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    TEORIA DO DISCURSO COMO SEMIÓTICA DOSFLUXOS1 

    Ronaldo Sales Jr.2 

    Clovis Alberto Vieira de Melo3 

    Resumo Este ensaio busca desenvolver, introdutoriamente, um modelo para uma

    Teoria do Discurso como teoria qualitativa (topológica) de relações

    quantitativas (distribuições estatísticas) associadas a efeitos de sentido(semióticos). Empregaremos a noção de “modelo” como obra de ficção,

    cujas propriedades podem ser reais, mas que são, via de regra,

    propriedades de conveniência, que ajudam a dar consistência ao modelo e

    a aplicar a teoria, mas não são necessariamente encontradas em situações

    reais. Nesse modelo, a compreensão dos campos de discursividade como

    campos de vetores estruturalmente estáveis, sua caracterização em termos

    de elementos constitutivos de um campo (pontos de equilíbrio, trajetórias)

    constitui ponto de partida para o estudo de mudanças estruturais

    (bifurcações), onde decisões desempenham papel estratégico naestabilidade das formações discursivas, sistemas regulados de dispersão.

    Tomaremos como fenômenos sociais delimitados para essa análise o

    sistema jurídico e o fluxo de justiça. O sistema jurídico é um dos lugares

    privilegiados para o estudo dos conflitos sociais como relações de poder

    que conduzem a uma formalização parcial dos fluxos de justiça. O fluxo

    de justiça atravessa todo campo social, articulando ações legais,

    1 Este ensaio é uma versão corrigida e melhorada do trabalho apresentado no Simpósio de

    Metodologias Qualitativas nas Ciências Sociais, realizado na UFPE, no primeiro semestre de 2007,por sua vez, resultante da adaptação de parte da tese de doutorado de SALES JR. (2006).2Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).3Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

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    extralegais ou contralegais (desobediência civil, revolução, insurreição,guerra civil...), convergindo (judicialização do conflito) ou não para o

    sistema jurídico, subvertendo-o ou transformando-o.

    Palavras-chave Teoria do discurso. Semiótica. Modelo. Sistema. Fluxo.

    DISCOURSE THEORY AS AN SEMIOTIC OF FLOWS

    Abstract This essay seeks to develop, introductorily, a model for a Theory of

    Discourse as a qualitative (topological) theory of quantitative relations

    (statistical distributions) associated with the effects of meaning (semiotic

    effects). Employ the notion of "model " as a work of fiction, whose

    properties may be real, but they are, usually, convenience properties,

    which help to give consistency to the model and apply the theory, but they

    are not necessarily found in real situations . In this model, understanding

    the discursive fields as structurally stable vector fields, their

    characterization in terms of the constituent elements of a field(equilibrium points, trajectories) is the starting point for the study of

    structural changes (bifurcations), where decisions play strategic role in the

    stability of discursive formations, regulated systems of dispersion. We

    will take as defined for this analysis social phenomena the legal system

    and the justice flow. The legal system is a central site for the study of

    social conflict and power relationships that lead to a partial formalization

    of the justice flow. The justice flow runs through the whole social field,

    articulating legal, extralegal or illegal actions (civil disobedience,

    revolution, insurrection, civil war ... ), converging (judicialization of theconflict ) or not for the legal system, transgressing it or changing it .

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    Keywords Theory of Discourse. Semiotics. Model. System. Flow

    1. Introdução

    Nosso objetivo neste ensaio é tentar desenvolver,

    introdutoriamente, um modelo para uma Teoria do Discurso como teoriaqualitativa (topológica) de relações quantitativas (distribuições

    estatísticas) associadas a efeitos de sentido (semióticos). Dentro da Teoria

    do Discurso, a compreensão dos campos de discursividade como campos

    de vetores estruturalmente estáveis, sua caracterização em termos de

    elementos constitutivos do campo (pontos de equilíbrio, trajetórias)

    constitui ponto de partida para o estudo de mudanças estruturais

    (bifurcações), onde decisões  desempenham papel estratégico na

    estabilidade das formações discursivas, sistemas mais ou menos regulados

    de dispersão.Tendo como marco teórico a teoria do discurso de Laclau (1985,

    1993, 1994, 1997, 1998), procuramos descrever a operacionalização

    daquelas teorias em um procedimento de análise que aliasse as dimensões

    dinâmica (trajetória dos corpos), topológica  (diferenciação dos corpos) e

    econômica (distribuição estatística dos corpos) dos discursos, como fluxos

    em um sistema social. Os corpos são entendidos como qualquer objeto

    morfologicamente delimitável, podendo ser um organismo, um corpo

    sonoro, uma idéia, um corpus  lingüístico, um corpo social.  Entendemos

    por fluxo a velocidade de um processo irreversível. Tentamos, assim,construir um modelo inspirado na topologia diferencial conforme

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    apresentada por Thom (1975, 1990 e 2004), Deleuze (2005 e 2006) ePetitot (1977, 2004).

    Por outro lado, a prudência nos sugere a explicitar nossas

    limitações. A “teoria das catástrofes” exige, para apreender todos seus

    aspectos, uma especialização em geometria analítica e topologia que vai

    além de nossos conhecimentos atuais. Limitar-nos-emos a utilizar seus

    casos mais simples, abrindo um caminho fecundo que deixamos para

    depois ou para outrem o cuidado de desenvolver. Ademais, o uso da

    estatística pressupõe o conhecimento e o domínio da noção de validade,

    avaliada mediante testes, muitas vezes complicados para utilizar.Evitaremos, neste ensaio, refinamentos conceituais e técnicos que

    certamente trariam resultados, mas que exigiriam uma penetração em um

    domínio que não é o nosso: a estatística matemática.

    2. Os modelos e a atividade científica

    Nesta secção, esclareceremos qual a concepção de modelo teórico

    que utilizamos neste ensaio. Estaremos empregando a noção de “modelo-

    réplica” proposta por Dutra (2005), na qual o modelo é uma entidadeabstrata ou contexto possível ao qual se aplicam direta e exatamente

    determinadas leis. Segundo esta concepção, os modelos ou réplicas são

    obras de ficção, cujas propriedades podem ser reais, mas que são, via de

    regra, propriedades de conveniência, isto é, propriedades que ajudam a dar

    consistência ao modelo e a aplicar a teoria, mas não são necessariamente

    propriedades a serem encontradas em situações reais. Algumas destas

    propriedades ou elementos do modelo são entidades teóricas não

    observáveis na realidade sensível, cuja existência é inferida dentro do

    contexto de uma determinada teoria T. Estar dentro de dito contexto, porsua vez, supõe a aceitação das observações  realizadas em T e de seus

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     postulados, ou seja, as afirmações admitidas sem questionamento por Tque são utilizadas como ponto de partida geral para seu desenvolvimento.

    Portanto, a substituição de T por T’, assumindo as observações e

    postulados de T’ no lugar das de T, levará a fazer-se referência a entidades

    diferentes. Destarte, as simplificações teóricas não significam, apenas, a

    abstração de certas propriedades do fenômeno real, mas, também, a

    inferência de propriedades não observáveis empiricamente (MOLINA,

    2005).

    Dutra (2005) apresenta, principalmente, exemplos advindos das

    teorias físicas. Os planos inclinados destituídos de atrito, por exemplo, sãodotados de propriedades de conveniência, haja vista que não se supõe que

    a falta de atrito possa ser encontrada em situações físicas reais, similares

    ao modelo. Destarte, o plano inclinado sem atrito é uma obra de ficção

    teórica, que é útil por permitir aplicar diretamente as leis da mecânica

    clássica. Sendo assim, o modelo é uma réplica idealizada de uma situação,

    ou contexto, ou sistema físico real. O plano inclinado idealizado é uma

    estrutura abstrata. E é para esse aspecto dos modelos idealizados que

    Dutra (2005) quer chamar a atenção quando fala em modelo-réplica. Além

    do papel de ponto de comparação com outros sistemas, como o sentido demodelo como analogia, pode-se considerar alguns modelos diretamente,

    como situações ou contextos logicamente possíveis, estruturas abstratas

    que podem ser consideradas diretamente e em si mesmas.

    O que ocorre é que o plano inclinado idealizado pode ser descrito

    por enunciados contrafactuais, ou seja, segundo a teoria em questão: se o

    mundo fosse tal como os objetos se relacionam em um tal modelo (o que

    eles de fato não o fazem), as leis da mecânica se aplicariam exatamente.

    O plano inclinado idealizado é, de fato,  possível, segundo a

    mecânica clássica, mas, em contrapartida, ele não é real  porque nãoacreditamos, com base na mesma teoria (ou nessa teoria com o acréscimo

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    de outras hipóteses sobre a natureza do mundo e a constituição damatéria), que seja provável que um plano inclinado com tais

    características possa ser construído (DUTRA, 2005, p.226).

    O modelo-réplica  é, portanto, um contexto ou relação ideal entre

    coisas que pode ser produzido fisicamente, conforme determinada teoria

    ou conjunto de teorias. Para construir um plano inclinado que se aproxime

    o mais possível do plano inclinado idealizado, deve-se seguir o que

    enunciam determinadas teorias, entre elas a mecânica clássica. Além da

    mecânica, as outras teorias necessárias para chegar a isso podem ser

    consideradas como um conjunto de teorias auxiliares. Neste sentido, osmodelos podem ser encarados como prescrições do comportamento dos

    cientistas na experimentação ou observação. Toda situação observável,

    experimental ou não, é determinada por um sistema de interpretação que

    se conforma a partir dos princípios próprios da teoria. A segurança ou

    evidência que se sente frente a uma situação observacional provém da

    confiança com que, na prática, usa-se sua linguagem observacional, ou

    seja, não existem fatos independentes das linguagens observacionais das

    teorias (MOLINA, 2005, p. 261).

