acabado atéque ela mesma estivesse; fria e morta.

— Minhas condolências, amor — um homem gritou-lhe.

Oh, droga! 

Ao olhar para baixo na colina, ela o avistou. O assassino de MacColla. O homemque atirara em seu amado pelas costas subia a encosta atrás dela.

Olhou para o vale. O outro homem ajoelhara-se sobre o corpo de MacColla, semprestar atenção ao que acontecia lá em cima.

Ele acompanhou seu olhar e riu.

— Baleado nas costas como um covarde.

— Vá para o inferno! — Haley esbravejou, enxugando as lágrimas. A raiva corriacomo ácido em suas veias, o veneno transmutando seu pesar em vingança. Ficou em pépara retirar o mosquete das costas. — Droga — resmungou, esforçando-se para tirar a

pederneira e o aço de dentro da bolsa na cintura.Com esforço, segurou a mecha e o pedaço de aço na mão, e bateu a pederneira,

mas as fagulhas eram muito fracas para acender o pedaço de corda.

Rindo dela, o homem começou a subir a colina num trote.

— Maldição! — A mãos de Haley tremiam. Lembranças errantes surgiram. Viu oisqueiro de seu irmão, os dedos nervosos de Gerry abrindo e fechando a tampa prateadado velho Zippo. A imagem era muito dolorosa, e ela a expulsou da mente. —- Maldição! —gritou, a histeria aguçando sua voz.

Bateu com mais força, e as faíscas voaram. Caíram em sua mão, dançaram

brilhantes sobre sua pele, queimando-a. E depois se apagaram.O homem se aproximava. Ela abriu os sentidos, ouviu as botas raspar o mato e as

pedras, sentiu-lhe a presença a vinte passos de distância. Continuou a lutar com a peder-

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neira, mas estava quase sem tempo.

Lançou um rápido olhar para adiante. Dez passos de distância. Perto do topo,usando casualmente o mosquete como um bastão de caminhada. O mesmo mosquetecom que matara MacColla.

A raiva a invadiu.

Ele chegava ao cume. Seis passos.Haley jogou a pederneira e a mecha fora. O soldado correu em sua direção, e ela

agarrou com força a base da arma, comprida e pesada em suas mãos.

Se ele achava que seria uma presa fácil, estava enganado.

Ela se pôs de pé, girando o mosquete como uma pá de moinho diante do corpo. Aarma chocou-se ao braço do homem, arrancando-lhe o mosquete da mão e lançando-ocolina abaixo, para longe do alcance.

Ela ergueu o mosquete como um taco à frente, os braços tremendo com o peso.

— Eu ia demonstrar clemência — ele disse, esfregando o braço. Havia fúria emseus olhos. — Mas agora vai ter de implorar por isso.

Ela girou a arma outra vez, mas o mosquete era muito desajeitado, e o homemestava perto demais. Ele conseguiu agarrar o cano e sorriu.

Haley lutou para arrancá-lo das mãos dele, deixando que o pânico vencesse. O queestou fazendo? O homem ganharia qualquer briga contra ela. Sabia disso. Precisavarecordar-se do que o pai lhe ensinara.

Uma mulher tinha duas opções. Lutar sujo ou fugir.

Ela soltou a arma e correu.

Ouviu-o jogar o mosquete no chão e sair atrás dela. Erguendo as saias, Haleycorreu mais depressa, mas o esforço era grande no terreno irregular.

A respiração ofegante do homem agora soava mais alta às suas costas. Ele aestava alcançando.

Lute sujo.

Haley parou de repente e usou o próprio impulso ao girar, erguendo o punho. Mirouo nariz do homem, mas ele se desviou no último instante, e ela simplesmente roçou-lhe atesta.

Ele agarrou seu pulso com uma das mãos e levou a outra ao cinto. Faca. Haley viu-

a pendurada no cinto, enfiada numa bainha de bronze trabalhada.Não poderia deixá-lo pegar a faca.

 Aja ao contrário da expectativa, ela ouviu seu pai dizer. Os mais básicos princípiosde luta de rua eram contra a lógica.

Chegue mais perto.

Haley adiantou-se, entrelaçando as pernas às do homem. Ele continuava a segurá-la com uma pressão mortal pelo punho, e ela usou a mão livre para atacar-lhe os olhos.

Você matou MacColla.

Apesar de ele se encolher, suas unhas encontraram a carne, e ela cravou-as comforça, sentindo a pálpebra inferior e a face quente e úmida.

— Deus do céu — o homem esgoelou, e o choque em sua voz deu mais força a

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— Venha, Haley — ele disse. — Depressa. Eles se aproximam.

Sua mente voltou a funcionar. Usando as duas mãos e os pés, Haley engatinhoucolina acima, onde Rollo a ergueu e colocou-a atrás da sela, sentando-a de lado enquantogalopavam para longe.

Ela virou-se para ver seu amado pela última vez. Seu MacColla. Morto no campo

abaixo.— Sinto muito que não seja um verdadeiro abrigo. — RolIo inclinou-se para o fogoque acendera na boca da caverna.

Tinham cavalgado muito, chegando a uma parte rochosa do litoral irlandês. Haleynão sabia onde estavam, e sentia-se entorpecida demais para se importar.

— Mas não há ninguém em que eu confie — ele emendou, esfregando os músculostrêmulos das pernas. — Vamos voltar à Escócia...

— Para onde? — ela o interrompeu, o desânimo a impregnar sua voz. — Não hálugar nenhum para ir.

Ela queria ir para casa. Seu lar. Poderia encontrar um caminho de volta para Bostondos dias modernos de alguma forma? O pensamento deu-lhe uma sensação de vazio.

MacColla se tornara seu lar.

— Sei de alguém que poderia ajudar.

— Não, Rollo! — ela exclamou. — Você não sabe. Você não tem idéia.

Ela estava sozinha no passado. E Rollo achava que ele não tinha ninguém em quemconfiar.

Fitou-o. Rollo fora um verdadeiro amigo para MacColla. Saíra a cavalo paraencontrá-la e a salvara.

Ela não podia desistir de MacColla. Tinha de haver algum jeito. Mas, primeiro,precisava confiar em alguém, e a opção mais provável, a única opção sentava-se à suafrente.

— Veja, Rollo... Isso vai parecer maluquice, mas...

Mas o quê? Mas... entenda, sou do futuro! 

— Deixe para lá — ela disse, desanimada.

— Não é maluquice, moça. — Olhou-a por sobre as chamas. — Há outra.

— Hein?

— Você tinha razão, Haley. James Graham está vivo. — Rollo dispensou-lhe um deseus raros sorrisos. — E é casado como uma igual a você.

James Graham era tudo que Haley sempre imaginara que fosse. Belo,cavalheiresco, forte, cortês, nobre, erudito.

Era também irritante como o inferno.

Ela queria agir. Agora. Mas o homem insistia em gentilezas. Ela sabia que precisavade comida e descanso, mas enfiara na cabeça que poderia salvar MacColla. E queria

elaborar um plano imediatamente.— De verdade, moça — ele falou, puxando uma cadeira à mesa para ela. — Você

precisa comer. Oferecemos nossa ajuda, e com alegria, mas comida é a primeira e melhor 

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ajuda para você.

Haley o encarou. Ele usava um kilt  e tinha os pés descalços. O sol nascera fortenaquele dia, e todas as portas e janelas da cabana estavam abertas para a brisa, quebrincava com os cabelos de James, até os ombros.

Ver um homem assim, tranqüilamente em casa, a espicaçou. Ela poderia ter  seu 

homem ali. Poderia estar fazendo o desjejum comMacColla.

