Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

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Senhor, dá-me bom senso Introduzindo a leitura O modo de ler um texto sem preocupação alguma com a época histórica de seu surgimento, com seus múltiplos aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos, e também com seu autor, pode ser considerado método “fundamentalista”. Este carrega em seu bojo, indiscutivelmente, um risco enorme de fazer o texto dizer aquilo que já se tem na cabeça. Na prática, este jeito de ler é uma inversão do verdadeiro processo de leitura, pois, ao invés de “recolher” o senti do presente no texto, injeta nele um conteúdo pré-existente na mente do leitor. Pode-se dizer que gera uma profunda traição ao autor do texto. Quantos erros históricos já foram cometidos pela ausência dessa precaução que deveria ser parte inerente do hábito de leitura 1 . A exegese bíblica e a hermenêutica têm dado contribuições significativas neste campo. Há mais de século que elas vêm ensaiando métodos de leitura histórico-crítica e, mais recentemente, de leitura sociológica, na sua pluralidade de suas formas. Partem de um pressuposto simples: “nada cai do céu fortuitamente”. Tudo participa do processo de “causa e efeito”. Tudo é resultado de forças e elementos históricos que interagem entre si. E mais, como os seres humanos históricos, isto é, seres que agem e interagem num determinado “espaço e tempo”, qualquer ação deve ser considerada, simultaneamente, “re-ação” (direta ou indireta, consciente ou não) a algum estímulo. Quanto mais forte foi uma ação (escrever um texto, por exemplo) mais forças (inter)agiram para gerá-la. A história é isso mesmo: não “uma sucessão sucessiva de sucessos sucedidos no tempo” de forma linear, mas antes a convergência de múltiplas energias que agem dialeticamente como as energias que movem o mundo. Uma delas prevalece e produz determinado fruto (= texto, decisão, ação histórica...), mas nunca está só. Por isso, um texto somente poderá ser mais adequadamente “lido” se previamente o leitor se fizer perguntas como (além, é obvio, da pergunta pelo que o 1 Etimologicamente, a palavra leitura deriva de “legere” que em latim também significa “ajuntar, recolher”. Tanto que se pode encontrar na literatura latina frases como “l égere triticum” para entender “recolher o trigo”. De fato, a leitura é o ato de recolher o significado dos sinais. Acontece que os sinais nunca são puramente objetivos. São produção humana, sempre contextualizada. Cada pessoa geralmente encontra um sentido diferente para os mesmos sinais (texto), dependendo de sua capacidade de compreensão e de seu contexto pessoal e social. Entende-se assim porque cada época histórica e cada contexto social privilegiem determinadas compreensões relegando outras a segundo plano. Além disso, a compreensão é, de per si, sempre uma interpretação. Esta requer certa distância entre leitor e texto e, sobretudo, consciência dos diferentes contextos entre leitor e escritor para uma leitura mais fidedigna e menos projetiva. Daí a importância também de tomar “consciência do lugar desde onde se lê”, para não iludir-se com a pura objetividade. Além do mais, tenha-se presente que em todas as ciências humanas, mesmo na física, é consenso que não existe neutralidade de leitura e compreensão. Daí a importância de tomar consciência do lugar “desde onde” se lê.

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Polígrafo sobre a Oração do Crucifixo de São Francisco de Assis:http://www.estef.edu.br/arno/wp-content/uploads/2011/07/Ora%C3%A7%C3%A3o-Crucifixo-Estef1.pdf

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Senhor, dá-me bom senso

Introduzindo a leitura

O modo de ler um texto sem preocupação alguma com a época histórica de seu

surgimento, com seus múltiplos aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos,

e também com seu autor, pode ser considerado método “fundamentalista”. Este

carrega em seu bojo, indiscutivelmente, um risco enorme de fazer o texto dizer aquilo

que já se tem na cabeça. Na prática, este jeito de ler é uma inversão do verdadeiro

processo de leitura, pois, ao invés de “recolher” o sentido presente no texto, injeta nele

um conteúdo pré-existente na mente do leitor. Pode-se dizer que gera uma profunda

traição ao autor do texto. Quantos erros históricos já foram cometidos pela ausência

dessa precaução que deveria ser parte inerente do hábito de leitura1.

A exegese bíblica e a hermenêutica têm dado contribuições significativas neste

campo. Há mais de século que elas vêm ensaiando métodos de leitura histórico-crítica

e, mais recentemente, de leitura sociológica, na sua pluralidade de suas formas.

Partem de um pressuposto simples: “nada cai do céu fortuitamente”. Tudo participa

do processo de “causa e efeito”. Tudo é resultado de forças e elementos históricos que

interagem entre si. E mais, como os seres humanos históricos, isto é, seres que agem e

interagem num determinado “espaço e tempo”, qualquer ação deve ser considerada,

simultaneamente, “re-ação” (direta ou indireta, consciente ou não) a algum estímulo.

Quanto mais forte foi uma ação (escrever um texto, por exemplo) mais forças

(inter)agiram para gerá-la. A história é isso mesmo: não “uma sucessão sucessiva de

sucessos sucedidos no tempo” de forma linear, mas antes a convergência de múltiplas

energias que agem dialeticamente como as energias que movem o mundo. Uma delas

prevalece e produz determinado fruto (= texto, decisão, ação histórica...), mas nunca

está só.

Por isso, um texto somente poderá ser mais adequadamente “lido” se

previamente o leitor se fizer perguntas como (além, é obvio, da pergunta pelo que o

1 Etimologicamente, a palavra leitura deriva de “legere” que em latim também significa “ajuntar, recolher”.

Tanto que se pode encontrar na literatura latina frases como “légere triticum” para entender “recolher o trigo”.

De fato, a leitura é o ato de recolher o significado dos sinais. Acontece que os sinais nunca são puramente

objetivos. São produção humana, sempre contextualizada. Cada pessoa geralmente encontra um sentido

diferente para os mesmos sinais (texto), dependendo de sua capacidade de compreensão e de seu contexto

pessoal e social. Entende-se assim porque cada época histórica e cada contexto social privilegiem determinadas

compreensões relegando outras a segundo plano.

Além disso, a compreensão é, de per si, sempre uma interpretação. Esta requer certa distância entre

leitor e texto e, sobretudo, consciência dos diferentes contextos entre leitor e escritor para uma leitura mais

fidedigna e menos projetiva. Daí a importância também de tomar “consciência do lugar desde onde se lê”, para não iludir-se com a pura objetividade. Além do mais, tenha-se presente que em todas as ciências humanas,

mesmo na física, é consenso que não existe neutralidade de leitura e compreensão. Daí a importância de tomar

consciência do lugar “desde onde” se lê.

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Oração da Conversão 2

texto diz diretamente): Quem é seu autor ou autores? Quando viveu (viveram)? O que

acontecia naquela época em ambiente social (cidade, país, mundo)? E ele(s),

pessoalmente, o que estava(m) sentindo ou porque dificuldades e êxitos estava(m)

passando? Que opções o(s) autor(es) vivia(m), quer dizer, em que “lado do campo de

forças ou em que partido combatia(m)”? A leitura é, pois, sempre um verdadeiro

diálogo entre escritor e leitor, bem como entre os seus respectivos contextos históricos.

Nada de estranhar, então, que para responder a estas perguntas se faça necessário, às

vezes, pesquisar demoradamente, sobretudo em se tratando de um texto antigo, muito

diverso do nosso, como são os textos de Francisco. Trataremos de levar isso a sério

nesta leitura da oração de Francisco da qual pretendemos “recolher o sentido”.