    As leis da teoria só cabem nos modelos que, por sua vez, sãoapenas prescrições para construir determinados sistemas. Portanto, as leis

    da teoria não regem o comportamento dos fenômenos no mundo, mas

    daqueles que estão descritos num modelo da teoria e, portanto, que regem

    o comportamento dos cientistas que empregam a teoria. Seu compromisso

    é, portanto, metodológico, mais que ontológico:

    (...) em qualquer parte, antes de tudo, as leis científicas valem

    nos modelos, e são, portanto, padrões de comportamento.

    Normativa e metodologicamente, são prescrições de ação para

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    aqueles que desejam realizar a situação prevista no modelo(DUTRA, 2005, p.231).

    Figura 1 - Duas concepções acerca da noção de modelo (DUTRA, 2005).

    Por isso, Dutra (2005) defende, apesar dos exemplos retirados da

    física, que nas ciências humanas, falar de leis e estruturas nomológicas

    não seria nenhum tipo de reificação  precipitada ou ingênua, mas um

    expediente de modelagem próprio das ciências empíricas. Os modelos-

    réplicas seriam uma ferramenta para interpretar diretamente as teorias no

    domínio das ciências humanas em termos de situações logicamente

    possíveis, ou contextos sociais idealizados. E é neste sentido que

    utilizamos as noções de modelo e estrutura no presente ensaio.

    3. Teoria do Discurso

    Nossa orientação teórico-metodológica inscreve-se no campo da

    crítica da ideologia. Esta última é tratada como fenômeno discursivo,

    enfatizando sua materialidade e preservando a idéia de que ela refere-se a

    significados. Para uma teoria do discurso, a ideologia é menos um

    conjunto particular de discursos do que um conjunto particular de efeitos

    dentro dos discursos. Não existe prática a não ser através de uma ideologiae dentro dela. Porém, não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para

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    sujeitos. Por meio da interpelação, o sujeito “é chamado a existir”, éconstituído como sujeito pela ideologia. A “evidência” da identidade é o

    resultado de uma identificação-interpelação (responsabilização) do sujeito.

    Em seguida, será preciso desconstruir os sentidos-identidades fixados que

    promovem aquela “lei geral” dos fatos sociais, revelando as práticas

    articulatórias e de fixação dos sentidos-identidades que orientarão as ações

    sociais que reproduzem os fatos. Por exemplo, a fixação do processo de

    significação, de outro modo inexaurível, infinitamente produtiva, em torno

    de dominantes com os quais o sujeito pode identificar-se, supõe que certas

    formas de significação sejam excluídas silenciosamente, repelindo asforças desagregadoras, em nome da unidade imaginária do mundo da

    estabilidade ideológica.

    Por outro lado, a ambigüidade e a indeterminação podem

    encontrar-se como o outro lado dos próprios discursos ideológicos

    dominantes. Esses efeitos de determinação ou indeterminação são traços

    discursivos, não puramente formais, dependentes do contexto concreto da

    elocução, sendo variável de uma situação comunicativa para outra. A

    ideologia, pois, não pode ser isolada das formas concretas de intercâmbio

    social: os contextos sociais não são unitários nem homogêneos, mas sãopreenchidos por uma multiplicidade de interesses sociais em competição,

    fazendo da ideologia uma luta de interesses sociais antagônicos no nível

    da significação. Se a determinação semântica é politicamente positiva ou

    negativa (emancipatória ou opressora), depende da correlação de forças

    entre os interesses envolvidos no contexto discursivo e ideológico (Cf.

    EAGLETON, 1991, p. 171-177).

    Tais interesses sociais não são, contudo, fixos ou dados de

    antemão, mas são individuados ou identificados nos processos de

    interpretação instaurados pelo campo de força onde estão inscritos,integrados no conflito geral das forças. É próprio de uma teoria do

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    discurso pós-estruturalista ver todo discurso marcado inteiramente pelopoder e desejo e, logo, ver toda linguagem como inevitavelmente retórica.

    Uma teoria do discurso pode ser definida como uma perspectiva

    construtivista e relacional sobre as identidades sociais, combinada com

    uma ênfase na heterogeneidade do discurso. Não há discurso geral e

    homogêneo, mas uma diversidade de discursos que juntos constituem uma

    formação discursiva (Cf. TORFING, 1999, p.3). Uma formação discursiva

    constitui uma “matriz de significado” ou sistema de relações lingüísticas e

    não-lingüísticas dentro do qual são gerados processos discursivos efetivos.

    Na teoria do discurso desenvolvida por Laclau e Mouffe (1985), oespaço da hegemonia conduz para toda uma nova lógica e ontologia do

    social, resultante da "negociação entre superfícies discursivas mutuamente

    contraditórias" (grifo nosso). Hegemonia supõe um campo teorico-político

    delimitado pela categoria de articulação  e, por conseguinte, pela

    possibilidade de se distinguir/identificar os diferentes elementos que

    entram na composição de uma formação hegemônica.

    Em primeiro lugar, é preciso não confundir articulação com

    mediação. A articulação implica na construção de uma síntese, na qual a

    recomposição dos fragmentos é artificial, contingente, não repondo umaunidade orgânica original. No caso da articulação, a natureza das relações

    que se estabelecem entre os elementos tem que ser determinada, portanto,

    se as relações entre os elementos não são necessárias, as identidades

    desses elementos também não o são. O discurso que articula elementos ao

    mesmo tempo modifica suas identidades. A articulação é "toda prática que

    estabeleça uma relação entre elementos de modo que, em decorrência

    disto, suas identidades sejam modificadas" (p.). A totalidade resultante de

     práticas articulatórias é o discurso.

    O conceito de “articulação” passa pela discussão de conceitoscomo sobredeterminação  (ALTHUSSER, 1977), enunciação 

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    (BENVENISTE, 1988), regularidade em dispersão numa formaçãodiscursiva (FOUCAULT, 2002) e jogos de linguagem (WITTGENSTEIN,

    1996), bem como por uma reflexão sobre as categorias sujeito e

    antagonismo. As conclusões tiradas na elaboração de uma teoria da

    hegemonia como prática articulatória compreendem (i) a relação entre o

    sistema de diferenças em que se constitui um discurso e seu exterior; (ii) a

    abertura do social; (iii) a construção de pontos nodais. Apresentemos

    sinteticamente tais conclusões a seguir.

    O conceito de “discurso” passa pelas noções de sistematicidade,

    relações, diferenças,  contingência  e indecidibilidade  que constituem ohorizonte de sentido das identidades que ali encontram. Se uma totalidade

    discursiva nunca é um mero dado, uma positividade claramente

    delimitada, a lógica diferencial e relacional deve ser também incompleta e

    contingente.

    Deve-se abandonar, portanto, a premissa de uma "estrutura" como

    totalidade suturada e auto-referente. Não existe "estrutura" no sentido de

    um único princípio subjacente fixando e constituindo todo o campo das

    diferenças. É no terreno  da tensão insolúvel entre interioridade e

    exterioridade  que o social se constitui -  a necessidade só existe comolimitação parcial da contingência; a presença inerradicável do contingente

    no discurso define assim a possibilidade da negação de sua literalidade

    pela simbolização, metaforização, paradoxo, etc.. O social, portanto,

    enquanto resultante de práticas articulatórias, não se completa como um

    sistema fixo de diferenças.

    Por conseguinte, (i) nenhum termo de discurso é impassível de

    múltiplas leituras e nenhum discurso possui uma única interpretação

    possível, mesmo para seus partidários; e (ii) nenhum projeto consegue dar

    unidade plena ao social, incorporando ou pacificando todas as diferençasaí disseminadas (BURITY, 1997a). Desta forma, não há nem pura

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    interioridade, nem pura exterioridade. O campo das identidades sociais -como o da "estrutura social" - é o campo da sobredeterminação, ou seja, o  campo da discursividade, no qual os discursos operam, é sempre marcado

    pelo excedente de sentido, pelo transbordamento de toda tentativa de

    fechamento último. Por outro lado, as diferenças não são absolutamente

    refratárias a qualquer fixação, pois o seu fluxo só é possível se houver algum sentido, alguma forma de estabilização, ainda que parcial, em

    relação ao qual aquelas possam ser o que são. Laclau acredita, como

    Foucault, que não há princípio de coerência e que os discursos devem ser

    entendidos como sistemas mais ou menos regulados de dispersão. Se osocial não se completa como estrutura, por outro lado, ele só existe como

    esforço para construí-la. Os acontecimentos discursivos são dispersos, mas

    os efeitos ordenadores do sentido são fatores que dão certa regularidade

    que pode ser significada como uma “totalidade”. Contudo, a produção e

    reprodução desta estabilidade estrutural não têm qualquer sentido

    finalístico e, na maioria das vezes, não requer nenhum sentido precisável:

    basta que certas regularidades estatísticas estabeleçam posições

    diferenciáveis para que possamos falar de uma “estrutura” ou de um

    sistema de relações. A teoria da hegemonia tenta, pois, responder àquestão de como e onde os limites de uma formação discursiva são

    estabelecidos.