Tinham chegado bem depois do escurecer, após um dia de viagem por mar.Estavam numa pequena ilha quase desabitada, e o lugar era com um paraíso, com a praiaarenosa, as colinas verdejantes e uma estranha e dramática escarpa rochosa.

E isso acalentou lembranças de seu tempo com MacColla no promontório deKintyre, algo doloroso demais.

— Não erguerei um dedo por você até que faça uma refeição decente — Jamesdisse, com firmeza.

— MacColla haveria de querer isso,

Fora a esposa dele, Magda, quem falara. Haley fitou-a, na defensiva. Porém, asfeições eram tão francas e sinceras que acabou cedendo.

— Está bem — resmungou, sentando-se e deixando que James lhe empurrasse acadeira. — Só um pouquinho.

Forçando-se a mastigar um bolo de aveia, Haley lançou outro olhar para a esposade James.

Rollo dissera que Magda também viera do futuro, e Haley a reconhecera deimediato como uma contemporânea. Não poderia apontar a razão ou a maneira. Havia algoem suas palavras, no modo como se conduzia, que implicava um tempo e um lugar diferentes. Haley imaginou se ela também, se destacava tanto assim.

Sentiu-se instantaneamente constrangida na frente da mulher. Ela era alta e bonita,com longos cabelos cor de cobre, e uma elegância natural, apesar do imenso ventre degrávida. E, de todos os lugares, era de Manhattam, ora essa!

Tomou um gole de água para empurrar o nó que apertava sua garganta. Só elapoderia voltar no tempo e aterrissar ao lado de uma maldita fã dos Yankees.

Magda pegou-a observando-a. Haley sentiu as faces avermelhar e disse a primeiracoisa que lhe veio à cabeça:

— Eu tenho de salvá-lo.

— Haley! — Rollo exclamou, sério, da outro lado da mesa. — É muito tarde paraMacColla. Mas não é muito tarde para ajudá-la a encontrar...

— Não — ela o interrompeu, com mais rispidez do que pretendia. — Não possoaceitar que ele esteja morto.

James e a esposa trocaram um olhar.

— Talvez haja um meio — Magda disse, solenemente.

— Puxa, não! — James olhou para a esposa, a preocupação estampada em seurosto. — Isso poderia matá-la.

— Que meio? — Haley empurrou o prato. — Farei qualquer coisa. — EncarouJames. — Você, mais do que ninguém, deve compreender a necessidade de arriscar suavida por algo, ou alguém, que ame.

— Ele compreende. — Magda estendeu a mão para pousá-la sobre a do marido,

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silenciando-o. — Assim como eu.

Haley fitou-a por um momento e sentiu-se uma víbora. Claro que aquela mulher compreenderia mais do que ninguém o que ela passara. Afinal, desistira de tudo pelohomem que amava.

Fora diferente para Haley, que falava gaélico e se envolvera por anos na História

daquele período. Mas e Magda? Ela, com os pais elegantes e o emprego charmoso emNova York, não conheceria uma pederneira nem que assistisse ao National Geographic.

— Venha comigo — Magda disse, com doçura. Haley seguiu-a até o único outroaposento na cabana. Era pequeno e banhado de sol, com uma mesa, dois baús, umacama humilde e um berço de madeira a um canto. Magda apontou para a cama, fazendoum gesto para que Haley se sentasse. O colchão era fino, porém mais confortável do queparecia, cheio do que parecia uma mistura de penas e palha. Após remexer por ummomento num dos baús, Magda sentou-se a seu lado.

— Isto... — Ela desenrolou amorosamente um pacotinho. — Isto é uma foto de meuirmão. — Ela a manteve por um instante nas mãos, contornando com ternura a imagem

com os dedos.— Você deixou seu irmão? — Um Lampejo de expectativa, mesclado a simpatia,

soou na voz de Haley. Será que aquela mulher também sabia o que era deixar os irmãos?

— Não. — Magda enrugou os lábios, esforçando-se para se recobrar. — Tive umirmão, mas ele morreu. Um ano antes de eu encontrar James.

— Oh, eu... — Haley pensou nos próprios irmãos, que agora a tinham perdido. —Sinto muito. — Dirigia as palavras de pesar a Magda, tanto quanto à sua própria família.

— Pegue. — Magda estendeu-lhe o retrato.

— O quê? Por quê? Eu não poderia.

— Sim. — Ela o colocou nas mãos de Haley. — Você pode. É... especial. Umapintura foi o que me transportou de volta no tempo. E me disseram que este retrato tem osmesmos poderes.

— Mas... como?

— Isso eu não sei. Mas eu pensei... Bem, talvez você pudesse voltar no tempo outravez. Para antes da morte de MacColla.

Haley sentou-se ereta, os olhos cravados em Magda.

— Claro, você poderia usar também para voltar para sua casa, para seu tempo.

As duas se encararam até Magda romper o silêncio.— Boston, não é?

— Não me diga que tenho sotaque. — Haley tentou esboçar um sorriso.

— Não. — Meneando a cabeça, ela a fitou, com uma expressão de simpatia ecompreensão. — Você mencionou Harvard.

— Oh, isso... — Seu mundo parecia tão distante agora, o sucesso acadêmico erauma lembrança longínqua e vazia. Olhou para as mãos no colo. — Sim... sou uma garotado sul de Boston. Família grande, católica irlandesa. Pode imaginar...— Sua voz sumiu.

— Tem saudades deles.

Haley sentiu lágrimas nos olhos e franziu o rosto num esforço para estancá-las.Saudades? Conseguiu sacudir a cabeça numa afirmativa. Mais que qualquer coisa. Maisque nunca.

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Queria encolher-se debaixo da colcha de crochê de sua mãe, com a família toda aoredor. Haveria provocações bem-humoradas, discussões acaloradas, e muita, muita risada.Talvez urna garrafa de vinho aberta, dividida entre as mulheres. Sua mãe faria galinhaassada, ou talvez lasanha. Algo grande, para alimentar o bando todo, enchendo a casa decalor e de conforto.

Saudades deles? Sim.

O bastante para voltar as costas a MacColla para sempre?

Ela estremeceu e respirou fundo.

— Mas, e quanto a você? Deve sentir falta de sua própria família.

— Claro. — Magda tinha um olhar saudoso. — Mas meu lugar é aqui. Com James.

— Não detesta pensar... — Haley levou as mãos aos olhos. Sua garganta doía como esforço de reprimir as lágrimas. — Pensar que você apenas... desapareceu?

— Havia uma pintura — disse Magda. — O retrato de James. Aquele que metransportou de volta. Eu deixei um bilhete nele indicando que pertencia ao Metropolitan, o

museu onde eu trabalhava. Também deixei um bilhete para meus pais.— Como pode saber se eles o acharam?

— Quem sabe? Minha mãe era do conselho de diretores do Metropolitan... —Magda deu de ombros. — Droga, por tudo o que eu sei, eles poderiam ter encontrado o bi-lhete quando eu ainda era uma criança. — Sorriu. — Mas a pintura parece só funcionar umdia. Tenho de imaginar que o bilhete foi com ela. Entregue com o quadro. — Suspirou. —Eu nunca saberei. Posso apenas esperar.

Tomando a mão de Haley, ela prosseguiu: — O que eu sei mesmo, porém, o queaprendi nestes últimos meses é que, apesar das guerras e do derramamento de sangue,as pessoas são boas. Confio que alguém tenha entregado a minha mensagem. Tendotestemunhado sacrifício, devoção e lealdade, honestamente, Haley, creio que meus paistenham recebido a minha carta. E eles desejariam a minha felicidade.

— Sim... — Haley esfregou o rosto e enfiou os cabelos atrás da orelha. — Minhafamília também iria querer que eu fosse feliz.

