Sentido e Verdade No Tractatus
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8/10/2019 Sentido e Verdade No Tractatus
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S e n t i d o e V e r d a d e n o
Tractatus d e L . W i t t ge n s t e i n
Raul F. Landim Filho
Curioso destino teve o Tractatus (2). Recusado po r diversos editore s
durante um p erío do de três anos, fo i f inalm en te pub licado graças à
decisiva intervenção de B. Russell (3). Editado, logo consagrou um
esti lo de fi losofia que influenciou não só o pensamento anglo-saxôni-
co, como também um grupo de cientistas e fi lósofos que naquela
época começaram esboçar o ambicioso projeto neo-positivista (4).
Tão surpreendente quanto a acolhida dada a um livro que mal conse-
( *) Con ferênc ia rea l izada na UN ICA M P no E n c o n t r o de F i l o s o f i a das Ciências
em novembro-79 .
(2 ) W i t tgens te in , Lu dw ig
Tractatus
Log ico-Ph i l osoph icus .
E d . B i l ingüe (a le
mão/ i ng lês ) . T radução de D .F . Pears e B . F . M c G u l n e s s , L o n d o n , Rou t i edge
& Kegan Pau l , 1961.
(3) Sob re a h is tó r ia da pub l icação do Tractatus ve r : von Wright, G . H . H i s t o r i -
cal I n t r odu c t i on : T h e O r i g i n o f W i t t g ens t e i n ' s T r a c t a t u s in P ro to t rac ta tus .
A n
early
ve rs ion
o f T racta tus
Log ico-Ph i l osoph icus , ed iç ão de B . F . M c G u i -
ness,
T . Nyberg e G .H. von Wright. L on do n Rou t i edg e & K eg an P au l , 71 .
p.2-34.
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guira um editor, foi o rápido declínio da sua inf luência. Hoje o Trac-
tatus,
ten do conh ecido a glória e o esq uecim ento, se enc ontra à dis
posição dos historiadores e dos arqueólogos nç mausoléu dos clássi
cos que perderam momentaneamente a atualidade.
Uma aparente ambigüidade na estrutura do Tractatus (5) pode ter
contr ibuído para o seu prematuro abandono. O l ivro tem ao mesmo
tempo uma dimensão
crítica
(no sentido de que a f i losof ia é compre
endida co mo uma at iv idade , um instrum en to de análise con ceitua i, e
não como uma teoria, um conjunto sistemático de enunciados verda
deiros) e
especulativa,
(que o ap rox im a muitas vezes das reflexões da
metafísica clássica). Segundo a 'ontologia' do
Tractatus
o
mundo é a
tota lidad e dos fatos (Pr. 1,2, 2 .04 ), os fatos a conexão de objetos (Pr.
2-2.01), os objetos substancias imutáveis da realidade. Entretanto,
não é função da filosofia descrever o real, mas traçar os limites do di-
zível,
isto é, estabelecer as condições do discurso significativo (Pr.
4.112). Significativas são as proposições verdadeiras ou falsas, isto é,
as proposições descritivas das ciências (Pr. 4.11-4.111). A filosofia é
portanto uma
crítica
(mos tra apenas a form a) da linguagem . (Pr.
6.53-6.54).
Esta ambigüidade é ainda reforçada pelo t ipo de exposição adotado
por Wittgenstein. Como as proposições iniciais do Tractatus (Pr.
1 2063
são consideradas como 'ontológicas', a ordem de exposição
(4) Ver Wais m an,
F r i e d r i c h .
Lu dw ig Wi t t gens te in y e i C i rcu lo de Viena.
T r a d u
ção de
Manuel
A rb o l é . M é x i c o , F u ndo de C u l t u ra E c onô m i c a , 7 3 , p.8-27; e
C a r n a p , R u d o l f A u t o b l o g r a p h y in
Ludw ig Wi t t gens te in The Man and His
P h i l o s o p h y , ed. K. F a n n . New J e r s e y , H u m a n i t i e s Press - 67, p. 33-34.
(5 ) A es t ru tu ra do T rac ta tu s é por dema is
c o n h e c i d a.
São sete p ropos ições fun
damenta i s .
1 . Die Welt is t al ies, was der
Fa l i
i s t .
2 .
Was der
Fa l i
is t , d ie
Ta t s ac he ,
i st das B es t eh en v on S a c h v e rh a l t en .
3 .
Das
logische
B i l d de r T at s a c h en is t de r G ed a nk e .