    O discurso é uma conseqüência de práticas hegemônicas de

    articulação que nos conduzem de um nível indecidível de abertura não

    totalizável de discurso para um nível decidível de discurso (TORFING,

    1999, p. 102). A indecidibilidade inicial não significa a impossibilidade de

    qualquer decisão, mas define a ausência de uma necessidade lógica, uma

    lei imanente ou uma relação de forma e conteúdo a exigir  a priori  um

    resultado em detrimento de outro. O discurso é definido como umconjunto de seqüências significantes, mas se a lógica relacional e

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    diferencial prevalece completa e decidível sem alguma limitação ouruptura, não haveria lugar para o político. Contudo, na ausência de um

    centro fixo, totalização completa e decidível, o discurso torna-se

    impossível. Portanto, haverá sempre algo que escapa aos processos,

    aparentemente infinitos, de significação no discurso. Este emerge do

    campo entre aqueles dois limites, absurdos por falta e por excesso,

    vagueza ou ambigüidade. A multiplicidade de centros mutuamente

    substituíveis apenas se dá sobre uma ordem precária, produzindo uma

    fixação parcial de significado, que produz um excesso irredutível de

    significados que escapam à lógica diferencial do discurso. Todo discurso éuma tentativa de dominar o campo da discursividade, deter o fluxo das

    diferenças, construir um centro, estabelecendo uma estabilidade

    estrutural. Os pontos discursivos privilegiados dessas fixações parciais

    constituem-se nos  pontos nodais  que são alvos e resultados das lutashegemônicas numa dada formação social (BURITY, 1997a).

    Com efeito, se o espaço hegemônico não é único, não reconstitui a

    totalidade do social sob um único princípio articulatório, a Hegemonia é

    um tipo de relação política, uma  forma de política, uma lógica social, e

    não um lugar determinado numa topografia do social. Numa dadaformação social pode haver vários centros hegemônicos (pontos nodais),

    sem que eles se relacionem entre si, necessária e/ou hierarquicamente

    (sistema de mediações). Nesta perspectiva, a noção de hegemonia de

    Laclau envolve a articulação de identidades sociais em um contexto de

    antagonismo social.

    Alguns desses pontos nodais são altamente sobredeterminados,

    constituindo-se em pontos de condensação de diversas relações sociais,

    numa espécie de pólo gravitacional. Mas a instabilidade e a parcialidade

    constitutivas destes centros hegemônicos os impedem de apelar para

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    alguma legalidade imanente da história ou de reservarem-se a últimapalavra como fundamento da organização e administração do social.

    As articulações dos elementos do discurso operam num campo

    cruzado por projetos articulatórios antagonistas que Laclau (1986)

    denomina de  práticas hegemônicas, nas quais se dá a

    articulação/desarticulação das práticas e papéis sociais, conforme a

    constituição das diversas identidades sociais, que estão sujeitas àquelas

    práticas articulatórias, não sendo intrínseca ou integralmente adquiridas,

    definitivamente constituídas.

    Uma ideologia hegemônica reflete não apenas a visão de mundodos dominantes, mas as relações entre grupos dominantes e dominados

    como um todo. A ideologia hegemônica é polifônica: “(...) é um domínio

    de contestação e negociação, em que há tráfego intenso e constante:

    significados e valores são roubados, transformados, apropriados através de

    fronteiras de diferentes classes e grupos, cedidos, recuperados,

    reinfletidos” (EAGLETON, 1997, p.96). Um grupo hegemônico é aquele

    capaz de deixar seu momento corporativo, particularista, e interpelar e

    organizar uma “vontade coletiva” muito maior e mais complexa.

    Em termos práticos, uma hegemonia é uma aliança de forças, e suavisão de mundo é o resultado de uma síntese de vários componentes

    ideológicos em uma “vontade coletiva”. Já nas práticas discursivas, são

    produzidas, reproduzidas, questionadas e transformadas as estruturações

    hegemônicas. A desconstrução revela o caráter discursivo e, logo,

    contingente de todas as identidades sociais e seu substrato político, ou

    seja, as/os identidades/interesses sociais não são o ponto de partida da

    política, mas algo que é construído, mantido ou transformado nas e através

    das lutas políticas (Cf. TORFING, 1999, p.82).

    A desconstrução se caracteriza por destacar um elemento dodiscurso analisado cuja ambigüidade, contraditoriedade ou oscilação de

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    sentido revelaria a abertura de sentido do discurso, assim como aarbitrariedade da decisão tomada pelo sujeito (individual ou coletivo) na

    tentativa de controlar o deslizamento de sentido, ou seja, a instabilidade

    semântica de seu próprio discurso, sempre sujeito a ambigüidades, mal-

    entendidos, mal-ditos, não-ditos...:

    El análisis[...], debe comenzar por las identidades ‘objetivas’

    explícitas de los agentes sociales – aquellas que los

    constituirían en su ‘plenitud’ como agentes – y subrayar luego

    las dislocaciones que impurifican esa plenitud.[...] Estudiar las condiciones de existencia de una cierta

    identidad es equivalente [...] a estudiar los mecanismos de

    poder que la hacen posible (LACLAU, 1993, p.48).

    A hegemonia significa articulação contingente, “externalidade” da

    força articuladora em relação aos elementos articulados, não podendo ser

    pensada como uma separação efetiva dos níveis no interior de uma

    totalidade plenamente constituída. A intervenção  hegemônica  é uma

    intervenção contingente efetivada num campo marcado por oposiçõesindecidíveis. Esta intervenção materializa-se através de uma decisão ética,

    introduzida como um elemento “externo” (“exterior constitutivo”), a fim

    de fixar o sentido ou suturar a abertura marcada pela indecidibilidade, ou

    seja, o conjunto de regras que define o sentido não o determina de forma

    unívoca, mas exige uma série de atos de decisão que supere a

    indeterminação.

    O antagonismo é o limite de toda objetividade, de toda identidade,

    enfim, de toda fixação de sentido (Cf. MENDONÇA, 2003). O

    antagonismo social põe em questão o sentido das estruturas e instituições

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    sociais, tornando-as dependentes de movimentos estratégicoscontingentes:

    La estrategia implica (...) un momento de articulación – la

    institución de lo social –; un momento de contigencia, en la medida en que

    ese acto instituyente particular es solo uno entre aquellos que resultan

    posibles en un contexto dado, y un momento de antagonismo, puesto que

    la institución resulta posible tan solo a través de una victoria hegemónica

    sobre voluntades en conflicto (LACLAU, 1998, p.135).

    Neste ponto, entra em cena a noção de poder: toda decisão implica

    reprimir ou subordinar outras decisões possíveis. O poder para Laclau éambíguo, pois reprimir algo supõe a capacidade de reprimir, porém supõe,

    também, a necessidade de reprimir, o que implica limitação de poder. Isto

    significa que o poder é a marca da contingência (LACLAU, 1993a).

    Todo sujeito para Laclau é por definição político, fora do qual só

    existem posições de sujeito no campo geral da objetividade. Porém, o

    sujeito não pode ser objetivo, pois se constitui nas margens irregulares da

    estrutura. (BURITY, 1997a).

    4. Sentido como Tensão e Significação: por uma semiótica dos fluxos

    4.1 Teoria do Discurso e Sentido.

    a) o sentido para além da significação

    O sentido é articulado em um discurso que, por sua vez, constitui-

    se no interior de um campo de discursividade, campo de excedentes

    irredutíveis que fornece os parâmetros de uma fixação parcial de sentido.

    O sentido é fixado pelas práticas articulatórias do discurso que é

    concebido como um conjunto diferencial de seqüências significantes noqual o sentido é constantemente renegociado, como uma totalidade

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    significativa. O sentido de um discurso é, pois, historicamente construídoa partir de diferenças em um sistema de relações puramente negativas.

    Segundo Petitot (2004), o que falta à abordagem estruturalista é

    uma geometria de posição, uma topologia que torne possível a

    matematização dos conceitos de estabilidade  estrutural  e de valor

     posicional. Ora, é precisamente a morfodinâmica que dispõe de uma

    topologia servindo de base dinâmica ao estruturalismo que se transforma,

    por esta via, em estruturalismo morfodinâmico. A “topologia

    morfodinâmica” seria a chave para a constituição da objetividade

    estrutural, uma vez que, permitindo a matematização dos conceitosestruturais, os esquematiza, evitando um formalismo vazio de conteúdo.

    A partir do exposto, a linguística e a matemática são utilizadas

    como teorias auxiliares e recursos metodológicos para operacionalização

    das Teorias do Discurso de Laclau. Acreditamos, assim, poder contribuir

    para superar as interpretações idealistas, formalistas ou subjetivistas da

    Teoria do Discurso, conforme proposta por Laclau, sem abrir mão, por um

    lado, da definição ampliada de discurso, para além de seu componente

    lingüístico, e, por outro, do caráter aberto das estruturas discursivas.

    Nessa abordagem, a teoria do sentido, portanto, abre-se a umatopologia diferencial, na qual cada significado é relativo a uma

    perspectiva da força, a um sistema de intensidades. A teoria do discurso

    concentra-se nos pontos de intersecção de significado e força. Mas, para

    tal, não é suficiente considerar a linguagem do ponto de vista da

    designação ou da significação, que transformaria a linguagem na mera

    representação do objeto. O sentido não é, pois, redutível à significação ou

    à designação.

    Outra maneira de distinguir a significação e o sentido é que,

    enquanto a primeira é “ruidosa”, o segundo é “silencioso” (não-dito,pressuposto), pois nunca digo o sentido daquilo que digo. O sentido de um

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    enunciado n  só é dito (designado) por outro enunciado n+1, e, assim,sucessivamente, numa seqüência infinita. O sentido é como a esfera em

    que estou instalado para operar as designações possíveis, e, mesmo, para

    pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que eu

    comece a falar, o que seria impossível sem aquela pressuposição.

    Portanto, nunca digo o sentido daquilo que digo (cf. DELEUZE, 1999,

    p.39-44). Quando perguntamos o que quer dizer esta palavra ou

    enunciado, as respostas dadas são sempre apenas paráfrases ou

    comentários, traduções mais ou menos inexatas de palavras ou enunciados

    por outras palavras ou enunciados. A significação é, portanto, estatransposição de um nível de linguagem a outro, e o sentido é apenas esta

    possibilidade de transcodificação (GREIMAS, 1975, p.13).