Pensou naquela grande e adorável família. Seu pai, que adorava sua mãe. Seusirmãos, que estavam começando a constituir famílias próprias. Projetou-se no futuro. Umfuturo na América dos dias modernos. Conhecimento acadêmico vazio, armas frias e livrosembolorados ao redor. Será que ela encontraria seu parceiro de vida lá em Boston?

No instante em que se fazia essa pergunta, ela soube.

Já encontrara seu parceiro de vida.

MacColla.

— Escreverei uma carta também. — Apertou a mão de Magda com força. Tinhacerteza agora. Seu tempo e seu lugar eram ao lado de MacColla. Ela pertencia a onde... ea quando... ele estivesse. — Mas tem certeza de que posso usar sua foto?

Diante do gesto assertivo de Magda, Haley agradeceu.

— Não me agradeça ainda. Eu não tenho certeza de como isso... funciona.

Magda estudou a fotografia nas mãos de Haley, que se deu conta do que significaria

para aquela mulher desistir da única recordação que tinha do irmão.— Existe uma bruxa — Magda falou. — Você terá de encontrá-la. Sei que James

gostaria de levá-la até ela, mas ele não pode se arriscar a ser reconhecido.

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— E ele é muito reconhecível — Haley admitiu, e ambas compartilharam uma risadaque aliviou a tensão.

— E MacColla não é? — Magda sorriu, e Haley ficou feliz ao perceber que ela usavao verbo no presente. — Rollo a levará. Ela mora nas Terras Altas, perto do clã Cameron.Acho que poderá ajudá-la.

— Mas... — Haley examinou a foto em suas mãos. Um rapaz bonito, com asmesmas feições regias de Magda, e uma cabeça de brilhantes cabelos ruivos. — Mas estaé a última imagem que você tem de seu irmão.

— Não preciso de uma foto para me lembrar de Peter. — Tocou a moldura dafotografia pela última vez. — Não preciso de evidências, uma vez que ele mora no meucoração. — Dobrou as mãos de Haley em torno do retrato em miniatura. — Você verá.Este lugar muda você. Quanto mais simples a vida se torna, mais rica é.

— Obrigada — ela murmurou, apertando os dedos de Magda num gesto afetuoso.

— Agora, sobre aquela sua carta... — Magda se levantou e foi até a mesa, queficava sob a janela. Pegou um pedaço de papel de uma pequena caixa de madeira. — Meu

marido era um homem famoso. Se eu bem compreendo, até mesmo você voltou no tempooriginariamente para descobrir se ele estava vivo ou morto.

Haley desviou os olhos, constrangida.

— Ora, eu não a culpo. — Magda ficou séria. — Despeça-se deles. Eu colocarei suacarta com...

— A espada de James! — Haley a interrompeu, com os olhos brilhantes. — Umaespada dele é famosa, e está em exibição num museu em Montrose. Coloque com a espa-da, marcada como dele.

— Sim, farei isso. Com um pedido de que a carta seja entregue no endereço que

você escolher, na data que quiser. Desse jeito, não ficará preocupada, como eu fiquei, coma possibilidade de eles receberem a carta quando eu ainda estava na escola.

Elas compartilharam um sorriso.

— Poderia ser entregue no dia seguinte ao meu desaparecimento — Haley disse,maravilhada. Seu olhar encontrou o de Magda. — Isso quer dizer que, a esta hora, eles jásabem... Se o tempo é uma coisa estática e minha família está lá fora, em algum lugar, acarta estaria nas mãos deles agora.

— Não consigo raciocinar sobre isso. — Magda meneou a cabeça. — Mas, sim, sevocê pensar desse jeito... A esta hora, sua família já terá lido a sua carta de despedida.

Eles viajaram durante horas, seguindo pela baía costeira, e finalmente ancorandonuma angra perto da praia de Loch Linnhe.

O terreno parecia ondular debaixo dela quando Haley lutou para encontrar oequilíbrio. Esticava-se e batia as pernas até voltarem à vida, quando sentiu o movimentoabrupto de Rollo.

Virou-se, admirada ao vê-lo com a pistola na mão, carregada e engatilhada emsegundos. Enregelou-se.

— No que vai... — Ela engoliu o grito assustado.

Uma mulher se postava à margem do lago. A fumaça cinzenta espiralava de umapequena fogueira, como se ela estivesse acampada ali, esperando por eles.

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Haley olhou rapidamente ao redor. Estavam no meio do nada, vastos trechosdesertos tão longos quanto a vista podia alcançar. Como poderiam se deparar com alguémali? A mulher parecia ter se materializado do éter.

E por que Rollo tinha a arma apontada para ela? Ele, pelo menos, parecia ter avistado a estranha no mesmo instante.

Sabia que ele estava enrijecido após um dia inteiro sentado no banco duro, masninguém suspeitaria disso. Estava de pé, com os braços esticados com firmeza à frente.

— Abaixe sua arma, homem. — A mulher cuspiu no fogo. — Eu ofereço ajuda, nãoperigo.

A indiferença dela era estudada. Haley julgou que ela parecia, na verdade, capaz defazer um grande mal, embora não soubesse dizer por quê.

Longos cabelos ruivos caíam sobre seus ombros, riscados com umas poucasmechas grisalhas. Era magra, mas não esquelética. Algo nela tinha o sopro do poder.

Haley ficou feliz ao ver que Rollo não acatara a sugestão da mulher, sua armacontinuava apontada diretamente para ela.

— A única coisa com que você pode nos ajudar é com seu nome — ele disse. —Quem é você?

— Sou chamada de Finola.

— Receio que eu precise de mais do que isso, se tiver de abaixar minha arma.

— Você mira essa arma tola para mim, como se eu fosse o seu alvo. — Ela repuxouos lábios com um rosnado impaciente. — É como a criança que brinca na água sem saber das profundezas abaixo.

Finola abriu os braços. Seu manto flutuou em torno dela, e o que parecia um cinza

sujo tornou-se de repente mais brilhante, mais branco que antes. E ela, de alguma forma,mais alta.

Os joelhos de Haley começaram a ceder, e ela obrigou-se a ficar ereta.

Rollo, porém, não vacilara. Suas palavras ressoaram, firmes, quando perguntou:

— Do que está brincando, mulher?

A voz num timbre mais alto, ela entoou:

— Você procura uma bruxa, e aqui eu me posto. A estrada da estrela obedece aomeu comando. Meu poder é maior do que o daquela que procura para sua viagem. Soumais forte, e meus inimigos, fracos.

Que diabos... Haley recuou para parar um pouco atrás de Rollo. Olhou os músculosde suas costas, visíveis sob o tecido úmido da camisa. Ele não se encolhera, e elaprecisava ajudá-lo. O fato de ele ainda não ter baixado a arma deu-lhe coragem.

— Como sabe quem eu procuro? — Haley conseguiu dizer.

— Eu sei, garota.

— Qual é o seu clã? — Rollo deu um passo à, frente. — Você está nas terras dosCameron. É uma Cameron?

— Você faz as perguntas de um tolo. — Finola abaixou os braços, num gesto de

descaso. — Tente mais um pouco minha paciência, e eu o deixarei passar por dificuldades.Não. A mulher dissera que era uma bruxa. E se ela fosse quem poderia ajudá-la?

— Como sabia? — Haley indagou, saindo da sombra de Rollo. — Como sabia que

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— Você é corajosa em seu coração, Haley Fitzpatrick. Não tema a bravura de seusfeitos.

Haley deu-se conta de que apenas ela poderia recordar-se daquele momento.Estava viajando para um tempo anterior, e esperava que ela e MacColla seguissem umanova trilha de vida. Uma que não terminasse com ele morto, e ela parada sob a lua pálida,com Will Rollo e uma bruxa como companhia.

