Sensatez Como Modelo e Desafio Do Pensam

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    SENSATEZ COMO

    MODELO E DESAFIO DOPENSAMENTO JURÍDICO

    EM ARISTÓTELES

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    SENSATEZ COMO

    MODELO E DESAFIO DOPENSAMENTO JURÍDICO

    EM ARISTÓTELES

    Nuno Manuel Morgadinho dos

    Santos Coelho

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    E X P ED I E N T E

      PRESIDENTE E EDITOR  Italo Amadio

      DIRETORA  EDITORIAL  Katia F. Amadio  EDITORA   ASSISTENTE  Ana Paula Alexandre

      EQUIPE TÉCNICA   Bianca Conforti  Flavia G. Falcão de Oliveira

    Marcella Pâmela da Costa Silva

      PROJETO GRÁFICO  Sergio A. Pereira

      DIAGRAMAÇÃO  Projeto e Imagem

      PRODUÇÃO GRÁFICA   Helio Ramos

      IMPRESSÃO  RR Donnelley

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Coelho, Nuno Manuel Morgadinho dos Santos

      Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico em Aristóteles / Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho. – 1. ed. – São Paulo :Rideel, 2012.

      Bibliografia.  ISBN 978-

      1. Direito previdenciário 2. Direito previdenciário – Concursos –

    Brasil I. Loyola, Kheyder. II. Título.

    11-14379 CDU-34:368(81)(079.1)

    Índices para catálogo sistemático:1. Brasil : Concursos públicos : Direito previdenciário 34:368(81)(079.1)2. Brasil : Direito previdenciário : Concursos públicos 34:368(81)(079.1)

    © Copyright – Todos os direitos reservados à

     Av. Casa Verde, 455 – Casa Verde

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    SUMÁRIOINTRODUÇÃO – A sensatez e o direito como pensamento prático .................... IX

    Capítulo 1 – O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidadehumana ............................................................................................................... 1

    1.1 O humano entre o animal e o deus ............................................................... 3

    1.2 O desafio da autossuficiência ....................................................................... 10

    1.3 Eudaimonia: forma firme de viver no domínio radical de si mesmo ........ 14

    1.4 Felicidade e os limites do poder do humano sobre si mesmo .................. 19

    Capítulo 2 – Si mesmo como desafio no horizonte do desejo .............................. 23

    2.1 A ética como doutrina das virtudes .............................................................. 25

    2.2 A virtude ética como o meio-termo entre o excesso e a escassez do

    desejo no horizonte das paixões ................................................................... 31

    2.3 As virtudes éticas: seu elenco e seus horizontes ...................................... 35

    Capítulo 3 – A virtude da justiça ............................................................................... 43

    3.1 O horizonte da justiça ...................................................................................... 45

    3.2 Lei e justiça ....................................................................................................... 46

    3.3 A justiça como rainha de todas as virtudes e a alteridade na ética aris-

     totélica ............................................................................................................... 50

    3.4 O sentido particular da justiça, a especial consideração do outro e a

    instituição da convivência como uma ordem política ............................... 55

    3.5 Justiça distributiva e justiça comutativa ..................................................... 60

    Capítulo 4 – Justiça como equidade e a autoconstrução como tarefa infinita .. 65

    4.1 Lei e equidade .................................................................................................. 67

    4.2 Necessidade, troca e igualdade e o fundamento da associação política.. 68

    4.3 Determinação do preço e equidade ............................................................. 71

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    Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico em AristótelesVI

     

    4.4 Equidade, determinação do preço e antropocentrismo ético .................. 75

    Capítulo 5 – Voluntariedade ....................................................................................... 795.1 Voluntariedade e agir (e a constituição do caráter) .................................. 81

    5.2 Voluntariedade e decisão ............................................................................... 84

    Capítulo 6 – A excelência da razão prática entre as virtudes do pensar: o

    Livro VI da Ética a Nicômaco  ......................................................................... 89

    6.1 O agir como encontro entre o desejar e o pensar ..................................... 91

    6.2 O sentido geral da investigação sobre a excelência do pensar e os ho-rizontes da sensatez ........................................................................................ 92

    6.3 Sensatez e epistêmê  (o pensamento prático em face do pensamento

     teórico) ............................................................................................................... 99

    6.4 Sensatez e habilidade técnica (o pensamento prático em face do pen-

    samento técnico) ............................................................................................. 104

    6.5 Nous  e sensatez ............................................................................................... 108

    6.6 Sabedoria teórica (sophia) e sensatez ......................................................... 110

    6.7 Sunesis e gnômê no horizonte da sensatez ................................................ 113

    6.8 Sensatez e sophia e a realização da felicidade como fim do humano ... 115

    6.9 Sensatez e esperteza (deinotês) ................................................................... 117

    Capítulo 7 – Fenomenologia do agir ......................................................................... 119

    7.1 O decidir em questão ...................................................................................... 121

    7.2 Universal e particular na racionalidade prática: a implicação recípro-

    ca entre a visão do fim e a percepção da situação – ou da inadequa-

    ção do “silogismo prático” como modelo explicativo do agir ................. 124

    7.3 A razão prática como a mobilização de meios e a afirmação de fins do

    humano .............................................................................................................. 131

    7.4 A racionalidade prática sob o paradigma do debate político (a alma

    como agora) ...................................................................................................... 141

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    Sumário VII

    Capítulo 8 – O fundamento da correição da ação .................................................. 149

    8.1 O homem sensato (phronimos) como fundamento do agir ....................... 151

    8.2 Não cognitivismo e historicidade radical e a constituição do humano

    como ser racional ............................................................................................ 155

    8.3 O louvor e a constituição pública do phronimos como phronimos ......... 162

    8.4 Caráter e ordem política ................................................................................. 167

    Capítulo 9 – Conclusões .............................................................................................. 175

    9.1 O comprometimento do ser do humano e da ordem no agir no horizon-

     te da justiça ....................................................................................................... 178

    9.2 O pensar que envolve o direito, sob o paradigma da razão prática aris-

     totélica ............................................................................................................... 187

    Referências bibliográficas ......................................................................................... 197

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    INTRODUÇÃO – A SENSATEZ

    E O DIREITO COMOPENSAMENTO PRÁTICO

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    INTRODUÇÃO – A sensatez e o direito como pensamento prático  XI

    Este livro convida para uma nova leitura da ética de Aristóteles, e para uma

    reflexão sobre a sua possível contribuição à investigação sobre o pensamento ético

    e jurídico e os processos de realização do direito contemporâneo. Interessa – comointeressou muito especialmente à filosofia do século XX1 – retomar o Livro VI da

    Ética a Nicômaco, que trata das virtudes intelectuais, as virtudes do pensar, e da sua

    relação decisiva com as virtudes éticas, as virtudes do desejar. O Livro VI é chave

    para a compreensão de toda a ética de Aristóteles, e pode esclarecer questões cen-

    trais da experiência ético-jurídica atual. Encontra-se ali o conceito undamental de

    sensatez,2 uma particular inteligência para a solução correta e eficaz de questões da

     vida prática, essencial para compreender o trabalho e o modo de pensar dos juris-

    tas. Por este motivo, ela é proposta aqui como desafio e undamento do pensamen-to jurídico.

    Ao contrário do pensamento eminentemente teórico, que considera as coisas

    que estuda como objetos prontos que lhe cabe simplesmente apreender e descrever,

    o pensamento prático, de que a sensatez é a excelência e o modelo, conhece e pensa

    as coisas (ações e situações) práticas, cuja causa é o próprio homem, preparando a

    decisão e a ação. No mundo prático, inaugura-se a ética com a possibilidade do agir

    humano sobre o mundo, perazendo-o,3 e sobre si mesmo. O pensamento prático

    1  Uma visão global do movimento de reabilitação da filosofia prática encontra-se na co-letânea de M. Riedel, Rehabilitierung der praktischen Philosophie. Uma visão mais am-pla da presença de Aristóteles no cenário filosófico do século XX encontra-se na mo-nografia de Enrico Berti,  Aristóteles no século XX . Destaca-se que a reinterpretação deAristóteles está na origem de alguns dos mais importantes movimentos daquele século,como a enomenologia (Aristóteles está na raiz da eitura de Ser e tempo de Heidegger),a hermenêutica (basta lembrar Verdade e método, de Gadamer) e a retórica e a teoria daargumentação (sublinhe-se o ratado da argumentação de Chaïm Perelman, e ópica e

     jurisprudência, de Teodor Viehweg).2  A palavra grega phronesis traduz-se geralmente, por via do latim, como prudência. Aqui

    usamos simplesmente sensatez, acompanhando a interessante tradução de António deCastro Caeiro recentemente publicada no Brasil. Uma pequena ração da argumentaçãocontida neste livro unciona, com algumas alterações, como introdução a esta ediçãobrasileira da Ética a Nicômaco. Daquele mesmo estudioso recomenda-se também a lei-tura da monografia  A aretê como possibilidade extrema do humano: enomenologia dapraxis em Platão e Aristóteles.

    3  O universo da sensatez é o daquilo que pode ser dierente do que é – encontrando nohumano o seu princípio – no que se distingue da outra virtude intelectual que tambémé possibilidade exclusiva do humano – a sophia, sabedoria teórica – que atine ao que é

    necessário, ao que escapa ao poder constitutivo do humano e diante do qual há contem-plação, e não ação.

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    Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico em Aristóteles XII

     

    não quer simplesmente saber o que se passa, mas quer conormar o mundo, mudar

    o homem (a começar por si mesmo) ao resolver situações.