    Em termos lógicos, a significação é a condição de verdade de uma

    proposição, ou seja, o conjunto das condições sob as quais uma

    proposição “seria” verdadeira. A condição de verdade não se opõe ao

    falso, mas ao absurdo: o que é sem significação, o que não pode ser

    verdadeiro nem falso. Uma proposição falsa, ao contrário, tem uma

    significação e um sentido. E uma proposição absurda tem um sentido.

    A referência ou designação é o que, sendo preenchida, faz com quea proposição seja verdadeira; e não sendo preenchida, falsa. Toda

    designação supõe, pois, um sentido. Segundo a lógica do sentido de

    Deleuze (1999), as proposições que designam objetos contraditórios têm

    um sentido. Sua designação, porém, é impossível, e elas não têm

    significação alguma, ou seja, são absurdas. Nem por isso deixam de ter

    sentido. As noções de absurdo e de não-senso não são sinônimas. O

    princípio de contradição se aplica ao real (designação) e ao possível

    (significação), mas não ao impossível: “Quadrado redondo”, “matéria

    inextensa”.

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    O sentido não é, pois, redutível à significação  ou à designação,mas envolve uma intensificação. A “significação” aparece como o

    significado “literal” do enunciado produzido pelo ato locucionário

    (componente lingüístico). O “sentido” é produzido pelos efeitos

    contextuais do ato ilocutório (componente retórico) que fazem com que

    uma mesma significação venha a ter sentidos diferentes. Segundo Ducrot

    (1977), o ato ilocutório, como todo ato, é uma atividade destinada a

    transformar a realidade. Essa transformação é de natureza jurídica. Todo

    ato ilocucional é um ato jurídico na medida em que coloca em jogo uma

    mudança nas relações legais entre os interlocutores, personagens dodiálogo. Por exemplo, o ato ilocutário de perguntar tem como propriedade

    colocar o interlocutor na obrigação de responder, sujeito, portanto, de uma

    obrigação. Para Ducrot, o ato ilocutório tem um caráter intencional, isto é,

    os direitos e deveres colocados por esse ato são determinados pela

    existência de uma intenção, ligada a esse próprio ato. No entanto, esse

    universo de direitos e deveres pode ser recusado pelo destinatário. Essa

    recusa pode se fazer por meio do ato ilocutório de refutação.

    A questão central do sentido das coisas, com efeito, não é a da

    adequação ou das essências, mas a da forma em movimento e a domovimento na forma. Deste movimento se infere a força. Estas

    morfologias engendradas no discurso são primeiramente reconhecidas

    pela linguagem o que faz com que se “modelize” ao mesmo tempo os

    acontecimentos e a semântica dos termos que os exprimem.

    b) o sentido como tensão

    O discurso é uma consequência de práticas articulatórias que nos

    conduzem de um nível indecidível (sem-sentido,  absurdo, paradoxal,

    sobredeterminado, ambíguo ou vago) de abertura não totalizável dediscurso para um nível decidível (definido) de discurso. A articulação

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    implica na construção de uma síntese, na qual a recomposição doselementos é artificial, contingente, estabelecendo uma relação entre tais

    elementos de modo que, em decorrência disto, suas identidades sejam

    modificadas. O sistema social, portanto, enquanto resultante de práticas

    articulatórias, não se completa como um sistema fixo de diferenças As

    práticas articulatórias se constituem, assim, num processo progressivo de

    individuação ou morfogênese que procede por estruturação do meio fluido

    ( fuzzy), relacionando diferenças de ordem de grandeza e de energia

    (“disparidades de potencial”) que forçam o sistema a reorganizar-se em

    um novo estado mais equilibrado: as transformações de energia de umsistema fechado tende a reduzir as diferenças de intensidade, passando de

    um estado improvável para um estado mais provável. Contudo, como

    vimos, um sistema social não é um sistema fechado.

    Os sistemas sociais caracterizam-se por suas propriedades

    morfogenéticas, ou seja, em lugar de passar ao seu estado mais provável

    de organização mínima (equilíbrio) ou preservar uma estrutura fixa

    (homeostase), criam, elaboram ou mudam a estrutura como condição para

    permanecerem operantes (BUCKLEY, 1971, p.20). Nos sistemas sociais,

    algumas flutuações ou oscilações, em vez de regredirem, por umarealimentação ( feedback ) negativa, podem se amplificar, conforme uma

    realimentação positiva, invadir todo o sistema, fazendo-o mudar para um

    novo regime de funcionamento qualitativamente diferente das categorias

    sociológicas extensivas ou das identidades sociais determinadas, estados

    estacionários definidos. Nesse processo criador, as singularidades do

    sistema “metaestável” (hegemônico) de partida (a configuração topológica

    das energias, o estado dos gradientes extensivos, o valor posicional dos

    elementos etc.) têm um papel ativo na morfogênese da identidade.

    É no terreno  da tensão insolúvel entre interioridade eexterioridade  que o sistema social se constitui (cf. BUCKLEY, 1971 e

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    LUHMANN, 2009). A diferença é princípio tensor do campo que seconstitui como a tensão da pluralidade, jogo de intensidades desiguais,

    cujo resultado é a redistribuição das forças como resultante do conflito, ou

    seja, da diferença intensiva em ato. Quem diz intensidade, diz diferença e

    variação. De um lado, a intensidade é a forma da diferença como razão do

    sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si mesma. Por outro

    lado, a variação exige um conjunto de forças que troquem entre si as

    intensidades e mudem as atividades de cada uma. Uma pequena energia,

    simultaneamente, produz a força e codifica: separa segmentos de cadeia,

    organiza as extrações de fluxo, reparte as partes que cabem a cada um. Astransformações ou fluxos de energia só são possíveis graças às diferenças

    de intensidade, presentes no interior de um sistema. É deste campo

    intensivo que emergem as identidades, segundo um processo de

    individuação constituído por práticas articulatórias.

    Na experiência concreta, a energia  é sempre específica,

    manifestada no momento como movimento e  força; virtualmente é

    situação, é condição. Quando em ato, a energia manifesta-se nos

    fenômenos sociais dinâmicos, tais como as distribuições, os desvios, o

    querer, os afetos, a atuação, o trabalho, a força produtiva, etc., que são justamente  forças sociais. Quando virtual, a energia aparece nas

    tendências, disposições, possibilidades, aptidões, no capital, no meio de

    produção, que são condições sociais. A função da energia é descrever as

    relações quantitativas entre as forças e as disposições que, por seu turno,

    são qualitativamente definidas, pois são conceitos que expressam

    qualidades que se tornam eficazes mediante energia.

    4.2 Teoria e Cálculo do Discurso: análise diferencial do sentido.

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    As propriedades do discurso têm, portanto, por modelo umatopologia diferencial. E a análise do discurso é, em primeiro lugar, uma

    análise diferencial. O cálculo diferencial oferece o exemplo mais abstrato

    daquilo que os estruturalistas chamam de estrutura, de uma totalidade em

    que a diferença entra em relação com a diferença e “faz sistema”, sem

    pressupor nenhuma semelhança e identidade fixa.

    Esse modelo matemático não é necessariamente quantitativo. Não

    há nada nas noções de limite de uma função ou de continuidade de uma

    função que envolva essencialmente número. Tais noções podem ser

    generalizadas de modo a serem aplicadas às séries ou seqüências em gerale não apenas às que são numéricas ou numericamente mensuráveis (Cf.

    RUSSEL, 1963).

    A aproximação com o cálculo diferencial pode parecer arbitrária e

    ultrapassada. Mas o que está ultrapassada é somente a interpretação

    infinitista do cálculo. Já no fim do século XIX Weiertrass dá uma

    interpretação finita, ordinal e estática, muito próxima de um

    estruturalismo matemático (DELEUZE, 1999, p.53 nota 2).

    Estas noções e outras serão importantes na construção do modelo

    que estamos propondo do discurso como um conjunto diferencial deseqüências significantes. Passemos, então, à interpretação de tais noções

    matemáticas nos termos da Teoria do Discurso.

    Neste modelo, o sentido, como linha de força que atravessa e

    conecta os elementos do discurso, nunca pára, mas muda de direção,

    conforme dobras ou irregularidades no espaço social que percorre, dobras

    que, por seu turno, geram efeitos de sentido: indecidibilidades,

    ambigüidades, indeterminações, ambivalências, modalizações,

    contradições..., produzindo uma bifurcação da linha de sentido (figura 2).

    O sentido é a integração ou articulação de pequenas mudanças de direção,produzindo uma singularidade  no fluxo dos eventos, ou seja, o sentido

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    parte de uma inflexão ou bifurcação na univocidade. Matematicamente,uma singularidade  é geralmente um ponto no qual um dado objeto

    matemático não é definido, ou um ponto de um conjunto excepcional onde

    ele não é "bem comportado" de alguma maneira particular.

    Topologicamente, a singularidade  é um ponto crítico que diferencia os

    pontos ordinários antes e depois, aquém e além dela. E a mudança de

    direção, por menor que seja, introduz o sentido.

    A estrutura elementar do discurso é, pois, a singularidade,

    mudança na direção de um percurso (máximos, mínimos, inflexões,

    bifurcações...), dobra sobre uma superfície. Em um  per-curso  qualquer,produz-se, imediata e aleatoriamente, divisão, diversão de direção, dis-

    curso. Para que haja movimento  para, sentido (significado e força, carga

    semântica e vetor semântico), é preciso um diferencial, diferença de

    potencial, uma rotação ou um ângulo que gira em um campo de

    discursividade que, no fundo, não tem sentido, é ausência de sentido, não-

    senso (cf. SERRES, 2003, p.226 e DELEUZE, 2006).