Ela seria a única a recordar-se da fogueira crepitante de Finola, da gentileza deRollo. E a constatação a fez sentir-se ainda mais sozinha.

Um pensamento lhe ocorreu, divertindo-a e dando-lhe força. O sorriso de apoio deRollo e as palavras gentis revelavam-no como um amigo verdadeiro. E, embora fossemgrandes as chances de um homem tão estóico nunca demonstrar isso de novo, ela sempreteria a lembrança daquela consideração como prova.

Esboçou um sorriso calmo e, concordando, virou-se para encarar Finola.

O fogo dançava por trás da bruxa, as chamas cintilando, mais brancas e quentes doque o normal para uma fogueira. Lançavam o rosto de Finola nas trevas, fazendo-a

parecer maior que a vida. Longas sombras cortavam a terra, indo em direção a Haley, esua negrura consumiu-lhe os pés e as canelas. E ela imaginou se o frio que formigava emsua esteira era meramente imaginário.

O braço cheio de nervos saltados de Finola esticou-se para ela, os dedos a buscá-la.

Haley respirou fundo. Estava tomada de terror. Porém, não havia escolha. Olhoumais uma vez para Rollo. Queria um gesto, um último sorriso, algum reconforto de queaquilo daria certo. Mas ele simplesmente cravou os olhos nos dela, o olhar cheio deempatia. Emprestou-lhe forças, mas Haley estava sozinha agora. Só ela poderia fazer aescolha.

Flexionando os dedos, virou-se de novo para Finola e deixou a bruxa tomar suamão.

Com uma respiração profunda, a cabeça da mulher pendeu para trás. Sua faceapontou para o céu e, apesar da palidez da lua, o branco dos olhos luziu com um brilhosobrenatural.

Haley ouviu um cantarolar, muito baixo a princípio, que parecia originar-se de dentrode sua própria cabeça. Tornou-se mais alto, e ela então se deu conta de que vinha deFinola.

A bruxa estava em estado de transe, resmungando. O sussurro gradualmente

aglutinou-se em palavras, cada vez mais alto. Os dedos se fecharam como garras na pelede Haley, que puxou a mão num gesto instintivo. No entanto, o aperto da mulher apenas seintensificou.

Empurrou Haley até o fogo.

Deus me ajude.

Ela poderia parar com tudo aquilo. Viver sua vida, encontrar sua própria ilhazinha econtentar-se com isso daquele momento em diante. Aquilo parecia... errado.

Uma coisa sombria, má.

MacColla. Mudar de idéia agora significaria dizer adeus para sempre.Endireitou o corpo. O único caminho: Deu um passo lento, deixando Finola conduzi-

la.

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

A adrenalina inundou-a, tornando-a muito consciente de cada sensação.

— Leve-a, leve-a. — A voz da bruxa era baixa agora. Um ressoar inumano queparecia vir das árvores ao redor, da água do lago, do céu. — Que ela pense em seu amor.Que se torne uma com as estrelas ao alto.

O quê? Ela deveria ficar pensando em MacColla? Finola não lhe dera instruções.

Haley tentou falar, mas sua língua estava grossa e morta em sua boca.Espere,

será queela precisava pensar em algo específico para voltar para ele?

— Dissolva-se nos céus. Para salvá-lo da morte.

A vertigem invadiu-a de novo, e dessa vez não desapareceu, provocando umenervante estalido em sua cabeça, rodopiando, rodopiando...

As chamas às suas costas pareceram de repente frias, e seus pulmões aspiravam afumaça de gelo seco, e não do fogo.

Haley estava enregelada, seu corpo sem sangue e in-substancial, e seu coraçãoflutuando cada vez mais leve, até que ela pensou que era um beija-flor, disposto a voar deseu corpo.

Deus me ajude.

— Leve-a. Leve-a. Leve-a.

O sussurrar parou, e Haley afundou abruptamente. Sentia-se exaurida e triste,impregnada de emoções alteradas. Será que funcionara?

A rotação em sua cabeça se acalmou. Ela fez um esforço e suas pálpebrastremeram.

Sentiu mãos que a tocavam. Mãos quentes.

Rollo? Será que ela desmaiara?

Estremeceu e respirou fundo. Conseguiu dar uma sacudida na cabeça e abriu osolhos.

Estava de pé diante de MacColla, com o rosto entre as mãos dele.

— Isto é um adeus, leannan — ele disse. — Não tem um beijo para mim?

Haley soltou um grito agudo e atirou-se nos braços dele. Enroscou as pernas emtorno de sua cintura e enterrou as mãos em seus cabelos. Sentiu que os puxava, mas nãose importou.

Tinha seu MacColla de volta.

Beijou-o intensamente, apartando os lábios, afundando a língua, saboreando-o.Afastou-se um pouco.

— Os cordões — falou, aflita, levando a mão às costas para soltar o corpete dovestido. — Ajude-me. Os cordões.

MacColla riu.

— Oh, leannan. — Colocou-a no chão e virou-a, desatando os amarrilhos e puxandoo vestido para baixo. — Se eu pudesse imaginar o que um simples pedido faria... — elemurmurou, mordiscando e lambendo a linha de seus ombros —: eu teria perguntado commais delicadeza desde o começo.

— Quieto — ela ordenou, virando-se para ele. — Apenas me beije.— Sim — ele concordou, com voz rouca. O bom humor se fora, deixando seus olhos

famintos, toldados.

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E ele tomou-lhe a boca com rudeza.

Passou um braço em torno da cintura de Haley e empurrou-a de costas. Porém,tropeçaram no longo mosquete que ele lhe dera, e o beijo foi interrompido.

— Cuidado! — Ele a segurou para que não caísse.

— Certo. — Ela relanceou os olhos para baixo e os ergueu de novo. — Meu

confiável mosquete — comentou, com sarcasmo.Ele a fitou por um momento, com as sobrancelhas franzidas, e um ar divertido e

confuso.

— Puxa, mulher, é hora de você ficar quieta e me beijar.

MacColla apoderou-se de sua boca outra vez, empurrando-a contra a parede. Apedra era fria e áspera em suas costas nuas, e ela acolheu com gratidão aquele lembretede que estava viva. De que ele estava vivo.

Arrancou-lhe as roupas, o cinto e a bainha vazia do ombro caíram com um baque,seguido pelo som pesado da manta, que se amontoou no chão.

Ele puxou seu vestido dos quadris, e as roupas ficaram emboladas aos pés dosdois. Frustrada, Haley chutou as camadas de tecido, arrancando uma risada rouca deMacColla.

— Calma — ele sussurrou, agachando-se para afastar o monte de lado.

— Não me acalme! — ela esbravejou. — Você não tem idéia...

— Hum? — Ele ia se levantar de novo, mas quando Haley enterrou os dedos emseus cabelos, MacColla ajoelhou-se diante dela. Deslizou as mãos por trás das coxas deHaley e apertou-as.

— Oh... — Ela arquejou.

— Nach tu a tha bòidheach. Você é tão linda, mo leannan.

Haley olhou para baixo, e a vista dele; a fitá-la com um desejo tão puro nos olhos,provocou uma onda de anseio em seu âmago. Sentiu-se umedecer, expandir-se.

— Você está vivo — ela murmurou.

Começou a tremer quando MacColla voltou a atenção para seu corpo. A bocasensual pairava pouco acima de sua pele, quase a beijá-la.

— Cho maiseach ris a'ghrèin.

A respiração dele era quente em seu ventre, em suas coxas.

Bela como o sol.

Haley sentiu um arrepio percorrê-la por inteiro quando aquelas palmas ásperasacariciaram suas pernas, afagando-as até empalmar suas nádegas.

— Suas mãos... Senti saudade de suas mãos.