4 . Der Gedan ke is t de r s i nnvo l i e
Sa t z .
5 .
Der Sa tz i st e ine Wahr he i t s fun k t i o n der E lem enta rs a tze . (Der
E l e m e n -
t a rsa tz is t e ine Wahrhe i t s fun k t i o n
se iner se ibs t ) .
6 .
D i e a ll g em e i ne F o rm de r W a h rh e i t s f u nk t i on i s t : [ p , x ,
N(x)].
Dies ist d ie
a l l geme ine Form des
Satzes .
7 .
W ov on m a n n i c h t
sprechen
k a n n , da rü b e r
muss
m an
s c hwe ige n .
O s ign i f i cado
destas
p ropos ições bás icas é exp l icado pe las p ropos ições n.1 ,
n . 2 , e t c , ond e n = 1 . . . 7. Se n . e m são nú m eros in t e ir os a rb i t r ár i os ,
n.m.1, n.m.2,
e tc . exp l i c i t am a p ropos i ção n .m .
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(indicada pela numeração das proposições (6)) poderia exprimir uma
prioridade lógica da dimensão especulativa sobre a dimensão crítica.
Assim,
considerando as 'proposições básicas' (numeradas pelos intei-
rios positivos de 1 à 7) com o encadeadas num a ord em crescente de
importância, a análise da liguagem (que se inicia à partir da proposi
ção 3) dependeria dos 'princípios metafísicos' anteriormente enun
ciados. Alguns com entadores, ide ntif ica nd o a ord em da exposição
com a ordem lógica das razões, transformam o
Tractatus
num l ivro
basicamente especulativo (7).
Mas,
Wittgenstein é também um pensador próximo à tradição clássica
da fi losofia crítica pela sua ambição de traçar rigorosamente os limi
tes entre o ex prim íve l , o que pode claramente ser d i t o , e o inexp ri-
mível, objeto do místico. Naquela época, graças à influência de Fre
ge,
delimitar estas fronteiras consistia em analisar a relação da lingua
gem com a realidade sob dois aspectos: (i) o da possibil idade da re
presentação co m o descrição lingü ística (simbólica e con ven ciona l) do
real;
(i i) o da correspo ndência (ob jetividad e) da representação à reali
dade.
Portanto, del imitar as fronteiras do 'dizível ' s igni f icava formu
lar uma teoria do sentido e da verdade, e analisar, ao mesmo tempo, a
conexão e a independência destas duas noções. Tal é o objetivo de
um dos primeiros escri tos f i losóf icos de Wittgenstein (8), que formu
la com simplicidade um dos temas centrais da sua obra:
. . . nós somos capazes de compreender uma proposição sem saber
se ela é verdadeira ou falsa. O que nós sabemos quando compreende
mos uma proposição é o seg uinte: nós sabemos o que é o caso se ela é
verdade ira; e o que é o caso se ela é falsa. Mas nós não sabemos neces
sariamente se ela é atualmente verdadeira ou falsa .
(6 ) Sobre o p rob lema da num eração das p ropos ições do Tractatus ver :
(a) S t e n i u s , E r i k - Wi t tgenste in s Tracta tus . O x f o r d , Bas i l B l a c k w e l l , 1964,
p. 3-17.
(b) (i) A e n i s h a n s l i n , IVIarkus - L a s t ru c tu re cy c l i qu e du T rac t a tus de Wit
t g e n s t e i n ,
in e
(i i) M o r eno , A r i ey - L e s y st èm e de nu m ér o t a t i on du T r ac t a t u s , in Sys -
tèmes
Symbol iques,
Science e P t i i loso ph ie . Par is , Edições do C N R S -
1978.
(7 ) V e r es pec ia lm en t e K lem k e , E . T h e on t o l og y o f W i t tgens t ei n ' s T r ac t a t u s
in
Essays
on Wi t tgens te in , ed . E . K lem k e
C h i c a g o ,
Un i v e r s i t y o f I l l i no i s
Press,
71 . . . i s t h e wo r ld with wh ich Wi tt gens te in i s p r im ar i l y c onc e rned .
Tractatus
is ch ie f ly a t reat ise o f
m e t a p h y s i c s .
p. 104.
Ver
t a m b é m F o g e l i n , R o b e r t . Wi t tgenste in . L o n do n , Rou t i edge & K egan
Paul , 76.
(8 ) W i t t gens te in , Lu dw ig . N o tes on L o g i c in Noteb oo ks - í914-1916. (ed. G .
H. von Wright e
G . E . M .