Este nosso ensaio de leitura será desenvolvido em duas partes. Na primeira

faremos a descrição do contexto existencial no qual brotou a oração. Essa análise do

contexto oferecerá melhor compreensão do seu conteúdo. Depois, num segundo

momento, nos ateremos propriamente ao significado das palavras empregadas por

Francisco na oração. Teremos, então, condições de também perceber a propriedade

(fidelidade) da tradução, que é sempre um grande desafio.

1 – Contextuando a “Oração diante do crucifixo”

A opinião tradicional era de que esta oração teria sido elaborada após a fala do

Crucificado de São Damião, entre setembro e dezembro de 12052. A posição do

eminente franciscanólogo K. Esser e outros é de que Francisco já vinha fazendo esta

oração antes da “fala” do crucificado de São Damião”, talvez há um ano ou mais. O

crucificado lhe forneceu a resposta à sua pergunta existencial sobre onde investir suas

energias, como abrir um novo caminho de vida. É interessante observar que as fontes

históricas do fato não mencionem o conteúdo da oração em si, menos ainda a

reportam. Os códices, porém, que a oferecem são bastante próximos ao tempo, pouco

posteriores a 1250, o que não deixa também de ser dado muito significativo para a

autenticidade.

Quatro fontes medievais relatam o fato do crucificado de estilo oriental (da

escola siríaco-bizantina) ter falado para Francisco: A Legenda dos Três Companheiros

13, 6-10(1240), 2Celano 10 (1248), 3Celano 2 e Legenda Maior de S. Boaventura

2,1, de 1263. Das quatro fontes, indiscutivelmente, aquela que tem maior riqueza de

detalhes e que segue pormenorizadamente o desenvolvimento histórico é a Legenda

dos Três Companheiros (LTC), escrita por um assisiense anônimo (um frade,

provavelmente). É ainda, cronologicamente, a primeira delas. Quanto aos detalhes, às

circunstâncias e à leitura do fato em si ainda não há consenso sobre o que há de

2 Na versão brasileira anterior se acrescentava no final: “que na verdade acabais de dar-me”.

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Oração da Conversão 3

realmente de histórico ou de “experiência mística”. Cristo realmente mexeu os lábios e

falou (2Cel 10), ou Francisco teve a sensação interior de que Cristo tenha falado, pois

ele vinha com essa busca intensa de uma resposta de Deus há muito tempo?

Existencialmente, as duas modalidades têm o mesmo valor. E com certeza teria falado

apenas uma vez e não três vezes como Boaventura (LM 2,1,3), muito devoto à

Trindade quer forçar. Mas para nosso objetivo esses aspectos não são relevantes3.

Por ser um texto que reflete a situação pessoal de Francisco, não se faz tão

necessário alongar-se no contexto social mais amplo. Interessa mais ter presente com

clareza o contexto histórico-existencial. Tenha-se presente que eram dois a três anos

que Francisco vivia nas trevas, impelido pela pergunta “Senhor, que queres que eu

faça?” (AP 6,6), como São Paulo quando perseguia os cristãos no afã de fidelidade

total a Deus. Quais realidades povoavam seu interior nesta época da vida? Tentaremos

fazer memória de algumas.

1.1 – Os dois grandes conflitos que atormentavam Francisco

Afinal de contas, um santo como Francisco vivia conflitos? E esses podiam ser

tão sérios a ponto de escurecer o horizonte de sua vida? Celano reconhece que

Francisco no tempo de sua conversão “suportava grandíssimo padecimento de espírito

e, enquanto não realizasse o que concebera no coração, não podia descansar;

alternavam-se nele pensamentos vários, e a importunação deles perturbava-o

duramente”(1 Cel. 6,10). Misturavam-se nele o “temor e o terror”. O psiquismo (o

demônio) reage despertando os medos. Na prática, via-se refletido “numa mulher

corcunda e de aspecto horrível de Assis” (LTC 12, 4-5; 2 Cel 9, 4-5) (medo de ser mal

visto e rejeitado) da qual todos fugiam. Na verdade, por que e quais seriam esses

medos e conflitos?

a) O conflito dos projetos existenciais familiares (todos nós os temos. São projeções e

expectativas sobre nós – o que fizeram de nós).

Ao nascer a mãe lhe põe o nome de João (LTC 2,1; 2Cel 3,1), em homenagem

a João Batista. Na visão bíblica dar nome é atribuir uma missão. Dona Pica (da

Picardie, região da França ao norte de Paris), uma mulher que, segundo informações

3 Vários estudiosos como Jean de Schampheleer (El crucifijo de San Damian yFrancisco de Asís, em SelFranc

16(1984) p.341-405) acham pouco provável a versão de 2 Celano 10, e mais ainda 3 Celano 2, a respeito das

conseqüências desta manifestação do crucifixo, para quem a “fala” o teria feito apaixonar-se pela paixão do

Senhor. É pouco provável que tenha originado em Francisco essa “enorme compaixão pelo crucificado,

gravando em seu coração os estigmas da paixão”, neste momento da vida. Sem dúvida alguma, há aqui um

anacronismo de Celano que escreve num momento em que os estigmas eram fortemente contestados, também pelos confrades dominicanos. Ademais, a fonte mais próxima e mais credível historicamente afirma

explicitamente a grande alegria que vivia naqueles dias precedentes (LTC 13, 1-2) e que após a “fala” “ficou

repleto de tanto júbilo e iluminado de tanta luz”. Ademais esta é a imagem de um crucifixo glorioso, segundo a

teologia joanina, para quem a crucificação é uma exaltação, uma glorificação, uma elevação.

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Oração da Conversão 4

ainda insuficientes, era muito piedosa4 e talvez tenha sido ao menos simpatizante dos

movimentos populares de penitentes (pobres de Lião?). Ela desejava profundamente

que o filho seguisse por essa estrada5. O pai, ao retornar da viagem, vendo o recém

nascido, mudou seu nome para Francisco, porque desejava que este primogênito fosse

seu continuador no seu sucesso econômico que provinha basicamente da França.

Francisco (= pequena França) assim se chamaria, então, em homenagem à França.

Colocava neste primogênito seu projeto pessoal: alcançar igualmente o status de

nobreza para sua descendência, além do progresso econômico.

Fatos futuros da juventude de Francisco devem levar em conta esses projetos

conflitantes do pai e da mãe que ele, pequeno, absorveu, como veremos mais abaixo.

A mãe entendia suas extravagâncias, sua liberalidade com os pobres6. O pai, ao invés,

se concorda com as extravagâncias de festas e comidas pelas quais se fazia apresentar

como líder social, ficava furioso quando o filho passou a ser liberal com os pobres e se

aliou aos excluídos (LTC 16, 7-8; 19,1). Enclausurou-o na prisão domiciliar7, o

ameaçou severamente e, por fim, o processou judicialmente, deserdando-o, isto é,

privando-o dos direitos de filho e de cidadania de Assis. Francisco viveu um profundo

conflito entre estes dois projetos contrapostos. Mas que agora precisava optar8 por um,

já que os dois eram antagônicos (não se pode servir a Deus e a mamona).