Ele deslizou as palmas para a frente até pousarem em seu ventre. Os polegares sevoltaram para baixo, esfregando a parte interna de suas pernas, traçando o V de suascoxas.

Os joelhos de Haley vergaram e, com um riso rouco, MacColla apressou-se em

segurá-la, encostando o corpo para mantê-la contra a parede. Fraca, ela pousou as mãosnos ombros dele, apoiando seu peso.

— Você está vivo — repetiu.

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MacColla começou a acariciá-la, esfregando o nariz em sua pele, correndo a línguapelas coxas e pelo ventre, mordiscando-a suavemente, provocando-a.

Mantendo uma das mãos em seu quadril, ele deslizou a outra para cima,encontrando o seio. Quando ele esfregou a palma aberta sobre o mamilo, Haley respiroufundo, sentindo a pele sensível retesar-se, Ele, então, tomou o mamilo, beliscando-o erolando-o entre os dedos.

— Sim... — ela disse, baixinho.

Os beijos dele se aproximaram da região sensível entre suas pernas e a línguainsinuou-se, lambendo e se retraindo.

— Por favor... — Haley aumentou a pressão das mãos nos ombros dele. — Mais,por favor, querido.

Com um gemido, ele enterrou a cabeça entre suas coxas, beijando-a, e depoiscomprimindo a língua com firmeza contra o botão pulsante. Sugou-a e lambeu-a num ritmoconstante.

— Ahhh... — Ele deixou escapar um gemido rouco, do fundo da garganta, com arespiração arfante.

O polegar fechou-se mais uma vez sobre o mamilo, e ele deslizou a mão para baixo,firmando-a, enquanto separava ainda mais suas pernas, prosseguindo com as carícias.

Quando seus joelhos cederam, ele apoiou a perna dela no ombro. Penetrou-a com alíngua e escorregou o polegar para baixo, afagando-a até que Haley sentisse o corpocontrair-se, tenso, pronto para explodir.

Um som agudo escapou de sua garganta, e MacColla segurou-a com forçaenquanto ela era sacudida por ondas de prazer.

Deitando-se de costas, ele a colocou sobre o corpo, guiando-a para o membro rijo.

— Tão úmida... — murmurou, ao deslizar para dentro dela.

Percorreu seu corpo com as mãos, tocando-a nos seios, acariciando as coxas.Diminuiu o ritmo e fitou-a com ternura.

— Está muito longe de mim, mo chridhe. — Passando as mãos pelas costas deHaley, puxou-a para mais perto. — Oh, leannan... — Beijou-a no pescoço e sugou cadaseio. — Tão linda...

Haley não conseguia falar. Gemidos arfantes escapavam de sua garganta, e eladeitou-se sobre ele, roçando os seios no peito forte, correndo a boca pelo pescoço pode-roso, pelo queixo másculo. MacColla tomou seu rosto nas mãos e beijou-a com ardor.Investia depressa e com força agora, e senti-lo pulsando, preenchendo-a, afastou todo equalquer pensamento. Havia apenas aquela sensação, aquele momento, apenas os dois.

Haley já sentia outra vez a familiar contração no ventre aumentando, e pensou queo próximo, clímax poderia lançá-la de um precipício do qual jamais voltaria.

MacColla afastou a boca da sua.

— Venha comigo — ele sussurrou.

Ela passou a boca nos pelos que despontavam do queixo dele, e o sabor de sal esexo acabou com o resto de seu controle.

— Sim! — gritou, e o calor explodiu dentro dela, fragmentando-a, consumindo-a.Sentiu os braços de MacColla a envolver com força. Sentiu os dedos apertar suas

nádegas. Sentiu-o ficar tenso e contrair-se num espasmo dentro dela, enquanto um gemido

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gutural demonstrava a intensidade do prazer que ele sentia.

MacColla afastou os cabelos úmidos de suor da testa de Haley. ^Exaustos, os doiscontinuaram largados no chão, imóveis, emaranhados um no outro sobre a pilha deroupas.

— Eu te amo, leannan.

Fitou-a, estudando o rosto bonito, as faces rosadas do ato de amor, e os longoscílios que emolduravam os insondáveis olhos cinzentos. Salpicados de preto e cinza comoum mar tempestuoso, eles o encaravam, expectantes, e, pela primeira vez na vida,MacColla sentiu-se verdadeiramente visto.

— É uma frase simples de um homem simples. Mas é isso. Eu te amo.

A paixão de Haley nunca deixava de surpreendê-lo. A hora de partir chegara e sefora, mas ele tivera de roubar alguns momentos a mais como aquele. Com ela.

— Não o deixarei morrer de novo — ela disse em resposta.

Estreitando os olhos, ele perguntou:

— Quer dizer que você acredita que eu morrerei?

— Não, MacColla. Eu vi  você morrer. — Haley entrelaçou os dedos nos dele. —Você morreu, e eu voltei para você.

— Mas como... — Ele não entendia o que Haley estava dizendo. Mas confiava nelae, assim, esperou que tudo se aclarasse.

Haley levou a mão dele até a altura de seu coração e, pela primeira vez, elepercebeu a ponta do dedo ferida.

— O que é isso? — indagou, segurando-o.

Embora não mais sangrasse, a polpa do dedo mostrava a pele raspada, deixandovisível a carne por baixo. Um halo avermelhado circundava o ferimento.

— Precisamos limpar isto, leannan. — O furioso desejo de protegê-la retesou seusmúsculos. — Como isso aconteceu?

— É o que estou tentando contar — Haley retrucou com um olhar impaciente.

Percebendo que apertava a mão dela com muita força, ele afrouxou os dedos. Sabiaque sua reação era exagerada. Era um corte pequeno, e cortes saravam. Mas a idéia deHaley sofrer qualquer tipo de dor era mais do que ele poderia suportar.

— Você lutou a batalha — ela disse, com aspereza. — E morreu. Um soldado de

cabelos castanhos atirou em você pelas costas. Rollo me ajudou.As palavras jorravam dos lábios de Haley, e MacColla tentou encontrar sentido

nelas.

— Mais devagar, moça.

— Voltei no tempo outra vez, para este momento, para lhe contar. — Apertou a mãodele com firmeza. — Você não deve lutar esta batalha.

— Como pode ser? — Ele examinou-lhe o dedo. — E o que tem uma coisa... a ver com a outra?

— Fui procurar James Graham em busca de ajuda — Haley explicou, mais devagar.

— Graham? — Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

— Sim.

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Os olhos dele se estreitaram, divertidos.

— É esse o seu jeito de me levar a revelar o verdadeiro destino de James?

— Não. — Um sorriso perpassou a face de Haley. — Minha pergunta foi finalmenterespondida. Vi por mim mesma que Graham está vivo.

— Você disse que voltou no tempo... outra vez? — Poderia algo assim ter 

acontecido? — De verdade?— Sim. Conheci James, e Magda também. Ela me deu um retrato de seu irmão e

disse que era um portal através do tempo... — Ela se interrompeu. — Você acredita emmim?

MacColla encarou-a com firmeza. Haley de repente parecia tão ansiosa, tãoatipicamente vulnerável, o desespero dependendo de sua resposta.

Então, ele se lembrou de que Magda lhe contara sobre o irmão e, de repente, tudoficou claro. Não havia como Haley saber sobre o irmão morto da mulher.

— Sim, leannan — retrucou, baixinho. — Quando eu não acreditei em você?

Com um sorriso, ela apertou sua mão com mais força e continuou, com ânimorenovado:

— Rollo me levou para encontrar uma bruxa, mas uma outra bruxa nos encontrou.Disse que odiava Campbell e que me mandaria de volta para salvar você. — Soltou a mãodele e examinou a pele ralada da ponta do dedo. — Ela raspou o retrato, e foi isso o queme cortou. Ela cantou e esfregou meu dedo até ficar em carne viva e... bem, então euvoltei para você.