    A proposta central aqui é entender o pensamento jurídico como uma das di-mensões undamentais da existência humana, no contexto da razão prática, a par-

    tir da noção undamental de sensatez. A reconstrução da sensatez está a serviço da

    compreensão do direito como orma de vida. Se a leitura de Aristóteles procura a-

    zer justiça ao texto que a tradição nos legou, esorça-se ao mesmo tempo em recu-

    perá-lo como uma lição contemporaneamente relevante. Isto é eito ao pressupor

    bases pós-essencialistas que assumem, como ponto de partida, a destruição da me-

    taísica tradicional perpetrada por Martin Heidegger em Ser e tempo, de 1927. Nes-

    te sentido, dizer “pós-essencialista” é o mesmo que dizer “pós-metaísico”, toman-do a palavra metaísica num sentido tradicional.4

    O não essencialismo não conduz necessariamente a filosofia e o pensamento

     jurídico para o irracionalismo, mas exige e abre para outros modelos de raciona-

    lidade que não o epistêmico-teórico (matemático) – como o prático-argumentati-

     vo, paradigma que orienta a reflexão sobre a sensatez proposta aqui. “Não cogni-

    tivismo” sinaliza uma orma de pensar, elevada à condição de uma orma de estar

    diante do mundo, ainda concebível nos quadrantes da razão, mas de uma raciona-

    lidade muito distante dos modelos epistemicamente orientados, de matiz logicis-ta e ormalista. O pensar não cognitivista, admitido como mais bem ajustado à di-

    mensão ético-jurídica da vida, é o pensar constituidor do seu próprio princípio em

    cada situação prática, e, por orça disto, constituidor também do ser humano, que

    está em jogo em todo agir. Em resumo, de acordo com o princípio da historicida-

    de radical da existência humana e da experiência do direito, o homem está em jogo

    em sua compreensão do mundo. O homem torna-se o que é na medida em que

     vive, em que age e compreende o mundo. O pensamento jurídico é uma dimensão

    de sua existência, participando também, assim, da decisão acerca do próprio hu-mano. Ao decidir o direito, o homem decide a si mesmo. Neste sentido, concebe-

    4  Uma filosofia do direito pós-essencialista tenta compreender o sentido do direito e aexperiência jurídica sem recorrer à convicção (é) antiga e moderna numa essência – dohomem, como de qualquer ente – independentemente da existência. Ao contrário, talfilosofia parte do pressuposto da historicidade radical do homem e de tudo que está, nomundo, diante do homem, e tenta dar conta do que o direito pode significar a partir des-te novo ponto de vista. Vide nosso artigo O princípio ontológico da historicidade radical

    e o problema da autonomia do direito – ensaio de aproximação filosófica do jurispru-dencialismo. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, vol. 47, p. 217- 247, 2005.

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    INTRODUÇÃO – A sensatez e o direito como pensamento prático  XIII

    se aqui o pensamento jurídico como orma de vida, segundo um princípio de his-

    toricidade radical.

    Ao abordar o direito como este pensar não cognitivista, pelo qual o homem setorna o que é, o texto liga-se ao tema undamental da reflexão ética de Aristóteles

    – o desafio da eudaimonia,5 como desafio de autorrealização do homem, pela qual

    ele mesmo é radicalmente responsável. A ética aristotélica não pretende outra coisa

    senão descrever o processo pelo qual o homem se torna o que é, cumprindo-se (ou

    alhando) a partir de suas possibilidades mais radicais.

    A elicidade, enquanto tarea de autorrealização do homem como humano,

    compreende-se no horizonte da sensatez, horizonte este partilhado com as virtu-

    des éticas. A sensatez preside à autoconstrução humana no horizonte ético, con-ormando as virtudes éticas, cujo conjunto é conhecido como o caráter do homem.

    A sensatez orienta a autoconstituição do homem como um homem sério,

    guiando o seu viver e permitindo-lhe ascender ao bem viver, para além do apri-

    sionamento na paixão e na sensibilidade (mas delas nunca prescindindo, enquan-

    to humano: no seu horizonte e no seu exercício o homem se descobre e se mantém

    humano – nem deus, nem era, mas intervalo em que a liberdade e a ética azem

    sentido) e em direção ao autodomínio e à elicidade. É pelo exercício da sensatez

    que o humano se levanta por sobre a necessidade simples e imediata para conor-mar sua própria vida, valorando cada situação em que se encontra e instituindo cri-

    térios sobre o agir que podem aquilatar o valor da própria vida. O valor já não re-

    side simplesmente em viver, não vale qualquer vida, mas a vida boa, medida por

    critérios (fins) em honra dos quais, dependendo das circunstâncias, pode ser pree-

    rível morrer exatamente em homenagem a bem viver.

    Esta descoberta – este soerguimento do humano para além do simples viver –

    é contemporâneo da invenção da filosofia e da autoafirmação da Grécia como inédi-

    5  A palavra eudaimonia  entra no Liddell-Scott como “prosperity, good ortune, wealth,weal, happiness”: “eudaimon-ia  (...) A.  prosperity, good ortune, opulence (...)  2. true,

     ull happiness (...) b. personified as a divinity (...)”. A palavra é composta por eu (bom)mais daimon, que significa demônio, ou gênio que habita o humano. Daí as palavrasdaimonikos (“possessed by a demon”), daimonizomai (“to be possessed by a demon orevil spirit”), daimoni-aô (“to be possessed o a God”). LIDDELL, Henry George, SCO,Robert.  A Greek-English Lexicon. Ser eliz é ser habitado por um bom espírito, o quepode significar: é ter uma boa alma, é azer de si mesmo uma boa alma. É estar de bom

    astral, como acentua Sebastião rogo em suas aulas, mas em decorrência, em Aristóteles,de sua própria autoconquista.

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    ta civilização undada na ciência.6 É explícito já nos textos homéricos o tomar a vida

    nas próprias mãos e a assunção pelo homem da responsabilidade por si mesmo, e

    é isso que az deles a pedra angular da vida grega e a peça inaugural de toda ética.7

    A estes textos, e a toda a tradição cultural que eles undam, a ética aristotéli-

    ca liga-se evidentemente – não bastasse para tanto o seu habitual recurso metódico

    às opiniões venerandas como ponto de partida dialético8 – e procura ser o seu con-

    tinuador (Aristóteles pensa-se ele mesmo educador, como Homero e Platão, mas

    com uma peculiar consciência dos limites de todo legislador e de toda ciência éti-

    ca) – a ética não é uma peça de interesse principalmente científico, mas é prática:

    ela pretende tornar os homens bons, e é isso que objetiva quem escreve – e lê – so-

    bre ética.Falar da sensatez requer retomar todo o conjunto da ética de Aristóteles assim

    como o seu lugar no universo ético grego – e requer retomar também o pensamen-

    to político de Aristóteles.9

    6  Vide: PAOČKA, Jan. Platon et l’Europe – Seminaire privé du semestre d’eté 1973; CH-VAIK, Ivan. Te heretical conception o the european legacy in the late essays o JanPatočka. Vide também: BLUMENBERG, Hans. O riso da mulher de rácia: uma pré-história da teoria. Dedicamo-nos ao tema do copertencimento entre filosofia-ética e acivilização ocidental no artigo Direito e política e o advento do Ocidente como a civili-zação undada na ciência.

    7  Para uma detalhada reconstrução do itinerário do conceito de aretê, essencial para situaro pensamento ético de Aristóteles, vide a obra undamental de Werner Jaeger, Paidéia. Aormação do homem grego.

    8  Sobre o método da exposição e da investigação na Ética Nicomaquéia, vide :BERI, En-rico. As razões de Aristóteles, p. 115-156; VAZ, Cláudio Henrique de Lima. Platão revisi-tado. Ética e metaísica nas origens platônicas. Síntese, vol. 20, n. 61; FERRAZ JUNIOR,ercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. Reflexões sobre o poder, a liberdade, a

     justiça e o direito.9 É preciso justificar a escolha dos textos utilizados para a reconstrução do pensamento

    ético de Aristóteles. O texto undamental é sem dúvida a Ética a Nicômaco, a que nos de-dicamos precipuamente, em detrimento dos dois outros tratados éticos atribuídos a ele:a Ética a Eudemo e a Grande Moral  (cuja autenticidade hoje já não é maioritariamentereconhecida, mas que seguem sendo uma reerência a não desprezar de seu pensamentoético). Utilizamos estes textos como recurso apenas suplementar, e especialmente paratentar perceber as mudanças de perspectiva que marcam o desenvolvimento do pensa-mento ético-político de Aristóteles ao longo de sua vida, aceitando a tese genético-evolu-tiva de Jaeger de que correspondem a dierentes momentos de sua trajetória intelectual,num progressivo distanciar-se do idealismo dualista de Platão e na construção de sua

    própria perspectiva; deste processo a Ética a Nicômaco  representa decerto o texto damaturidade e o ponto de chegada de um longo e original esorço compreensivo do modo

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    INTRODUÇÃO – A sensatez e o direito como pensamento prático  XV

    odo pensamento ético em Aristóteles é ao mesmo tempo político e jurídico.O pensamento grego moveu-se na unidade sincrética entre moral, política e direito.

    al como esclarece Ferraz Jr., “altou à cultura ática o pereito isolamento lógico danorma jurídica”, razão pela qual, “em que pese a grande elaboração do pensamen-to ático, sua ormulação cuidadosa e acabada, uma doutrina do Direito ático nãopode, ainda hoje, apesar da elaboração constante que vem sorendo sua sistemáti-ca, ser mais que um aglomerado de problemas dispersos”, que se deve “à ausência,na Grécia antiga, de uma ciência do direito”.10 Se, como esclarece Salgado, a cons-ciência jurídica apenas se autonomiza na experiência jurídica romana,11 não oere-cendo a literatura grega os elementos para a compreensão do direito em sua espe-cífica autonomia, qual o interesse, para a compreensão do direito como pensar talcomo propomos aqui, desta recuperação do pensamento ético-prático grego, e es-pecialmente de Aristóteles?