E que opção difícil! Para Francisco esta decisão lhe custou suor de sangue, pois

se tratava de romper, ao mesmo tempo, com a mentalidade geral de vida, da qual o pai

era fiel participante. Com certeza, a grande maioria de seus contemporâneos não se

perguntaria absolutamente nada a respeito. Mas para Francisco, sempre desejoso de ser

muito verdadeiro consigo mesmo, esta escolha se constituía em momento crucial, pois

determinaria o norte de sua vida. Em Assis, todos os nobres e todos os burgueses eram

4 Bernardo de Bessa diz que era “honestíssima” (LL 1,2). Quase nos mesmos termos se expressa Celano na sua

segunda biografia (de modo totalmente contrário à primeira versão): “Esta mulher, amiga de toda a honestidade

trazia nos costumes insigne virtude, alegrando-se por algum privilégio pela semelhança com Santa Isabel, tanto

pela imposição do nome ao filho quanto pelo seu espírito profético” (2Cel 3,2). 5 É interessante ler atentamente com esta ótica II Cel 3, 6-8, observando a mística e expectativa da mãe. A certa

altura Celano diz que o “nome de João convinha à obra do ministério que recebeu”. 6 “A mãe que o amava mais que todos os outros filhos, permitia-lhe que assim agisse, observando tudo o que

fazia e muito se admirando em seu coração acerca de todos os seus atos” (LTC 9, 1-3). 7 1Cel 12,4; Jul 8,1; LTC 17,9; LM 2,2,7. 8 Jean-Marc CHARRON, psicólogo, escreveu em 1992, “De Narcise a Jésus. La quête de l’identité chez

François d’Assise”, onde faz uma leitura aprofundada da elaboração que Francisco teve de fazer,

psicologicamente falando, desta situação. O projeto do pai, calcado na dinâmica egocêntrica (força centrípeta),

tem como a razão última do viver o engrandecimento do EU, ao passo que o projeto evangélico, assumido pela

mãe, é in-formado pela dinâmica do amor que leva para fora (força centrífuga), em forma de doação e entrega. A

conversão deveria consistir, então, em passar de um projeto a outro, de uma dinâmica a outra. A primeira

visibilização histórica teria sido a passagem para o meio dos excluídos como ele reconhece no Testamento (1-3). A segunda seu processo de deserdação no final do qual pôde exclamar: “Agora posso dizer: Pai Nosso que estais

no céu, não pai Pedro Bernardone” (LTC 20,3). Porém, segundo esse estudioso, a terceira e mais decisiva teria

ocorrido no Monte Alverne, por ocasião dos estigmas, em 1224, onde Francisco assumiu sua grande “derrota

histórica”, como Jesus Cristo na Cruz.

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Oração da Conversão 5

cristãos e católicos sem conflito algum, como, por exemplo, seu pai e os familiares de

Clara de Favarone. Porém, Francisco, na esteira de sua mãe, provavelmente, dava-se

conta que não se consegue servir, verdadeira e simultaneamente, a Deus e ao dinheiro

(Cf Mt 6,24). Estes trilhos se distanciam progressivamente e é impossível ficar com

um pé em cada um. Francisco não pode ser católico como os Assisienses!

b) Que imagem de Cristo seguir?

Por detrás de cada maneira de viver a fé se esconde sempre uma determinada

imagem de Jesus Cristo que justifica o procedimento adotado. Para Francisco foi

relativamente fácil perceber este problema das “imagens de Jesus Cristo”, pois, desde

sua prisão e aproximação dos pobres e leprosos, tornou-se clara a grande diferença, e

até contradição entre os diferentes modos de viver a religião. Por isso, este se tornou

outro grande conflito. Francisco tinha diante de si ao menos duas propostas de

vivência da fé e duas cristologias:

Em primeiro lugar, surge o Cristo pantocrátor, rei cósmico e glorioso, Mestre

absoluto, representado quer doutrinalmente pelos dogmas e anátemas apregoados pela

teologia e magistério oficial, quer mediante a prática de uma Igreja detentora de

grandes posses, em disputa do poder político e militar. Se ele ingressasse na hierarquia

ou se fizesse monge beneditino viveria iluminado por esta compreensão cristológica,

que imperava na Igreja institucional desde o século VII. Resquícios desta cristologia

nós encontramos ainda nas invocações freqüentes na missa “Deus todo-poderoso”...

Nesta cristologia cabe tranqüilamente um “nobre cristão”, como eram seu pai ou o pai

de Clara, sua amiga, isto é, pessoas que vivem em função de seu projeto econômico-

político, mesmo que sejam generosos em ofertas e fiéis na obediência à Igreja

institucional, mas que não se deixam interpelar profundamente pelos valores

evangélicos. São cristãos que adaptam o evangelho a si, ao invés de eles se

converterem ao dinamismo evangélico.

De outro lado, encontramos a imagem de um Cristo humano e sofredor,

geralmente proposto pelos movimentos penitenciais. Esses movimentos insistiam na

coerência entre fé-vida. Pregavam, com veemência, que apenas um seguimento na

pobreza poderia conferir credibilidade aos sacramentos e à pregação (cátaros). Parecia

a Francisco ser este mais próximo aos Evangelhos. E irá chamá-lo, mais tarde, de

“pobre, humilde e crucificado”. Mas a Igreja institucional, de modo geral, condenava

os grupos que defendiam essa cristologia. A qual Jesus Cristo deveria ele seguir na

condição atual de um simples leigo que era, sem o domínio dos grandes

conhecimentos teológicos? A quem dar ouvido?

Se seguisse (como todo o mundo fazia) a primeira proposta, a oficial, estaria

tranqüilo porque contaria com o amparo da instituição Igreja. Todavia, caso optasse

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Oração da Conversão 6

pelo Cristo “pobre, humilde e crucificado”, aquele anunciado pelos movimentos

penitenciais, não estaria enveredando pelo caminho da heresia que sempre circundava

estes grupos de cristãos, por mais sinceros que desejassem ser? A Igreja oficial

afirmava exatamente isso. Por isso sente a necessidade de suplicar insistentemente:

“Senhor, que queres que eu faça”. De fato, “che faça lo tuo santo e verace

commandamento” (que eu faça tua santa e veraz vontade) e não outra coisa. Não

haveria um meio alternativo e igualmente fiel ao evangelho? “Illumina le tenebre!”

(Desfaz as trevas, Senhor).

Francisco tateia os novos caminhos, movido pelos fatos e pela força do Espírito

que age no íntimo das pessoas, imperceptivelmente. Assume, imerso neles, esses

conflitos existenciais e busca com toda a intensidade e seriedade uma resposta, de

muitos modos.

1.2 As buscas de Francisco

Convém agora dar-se conta das buscas já em andamento em Francisco, quando

da experiência com o crucificado de São Damião9. Eis as tentativas de busca que ele já

cultivava:

a) A luta para sustentar o ideal impossível de ser nobre.

Assis expulsara o conde de Verslingen em 1198, para se proclamar “Comuna” e

também afugentara os apoiadores do Conde, quer dizer, as cerca de vinte famílias de

nobres (entre as quais a família de Clara). Com parte das pedras da Rocca Maggiore,

residência-fortaleza do Conde e sua guarda, os moradores de Assis, liderados pelos

burgueses, construíram os muros da cidade. Francisco, então com 16 anos, líder da

juventude e próspero comerciante, estava, com toda a certeza, nesta empreitada de

construção dos muros. Talvez até tenha aprendido os rudimentos da arte de pedreiro

neste momento da vida, o que lhe servirá para depois reconstruir as igrejas. De todo o

modo, esta movimentação em torno do ideal da autonomia e independência de sua

cidade o agradava muito, bem como a seu pai. Sentia-se importante e isso parecia vir

ao encontro à sua ânsia de grandeza que o pai incutira pela convivência.