A n s c o m b e ). O x f o r d , Bas i l B lack w e l l - 69 p . 94 .
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A noção de sentido diferencia-se po rta nt o da noção de verdade, em
bora as frases significativas sejam ou bem verdadeiras ou bem falsas.
O sen tido da frase não é assim fixa do independentem ente das cond i
ções de verdade, embora possa ser determinado independentemente
do seu atual valor de verdade. Portanto, só as frases que podem ser
verdadeiras ou falsas têm sentido; pode-se compreender uma proposi
ção verdadeira ou mesmo falsa, mas não se pode compreender uma
proposição que não é nem falsa, nem verdadeira.
A idéia central desta tese, que terá uma formulação menos contun
den te e mais precisa na teoria pic tór ica da p roposiçã o, é a de de finir
o sentido de uma frase pelas suas condições de verdade. É assim uma
versão realista (9) e essencialista da teoria do significado, pois fixa o
sentido da frase independentemente da ação dos interlocutores como
sujeitos l ingüísticos ou como sujeitos históricos. Além disso, formula
da num quadro clássico da lógica bivalente, restringe em demasia o
ambicioso projeto crí t ico do Tractatus de traçar de finit ivam en te os
limites do discurso significa tivo . Pois o que pode ser claramen te di
t o são agora apenas as frases suscetíveis de tere m va lor de verdade.
Assim,
um estudioso da fi losofia da linguagem con temp orânea e co
nhecedor da atual complexidade das diversas teorias do sentido não
se surpreenderá com o 'esque cime nto' a que fo i condenado o Tracta-
tu s
em razão do aparente dogmatismo das suas teses.
Sem preocupação de uma análise estritamente histórica, pretendemos
neste artigo mostrar que a fi losofia da linguagem do
Tractatus
não
pressupõe qualquer
teoria do real,
apesar de neste livro serem usados
alguns termos característicos da tradição metafísica, e alguns enun
ciados, que em razão destes term os , p ode m ser considerados com o as-
serções de uma teoria ontológica. A fi losofia da l inguagem tem uma
prioridade lógica
sobre qualquer ou tra te oria , e deve ser com preendi
da a partir da noção de representação (quadro), definida a partir das
proposições 2.1-2.11. A leitura do rracfaft/s deve aí se iniciar. Entre
t an to ,
na definiçã o de representação certos termo s com o f a t o ,
o b je to , su bs tân cia , etc. são uti l izado s. Para evitar imprecisões o
autor f ixa o signif icado destes termos. Tal é o objetivo dos enuncia
dos que antecedem a proposição 2 . 1 .
(9 ) V e r D u m m e t , M i c h a e l . T r u t h e
R e a l i s m
in T ru t h and Othe r En igmas.
D u c k w o r th , L o n d o n 7 8 , p . 1 -2 4 e p . 145-165 respec t i vam en te .
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Pretendemos ainda mo strar que é possível inte rpre tar a teoria d o
sen
t ido de Wittgenstein I não como uma teoria que procura f ixar cr i té
rios gerais que de lim itam as fron teiras e ntre o discurso sign if icativo e
0 não signif icativo, mas elucidar as condições lógico-l ingüísticas que
certas expressões devem satisfazer para poderem ser util izadas como
asserções verdadeiras ou falsas. O tema central do Tractatus é portan
to a asserção,
é
pois a questão do sentido na sua conexão com a ver
dade.
- Teoria Pictórica da Proposição
Duas teses centrais, e inter-relacionadas, são apresentadas ao longo do
Tractatus.
(1)
a teoria p ictór ica da proposição, ou , a proposição com o quad ro,
imagem,
figuração dos estados de coisas; tese esta que permite
elucidar o problema do sentido.
(2)
a l inguagem como constituída de proposições que são funções de
verdade.
Ao lado destas duas teses, uma outra não menos importante, mas ra
ras vezes explicitamente formulada, e que fixa o signif icado das duas
anteriorm ente me ncionadas, é a da univocidade do s entido. Sobre ela
refletiremos mais tarde.
Em virtude do caráter de função de verdade das proposições da
l in
guagem (11) é ó bv io que graças à análise das proposições devemos
chegar às proposições elem entare s (Pr. 4 .2 2 1 ); e se todas as propo si
ções elementares for em dadas, a pa rtir delas poderemos fo rm ar todas
as proposições (Pr. 4.51). Obtem-se portanto uma completa descrição
do mundo se forem fixadas as proposições elementares verdadeiras
(Pr. 4.26), já que estas afirmam a existência de um estado de coisas,
isto é, de um fa to atôm ico (Pr. 4.25 e 4.2 1).