    A dobra4 é a continuidade do avesso e do direito, de modo que o

    sentido na superfície se distribui dos dois lados ao mesmo tempo.

    Contudo, não há nenhum sentido quando tudo tem a mesma direção. Mas,também, não há sentido quando tudo está em todas as direções (SERRES,

    2003: 224). Este é o caso da indecidibilidade  conforme definida por

    Laclau (1998). Como vimos acima (secção 3.1), a indecidibilidade define

    a ausência de uma necessidade lógica, uma lei imanente ou uma relação

    de forma e conteúdo a exigir a priori  um resultado em detrimento de

    outro.

    4  Deve-se, aqui, entender “dobra” não como a denominação específica, mas como a

    denominação genérica das sete singularidades ou catástrofes-acontecimentos elementaresidentificadas por René Thom: a dobra, a cúspide, a cauda de andorinha, a borboleta, o umbigohiperbólico, elíptico, parabólico. Neste sentido, entende-se a cúspide como um tipo de dobra, assimcomo a dobra propriamente dita.

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    Em termos formais, a indecidibilidade  pode ser definida como aimpossibilidade de decidir em cada caso particular se uma dada

    proposição formulada (parametrizada) no simbolismo do modelo T, podeser reconhecida como válida em T (Cf. TARSKI, 1953, p.3). Já que aestrutura de T  é indecidível, não há possibilidade de fechamentoalgorítmico, ou seja, a decisão não pode estar, em última instância,

    baseada em nada externo a ela mesma: 

    (...) una verdadera decisión es algo mayor que un efecto derivado

    de una regla de cálculo y algo distinto de él. Una verdadera decisión

    siempre escapa a lo que cualquier regla puede esperar subsumir. (...) ladecisión tiene que estar basada em sí misma, en su propia singularidad

    (LACLAU, 1998, p.109-110).

    Um ponto de indecidibilidade é um ponto de bifurcação (cúspide)

    onde opções indecidíveis não ditam em si mesmas as condições ou razões

    de sua escolha, deixando, após a escolha, o rastro das alternativas

    preteridas que a assombram daí por diante.

    Figura 2 - Cúspide e Bifurcação

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    A superfície plana é o caráter de um campo de discursividade. O

    mais profundo é a pele: é seguindo a fronteira, margeando a superfície que

    passamos dos corpos aos sentidos (cf. DELEUZE, 1999). O sentido de um

    discurso é um efeito de superfície, inseparável da superfície como de sua

    dimensão própria. Resultado das relações corporais, de suas ações e

    paixões, das práticas discursivas, o sentido é sempre um efeito: efeito de

    superfície, efeito de posição, efeito de linguagem (“efeito Carroll”

    (DELEUZE, 1999, p.73)). Os corpos e suas misturas produzem o sentido,

    não em virtude de uma individuação ou identidade que o pressuporia. Aindividuação dos corpos e sua ordenação supõem o sentido e o campo de

    discursividade em que ele se desdobra. Portanto, o sentido é produzido

    pelos corpos tomados na sua profundidade indiferenciada, na sua pulsação

    sem medida que age por seu poder de organizar superfícies, de se envolver

    em superfícies, ora pela formação de um mínimo de superfície para um

    máximo de matéria (a forma esférica), ora pelo acréscimo das superfícies

    e sua multiplicação segundo procedimentos diversos (estiramento,

    fragmentação, dobra, corte...). (DELEUZE, 1999, p.129). O discurso é

    feito, pois, desta topologia de superfície e tem cinco característicasprincipais:

    1.  As singularidades correspondem a séries heterogêneas que se

    organizam em um sistema nem estável nem instável, mas “metaestável”,

    provido de uma energia potencial em que se distribuem as diferenças em

    séries.

    2.  As singularidades participam de um processo de auto-

    unificação, processo articulatório sempre móvel e deslocado na medida

    em que um elemento paradoxal percorre as séries, envolvendo os pontos

    singulares correspondentes em um mesmo ponto de indecidibilidade etodas as emissões, todos os lances em uma mesma decisão.

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    3. 

    As singularidades ou potenciais são inscritos na superfície.Todo o conteúdo do espaço interior está topologicamente em contato com

    o conteúdo do espaço exterior sobre seu limite.

    4.  A superfície é o lugar do sentido. Os signos têm sentido

    quando entram na organização de superfície, que implica, ainda, nem

    unidade de direção, nem comunidade de função, os quais exigem um

    escalonamento sucessivo dos planos de superfície.

    Segundo Deleuze (1988b), para Foucault, a regularidade das

    enunciações é a linha da curva que passa pelos pontos singulares, ou

    valores diferenciais do conjunto enunciativo. Da mesma forma, asrelações de força são definidas pela distribuição de singularidade dentro

    de um campo social. O dispositivo foucaultiano é uma espécie de novelo

    ou meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza

    diferente, que não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua

    própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções

    diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio. Cada linha está

    quebrada e submetida a variações de direção (singularidades) submetidas

    a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças

    em exercício, os sujeitos numa determinada posição são como que vetoresou tensores.

    As singularidades se distribuem em um campo semântico

    propriamente “problemático” (indecidível) e advêm neste campo como

    acontecimentos topológicos aos quais não está ligada nenhuma direção. O

    “problemático” e a indeterminação comportam, pois, uma definição

    plenamente objetiva. A natureza das singularidades dirigidas e sua

    existência e repartição sem direção dependem de instâncias objetivamente

    distintas.

    Todavia, as indecidibilidades geradas na superfície discursiva nãosão suficientes para explicar a assimetria hegemônica entre as decisões

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    ético-semânticas, pois aquelas produzem apenas a sobredeterminação e aimprevisibilidade das decisões possíveis, ou seja, produzem, segundo o

    modelo formal que estamos propondo, uma bifurcação no fluxo dos

    eventos, resultante de uma zona de instabilidade semântica, que parte de

    um ponto de indecidibilidade. Mas a indecibilidade, por definição, não

    explica por que o fluxo segue um sentido  e não outro. A noção de

    indecidibilidade obriga-nos a abandonar a descrição de trajetórias

    individuais (ações) para adotarmos descrições estatísticas, pois é no plano

    estatístico que podemos evidenciar o aparecimento de uma simetria

    temporal quebrada (o sentido), efeito de um atrator (o poder).A instituição de uma decisão ético-semântica depende, não de

    sujeitos diferenciados como causa de enunciados, mas de formações

    impessoais que estabelecem a condição de aparecimento de enunciados e

    palavras de ordem, sentenças e máximas, sendo responsáveis pelos

    processos de formação de sujeito. Teoricamente anterior a toda

    subjetividade, ou mesmo, intersubjetividade, se coloca um interminável

    fluxo de discurso indireto livre, um burburinho, nem em primeira nem em

    segunda pessoa, um “fala-se” indeterminado.

    Portanto, segundo este modelo, a decisão ético-semântica édescrita como uma variável aleatória discreta. Na medida em que são

    indecidíveis, os ramos da bifurcação deveriam ter iguais probabilidades

    ( p•= p•=1/2, sob a hipótese nula Ho, ou seja, não há diferença estatística

    entre os eventos possíveis), conduzindo a um fluxo simétrico de eventos

    (• e •).

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    Figura 3 - Indecidibilidade e Bifurcação

    Contudo, a quebra dessa simetria deve ser produzida pela presença

    de alguma intervenção hegemônica   que produz uma força “exterior” que

    aumenta a freqüência relativa de um ramo da bifurcação de eventos sobre

    o outro, de uma decisão sobre outra, de um sentido X, sobre outro Y,

    reduzindo a ambiguidade do discurso. À toda definição ou fixação de

    sentido, ou seja, à toda decisão ético-semântica corresponde um campo de

    forças, uma correlação: todo sentido, todo sujeito, toda identidade é uma

    perspectiva que se superpõe violentamente a outras.

    A pura indecidibilidade não é suficiente para conduzir à decisão. É

    preciso, também, certo “potencial motivacional”, função da crença (força

    de distinção, de afirmação e negação) e do desejo (força de movimento, de

    conexão e dissolução), que superam, respectivamente, a entropia e a

    inércia sociais5. Assim, a intervenção hegemônica é a expressão do

    aumento da intensidade da crença (convicção) e do desejo (apetite6), da

    opinião e da vontade, enfim, do significado e da força como atualizações

    5Desejos e crenças são inferências causais. O desejo é a causalidade interna a um corpo ou sistemade corpos (pulsão) de uma imagem que se refere à existência do objeto ou estado de coisas

      a crença é a espera deste objeto ou estado de coisas, enquanto sua existência deveser produzida por uma causalidade externa a um corpo ou sistema de corpos. Cf. DELEUZE, 1998.6A palavra apetite designa o estado de um organismo afetado por uma   a palvra desejorefere-se ao sentimento consciente de um apetite e à consumação ou frustração de um apetite.

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    de um potencial motivacional (Epot)7

      em um campo de discursividade(figura 4):

    Figura 4 - Cúspide e Energia Potencial

    Ou se atinge o mínimo absoluto do potencial Epot em dois pontos

    distintos X e Y, ou seja, dois pontos de conflito, ou o mínimo absoluto do

    potencial, atingido num único ponto X deixa de ser estável (ponto de

    bifurcação). Há dois regimes estáveis em conflito, dois mínimos e apenas

    um pode dominar num ponto regular:

    ! " # $

    % # & ! '

    % # 

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    Figura 5 - Pontos de Equilíbrio

    Figura 6 - Cúspide, Energia Potencial e Distribuição

    Nestas representações gráficas da energia potencial (figura 4, 5 e

    6) derivadas da curva representada pela figura 3, a figura central é uma

    “cúspide” em cujo interior há dois regimes estáveis em conflito: há mais

    de um mínimo, e apenas um pode dominar num ponto regular. Estacúspide representa em nosso modelo a situação indecidível como discurso

    ambíguo ou equívoco, onde os sentidos X e Y têm o mesmo “peso”, sendo

    o ponto de maior instabilidade semântica (equilíbrio instável), tendendo

    então a tomar as formas das figuras ou da esquerda ou da direita, nas quais

    um dos sentidos tem cada vez menos peso em relação ao outro até que um

    dos sentidos torna-se hegemônico (figura 7).