Na batalha de revanche dos nobres assisienses, apoiados pelos peruginos, em

Collestrada, perto da ponte de São João, Francisco é aprisionado e permanece um ano

preso nas masmorras de Perúgia, em condições subumanas. Um ano numa situação

dessas fez o jovem Francisco, cheio de ideais de futuro, refletir muito sobre a vida e

9 Não queremos colocar em dúvida o fato, mas é bom ter presente que Francisco nunca lhe faz menção alguma e

algumas das fontes mais antigas também não o mencionam (1 Celano, Juliano de Espira, Anônimo Perusino).

Mesmo se o fato existiu (o que é bem possível) é consenso hoje que não se lhe pode atribuir todo o peso que

Celano e Boaventura costumam dar.

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Oração da Conversão 7

cair na real. Que é a pessoa humana? Onde está sua verdadeira grandeza? Como levar

adiante o projeto de grandeza (o projeto paterno)? Será que ele é o melhor? Ao mesmo

tempo, o valor do projeto materno (o evangélico) começa a emergir com maior

intensidade. As poucas informações sobre seu comportamento na prisão já mostram

que era uma personalidade10

capaz de misericórdia. Mas adoece gravemente na prisão,

acometido pela malária11

. É resgatado pela família, a fim de não morrer12

. Profundo

abalo o deve ter dominado, quando soube da doença de que estava acometido. Que

poderia ele esperar de si mesmo, ainda que sobrevivesse ao primeiro e mais perigoso

ataque da malária? Ser cavaleiro? Como, com uma saúde em constante perigo?

Quantos anos teria ele pela frente? De fato, este projeto de fama e grandeza estava

definitivamente arruinado! Mas ele não queria se convencer disso, assim como muitas

pessoas fazem ao serem informadas de doenças incuráveis. Celano diz que depois de

refeito da crise da doença saiu à rua e começou a observar com curiosidade a região

que o cercava: “Mas nem a beleza dos campos, nem o encanto das vinhas, nem coisa

nenhuma que é agradável de se ver conseguia satisfazê-lo.“Admirava-se pela súbita

transformação de si mesmo e julgava estultíssimos os que amam as preditas coisas‟” (1

Cel 3,5)

O revés da guerra contra Perúgia e a doença não mataram completamente

sua paixão pela nobreza. Ao se apresentar outra oportunidade de obter o título de

nobre, quando já refeito parcialmente da doença, se inscreve imediatamente. Quer

participar da guerra nas Apúlias, em 1204 ou 1205, ao lado do Conde Gentil. Aliás,

qualquer pessoa carrega este dinamismo, em si, sadio, dessa forma. É um dado

antropológico estrutural.

J.M. Charron se pergunta se é tão somente o desejo de ser cavaleiro ou também

o de refazer-se do fracasso de mau soldado experimentado na guerra contra Perúgia

que o leva a inscrever-se na guerra das Apúlias. Ou ambas as hipóteses? Francisco

tenta enfrentar o desafio, de novo. Arma-se ricamente como se fora cavaleiro. Na

véspera da partida, porém, muito estranhamente, dá sua armadura a um soldado pobre

(LTC 6). Por quê? Não será talvez porque não tem certeza se deve ir? E na noite da

partida tem um sonho (projeção) de um palácio magnífico e espaçoso, repleto de

apetrechos militares e escudos resplendentes... “Tudo isso, inclusive o palácio, seria

dele” (LTC 5,6). Francisco sente-se alegre, diz a todos: “Hei de me tornar um grande

10

LTC 4, 2-4: Mostrava-se alegre, não abatido. Francisco reintegrou um companheiro isolado pelo grupo. Mas,

ao mesmo tempo, seguia alimentando o sonho de grandeza: “ainda serei venerado pelo mundo inteiro” 11 Veja-se os estudos de médicos coordenados pelo Pe. Octaviano Schmuki sobre as doenças de Francisco,

publicados na Revista Laurentianum. O principal argumento dos médicos que ajudaram este estudioso a deduzir

que se trata de malária e não tuberculose é o fato das repetidas crises de febre que Francisco tem ao longo da vida e das doenças que o atacam no final da vida: baço, fígado, estômago e hidrópico, exatamente conseqüências

da malária. O tracoma tinha outra causa. 12

Aqui é de estranhar que a Legenda dos Três Companheiros, com toda sua riqueza de detalhes históricos,

desconheça a doença da prisão e o resgate pago para tirá-lo de lá.

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Oração da Conversão 8

príncipe”. É a leitura superficial (1Cel 5,7; LTC 5,7; LM 1,3,3) que faz, ou em outras

palavras: não quer aceitar sua outra realidade. Por isso segue com o conde Gentil para

juntar-se a Gualtério de Brienne, comandante supremo do exército do papa, ao sul da

Itália, nas Apúlias.

Mas, depois de menos de um dia de viagem, em Espoleto, começou a adoecer

levemente, à noite. Preocupado com a viagem, febril (febre quarentena da malária!),

teve um outro sonho. “Meio dormindo”, ouviu uma voz lhe dizer: “Francisco, quem te

pode fazer melhor ou maior: o senhor ou o servo? Francisco respondeu: “O Senhor”.

“Por que então deixas o Senhor pelo servo e o príncipe pelo vassalo? Volta à tua terra

e te será dito o que haverás de fazer” (LTC 6,2-8).

Continua a fonte biográfica dizendo que, desta vez, “recolheu-se todo em seu

interior, admirando e considerando tão diligentemente a significação dela, que

naquela noite não pôde mais dormir” (LTC 6,12). Hoje já se pensa que estando ali

Francisco provavelmente recebeu a notícia que o exército do papa havia se desfeito

com a morte de Gualtério de Brienne, o que permite entender que realmente foi uma

reflexão, mais do que uma visão ou sonho. Mera coincidência desses fatos ou

manifestação de Deus?

b) O distanciamento dos colegas.

Depois disso em Assis, (já sem muito prestígio) Francisco ainda continua com

seu costume de “jovem farrista” e a portar-se como líder juvenil. Mas não consegue

mais se auto-iludir. Começa a bater em retirada também dos amigos de farra. “Os

companheiros repararam, espantados, que ele se transformava, por assim dizer, em

outro homem: “Em que estás pensando? Por que não nos segues? Por acaso pensas em

casar-te? (...) Sim, eu estava pensando em escolher uma esposa, a mais nobre, a mais

rica e mais bela que jamais vistes”. Os outros zombavam dele (LTC 7). “E assim, a

partir daquela hora, começou a desvalorizar-se a si mesmo e a desprezar as coisas

que antes amara, contudo, não ainda plenamente, pois ainda não estava

completamente desligado da vaidade do mundo” (LTC 8,1). Boaventura também conta

que Francisco “passou a se afastar da vida agitada dos seus negócios e rogar à divina

providência para que o iluminasse a respeito de sua vocação” (LM 1,4,1).

c) As buscas na oração.

A Legenda dos Três Companheiros menciona que, nesta época, Francisco

“muitas vezes e quase diariamente saía em segredo para rezar” (8,2). Tomás de

Celano fala que “preferia os lugares solitários para rezar” (2 Cel 9,1), onde

freqüentemente era visitado pelo Espírito. Boaventura comenta as buscas na oração

desse modo: “Procurava lugares solitários, propícios à lamentação, nos quais,

enquanto se dedicava a gemidos inenarráveis, depois de longa insistência das preces,

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Oração da Conversão 9

mereceu ser atendido” (LM I,5,6). A um companheiro e confidente começa a dizer

que encontrara “um grande e precioso tesouro” (LTC 12,1). Francisco levava o amigo

muitas vezes a uma caverna perto de Assis e nela, entrando sozinho, deixava do lado

de fora o companheiro (LTC 12,2; 1Cel 6,7). Conta a LTC que, certo dia, estando ali a

orar, ouviu a seguinte resposta: “Francisco, se quiseres conhecer a minha vontade,

deverás desprezar e odiar tudo o que carnalmente amaste e desejaste possuir. Depois

que começares a fazer assim, as coisas que antes te pareciam suaves e doces, serão

para ti insuportáveis e amargas, e, de outra parte, das que te causavam horror,

poderás haurir uma grande doçura e uma suavidade imensa” (LTC 11, 1-2).

d) A aproximação dos excluídos.