— Compreendo — ele disse, muito sério.

— Ótimo. Entende, então? Você não pode lutar.

— Mas devo lutar,

MacColla sentiu o corpo de Haley enrijecer. Ela ficou muda por um instante. Mas, aoencontrar de novo a voz, indagou, num tom perigosamente calmo:

— O que disse?

— Acalme-se, amor. — Sentou-se, observando a tempestade nos olhos dela setornar mais sombria. Pela primeira vez na vida, ele confiaria primeiro na razão, e não napaixão. — Você me diz que há um inimigo lá fora que atirou em mim pelas costas? —Diante do gesto duro de concordância, prosseguiu: — Se eu não pegar esse homemagora, ele irá atrás de mim outro dia. Pode ser na Irlanda, ou quem sabe na Escócia, mas

ele virá.Haley concordou de novo, relutante.

— Sim, mas...

— Podemos resolver isso. Mas você tem de me contar tudo. — Ajudou-a a se sentar e a apoiar-se na parede. Colocou a manta xadrez sobre o peito e as pernas de Haley. —Não se preocupe, leannan. Vamos vencer esse patife no seu próprio jogo.

MacColla saboreou lutar a batalha que sabia que venceria. E foi um triunforetumbante. Haley lhe contara a respeito de sua vitória na colina de Knocknanuss, mas elenão imaginara que seria tão doce.

Ela queria observar, porém MacColla recusara sem rodeios. Só depois que elarecorrera a ameaças de não lhe conceder o que chamava de "seus encantos" é que ele

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— Desculpe, rapaz — resmungou. Segurando a mão do captor quando ele a ergueuaté o cabo da espada às suas costas, acertou-o com força com uma cotovelada no abdô-men. — Você foi um inimigo honrado.

O'Grady dobrou-se ao meio, e MacColla desferiu um soco rápido em sua cabeça,deixando-o desacordado.

Virou-se, então, com a espada estendida, para enfrentar seu pretenso assassino.O homem era desapontador de tão comum, com feições nada notáveis, cavalgandoum cavalo indigno de reparo.

O mosquete que segurava, porém, dava o que pensar, e MacColla viu quando amão dele deslocou-se, apoiando o cano longo.

Meneando a cabeça, o homem sorriu lentamente, e engatilhou a arma.

Um tiro soou atrás dele, e MacColla encolheu-se sem querer, tão preparado estavapara enfrentar a bala daquele homem.

Haley. Ela deveria ter saído de seu esconderijo. E, embora seu tiro tivesse passado

ao largo, fora o bastante para assustar ao cavalo do patife. O animal empinou justamentequando o homem disparou, e a bala subiu, indo parar bem longe do alvo.

Com uma praga, o homem examinou o terreno atrás de MacColla, buscando ofrasco de pólvora no cinto. Pensando melhor, atirou o mosquete no chão, saltou do cavaloque dançava e avançou para MacColla... que estava postado como uma estátua degranito, esperando.

— Eu gostaria de saber q nome do homem que daria um tiro em minhas costas —disse MacColla.

— Purdon — o outro retrucou, desembainhando a espada. Os dois começaram a serodear. — Major Nicholas Purdon.

Ele portava um sabre de cavalaria. Uma coisa esquisita, estrangeira, provavelmentetrazida das guerras no continente. Apesar de ser uma arma elegante, o aço estriado nãoera menos reforçado. Mesmo assim, MacColla provocou:

— Que espadinha bonita você tem, Purdon. — Esticou a sua para adiante e sorriuao som do estalo de suas articulações. — Devo cortar sua barriga ou arrancar sua cabeça?O que você acha?

— Que grosseria. Você me surpreende, Alexander MacDonald. — Purdon inclinou acabeça numa fingida ponderação. — Cabeça ou barriga? Você me oferece duas coisasruins e nenhuma escolha.

— Vai me chamar pelo meu nome escocês — ele resmungou. Repetiu as palavrasde Purdon em gaélico. — Dà ãhiit gun aon roghainn. — Sorriu e deu dois passosconfiantes na direção dele. — Duas coisas ruins, e nenhuma escolha, realmente. Portanto,farei a opção por você.

Girou a espada para baixo, o aço espesso chocando-se com o sabre de Purdon comum baque ressonante. Lâminas curvas da cavalaria não eram feitas para esgrimir, ePurdon arremeteu e cortou outra vez, as cutiladas sem efeito sobre MacColla.

— Cabeça, eu acho — MacColla disse, com calma, baixando com força a espada. Opoder da arma escocesa estava em seu giro, e ele investiu sobre o homem sem

misericórdia. Para baixo, sobre a cabeça, para cima, pelas pernas... Cada golpe eraaparado pelo oponente, forçado a segurar o sabre com as duas mãos para resistir aoataque.

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Um golpe lateral no abdômen de Purdon cortou-lhe a carne. O homem arquejou ecambaleou para trás.

MacColla avançou sobre ele com força renovada, na diagonal, erguendo edescendo a espada em ângulos, para cima e para baixo, até que, com um rosnado, elemudou o padrão, desferindo um repentino golpe final, seccionando a cabeça de Purdon docorpo.

— Que você apodreça, bastardo! — exclamou, usando o casaco do sujeito paraenxugar o sangue de sua lâmina.

Haley o alcançou não muito depois que o major caiu. Estava aflita, mas isso nãoimpediu MacColla de erguê-la para o alto num beijo exultante.

— Conseguimos, leannan.

— Você conseguiu — ela disse, sorrindo. Esquadrinhou o vale, nervosa. — Masagora, nós temos que dar o fora daqui. Rollo deve aparecer em breve... — resmungou, eentão decidiu —, mas não acho que possamos esperar. — Observara a cena familiar terminar, com um abençoado desfecho diferente. E contivera o fôlego o tempo todo. —

Pode haver outros homens se aproximando.— Sim, penso da mesma forma — MacCoila concordou. Empalmando-lhe o queixo,

fitou-a longamente. — Não me importo comigo mesmo, mas quero essa sua linda pelelonge deste lugar. — Virou-se para tentar pegar a montaria esquiva de Purdon.

— Espere — Haley disse, de repente. Parou, olhando para a cabeça do morto comhorror. — Tenho uma idéia.

— Mas sou muito mais alto que esse paspalho. — MacCoila rodeou o cadáver dePurdon, fitando-o com desprezo.

— Sim, bem... — Haley deu de ombros. — Ele está ainda mais baixo agora.

A risada de MacColla estourou, e ela se encolheu, desviando o olhar para ohorizonte. Endereçou-lhe um sorriso enviesado, mas estava ansiosa para sair dali. Játinham perdido vários minutos enquanto tentava convencê-lo de seu plano.

— Sério, MacColla. — Estendeu a mão, indicando mais uma vez que ele lheentregasse a espada larga, — As pessoas enxergam o que querem ver. Se todospensarem que você está morto, teremos mais opções.

— Opções? — Ele fez uma careta. — Bem, moça, eu opto por não deixar minhaespada aqui.

— Arranjaremos outra nova. Não podemos representar sua morte sem deixar esta

espada em particular para trás — Haley afirmou, apontando para a arma na mão dele. Oanel na base do cabo e seu desenho simples e sem adornos tinham um toque irlandês.Mas o tamanho indicava que MacColla era seu dono.

— Quero o pescoço de Campbell em minhas mãos — ele resmungou, flexionandoos dedos. — Sem opções.

— Você não pode caçar Campbell — ela retrucou. — Não entende? Deve ser  julgado morto. Não podemos mudar o curso da História.