(10) Ver Dummett, M ichae l . What is a Th eo r y o f Mean ig i n M indand Langua -
g e,
I Claredon-Press - 75 , p . 97 -137.
G r i c e ,
H. Mean i ng in
The Ph i l osop h i ca l Rev iew ,
v o l .
L X V I ,
n ° 3 - 1 9 5 7 , p .
377-88.
Sear le , J o h n .
Speech
Acts,
Cambr idge Un i ve rs i t y
Press,
Cambr idge 69, p .
22-53.
Evans, Gareth and Mcdowel l , J o h n (ed.).
T ru th and Mean ing
C la redon Press
O x f o r d , 7 6 .
(11 ) Como d i sc ípu lo de
F r ege ,
Wi t tgens te in pos tu la que a un idade l ingüís t i ca
dotada de s ig n i f i cado é a f rase e não a pa lavra .
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o
problem a do sen tido se reduz pois à análise da proposição elemen-
tar.
Uma proposição (elementar) diz W ittgens tein . . . m ostra como as
coisas estão (conectadas) se ela é verdadeira. E ela
firm
(sagt) que
as coisas estão assim (Pr. 4. 02 2) .
l\/lostra o seu sen tido, representa (darstellt) esta ou aquela situa çã o ,
(Pr. 4031), e firm (sagt) a sua representação. E a representação
consiste na de scrição (Beschreibung) de um estado de coisas (Pr.
4.023).
A análise desta dupla fun ção da prop osiçã o, descritiva e assertiva, nos
conduz ao estudo da Teoria da Representação (Quadro) (12), sob
dois aspe ctos:
1) Em que condições uma representação é possível?
2) Em que condições é possível afirmar uma representação?
Em termos mais adequados ao estilo do Tractatus duas questões de
vem ser analisadas:
1) Sob que condições um fato, uma conexão de elementos, é um qua
dro (uma representação)?
2) Em que condições um quadro á uma proposição?
II - Fato como Quadro (Representação)
A origem da hipótese do qu adro ser uma propo sição e da proposição
ter uma dimensão pictó rica , po rta nto a origem da teoria pictórica
da proposição, é relatada por G. Wright no seu conhecido resumo
biográfico (13), e retomado pelo próprio Wittgenstein no seu diário
em 29 /9 /1 4 (14). Ao ver num jorna l o esquema de um acidente auto-
mobilístico, Wittgenstein intui que este esquema pode ser usado co
mo uma proposição. A representação deste fato, o acidente automo
bilístico, consiste não só na substituição dos automóvies por dese
nhos particulares, como também na apresentação da conexão entre
os elementos que substituem no esquema os automóveis. Com efeito,
o fato do acidente não consiste simplesmente na existência dos obje
tos, mas no modo determinado pelo qual estão inter-relacionados.
(12) O termo q u a d r o (das B i l d ) p oder i a s er t r a du z i do c om o F i g u ra ç ã o ,
Modelo , Rep res en tação , e t c .
(13 ) Ma lco im , Norman - Ludw ig Wi t t gens te in A Memoir with a B iog ra f i ca l Ske-
tch
by G.H. vo n
Wright O x f o r d U n i v . Press, 1975, p. 7-8.
(14) Wi t tgenste in , L . (Notebooks) , op . c i t . , p . 7 .
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Um quadro, um esquema,
apresenta
assim uma situação possível, isto
é, um estado de coisas subsistente ou não (Pr. 2.11).
Quais são as condições de uma representação?
(1 )
Primeiramente deve-se notar que uma representação somente
acessível àquele que é o seu produtor não é verdadeiramente uma re
presentação. Esta deve ser pública; nos termos de Wittgenstein, um
fato (Pr. 2.141).
(2) Um fato para se transformar numa representação deve ainda ter
os seus elementos considerados como substitutos dos objetos. São as
sim os elementos da representação signos, isto é, objetos material
men te percep tíveis, e sím bo los, isto é, designadores de objetos ou tros
que eles mesmos (Pr. 2.13, 2.131).
(3 )
Mas não é ainda suficiente para que se trans form e um fat o num a
representação que os seus objetos sejam símbolos. É a conexão dos
elementos que deve traduzir, segundo certas regras convencionais, a
concatenação dos estados de coisas representados. Que os elementos
do quadro estejam relacionados uns com os outros representa que as
coisas estão assim relacionadas umas co m as outra s (Pr. 2 .15 ).