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    Figura 7.1 – Campo de Discursividade

    A figura 7.2 apresenta, como exemplo, a aplicação etológica deste

    modelo a comportamentos animais alternativos na superfície de

    comportamento: neutralidade, evitação, fuga, retirada, ataque,

    rosnadura..., variando conforme o conflito na superfície de controle entre

    medo (X) e cólera (Y):

    ∂∂∂∂

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    Figura 7.2 – Campo de Discursividade

    A intensidade da força hegemônica é dada pelo Coeficiente de

    Hegemonia •  (cf. Figura 3)  que  mede a inclinação ou o “ângulo decontingência” entre as trajetórias possíveis. Quando •  tende à zero, o

    ângulo é máximo, ou seja, as trajetórias divergem. O ângulo de

    contingência é formado pela curva e sua tangente (ou por dois arcos de

    circunferência que se tocam num ponto), sendo por isso,

    demonstrativamente mínimo – “quase nulo”. É nulo, mas sem

    superposição das linhas (ou arcos) que o compõem. Portanto,

    geometricamente, o ponto de indecidibilidade •  é um ângulo decontingência (figura 7).

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    Em uma análise qualificativa, X e Y podem ser modelizados comoos núcleos de subconjuntos  fuzzy  (vagos, imprecisos), ou seja, os

    conjuntos de todos os elementos cujo grau de pertinência é total. Assim,

    quanto maior esta diferença, maior deve ser a diferença na proporção das

    decisões tomadas nos fluxos sociais, ou seja, a assimetria na distribuição

    das decisões ou dos corpos sociais é inversamente proporcional à

    ambiguidade de sentido. Desta maneira, X e Y, também, podem ser

    modelizados estatisticamente pelos parâmetros p e q, cujo produto mede a

    heterogeneidade dos elementos de uma população: a ambiguidade de

    sentido é diretamente proporcional a tal heterogeneidade.A propriedade notável daquelas bifurcações, portanto, é a sua

    sensibilidade, pois pequenas variações, “flutuações” no campo de

    discursividade conduzem à escolha preferencial de uma decisão em vez de

    outra, de um sentido no lugar de outro, bastando para romper a simetria

    (•  = 0 •• •  0). Uma pequena perturbação amplifica-se, e trajetóriasinicialmente próximas divergem. Se toda flutuação fosse suprimida do

    campo de discursividade, o fluxo se manteria na ramificação semântica

    instável, ou seja, ambígua.

    Toda descrição estatística de um sistema social é, portanto, apenaso ponto de partida que orienta a análise dos mecanismos simbólicos e

    semânticos que produzem os fluxos sociais, mecanismos que por sua vez

    devem ser desconstruídos para evidenciar o antagonismo social, os

    processos articulatórios e as relações de poder subjacentes a estes

    mecanismos e que os instituem, ao mesmo tempo em que os tornam

    contingentes.

    O uso da descrição estatística não visa à construção de um modelo

    de previsão probabilística dos fenômenos sociais, modelo no qual as

    freqüências ou percentagens menores seriam consideradas meros desviosou erros de uma curva de regressão (linearização). Ao contrário,

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    procuramos construir um modelo não-linear que evidencie aimprevisibilidade e irreversibilidade próprias da dinâmica dos fluxos

    sociais, onde as freqüências menores indicam dispersão de pontos, linhas

    de fuga, contra-tendências, divergências, processos contra-hegemônicos.

    A estatística deve funcionar como uma espécie de diagnose de

    sintomas (indicadores) que permita a identificação de  zonas de agitação,

    de surgimento de uma nova série, de um novo fluxo, de uma nova

    intensidade, de uma nova prática, uma nova percepção, enfim, de uma

    nova identidade/entidade social. Toda entidade contável, toda categoria

    extensiva, identidade nominável e/ou mensurável sempre se refere a umamultiplicidade de componentes intensivos de forças, e não a uma essência

    unitária, pois, trata-se, no social como no discurso, da interpenetração e

    síntese parcial dos elementos e não de uma justaposição e adição  partes

    extra partes (partes mutuamente exclusivas)8.

    Ao contrário, os sistemas sociais induzem sempre conexões

    transversais, disjunções inclusivas, conjunções polívocas, articulações pré-

    pessoais e trans-individuais, produzindo assim extrações, separações,

    individuações, numa morfogênese generalizada cujos elementos são os

    fluxos. Tais sistemas podem ser descritos como conjuntos  fuzzy, segundouma lógica vaga e polivante. Um subconjunto  fuzzy  é definido por uma

     função de pertinência  cujo valor representa o grau de pertinência

    (identidade) de um elemento a um conjunto dado: um elemento é mais ou

    menos pertencente a um conjunto (TAKAHASHI, 2004, p.5).

    A “coisa em si”, o objeto dinâmico, está em alguma parte ou

    esteve, e o problema da estatística como na hermenêutica é interpretar

    sinais para fazê-lo reaparecer: “(...) não há um eu que se identifica com

    8Governada pelo princípio da identidade, a lógica formal não admite senão determinações“identitárias” isoladas, “exteriores” uma às outras. Ela repousa sobre a “fixidade” (e não aestabilidade) da identidade, sobre a permanência a priori de uma identidade não regulada.

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    raças, com povos, com pessoas, sobre uma cena de representação, masnomes próprios que identificam raças, povos e pessoas com regiões,

    limiares ou com efeitos de produção de quantidades intensivas”

    (DELEUZE & GUATTARI apud  ANJOS, 2006, p.23). Porém, um campo

    molecular e intensivo ferve sob as categorias extensivas. As categorias

    extensivas são compreendidas, então, como estados estacionários para os

    quais um sistema é suscetível de evoluir, termos estáveis de uma

    transformação irreversível.

    Interpretar dados é, pois, buscar, nas profundezas, o movimento

    das forças: que forças foram intensificadas? Que forças combatidas? Queidentidades reforçadas e que identidades destruídas? Que valores e crenças

    fazem variar as intensidades e oscilar as distribuições de poder? Como

    medir objetivamente um valor ou crença? Unicamente com a quantidade 

    de potência que foi aumentada  e organizada (cf. KOSSOVICH, 2004,

    p.90).

    Trata-se, então, de analisar práticas articulatórias que definem

    quais divisões são ou não válidas, quais trajetórias no campo de

    discursividade (espaço-de-estados) devem ou não se tornar efetivas, que

    fronteiras devem ser demarcadas, ou seja, de saber que relações podem secompor diretamente para formar uma nova relação mais “extensa”, ou

    quais os poderes podem se compor diretamente para constituir um poder,

    uma potência9  mais “intensa”: “Em que ordem e como compor as

    potências, as velocidades e lentidões?” (DELEUZE, 2002, p.131). Este

    processo compõe diferentes relações de poder, mais ou menos estáveis,

    conforme uma amplitude, limiares (mínimo e máximo),

    (des)continuidades e variações ou transformações próprias.

    O sentido, repitamos, não é redutível à significação  ou à

    designação, mas envolve uma intensificação. Deve-se, assim, procurar em

    9 Força de existir, poder de afetar e ser afetado. Cf. DELEUZE, 2002.

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    cada caso ou em cada identidade o que passa do influxo de intensidades, oque não passa, o que faz passar ou impede de passar, segundo o regime

    articulatório geral de filiações estendidas e das alianças laterais. O que se

    prolonga, o que cessa, o que se separa, e as diferentes relações segundo as

    quais distribuem ações e paixões, constituindo sujeitos, agências, fazem

    compreender o mecanismo da codificação de fluxos: a totalidade de uma

    formação social, a unidade de uma identidade, a fim de constituir-se,

    exclui ou expele de si mesma um elemento com relação ao qual as demais

    diferenças que a constituem são equivalentes entre si (equivalente em sua

    hostilidade comum à identidade excluída).É fundamental para a prática hegemônica estabelecer sobre as

    linhas de variação contínua, os pontos de divergência, e reconduzir, a

    partir deles, os modos de vida a um plano em que formas opostas possam

    ser confrontadas. Apenas a presença de uma vasta região de elementos

    flutuantes e sua possível articulação a campos opostos é o que constitui o

    terreno que permite definir uma possível prática social como hegemônica.

    Se a bifurcação engendra o acontecimento, enquanto aparecer de

    uma nova forma, um fenômeno se reduz a um agregado de acontecimentos

    locais, a um sistema mais ou menos integrado de descontinuidades querealiza a inscrição  dos conjuntos de bifurcação dos estados internos

    (PETITOT, 1977). O aspecto turbulento, caótico e agonístico dos fluxos

    sociais é contido, nos sistemas ou instituições sociais, pela hierarquização

    das instâncias de decisão – as instituições sociais cortam e conectam os

    fluxos sociais. Ainda que formada por decisões divergentes, o que

    prevalece na instituição social é a última decisão. A hierarquização das

    instâncias neutraliza o antagonismo entre elas, fazendo com que uma

    instância n se apresente como elemento da instância seguinte n+1 que, por

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    seu turno, aparece como comentário  da anterior n  (cf. Figura 8): leiregressiva

    10.