    Embora não se possa alar em autonomia do direito entre os gregos, reconhe-ce-se o mérito excepcional de Aristóteles por ter assinalado, pela primeira vez eem termos absolutamente explícitos, a autonomia do pensamento prático, da ra-zão mobilizada no agir, em contraposição à razão teórica, epistêmica, mobilizadana atividade científica. A compreensão da sua lição prática pode desazer muitosdos equívocos da filosofia do direito moderna e contemporânea, pois os contornoscom que nitidamente descreveu a sensatez – como excelência na racional mobiliza-ção de meios em ace de fins descobertos na situação concreta única e irrepetível –azem da teoria aristotélica do pensar prático uma reflexão ainda hoje poderosa so-bre o significado e sobre o que está implicado em todo agir. Se a sensatez não é umaexcelência (uma orma de pensar) especificamente jurídica, é, no entanto, central

    humano de estar diante do mundo e de si mesmo. Para a renovadora interpretação doconjunto da obra de Aristóteles na perspectiva genética, vide: JAEGER, Werner. Aristo-

    tle. Fundamentals o the history o his development. Para uma crítica ao método e aosresultados de Jaeger; AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Para as relaçõesentre Aristóteles e Platão e assim as relações entre metaísica e ética em Aristóteles, vide:VAZ, Cláudio Henrique de Lima. Platão revisitado... cit. Mas a denúncia que Jaeger diri-ge a até então exclusiva perspectiva sistemática de interpretação de Aristóteles não devedesanimar o intérprete a encontrar as ligações internas que marcam o multiacetadoconjunto de textos de Aristóteles. Não deixamos de recorrer, e cremos ter sido impor-tante azê-lo mesmo que as citações destes textos não sejam muito comuns neste livro, àPolítica, muito especialmente, e ainda ao Sobre a alma, à Retórica e à Poética.

    10  FERRAZ JUNIOR, ercio Sampaio. Estudos de filosofia... cit., p. 143.11

      SALGADO, Joaquim Carlos. Experiência da consciência jurídica em Roma – a Justitia.Revista do ribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. vol. 38, n. 1, p. 33-115.

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    para o direito à medida que é mobilizada em todo agir, em toda e qualquer circuns-

    tância no horizonte prático, em que se inscreve o direito.

    As relações entre a sensatez e o direito tornam-se particularmente importan-tes em razão da especial posição da justiça no conjunto das virtudes éticas, sem-

    pre conormadas mediante orientação da sensatez. Em Aristóteles (e no pensamen-

    to grego em geral) todas as virtudes éticas são ormas de justiça, e a justiça está em

    questão em todo agir. À medida que a sensatez orienta todo agir verdadeiro, o exer-

    cício da sensatez é sempre uma orma de realização da justiça – especialmente da

     justiça como equidade que realça o caráter sempre situado, sempre circunstancial,

    de toda decisão prática, e a imperiosidade de sua adequação e contemporaneidade.

    oda decisão ética – todo exercício da sensatez – é nova, empenhando a cada vez o homem sério na desocultação da verdade prática. O exercício da sensatez se

    liga assim ao sentido proundo da equidade, que torna o agir sempre um desafio,

    mantendo o caráter do homem a cada vez em jogo, assim como a sua própria eli-

    cidade. Como a lei tem sempre de ser “adequada” à circunstância atual do agir, ela

    tem de ser “descoberta” sempre novamente. Isto impõe à razão prática, a cada vez

    que se exercita na descoberta do justo, sempre um problema novo.

    O homem nunca se livra deste desafio e deste risco que o perazem como hu-

    mano (ou seria deus): a cada vez tem de descobrir o que é o bem. O melhor a a-

    zer – quais são os fins a perseguir – não está definido de uma vez por todas, mas é

    determinado na história e por quem se integra na vida da comunidade – enquan-

    to participa e se doa – autorrecuperando-se na sua própria história pessoal de per-

    tença à comunidade. al tarea ninguém a inaugurou – cada um vai recebê-la pela

    educação e por todos os modos de socialização – e pela sensatez deve reassumi-la,

    reafirmá-la, sempre, porém, de um modo dierente, conduzindo sua vida em aten-

    ção aos cânones comunitários do viver bem, mas ao mesmo tempo transcendendo-

    os ao participar da determinação do sentido público de vida boa na medida em que

    decide (como é) (o que é) viver bem, a cada situação em que deve agir.

    Reconstruindo a teoria aristotélica da sensatez, cremos encontrar importan-

    tes respostas acerca do tipo de pensamento que o direito é, e para a pergunta sobre

    se este pensar encerra alguma racionalidade, sobre se pode ser descrito como um

    modo racional de divisar o mundo e o outro. A recuperação de Aristóteles permite

    uma nova saída para um dos alsos (mas angustiantes) dilemas em que se enreda a

    filosofia moral e jurídica contemporânea, a encruzilhada entre cognitivismo e irra-

    cionalismo. Antes, sugerindo que estas não são as únicas saídas para a filosofia do

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    INTRODUÇÃO – A sensatez e o direito como pensamento prático  XVII

    agir, desoculta-se a via própria e adequada da racionalidade prática, em cujo hori-zonte específico redescobre-se o homem como autor do mundo, como criador da

    ordem e de si mesmo, no exercício da razão prática.Mas tampouco a ordem figura como ruto da vontade como mero capricho,

    mas da escolha racionalmente refletida e balizada pelos elementos da situação econdicionada (possibilitada) pela tradição em que o próprio ser do humano se põetambém em jogo e se decide: “Do próprio homem, pois, depende ser bom ou mau:em conclusão, ele é pai e filho ao mesmo tempo de suas ações, as quais, depois dehaver chegado a gerar seus hábitos espirituais, se convertem em maniestações ouindícios deles”.12 Isto, que vale para a autoconstrução do humano como pessoa, vale

    igualmente para o processo de construção comunitária. A sensatez orienta o pro-cesso pelo qual cada um nós se orja, e este é o mesmo processo pelo qual o país ea humanidade se constroem.

    12

      MONDOLFO, Rodolo. O homem na cultura antiga. A compreensão do sujeito humanona cultura antiga, p. 367.

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    CAPÍTULO  

     1O HORIZONTE DA ÉTICA E O

    SEU COMPROMISSO COM AFELICIDADE HUMANA

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana 3

    1.1 O humano entre o animal e o deus

    A especificidade do humano distingue os horizontes da ética aristotélica. É

    a sua marca ser híbrido: parte racional, parte irracional, ele habita o hiato entre o

    animal e o deus, e é por isto que apenas num mundo humano az sentido a ética.

    O modo como Aristóteles compreende o ser humano é essencial para enten-

    der sua ética. Não por outro motivo o estudo da alma ( psyché), um dos mais im-

    portantes conceitos da literatura grega, é ponto de partida da reflexão ético-políti-

    ca de Aristóteles. Por este motivo, o político deve conhecer o que se reere à alma,

    assim como aquele que cura os olhos deve saber também sobre todo o corpo (EN, 

    I, 13, 1102a 17-20).13

    Aristóteles compreende a alma no horizonte da reormulação socrática do

    problema do homem como o problema da alma: Sócrates, à pergunta “o que é o ho-

    mem?”, pela primeira vez respondeu: “o homem é a sua alma”, entendendo a alma

    como a consciência inteligente e responsável. Fazendo-o, Sócrates promoveu a gui-

    nada para o interior do homem no âmbito da reflexão sobre o comportamento e a

    normatividade, com que merece ser reconhecido como o undador da ética.14

    Aristóteles reelabora a tripartição acadêmica da alma. ambém para Platão aalma é composta por dierentes partes – concupiscível, irascível e intelectiva.15 Mas

    é dierente a tripartição proposta por Aristóteles, que parte “da análise geral dos

    13  Na tradução de Caeiro: “A elicidade é uma atividade da alma. Assim sendo, é evidenteque o perito em política deve saber como é com as coisas respeitantes à alma, do mesmomodo que o terapeuta dos olhos não trata exclusivamente deles, mas trata também detodo o corpo.” ARISÓELES. Ética a Nicómaco. rad. António C. Caeiro, p. 39.

    14  Entre as características da ética socrática, esta, em que “se maniesta propriamente a ori-

    ginalidade do ensinamento socrático, é ormada pelos temas específicos que a tradiçãoreconhecerá como aqueles que compõem para a história a figura do Sócrates moralistae de sua doutrina. Esses temas são o tema do homem interior  ( psyqué ), o tema da verda-deira sabedoria (sophrosyne) e o tema da virtude (aretê). O tema do homem interior ouda alma ( psyché ) no sentido especificamente socrático, e que assinala uma prounda re-

     volução no curso do pensamento antropológico grego, constitui o motivo dominante dainterpelação dirigida por Sócrates aos cidadãos de Atenas, tendo em vista mostrar-lhesque o verdadeiro valor do homem reside no único bem inatingível pela inconstância daortuna, a incerteza do uturo, a precariedade do sucesso, as vicissitudes da vida: o bemda alma”. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV . Introdução à ética

    filosófica 1, p. 95 (grios no original).15  PLAÃO. A República, IV, 436 a-b, p. 732, Obras completas.