Um fato só é portanto representativo se ele é interpretado. Esta inter
pretação consiste em regras de correspondência bi-unívocas que asso
ciam cada elemento da representação a um objeto. Wittgenstein de
nomina esta regra de correspondência de Relação Pictorial (Relação
Afigurante = Die Abbi ldende Beziehung) (15).
Em cada representação está definida convencionalmente uma função
bi-unívoca que correlaciona os elementos do quadro com os objetos
do estado de coisas. Mas a representação é uma estrutura, uma cone
xão atual de elementos (um fa to ). E com o já f o i assinalado, a repre
sentação não consiste simplesmente em simbolizar os objetos, mas
em preservar convencionalme nte na estrutura representante a estru tu
ra dos estados de coisas representados. É certo que, definida a Rela
ção Pictorial, uma mesma conexão de diferentes elementos, ou dife
rentes conexões dos mesmos elementos, podem representar, correta
ou incorretamente, um mesmo estado de coisas. Em outros termos,
fixada a Relação Pictorial, diferentes estruturas podem representar
um mesmo estado de coisas.
(15) Ver Pr. 2.153-2.1515.
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Para dar conta disto, Wittgenstein introduz a noção de Forma Pictori
al (Die Form der A bb i ldu ng ). Inic ialmente definida com o a possibi
lidade da es tru tu ra (pr. 2.0 33 ), a sua noção é precisada na Pr. 2.151:
a
pos sibilidade de que as coisas estejam um as em relação as ou tras
com o os elementos da f iguração (q ua dro ) (16).
A Forma Pictorial explica assim como uma pluralidade de estruturas
pode representar um mesmo fato possível, e portanto como uma re
presentação pode ser representação incorreta deste fa to . É interessan
te assinalar que sem levar em consideração a noção de Forma Pictori
al e Relação Pictorial não se pode compreender a afirmação de que
uma representação apresenta incorretamente um fato (Pr. 2.17). É a
Relação Pictorial que torna tal estrutura representação de tal estado
de coisas, correlacionando os elementos da representação com os ob
jetos do fato. Este correlacionamento transforma o fato num quadro
(Pr. 21.513) mesmo se a conexão não for preservada, o que a torna
uma representação incorreta.
A Form a Pic toria l é o que há de co m um en tre a representação e o es
tado de coisas (Pr. 2.17). Mas a representação não é uma reprodução
de um fa to possível, mas a sua re-apresentação, sua recriação s im bó li
ca.
A Form a P ictor ial é assim uma F orma de Representação (D ie
Form der Darstellung) (Pr. 2.173). O que há de comum entre todas
as Formas Pictoriais é de serem elas Formas Lógicas, formas que de
te rm ina m as estrutura s possíveis de representação (Pr. 2.20 2 . 2.2 03 ).
E a Forma Lógica é a Forma de Realidade (Pr. 2.18).
Proposição de difíci l interpretação que relembra afirmações da fi loso
fia clássica, mas que em Wittgenstein é apenas uma conclusão da sua
argumentação l ingüística. Com efeito, se um fato é a representação
de um estado de coisas, deve haver algo de comum entre o fato repre
sentante e o estado de coisas representado para que a representação
seja representação deste estado de coisas. O
comum
não pode ser en
contrado nas estruturas que são diferentes em razão dos seus objetos:
elementos simbólicos na representação, coisas do fato possível. A
identidade da representação e do representado não pode ser procura
da nem na material idade das coisas do fato possível, nem na dimen
são material-simbólica dos elementos do quadro. Tão pouco na cone
xão apenas preservada por convenção (e não reproduzida) na repre
sentação.
(16 ) D ie F o rm der Abb i l du ng i s t d ie Mog l i chk e i t , dass sich die Dinge so zu ei -
nander ve rha l ten , w ie d ie E lemen te des Bi ldes.
4 2
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o
com um às duas estruturas — o q uadro e o fa to possível — é o que
delas resta quando não são mais analisadas e diferenciadas pela mate
rialidade sensível e perceptível dos seus elementos e pela concatena
ção atual e determ inada dos objeto s. Isto é, qua ndo as duas estru tu
ras são consideradas abstratamente, como conexões indeterminadas
de objetos possíveis (e não atualmente perceptíveis). As estruturas
são assim identificadas como isomórficas. Note-se que o isomorfis-
mo se dá entre fato (representação), e um estado de coisas que pode
não ex istir atua lme nte (17 ). Isto exp lica a possibil idade de uma re
presentação incorreta.