— E por que não? — Ele deu de ombros. — Acabamos de mudar, não é?

— Bem, por um lado... — Haley pensou um pouco. Por um lado, você poderia

conseguir ser morto outra vez. — Sou irlandesa — ela disse, de repente. — E se algo quefizermos causar impacto na linhagem da minha família? — Lembrou-se rapidamente detodos os clichês dos filmes de ficção científica, de gente anulando a própria existência. —

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Eu nunca nasceria.

Aquilo o fez parar. MacColIa abriu a boca para falar, e fechou-a de novo.

Haley detestava não lhe dar uma escolha. Sabia o que significava para ele derrotar Campbell. Mas também sabia que ele não ficaria quieto por muito tempo, e que aquelaseria apenas a primeira vez que teriam a mesma discussão. Teve outra idéia.

— Você ainda pode combater Campbell! — exclamou, radiante.Ele a encarou com interesse.

— Suas ações serão muito mais devastadoras se Campbell julgar que você estámorto.

— O que está dizendo?

Haley apontou de novo para a espada, e ele finalmente a entregou.

— Estou dizendo que um inimigo anônimo é o mais perigoso. — Haley ajoelhou-separa passar a mão de Purdon ao redor do cabo da espada de MacColIa, mas se imobilizoue fez uma careta.

MacColIa empurrou-a gentilmente de lado para terminar a tarefa.

— Você terá de virar-se, moça. Se eu colocar aqui minha espada... — ele começoua arrancar as botas e o uniforme do morto — terei de pôr minha manta também.

Haley deu-lhe as costas, mas continuou a falar com entusiasmo:

— Pense em como você poderia entrar com facilidade nas terras de Campbell. Ogrande MacColIa está morto. O que eles têm a temer? — Fitou-o por sobre o ombro. —Porém, precisará se disfarçar. Você é facilmente reconhecível. Um herói muito grandioso.

— Puxa, leannan — ele resmungou, divertido, prendendo a enorme camisa entre as

pernas. Depois, beliscou o traseiro de Haley ao erguê-la até a sela da montaria de Purdon.— Agora, você está tentando me lisonjear.

Stirling, Escócia, um ano depois

— Um cavaleiro negro, você diz? — MacColla contorceu-se sob a armadura. Haleyinsistira que ele a usasse, embora ele não tivesse idéia de como alguém poderia se mover e lutar com liberdade sob tamanha compressão.

— Sim, uma espécie de Bruce Wayne gaélico.

— Bruce... quem?

— Deixe para lá — ela retrucou, empurrando o elmo de aço no lugar. — Ei, pelomenos eu não fiz você colocar um visor.

— Armadura é para covardes, leannan. — Ele arrancou o elmo, correndo os dedospelos cabelos. Detestava a sensação quente e constritora daquela coisa. — Não possoapenas deixar a barba crescer?

— Você não vai deixar crescer uma barba — ela retrucou depressa, arrancando oelmo da mão dele e colocando-o de volta em sua cabeça. — Não pode se arriscar a ser reconhecido. — Haley recuou para dar uma boa olhada nele. Muito séria, resmungou: —Só um manto e um elmo... Acha que seria bastante para um disfarce? — Fitou-o. A aba do

elmo deixava as feições de MacColla na sombra, mas não impedia a visão ou omovimento.

— Todos me julgam morto. Antes de tudo, os soldados pensarão ter visto uma

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aparição. Portanto, deve ser suficiente, leannan. — Olhou para baixo, batendo os pés parase acostumar com a sensação das calças e das botas. — Mas, céus, o que a levou aescolher um xadrez vermelho para minhas calças? — Ergueu os olhos a tempo de vê-lafitar seu corpo com um ar avaliador. — O quê? — indagou, com um sorriso malicioso. —Estou vendo as faíscas nesses olhos tempestuosos, mulher. Não me diga que você temuma coceira que quer que eu coce agora que estou enfiado em toneladas de aço.

— Só estou admirando você, meu cavaleiro misterioso. A careta dramática arrancouuma risada de Haley.

— Nossa... — Ele meneou a cabeça, incapaz de pensar numa resposta inteligente.

Com freqüência, MacColla pensava que talvez ele realmente tivesse morridonaquele dia, e passado os últimos meses em seu próprio céu particular, acordando com avisão de Haley em sua cama toda manhã e fazendo amor com ela toda noite.

Concordara com ela que deveria permanecer quieto por algum tempo. Ultimamente,contudo, estava cada vez mais ansioso. Chegara a hora de voltar ao combate.

Esperava que Haley fosse protestar, mas fora como se ela esperasse esse dia.

Aceitara a idéia prontamente, com noções já formadas sobre a armadura, assim como umcálculo das possíveis batalhas nas quais ele poderia se envolver no anonimato.

— Você diz que Stirling é um combate importantíssimo? — perguntou, colocando oelmo no lugar.

— Bem, é uma das poucas batalhas de Campbell de que consigo me lembrar — elarespondeu. — O Castelo de Stirling hasteia a bandeira do rei, mas cai diante de Campbelle dos covenanters. Foi devastador. Campbell e o general Leslie tinham milhares desoldados postados nos arredores de Stirling. As poucas centenas de homens do castelonão faziam idéia do que viria e não foram páreo para eles.

— Mas se eu atacar Campbell antes que ele tenha a chance de mobilizar seushomens...

— Exatamente. — Ela sorriu. — A única coisa é que precisamos encontrá-loprimeiro. Ele não é daqueles que acampam com os soldados, é?

— Puxa, essa foi fácil, leannan. Campbell tem uma residência na cidade, em Deer Park. — Virou-se para deixá-la ajustar as tiras de couro ao lado de seu corpo. — Osoficiais covenanters provavelmente estarão à mão. Eles também não acampam com ossoldados da infantaria. Eu diria que podemos reunir alguns monarquistas e ir até lá.

— Precisamos passar a mensagem a Munro — Haley disse, referindo-se aoescocês que liderava os monarquistas. — Um passarinho disse a ele para aprontar seus

homens e esperar pela ordem.— Muito bem, minha avezinha. — Com um sorriso, ele girou e flexionou os ombros

cobertos pelas placas rijas da armadura. — Agora vamos nos reunir a Campbell para o jantar.

Haley sentou-se no cume de um pequeno outeiro coberto de árvores, pensando nohomem com quem escolhera passar a vida. E na existência que deixara para trás.

Permitiu que os familiares sentimentos, ao mesmo tempo doces e amargos, ainvadissem, recordando-se dos entes queridos que deixara em Boston. Sentiria falta de ver seus pais aproveitar os anos dourados. E não estaria lá quando precisassem de ajuda na

velhice.Só poderia esperar que tivessem recebido sua carta de despedida.

Sua mente díspersou-se enquanto ela esperava, e Haley percorreu com os olhos o

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panorama abaixo. O dela era um ponto de vantagem, de onde podia contemplar o trechode campina cor de esmeralda, aninhado no meio de Deer Park, que provavelmente seria ocentro do combate.

MacColla estava disposto a fazer cerco a quaisquer forças com que Campbellcontasse em Stirling. E ele não poderia estar mais feliz.

Haley sorriu, apesar de tudo, imaginando por que não podia ter se apaixonado por algum belo reverendo do século XVII. Bem, párocos não eram seu tipo.

MacColla era.

Sentiu um calor no peito ao se recordar de vê-lo vestido para a batalha. Pareciaferoz antes, mas isso não era nada, se comparado à vista dele usando uma armadura.

Aquela extensão de metal reluzindo no tórax realçava seu tremendo tamanho, e.oelmo mantinha seu rosto na sombra, escurecendo as belas feições, dando a MacColla umcaráter ainda mais ameaçador do que eleja tinha.