Francisco exercitava a vivência dos novos valores, “embora atormentado por

uma grande ansiedade de espírito” (LTC 12,7; 1Cel 6,10). Desde que retomou o

trabalho de comerciante na loja após se haver recuperado da doença e, sobretudo,

depois do retorno da fracassada expedição às Apúlias, “conquanto já fosse há algum

tempo benfeitor dos pobres, no entanto, a partir de então, propôs mais firmemente em

seu coração não negar doravante a nenhum pobre que lhe pedisse esmola por amor de

Deus, mas dar-lhe esmolas mais generosa e profusamente do que de costume” (LTC

8,4). Se não tinha dinheiro, dava o gorro ou o cinturão ou a camisa. Comprava

utensílios para as igrejas e os enviava secretamente aos sacerdotes pobres (LTC 8,6).

Enchia a mesa de pães (com a aprovação da mãe) para depois dá-los aos pobres (LTC

9, 1-2). “Agora seu coração estava todo voltado para ver e ouvir os pobres, aos quais

dava esmolas” (LTC 9,5).

Francisco não se limita a se aproximar dos pobres e dar-lhes o necessário.

Começa a fazer experiências de ser pobre. A primeira foi, longe dos conhecidos e

familiares, na peregrinação a Roma, ainda no ano de 1204 ou início de 1205. Ir a

Roma em peregrinação fazia parte das atividades de todos os que desejavam alcançar

alguma graça especial de Deus. Era tradição popular proceder assim, nos conta R.

Manselli13

. Que graça pedia Francisco? A iniciativa pode dizê-lo por si: “Depois (de

haver dado todo o dinheiro que tinha no túmulo do apóstolo Pedro, escandalizado com

a estreiteza do desprendimento das pessoas) saiu às portas da igreja, onde havia muitos

mendigos pedindo esmolas. Trocou secretamente os farrapos com um dos mais pobres

e os vestiu, tirando as suas vestes. Colocou-se nos degraus da igreja a pedir esmola

com os outros pobres em francês, pois gostava de falar esse idioma, embora não o

conhecesse perfeitamente” (LTC 10, 5-6). Boaventura ao contar o mesmo fato

acrescenta um detalhe: “Cheio de uma alegria que ainda não experimentara” (LM

1,6)14

.

13 R. MANSELLI. Francesco e i suoi compagni. Roma: Istituto Storito dei Cappuccini,1995, p.163-181. 14

Observe-se, no entanto, que apenas a LTC narra que Francisco trocou de roupa e pediu esmolas em francês, a

fim de não ser reconhecido por eventuais assisienses que por lá passassem. Celano (2Cel 8,3) e Boaventura (LM

Page 10: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 10

Retornou para casa mudado interiormente. Não muito tempo depois lhe

acontece o inesperado: encontrar-se com um leproso. Não o vê mais como antes.

Moveu-se de compaixão, “desceu do cavalo”, deu esmola, beijou a mão do leproso e

deixou-se beijar por ele15

. Poucos dias depois voltava ao leprosário, dá esmolas a

todos e beija a mão de todos... “Tornou-se tão familiar e amigo dos leprosos que,

como está declarado em seu Testamento, permanecia entre eles e humildemente os

servia” (LTC 11,11)16

. Essa foi uma experiência decisiva para Francisco. O amargo

virou doce, e o doce, amargo.

A partir da descoberta dos leprosos, sua vida recebeu uma dimensão nova.

Começaram suas “loucuras” que o indispuseram sempre mais com o pai que alega

dilapidação do capital de sua família. Neste ponto o filho estava tocando na ferida

mais doída do pai (o capital e a honra social – lembrar que estamos numa sociedade

ainda muito estratificada). Então o prende na prisão domiciliar, comum em todas as

famílias de status. A mãe, na ausência do pai, o liberta. Pode-se perceber o enorme

conflito familiar que Francisco teve de enfrentar. Mas ele não desistiu. Ao contrário,

“vencido” pela nova visão cometeu outra extravagância ainda maior: carregou um

cavalo de tecidos finos, vai a Foligno, vende tudo, inclusive o cavalo (cujo valor

equivalia ao preço de um carro popular de hoje), e na volta dá todo o dinheiro ao padre

da igrejinha de São Damião17

. Inclusive pede para morar com ele como “converso”.

A fala do crucificado acontece neste momento de trama de sua vida. Como se

percebe, ela foi preparada longamente, de múltiplas formas. Pode-se dizer mais: era

desejada. Era impossível Deus não se manifestar de alguma forma, depois de tanta

busca e tateio, vividos com tamanha coragem. De outro lado, o conteúdo da oração

que ele faz e é objeto de nossa análise, reflete toda esta trama histórica, todas estas

1,6,7), que escrevem depois, apenas referem que Francisco deu a roupa (trocou) e conviveu com eles, sentindo

muita alegria, não necessariamente pedindo esmolas. 15 É interessante que para Francisco, como narra no seu Testamento (1-3), o encontro com os leprosos foi o fato mais decisivo de todo o seu processo de conversão. No entanto, na primeira biografia oficial, Celano nem sequer

o menciona e constrói toda a cronologia da vida a partir do processo de deserdação (despojamento diante do

bispo). É isso que Manselli (São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1997, p 44) chama de “visão

pauperística” da vida de Francisco, ao invés de vê-la a partir da passagem para o lado dos excluídos, isto é, a

opção pela fraternidade. 16 Tanto para Celano (2 Cel 9,12) como para Boaventura (LM l,5,4) o leproso, depois do abraço, “some”, talvez

para dizer que o leproso foi uma aparição de Cristo ou para significar que foi mais uma experiência mística que

um dado real. A nosso aviso, eles procedem assim, porque escrevem dentro de um gênero literário chamado

“hagiografia”, muito comum entre os eruditos. Este gênero ressalta o miraculoso, espiritualizando os pequenos

fatos. Mas é certo que o leproso não desapareceu, como confirma a LTC 11, 3-5). Pode-se entender que o

miraculoso não foi o desaparecimento do leproso, mas sim a identificação que Francisco fez do leproso com

Cristo, o que determinou profundamente a visão cristológica de Jesus Cristo em Francisco. 17 A nosso aviso, parece ser mais verossímil a versão do Anônimo Perusino (AP 7), para quem Francisco não

teria ido à feira de Foligno com o cavalo carregado de tecidos da casa paterna, mas sim, teria vendido aí o cavalo

e a armadura quando do regresso de Espoleto, após o sonho onde a voz lhe pedia para retornar para casa e

aguardar a manifestação de Deus. Vendeu o cavalo, mostrando estar decidido a mudar o rumo da vida.

Page 11: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 11

experiências, todas estas buscas e tentativas. Deste chão da vida brotou esta prece

muito encarnada. E é deste chão que devemos entender seu conteúdo e até buscar os

critérios para a escolha das palavras precisas para traduzir.