I I I — Propo sição, Representação e Asserção
Resta-nos refletir sobre a seguinte questão: Em que condições um
quadro é uma proposição?
Analisaremos esta questão em dois níveis:
(2.1) Sob que condições uma frase é uma representação; e
(2.2) Como uma frase significativa torna-se uma proposição?
Uma palavra, ou u m c on jun to de palavras nada representa so m en te
fatos podem exprimir um sentido; uma classe de nomes não pode
(Pr. 3.142).
É portanto a frase e não o nome que deve ser analisado.
A frase é uma concatenação, articulação, de palavras. É portanto um
f a to ,
algo de publicamente perceptível. Os seus elementos, as pala
vras, são signos simples e primitivos. Signos que não podem ser de
compostos, analisados ou definidos, mas elucidados por expressões
que contêm ocorrências deste mesmos signos. (Pr. 3.26, 3.263).
Estes elementos simples da frase se transformam em nomes quando
por convenção são associados, no contexto da própria frase, a obje
tos.
U m nome denota (bedeutet) o ob jeto. O ob jeto é a sua denota-
ção . (Pr. 3.2 03 ).
(17) A Representação sempre apresenta uma poss ib i l i dade , e é asssim i somór f i ca
a ao menos um fato possíve l. E l a pode ser representação inc or re ta do
fato,
de um es tado de coisas ex is tente. É representação deste
fato
em razão da
Relação Pic tor ia l . É representação incor re ta por não ser isomór f ico, por não
preservar
a conexão a tua l do s ob je tos do
fato.
4 3
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Sendo a frase uma articulação de nomes, ela é uma estrutura. Defini
das as regras de correspondência, esta estrutura agora interpretada,
preserva logicam ente a conexão dos estados de coisas. Se 'a R b ' é uma
frase elementar 'a' e 'b' nomes, em razão do símbolo 'a' estar numa
certa concatenação (expressa pela inscrição R) com o símbolo 'b'
pode-se representar que o objeto a está concatenado com o objeto
b.
Wittgenstein assim explica e resume a frase na sua função significati
va: U m nome apresenta uma coisa, ou tro n om e, ou tra coisa, e eles
estão combinados uns com os outros de tal modo que o todo — como
quadro vivo
—
representa (vo rste llt) um estado de coisas (Pr. 4.0 31 1).
Se a frase como fato torna-se significativa, isto é, representativa, gra
ças às regras de correspondência, a frase significativa
projeta
como
fa -
to
um estado de coisas possível, e com isto transforma-se numa pro
posição. A proposição é o signo prop osicion al (a frase) em sua rela
ção projetiva com o m u n do (Pr. 3.12).
Como se desenrola este processo de projeção?
W ittgenstein diz que a form a geral da proposição é: Is to é com o as
coisas estão (Pr. 4.5 ). Tod o o p roblem a se resume na explicação da
ocorrência do term o is t o na frase anterior.
Desde o seu te xt o N ot es on Lo gic , Wittgen stein in tro du z a noção
de bi-polaridade do sentido. Pode-se usar uma mesma representação
para dizer duas coisas diferentes, (i) Dizer que a representação é
um fa to (sen tido po sitiv o) , ou (ii) dizer que a representação é apenas
um estado de coisas possível, isto é, um fato inexistente (sentido
negativo). No primeiro caso, usa-se da representação e afirma-se:
E is co m o as coisas es tão . N o segundo caso, afirma-se: E is com o as
coisas não es tão . Em ambos os casos ent re ta nto , trata-se do uso da
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mesma representação, ora afirmada como um fato existente, ora afir
mada como um fato inexistente (18).
Tome-se com o exe m plo a expressão A Lua é m aior do que a T e rr a .
No sentido po sit ivo afirma-se : Is to (a representação) é um f a t o ,
(o que evidentemente é falso). Por outro lado, usando a mesma re
presentação pode-se afirmar que a situação representada não subs-
sjste: Is to não é um fa t o . Neste caso sabe-se qua l é a situação m en
cionada (como fato possível), e se sabe em razão da representação.
Só se pode 'falar sobre' o inexistente pela menção de uma situação
que é apenas uma representação.