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    seres vivos e das suas unções essenciais”16 para apontar a existência das partes ou

    unções da alma: a vegetativa, a sensitiva e a intelectiva, cada qual animando um

    tipo de operação própria do organismo.As duas primeiras perazem a parte irracional (alogon) da alma, e são parti-

    lhadas pelo humano com outros seres vivos: a parte vegetativa, responsável pela

    nutrição, reprodução e crescimento, é comum a todos os seres vivos, vegetais e ani-

    mais (e entre estes, os humanos); a parte sensitiva, responsável pelas sensações,

    apetites e movimento, é comum a humanos e aos demais animais. A intelectiva é a

    parte racional da alma, e é exclusiva do humano, entre os animais. Mas a posse da

    aculdade ou parte racional, no humano, depende da posse também das outras di-

    mensões (irracionais).17 O humano, em Aristóteles, não é exclusiva ou completa-

    mente racional, instituindo um permanente diálogo e tensão entre o que há de ra-

    cional (divino) e irracional (animal) nele – tensão e diálogo que abre espaço para

    o homem decidir-se.

    O agir do humano determina-se pela relação entre a parte irracional-sensitiva

    da alma e a parte da alma que tem a razão, e todo o problema ético é imposto e pos-

    sibilitado por esta relação que, enquanto o homem vive e a cada vez em que deve

    agir, está sempre por decidir-se.A parte sensitiva (animal) da alma abriga os desejos, os sentimentos, as pai-

    xões, as sensações e o princípio de todo movimento do ser vivo. A mais importan-

    te e mais característica18 das unções da alma sensitiva é a sensação (aisthêsis), ca-

    pacidade de receber as ormas sensíveis sem a matéria (percepção, captação pelos

    sentidos, sensibilidade) possibilitadora da antasia, da memória e da experiência

    16  REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Platão e Aristóteles, p. 389.17  Vide REALE, Giovanni. História da filosofia... cit., p. 389-390. ARISÓELES. A  política.

    rad. Nestor Siqueira Chaves, p. 180-181: “Sendo o homem ormado de duas partes – aalma e o corpo, sabemos que a alma compreende igualmente duas partes: aquela quepossui a razão e a que dela é privada, e que cada uma dessas duas partes tem as suas dis-posições ou maneiras de ser, das quais uma é o desejo, e outra a inteligência. Mas como,na ordem da procriação, o corpo está antes da alma, assim a parte irracional está antesda parte racional. Aliás isto é evidente; porque a cólera, a vontade e mesmo os desejos semaniestam nas crianças desde os primeiros dias da existência, ao passo que o raciocínioe a inteligência só se mostram naturalmente após um certo desenvolvimento. Eis porqueé preciso prestar os primeiros cuidados ao corpo, antes da alma; em seguida ao instinto.

    No entanto, só se deve ormar o instinto pela inteligência, e o corpo pela alma”.18  REALE, Giovanni. História da filosofia... cit., p. 392.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana 5

    como acúmulo de atos mnemônicos. O desejo ou apetite (orexis19) nasce em con-

    sequência à sensação: a aculdade apetitiva (desejante) acompanha necessariamen-

    te a sensitiva: o apetite é o desejo, ardor e vontade. Quem tem sensação (e todos osanimais têm pelo menos um: o tato) sente prazer e dor – e o desejo é o apetite do

    agradável.20

    odo movimento de um ser vivo deriva do desejo, da aculdade apetitiva. As-

    sim se relacionam o movimento, o desejo e a sensação: a sensação (percepção do

    objeto desejado) provoca o desejo, que move o ser vivo. A sensação é condição de

    possibilidade de todo desejo e de todo movimento.21 O ponto ulcral da vida ética

    é o agir, e agir, como movimento, não existe senão por orça desta parte da alma.

    Mas a capacidade nutritiva e a sensitiva não bastam para explicar a vida do

    humano, que requer ainda a introdução de um princípio que ele não comparte com

    os restantes seres vivos e cuja presença especifica-o como humano: a parte da alma

    que tem a razão, responsável pelo pensamento (sua unção própria é o pensar: dia-

    noia) e todas as operações a ele ligadas.22

    A parte racional da alma é o que há de divino (to theion) no humano, é o que o

    homem tem em comum com Deus. G. Reale realça a passagem em que Aristóteles

    afirma que “o intelecto vem de ora e só ele é divino”: 23 o nous não é transmitido depai para filho (como as demais aculdades da alma, ineriores), mas “vem de ora”.24 

    19  Para compreender a singularidade com que esta palavra comparece no discurso aristo-télico, vide: NUSSBAUM, Martha Craven. La ragilidad del bien. Fortuna y ética en latragedia y la filosoía griega, p. 21 e ss.

    20  De Anima, II, 414 a-b. ARISÓELES. Da alma (De Anima), p. 57.21  REALE, Giovanni. História da filosofia... cit., p. 394. Esta passagem será importante para

    a compreensão da sensação na enomenologia da decisão prática.22  Idem, p. 395.23  ARISÓELES. A geração dos animais, B 3, 736 b27-28 – Apud REALE, Giovanni. His-

    tória da filosofia... cit., p. 397.24  Isso de vir o nous “de ora” tem a ver com a expressão com que Aristóteles reere à parte

    superior da alma, racional: ele não diz “alma racional”, mas alma “que tem a razão” (lógonéchon). Ainda sobre a divindade no homem, é preciso anotar que toda a sua alma parti-cipa do divino: assim, a parte vegetativa, sendo responsável pela reprodução aproxima ohomem da eternidade de deus. Em alguma medida, todo animal participa de deus, o queestá de acordo com a concepção grega de uma ordem do ser absolutamente integrada.Mas a parte racional é a que az com que o homem mais se aproxime de deus, sendo esta

    a sua possibilidade extrema, azendo com a elicidade seja afirmada como contemplação,na sophia…

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    O significado desta passagem permanece enigmático,25 mas é esclarecedora da die-

    rença de natureza das partes da alma do humano, que resta assim um ser compos-

    to, sua parte divina consistindo decerto em sua parte superior, e devendo, portanto,governar o organismo todo no homem excelente e na realização da possibilidade

    mais própria do humano (por isto a sua elicidade estará na atividade em conor-

    midade com esta possibilidade). Mas o agir do humano nunca prescindirá do mo-

     vimento que lhe imprime sua capacidade sensitiva-apetitiva. Nunca prescindirá,

    no agir, da parte animal de sua alma. Como quero sublinhar enaticamente, o agir

    empenha a totalidade do homem, todas as dimensões da sua alma, e o seu corpo.

    As indicações introdutórias do problema da elicidade (que é no final das con-

    tas o problema de toda a ética e da política), no capítulo 07 do Livro I da Ética a Ni-cômaco, dirigem a investigação para o traço singularizador do humano, tendo em

     vista que a conclusão sobre a essência da elicidade depende da descoberta da un-

    ção específica do humano (EN, I, 7, 1098 a). Há alguma unção própria para o hu-

    mano como humano? O que distingue o humano não pode ser simplesmente o vi-

     ver, pois a vida o humano compartilha até mesmo com as plantas – há de ser, então,

    uma vida peculiar, mas tampouco será esta a vida perceptiva-sensitiva, comum a

    todo animal. Aristóteles conclui que o específico do humano é certa vida ativa na

    dimensão da alma capacitante de razão. O específico do humano é a vida própriado ente que tem razão (EN, I, 7, 1097 b-1098 a). Se isto o especifica, realiza-se o hu-

    mano como humano ao progredir na direção desta que é a sua possibilidade mais

    própria, na realização em si da sua melhor parte (ou: de si na sua melhor parte),

    de sua alma divina. Fazendo-o, caminha em direção da divindade, mas a busca em

    questão é uma busca de si mesmo; avançar nesta caminhada consiste a elicidade.

    A ética tem por objeto exatamente a realização da excelência como cumprimento

    do fim do homem que é a afirmação do que há de divino nele. A vida na sensatez

    25  “(...) mas é igualmente verdade que, mesmo vindo ‘de ora’, ele permanece na alma (ev te psiche) por toda a vida do homem. A afirmação de que o intelecto vem de ora significaque ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível.Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprassensível e espiritual. E issoé o divino em nós.” REALE, Giovanni. História da filosofia... cit., p. 397. Esta reerênciaao ato de a alma possuir o logos pode ser lido também como a afirmação de que o logos possui a alma; lemos isto como a participação do humano no divino que está presenteem todo cosmos e o sustém. Este “possuir o logos” é um participar, é um integrar-se e,portanto, é um entregar-se… Eu não enveredo agora por este caminho, pois evito proble-

    matizar as relações entre ética e metaísica em Aristóteles neste trabalho, a que não refiropara além das estritas necessidades da argumentação.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana 7

    resume esta conquista de si, sendo o único caminho para a conquista de si, para a

    elevação do humano em direção ao divino que o constitui – sem qualquer signifi-

    cado religioso, mas ético.Retomemos a descrição da dinâmica da alma, para compreender o desafio e a

    condição de possibilidade da sensatez – ocalizemos ainda a estrutura da alma irra-

    cional. Há uma importante dierença entre as duas partes da alma irracional, ten-

    do em vista suas relações com a parte da alma que tem a razão. A parte irracional