Resumindo a “luta violenta” de Francisco durante todo esse processo de

conversão, pode-se dizer que ela se desdobrava ao menos em três grandes dimensões

ou direções:

- Em primeiro lugar, como busca de “fazer-se próximo dos excluídos”, começando

pelos pobres esmoleres e chegando aos mais marginalizados de todos que eram os

leprosos.

- A outra frente era a busca intensa de luz através da oração, como se poderá ver na

própria oração. Para isso fez peregrinação, freqüentava grutas e lugares solitários

quase “diariamente”, etc.

- E, por fim, a outra luta (nem sempre percebida adequadamente) foi a de ir na

contramão da mentalidade hegemônica. Aceitou passar por “louco e demente”, ser

visto como quem perdeu o juízo, ser a vergonha da família e, depois, de Assis (foi

deserdado).

2 – Descrição do conteúdo da oração

A súplica de Francisco diante do Crucifixo de São Damião é o primeiro escrito

conhecido, cronologicamente falando. É, como se observou acima, a resposta de toda

uma caminhada que vinha fazendo e, ao mesmo tempo, expressão desse longo

percurso. Agora tentaremos penetrar no seu conteúdo, dissecando frase por frase:

“Altíssimo e glorioso Deus, O alto e glorioso Dio,

Ilumina as trevas do meu coração. Illumina le tenebre del core mio,

Dá-me uma fé reta, e damme fede dirittaa,

uma esperança certa, speranza certa e cariade perfetta,

uma caridade perfeita. senno e cognoscimento, Signore, che io

Dá-me bom senso e inteligência, ó Senhor, faccia lo tuo santo e verace

commandamento18

.

a fim de que eu cumpra, Senhor, tua santa e verdadeira vontade”19

.

2.1 - “Altíssimo e glorioso Deus”: Deus é um mistério inabarcável que exige

“submissão e abandono, acolhida e confiança” da criatura. Ele não é manipulável,

pois é altíssimo. Deus é glorioso! É uma pessoa cuja densidade de amor

18 Texto crítico, conforme Kajetan Esses, 452. 19 Embora o tradutor brasileiro tenha optado pela segunda pessoa do plural nesta oração, nós preferimos mantê-la

conforme o seu original, que aliás, a torna muito mais direta e familiar. As demais diferenças de tradução

(sensibilidade, conhecimento, mandamento) receberão a justificativa no seu devido momento.

Page 12: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 12

misericordioso ultrapassa infinitamente nossa capacidade de compreensão e perante

quem a atitude mais correta é a reverência obediente, o temor do Senhor. Nossa

criaturalidade requer que nos dobremos ante a majestade divina. A tentação constante

é de querer também nos transformar em “deuses”, como a serpente sugeriu a Adão e

Eva.

Todavia esse “Deus glorioso” foi visto e descoberto por Francisco através da

lente dos leprosos, dos pobres, da sua fragilidade. A onipotência de Deus se manifesta

mediante a misericórdia, o perdão, a força de se tornar homem, assumindo sempre de

novo nossa “carne de fragilidade” (2Fi 4). Francisco não o vê como o “pantocrator”

(em grego: „aquele que tem poder sobre tudo”, ou „Aquele que tudo criou‟ ou „ O

Onipotente‟), mas como o Deus-crucificado, como diria o teólogo Jörgen Moltmann.

2.2 - “Ilumina as trevas do meu coração”. Francisco se sente na dependência de

Deus assim como o dia precisa do brilho do sol para espantar as trevas. Deus é o sol,

mas suas trevas eram realmente espessas: não conseguia divisar claramente os

“vestigia Iesu” (as pegadas, o caminho de Jesus), naquela obscuridade, fruto da sua

confusão interna e externa. Que caminho seguir para viver com fidelidade o

evangelho? Qual das propostas de seguimento que podia observar estaria mais

próximo à fidelidade às pegadas de Jesus? No final da vida vai confessar que

“ninguém lhe mostrou o que devia fazer!” (Test 14) para confessar que não encontrou

um modo de viver o Evangelho que o satisfizesse realmente. Quer dizer, nenhuma

maneira de viver o cristianismo em prática nos caminhos oficiais lhe satisfazia a

expectativa. Por isso, suplicava a iluminação das trevas do “coração”, quer dizer, do

mais profundo do seu ser, não somente da inteligência e da razão. Ao dizer “coração”,

deixa entender que a escuridão era global e o atingia profundamente, sem deixar de

ser, ao mesmo tempo, a noite das trevas da fé. Expressando-se assim abarcava a

convivência, a profissão, a fé, a opção vocacional, tudo enfim.

2.3 - “Dá-me uma fé “dricta”. Francisco usa aqui o adjetivo “dricta”, direta e não

“vera”, palavra que ele também conhecia muito bem. A nosso ver, tratar-se-ia de uma

fé que não utiliza mil justificativas para dar a impressão de fidelidade, mas que acaba

realizando apenas o projeto humano! Certamente por detrás deste pedido de “fé reta”

estava também uma compreensão cristológica. Em quais sendas Jesus Cristo, de fato,

deixara suas pegadas? Com quem esteve Ele caminhando lado a lado? Teria Ele dado

as mãos à hierarquia da religião institucional, aos nobres e aos burgueses ou antes teria

se abaixado a ponto de quase não ser reconhecido sequer como pessoa humana nos

pobres e leprosos, como Paulo expressa na Carta aos Filipenses (2,5-11)? E qual seria

ou deveria ser o papel da Igreja: promover cruzadas e guerras, mesmo se com

motivação aparentemente religiosa? Excomungar? Ameaçar e conduzir pelo medo?

Tecer razões teológicas para justificar a divisão de classes, como alguns teólogos

Page 13: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 13

faziam? Declarar, mediante um cerimonial que os leprosos eram mortos-vivos?20

Afinal, a Igreja institucional, de um modo geral, não estava vivendo o evangelho do

poder ao invés de viver o poder do evangelho? Como, pois, viver uma fé “dricta”,

genuína, transparente, verdadeira, de modo que quem se aproximasse pudesse

reconhecer, de fato, o jeito de Deus ser e amar? Que nele o jeito de Deus ser e amar

pudesse ser transparente. Daí o veemente pedido de uma fé “dricta”.

2.4 - “Dá-me esperança firme”. Esperança nas promessas de Deus que faz relativizar

todas as demais promessas humanas. “Tanto é o bem que se espera que todo o

sofrimento é alegria”. Que a gente não se iluda com as promessas fáceis e falazes do

príncipe das trevas deste século! Francisco tinha consciência das falsas esperanças

apresentadas pelo seu tempo. Nem aceitava pôr a esperança em esquemas racionais de

justificação do “status quo” como era moda. Nem queria se deixar iludir por um

egoísmo coletivo inconsciente que busca salvar a própria pele. Seriam esperanças

falazes, não firmes! Anseia por uma utopia que ultrapasse a história, mas sem se

desvincular dela. Por isso, Francisco pede uma esperança “firme”, sólida e alicerçada

em Deus. Pede para poder olhar para além de si mesmo21

.

2.5 - “Dá-me caridade perfeita”. Francisco suplica por um amor radical, total. Sente

que meias-medidas não combinam com o projeto de Deus e nem com coração humano.