Este duplo sentido da proposição permite uma distinção mais clara
ainda entre as noções de sentido e verdade. A o se afir m ar : Is to (a
Lua é maior do que a Terra) não é um f a t o conhece-se a situação
mencionada pela representação, e assere-se a representação como fato
inexistente. Esta asserção é verdadeira, e a situação mencionada ape
nas uma representação. O sentido é pois a representação que pode
ser usada pela asserção de dois modos diferentes: o positivo é o nega
t ivo . E qualquer um destes modos pode ser verdadeiro ou falso. A
verdade não é apenas uma adequação de representação ao
real,
mas
a concordância entre o dizer, o sentido e o real.
IV — A tese da univocidade do Sentido»
A Teoria Pictórica da proposição mostrou ser uma hipótese úti l e
original . Uti l porque elucida o problema do sentido e da verdade,
porque mostra como a negação de uma proposição e a própria propo
sição mencionam uma mesma situação, enfim porque explica a fun
ção comunicativa da l inguagem. Sobre este últ imo ponto deve ser
assinalado, que a proposição comunica aquilo que representa. Se os
sujeitos lingüísticos são capazes de compreender e de comunicar sen-
(18)Ver
A n s c o m b e ,
G . E . M . An In t roduc t ion t o Wi t t gens tein s T rac tatus . 4?
edição.
L o n d o n ,
H u t c h i n s o n U n i v er s i t y L i b r a r y , 1 9 7 1 , p . 6 4 - 7 8 .
Ver t a m b é m a
defesa
da a f i rmação de que o quadro já é uma p ropos ição em :
(i )
S c l i w y z e r ,
H.R. Wi t t gens te in ' s P ic tu re - T l ieo ry o f Language .
(i i ) S hw ay d e r , Dav id . O n t he P i c t u r e T heo r y o f Language:
E x c e r p t s from a Rev iew . i n Essays on Wi t tg enste in s Tracta tus . E d i t a
do I rv i ng Cop i & Robe r t
B e r n ar d , L o n d o n ,
Rou t i edge S K e k a n Paul ,
1966, p. 271-288 e 305 -312, resp ec t i vamente .
( i i i ) Rhees , R u s h . M i s s A n s c o m b e o n t h e T r a c t a t u s in D i scuss ions o f
Wi t tgenste in .
L o n d o n ,
Rou t i edge & K ek an Pau l , 1970 , p . 1 - 15 .
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t idos, é em razão da função pic tor ial , descrit iva, da proposição. O uso
de uma representação não só descreve um estado de coisas, como, em
razão desta descrição, torna possível a ação comunicativa. E se a
l in
guagem tem este poder de criar sempre novos sentidos é porque a re
presentação não supõe a existência, mas apenas a possibilidade.
A teoria pictórica é também uma solução original para o tradicional
problema do sentido e da referência (19). Só um fato representa, isto
é, só a proposição, compreendida como uma frase descritiva projeta
da no mundo, tem sentido. Um signo isolado só é nome no contexto
da proposição, e a sua função na frase significativa é a de identificar
o objeto. Regras convencionais determinadas pela Relação Pictorial
permitem associar na frase o signo ao objeto. Regras lógicas (Forma
Pictorial) permitem exprimir a conexão dos objetos pela conexão ló
gica dos nomes. Sentido e Referência mostram assim este duplo as
pecto das regras semânticas que permitem transformar um fato numa
frase significativa.
Portanto, nomear e descrever aparecem como duas atividades com-
plementares da única função da linguagem tema tizada no
Tractatus
isto é, a função assertiva, que restringe a realidade a duas alternativas:
o sim e o não, o verdadeiro e o falso (Pr. 4.023).
Mas o
Tractatus
não procura apenas mostra r as condições que os
enunciados declarativos devem satisfazer, propõe-se tam bé m a uma
crítica da linguagem, linguagem que na expressão sugestiva de Wit-
tgens veda (verkieidet) o pensamento. De fato, este livro contrapõe
uma linguagem co rreta , cujas condições acabam de ser exp licitadas , a
uma linguagem ambígua. A maneira de exercer o seu método de elu
cidação e cr ítica consiste em submeter a linguagem am bígua às regras
de uma gramática lógica que governa a linguagem correta. Um dos
(19) E i s um a d ivergênc ia importante co m as idéias de Frege expos tas no s céle
bres
a rt i gos Fun ção e
C o n c e i t o
e So br e o Sen t ido e a Re fe rênc ia , e
t a m b é m c o m as d e Russe l l . O nom e só tem referên cia, e a referência é o seu
s ign i f i cado . Po r ou t ro lado , só no con tex to da f rase , u m s igno é um nom e.