    Figura 8 - Série de decisões 

    Um ponto singular •  se prolonga analiticamente sobre uma série

    de pontos ordinários, até a vizinhança de outra singularidade e assim por

    diante. A hegemonia é assim constituída, com a condição de que as séries

    sejam convergentes (sentido •(), formando aquilo que Laclau chamará de

    cadeia de equivalência  (figura 8). Uma contra-hegemonia começaria na

    vizinhança dos pontos em que as séries obtidas divergiriam (sentido ••).

    O sentido de um enunciado En  só é dito (designado) por outro

    enunciado En+1, e, assim, sucessivamente, numa seqüência infinita. O

    sentido S1 só pode ser dito, no uso habitual, através de outro enunciado E2

    (comentário, interpretação, meta-linguagem) que toma um primeiro E1  (e

    seu sentido S1) como objeto, tendo seu sentido S2 dito, por sua vez, por E3,

    numa regressão infinita do pressuposto: E0,E1,E2,...En,...En+i. Cada

    enunciado En é tomado primeiro na designação que opera e, em seguida,

    no sentido que exprime, uma vez que é este sentido que é o designado ao

    outro enunciado, ou seja, Sn é dito por En+1.

    10) ! # *

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    (...) no que se chama globalmente comentário, o desnívelentre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis

    que são solidários. Por um lado permite construir (e

    indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro

    pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso

    sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que

    passa por seu detentor, a reticência e a riqueza essenciais que

    lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta de

    falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel,

    sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizerenfim o que estava articulado silenciosamente no texto

    primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca

    sempre, mas ao que não lhe escapa nunca dizer pela primeira

    vez aquilo que, entretanto já havia sido dito e repetir

    incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido

    dito. A repetição indefinida dos comentários é trabalhada do

    interior pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu

    horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em

    seu ponto de partida, a simples recitação. O comentárioconjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-

    lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de

    que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A

    multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio

    do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o

    número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O

    novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua

    volta (FOUCAULT 1999, p.24-26).

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    Como instância de uma série, a decisão que pode ser imprevisívelex ante, a priori, pode ser vista como a solução natural ou necessária ex

     post , a posteriori. A integração numa curva torna a singularidade limite de

    pontos ordinários em sua vizinhança. Ou seja, a  justificação  ou

    comentário  apresenta uma decisão contingente, retroativamente, como

    necessária: “(...) a forma derradeira considera as formas passadas como

    etapas que conduzem a si mesma” (MARX, 1977).

    Trata-se de um sistema de dispersão, de repartição e de repetição

    dos enunciados e seus elementos: formação discursiva, formada por regras

    discursivas que presidem o surgimento, o funcionamento, as mudanças, odesaparecimento, em determinado momento, de um discurso, regras que

    definem aquele jogo que autoriza o que é permitido dizer, como se pode

    dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições e práticas sociais está

    vinculado o que é dito, enfim, o que deve ou não ser aceito como

    verdadeiro. Daí a necessidade de, após a análise estatístico-molar do

    discurso, retornar à análise lingüístico-molecular, identificando os vetores

    sociais que definem as diversas trajetórias imprimidas nos fluxos sociais.

    O sentido é tido como fronteira (limite, superfície) que articula os

    dois lados (séries): o “expresso da proposição” e o “atributo do estado de unidade de significado e força. É função expressiva contraída por

    proposições e corpos (DELEUZE, 2006). A variação semântico-lógica e a

    variação estatístico-matemática são diferentes atributos do mesmo

    processo subjacente, não sendo mais que duas séries (intensiva e

    ?  semântica e -  qualitativa e quantitativa) de

    modificações correspondentes ao mesmo “substrato”.

    5. Fluxos de justiça e sistema jurídico 

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    Para exemplificar uma aplicação de nosso modelo, tomaremoscomo lugar social limitado de análise, o espaço jurídico, e, como

    fenômeno social focalizado, o fluxo de justiça. O espaço jurídico e o seu

    discurso constitutivo são o lugar privilegiado para o estudo dos conflitos

    sociais, como relações de poder num campo agonístico, enquanto

    formalização parcial dos fluxos de justiça. O fluxo de justiça ou os atos

     jurídicos  podem ser entendidos como fazendo parte de um processo de

    constituição da identidade de um sujeito político ou de direito, sujeito

    coletivo e histórico, articulado conforme os diferentes discursos de

    reparação, compensatórios, de reconhecimento de direitos, dentre outros.O fluxo de justiça não se confunde com o sistema jurídico, nem

    com o fluxo no sistema jurídico. O que chamamos de fluxo de justiça

    atravessa todo campo social e pode ou não convergir (na judicialização do

    conflito social ou político) para o sistema jurídico: o fluxo de justiça pode

    articular ações tanto legais, extralegais, quanto contra-legais. O fluxo de

     justiça tem a ver com os processos de produção, aplicação e transformação

    das normas socialmente justificadas. O fluxo de justiça não se limita com

    a aplicação da lei, podendo entrar em conflito com esta (desobediência

    civil, revolução, insurreição, guerra civil...), divergindo, assim, do sistema jurídico e do direito positivo, subvertendo-os ou transformando-os.

    Os fluxos de justiça são formados pelos processos sociais de

    atestação da intenção, como fixação de sentido e, portanto de imputação

    de uma ação e suas consequências a “seu” sujeito. Aqueles processos de

    atestação de intenção do fluxo de justiça fazem parte, por conseguinte, de

    processos de produção de subjetividade11, ou de subjetivação.

    11Entendemos por subjetividade a competência discursiva de responder a ou por algo ou alguém,

    mas, também de interpelar outrem. A subjetividade é, assim, a condição e a resultante dosprocessos de produção e apropriação do discurso pelo indivíduo ou grupo de indivíduos, e atravésdela, apropriação de si, dos próprios atos, enfim, do mundo circundante – “responder por” é“apropriar-se de”: ser sujeito significa ser “dono da situação”. A subjetivação tem a ver, então, com

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    Os fluxos de justiça, judiciais ou não, são formados, no planonarrativo, por três processos decisórios (fatores): a tipificação da ação (“há

    ou não há  a atestação da intenção (“há ou não há  e a

    caracterização do sujeito (“é ou não é   resultando na

    atribuição de uma ação a um sujeito e na imputação ou responsabilização

    desse sujeito. Estes processos se efetivam através da produção de

    narrativas, argumentos e justificações jurídicas, enunciados que

    relacionam  objetos, tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas,

    procurando responder às seguintes perguntas: quem?, o  quê?, onde?,

    quando?  e  por quê?. A natureza das perguntas está relacionada,fundamentalmente, ao conjunto de parâmetros nos quais se desenvolve um

    processo de manutenção de uma forma ou identidade. As perguntas

    constituem uma classificação topológica de certos espaços de regulação

    nos quais as formas são “desdobradas”. Onde?  e quando?  são perguntas

    relacionadas à localização espaço-temporal. Quem? refere-se ao sujeito e

    o quê?  ao objeto ou fato. Por quê?  liga-se à causa ou motivo do fato.

    Esses diversos lugares ou posições dos sujeitos, dos objetos e dos

    conceitos representam pontos singulares (DELEUZE, 1998b, p.21),

    conforme definimos mais acima.A análise da narrativa e da argumentação visa a, principalmente,

    explicar os processos discursivos de descrição de uma ação, de atribuição

    desta ação a um sujeito e, por fim, de responsabilização deste mesmo

    sujeito, enquanto momentos do processo de qualificação da ação,

    caracterização do sujeito e atestação da intenção. Para isso, utilizamos as

    ferramentas teóricas e metodológicas propostas por Ricoeur (1999),

    Greimas (1973, 1975) e Greimas e Fontanille (1991), na análise da

    narrativa, e por Ducrot (1987) e Koch (1999), na análise da argumentação.

    processos de distribuição dos eventos e propriedades. Ser sujeito de uma ação significa serresponsável por uma ação que lhe é própria, que não lhe é estranha (intencional, não-acidental).

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    A análise, porém, deve ir além da estrutura das narrativas e dosargumentos (modelo local), descrevendo entre estes um sistema de

    dispersão e detectando uma regularidade, uma ordem em seu

    aparecimento sucessivo, correlações, posições, funcionamentos,

    transformações, entre seus objetos, os tipos de enunciação, os conceitos,

    as escolhas temáticas (modelo global). Desta forma será definida uma

     formação discursiva. Os argumentos e narrativas serão, portanto, tratados

    como enunciados, ou seja,  formas de repartição e sistemas de dispersão.

    A sua análise deve, conforme Foucault (2002, p.43), levar em conta a

    dispersão e a regularidade dos sentidos que se produzem ao seremrealizados. As condições a que estão submetidos os elementos desta

    repartição (objetos, modalidades de enunciação, conceitos, escolhas

    temáticas) são chamadas de regras de formação. As regras de formação

    estão associadas a uma intervenção hegemônica  que sutura o sistema.

    Aquela repartição é resultante da atuação da intervenção hegemônica que

    suplementa aquelas regras. Relaciona-se, assim, a distribuição dos casos

     jurídicos e a dispersão dos elementos dos enunciados.

    A tarefa consiste, em reconstruir o sistema, recuperando seus

    atributos a partir de um conjunto finito de amostras que o representa,formando um corpus de discursos para análise. Esta reconstrução é feita

    através de algum tipo de interpolação sobre as amostras, preenchendo as

    lacunas. Cada amostra poderá ser representada como um conjunto C de

    curvas situadas em uma mesma instância ou plano Z, cuja interpolação

    será usada para reconstruir a superfície que delimita o sistema,

    distribuindo os casos. A área definida pelos contornos corresponde à

    proporção dos casos em uma dada instância ou plano zn. (figura 8.1 –

    fonte: GATTASS e PEIXOTO, 2000, p.2). A bifurcação decisória ocorre

    em algum lugar entre  z3  e  z2, diferindo o número de curvas c entre osplanos Z.