“Quando eras jovem tu te cingias e ias onde querias; quando fores mais experimentado

no amor, outros te cingirão e irás para onde não queres” (Jo 21,18). Entrar na dinâmica

da gratuidade e misericórdia do Pai torna a pessoa uma oferta total para os outros, sem

mais propriedade sobre si mesma e integralmente voltada para o bem dos outros, com

conseqüências imprevisíveis. Ele mesmo havia feito pequenas experiências de

“caridade perfeita” para com os leprosos, passando a visitá-los com muita freqüência.

A caridade perfeita faz o eixo da vida se deslocar do próprio “umbigo” para a “casa do

outro”. O que distingue um seguidor de Cristo é o amor: a vida é resposta pessoal ao

tu: ao Tu de Deus e do próximo. Sua vida é uma resposta ao amor. Nada por vanglória.

“Nisto conhecerão que sois meus discípulos; se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,

35), disse Jesus no contexto do lava-pés. Também o critério último de julgamento é o

amor, real, concreto (Mt 25,31s). O amor “sine glosa”, sem comentários que

justificam comodismos.

Francisco está pedindo, com força, a Deus o dom mais fundamental e mais

necessário: o amor. Se, de fato, ele enveredou por um caminho novo, deixando um

20 Tenha-se presente que na Idade Média, quando um familiar era identificado com lepra, o sacerdote ia à sua casa e fazia uma cerimônia parecida com as exéquias e logo em seguida a pessoa era conduzida a um leprosário

donde não podia mais sair. Por isso era considerado morto-vivo. Além disso, essa pessoa perdia todos os

direitos, como se realmente tivesse morrido. 21 Cf. L.Lehmann, La preghiera francescana, 20.

Page 14: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 14

exemplo luminoso, também se deve ao fato de que pediu insistentemente esse dom do

amor. E de modo ousado: um amor perfeito! Não qualquer amor; o amor perfeito. Esse

consiste em amar do jeito de Deus. Jesus insiste que devemos ser perfeitos como o Pai

do céu.

2.6 - “Dá-me, Senhor, bom senso e inteligência”. Esta frase, talvez, seja a mais

reveladora da trama existencial presente nesta prece e que se tentou mostrar na

primeira parte deste texto. Queria ele fugir, ao mesmo tempo, da mediocridade, da

heresia, da auto-suficiência. E queria, acima de tudo, viver o Evangelho de Jesus

Cristo, “sine glosa” (sem aqueles tipos de comentários que levam a distorcer a

proposta original de Jesus com sutis argumentos teológicos). Tal propósito significava

andar na contramão da sociedade e da própria Igreja22

: “ninguém me mostrou o que eu

devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do

santo Evangelho” (Test. 14), confessará no final da vida. Ao mesmo tempo este

pedido supõe o desejo de querer penetrar no âmago da proposta evangélica.

Sabe-se, porém, que a linha divisória entre a radicalidade evangélica e a

“loucura”, a insensatez, a heresia, a auto-suficiência... é muito tênue. Por isso, suplica

“juízo” e “inteligência”. Nossa tradução brasileira atual usa o termo “sensibilidade”.

Talvez não seja tanto incorreto, quanto, a nosso ver, insuficiente, para dizer o quanto

se esconde por trás destas palavras. “Perder o juízo, é muito mais forte do que sentir de

modo errôneo ou ter pouca sensibilidade. E a palavra “senno” em italiano significa

juízo, a capacidade de avaliar objetivamente as coisas, as pessoas e os fatos, o

momento histórico. Quando alguém, em italiano, ainda hoje, diz: “Lei ha perso il

senno” ele quer dizer: “você perdeu o juízo” e não apenas que você sentiu ou pensou

errado. A nosso aviso, nessa tradução há um eufemismo de linguagem, exatamente

porque não se leva em conta o contexto existencial de Francisco. Ele durante este

período de conversão era chamado e tratado por “louco, insano ou demente” muitas e

muitas vezes, por muitas pessoas, especialmente as mais próximas23

. Isso tudo doía

nele e lhe levantava a suspeita de que talvez estivesse se enganando. Não é de duvidar

que este seja o pedido mais significativo e intenso nesta altura da vida! Observe-se

ainda, que de todos os textos-orações de Francisco, esse é o único no qual ele é o

centro das atenções24

, o que denota seu estado de grande fragilidade (de trevas) e sua

ainda pequena envergadura espiritual.

22 Aqui, entendo a Igreja Instituição. Francisco tinha fé “in ecclesiis”: no mistério confiado por Nosso Senhor à

Igreja (Test 4). 23 Cf 1 Cel 11,2; LTC 17,4; LM 2,2,5; AP 9,4; Jul 7,7. E 10 anos mais tarde ele reconhece publicamente que

Deus quis fazer dele um “novo louco” no mundo (CA 18,6 - LP 114). 24

Compare-se, por exemplo, esta oração com o Cântico do Irmão Sol, com os Louvores ao Deus Altíssimo onde

Francisco desaparece completamente e o centro da atenção é única e exclusivamente Deus.

Page 15: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 15

Francisco pede também “connoscemento” que nossa tradução atual mantém

literalmente. Ainda que tecnicamente exata, preferimos empregar o termo

“inteligência”, pois conhecimento para nós significa geralmente saber dados, ter as

informações. Ao passo que a palavra inteligência está mais relacionada à capacidade

de compreensão, como o termo latino (intus+legere) deixa a entender. Esta estaria

mais ligada ao discernimento, à compreensão profunda dos fatos. Era isso que

Francisco buscava, e não informações novas.

A capacidade de avaliar devidamente o valor das coisas e das ações está

diretamente relacionada com a capacidade de compreender profundamente os fatos e

as circunstâncias de vida, em nosso caso, com os critérios evangélicos. Esta é a cruz

que Francisco carregava neste momento da vida com muita coragem. Assumiu-a com

garra. Quando tal acontece conosco, vamos, geralmente, contemporizando, deixamos

esfriar a inquietação que poderia nos levar a picos mais altos de fidelidade. Francisco,

ao contrário, a assumiu!

Vamos fazer aqui uma pequena digressão que nos parece oportuna a respeito

das alternativas de vivência da fé que Francisco encontrava ao seu redor:

a) A primeira proposta, a mais provável em suas circunstâncias familiares e

sociais, era a de se tornar um leigo “normal”: seguir o caminho do “cristão burguês”.

Embora não sofresse nenhuma crítica da igreja institucional, o próprio Francisco

experimentara que, no fundo, aquele era um caminho de busca da própria honra e

glória. Via sua grande fragilidade, mesmo se tranqüilamente aceito pela Igreja

institucional e até considerada benemérita, devido às esmolas que essa classe fazia

para as instituições eclesiásticas. Mas como diz o Evangelho de João: “Como poderíeis

crer, vós que vos glorificais uns aos outros e não procurais a glória que vem de Deus

somente” (Jo 5, 44). Quando a visão da vida se concentra no umbigo, desaparece o

horizonte (Francisco vivia o que entendia. Parece que hoje gostamos mais de aplaudir

quem bonito fala!).

b) A segunda alternativa podia ter sido a de pertencer à estrutura oficial da

Igreja como clérigo ou monge. Ainda que eles formassem a classe dos “eleitos”, dos

que “tinham garantia de salvação eterna” (assim definia o direito canônico de então),

era fácil perceber suas inconsistências internas e incongruências sociais. O projeto de

Jesus estava embutido e sufocado no projeto humano social de busca de riqueza, de

poder, de bem-estar, de estrutura de segurança, ainda que disfarçadas. Achando-se os

“bons”, afastavam-se sempre mais do povo, mormente do povo pobre e ignorante. Já

não eram capazes, desde sua situação de poder, de se fazerem irmãos dos mais

excluídos.