    é dupla: ao lado da vegetativa, que não tem nenhuma relação com a dimensão ra-

    cional da alma, há a dimensão apetitiva/desejante da alma. Ocorre que esta última,

    e apenas ela, estabelece alguma relação com a dimensão racional da alma, partici-

    pando de alguma orma da razão à medida que é capaz de obedecer-lhe, se o ho-mem é moderado. O desejo habita a dimensão irracional do humano, mas ele dei-

    xa-se influenciar pela parte racional. Aqui reside a possibilidade de toda exortação

    e repreensão, cuja existência, aliás, comprova a dierença entre essas partes da alma

    e a possibilidade da submissão de uma a outra; abre-se o campo da persuasão, ru-

    to de uma interação entre as dimensões da alma, que assume a orma de um diálo-

    go. É argumentativa a relação entre a razão ativa e a aculdade de desejar (dimen-

    são apetitiva da alma irracional), que por esta perspectiva pode ser apresentada,

    em certo sentido, também como uma parte racional da alma, à medida que, comodesejo, é capaz de se deixar orientar pela parte superior da alma, que tem a razão.26 

    Neste último sentido (em que se entende que a aculdade de desejar, a parte apetiti-

     va da alma, integra a alma que tem a razão), também a parte racional da alma mos-

    tra-se dupla, compondo-se pela parte capacitante da razão, que é a parte que tem

    a razão e que a exercita (sentido estrito e orma absoluta com que Aristóteles ala

    da razão do homem), e a parte capaz de obedecê-la (tal como descreve o desejo em

    sua possibilidade de obedecer a razão, em comparação a um filho, capaz de “ouvir”

    seu pai). Resulta uma descrição da aculdade de desejar que mostra como esta últi-ma pertence a um tempo à parte irracional da alma e à parte racional. No homem

    que tem autodomínio, esta parte (o desejo) obedece ao comando da razão e toda a

    alma ressoa em uníssono.

    Mas a relação entre a razão e o desejo é sempre problemática. A aculdade de

    desejar – a vontade – é capaz de razão apenas em sentido passivo (pode deixar-se

    26  “A alma se compõe de duas partes: uma traz em si mesma a razão; a outra não a traz em

    si, mas pode obedecer à razão. É nessas duas partes que residem , em nossa opinião, as virtudes que caracterizam o homem de bem.” ARISÓELES. A  política, cit., p. 175-176.

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    convencer pela razão), mas ao mesmo tempo é capaz também de incapacitá-la, à

    medida que pode “não dar ouvidos” ao que lhe dita a parte racional, superior, da

    alma. Nesta hipótese, a parte inerior da alma porta-se diante da parte racionalcomo o membro paralisado do corpo, que se move para a esquerda quando se quer

    movê-lo para a direita, e pode mesmo incapacitar a própria razão, tornando o ho-

    mem não apenas incapaz de desejar o bem, mas mesmo de discerni-lo (EN, I, 12,

    1102 b15-35).

    Na investigação sobre a natureza da virtude, Aristóteles apresenta os três ti-

    pos de enômenos que ocorrem com a alma: aecções ( pathos: algo que acontece a

    algo ou a alguém; emoção, paixão), capacidades (dinamis) e disposições (hexis27).

    São aecções da alma o desejo, a ira, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a ami-zade, o ódio, a saudade, o ciúme, a compaixão e tudo o que se acompanha do pra-

    zer ou sorimento, as paixões que nos movem e que encontram na parte sensitiva

    da alma a sua sede (EN, II, 5, 1105 b19-24). ais aecções são o “material” da ética e

    tudo aquilo com que o homem deve haver-se a cada vez em que age, desafiando-o

    a conduzir-se bem. Apenas por a alma do humano contar constitutivamente com a

    parte sensitiva-apetitiva (que ele comparte com o animal e que az dele parcialmen-

    te animal) em que têm lugar aquelas aecções, coloca-se para ele a possibilidade e

    o desafio ético. Evidentemente que, encontrando-se as aecções na parte sensitivada alma, também os animais as experimentam, e é aí, precisamente, que se dese-

    nha com nitidez o caráter especificamente humano da ética, que apenas tem lugar a

    partir da tensão que o seu caráter compósito (deus-animal) estabelece no homem.

    Se o homem osse apenas sensação e apetite, sem contar também com a parte da

    sua alma que tem a razão, sua relação com suas aecções (com seus medos, seus de-

    sejos, seu apetite) seria de simples sujeição, assim como é a relação de qualquer ani-

    mal irracional com seus impulsos.28 Apenas na medida em que o homem é também

    racional é que surge para ele o desafio de dominar e por fim educar e conormar oseu desejo, isto é, a parte irracional-apetitiva de sua alma, impondo-lhe a direção e

    a medida tal que lhe indica a sua razão, como sentido orientador (orthos logos). Isto

    é que abre para que, ao lado das capacidades (que são condições de possibilidade

    27  No Liddell-Scott, a palavra hexis aparece como “a having, possession”. A palavra pres-ta-se tanto para significar um estado natural como um estado conquistado (resultanteassim do poder autoconormador do humano).

    28  Rackham anota a propósito desta passagem: “ praxis significa ação racional, conduta. Os

    movimentos dos animais, como Aristóteles parece pensar, são meras reações aos estímu-los sensorais”. ARISOLE. Nicomachean Ethics. rad. H. Rackham.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana 9

    de o homem ser aetado por aecções, como capacidade de ter aecções, de se emo-

    cionar), surjam as disposições ou hábitos, conceito capital da ética aristotélica, que

    são aquilo de acordo com que o homem se comporta bem ou mal relativamente àsaecções (EN, II, 5, 1105b 25-26).

    Se o homem osse apenas animal, seria levado cegamente por suas aecções e

     jamais se colocaria para ele o problema do agir e do viver bem, e assim não teria

    sentido qualquer ética. Mas se ele osse apenas deus, determinando-se automatica-

    mente pelo que dispõe a razão, não surgiria o bem como um problema, como um

    desafio. Seu simples viver seria já bom.29

    A ética surge nessa tensão constitutiva do humano, e todo o seu programa

    consiste em elevar o homem da brutalidade em direção à divindade, o que se con-unde com a realização de si mesmo (ou com a realização de si como o melhor de

    si mesmo), na sua dimensão mais própria, como ser racional. rata-se de um es-

    orço de autoconormação em que o homem se autoconquista e se transorma, por

    meio da habituação como um processo de submissão da parte inerior da alma à

    superior, da conquista cotidiana de bons hábitos tais que resultem na conormação

    do modo de desejar. É importante, porém, não perder de vista que este processo de

    submissão do apetite-vontade-desejo em avor da razão não pode implicar a sub-

    tração daquela parte irracional da alma, mas a sua elevação, tanto quanto possível.O desejo deve acostumar-se a obedecer aos ditames (conselhos) da razão, até mes-

    mo a ponto de poder considerar-se uma parte passiva da alma racional, mas não

    ocorrerá nunca de ser substituída pela razão: o humano já não se moveria se isto

    acontecesse; ao mesmo tempo, as aecções devem ser reconduzidas ao seu devido

    lugar e podem mesmo ser reeducadas a ponto de o homem conormar o seu pró-

    prio sentir, mas não poderão nunca deixar de marcar o homem. Ser insensível, para

    Aristóteles, não é uma virtude, mas uma orma de monstruosidade.

    A definição do humano, exposta a partir de considerações psicológicas, mos-tra-o como em parte racional e em parte irracional, e denota como o agir é pró-

    prio (exclusivo) do humano, por ter a alma assim dividida. Um deus não age, assim

    como não age um animal. O agir se possibilita e resulta sempre desta tensão entre o

    desejar e o pensar. Como para o deus essa tensão não existe (ele quiçá vive a identi-

    dade entre o que deseja e o que sabe ser o melhor – ou ele nem sequer deseja, e por

    29  Mas não seria bom para o humano. Nussbaum insiste muito no valor dessa dierença

    do especificamente humano em ace de deus. Vide: NUSSBAUM, Martha Craven. La ragilidad... cit., p. 463 e ss.

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    isso não se move…30), assim como tampouco existe para a besta (o animal move-se

    por seu simples desejo), apenas o homem é um ser ético.

    Por esta razão, só az sentido alar em sensatez como uma virtude humana.Ela não é necessária para deuses, porque estes não têm que haver-se com desejos e

    paixões (que só ocorrem a animais). A sensatez tampouco é possível para animais

    não humanos, porque estes não têm o poder de pensar seus desejos e paixões.

    Porque não é deus nem era, o humano é capaz e necessitado de ética e de sen-

    satez – e igualmente de política. Compreende-se em que sentido “o homem é natu-

    ralmente um animal político, destinado a viver em sociedade” vincula-se à sua na-

    tureza especificamente humana, entre o animal e o deus. Nem animal, nem deus:

    “(...) aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa deazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem”. 31

    A natureza compósita do humano, que vive na tensão entre o animal e o deus

    que ele ao mesmo tempo é, torna-o capaz e carente da política e da lei, pois é a vida

    na cidade a condição de sua elevação em direção ao que há de divino nele: “(...)

    porque se o homem, tendo atingido a sua pereição, é o mais excelente de todos os

    animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e sem preconceitos”. “Sem

     virtude, ele é o mais ímpio e o mais eroz de todos os seres vivos; mais não sabe, por

    sua vergonha, que amar e comer. A justiça é a base da sociedade. Chama-se julga-mento e aplicação do que é justo.”32

    1.2 O desafio da autossuficiência

    É preciso aproundar o retrato aristotélico do humano, passando à discussão

    da sua mais peculiar característica, sua incompletude, que deve ser entendida em

    diversos sentidos: a) incompletude como o não bastar a si mesmo do humano iso-

    lado, sendo levado, por esta sua natureza, a associar-se;33 b) incompletude do hu-

    mano como ser inacabado: a tensão entre o desejo e a razão institui nele a possibi-

    30  O deus não deseja. Ele é pura contemplação. Por isso é imóvel. A razão humana tambémse marca por esta singularidade: uma razão meramente contemplativa não é própria dohumano. A razão do homem dirige-se para o agir, conorma o agir – esse tipo de razão(prática) não az sentido para o deus.