Ela suspirou. Nada de párocos, de fato.

E MacColla estava em combate outra vez. Não havia como se opor a isso. Tudo queela podia fazer era se assegurar de que as armas e a armadura dele fossem sólidas, eesperar pelo melhor.

Seu olhar seguiu a trilha do rio Forth, reluzindo à distância, serpeando em voltaslargas pela região. O fim de tarde lançava uma luz fria è cinza-chumbo sobre tudo, comose o sol tivesse sumido, mas não se posto.

Divisou uma onda humana, correndo ao longe.

Começara.

Haley ficou tensa. Apertou os olhos e tentou entender o que via.

Haviam reunido apenas algumas centenas de monarquistas para se juntar à luta,mas seria suficiente para enfrentar as forças exíguas e desconjuntadas que Campbell tinhaà mão.

Um arrepio subiu por sua espinha ao pensar nos milhares de inimigos covenantersque, no momento, estavam postados em algum lugar fora de Stirling.

Aqueles poucos monarquistas tinham de ser suficientes para despedaçar aliderança de Campbell e abortar o ataque planejado ao Castelo de Stirling.

E parecia que conseguiriam. Soldados vestidos de xadrez abriam caminho entregrupos de homens sem esforço, como lavradores ceifando.

Haley avistou um cavaleiro solitário afastando-se dos demais, contornando o campode batalha. Galopava em sua direção, na direção da ponte de Stirling.

Um homem corpulento. A cor cereja de seu casaco traía sua elegância.

Campbell. Fugindo covardemente. Por que ela não estava surpresa?

Um grito distante chamou-lhe a atenção de novo para a batalha.

Os homens se dispersavam. Haley poderia afirmar, pelos urros em gaélico e por todas aquelas mantas, que os monarquistas tinham triunfado.

Que MacColla triunfara.

Um movimento ao longo da borda de uma laje mais baixa atraiu seu olhar. Haleysentiu os pelos se eriçar. Como não percebera antes? Não fora a única pessoa observandoa batalha.

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

Uma figura encapuzada vagava pela encosta da colina. Parecia uma mulher, comum cajado na mão. Uma rufada de vento jogou o capuz para trás, e os cabelos longosesvoaçaram. Eram de um ruivo surpreendente em contraste com o manto branco às suascostas.

Finola.

Haley piscou e olhou outra vez. A bruxa desaparecera.

Epílogo

Vinte e cinco anos depois.

MacColla recostou-se à parede, examinando o aposento ao redor. As pessoasbatiam palmas e pés em compasso com a música. Tochas bruxuleantes exageravam ossorrisos e os movimentos. O cheiro de cerveja e ensopado enchia o ar. Era uma boa noite.

Olhou para a esposa a seu lado. Haley passava dos cinqüenta agora, mascontinuava uma criatura tão maravilhosa e encantadora quanto no dia em que seconheceram. Sorriu ao se lembrar do salto que ela dera, do castelo de Campbell paradentro da noite.

— Posso nunca mais ver a plenitude das terras de meu clã recuperadas — disse a

ela, puxando-a para perto —, mas vi você dançar com nosso filho em seu casamento, eisso é realmente um raro privilégio.

Apertou-a com força e plantou um beijo exuberante na boca adorável. O beijosuavizou-se e se tornou mais intenso.

MacColla ainda se maravilhava ao ver como, com um simples beijo, Haley ainda eracapaz de fazê-lo ansiar por ela com um desejo de rapaz.

Estendeu a mão para acariciá-la com ternura no pescoço, desesperado para tocá-laum pouco mais abaixo. Pouco antes, tinha se divertido na companhia dos amigos, masagora tudo que queria era que todos fossem embora para que ele pudesse desfrutar sua

esposa em paz.— Tire as mãos da minha mãe. — O filho deu-lhe um tapa forte no ombro. — Vamos

lá. Coll teve sua dança com mamãe, e agora é a minha vez.

MacColla afastou-se com relutância, tentando fazer uma careta bem feia para o filhomais novo. Porém, fracassou. Eram aqueles danados olhos cinzentos. Os dois filhos eramlindos, mas Archie herdara os olhos da mãe, e isso tornava impossível discutir com orapaz.

— Podemos, Archibald? — Haley ergueu a mão formalmente para que o filho atomasse. Ela olhou para trás e piscou para ele enquanto Archie a acompanhava para osalão.

MacColla observou-os dançar, e logo avistou Coll, que rodopiava com a belaesposa.

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Verônica Wolff - Sem Medo do Passado (CHE 343)

Ele sabia que Haley tinha saudades desesperadas da família, dos irmãosprincipalmente, e sabia que não conseguiria afastar essa dor, mas ficara feliz em lhe dar dois garotos.

Examinou-os. Seus filhos podiam ter a aparência da mãe, mas ele via algo de sineles; via a honra, a força e a coragem que lhes ensinara, e isso fazia seu peito inchar-sede orgulho e felicidade.

Um pai e seus filhos.

Ele podia não ter pego Campbell, mas seu legado era maior do que isso.

O que não, queria dizer que não saboreara a morte do inimigo. O poder do homemdesvanecera-se junto com seu dinheiro, e doze anos tinham se passado desde que elefora decapitado.

MacColla levou a caneca aos lábios e bebeu um longo gole por conta da lembrança,pensando novamente em pais e filhos.

No fim da vida, o medo de Campbell do próprio filho se tornara tão grande que elese refugiara em seu castelo. Até ser posto na Torre e sentenciado à morte por Carlos II.Seu crime fora agitação contra o rei Carlos I. Um filho fazendo justiça ao pai.

Jean atraiu seu olhar do outro lado do salão. Sua irmã parecia uma idosa agora,com os cabelos grisalhos, mas ainda segurava com força a mão de Scrymgeour, sentadoao lado dela, atencioso como sempre.

Embora MacColla e Haley tivessem escolhido criar os filhos em relativa reclusão naIrlanda, a filha de Jean passara muitos verões brincando com os meninos, e isso oalegrara.

— Estão prontos para cantar sua canção. — Haley parou ao lado dele, a dançaterminada.

— Puxa... — MacColla fechou a cara, ouvindo os músicos começar a tocar um dasodes de lain Lorn sobre ele. Tomou, outro gole de cerveja. — Detesto isso.

— Não pode culpá-los. Você insuflou coragem nos corações dos galeses, marido.

— Você fala como um desses malditos poemas. Haley apenas sorriu, radiante,balançando o corpo com a melodia. Depois, ficou na ponta do pé para murmurar em seuouvido:

— Talvez possamos pedir a lain Lorn que escreva alguma coisa sobre o misteriosoCavaleiro Negro. Sabe, algo como: "Um cavaleiro em negra armadura chegou para vingar-se, para que o clã MacDonald possa colher sua retaliação".

— Você tomou muita cerveja, leannan.

Ela deu uma risadinha quando MacColla deu um tapa em seu traseiro. Então,ergueu os olhos para ele, séria.

Em sua vida juntos, MacColla a vira usar vestidos e armas de fogo. E ela era tãolinda para ele em roupas elegantes quanto lutando com a barbatana do espartilho. Elabanhara seus bebês e os vira transformar-se em homens, repreendendo-os e beijando-ostambém, sempre ali, cheia de amor e conforto.

Agora, MacColla e Haley se postavam juntos, percebendo que seus filhos tinham setornado adultos.

Embora ela ainda tivesse muitos fios negros nos cabelos, estavam mesclados decinza, espelhando aqueles olhos insondáveis. Olhos que ele observara, incontáveis vezes,toldar-se de paixão, rir com ele, encher-se de lágrimas, faiscar ao vê-lo. E MacColla

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