Page 16: Senhor, dá-me bom senso / [Arno Frelich?]

Oração da Conversão 16

c) O terceiro caminho seria, por exemplo, viver como converso (leigos

consagrados que dedicavam sua vida a uma igreja, mosteiro ou obra social), em

pobreza total e doação irrestrita. Ou ainda, já que pululavam às dezenas nos últimos

100 anos antes de seu nascimento, ingressar num dos movimentos laicais de

penitência como os valdenses, os humilhados, os pobres católicos, os albigenses, os

flaggellanti, os cátaros etc. Contudo, estes estavam na mira condenatória da hierarquia

e carregavam o estigma de heresia, isto é, eram vistos como traidores da fé, da igreja,

da religião, embora demonstrassem sinceridade e radicalidade no viver os valores

evangélicos. Diante deste quadro, por onde enveredar? “Ilumina as trevas do

coração...”.

Quando três anos mais tarde, depois de haver reformado as igrejas de São

Damião, São Pedro e de Nossa Senhora dos Anjos25

, convivido com pobres e leprosos,

ouve o evangelho do “envio missionário” na igreja da Porciúncula (Lc 10 ou Mt 10),

ao ser confirmado na compreensão pelo sacerdote que celebrara a missa, Francisco

exclama: “É isso que eu quero (= vontade), é isso que eu procuro (= inteligência), é

isso que eu desejo (= afetividade) fazer de todo o coração” (1Cel 22). Esta

exclamação impressiona, aparece como resposta a uma pergunta longamente

acalentada, bem no fundo do coração.

Durante o processo de conversão andara com o coração enredado nas trevas.

Nada mais natural, então, que suplicar por “Senhor, dá-me muita luz”. E guarda minha

cabeça no lugar. Não falte sal nos meus miolos, nem se afrouxem os parafusos. Dá-me

“senno e conoscemento” para cumprir tua vontade (não a minha, nem a de quem pode

me desviar do caminho verdadeiro), a vontade de Deus, manifestada em Jesus Cristo

que, por sua vez, a imprimiu nas pegadas, na sua prática. O que ele intuía pela frente

era muito arriscado. Abrir caminho novo é muito exigente!

2.7 - “A fim de que possa cumprir o teu santo e verdadeiro querer”. A palavra

“commandamento” em italiano geralmente significa uma ordem concreta e precisa,

emanada de uma autoridade. Porém às vezes pode ser usada como sinônimo de

“vontade”, da qual os mandamentos seriam uma expressão específica. Pode-se, assim,

falar dos mandamentos de Deus ou da sua vontade como sinônimos26

. Esta alternativa

permitiria perceber que Francisco rezava há mais tempo esta oração e não

necessariamente tê-la inventado no dia em que o crucificado lhe falou, como deixava

entender a tradução anterior.

25 Os estudiosos, sobretudo Miccoli e Merlo, hoje cada vez mais apontam para o fato de que , na prática,

Francisco reformou apenas a igreja de São Damião. A contagem de três deve-se à simbologia da fundação das três ordens, mas não tem consistência histórica. 26 Carlos Mesters, (Estudo Bíblico Mt 5-9 CEBI-Sul, 1989, p. 10-11) junto com uma equipe de exegetas, ao

analisar o Pai Nosso (Mt 6), quando tratam de “seja feita a vossa vontade...”, buscam a revelação do código da

aliança, os dez mandamentos para dizer que ali está a manifestação da vontade de Deus.

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Oração da Conversão 17

Francisco suplica poder realizar, no reto uso da razão, o desígnio de Deus para

com ele. Na prática, este não é um novo pedido. Está embutido nos pedidos anteriores,

pois quem cumpre a vontade de Deus tem fé genuína, esperança firme e caridade

perfeita, tem bom senso e é perspicaz (inteligente). Quase no final da vida Francisco

dirá que: “Agora, porém, depois que abandonamos o mundo, nada mais temos a fazer,

a não ser seguir a vontade do senhor e agradar-lhe” (Rnb 22,9). Segundo G.G Merlo,

F. Accrocca, Liliana Cavani e outros, no final da sua vida, os estigmas e o Cântico do

Irmão Sol seriam dois sinais recebidos por Francisco que lhe confirmaram ter seguido

o trilho correto, não obstante sua insegurança humana.

Importa sempre ter presente que Francisco está querendo iniciar uma nova

caminhada de vida, a vida que lhe é sugerida por Deus, percebida nas pegadas de Jesus

Cristo. Francisco quer deixar-se conduzir inteiramente por Deus. Lança-se na

incógnita caminhada para o absoluto. Não aceita mais seguranças telúricas de

qualquer natureza. Não se contenta com metas humanas. Quer alçar vôo para o

infinito de Deus. Quer apostar absolutamente tudo em Deus, ainda que para seus

conterrâneos seja uma loucura, uma insanidade, a perda do são juízo, uma demência.

Conclusão

Gostaríamos aqui de tecer uma breve consideração para concluir esta análise.

Francisco, nesta oração começa suplicando pelas três virtudes que nós chamamos

“cardeais”, isto é, aquelas que fornecem a orientação básica da vida e moldam,

destarte, todas as nossas relações, com

Deus, com as pessoas, conosco mesmos e com a natureza. Aspira que estas relações

sejam transparentes e genuínas, ao máximo. Ele foi beber na fonte, no olho da fonte

como dizem os caipiras. Não seria essa uma lição importante para nós, geralmente,

preocupados com pequenas ninharias? Se ele voou alto, não foi por puro impulso

divino; ele colaborou buscando com muita intensidade e coragem.

De outro ponto de vista, pode-se dizer que Francisco oferece, com o conteúdo

desta oração, uma bela lição de vida ainda no início de sua caminhada espiritual: não

quer muita mochila, desfaz-se de todas as seguranças, às vezes mais perniciosas que

muitos bens. Quer estar livre e desimpedido. Quer ter as mãos livres para abraçar, para

saudar, para tatear. Quer sentir os ombros descarregados de fardos que os encurvam e

fazem olhar para a terra, perdendo os horizontes. Quer ter as pernas adestradas para a

corrida. Quer que os limites do horizonte, demarcados pelo modo estreito de pensar e

de julgar da sociedade hegemônica, sejam ampliados pela presença do “altíssimo e

glorioso Deus”. Numa palavra, Francisco entra na pista, qual atleta, com o mínimo de

roupa para que nada o atrapalhe na luta. Quer lutar nu (como faziam os atletas

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Oração da Conversão 18

antigamente) com o inimigo para que este não o possa agarrar e prender de forma

alguma, pensamento este muito conhecido no seu tempo (Nudus nudum sequi).

Também inicia a caminhada confiado à Providência. Quer ter fé verdadeira

(reta), esperança firme e caridade perfeita, provenientes unicamente de Deus. À

máxima exigência de sua generosidade une a presença energizante e vigorosa de Deus,

fonte de todo o Bem. “Canta, caminha, busca e espera, e Deus te encontrará”, canta a

canção do Pe. Loacir Luvison. Eis a postura correta para encetar uma caminhada que

serve de plataforma de lançamento para cada qual de nós, hoje.

No início de sua vida de conversão, Fco rezava pedindo a Deus que iluminasse

as trevas do seu coração. No final de sua conversão, fez outra oração, os Louvores a

Deus. Descobre que o que pedia no início era uma característica do ser de Deus: “Tu

és a esperança, Tu és a nossa fé, Tu és o nosso amor”.

Servi-me do estudo de Frei Aldir Croccoli. Acresci pouco.