    31  ARISÓELES. A política. E ainda: “aquele que não pode viver em sociedade, ou que denada precisa por bastar-se a si próprio, não az parte do Estado; é um bruto ou um deus”.Idem, p. 15.

    32

      Idem, ibidem.33  Idem, ibidem

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana  11

    lidade-necessidade de concluir-se, de finalizar-se como caráter e como inteligência;c) incompletude do universo no horizonte prático. odas estas acepções estão liga-

    das, esclarecendo-se e requisitando-se mutuamente.A letra b liga-se à argumentação por último desenvolvida: o humano é incom-

    pleto à medida que tem sempre por decidir, enquanto vive, a relação entre o deus ea era que o habitam. Quanto à letra c, a incompletude é denunciada como abertu-ra, história e biografia a serem escritas por decisões, ações e situações. Pelo exercí-cio da sensatez, o humano completa a construção do universo, ao menos no hori-zonte prático. Esta questão será retomada. Para já, cumpre examinar a letra a.

     Autarkeia, autarquia e autossuficiência, é uma noção undamental da ética

    grega, compreendido como elemento essencial do ideal de vida. Sua presença na li-teratura atesta a inquieta consciência do grego acerca da incompletude do humano– parece claro que vencê-la é o seu maior desafio. Em muitas passagens da Ética aNicômaco, a autarkeia é afirmada como o fim do humano, conundindo-se com aelicidade (eudaimonia).34

    No início da Política, Aristóteles esclarece que o fim para o qual todo ser oicriado é bastar-se a si mesmo; “a condição de bastar-se a si próprio é o ideal de todoindivíduo, e o que de melhor pode existir para ele”.35 O ideal de autossuficiência não

    pode ser atingido pelo homem sozinho, por isto o homem só pode realizar-se à me-dida que se integra na cidade. A cidade é uma associação36 que apenas se instituipelo ato de que o humano, isolado, é carente do outro, com quem estabelece tro-cas. A necessidade é o undamento da polis, lugar do encontro e da permuta em queo homem pode encontrar aquilo que sozinho não é capaz de obter para a satisaçãode seus desejos. O homem é um animal político porque apenas na polis ele dá contade alcançar a autarquia: a cidade é a “multidão de cidadãos capaz de bastar a si mes-ma, e de obter, em geral, tudo que é necessário à sua existência”.37 A cidade como

    34  “Existe, pois, uma correlação necessária entre eudaimonia e liberdade, e é como conse-quência dessa correlação que se deve atribuir ao exercício da ‘vida no bem’ (eu zen) aautonomia ou a autocausalidade no domínio de si mesmo (autarkeia) que define o serlivre.” VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV . Introdução... cit., p. 120.

    35  ARISÓELES. A  política, cit., p. 14.36  A apresentação da  polis  como “uma espécie de associação” inaugura a Política. Idem,

    p. 11.37  Idem, p. 96. Mais adiante: “A cidade se orma logo que se compõe de uma multidão sufi-

    ciente para ter todas as comodidades da vida, segundo as regras da associação política”.

    Idem, p. 154. E ainda: “porque a cidade não é uma multidão de homens tomada ao acaso,mas bastando-se a si mesma, como dissemos, para as necessidades da vida”. Idem, p. 161.

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    Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico em Aristóteles 12

     

    multidão marca-se pela diversidade: os homens não são todos iguais, e a unção

    própria assumida por cada um, no amplo panorama das trocas entre os indivídu-

    os, permite a realização de todos e a autossuficiência e a permanência da cidade.38

    Há uma ligação interna entre a carência e a incompletude humanas (que un-

    damenta a natureza social do humano – só na cidade é que se pode tornar autár-

    quico) e a ética. Sua carência é que lhe impõe o encontro com o outro, encontro

    este que é o ensejo de toda ação e assim de todo processo de construção do caráter.

    Mas a natureza social do humano não se esgota na busca da realização de suas

    necessidades e desejos: embora haja um valor atribuível ao simples viver, cuja pre-

    servação viabiliza-se pela integração na polis, a vida em comunidade não se resume

    ao simples viver, mas se dirige ao viver bem (atine à realização de si mesmo na sua

    melhor possibilidade).39 Apenas isto justifica a afirmação de que mesmo na hipóte-

    se de não precisar do auxílio dos seus semelhantes, o homem deseja viver em socie-

    dade.40 Afinal, “não é somente para viver, mas para viver elizes, que os homens es-

    tabelecem entre si a sociedade civil”.41 O viver bem, que coincide com a elicidade,42 

    integra decisivamente a definição da cidade.43

    38  “Pode-se dizer do cidadão o que se diz de qualquer um dos indivíduos que viajam a bor-do de um navio: que ele é membro de uma sociedade. Mas, entre todos esses homens quenavegam juntos, e que têm um valor dierente, visto que um é remador, outro piloto, esteencarregado da proa, aquele exercendo, sob outra denominação, um cargo semelhante –é evidente que se poderá designar, por uma definição rigorosa, a unção própria de cadaum; e no entanto, haverá também alguma definição geral aplicável a todos, porque asalvação da equipagem é a ocupação de todos, e o que todos desejam igualmente.” Idem,p. 99.

    39  Isto pode indicar uma dierença entre a natureza social e a natureza política do humano,que não se conundem. O humano é social na medida em que precisa do outro comquem trocar; sem a troca não pode satisazer suas necessidades de sobrevivência. Di-

    erente é a necessidade que o humano tem da política, da cidade enquanto sistema detrocas e de relações que lhe ensejam autorrealizar-se como ente vocacionado e desafiadoà virtude. A política – e a polis como um lugar a preservar como meio possibilitador da

     virtude e assim da elicidade – não são dados naturais, mas tarea, desafio, esorço.40  ARISÓELES. A política, cit., p. 106.41  Idem, ibidem, p. 111: “Por outra, poder-se-ia dar o nome de cidade a uma associação de

    escravos e mesmo de outros seres animados”.42  A elicidade é definida como fim do humano assim como a autarquia: são conquistas que

    se implicam.43  Pois “a única associação que orma uma cidade é a que az participarem as amílias e os

    seus descendentes da elicidade de uma vida independente, pereitamente ao abrigo damiséria (…) a cidade é uma reunião de amílias e pequenos burgos associados para goza-

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana  13

    Mas a dependência e a incompletude do homem permanecem sempre. Mes-

    mo a mais pereita virtude, cultivada pelo homem ao longo de toda a vida, não ga-

    rantirá sozinha a sua elicidade, que no humano não prescinde de bens externoscomo amigos, honra, poder e riqueza.44 Isto mais uma vez acentua a impossibili-

    dade de o homem autorrealizar-se ora da comunidade. Apenas na polis o homem

    pode construir-se e ser reconhecido como um homem de bem, sério e realizado

    (eliz). A essência da elicidade é a virtude, e esta não se constrói nem se exercita

    ora do convívio social. Embora essencial, a virtude não é suficiente para que um

    homem possa considerar-se eliz. Aristóteles, como sempre, é bem realista ao ad-

    mitir que o sucesso na vida não se alcança com virtude apenas – ser sério e sensato

    é essencial, mas coisas como sorte, amigos, dinheiro e saúde, se altarem, são capa-zes de arruinar uma vida. Ora, tais bens externos apenas são acessíveis ao homem

    integrado na polis. Embora possuam uma relação apenas externa com a vida boa

    (poder-se-ia dizer que são condição sine qua non da elicidade): são, de todo modo,

    imprescindíveis. As virtudes do caráter, que têm uma relação interna com a eli-

    cidade (são causa  per quam da elicidade), também dependem essencialmente da

     vida em sociedade. Apenas em sociedade surge o desafio e a possibilidade da virtu-

    de, pondo a elicidade desde sempre numa dependência inevitável da relação com

    o outro (EN, I, 7, 1097 b 9-11).45

    rem em conjunto uma vida pereitamente eliz e independente. Mas viver bem, segundoo nosso modo de pensar, é o viver eliz e virtuoso. É preciso, pois, admitir em princípioque as ações honestas e virtuosas, e não só a vida comum, são o escopo da sociedadepolítica”. ARISÓELES. Idem, p. 113.

    44  É um dos traços distintivos da ética aristotélica a afirmação de que os bens exteriores sãonecessários – embora não sejam suficientes – à elicidade: “Ninguém contestaria que osbens que se podem ruir, dividindo-se de ato de uma só maneira – bens exteriores, bens

    do corpo e bens da alma – o homem verdadeiramente eliz deve reuni-los todos. Não,ninguém consideraria elizes aqueles que não possuíssem coragem, nem sabedoria, nemsentimentos da justiça, nem inteligência, aqueles que o voo de uma mosca fizesse tremer,que não evitassem os excessos quando desejassem comer ou beber, ou, por um quarto deóbolo entregassem os seus melhores amigos, e que quanto à inteligência ossem tão estú-pidos e alhos como uma criança ou como um homem louco (…) Concluamos somenteque a vida pereita, para o cidadão em particular e para o Estado em geral, é aquela queacrescenta à virtude muitos bens exteriores para poder azer o que a virtude ordena”.ARISÓELES. Idem, p. 145. Neste sentido remarca-se a importância da virtude espe-cial da justiça, que tem por objeto exatamente a repartição destes bens exteriores (bens e

    riquezas, e cargos públicos) sem os quais a elicidade não se mantém.45  Vide inra o parágrao 30 (“O outro na ética aristotélica”).