Desaparece
assim a n o ç ão d o n o me c o m o s ímb o l o c o m p l e to essencial à teo
r ia de Russe l l . Ver em
espec ia l :
(i )
F rege,
G o t t i o b -
L óg ica e F i loso f ia da L inguagem.
(Tradução P. A lc o fo -
rado) .
São Pau lo . Ed i to ra Cu l t r i x , 1978 , p . 36 -36 .
(ii)
Russe l l ,
B e r t r a n d e W h i t e h e a d , A l f r e d .
P r i nc ip ia
Mathematica
( to 56).
C a m b r i dg e , Un ive rs i t y
Press,
1969, p. 66-70.
( i i i ) Russe l l , B e r t r a n d . In t r oduc t i on t o Ma themat i cal Ph i l oso ph y . New
Y o r k , A . To u c h s t o n e B o o k , p . 1 6 7 -1 8 0 .
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princípios fundamentais desta gramática é o da substituição na frase
do signos pelos objetos (Pr. 4.0312).
A ambigüidade, na l inguagem natural por exemplo, reside, entre ou
tras razões, nos diferentes modos de designação, seja que um mesmo
signo é usado para diversas designações, usado portanto como dife
rentes símbolos, seja que diferentes signos são usados como um mes
mo símbolo (Pr. 3.322 e 3.323). Estas ambigüidades seriam supera
das se cada signo estivesse no lugar de um e somente de um objeto.
Fixada conven ciona lmente a designação do signo, e estabelecida as
regras lógicas de conexão dos símbolos segue-se por necessidade a
descrição do estado de coisas.
A oposição entre linguagem co rreta e liguagem amb ígua corresponde ,
entre outras coisas, à oposição da univocidade à equivocidade do
sen
t ido.
Se po r razões puram en te lógicas poder-se-ia ace itar a ex istênc ia, so
bre tudo num a linguagem idea l, de proposições elementares, estas ga
nham co nto rnos bem precisos na linguagem corre ta graças à un ivo ci
dade do sentido. Com efeito, uma proposição elementar é uma cone
xão de nomes. E nomes são signos simples. Se numa proposição ele
mentar não ocorressem somente signos simples, o sentido desta pro
posição seria revelado po r outra s p roposições . Se não se encontrasse
nesta regressão uma proposição realmente elementar, haveria uma in-
determinação do sentido e assim impossibil idade de se obter uma des
crição do m un do . Diz W ittgen stein : Po stular a possibil idade dos sig
nos simples é postular a dete rm inabil idade do se nt ido (Pr. 3.23 ).
Por outro lado, não só os signos, mas também os seus correlatos, os
objetos, devem ser simples. A argumentação aqui se repete; se uma
proposição tratasse de complexos o seu sentido só poderia ser deter
minado através de outra s proposiçõe s que designassem as partes cons
tituintes destes complexos. Se a análise regressasse ao infinito, nova
mente não se poderia descrever o mundo face à indeterminabil idade
do sen tido. Ca da asserção sobre com plex os deixa-se d ivi d ir num a as
serção sobre suas partes constituintes e naquelas proposições que des
crevem inteiram ente tais co m plex os (Pr. 20 20 1).
A exigência da univocidade do sentido conduz assim a teoria da
l in
guagem do Tractatus
a
postular a existência de proposições elementa
res que são conexões de nomes, signos simples, cujos correlatos são
objetos simples. Os objetos simples, substâncias do mundo (Pr. 2021)
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imutáveis
e subsistentes Pr. 2.027), e com tantas outras propriedades
caras à ontologia tradicional, são a
conseqüênci
e o fundamento da
tese da univocidade. Se a teoria da linguagem apresentada no
Tracta
tus não
pressupõe
uma teoria do real, ela termina por
introduzir
aqui-
lo
que a linguagem correta, que o
próprio Tractatus
pacientemente
elaborara, procurara banir: a filosofia como teoria e não como análi-
se
lógic
da linguagem.
A
peripéci
do
Tractatus
talvez nos
sugira
que uma filosofia da
lin-
guagem
quando regida exclusivamente por
nálises
lógicas que não
levam em
consider ção
as
intenções
do locutor, as
circunstânci s
da
enunciação
as
re ções
do ouvinte, corre o risco de encontrar como
seu fundamento
firm ções
especulativas, tão mais estranhas quando
se aprende que estes enunciados não podem ser formuladas numa
lin-
guagem
correta submetida ao rigor da
nálise
lógica. O abandono do
Tractatus
à
arqueologia encontra
assim suas
razões.
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