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    A figura 8.1 é a representação de uma bifurcação no fluxo de

     justiça, por exemplo, lutar ou fugir, vingar-se ou esquecer, denunciar ou

    perdoar, julgar ou arquivar, condenar ou absolver,  atos jurídicos 

    (ilocucionários) alternativos c. 

    As instâncias  zn são hierarquizadas. Cada instância  z corresponde,

    por exemplo, à fase pré-judicial, ao boletim de ocorrência, ao inquérito

    policial, à queixa do Ministério Público, aos autos, à sentença judicial, nas

    quais se constrói e se decide entre as narrativas alternativas da situação ouocorrência conflituosa pelas partes em litígio.

    Na construção dessas narrativas, a discussão sobre o “caráter” de

    alguém, sua caracterização, é um dos mecanismos importantes na

    atestação de intenção de uma ação desse alguém. Entendemos por

    caracterização  a definição do caráter   de um sujeito (RICOUER, 1991).

    Por caráter , entendemos o conjunto de marcas distintivas que permitiriam

    reidentificar um “mesmo” sujeito na diversidade de suas ações. Entre os

    “princípios” que o mecanismo da caracterização  põe em funcionamento

    estão: a identidade numérica e qualitativa (ou seja, A=A), a continuidade epermanência temporais, e a coerência entre ações de um “mesmo” sujeito.

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    Aliás, seriam estes princípios, materializados em técnicas de si e degovernamentalidade (p.ex. a responsabilização como governo de si e dos

    outros), que efetivariam a mesmidade do sujeito  no fluxo temporal dos

    eventos: a identidade narrativa.

    5.1 um exemplo: a análise dos casos judiciais de racismo

    Em SALES JR. (2006a), nossa análise se debruçou sobre os “casos

    de racismo” como “casos controversos” (hard  cases) (cf. IKAWA, 2004).

    A seguir, tomaremos emprestados, em diversos momentos, alguns

    exemplos e reflexões daquele texto. Vejamos, então, por exemplo, o crimede racismo e a discussão se determinado indivíduo é ou não racista. A

    prática discriminatória de um indivíduo pode nunca ser, do ponto de vista

    narrativo e individual, suficientemente, consistente e coerente para que se

    lhe pudesse atribuir o caráter racista: “racistas podem ter amigos negros?”.

    Esta inconsistência constitui o recurso chamado álibi negro12, ou seja, o

    recurso retórico a uma relação, situação ou pessoa como exemplum in

    contrarium: refutação da generalização mediante indicação direta dos

    casos particulares compreendidos em seu enunciado aos quais não se pode

    aplicar: um amigo negro, um parente negro próximo, cônjuge negro,gostos pessoais, hábitos etc. que o aproximem de pessoas negras.

    A caracterização do sujeito constitui um entimema  cuja premissa

    maior seria: “todo sujeito possui a qualidade que não hesitamos em

    atribuir à determinada ação sua”. Portanto, pressupõe que a ação lhe seja

    atribuída pela intenção – a caracterização é o argumento que justifica

    pelos seus atos a qualidade atribuída ao agente: Esta pessoa é corajosa

    porque, em dada situação, comportou-se '  aquela outra é

    covarde, porque se comportou como covarde. Esta premissa é

    12Tomamos esta expressão emprestada da professora de direito Liana Lins da Faculdade Integradado Recife – FIR.

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    problemática, em sua generalidade, pois alguém que se comportasse umavez corajosamente e outra vez covardemente deveria ser qualificado,

    contraditoriamente, de corajoso e covarde. Esta contradição se dá quando

    se perde a natureza dinâmica do sujeito, seu processo sempre aberto de

    identificação, mais do que uma identidade fixa. Se acrescentarmos,

    contudo, um quantificador   que relativize a generalidade tal como

    “frequentemente”, “quase sempre” ou “nem sempre” teremos: “Gilberto

    quase sempre é covarde” ou “Gilberto nem sempre é racista”.

    Por exemplo, nota-se que determinado indivíduo a  evita ou se

    recusa a apertar a mão de outro b. Tal comportamento social (aperto demão) tem sentido não-verbal (respeito, aceitação, atenção) expresso pelos

    gestos e definido pelas normas de etiqueta social. Ademais, constata-se,

    em nosso exemplo, que o primeiro indivíduo é branco, enquanto o último

    é negro. Contudo, ainda não parece suficiente apresentar essa diferença

    para caracterizar um ato de discriminação, ao menos de caráter racial.

    Porém, percebe-se, ademais, que aquela recusa se inscreve numa série

    divergente de recusas e aceitações, ou seja, há uma classe • formada de

    indivíduos que são cumprimentados e outra classe ~• disjunta da qual faz

    parte b; percebe-se também que aquelas classes geradas pelas sériesdivergentes coincidem respectivamente com as classes disjuntas A  e B formadas, respectivamente, por indivíduos brancos e negros. Em suma,

    percebe-se um padrão na distribuição dos cumprimentos realizados pelo

    indivíduo branco a. Em verdade, esse indivíduo a poderia ser negro, poiso que caracterizaria a prática discriminatória não seria a diferença entre os

    indivíduos a e b em interação, mas a diferença entre as classes • e ~• deindivíduos cumprimentados ou não e sua correlação com as “classes

    raciais”  A  e B: regularmente, cumprimenta-se indivíduos brancos e não

    indivíduos negros – [(A••) •  (B•~•)]. A discriminação se efetivariacomo um padrão regular de distinção, exclusão, restrição ou preferência.  

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    Esse padrão regular é o que conduz à atribuição de uma “intenção” nãoconfessada que funcionaria, por um lado, como a causa daquele padrão,

    por outro, como o sentido constituído pelo discurso, jogo de linguagem

    não-verbal.

    Porém, aquele padrão de distribuição do aperto de mãos é irregular

    e fragmentário, pois se pode (ou deve-se) apertar a mão de algumas

    pessoas negras, oscilando segundo o nível de tensão racial. As classes K e•K deixam de ser disjuntas. Um terceiro é incluído. Seu sentido torna-seambíguo. O padrão torna-se observável apenas como uma distribuição

    estatística das desigualdades.Entretanto, o “crime” como intenção ou caráter de um sujeito é o

    sentido de uma ação. Porém, o sentido é próprio da linguagem. É o

    atributo de uma ação que só a linguagem pode apreender, mas que não

    pode ser dito no discurso empírico, pois nunca dizemos, ao mesmo tempo,

    alguma coisa e o sentido daquilo que dizemos (ou fazemos). O sentido é

    como a esfera em que estou instalado para operar as designações

    possíveis, e, mesmo, para pensar suas condições. O sentido está sempre

    pressuposto desde que eu comece a falar, o que seria impossível sem

    aquela pressuposição. Portanto, o sentido de uma ação é dito pelanarrativa que a significa como ação. O sentido de uma ação, seja a

    intenção ou caráter de um sujeito, seja o atributo de uma ação, não é

    origem, princípio ou causa, mas é produzido. Ele não é algo a ser

    descoberto, restaurado ou re-empregado, mas algo a produzir por meio de

    novas maquinações.

    A análise de discurso do fluxo de justiça, portanto, preocupa-se

    com os processos de (des)objetivação da “ação social” a partir do conflito

    entre os sujeitos sociais envolvidos no fluxo de justiça.

    No contexto do espaço jurídico, o problema da objetividade é quesempre “que um juiz profere uma decisão, ele afirma a existência do que

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    estamos designando fato  '- (...)”. A questão é, pois, saber se aquelesfatos “são válidos independentemente do que um certo juiz pensa ou,

    talvez, independentemente do que todos os advogados e juízes pensariam”

    (COLEMAN & LEITER, 2000, p.316), após uma subtração a um

    horizonte semântico ou hermenêutico. Contudo, quando um estado de

    coisas ou evento acarreta consequências jurídicas, é da existência ou da

    inexistência deste estado de coisas ou evento que é preciso convencer as

    autoridades jurídicas.

    A autoridade jurídica requer para sua legitimidade que os

    resultados das disputas jurídicas sejam determinados e que os fatos jurídicos em disputa sejam objetivos. Em outras palavras, a legitimidade

    da autoridade jurídica exige que certo resultado jurídico seja justificado,

     justificação que é oferecida por razões jurídicas ou extrajurídicas.

    Segundo E.H. Lévi (apud   PERELMAN, 2004), a estrutura da

    argumentação jurídica se adapta a dar um sentido à ambigüidade e a

    constantemente verificar se a sociedade chegou a discernir novas

    diferenças ou similitudes, tratando-se essencialmente de argumentações

    pelo exemplo e por analogia.

    A tese sobre a (in)determinação do direito tem duas formulaçõesdistintas: a indeterminação das razões e a indeterminação das causas

    (COLEMAN e LEITER, 2000, p.317). Em ambas as formulações, faz-se

    afirmações sobre a relação “inadequada” entre as razões jurídicas e os

    resultados dos casos. Tal distinção, segundo trabalhada por nós, refere-se

    ao fato de que nem sempre as razões utilizadas para justificar os resultados

    dos casos são as mesmas razões que os explicam, pois o contexto n  de

    decisão é diferente do contexto n+1 de justificação.

    Uma norma será considerada indeterminada (polissêmica ou vaga)

    quando houver mais de uma maneira (em contextos diferentes) de cumprirsuas exigências. Por sua vez, uma norma será considerada

  • 8/17/2019 Semiótica Dos Fluxos

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    sobredeterminada (contraditória ou ambígua) quando o conjunto dasrazões jurídicas não consegue justificar plenamente os resultados dos

    quais são aduzidas, o