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    Em resumo, tanto a virtude do caráter, essência da elicidade, como os bens

    externos sem os quais tampouco alguém se pode considerar realizado na vida, po-

    dem ser obtidos senão no horizonte da comunidade. Apenas no horizonte da polis o homem pode transcender sua incompletude em direção à realização de si mesmo,

    Em Aristóteles, o modo como o humano é não está inteiramente determina-

    do pelo nascimento. Na conquista de si mesmo como virtuoso, o homem conta ao

    mesmo tempo com certa disposição natural avorável (ou não), pela qual não é res-

    ponsável, mas da qual parte ao ingressar no processo de conormação do desejo. Já

    a virtude autêntica constrói-se pela autoconstituição resultante do agir, por ação as-

    sim do esorço próprio.46

    O homem não nasce pronto, mas deverá concluir-se pelo viver. Esta autocons-

    trução do homem (que o leva a ser virtuoso ou pervertido, a ter virtudes ou vícios)

    apenas é possível na interação e no encontro com os outros homens, junto ou em

    ace de quem sempre age, assim como pressupõe o horizonte da lei (em que o jus-

    to a princípio se define) e os processos de educação ético-política ( paideia) pelos

    quais se orma. No horizonte da polis, e enquanto tem, como cidadão, a oportuni-

    dade de obedecer (submetendo-se à lei e à autoridade do outro, que exerce a ma-

    gistratura) e especialmente de mandar (de exercer a magistratura) é que o homemencontra a oportunidade de pôr-se a descoberto, pondo à prova a sua excelência e

    assim tornando-se – ou não – excelente.47 “O fim da arte e da educação em geral é

    substituir a natureza e completar aquilo que ela apenas começou.”48

    1.3 Eudaimonia : forma firme de viver no domínio radical de si mesmo

    A compreensão do humano como composto por corpo e alma, e das partes da

    alma em sua hierarquia, é muito importante para entender o sentido emprestado

    por Aristóteles à palavra eudaimonia, que começamos a discutir no item 1.1, supra.

    46  EN, VI, 13,1144 b5-6; EN , II, 1, 1103 b10-13.47  Sobre estes pontos deverei voltar ao tratar de outros aspectos nucleares da ética. Des-

    culpo-me por adiantar muitas vezes pontos que serão depois retomados, mas esta é, se-gundo creio, uma dificuldade própria à exposição da ética aristotélica, cujos temas estãoligados numa íntima interdependência de sentido que torna impossível tocar num pontosem reerir o outro. Estou tentando uma aproximação progressiva do pensamento éticode Aristóteles com vistas aos nossos objetivos aqui, o que não prescinde da paciência do

    leitor.48  ARISÓELES. A  política, cit. p. 187.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana  15

    Em regra, a palavra eudaimonia é traduzida por elicidade. raduz-se também 

    como sucesso ou realização pessoal. Adotando esta perspectiva, Barnes escreve que

    a ética aristotélica não “se preocupa com a questão de como deveríamos conduzirnossa vida, se essa pergunta or entendida no sentido moral. Ele deseja nos instruir

    sobre como azer sucesso na vida”.49 A intuição é sugestiva e útil, mas deve-se cui-

    dar para que não ponha a perder o sentido específico da eudaimonia em Aristóte-

    les, que diz exatamente do cumprimento do fim do humano, realizado na conquista

    do viver bem, guardando sempre um sentido moral já que a vida boa coincide com

    a atividade conorme às virtudes, tanto éticas como intelectuais. A tradução de eu-

    daimonia como sucesso pessoal num sentido contemporâneo não deve azer a éti-

    ca aristotélica parecer um manual de autoajuda. Nada seria mais distante da éticade Aristóteles, para quem ninguém pode realizar-se sozinho, mas apenas na com-

    panhia do outro, no e por seu pertencimento comunitário (daí a importância que

    dá à amizade ( philia) e ao pertencimento à polis). Não é possível compreender a eu-

    daimonia senão num sentido moral e político.

    De ato eudaimonia significa para Aristóteles undamentalmente sucesso pes-

    soal, “vencer na vida” – mas para ele isto é impossível sem ética e sem política. Es-

    sencial no pensamento ético grego, o tema da eudaimonia talvez seja o de mais di-

    ícil inteligência pelo leitor moderno, eis que a eudaimonia tende a ser remetida,entre nós, para o escaninho dos assuntos particulares, nada tendo a ver com o agir

    bem ou com o azer o que deve ser eito. Esse deslocamento da eudaimonia oi ex-

    pressamente perpetrado por Kant.50

    49  BARNES, Jonathan. Aristóteles, p. 124.50  A leitura que azemos do direito como pensar, contemporâneo de um agir-decidir que é

    um reconstruir/restituir a norma pelo homem que toma as rédeas de sua própria auto-constituição ética e da ordem – norma que não é simplesmente encontrada, mas afirma-

    da, por orça e autoridade da própria racionalidade do homem sério concreto – combatea teoria do direito que descreve a experiência do direito (e a ciência jurídica como parteda experiência do direito) como um simples contemplar a norma que já está lá paradepois aplicar-se (atitude denunciada como cognitivista) – paradigma animado pela tra-dição positivista e pelo Kantismo. Cremos, porém, que a crítica é justa apenas contrauma leitura possível (embora dominante) de Kant. Gostaríamos de ressalvar o direitode discutir, em outro texto, uma leitura de Kant em que o problema da racionalidadeprática seja visto de outra maneira. Não podemos enrentar esse problema aqui, masacreditamos que o mais importante da doutrina moral de Kant tenha sido ignorado porseus leitores mais eficazes. Para Kant a norma não está lá, mas é descoberta/construída

    a cada situação concreta. Neste sentido, devemos admitir que a crítica eita a Kant nestapassagem resulta de uma simplificação injustificada – que mantemos pelo ato de ser

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    Interessado em dissociar o agir bem do prazer, Kant no mesmo passo dester-rou a elicidade do território moral. Sua ética é dita “não eudaimonista”, em contra-

    posição a toda a tradição moral que o antecedeu. É preciso compreender o sentidoda ruptura que propõe. O que se perdeu, com o abandono do compromisso da éticaaristotélica com a realização do homem, de uma ética que não recorre à simples re-presentação do dever (como o az a ética kantiana), mas que empenha toda a almado homem na undação da ação virtuosa?

    Aristóteles também evita cuidadosamente a redução da ética a uma vida deprazeres, mas sem com isto banir a elicidade de seus domínios. ampouco descuraele do papel do prazer e do sentimento, que azem do humano um humano. A re-

    flexão sobre a elicidade culmina exatamente na demonstração de como o processoético de autoconstrução pessoal visa a conquistar a alma para a virtude, o que im-plica inclusive conormar o próprio prazer.

    Kant constrói sua ética a partir de uma radical cisão da razão com a naturezaque marca o humano – importa-lhe o humano enquanto espécie do gênero ser ra-cional em geral, Aristóteles assume o homem em sua integridade e coloca como de-safio ético final a realização do humano em sua melhor possibilidade, mas de todoo humano segundo tal possibilidade; por isto a sua doutrina ética dá conta do in-

    teiro empenho do homem em sua vida ética. Está aqui uma das chaves para com-preender a eudaimonia em Aristóteles. No homem eliz, bem-sucedido no esorçode construção de si como uma pessoa virtuosa, o ato praticado conorme a virtu-de não causará qualquer sorimento ou desconorto. O prazer enfim corroborará oagir do homem sério e eliz: este é o bom destino que se lhe reserva.

    Aristóteles descreve a autorrealização humana (eudaimonia) como uma ativi-dade, com ênase no seu eetivo exercício: ela não é mera possibilidade, mas pro-cesso, atividade contínua (EN, I, 9, 1099 b 26-27) exercitada ao longo da vida que,

    a partir de certo momento, torna-se estável e duradoura. Ela não se conunde comum estado de alma passageiro, como quando alguém diz “estou eliz hoje”. Antesela se aproxima de um modo de viver que oi conquistado pelo próprio viver e domodo como o humano vive.

    O problema da elicidade é introduzido, logo nos primeiros parágraos da Éti-ca a Nicômaco, com o problema do bem, que é o problema do fim do humano. Oprimeiro parágrao do Livro I subordina ao bem (agathos) toda técnica (tekhnê),

    esta a leitura que acabou por marcar a presença de Kant no pensamento jusfilosófico dosséculos XIX e XX, undamentando seu paradigma epistêmico-cognitivista.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana  17

    investigação (methodos), ação ( praxis) e decisão (proairesis), que são atividades da

    alma.

    Enquanto algumas atividades encontram em si mesmas o seu fim (sua per-eição, acabamento, completude, consumação: telos) há outras que, para além de

    si como atividades, resultam em uma obra (ergon). Nesse caso, parece óbvio que

    a obra, como fim, importa mais que atividade que lhe dá lugar (assim, a saúde em

    ace da medicina, a vitória em ace da estratégia, ou a riqueza em ace da econo-

    mia). Figura já ali a ideia importante de uma hierarquia entre os fins.

    O segundo parágrao afirma a política como a mais “arquitetônica” das inves-

    tigações, porque o seu fim subordina o fim de todas as demais (subordina inclusive

    o fim dos então mais estimados saberes, como a economia, a estratégia e a retórica).Ela reere-se ao bem do homem. O bem do homem e da cidade são o mesmo. Mas

    como é mais divino procurar o bem do maior número, a política, que se ocupa do

    bem da cidade, tem primazia sobre todas as demais ciências e artes. Esta é uma das

    muitas passagens em que Aristóteles liga a ética à política. A dimensão omnicom-

    preensiva da política expressa-se pela legislação, pela qual a política dispõe sobre o

    que se deve azer e evitar. Seu fim envolve o fim das restantes atividades, já que lhe

    cabe dispor sobre o lugar de cada uma delas na polis.

    A unidade hierárquica entre os fins – em que uns fins são surpreendidos tam-bém como meios em ace de outros fins, mais elevados – conduz à pressuposição

    de um fim último, em razão do qual os outros são escolhidos (são fins intermediá-

    rios). O fim último é aquele que não retira sua qualidade de fim da subordinação a

    qualquer outro – ele não é meio relativamente a qualquer outro fim. Um fim último

    deve ser postulado, pois o desejo do fim seria vazio se a linha de condução de um

    fim ao outro não encontrasse um termo final.51 O saber relativo ao fim último tem

    importância decisiva para a vida do humano (é o alvo em razão do qual ele pode

    orientar-se, qual o arqueiro…). A ética, como ciência comprometida com tornarbom o homem, deve esorçar-se por delimitá-lo.

    A investigação de Aristóteles sobre o bem, objeto da política e da ética, par-

    te, como recorrente recurso dialético, dos usos das palavras que Aristóteles encon-

    tra em seu tempo e na tradição; ali ele constata a unânime afirmação da  elicidade 

    como o maior bem do homem. Não encontra, no entanto, concordância acerca do

    que signifique.

    51  EN, I, 2, 1094 a 18-22.

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    Para uns, o homem realizado é o homem rico; para outros, eliz é uma vida

    cheia de prazeres.52 Mas como escolher entre tais concepções disputantes de vida

    boa? A que critério pode-se recorrer para arbitrar entre estes modos de viver? ParaAristóteles, a elicidade é o bem escolhido em razão de si e de mais nenhum outro

    fim. “De ato, nós escolhemos sempre a elicidade por causa dela mesma, e nun-

    ca em vista de outro fim para além dela.” “A elicidade parece, por conseguinte, ser

    de uma completude plena e autossuficiente, sendo o fim último de todas as ações

    possíveis.”53 É o bem supremo. Neste parágrao 7 do Livro I, a investigação sobre a

    eudaimonia parte da problematização da vida mais própria para o humano, aquela

    em que se realiza e se cumpre como homem.A elicidade identifica-se com o viver bem, e por isto a discussão sobre a eli-

    cidade é a discussão sobre a melhor orma de vida. Aristóteles passa em revista os

    dierentes tipos de vida em busca do que há de especificamente humano De que di-

    mensão da alma se trata? Qual a vida própria do humano? A resposta encontra-a

    na parte racional da alma. A dimensão capaz de razão é exclusiva do humano, entre

    os seres vivos, singularizando-o enquanto espécie. Diante disto, se há três tipos de

    bens atinentes ao humano (os bens exteriores, os bens do corpo e os bens da alma),são os bens da alma os mais autênticos e extremos – os bens da alma são próprios

    do humano,54 e a eles diz respeito a elicidade.

    52  A mais importante objeção contra a validade do recurso a Aristóteles para compreenderos desafios éticos contemporâneos é o caráter plural e mesmo ragmentário (pulveriza-do) que marca nossa visão de mundo hoje. A teoria ética de Aristóteles não teria nadaa contribuir hoje, por estar enclausurada num horizonte cultural supostamente monolí-tico, homogêneo, marcado pela afirmação de uma única concepção de vida. Nada mais

    also. O início da Ética a Nicômaco mostra que é exatamente a ausência de uma concep-ção unitária e aproblemática de vida boa o que provoca a reflexão ética de Aristóteles.

    53  EN, I, 7, 1097 b1-22. ARISÓELES. Ética a Nicómaco. rad. António C. Caeiro, cit.,p. 28.

    54  Fica mais uma vez clara a vinculação da ética aristotélica à guinada para o interior con-sumada por Sócrates. “E dado que este é o próprio undamento da ética socrático-pla-tônica, não é de admirar que Aristóteles, aceitando o undamento, acabe por concordarcom Sócrates e Platão, muito mais do que se crê comumente. Os autênticos valores, tam-bém para o Estagirita (como acima já pusemos implicitamente de relevo), não poderãoser nem os exteriores (como as riquezas), que tocam apenas tangencialmente o homem,

    nem os corporais (como os prazeres), que não dizem respeito ao eu verdadeiro do ho-mem”. REALE, Giovanni. História da filosofia... cit., p. 410.

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    O horizonte da ética e o seu compromisso com a felicidade humana  19

    A elicidade é a atividade do humano que se cumpre,55 e apenas está ao alcan-

    ce do homem que dá conta de viver de acordo com a sua melhor possibilidade, dei-

    xando-se governar pela melhor parte de sua alma e entregando-se à sua atividadeespecífica: o pensar.56

    1.4 Felicidade e os limites do poder do humano sobre si mesmo

    Feliz é quem vive e age bem. No entanto, Aristóteles afirma que a elicidade é

    quase um viver bem e um agir bem. Griamos a palavra quase porque, embora seja

    uma tarea do humano, a ser realizada por seu próprio esorço nos quadrantes de

    uma vida inteira dedicada a viver bem, a elicidade depende ainda de condições as

    quais escapam ao poder do homem, porque não encontram nele o seu princípio.Esta é uma dimensão importante a caracterizar a ragilidade e a indigência do hu-

    mano, em cuja vida mantém-se um elemento imponderável e trágico: não está tudo

    a depender da autodeterminação do homem, mas há algo mais orte do que ele ca-

    paz de pôr a perder toda uma vida dedicada à construção da elicidade. O parágra-

    o traz algo de esclarecedor sobre o sentido da vida humana. Nossa elicidade de-

    pende de nós, mas não apenas de nós.

    O problema da possibilidade de a elicidade ser alcançada antes do fim da vida

    (a preocupação gira em torno do incontornável elemento trágico: a má sorte que

    55  A elicidade pressupõe uma existência completa, durante a qual esta conquista tem lugar.Não se pode dizer que a criança, que ainda não viveu longamente, seja eliz. EE, III, 1219b 1-10: “For we think that to do well and live well are the same as to be happy; but eacho these, both lie and action, is employment and activity, inasmuch as active lie involvesemploying things – the coppersmith makes a bridle, but the horseman uses it. Tere isalso the evidence o the opinion that a person is not happy or one day only, and that achild is not happy, nor any period o lie (hence also Solon’s advice holds good, not to call

    a man happy while he is alive, but only when he has reached the end), or nothing incom-plete is happy, since it is not a whole”. ARISOLE. Eudemian Ethics. rad. H. Rackham.

    56  “Os homens distinguem-se dos outros animais por serem dotados de razão e da capaci-dade de pensar. Os homens ‘contêm algo de divino – aquilo que chamamos de intelectoé divino’, e nosso intelecto é ‘o divino que habita em nós’. Na verdade, ‘cada um de nósé concretamente intelecto, visto ser este o nosso elemento soberano, o nosso melhorelemento’. As excelências mais propriamente humanas são por conseguinte as intelec-tuais, consistindo a eudaimonia, primordialmente, em atividade de acordo com essasexcelências – trata-se de uma orma de atividade intelectual (…) Realizar-se, azer su-cesso na vida, requer a dedicação a empreendimentos intelectuais”. BARNES, Jonathan.

     Aristóteles, p. 125. As citações que constam no texto são, respectivamente: GA II, 3, 737a11-11(2); EE VIII, 2, 1248 a47; e EN, X, 7, 1178 a 2-3.

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    Sensatez como modelo e desafio do pensamento jurídico em Aristóteles20

     

    pode suceder até o último momento e desgraçar a vida) é trazido para colocar aquestão da dimensão humana da bem-aventurança em que consiste a elicidade: ela

    tem algo de divino, à medida que a atividade da alma capaz de razão (que é o que háde divino no humano) é o que de mais divino pode o homem ter (ser), mas encon-tra-se ainda no horizonte do humano – e o humano não tem o destino inteiramenteem suas mãos. odo o tratado pode ser lido como dizendo a ética como autocons-trução do homem (e é um documento importante do iluminismo grego, em que atensão com as orças irracionais do destino passa pelo autoesclarecimento do po-der do homem sobre si mesmo) – mas reconhece os limites dessa autonomia, dessadisponibilidade sobre si mesmo: o homem não tem o destino inteiramente em suasmãos, e esse é um dos limites incontornáveis da ética e da política. Alguém podeser virtuoso, excelente, mas, ainda assim, ser ineliz. Isto se explica pelo quanto háde indisponível para o humano, mas que influencia a elicidade (o destino, a sorte,o acaso): Aristóteles não reduz a elicidade à excelência, há outros elementos coad-

     juvantes externos contra cuja influência o homem virtuoso é cada vez mais imune,mas não totalmente liberto.57

    Se a autorrealização (elicidade) é o maior bem do humano, a ética deve es-clarecer os modos de sua aquisição.58 Afinal, como se obtém a elicidade? Por ha-bituação, aprendizagem, acaso ou avor divino? Independentemente de ser ou nãoenviada por deus, é a mais divina das posses humanas. Seria plausível considerá-laavor divino, pois é a melhor de todas as coisas? Ou está ao alcance de todos? Éacess